O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS ERNANI BUCHMANN
Ilustração da capa e projeto gráfico: Vera Andrion Revisão: Karla Santin e Silvia Bocchese de Lima Foto do autor: Tânia Buchmann Fotos das obras do autor: Ivo Lima
Sumário
Apresentação 9 Os Muitos Ernanis Habitam o Autor
Enquanto Caminho
13 O Homem com Dois Lados Esquerdos 15 Sobre Navegantes e Navegações Litorâneas 17 Os Lopes 20 Férias à Beira-mar 23 O Ogro Viaja 25 Terremoto à Beira-mar 28 Este Ano Abati Duas Lebres 30 Sonhos 33 A Pata Choca 36 As Traições das Traduções 38 Um Comunista na Fórmula 1 40 As Maiores Invenções 43 Sobre Defesas, Bigodes e Buzinas 46 Tarugo, o Craque 51 O Grampeador 53 Efeitos de uma Carreira de Sucesso em Curitiba
Memórias Engarrafadas
57 60 62 65 67 69 72 75 78 81
Em Tempos de Eça e Sapucaí O Ano em que Morei na Praça Não Vale uma Lantejoula O Bloco das Sólidas Cadeiras No Tempo em que Porco Marchava Quando Bob Dylan Virou Samba O Ser que me Habita Micose no Blues Dos Perigos da Exumação de Textos e Suas Nauseabundas Emanações As Proezas Nunca Narradas do Glorioso Gotham City
Sociedade dos Amigos Idos
87 90 92 94 97 99 102
O Turco Mercer e seus Outros O Cachorro Louco Poty e os Caminhões Mestre Nireu Adieu, l´Ami Bagder
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Outras Obras do Autor
Os Muitos Ernanis Habitam o Autor Ernani Buchmann exerce a crônica com elegância e fluência só encontráveis nos grandes do gênero. Seu texto é uma narrativa precisa e harmônica, em que se equilibram humor, ironia e ternura. O humor fino, extrapola os limites da graça para propor a sublimação dos nossos limites. A ironia, sempre a melhor arma para combater a estupidez, é manejada com a habilidade do bom artífice. A ternura, imensa, contempla épocas, situações e personagens, em especial amigos já idos, figuras marcantes como o autor. Já nas primeiras páginas, fica nítida a pegada do texto publicitário, do qual Ernani é expoente e ao qual dedicou a maior parte de sua vida profissional. Mas logo se fazem presentes também o radialista e o jornalista, que antecederam e agora têm sucedido o publicitário. Há, ainda, rastros do advogado bissexto. Mas não só: antes da crônica, já andou pelo roteiro de cinema, pelo romance, pelo conto, somando mais de dez títulos, todos bem recebidos pela crítica. Daí que o que se lerá aqui é obra de um escritor maduro. Publicadas em sua maioria na revista Ideias, as crônicas agora reunidas há muito pediam a permanência do livro. Pela qualidade e pela variedade dos temas – sempre universais, mesmo quando dizem da Curitiba do início dos anos de 1970, então provinciana, mas detentora de uma boemia refinada, da qual um dos próceres era justamente o autor em questão, capaz de incluir Bob Dylan numa noitada do Rei do Siri, um bar próximo ao Cemitério Municipal, e transformar o lendário cantor americano em samba, no melhor estilo Moreira da Silva. Com seus dois lados esquerdos – que o fazem cair onde não é possível cair, tropeçar à toa, ou derrubar o que em tese não poderia ser derrubado – Ernani se vinga com a excelência de sua palavra, não só a escrita mas também a falada, necessário dizer, posto tratar-se de grande narrador a divertir, e enlevar, o interlocutor com histórias, chistes ou mesmo relatos curtos de situações que acaba de presenciar 11
e às quais confere dimensões inusitadas. Sim, os relatos dão conta que ele já nasceu cronista, desde pequeno muito jeitoso na arte de narrar a aventura humana, esta que é desde sempre a matéria do escritor. Clarice Lispector escreveu uma vez que havia muitos Rubens em Rubem Braga, o grande escritor capixaba, sempre lembrado como o pai da crônica brasileira. Ficaria encantada em conhecer os muitos Ernanis que habitam Ernani Buchmann.
Jaime Lechinski
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Enquanto Caminho
O Homem com Dois Lados Esquerdos
Dizem que, ao nascer, eu tinha sobrancelhas tão avantajadas que podiam ser penteadas e misturadas aos cabelos. Vale dizer que me faltava testa. Ainda que estivesse lá, não posso comprovar, não só pela óbvia falta de lembrança, mas também por alguém ter destruído as poucas fotografias do monstrinho em fraldas. Desconfio que a história seja mentirosa, eis que hoje não porto sobrancelhas de qualquer tamanho, assim como houve desproporcional crescimento da testa, a avançar ao meio do crânio. Pior se deu quando me descobriram canhoto. Eu via o mundo pelo lado esquerdo, tropeçando nas cadeiras, derrubando o que quer que mandassem segurar. Marchei com o pé esquerdo à frente, todo garboso, até o diretor da escola mandar que eu assistisse ao desfile do lado de fora, para ver se aprendia. Fiz minha estreia no teatro em uma peça infantil em que a diretora, talvez pelo talento dramático demonstrado nos ensaios, me escalou para o papel de ovo. Ao entrar em cena, um prego traiçoeiro na saída da coxia espetou o elegante traje de papel crepom amarelo, obrigando-me a avançar pelo palco segurando a fantasia. A interpretação durou poucos segundos, antes de um assistente retirar aos puxões o canhestro aprendiz. Consegui terminar com duas festas de 15 anos. A primeira caindo sobre uma porta de vidro e espalhando cacos por todos os que 15
dançavam. Na segunda festa, o papelão foi maior. Assustado com a abertura repentina da porta em que me apoiava, joguei para cima o copo de Coca-Cola, ou cuba-libre, que trazia na mão, o suficiente para acertar o colo virginal da aniversariante que por ali entrava. Também, agora em uma festa de formatura, quebrei um copo de cristal checoslovaco, curioso em saber o que era mais forte, se o cristal ou o gelo do whisky. Descobri que era a língua da dona da casa, chamando-me de estúpido. Caí muitas vezes, sem preconceitos. Caí enquanto estava em pé, sentado e deitado, na cama. A queda mais escandalosa se deu em auditório do Rio de Janeiro. Todo pimpão eu descia a escada do palco, levando nas mãos um projetor e um carrossel de slides. Mas, não tendo a habilidade de agradecer e andar ao mesmo tempo, despenquei. Ainda sob as gargalhadas dos presentes, esgueirei-me por uma portinhola embaixo do palco. Saí na Avenida Presidente Vargas, onde embarquei em um táxi e, minutos depois, em um voo da ponte aérea. Fui para São Paulo me esconder da vergonha. Dias atrás, consegui a façanha de cair de costas, machucar o ombro, lascar a canela direita e luxar o dedinho da mão, levando comigo a cadeira em que estava sentado e um fichário de aço, tudo isso partindo da velocidade zero. Tropecei com meus filhos no colo diversas vezes, dei com a cabeça em vigas, acertei a colher da panela de arroz ao bater na mesa. Foi a única vez em que uma família almoçou sob chuva de arroz cozido. Os aviões são a minha especialidade. Já meti o pé naquela borracha que separa a escada da porta, deixei o celular cair sobre o Rolex do vizinho de poltrona, andei de gatinhas procurando os óculos que desapareceram em uma aterrissagem forte. Até meu paletó já se afogou naquele gavetão, por conta de vazamento no ar-condicionado. Mantenho as esperanças de zerar os desacertos com a evolução da ciência, talvez a instalação de um chip no cérebro. Sim, manter o otimismo é virtude que exerço dia a dia, exceto quando estou tropeçando. O que, a propósito, me toma todo o tempo. 16
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Sobre Navegantes e Navegações Litorâneas
