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Graciano
3 —Tentativas de revogação dos decretos de Graciano
Os pagãos tinham representantes expressivos no consistório imperial. Bauto, conde e magister militiae, que havia sido cônsul em 380, e o conde Rumorido, que chegou a ser cônsul em 403 e que havia sido educado no paganismo, lhes eram favoráveis. A delegação de Símaco podia, pois, alimentar esperanças de obter sucesso. Porém, como sabemos, não obteve mais que uma recusa formal. Inicialmente recebeu apenas a resposta negativa do imperador; depois, com o sucesso do discurso de Ambrósio que fez mudar de opinião o conselho, também recebeu a resposta negativa dos conselheiros. A mesma unanimidade com que se pronunciara a favor de Símaco, declarou-se depois a favor de Ambrósio. Ele mesmo diz que os pagãos não foram menos decididos em subscrever a decisão do imperador que os demais, os cristãos.61 Estava, pois, decido que os decretos de Graciano seriam mantidos e executados. Símaco, por sua vez, acabrunhado de desgosto, e querendo abdicar das funções públicas que vinha exercendo,62 teve o triste encargo de levar ao conhecimento dos senadores pagãos e de todos os amigos do antigo culto a notícia da derrota que acabava de sofrer.
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“Cada dia, diz Beugnot, trazia seu tributo de revezes e de ultrajes à religião do Império”.63 Estudiosos do assunto afirmam que nessa circunstância Valentiniano e sua mãe Justina agiram intencionalmente porque podiam, sem perigo, contrariar os sentimentos e os interesses dos pagãos, enquanto
61 Ambrósio. Epistola, 57, 3. 62 Símaco. Relatio, 23. 63 Beugnot, A. Op. cit., t. I, p. 431.
que, atendendo o pedido, não teriam impunemente suscitado contra si o descontentamento dos bispos. Motivos de ordem política teriam, portanto, decido o grande debate.
Diante do sucesso de Ambrósio, a alegria dos cristãos foi incontida. Por toda parte celebrou-se o triunfo de Ambrósio. “Parecia, diz Beugnot, que desta vez havia sido consolidado o poder da cruz e resguardado para sempre o imperador contra as insistentes reclamações do Senado pagão”.64 Sem dúvida, reconhecia-se o valor da eloqüência de Símaco, mas empregara seu talento em favor de um passado irreversível e de uma causa perdida. No entanto, é preciso reconhecer que sua derrota, apesar de tudo, foi gloriosa e não parece ter sido tão funesta aos seus quanto parecia à primeira vista. Seu relatório circulou por todo o Império; foi lido por pagãos e cristãos. Ficou tão vivo na memória de todos que, vinte anos mais tarde, Prudêncio o retomou para uma nova refutação.
Seria subestimar o grau de obstinação dos pagãos crer que se tivessem dado por vencidos. Embora a questão em discussão já estivesse encerrada, suas esperanças não esmoreceram. Alguns anos mais tarde, como as leis de Graciano continuassem ainda em vigor, a facção pagã empreendeu novas tentativas. No outono de 387, Máximo rompeu a paz com seu colega Valentiniano II, e invadiu a Itália. No mês de janeiro de 388 tomou Roma. Teodósio, vindo em auxílio de Valentiniano II, chegou à Itália em 388, e no mês de junho do mesmo ano derrotou Máximo, permanecendo alguns anos na península. Os pagãos, ainda poderosos em influência, lhe enviaram delegados para obter a revogação das leis de Graciano.65
