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Considerações finais
Não raro, a literatura histórica insinua que a antiga religião romana desapareceu de um momento para outro sob os golpes da impiedosa legislação do imperador Teodósio I. No entanto, estudando mais a fundo a questão, chega-se a concluir que o desaparecimento do paganismo e a cristianização do Império Romano foi processo lento, laborioso e complexo. Apesar de nominalmente cristãos, os poderes instituídos demonstravam escasso respeito pelas opiniões dos bispos católicos quando estes intervinham para tornar menos brutal a elevação dos impostos, impedir o tráfico de escravos ou outras medidas inspiradas nos ensinamentos da nova religião. Os sábios pagãos tinham se mantido por toda parte como heróis da cultura; tinham seus imitadores nas cidades. Eram homens de estilo de vida elevado, associado a poderes mágicos. Seu imenso prestígio garantia que os antigos ritos, embora tecnicamente abolidos pelas leis imperiais, nunca fossem prontamente descartados. Para o pagão instruído, tornar-se cristão era perder o contato com uma tradição gloriosa: “haverei eu de me tornar o que é meu porteiro, e não um Platão ou um Pitágoras?”
O cristianismo não apareceu em Roma como uma religião a mais entre tantas outras já existentes, sem maiores conseqüências para a vida e a sociedade. Pelo contrário, em virtude dos princípios internos que o norteiam, pressupunha, para concretizar seus objetivos, uma transformação radical das instituições e da mentalidade tradicionais. A política religiosa de Graciano veio, em parte, responder a essa necessidade quan-
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do reduziu o Estado romano, até então oficialmente pagão, a Estado leigo, isto é, aconfessional.
O trágico desaparecimento do Imperador, em 383, não modificou, em nada, a política religiosa por ele implantada. Teodósio, associado ao governo desde 379, deu-lhe continuidade e fê-la produzir seus frutos. Promulgou leis severas e decisivas contra o antigo culto com o fito de suprimi-lo e extingui-lo.
Mediante a lei de 24 de fevereiro de 391, vetou, na cidade de Roma, todas as cerimônias pagãs como: sacrifícios, visitas aos templos, homenagens aos ídolos. O mesmo texto legal previa também pesadas multas para os funcionários que negligenciassem a aplicação da norma. Do mesmo modo, com a lei de 16 de junho de 391, proibindo o culto tradicional em todo o Egito, determina que ninguém terá mais permissão para sacrificar, de freqüentar templos e prestar culto nos santuários pagãos. Ainda mais grave se mostra o edito de Constantinopla, de 8 de novembro de 392, coroamento de toda a legislação contra a religião romana tradicional. A todos, seja qual for a origem ou posição social, é negado, mesmo de forma privada, realizar sacrifícios, honrar os Lares com o fogo, os Gênios com as libações, os Penates com o incenso e ornar os altares. A lei previa, igualmente, pesadas multas e confiscações para os infratores.
Diante dessas e de outras normas restritivas, perguntamonos qual terá sido a posição de Ambrósio: tê-las-á solicitado, sugerido ou aprovado?
Em linhas gerais, pode-se afirmar, sem no entanto demonstrá-lo explicitamente, que Ambrósio exerceu influência, se não direta, pelo menos indireta na formulação e promulgação da legislação de Teodósio. A lei de 391, proibindo o culto pagão em Roma, parece efetivamente emanada de sua
sugestão direta; as demais resultam da sua influência indireta em conseqüência da penitência e da reconciliação do Imperador.
Não se pode prescindir que Teodósio era cristão sincero, preocupado com a sorte da Igreja tanto quanto o eram os próprios bispos, razão pela qual é admissível que tais leis fossem decisão espontânea de seu ânimo, especialmente as que foram baixadas depois de sua penitência pelo massacre de Tessalônica. Mediante tal gesto, o Imperador demonstraria reconciliar-se, em definitivo, com a Igreja e ser seu defensor. Nas entrelinhas do discurso fúnebre dedicado a Teodósio, percebe-se que suas leis tiveram explícita aprovação e louvor de Ambrósio.