O jornal conta que dois navegadores, discípulos do Vasco, largaram-se ao mar em frente à praia das Gaivotas em direção aos Currais, a bordo de um caiaque. Foram resgatados horas mais tarde, plena madrugada, em frente ao Balneário Flórida. Descobre-se logo que os remadores não descendem de Vasco da Gama, o descobridor, mas de Vasco Moscoso de Aragão, o capitão de longo curso que não sabia navegar, personagem de Jorge Amado. Durante muitos anos fui morador das Gaivotas. Ali, nas manhãs dos verões, tratava de caminhar pela praia até o Santa Mônica, percurso de uns cinco quilômetros, ida e volta. Os Currais quase em frente, a 12 quilômetros de distância mar adentro, foram testemunhas de centenas dessas caminhadas, das quais a maior de todas teve como destino a Praia do Grajaú. Mas não voltei caminhando, fui conduzido até em casa de automóvel, dirigido por uma moça linda, que preferiu tempos depois viver em Londres e hoje talvez leve os filhos para conhecer as escarpas da costa inglesa. A casa das Gaivotas foi trocada por um apartamento, por coincidência no Balneário Flórida, de onde agora vislumbro os Currais de esguelha, plantados lá no mar azul, além das águas cinzentas que dominam o primeiro quilômetro a partir da praia. Jamais me ocorreu que as ilhas estivessem a 12 ou a 20 quilômetros, como devem estar aqui do Flórida. Tanto se me dá, não me atreverei a tal aventura. 17
A única vez em que participei de uma travessia, a distância equivalia a meras centenas de metros, entre a Praia do Grant e a ilhazinha em frente, no litoral catarinense, na companhia de uma prima e seu marido, ambos vigorosos remadores. Foi o que nos trouxe de volta. Dei à praia como o náufrago vivido por Tom Hanks, arrastando o corpo com o que me restava de unhas, já roídas de preocupação. Uma semana mais tarde, prometi que jamais voltaria a remar a não ser para fugir de Sir Francis Drake, se ele e seus corsários ousassem voltar à vida e às pilhagens. O prazo de uma semana para a formulação da promessa tem sua lógica, visto que foi quando consegui levar o garfo à boca, depois de sofrer dores musculares tão fortes que imaginei ter erguido sobre os braços a própria Arca de Noé, com todos os elefantes, rinocerontes e hipopótamos a bordo. Hoje, escrevendo na varanda nesta manhã de carnaval, vejo ao longe os Currais e logo atrás a frota naval que aguarda para atracar no porto. Tenho a impressão de estarem os navios tão perto que chegam a bordejar as calçadas das ilhas. Bem sei que lá não existem ruas, casas ou gente. Sua população é formada de répteis e roedores, aos quais suponho não importar o intenso tráfego marítimo que congestiona a vizinhança. Quem sabe os navios nem estejam assim tão próximos como nos parece a observação de longe. O que existe de real é que preciso terminar logo este texto. Já escuto alguns barulhos na casa, daqui a pouco a garotada acorda com vontade de beliscar coisa ou outra, ajeitar o estômago depois da carnavalância de ontem. O melhor é tomar um café, apreciar as ilhas no horizonte. Ainda antes do meio-dia estarei a caminho, tênis nos pés, para um trajeto pela avenida até o Cambuí, talvez pouco menos. Ainda tenho muito a andar e a escrever durante o carnaval – e só me restam quatro dias.
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Os Lopes
Muitos não sabem, mas trago incrustado entre o pronome e o Buchmann do meu pai, um Lopes por parte do avô materno. Quando comecei como repórter, o chefe da equipe, Airton Cordeiro, perguntou que nome profissional eu usaria. Optei por eliminar o Lopes. Tempos depois, passei a assinar matérias com um “L.” entre os dois nomes. Fábio Campana, o editor, aboliu a bobagem. Ernani Lopes, meu avô, apelidado de Chacrinha pelos meus amigos, por conta da semelhança física, foi figura admirável, dono da boa cultura típica da Ilha do Desterro. A vida toda foi segundo flautista da orquestra da Harmonia Lyra de Joinville. Para mim, o spalla, que os netos conheciam por seu Nardinho, tocava pior que ele, mas assim não consideravam os maestros. A Lyra, não fosse meu avô assumir a presidência, teria sido ocupada durante a Segunda Guerra, como em Curitiba foram o Clube Concórdia e a Sociedade Garibaldi, entre outros. Sabe-se lá o resultado do butim, a tempo interceptado. O velho Ernani teve três filhas, que lhe geraram 11 netos. Uma vez por ano, eles se reúnem para um dia de memórias e risadas. E também de churrasco e das bebidas que fazem luzir o espírito. Ali se misturam Buchmann, Cassou, Guimarães e Rodrigues Alves, todos Lopes por parte da ascendência ou do casamento. Muitos com os cabelos embranquecidos, alguns já desprovidos deles. Há quem exiba 19
uma pelagem de coloração exótica, adquirida em farmácia de baixa estratificação. Já descobrimos que as histórias são as mesmas, mudam só os detalhes – aí incluídos eventuais exageros, típicos das falhas que as tomografias detectam no cérebro dos protagonistas, ou mesmo da vontade de reescrever o tempo passado. Eis que chegou o dia da trupe reunir-se outra vez. Como a população se divide entre Curitiba e Joinville, encontramos no sítio do meu irmão Murilo, a meio caminho, o local ideal. Um de nós, executivo de corporação multinacional, vem de São Paulo. Há mais convidados: filhos, genros, amigos de infância, parentes afins. Todos chegam cheios de gentilezas e piadas. Gerson me presenteia com um litro do melhor destilado já havido, a pura cana enriquecida por anos de envelhecimento em barris de carvalho. Zeca, cirurgião reconhecido, discute com meu irmão Flávio as excelências do canto dos curiós. Louracir, o capataz, traz uns pinhões sapecados, consumidos em alguns segundos. Alguém alega, já pelas 9h30, que ainda faltam 30 minutos para que se abra a primeira cerveja. Paulão argumenta definitivo: “Jamais li, em garrafa ou lata, qualquer informação sobre horário de abertura”. Por ser irrespondível, o enunciado se faz sentença: abriram-se as latas. A carne é assada em fogo de chão, as trempes respeitando a direção do vento. Temos costela de boi, paletas de carneiro e frango à disposição dos circunstantes. Fernando, o Toco, resolve anunciar que vai faltar gelo. O dono da casa confere geladeira e freezer, checa os isopores até descobrir que todos riem. Essa é uma das piadas recorrentes, todo ano alguém levanta a hipótese. Murilo manda seu primo Toco procurar gelo em um lugar impublicável. Rogério e seu genro não chegaram, problemas com o carro na estrada. Arma-se o resgate. Quando chegam, Toco grita que já não tem mais gelo. Na varanda, degusta-se um puro cubano. Rui traça o cenário da eleição em Joinville, aproveitamos para fazer um balanço do ano. 20
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Paulo Cassou garante que a minha palidez vai fazer com que eu desfalque os encontros em pouco tempo. Agradeço a gentileza, fico até envaidecido. Então Renato dá o primeiro sinal de que a festa chega ao fim, ao lembrar que seu avião sai do Afonso Pena às 18h50. É tempo de se colocar na estrada. Flávio tenta marcar um novo encontro na Praia de Itajuba, durante a temporada. Em vão, só voltaremos a nos encontrar em outubro de 2013. Já dentro do carro, Toco grita para o anfitrião comprar mais gelo da próxima vez. Murilo estica o dedo do meio, eles se vão. Enquanto espero a carona que me trará de volta, escuto um dos remanescentes comentar sobre as excelências desses encontros. Sou obrigado a concordar. Mas tenho a impressão de que serão ainda melhores quando a cerveja estiver gelada.
