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1. Principais idéias do discurso de Símaco
eloqüência e, sobretudo, seu zelo pela religião nacional o impulsionavam mais que o dever da magistratura. Assim, pela segunda vez a delegação se dirigiu a Milão onde, na sala do consistório, diante do imperador e seus conselheiros ordinários, os generais, os magistrados e demais assessores, Símaco fez a leitura da Relatio, cujo texto felizmente foi conservado no décimo livro de suas cartas, entre os fragmentos oficiais de sua administração.
1— Principais idéias do discurso de Símaco
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Faremos agora breve análise desse célebre fragmento em suas passagens essenciais. Símaco não perde tempo em longos preâmbulos. Apenas recorda com algumas breves frases a injúria que os “malvados” lhe fizeram no reinado anterior, sob Graciano, impedindo o imperador de atendê-lo “pois bem sabiam que, se tivesse sido ouvido pelo príncipe, a justiça não teria sido recusada”.15 Símaco sente-se encarregado de duplo dever: enquanto prefeito da cidade, assiste-lhe o dever de defender os interesses públicos, enquanto delegado junto ao príncipe, é porta-voz dos anseios de seus concidadãos.16
Depois dessa introdução, entra imediatamente no assunto que se propõe a defender: “Quem é tão amigo dos bárbaros para não reclamar o altar da Vitória? Tomemos precauções com o futuro, evitando o conhecimento de presságios desagradáveis. Se se negligencia a Divindade (numen), que se respeite pelo menos o seu nome (nomen).17 Vossa eternidade já
15 Símaco. Relatio, 1. 16 Símaco. Relatio, 2. 17 Símaco. Relatio, 3. Símaco serve-se de um trocadilho com as palavras numen (nume, divindade) e nomen (nome). Prudêncio retoma a passagem no Contra Symmachum, I, 220.
deve muito à Vitória e, para o futuro, a ela deverá ainda muito mais. Aqueles que não experimentaram seus favores, têm ignorado seu poder; mas vós, vós não desprezareis um auxílio que vossos triunfos vos devem fazer estimar. Esta divindade tem sido consagrada por todos os homens; ninguém, pois, pode deixar de honrar aquela cuja invocação é tão útil. [...] Onde juraremos obedecer às vossas leis e executar vossas ordens? Que temor religioso amedrontará o espírito pérfido para que não preste falso testemunho? Tudo está pleno de Deus; não há nenhum refúgio para pérfidos, mas para prevenir o crime, a religião é necessária. E este altar é a garantia da concórdia de todos e o penhor da fidelidade de cada um”.18
Estas são razões de sentimento que, evidentemente, não podiam comover um cristão. O argumento principal, sobre o qual o orador funda sua esperança, é que a antiga religião tem, por si, a autoridade do passado, isto é, o culto dos antepassados. Por isso, o grupo conservador do Senado deu a Símaco a incumbência de defendê-la. Tem-se a impressão de ouvi-lo falar quando diz: “Permiti, eu vos suplico, que na velhice possamos legar à posteridade a herança que desde a infância recebemos de nossos pais”.19 O passado é tão sagrado que chega a ponto de negar ao imperador o direito de introduzir qualquer inovação: “Não tendes o direito de vos manifestar contra os costumes de nossos antepassados”.20
O que lhe dá ânimo é a convicção de que a prosperidade do Império depende da fidelidade à tradição da antiga religião. “Reclamamos o estado religioso que por tão longo tempo serviu de apoio à República. Cada povo tem seus costu-
18 Símaco. Relatio, 3 e 5. 19 Símaco. Relatio, 4. 20 Símaco. Relatio, 6.
mes e segue seus ritos. A inteligência divina determinou para cada cidade, para protegê-la, cultos diferentes. Assim, como ao nascer cada mortal recebe uma alma, também cada povo recebe seus gênios protetores. Soma-se a tudo isso o interesse, elo de ligação entre os deuses e o homem. Diante do mistério, que impossibilita qualquer explicação racional, donde nos poderá vir o conhecimento dos deuses, a não ser pela tradição e através dos anais da história? Se a longevidade funda a autoridade da religião, conservemos a fé tantas vezes secular e sigamos nossos antepassados que durante tanto tempo têm seguido com proveito os seus”.21
Para dar mais força às suas palavras, o orador as põe na boca de Roma: “Parece que Roma está diante de vós e vos fala nesses termos: excelentíssimos príncipes, pais da pátria, respeitai minha velhice; devo-a aos sacrossantos ritos; respeitai-os para que me seja permitido seguir o antigo culto; não tenho motivo para me arrepender. Deixai-me viver segundo meus costumes porque sou livre. Esse culto submeteu o mundo às minhas leis. Esses sacrifícios rechaçaram Aníbal de meus muros e os Gauleses do Capitólio. Devo mudar, em minha velhice, o que outrora me salvou?”22
Símaco queixa-se evidentemente dos decretos com os quais Graciano suprimiu as subvenções dos sacerdotes e confiscou as rendas dos templos. Esta medida legal era o ato mais grave que se podia desfechar contra o culto oficial. Quando os ataca e critica, torna-se insistente, ousado, quase violento. Afirma que o que um príncipe concedeu, outro não tem o direito de suprimir. Em outras palavras, invoca o princípio do