64 Beugnot, A. Op. cit., t. I, p. 432. 65 Ambrósio. Epistola, 57, 4.
As fontes existentes não nos autorizam a dizer em que mês e ano a delegação se encontrou com Teodósio. Nas entrelinhas da carta de Ambrósio a Eugênio percebe-se que esta é a terceira delegação, e que aconteceu depois da primeira a Valentiniano II no ano de 384, mas antes da segunda ao mesmo imperador em 392. O encontro dos delegados com Teodósio aconteceu lá onde se encontrava Ambrósio,66 isto é, em Milão, ou seja, entre outubro de 389 e maio do ano seguinte.67 A chance de êxito era pequena. No entanto, Ambrósio dá a entender que Teodósio estava inclinado a ceder. O Bispo impôs sua autoridade: como o imperador não atendesse a seu apelo, julgou dever testemunhar seu descontentamento deixando de comparecer ao palácio e de visitar o imperador enquanto não recusasse o pedido dos pagãos. Esta primeira atitude de Teodósio, que para nós é inexplicável, não foi seguida de nenhum efeito; a delegação teve de retirar-se com aquela mesma resposta de sempre, aquela a que já estava acostumada: “Vós não representais o Senado”.68
Apesar da recusa, os pagãos não desistiram da empresa. Em decorrência de funestas transformações na política imperial, a facção pagã do Senado aproveitou o ensejo de reiterar,
66 Ambrósio. Epistola, 57, 4. 67 Malunowicz, L. (De ara Victoriae in Curia Romana quomodo certatum sit, p. 82-84) discute longamente o problema referente à data e chega à conclusão que o acontecimento se deu no fim de 389 ou início de 390. 68 Campenhausen, H. von. (Ambrosius von Mailand als Kirchenpolitiker) mostra que não tem fundamento os detalhes particulares acrescentados pelo pseudo-Próspero (De prom. Et praed. Dei, III, 38) em que o autor cristão narra o episódio dramático de uma nova embaixada presidida por Símaco junto a Teodósio. O imperador, irritado com as palavras do orador, teria ordenado retirar Símaco de sua presença e transportá-lo numa rústica carruagem para fora da cidade a uma distância de cem milhas.
em 391, seu pedido de revogação dos decretos. Valentiniano, que se encontrava na Gália, longe da influência de Ambrósio, vivia cercado de pagãos e vigiado por Arbogasto.69 Como este também venerasse os deuses dos gentios, os pagãos podiam alimentar esperanças de obter algum êxito. Enviaram então ao imperador a quarta delegação. A respeito dessa, Santo Ambrósio diz o seguinte na carta a Eugênio: “Novamente a delegação enviada pelo Senado até a Gália nada pode extorquir do Imperador Valentiniano de augusta memória. No entanto, eu lá não estava, nem sequer lhe havia escrito”.70 A delegação encontrou-se com Valentiniano quando este se achava na Gália, entre a primavera de 391 e a de 392. Também desta vez a comitiva voltou decepcionada porque não trouxe mais que uma recusa.
A delegação havia se convencido de produzir algum efeito sobre a conduta do imperador citando o exemplo de seu pai, cuja tolerância havia sido manifesta. Porém, este recurso a que lançou mão, ficou sem efeito. Valentiniano teria retrucado nesses termos: “Como podeis julgar que eu restitua o que foi confiscado por meu religioso irmão, e que eu fira ao mesmo tempo a religião e a lembrança de um príncipe que eu quero igualar em piedade? Vós elogiais meu pai porque não vos suprimiu nada; quanto a mim, em que vos espoliei? Se meu pai vos concedeu alguma coisa, por que pretendeis
69 Valentiniano II ficou encarregado de governar as províncias ocidentais e, por isso, estabeleceu-se na Gália. Sendo ainda muito jovem, seu poder era apenas de direito, pois, de fato, quem governava era seu tutor, o general franco Arbogasto. Quando Valentiniano pretendeu assumir o poder de fato, foi morto, provavelmente por ordem de Arbogasto, em 392. 70 Ambrósio. Epistola, 57, 5.
que eu deva imitá-lo, restituindo o que tendes perdido? Quando ele mal havia restabelecido vossos privilégios, meu irmão os suprimiu, e eu prefiro seguir este último exemplo. Não era meu irmão em tudo um imperador como meu pai? Respeito igual deve ser dado tanto a um quanto a outro; ambos tiveram o mesmo amor à República; Conformarei minha conduta à deles. Não restituirei o que meu pai não pôde conceder, pois sob seu reinado nada vos foi retirado, e respeitarei o que tem sido feito por meu irmão. Que Roma minha mãe me peça qualquer outra coisa: conceder-lha-ei de bom grado; mas devo mais respeito ao autor da salvação”.71
Na oração fúnebre a Valentiniano II, Santo Ambrósio narra que todos os membros do consistório, tanto cristãos como pagãos, eram de opinião que se concedesse aos enviados o que solicitavam, isto é, os direitos dos templos e os privilégios dos sacerdotes; mas que o imperador, qual outro Daniel, teria censurado a perfídia dos cristãos e desfeito as esperanças dos pagãos.72
As vivas insistências dos pagãos não eram tão sem cabimento quanto pareciam: Teodósio estivera na iminência de devolver ao clero pagão os seus bens, e o consistório do Ocidente aconselhara esta restituição a Valentiniano. Por sua vez, o grupo tradicional tinha numerosos e devotados amigos junto ao imperador e, a cada instante, acreditava ter chegado o momento oportuno de contar com seu apoio; mas suas esperanças sempre se chocavam contra a influência ativa e fecunda de Ambrósio e por isso fracassavam.