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Férias à Beira-mar
Há quem não goste do verão. Um cantor de corpo imenso declara na TV que dele só aprecia o ar condicionado. Embora eu não me alinhe com os saradões, discordo do velho roqueiro. Já começo a gostar do verão a partir do horário assim denominado. Em fins de outubro passo a sonhar com a praia, a brisa, a leveza do nada fazer a não ser levantar o copo de cerveja. Assim me programo para os dias de ócio à beira-mar. Ocorre que os equipamentos instalados na casa de praia não leram o livro de Domenico de Masi. Não fazem ideia do que seja ócio criativo, confundem o conceito com faina braçal. Tratam de me afrontar. A primeira ausência de sinais vitais surge assim que abro a porta: as luzes da sala não acendem. Subo em uma cadeira, a Tânia agarrada a essas pernas que há décadas tentam me sustentar. Eu mesmo jamais confiei nelas, a ponto de tentar prover o sustentáculo da família por meios intelectuais, mas há controvérsias sobre a capacidade cerebral. O fato é que ali estava, a balançar as lâmpadas junto à orelha, como se assim ouvisse uma voz oriunda dos condutos a dizer “estou viva”. Se alguma delas ainda mantivesse pretensão à existência posterior, tudo se encerraria ali: aquela balançada seria fatal a qualquer sobrevivência. Saio a comprar lâmpadas, em lojas que já fecharam. Encontro produtos similares em um supermercado, o que ilumina, mas não resolve: o ambiente agora parece sala de cirurgia. Ouço alguns chiados 22
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que tento não ouvir. E em vista da necessidade de preservar o casamento, considero melhor mudar de parágrafo. No minuto seguinte, alguém grita que o chuveiro caiu da base. Assumo ares de catedrático em sustentações e pilastras, imagino causas, coço a cabeça e todas as partes do corpo, eis que já sou dominado pela urticária. Realizada a anamnese do apetrecho, declaro soberano: vou ligar amanhã cedo para o Alex, velho amigo com casa em Guaratuba, engenheiro calculista dos melhores. Como solução emergencial, sugiro que esta noite nosso chuveiro seja usado à moda francesa. Sob protestos que nem Sartre patrocinaria, uma hora mais tarde consigo acalmar a multidão de duas mulheres, mãe e filha, que me habitam o lar. Amanhã, predizia o profeta Roberto Carlos, tudo será diferente. A conexão da internet cai já ao amanhecer, mas sou tinhoso. Encontro o telefone de um técnico recém-chegado da Bosch, filial de São Paulo, Frankfurt ou Bagdá, já esqueci. Está disponível, com a ressalva de que sua especialidade são as máquinas de lavar. Coincidência mágica: a nossa acabou de quebrar. Esqueço o Alex, mesmo porque não o encontro há décadas. Anselmo, dito colaborador da Bosch, surge ao meio-dia, caixa de ferramentas à mão, a barriga esbarrando nos balcões. Porta calça jeans dois números aquém do exigido, expulsando a bunda pelas costas. A máquina de lavar também expõe obscenidades semelhantes, como polias puídas e correias que não correm. Resta-me correr à busca de tais preciosidades, inexistentes no quarto mundo formado pelo litoral paranaense. Menos mal que na volta encontro Anselmo aplicando doses cavalares de cola na base do chuveiro. O serviço é de uma plasticidade lamentável, adornando com o cinzento do silicone o entorno da tomada e alguns azulejos mais. Há reclamações femininas quanto à pobreza da solução, mas somos pragmáticos. Ao fim do dia, depois da nossa dupla ter consertado também duas bocas do fogão, um grito paralisa tudo, inclusive as ondas do mar: junto à janela da cozinha, há um ninho de vespas se formando. 23
Mas já encerrei o expediente. Como um general a desembainhar a espada, abro com um largo gesto a lata de cerveja que há 24 horas aguarda a sede do proletariado litorâneo. As vespas, mando servir de tira-gosto, depois de recomendar ao Anselmo que mantenha a calça em torno do umbigo. Nada como um dia de verão.
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O Ogro Viaja
O tema é batido, os cronistas costumam sacá-lo do bolso sempre que falta assunto. Serei mais um, eis que resolvemos passar uns dias com minha filha que mora em Porto Seguro. Supunha-se viagem sem sobressaltos, ainda que na véspera do Dia dos Pais, por aquela companhia aérea que se declara inteligente. Nada mais falso. O avião atrasou, chegou ao Afonso Pena depois de termos perdido a conexão em São Paulo. Todos embarcados, o comandante vem ao microfone para pedir desculpas pela lambança e anunciar que o avião partirá assim que receber a documentação, vinda de São Paulo. É prudente, comentei com a Tânia: vai que nos param naquele posto policial em Registro. Mais alguns minutos e lá vem o homem de novo: faltava só abastecer, já estava com os documentos à mão. O sujeito da frente perguntou, ansioso, pelos cartões de crédito e débito. Era preciso prudência também nessa questão, afinal havia o valor da gasolina para acertar. Parece que deu certo, porque as portas fecharam. Cintos afivelados, como eles dizem, e lá vamos nós. Vamos nada, você não sabe que viaja com as linhas inteligentes? O comandante volta ao microfone com uma solicitação insólita: dez passageiros deveriam se mandar para o fundo do avião. Questão de balanceamento. Eu que sempre supus que balanceamento era coisa nos pneus, dei conta de quanto o nível de inteligência daquela gente excedia os padrões. 25
A seguir, mais seis horas e meia circulando em Guarulhos como aquele personagem de O Terminal, com a diferença de Guarulhos ser o aeroporto internacional mais barulhento do mundo ocidental. Se eu conseguisse trabalhar um pouco, porque há tanto a fazer, prazos esgotando, textos pela metade, mas não: fico paralisado. Isso e a descoberta de uma escala não mencionada em Confins, desperta o ogro que me habita. Um apreciador dos silêncios não passa incólume à muvuca. Menos mal que a Tânia administra bem o marido, não perde a calma com os destemperos do seu Urtigão – ainda que apreensiva enquanto ao me ver discutir com a agente da Polícia Federal que exigia, por conta da operação padrão que nos asssolava, a tirar os sapatos. Bem sei da natureza dos meus pinos, inadequados aos detectores de metais adotados pós 11 de setembro. Mas andar descalço já me parecia demais, porque meus pés trazem os ossos intactos. Enfim, 15 horas após termos saído de casa, entramos no hotel em Arraial d´Ajuda com a madrugada do domingo já a meio. Levando junto a impressão de que todos nós, passageiros aéreos brasileiros, somos meros indigentes. Mas o hotel era bom e tratamos de conviver com o som em níveis retumbantes. Então leio Charles Bukowski a proclamar que este é o problema de ser pobre: temos que conviver com o som dos outros. A frase final do poema reserva outra coincidência: Mas por ora é Bob Dylan, Bob Dylan por aí afora. Enquanto os acordes de Blowin’ in the Wind invadem a piscina, concordamos que, sim, vamos descansar alguns dias. Sorria, você está na Bahia.