Há uma outra questão para a qual urge fornecer uma resposta: até que ponto o Bispo de Milão pode ser considerado como tolerante quando admite que a religião cristã seja imposta pelas leis e pela força? Não parece que Símaco, pelas razões anteriormente aduzidas, pleiteia e defende a tolerância?
Os dois líderes religiosos, Ambrósio e Símaco, partem de posições diametralmente opostas. Para este, o ser supremo era ainda um grande mistério, e mais de um caminho conduziria a ele. Por conseguinte, toda e qualquer religião é boa e digna de respeito. Numa das mais expressivas passagens da relatio, Símaco sustenta que todas as religiões têm direitos idênticos e pretende que sejam tratadas com igualdade e benevolência. Na verdade, Símaco não defende a tolerância, e sim a dominação, pois, em confronto com essas idéias amplas, ecumênicas, sem preconceitos, há outras que levam a conclusões totalmente contrárias. Afirma que cada nação é agraciada pela divindade suprema com entidades particulares para sua proteção e defesa. Se estes são verdadeiramente os deuses próprios da
cidade, tão inseparáveis dela – segundo sua própria expressão –, como a alma o é do corpo, todos os cidadãos lhes devem culto. Por esse argumento, Símaco pleiteia uma religião estatal e, como sói acontecer, toda religião de Estado pende à intolerância.
Cometeria grave erro e inverteria os papéis quem pretendesse apresentar Símaco como defensor e Ambrósio, como inimigo da liberdade de consciência. Foi justamente em razão desta liberdade que os Senadores cristãos exigiram do príncipe que suprimisse o altar da Vitória. Por que, diziam eles, esta parcialidade em favor de um culto? É justo que num lugar onde todos se reúnem para a mesma finalidade, alguns tenham privilégios em detrimento dos direitos de outros?
Em oposição ao pensamento de Símaco, para Ambrósio, Deus não é totalmente um mistério porque se revelou a si mesmo e a via de acesso a Ele é a fé nele mesmo como Ser Supremo. Não pode, portanto, haver mais de um caminho que conduza ao Deus único e verdadeiro.
Segundo a idéia ou, pelo menos, a afirmação de Símaco, é conciliável que o imperador cristão honre deuses pagãos e subvencione seus cultos. Para Ambrósio, isso é contraditório e absolutamente inviável, uma vez que o imperador cristão aprendeu a honrar um só altar, o de Cristo.
Ambrósio é radical e Símaco reacionário. Ambrósio representa a antiga e rígida disciplina e, como tal, se opõe decididamente a toda e qualquer fusão ou contaminação de costumes cristãos e pagãos. É igualmente contrário a um cristianismo somente de aparência ou de conveniência. No entanto, embora rígido e severo com respeito às superstições e práticas pagãs, e atento aos perigos espirituais provenientes do contato com as mesmas, mostra-se compreensivo e afável no trato pessoal com os adeptos do antigo culto.
Destarte, a legislação de Graciano e Teodósio, sob a influência pelo menos indireta de Ambrósio, fez cessar oficialmente, em Roma e no Império, o culto pagão. Na prática, continuou, quando não por toda parte, pelo menos nos meios rurais; mas, de direito, tinha seu fim decretado. Todo culto pagão tornava-se, depois de 391 e 392, um ato delituoso. No entanto, a intolerância para com as antigas práticas religiosas contrasta durante o reinado de Teodósio, com a grande tolerância para com as pessoas de crença pagã. Neste particular, Teodósio seguiu a política traçada, em princípios gerais, por seus predecessores depois de Constantino. Não só não inquietou ninguém quanto à consciência religiosa, mas na atribuição de honras e cargos oficiais jamais fez distinção entre pagãos e cristãos.
Os futuros imperadores não farão mais do que aplicar os princípios da política religiosa delineada por Ambrósio e transformada em medidas legislativas por Graciano e Teodósio.
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