Em maio de 392, morreu Valentiniano II. Não se sabe se se suicidou ou se foi morto por ordem do chefe do exército, o
71 Ambrósio. De obitu Valentiniani consolatio, 20. 72 Ambrósio. De obitu Valentiniani consolatio, 19.
franco Arbogasto. O fato uma vez consumado, Valentiniano foi substituído pelo retor Eugênio, um cristão mas tíbio e só de nome.73 Os senadores pagãos valeram-se da precária autoridade do novo imperador para tentar obter o restabelecimento do altar da Vitória e a devolução dos créditos do culto.74 Foram enviadas duas delegações sucessivas ao imperador, mas nenhuma trouxe resultado satisfatório. Esta conduta de Eugênio deve ter surpreendido a todos; todavia, não estava em contradição com os compromissos assumidos pelo novo imperador. A restituição das imensas propriedades confiscadas ao clero pagão não podia animar nenhum príncipe, fosse ele pagão ou cristão, herdeiro ou usurpador da púrpura.
De mais a mais, depois de dez anos, os bens haviam recebido destinos diversos: serviam em grande parte à manutenção do exército e ao custeio de guerras externas, e a cada ano a restituição se tornava mais difícil. Provavelmente, os pontífices e os imperadores não chegavam a um acordo sobre esse ponto. Assim se explica a solicitude constante do Senado e seu ardor infatigável em convencer os imperadores com suas súplicas. O Senado sentia que o tempo, à medida que transcorria, consagrava a espoliação do clero.
Há poucos dados para estabelecer a data em que as delegações foram enviadas a Eugênio. O biógrafo de Ambrósio, Paulino, diz que aconteceram “não muito tempo depois” que Eugênio iniciou seu reinado.75 Palanque situa a primeira delegação no início do reinado de Eugênio e a segunda depois de novembro de 392, isto é, depois que Teodósio decretou a lei contra os pagãos.76
73 Ambrósio. Epistola, 57, 5. 74 Ambrósio. Epistola, 57, 2. 75 Paulino. Vita Ambrosii, 26. 76 Palanque, J.R. Op. cit., p. 278. CTh. XVI, 10, 12 (8 de novembro de 392).
Terceira delegação foi enviada a Eugênio. Esta era acompanhada por dois homens a quem era difícil que o novo senhor da Itália recusasse qualquer pedido: um era o conde Arbogasto, e o outro, Flaviano, prefeito da Itália. Os delegados intimaram o imperador a atender aos anseios do partido pagão. Sentindo-se numa situação sem saída, Eugênio os atendeu; “oblitus fidei suae concessit”, diz o autor da vida de Santo Ambrósio.77 Sentindo-se numa situação sem alternativa, Eugênio teria encontrado uma hábil solução: teria feito uma doação pessoal em dinheiro aos chefes da delegação para a manutenção do culto. Não subvencionando diretamente a religião pagã, o imperador esperava não entrar em conflito com o clero cristão. Ambrósio protestou não menos contra essa concessão, pois via também nisso um verdadeiro sacrilégio.78
Não se sabe quando a terceira delegação se encontrou com Eugênio. A maioria dos autores que estudaram o assunto situa a data no ano de 393. Palanque, por sua vez, baseado em acontecimentos políticos da época, situa a data no outono de 393.
A volta da delegação a Roma foi um triunfo. Passando por Milão, anunciou que transformaria logo os templos cristãos em estrebaria e que destituiria o clero cristão. Depois de sete delegações enviadas a quatro príncipes diferentes, obtiveram finalmente, ao menos em parte, o que tanto reclamavam. Contudo, o entusiasmo e os propósitos duraram pouco. Teodósio, tendo derrotado Eugênio em setembro de 394, revogou os decretos deste referentes à religião dos gentios. Assim, frustraram-se para sempre as esperanças do antigo culto.
77 Paulino. Vita Ambrosii, 26. 78 Paulino. Vita Ambrosii, 27.