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Terremoto à Beira-mar
Pois seguia eu meio desengonçado. Isso não é nenhuma novidade, porque nascido de oito meses, em agosto, canhoto, o cabelo misturando sobrancelhas e testa, qualquer passante teria dito que o objeto daquela situação lastimável seguiria desengonçado pela vida. Fugi do assunto, mas vejam que coisa interessante: o antônimo de desengonçado seria engonçado, palavra que o computador não rejeita mas sim o meu vocabulário. Não se usa engonçado nem assim jamais fui. Coisas da linguagem e do desengonçamento. Seguia eu, então, naquele desengonço costumeiro, quando a coisa se deu. Por um átimo – outra palavra só de dicionário, ninguém raciocina em átimos – por um instante, digo melhor, considerei ter havido o sismo definitivo. O chão pareceu ir embora, o barulho era ensurdecedor e até os cachorros da rua, que tratavam de vagabundear como bons cachorros que eram, enfiaram as patas nos ouvidos. Essa coisa dos cachorros não sei bem se aconteceu, mas aproveitei para desconsiderar até a ascendência mais antiga dos geólogos que defendem a incolumidade deste pedaço de América, a salvo de cataclismos, dizem, embora eu sentisse um sob os pés, ali à beira do mar, durante o andar desacorçoado – também sou desses – entre o fim da tarde e o descer do sol atrás das escarpas da Serra do Mar, como os bons dias de verão permitem que se desfrute no nosso estreito litoral. 27
A frase foi longa e acho melhor entrar no assunto, porque já não havia entardecer e há quatro parágrafos engano o leitor com essa conversa mole. Uns segundos depois do chão começar a tremer pareceu-me que o terremoto tinha certo ritmo, um tum-tum vindo da profundeza dos infernos. Pensei de novo, o que sempre é um risco, mas foi inevitável pensar que já era bastante o inferno não possuir solo seguro, quanto mais obrigar qualquer ser dotado dessas conchas que trazemos pregadas à cabeça, e que servem para que escutemos inclusive o indesejável, a seguir pela eternidade ouvindo o tum-tum. Foi quando tudo se esclareceu. Já devia ter-se esclarecido antes, não fosse eu, eis que passa uma camionete, dessas de dois lugares, com a parte de trás coberta por uma lona, sob a qual se escondia o epicentro da destruição. Pareceu-me, mas não tenho certeza, que ao volante ia, faceiro, dono dos destinos do universo, o próprio demônio. Ele não só dirigia aquele carro, propriamente dos diabos, como pareciam estar seus replicantes, todos, escondidos nos recônditos da carroceria, a berrar o tum-tum infernal. Belzebu e seus filhotes seguiram pela avenida, enquanto as ditas conchas auriculares, já prejudicadas para sempre, iam deixando de captar a gritaria à medida que ela se afastava. Então o mundo voltou a ter chão, os cachorros voltaram a abanar os rabos respectivos e eu tratei de terminar a caminhada, mais desengonçado ainda, matutando sobre as razões pelas quais um habitante das trevas é capaz de submeter os comuns – e os incomuns, parece-me – a tamanho desatino. Mas não me ocorreu resposta, eu que já tinha problemas suficientes com os ouvidos e, a partir de então, com os olhos, obrigados a se mostrarem espertos como jamais foram a desviar do xixi que os cachorros, aqueles, não tiveram vergonha em verter nas suas explícitas demonstrações de pavor. Pensei que estivéssemos em agosto, mas ainda era fevereiro. E evitei imaginar o panorama que se forma em alguns lugares quando 28
O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
os demônios aproximam seus automóveis e liberam o som das mais profundas cavernas. Até o sol é capaz de se esconder, dizem, também desacorçoado, ameaçando desaparecer para sempre por trás da Serra do Mar.
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Este Ano Abati Duas Lebres
Claude Lanzmann, judeu francês de família assimilada, dedicado às letras e às mulheres (homme à femmes, et pour cause), veio ao Brasil para a Flip, ano passado, lançar A Lebre da Patagônia, volume de memórias (Companhia das Letras, 2009, 465 ps.). Nascido em 1925, o autor é um desses iluminados que, às vezes, surgem na multidão. Durante anos viveu com Simone de Beauvoir (que confessa ter sido ele “seu sexto homem”), dividindo as atenções com Jean-Paul Sartre – com quem, ela garantia, não mais fazia sexo. Ao mesmo tempo, Lanzmann mantinha sua carreira como jornalista, dirigindo a revista Les Temps Modernes, do próprio Sartre. Sua vida é uma sucessão de aventuras (a conquista de uma enfermeira na Coreia do Norte nos anos 1960 é, em si, digna de filme), em que a participação juvenil na resistência francesa se justifica tanto pelos princípios políticos como pela origem judaica. Sem procurar mistificar a trajetória, o autor narra as peripécias que o levaram, mais tarde, a se tornar cineasta, dirigindo o documentário épico Shoah, com 9h30 de duração, com testemunhos das vítimas do Holocausto. As reviravoltas da política fazem com que se afaste de Sartre no plano político, ainda que, após a morte do mentor, siga dirigindo a revista, sem prejuízo de sua carreira como documentarista, na qual se alinham outros títulos de sucesso. 30
O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
Enquanto me deliciava com o livro de Claude Lanzmann, não prestei atenção ao fato de ter na fila de livros a ler uma obra quase homônima, comprada a partir de um comentário de Elio Gaspari: a obra de Edmund De Waal, A Lebre com Olhos de Âmbar (Intrínseca, 2010, 318 ps.). Ao terminar a leitura da primeira, iniciei o abate da segunda. Também de família judia, dona de bancos com filiais em toda a Europa, do século XIX à Segunda Guerra, De Waal é inglês, filho de um pastor anglicano de origem holandesa. Ceramista de renome mundial, ele conta no livro a história da própria família e da relíquia que, por fim, lhe coube: a coleção das miniaturas artesanais japonesas conhecidas como netsuquês. O autor foi a fundo na busca dos detalhes da vida de seu ancestral Charles Ephrussi, intelectual de renome da França do Impressionismo, o rico banqueiro que adquiriu a coleção nos anos 1870. E, depois, na decadência da família e nas andanças dos 264 netsuquês que compõem o conjunto: em Viena, onde foram parar com presentes de casamento e, escondidas por uma serviçal da família, sobreviveram ao confisco nazista até, nos anos pós-guerra, de volta ao Japão, mantidas por um tio-avô de quem De Waal se tornou herdeiro. Os cuidados na pesquisa, a observação arguta a fazer com que o leitor viaje por palácios e mansões europeus, torcendo pela sobrevivência das pequenas miniaturas, os detalhes picantes das aventuras sexuais, na maior parte das vezes ilegais, dos homens e mulheres da família, tudo faz do livro um primor. O fato é que as lebres citadas são daquelas obras que se deve levar para uma ilha deserta. O fato de terem sido publicadas quase simultaneamente deve-se à mera coincidência. Feliz, saborosa e de leitura aconselhável.
