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Capítulo 4 – O fim oficial do paganismo romano
Capítulo 4
O fim oficial do paganismo
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Santo Agostinho, que testemunhou as últimas convulsões do paganismo, diz numa de suas obras que “o antigo culto não tencionava mais que morrer com esplendor”. 1 Se for verdade que teve essa suprema ambição, é preciso reconhecer que não foi, de todo, frustrada. De ordinário, as religiões perecem obscuramente, quando o favor público as abandona, e ao ódio que excitavam sucede a indiferença. Refugiam-se então nas camadas inferiores da sociedade, onde conservam maior número de adeptos, e a sombra cai pouco a pouco sobre elas.2 O paganismo teve, ao menos, a sorte feliz de provocar, antes de morrer oficialmente, um debate solene. Esta luta, cujo pretexto foi o altar da Vitória, e que pôs em confronto dois dos mais ilustres personagens daquele século, teve grande e legítima repercussão. Esse debate representou a última queda de braço das duas facções.
O edito imperial de Graciano mandando remover o altar da Vitória, abalou o grupo dirigente pagão. Imediatamente, se fizeram ouvir em Roma os clamores do Senado. Os pagãos, exasperados com esse ato de autoridade, e chefiados por Pretextato, resolveram enviar ao imperador uma delegação a fim de solicitar não só o restabelecimento do altar da Vitória
1 Agostinho. De divinatione Daemonum, X, 14. 2 Boissier, G. Op. cit., t. II, p. 256
mas também dos bens e dos privilégios confiscados aos sacerdotes e às vestais. Os pagãos sabiam que suas queixas seriam bem acolhidas, não somente por todos os correligionários, como também pelos espíritos indecisos que, embora inclinados ao cristianismo ou abraçando-o completamente, conservavam, no entanto, saudosa lembrança do passado. Entre esses cristãos tímidos havia os que se acomodavam aos usos antigos atenuando-os e explicando-os em seu próprio benefício. Para estes, Vitória não era mais do que um nome de augúrio favorável, uma alegoria e um símbolo que lhes parecia perfeitamente cabível naquele lugar onde se deliberava sobre os assuntos políticos.
Apresenta-se, logo de início, uma questão, que é necessário solucionar. O Senado escolheu Símaco como seu representante para levar ao imperador os sentimentos e as queixas dos pagãos. Por outro lado, o imperador recusa-se a recebê-lo porque, segundo o seu ponto de vista, Símaco não representava o Senado. Perguntamo-nos: até que ponto tinha Símaco o direito de sustentar ser ele o mandatário do Senado? As afirmações são contraditórias. O principal argumento de que se servira o imperador, para suprimir o altar da Vitória, era o de que não convinha que os cristãos participassem de cerimônias e tivessem forçosamente diante dos olhos objetos que ferissem sua fé. 3 O argumento, como se vê, não teria tanta força se não se pudesse estabelecer que o número dos senadores cristãos não fosse considerável. Ambrósio diz categoricamente a Valentiniano e seus conselheiros: “Ninguém ouse afirmar que essa petição partiu do
3 Ambrósio. Epistola, XVII, 7.
Senado! Trata-se de alguns pagãos que se servem desse título que, a rigor, não lhes pertence”.4
Recordemos que Ambrósio dá a entender em várias passagens de seus escritos que os cristãos formavam a maioria.5 Por outro lado, Símaco sustenta o contrário, ao afirmar com não menos segurança, que fala em nome do Senado cuja maioria ele estaria representando: “Desde o momento em que o Senado tomou conhecimento das medidas legislativas.[...] reavivou-se a dor contida por muito tempo e, pela segunda vez, incumbiu-me de levar-vos suas queixas”.6
Quem estava com a razão? Não se pode duvidar de que Símaco tenha sido oficialmente designado por seus colegas para ir ao encontro do príncipe e apresentar-lhe suas reclamações. Sabe-se que a escolha dos delegados que eram enviados ao imperador era precedida de uma discussão e depois, objeto de votação. Daí conclui-se que a maioria do Senado, pelo menos naquele dia, escolheu Símaco. Entre essa “maioria” pagã encontravam-se certamente cristãos indecisos e irresolutos que, por medo de comprometer-se, fortaleceram a facção pagã.
