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c) Graciano e o paganismo
c) Graciano e o paganismo
Para situar mais precisamente o problema do paganismo na política religiosa de Graciano, será necessário remontar a alguns anos atrás. Após a morte Juliano, o Apóstata (†26.06.363), e de Joviano (†17.02.364), o exército, que voltava em grande desordem da desastrosa expedição contra os persas, escolheu Valentiniano como imperador. Este, movido talvez por força de circunstâncias históricas, implantou um sistema de completa neutralidade e tolerância religiosa. Conhecendo a situação do Império, não quis somar dissensões internas aos perigos externos.
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Desde a morte de Juliano havia relativa convivência pacífica entre pagãos e cristãos. É provável que, se essa época fosse conhecida melhor, ver-se-ia suas importantes conseqüências para a definição do relacionamento entre paganismo e cristianismo. Quando as hostilidades recomeçaram em decorrência dos atos legislativos de Graciano, as duas religiões começavam a habituar-se uma à outra. Até Teodósio II, que em 416 excluiu formalmente os pagãos das funções públicas,68 eram numerosos os adeptos da religião tradicional que ocupavam cargos entre as altas dignidades do Império e, ao que parece, quando eram nomeados, não lhes eram pedidas contas de suas crenças. Cristãos e pagãos tinham igualmente acesso junto aos príncipes e ocupavam os mesmos postos. Sentados nos mesmos conselhos, colegas nas mesmas magistraturas, associados aos mesmos empreendimentos,
68 CTh. XVI, 10, 21 (7 de dezembro de 416): “Os que se contaminam com erro profano do rito ou crime pagão, isto é, os gentios, não sejam admitidos à milícia, nem sejam distinguidos com a honra de administrador ou juiz”.
viam-se forçados a suportar-se mutuamente, a esquecer suas inimizades religiosas. As cartas de Símaco mostram que todas essas pessoas conviviam relativamente bem e que, no mútuo relacionamento, procuravam esquecer os preconceitos religiosos que os separavam. Entre seus correspondentes, ele nem sempre distingue entre os que professam o seu culto e o culto cristão; dirige-se a todos com a mesma cordialidade. O mesmo provavelmente ocorria nos diversos graus da hierarquia administrativa: os dois cultos, abrangendo a mesma realidade social, procuravam, de uma ou outra forma, harmonizar-se em nível de povo.
O resultado dessas mútuas complacências concorreu para que se constituísse no limite extremo entre os dois grupos uma gama de indiferentes e de indecisos. O poeta Ausônio, entre muitos outros, representa bem a classe alta da sociedade; eram certamente também numerosos entre as classes mais humildes, dos quais muitos praticavam ritos próprios, amalgamando os costumes, crenças e superstições do paganismo e do cristianismo. Tudo indicava que essa situação se manteria assim por muito tempo. Parecia que o jovem imperador, calmo, e moderado por natureza, conservaria da educação semi-pagã o respeito pelas instituições do passado e alguma complacência pelas divindades da Fábula. De fato, durante os primeiros sete anos de governo, conduziu-se, em relação ao paganismo, como o havia feito seu pai: o culto continuava sendo celebrado do mesmo modo como nos tempos passados. As cartas de Símaco, referentes a essa época, tratam a cada instante de cerimônias públicas e de sacrifícios solenes; todos os sacerdotes estavam nos seus postos e os pontífices se reuniam nos dias prescritos; os arúspices observavam os presságios e as vestais mantinham o fogo sagrado.69 Aparen-
69 Seeck, O. De Symmachi vita, in: Monumenta Germaniae. Auctores Antiquissimi, v. VI, 1.
temente nada havia mudado e tudo continuaria no mesmo ritmo. Nesse momento, no entanto, surge Santo Ambrósio, homem intransigente no relacionamento entre cristianismo e paganismo. Dada sua origem de família, sua posição social e sua capacidade intelectual, não hesitou em fazer valer sua influência junto ao imperador Graciano. Esta foi tão decisiva que a questão do binômio Igreja e Estado pagão foi resolvido definitivamente. Nesse sentido escreve Campenhausen: “A posição sincrética, politicamente suprapartidária do imperador, terminou com a imposição do princípio de Ambrósio. A partir desse momento, o imperador não podia mais ser neutro; devia tomar posição partidária pois, atrás dele, estava a Igreja, que não tolerava que ele desse, em momento algum, um passo atrás”.70 É de se notar que a solução de Ambrósio não era um juízo abstrato ou uma proposta teórica mas um princípio prático e definido que o imperador provavelmente adotou de início, contrário ao parecer dos conselheiros71 e, depois, com o assentimento deles.72 Cabe, sem dúvida, a Ambrósio o mérito da decisão final da luta entre os dois grupos e o estabelecimento sólido da religião cristã na vida pública do Império. Em 382, a trégua foi rompida e o imperador recomeçou as hostilidades. Dessa vez as medidas foram habilmente ajustadas. Guardou-se da solicitude contraproducente de Constâncio, que tentara resolver tudo com um só golpe.
70 Campenhausen. H. von. Op. cit., p. 168; Cf. também Palanque, J.R. Op. cit., 115 e ss.; Dudden, F.H. Op. cit., p. 267. 71 Cf. Ambrósio. De obitu Valentiniani, 19; Palanque, J.R. Op. cit., p. 136, nota 74. 72 Campenhausen, H. von. Op. cit., p. 178: “Bauto e o comandante do exército Rumerido, ainda que zelosos pagãos desde a juventude, consentiram explicitamente”.