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Sonhos
Os sonhos podem ser úteis para se descobrir sintomas de doenças, diz o jornal. Foi o suficiente para que desistisse de ler o resto da notícia. Vai que meus sonhos revelem o que até eu mesmo tenho vergonha de saber. A origem das minhas unhas encravadas, por exemplo. Quem sonha que afia cascos sofrerá de problemas nas unhas, dirá o especialista. Saberei reconhecer a sabedoria do diagnóstico, não fosse tão óbvio quanto mentiroso, posto que jamais sonhei com cascos, incluindo os de cerveja e os de navios. Meus sonhos são recorrentes e de outra natureza. Devem revelar doenças do espírito, menos que do corpo. Certa mania de grandeza, como a que me fez sonhar estar em campo no jogo Brasil x Itália, na Copa de 82. Faltavam alguns segundos, a seleção cobraria escanteio. De paletó e gravata, saído da tribuna de honra, meti-me na área italiana. Pulei, fui ao décimo andar, cabeceei para empatarmos o jogo. O doutor vai me tomar por mitômano incorrigível. Engano dele. O sonho teve motivações altruístas: pretendia apenas terminar com a tristeza imensa impingida por Paolo Rossi aos habitantes do planeta, noves fora os italianos. Um escritor sonhou coisa parecida, levando um pé a desviar a bola chutada pelo atacante uruguaio na Copa de 50. Vamos considerá-los, tais sonhos, da espécie dos justiceiros, a pretender ajeitar a ordem das coisas de acordo com a visão dos seus, digamos, proprietários. Sei lá 32
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que diabos estaria eu fazendo em uma tribuna de honra, muito menos trajando terno e, ainda assim, ágil como jamais fui. Só o fato de que algo deveria ser feito para não se conviver com tamanha desgraça. Não contarei ao Freud nativo – que, de resto, não irá mesmo me interrogar – que sonho com meu pai, demitido desta vida há décadas. São sonhos motivados pela saudade, que não parece doença, senão virtude. O mais dramático deles levou-me a encontrar o velho vindo de bicicleta, portando elegante chapéu cinza, de feltro. Topamos ao atravessar a rua na esquina do velho prédio do Correio. Paramos. Reclamei da ausência: ele ainda não havia ido lá em casa conhecer minha mulher, seus netos. Se foi gentil, deixou poucas esperanças. Disse que a vida andava difícil, iria aparecer quando desse. Engrenou os pés nos pedais, sumiu por trás do prédio da universidade. Fiquei ali tentando evitar que as lágrimas caíssem. Esforço inútil, vi depois, tanto estava molhado meu travesseiro. Sofro também dos sonhos humilhantes, responsáveis por denotar a inferioridade que insisto em ocultar dos outros, embora jamais tenha conseguido escondê-la de mim mesmo. Exemplo é o sonho no qual assumo pequena função em um teatro. Espécie de capataz, feitor burocrático responsável por transformar em inferno a vida de todos. Sou, então, uma pessoa triste, a fazer algo contrário ao meu caráter. O problema é que tenho filhos pequenos, preciso ganhar os trocados que se exige. Assim invado o palco enquanto o diretor de cena ensaia a peça. Em voz baixa, inaudível aos atores, peço a ele que limite o ensaio para que possamos trocar as lâmpadas do proscêndio. Lâmpadas de onde, grita ele, conhecido pelo gênio irascível. Do proscêndio, repito. Há risco de incênio. O diretor repete minhas palavras. Os atores riem, alguns têm lágrimas nos olhos. Lâmpadas do proscêndio, risco de incênio. Descubro que troco as palavras, não conheço as expressões do teatro. Quero explicar que sou mero funcionário, pai de família incom33
petente que estudou para ser advogado, está ali por ter faltado uns semestres inteiros de aulas. Nada disso consigo falar, as palavras somem. O diretor berra se sei onde fica o urdimento. Tenho dúvidas. Ele sugere: na coxia? Escuto mais risadas, há quem se torça de tanto rir. Como um bovino, balanço a cabeça, concordo. Ele pisca para o grupo: sim, na coxia, junto do poço da orquestra. Bumbos batem, todos pisam com força, há uma gritaria infernal: nunca se ouviu nada tão engraçado. Em seguida são quatro horas da madrugada e sigo escutando as risadas. Fico feliz em ser apenas um cronista que não pretende fazer carreira no teatro. Um filho choraminga no berço. Levanto para ver se está molhado, dou-lhe a chupeta, volto a deitar. Até o amanhecer espero não dormir de novo. Com essas teorias que inventam hoje em dia não se pode mais sonhar em paz.