21 Símaco. Relatio, 8. 22 Símaco. Relatio, 9.
direito adquirido. É uma espoliação indevida que nenhuma lei autoriza. Afirma ainda que não é justo negar aos colégios sacerdotais o direito de receber os legados que se lhes deseja conceder; e que é um crime apoderar-se do que se doou e pertence a outros. Os maus príncipes são os únicos que não respeitam a vontade dos moribundos. “O fisco retém os bens legados pela vontade dos moribundos às virgens e aos pontífices. Suplico-vos, ó ministros da justiça! Restituí à religião de vossa cidade a herança de que foi privada. Os cidadãos ditam sem medo seus testamentos, sabem que sob príncipes generosos é respeitado o que assinam. [...] O que acontece nesses tempos começa a inquietar até os mortos. A religião romana não está mais sob o direito romano? Que nome dar a essa espoliação que não está autorizada por nenhuma lei e nenhuma cláusula? Os libertos têm o direito de receber herança, aos escravos não são negadas as justas vantagens que um testamento lhes assegura. Só as nobres virgens, os ministros dos ritos divinos, são os únicos excluídos de herdar! Para que serve oferecer à salvação da pátria um corpo casto, fortalecer a eternidade do Império com o socorro celeste, estender sobre vossas armas e sobre vossas águias a salutar influência de suas virtudes e fazer por todos os cidadãos votos eficazes, se não as deixamos sequer gozar do direito comum?”23
Símaco vê na fome, que naquele ano assolou a Itália, a Gália e a Espanha, um sinal da vingança dos deuses. “A fome se fez logo sentir, uma triste colheita veio frustrar as esperanças das províncias. A falta não se deve a terra; nem se pode recriminar os astros; não foi a ferrugem que destruiu o trigo, nem o joio que impediu a colheita. Foi o sacrilégio que secou
23 Símaco. Relatio, 13-14.
o solo”.24 Os pagãos tiveram, por muito tempo, o costume de atribuir aos cristãos todas as calamidades públicas. Diz Tertuliano: “Se o Tibre transborda, se o Nilo não inunda as margens, se o céu se cobre, se a terra treme, se a fome grassa, se a peste surge, imediatamente cristãos aos leões.”25
Fiel às tradições, Símaco culpa os cristãos pela seca do ano 384. Por sua vez, os cristãos empregavam contra seus adversários os mesmos recursos para impressionar o povo. “Nós sofremos, exclama Teodósio II, porque em sua cólera, o céu mudou a ordem das estações. A perfídia obstinada dos pagãos rompeu o equilíbrio da natureza. Por que a primavera não oferece mais aqueles encantos? Por que o verão não retribui com a abundância das colheitas o esforço do trabalhador? Por que a aspereza do inverno destruiu a fecundidade da terra, estendendo sobre ela seus rigores inevitáveis?”26 Sozômeno acusa o imperador Juliano de haver causado tremores de terra, desmoronamento de casas, peste, seca e fome.27
Ao longo do discurso, Símaco não perde a ocasião de fazer sua profissão de fé. É um detalhe que merece ser anotado. Esta atitude, que representa bem o caráter de elevação e de grandeza de Símaco, deve ter impressionado muito os devotos de seu tempo. Sua profissão de fé é a mesma dos pagãos que pretendiam estabelecer uma concordância entre suas crenças religiosas e opiniões filosóficas. Serviam-se desse ecletismo religioso nas polêmicas com os cristãos julgando poder oferecer aos dois cultos um meio de entender-se ou, pelo menos, tolerar-se.
24 Símaco. Relatio, 15-16. 25 Tertuliano. Apologeticus adversus gentes pro christianis, 40. 26 Teodósio II. Novell. 3 de Judaeis, Haereticis... Apud Beugnot, A. Op. cit., t. I, p. 423, nota c. 27 Sozômeno, VI, 2.
Para motivar e convencer seus ouvintes, Símaco dá a entender que, na realidade, todas as religiões se confundem e que não são mais que formas diferentes de um mesmo sentimento. “Tudo o que os homens adoram, é justo considerar que seja um mesmo ser. Contemplamos os mesmos astros, o céu nos é comum, o mesmo mundo nos envolve; que importa com que meios cada qual busque a verdade? Um só caminho não basta para atingir tão grande mistério.”28
Ao terminar o discurso, coloca o trono do imperador sob a proteção de todos esses deuses que ele se empenhou em reunir e conciliar. “Que os arcanos mistérios de todas as religiões sejam favoráveis à vossa Clemência, especialmente esses que outrora protegeram vossos antepassados. Para que vos defendam, deixai-nos venerá-los.”29
O relatório de Símaco foi ouvido com interesse e muita simpatia. No conselho imperial havia pagãos e cristãos. Boissier acredita que todos, sem distinção de culto, concordaram que as reclamações de Símaco eram justas e que, portanto, deveriam ser atendidas. Todavia, o jovem imperador não aquiesceu. Valentiniano tinha apenas 14 anos e é provável que os conselheiros governassem o Império em seu nome. A eles cabia, sem dúvida, a direção dos negócios políticos e militares; não porém as decisões em assuntos de religião. No entanto, segundo a opinião de Morino,30 é pouco provável que Valentiniano II tenha tomado sozinho a grande decisão de negar o pedido de Símaco e romper completamente com o paganismo. Se esta posição já estivesse definida pela convicção de fé
28 Símaco. Relatio, 10. 29 Símaco. Relatio, 19. 30 Morino, C. Op. cit., p. 185. Cf. também Dudden, F.H. Op. cit., p. 226, nota 2.