Por outro lado, os senadores cristãos, longe de se manterem omissos, elaboraram e subscreveram um manifesto em que decidiram não comparecer às sessões do Senado, caso o imperador atendesse aos colegas adversários. A esse respeito, Ambrósio certifica o imperador Graciano: “O Papa Dâmaso enviou-me um relatório assinado por grande número de senadores cristãos no qual declaram que não encarregaram ninguém para essa missão; que se manterão alheios às petições
4 Ambrósio. Epistola, XVII, 10. 5 Ambrósio. Epistola, XVII, 8. 6 Símaco. Relatio, 1.
pagãs desse gênero e que lhes recusaram sua adesão. Acrescentam ainda que não tomarão mais parte nas sessões do Senado, nem em caráter oficial, nem privado, se esta solicitação for atendida”.7
Quando a delegação, chefiada pelo eloqüente Símaco, se apresentou em Milão onde residia então a corte imperial, Graciano lhe negou a entrada no palácio, alegando que não representava o Senado.8 Humilhada pela recusa, a delegação retomou tristemente o caminho de volta para Roma.
Dois anos mais tarde, no verão de 384,9 a facção pagã do Senado decidiu enviar novamente uma embaixada ao Imperador residente em Milão.10 A situação havia mudado. Em primeiro lugar, houve má colheita: o trigo faltou em toda a Itália e Roma sofreu fome. Os pagãos evidentemente se serviram desse fato para sustentar que eram os deuses que se vingavam. Além disso e acima de tudo, o que lhes pareceu um sinal mais evidente da cólera celeste foi a triste sorte deste príncipe que se havia mostrado tão rigoroso com a religião nacional. No verão de 383,11 Graciano foi assassinado por um de seus
7 Ambrósio. Epistola, XVII, 10-11. 8 Símaco. Relatio, 1. 9 Pode-se estabelecer com certa precisão o ano em que a delegação se dirigiu a Milão. Na Epistola XVIII,1, Ambrósio fala de Símaco como praefectus urbis, cargo que o senador ocupou entre 384 e 385. De outra parte, ainda estava vivo o Papa Dâmaso, porque, lembrando-o, (Ep. XVII,10) o Bispo de Milão não faz aceno à sua morte, ocorrida em dezembro de 384. 10 Pode-se estabelecer, com certa precisão, quando a delegação se dirigiu a Milão. Na Epistola XVIII, 1 Ambrósio fala de Símaco como praefectus urbis, cargo que o senador ocupou entre 384 e 385. De outra parte, ainda estava vivo o Papa Dâmaso, porque, lembrando-o, o Bispo de Milão não faz aceno à sua morte, ocorrida em dezembro de 384. 11 Graciano foi morto em Lião pelo general Máximo no dia 25 de agosto de 383.
generais, Máximo, que se fez proclamar imperador da Gália. Esses acontecimentos tornaram as circunstâncias favoráveis para a facção pagã do Senado. O jovem irmão do imperador defunto, Valentiniano II, que na ocasião administrava a Itália, não se sentindo muito seguro no poder, sob a regência da mãe, Justina, de confissão ariana, atemorizado pela desgraça que acabava de acometer sua família e ameaçado por Máximo, sentiu-se obrigado a condescender com os pagãos. Além disso, também não havia ainda estreito relacionamento entre o novo imperador e os cristãos. Sua maneira de viver e seu modo de agir nem sempre se conformavam com os princípios e as exigências da Igreja. Basta lembrar que um de seus primeiros atos foi nomear Símaco para a prefeitura de Roma.12
Nessas circunstâncias, a intransigente facção pagã julgou oportuno o momento de renovar a tentativa frustrada anteriormente.13 Símaco, na qualidade de prefeito, sentiu-se no dever de falar em nome do Senado. 14 Mais. Suas virtudes, sua
12 Ambrósio. De obitu Valentiniani consolatio, 13-15. 13 Por casualidade os pagãos ocupavam nessa ocasião os mais altos cargos do Estado: Pretextato era prefeito do pretório e cônsul designado para o ano seguinte; Bauto, que substituíra Pretextato no consulado, figura de primeiro plano, é comandante da milícia imperial e o homem mais próximo do imperador; seu ajudante nas funções militares é o pagão Rumorido; cônsul daquele ano de 384 figura ainda um outro pagão notável, Ricimério; Máximo, vicarius Italiae, é cristão mas de fé pouco segura e, mais tarde, sob Eugênio, passará facilmente para o lado pagão; Flaviano é prefeito do pretório da Italia; Símaco é prefeito de Roma. Otto Seeck pensa, e com muita razão, que esse foi o momento oportuno que reanimou a facção pagã do Senado a realizar nova tentativa junto ao imperador. 14 Mattacote, Dante. Símaco: l’antagonista de Ambrogio. Firenze: Firenze Libri, 1992. Paschoud, F. (org). Colloque Genevois sur Symmaque: a l’occasion du mille six centieme aniversaire du conflit de l’Autel de la Victoire. Douze exposées, suivis de discussion. Paris: Belles Lettres, 1986.