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A Pata Choca
Ernesto é um velho amigo que não quer ter seu nome completo divulgado, para evitar investidas de eventuais interessados. A precaução se mostra razoável: ele é possuidor de um automóvel antigo, com quase 20 anos de quilometragem, conhecido na família como Pata Choca. Nos anos 1990 era considerado artigo de luxo, hoje não passa de uma excentricidade, estigmatizada pela gente do proprietário. “Na Pata, não”, suplicam mulher e filhos quando o Ernesto faz menção de usar a geringonça para levá-los, por exemplo, a algum restaurante. Dia desses, na falta de melhor opção, peguei carona na draga do meu amigo. Em 15 minutos, do bar até em casa, ele me contou as dificuldades em administrar as manias da Pata. Confesso não ter imaginado tamanhas vicissitudes. Ocorre que o sistema eletrônico de comando das portas não funciona, exigindo abertura pelo lado do acompanhante, já que o carro não tem buraco para chave na porta do motorista. Assim, sempre que sai sozinho – vale dizer, todo dia – o Ernesto precisa se esticar sobre os bancos dianteiros para destravar a porta do outro lado. Não é tudo. A melhor característica da Pata está no fato de ser o único carro do mundo a possuir câmbio automático que só funciona manualmente. Por algum motivo, o câmbio se nega a trocar as marchas como fazia até o ano passado. O motorista, frente à tamanha pirraça, precisa puxar a alavanca de câmbio para engatar uma segunda 35
marcha, com o que circula sempre a mais de quatro mil giros. “Não gasta muita gasolina?”, perguntei. Ernesto, paciente, esclareceu que mais caro seria trocar o sistema: “mais do que pagariam por ela”. Motivo semelhante faz o dono não consertar o ar-condicionado: mesmo a temperaturas abaixo de zero, a Pata exige que se trafegue com, pelo menos, uma das janelas abertas. Menos mal que o vidro traseiro direito tenha travado, deixando três dedos de fresta para facilitar a vida do Ernesto nos dias de sol, molhando o banco de trás nos 300 dias curitibanos de mau tempo. Ainda assim, não é o maior dos problemas gerados pelo clima: homem distraído, meu amigo esqueceu de trocar a palheta do limpador de para-brisa. No dia da citada carona, abaixo de chuva como convém, ele dirigia com o corpo empinado, para que a vista alcançasse a única trilha deixada pelo limpador, acima da altura desejada. Ernesto tem razões para não vender a velharia, a principal de ordem fiduciária. Dá-se que financiou o automóvel na época de implantação do Plano Real, quando diversos bancos desapareceram, inclusive o do financiamento citado. A massa falida foi comprada por outro, por sua vez incorporado por um terceiro, comprado há pouco tempo pela sigla que hoje não encontra mais o contrato do Ernesto. Sem o que ele não pode pedir a carta de liberação para dar entrada no papelório exigido pelo Detran. - E o carnê que você alega ter quitado? Esse ele esqueceu na gaveta da empresa da qual foi despedido há dez anos. Semana passada, Ernesto passou pelo boteco, fim de tarde. Brandia, indignado, a carta assinada pelo síndico do prédio onde mora. Como a Pata sofre, por assim dizer, de incontinência urinária, não consegue impedir vazamentos variados de óleo no piso da garagem. Tal atitude, tida como sacrilégio higiênico pela rigorosa convenção de condomínio, obrigou o Ernesto a deixá-la na rua. Meu amigo é um sentimental. Já declarou que não vai deixar sua velha companheira a sofrer os rigores da natureza na solidão das 36
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madrugadas. “Nem que eu precise dormir com ela”, rosnou depois de alguns aperitivos. Dias depois, Ernesto, sempre distraído, acertou a quina dianteira da Pata em outro carro. Caiu o para-choque dianteiro, levantou o capô, ficou impossível ao Ernesto circular como um motorista comum. O conserto está orçado em duas vezes o valor da velha Pata. Meu amigo está em depressão profunda. Ouvimos, lá no bar, comentários de que a família pensa em interná-lo. Talvez ele aceite, imagino. Desde que a Pata seja internada também.
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As Traições das Traduções
Desde que a necessidade de comunicação obrigou o homem a verter falas e obras para outras línguas, iniciou-se a polêmica sobre o caráter da tradução. Tradução ou transcriação, como defendia Paulo Leminski e os poetas concretos. Versão literal ou preservação do espírito do autor. Paulo Henriques Britto, um dos melhores tradutores do país, endossa a posição: “traduzir é reescrever um texto numa língua diferente”, diz. Sua definição para o ofício é interessante: “o tradutor é um tipo específico de autor”. Precisa harmonizar som, ritmo, sentido, sintaxe. A tarefa é ainda mais árdua se for poesia, na qual Britto destaca ser necessário preservar até mesmo o aspecto visual do texto sobre o papel. A verdade é que toda tradução guarda também os hábitos estilísticos da época em que foi produzida. A versão em português de Portugal do Fausto, de Goethe, traduzida por António Feliciano de Castilho, ainda no século XIX, não sobreviveria a uma montagem atual nos palcos brasileiros. Ninguém teria paciência para ouvir o poeta clamando algo como “tornai a aparecer, entes imaginários, que me enchíeis outrora os olhos visionários”. Pior são as traduções canhestras alicerçadas em princípios discutíveis como as que destruíram no Brasil inúmeros títulos de filmes. Ingmar Bergman, por exemplo, sempre deu aos filmes títulos curtos: 38
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Morangos Silvestres, O Silêncio, Luz de Inverno, Juventude, Face a Face, Persona. Pois é, este último recebeu no Brasil o título escandaloso de Quando Duas Mulheres Pecam, tentativa sem-vergonha de atrair um público interessado em produções pornográficas. The Touch, literalmente O toque, produção de Bergman para o mercado norte-americano, virou A hora do amor. Mas voltemos à literatura. A primeira tradução brasileira de La Cuidad e los Perros, do prêmio Nobel peruano Mario Vargas Llosa saiu no Brasil como Batismo de Fogo. A essência de seu título original foi restaurada em versões posteriores, mas o pecado de acrescentar um novo sentido, não imaginado pelo autor, para o título da obra já tinha sido cometido. Entre todas as traduções, a que sempre me intrigou foi a do livro Raise High the Roof Beam, Carpenters, de J. D. Salinger. Em meados dos anos 1980, a Editora Brasiliense lançou uma versão em português assinada por Alberto Alexandre Martins e revisada por Geraldo Galvão Ferraz, ele mesmo um tradutor de nomeada, com o título improvável de Pra Cima com a Viga, Moçada. Ainda que a coleção Circo de Letras da Brasiliense fosse voltada para o público jovem, o título escolhido não passa de engodo. Foram precisos quase 20 anos para que a Companhia das Letras lançasse uma nova versão, agora com tradução preservando o sentido original desejado pelo autor: Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira. No período compreendido entre as duas publicações houve, inclusive, quem especulasse sobre as preferências sexuais de Salinger, já que a tal “viga para cima” seria apologia homossexual. Grossa bobagem gerada por outra. Enfim, como sempre disseram os italianos, um tradutor é sempre traidor. Traduttore traditore é máxima conhecida, nem sempre justificada.
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Um Comunista na Fórmula 1
Nos tempos do regime fardado, e nas épocas turbulentas antes dele, era hábito hospedar em casa algum líder clandestino de passagem por Curitiba. Bem entendido: hábito para quem tinha algum compromisso com ideias, digamos, progressistas. Eduardo Rocha Virmond conta que, no início dos anos 1950, seu pai levou para casa um homem muito simpático, de conversa agradável, que se destacou ao ajudar a esposa do anfitrião na cozinha. Era o jornalista João Saldanha, militante do Partido Comunista, o Partidão. Cecília Vieira Helm, filha do advogado, professor e político de esquerda Vieira Neto, narra outra história. Certo dia, seu pai comentou com a mulher e as filhas: “O Marighella dormiu aqui em casa esta noite”. A mãe de Cecília quase morreu de susto, não só por desconhecer a passagem de um hóspede pela sua casa. Tinha razão, porque Carlos Marighella era o clandestino mais famoso entre os procurados pelas forças da repressão. A propósito, Vieira Neto era vítima habitual da polícia política. Sempre que a situação engrossava, alguns comunistas conhecidos eram levados para uns dias no xadrez: Vieira Neto, o livreiro Aristides Vinholes e o comerciante Berek Krieger eram três dos hóspedes compulsórios usuais. Fábio Campana, ele mesmo militante, hospedou dezenas, centenas em seu apartamento na rua General Carneiro. Pelo que me lembro, sempre havia alguém dormindo no quarto de empregada e não era nenhuma faxineira. 40
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Pois o Fábio me pediu, certa feita, que hospedássemos João Amazonas, o líder do PCdoB. O velho Amazonas não gostava de hotéis, sentia-se inseguro depois de décadas de clandestinidade. Meus filhos eram pequenos, mas ainda assim a Adelina, que cuidava deles, poderia ajeitar as coisas. Ela transformou em cama o sofá da sala. O velho usava o lavabo para sua higiene, tinha acesso ao bar e à biblioteca, tudo isolado do restante da casa por uma grande porta de correr. Certa noite, antes de dormir, Amazonas abriu aquela porta e me chamou para ir à janela. Do outro lado da rua, no grande muro que separava a calçada do pátio de máquinas da Construtora F. Greca, ali no Bom Retiro, estava encostado o federal escalado para vigiar o velho. Ele comentou: - Olha lá o nosso fantasma. Vai passar a noite ao relento, num frio desses! Demos um tchauzinho e fechamos as cortinas. Outra vez, marcaram uma reunião sindical para domingo, 8h da manhã. Adelina levantou cedo, fez o café de praxe e chegaram os sindicalistas. A conversa de sempre, o lúmpen havia chegado à Cidade Industrial, analisavam estratégias de paralisação. Já imaginei a cena: os explorados e os famélicos do mundo marchando na Rua XV de Novembro ao som da Internacional. Enquanto eles preparavam a revolução proletária, lembrei que estava na hora da largada de uma corrida de Fórmula 1. Abandonei a luta de classes e liguei a TV na outra sala. Dada a largada, notei que alguém tinha sentado ao meu lado. Era João Amazonas, franzino, agasalhado em um casaco muito simplório (albanês, por certo), com uma xícara de café na mão. Olhei estranhando ver aquele comunista ali, enquanto o governo era derrubado na copa ao lado. Aí ele me perguntou: - Você é Piquet ou Senna? - Piquet. E ele: - Eu também. 41
As Maiores Invenções
A jornalista quer saber qual a minha lista das cinco maiores invenções da humanidade. Jamais havia pensado nisso, confesso. Ela não entende: nunca pensou nas maiores invenções da humanidade? Mesmo sabendo que ser didático não está entre minhas virtudes, explico que jamais me ocorreu limitar as grandes invenções da humanidade a cinco. É o mesmo que votar nos dez melhores filmes de todos os tempos ou nos 11 maiores craques da história do futebol. Podem ser mais ou menos. Pode ser um. E pode não ser nada, como imagino que será esse assunto. Jamais tive paciência com a tendência ao reducionismo, que explica tudo a partir de gráficos, listas. Nada pode me deixar mais irritado do que fórmulas para fazer amigos, conquistar pessoas, aprender a emagrecer ou dominar o controle remoto. A moça insiste, é matéria para o jornal de domingo, escolheram vinte pessoas. Penso em perguntar sobre os critérios que levaram aos vinte votantes, mas evito a ironia. O prazo para responder termina amanhã. Alguns minutos depois resolvo meu primeiro voto. Vai para a penicilina, razão pela qual estamos todos ainda aqui, a repórter, os leitores e eu. É verdade que antes dela, penicilina, as pessoas também viviam. Fico em dúvida, negaceio, quase desisto até cravar o voto. Se houvesse penicilina eu teria conhecido meu avô, que só me foi apresentado por fotografia, esta mesma que agora encaro. Em nome de 42
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um avô muito mais jovem que seu neto, decido pela penicilina. Talvez o principal problema em ser canhoto esteja em dar voltas de lá para cá, ao contrário do mundo destro. Assim, girando pela sala no sentido anti-horário, minha mulher me flagra, nervoso, o olho esquerdo piscando sem controle. Ela sabe que estou envolvido em questão complicada. Quando conto o problema, ri. Muito fácil, responde – e lembro que as mulheres são especialistas em resolver questões complicadas, embora às vezes se compliquem com problemas simples, como trocar lâmpadas. Nem todas, porque minha mulher não só troca lâmpadas como um gênio como é o próprio. A música, diz. Uma besta é o que sou, não havia pensado nisso. A música está acima da literatura, da poesia. Bach, Beethoven, Mozart, Martinho da Vila e assemelhados. Sacramento meu segundo voto. Sirvo o vinho, brindamos ao som também argentino do Gotan Project. Naquele momento decido o terceiro voto. O vinho. Não aquele que ora bebemos, burlesco como soem ser nossos vizinhos. Refiro-me ao vinho-gênero, bebida que afaga e enternece as almas, invenção maior do ser humano sóbrio, posto que só aos sóbrios caberia a invenção dos bêbados. Vencida a garrafa, consagrado o vinho, fui ao penúltimo voto. Algo de tecnologia, pensei. Quem sabe os tipos móveis de Gutenberg, o rádio, a revista O Cruzeiro, excluídas essas coisas frenéticas que nossos filhos digitam até com os polegares. A evolução da comunicação merece um voto. Fecho questão, sabendo haver embate sério entre mim e eu mesmo. Cinema e televisão têm argumentos formidáveis. Penso em convocar o Tribunal de Haia, alguém que decida, servindo até juiz de rinha de galo. Horas depois, chego ao consenso, dispensados os árbitros cogitados: o cinema garante o voto, inclusive pelo fato de haver permitido o nascimento de gênios como Charles Chaplin. Nada existiu de mais importante na história do entretenimento. Repasso minhas razões, estou convicto: resta um voto. 43
É madrugada. Desde ontem, só penso em fechar a tal relação. Sinto-me inspirado, resultado do vinho. Melhor: do cinema, eis que acabo de ver Gilda. Meu voto será de Rita Hayworth, agora sei. Ou de Ingrid Bergman, a mais linda das mulheres. Já não sei. Considero a candidatura de Liz Taylor, logo descartada por excesso de maridos, eis que me considero ciumento. Vou às europeias: Claudia Cardinale, Jacqueline Bisset, Penélope Cruz. Tento as nacionais, de Vera Fischer a essas jovens atrizes cujos peitos explodem de saúde e silicone. Fico com todas. Sim, leitor, meu último voto será para as mulheres, inclusive aquela que me permitiu a primeira vez e se chamava Virgínia, ironia que me irá perseguir vida afora, posto que eu era, ela não. Nada sei sobre a lista dos outros escolhidos. A bem da verdade, pouco me importa. Fico aqui saboreando meus cinco votos com certeza de que fiz as melhores escolhas. Caso minha impressão sobre a repercussão da matéria esteja errada, irei bagunçar o coreto, mudarei tudo. Digamos que alguém escreva ao jornal para elogiar minha lista. Pedirei licença para discordar, mandando carta retificadora. A bem da verdade, direi, devo esclarecer: no fundo, prefiro botequim, cachaça mineira, ovo frito, mulher bronzeada e jogo do Fluminense. Ponto final. Citando Ivan Lessa, estamos desconversados.
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Sobre Defesas, Bigodes e Buzinas
As sessões de domingo no Cine Palácio começavam às 13h30. No dialeto do frequentadores era “azumaetrinta”. Os da faixa etária mais baixa, meu caso, sentavam sobre a coleção de gibis que se levava para trocar, única forma de não sofrer expropriação ou, em caso de resistência, alguns tapas na cara. Talvez a matinê do Cine Palácio tenha sido a razão do meu pai não ter me levado para ver o América x Caxias daquele domingo de abril, no Estádio Olímpico, da Rua Edgar Schneider. Preferi a sessão da “zumaetrinta”. A memória já não permite saber se o seriado era faroeste ou ficção científica. Buck Jones ou Flash Gordon, o super-herói do dia poderia ser qualquer dos dois. Foi outro. Morávamos na Rua Lages, perto do estádio do América. Depois do jogo, meu pai chegou de cara amarrada. Havia sido testemunha de um naufrágio titânico, a levar para o lodo no fundo do Rio Cachoeira todos os americanos, do goleiro ao ponta-esquerda, do presidente aos gritos de incentivo da Judith. Preferia não conversar, esquecer os trágicos 2 x 6 sofridos para o mais execrado dos adversários. O problema era conseguir esquecer. Na mesma rua, dois quarteirões acima, morava a família Klein. O velho Klein era proprietário de um Ford e de vastos bigodes. Seu carro, não. Não se tratava de um mesozoico Ford de bigodes, mas de um calhambeque moderno, tão conhecido em Joinville quanto a bigodeira do dono. 45
Klein era um alemão brincalhão, caxiense desde o momento em que seus ancestrais desembarcaram do Colón. Eufórico com a maior vitória já conquistada no terreno adversário, tratou de trafegar pela Rua Lages, e pelas adjacentes, com a buzina do Ford fonfonando sem parar. Meu pai vociferava que a bateria haveria de arriar. Torcia pelo fim dela como torceu pelo fim do jogo. A bateria do Klein durou tanto quanto a Guerra dos Cem Anos. Só o anoitecer do domingo foi capaz de fazê-la emudecer, porque buzina e faróis ligados seria combinação fatal até mesmo num fordeco dotado de bateria com fôlego de tigre. Aquele domingo ensolarado de abril ficou marcado na história. Humilhação do lado vermelho, alegria de final de Copa do Mundo do lado preto e branco. Era como se a metade de cá da cidade, da Rua 9 de Março a Pirabeiraba, estivesse de luto, enquanto a metade de lá, até os confins do Itaum, estivesse vivendo em ritmo de carnaval baiano. Foi o ataque do Caxias que marcou seis gols ou o goleiro Simões que tomou meia dúzia de frangos? Culpa da defesa, assistindo ao Cleuson, Didi e Vi passearem pela nossa área como se estivessem fazendo footing na Rua do Príncipe? Tudo isso, sim senhor, mas não apenas. Arino Brazil, meu pai, já ex-comentarista da Rádio Difusora, ZYA-5, diretor do América, responsável pela construção do poste de iluminação à direita das arquibancadas, ditas monumentais, garantiu que o maior responsável pelo desastre havia sido o goleiro Puccini. Sempre ele, pensei antes de tentar o sono que custou a chegar. Puccini foi o primeiro goleiro que vi jogar de preto. Era o modelo defendido por Yashin, o Aranha Negra: goleiro de preto assusta o atacante. Castilho preferia jogar de cinza, tentando se tornar invisível ao ataque adversário: mimetizado, apareceria de súbito para defender. Simões – e depois dos dois Bosse, pai e filho – jogavam de cinza. Puccini vestia-se nas cores do bigode negro que portava, inverso exato da pelagem do velho Klein. Tinha qualidades que o faziam diferenciado. Era ágil, tão ágil quanto Mosimann do Carlos Renaux, muito mais que o velho Bosse. 46
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Colocava-se melhor que Adolfinho, do Avaí, tão bem quanto o jovem Raul Bosse. E tinha sorte. Maldita sorte que o fazia defender não só os chutes à queima-roupa de Zabot, Bastinhos, Cocada, Gaivota, Euclides. Defendia também os torpedos que cuspiam fogo desde a intermediária a partir dos pés de Antoninho e Beco. Puccini, o maior goleiro da história do Caxias, Jairo incluso, ficou anos sem perder do América. Infelicidade minha. Ou ele jogava bem quando eu estava nas arquibancadas, aquelas, ou eu era o pé-frio responsável pelas nossas seguidas derrotas. Uma dúvida de 50 anos que irá perseguir para sempre minha já cansada alma de torcedor. Certeza, mesmo, apenas uma. Tanto a festa particular do velho Klein quanto as defesas de Puccini foram imperdoáveis para a legião americana. Não lembro se a buzina da fubica voltou a tocar com aquela intensidade. Lembro que as defesas de Puccini seguiram atrapalhando meu sono até que ele encerrasse a carreira, muitos anos depois, quando nossas rubras preces foram, enfim, ouvidas. (Publicado no livro A Trajetória de Puccini, de Vilmar Puccini Júnior, Jaraguá do Sul)
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Tarugo, o Craque
O treinador da seleção brasileira e seus dois auxiliares estão reunidos. A sala estaria enfumaçada, caso a cena ocorresse em tempos passados, quando João Saldanha era técnico da seleção. João fumava para dois cânceres. Mas a cena é atual, politicamente correta. Discutem-se os nomes a compor a próxima convocação da seleção olímpica, para atletas com menos de 23 anos, marcada para o dia seguinte, às 11h, ali mesmo, sede da CBF. Há divergências apenas em uma posição, a lateral esquerda, com dois candidatos disputando a vaga. Cada auxiliar prefere um jogador, o treinador se mostra em dúvida. Como os assessores quase se engalfinham esgrimindo argumentos, o técnico, brincalhão, ameaça convocar um terceiro nome. Diz que foi homenageado em um torneio de futebol amador, a Copa Suburbana, e viu lá jogadores melhores que os dois sugeridos. Não há consenso. O treinador, um tanto cansado, pede que mandem a relação dos convocados para o seu e-mail de casa. Ele irá pensar mais um pouco antes de decidir e, depois, mandará a relação completa. Cena dois. O técnico chega em casa. Sua mulher está às voltas com o vazamento de um cano. Acaba de chamar uma empresa, que vai mandar um encanador. Ela reclama que por conta do cargo que o marido exerce, entrar no edifício em que vivem está cada dia mais difícil. É preciso avisar a portaria com antecedência, dando nome e 48
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RG de quem precisa ser admitido. A sorte é que as empresas hoje em dia estão mais organizadas. Essa que ela contratou mandou o nome do encanador por e-mail. Manhã do dia seguinte – e já estamos na cena três. Preparandose para sair, o técnico passa mal. Sua mulher o leva para o hospital. Constata-se que ele está enfartando, os médicos o levam de maca para o centro cirúrgico. Quatro. A mulher avisa a CBF. Um assessor pede que os auxiliares do treinador passem a lista para a divulgação pela mídia. A convocação não pode ser adiada, afinal aquela é a lista de quem vai para a Olimpíada. Os auxiliares atenderão a imprensa. O show deve continuar, mas falta aquele nome. Ligam para a casa do técnico, a filha atende. O assessor pergunta se o pai dela não deixou uma lista de convocados pronta, porque está faltando um convocado. A garota abre o computador e vê lá uma mensagem, com um nome: Elbernilson dos Santos, RG 12.659.310-8 RJ. Repete nome e RG para o interlocutor, desliga. Sequência cinco – auxiliares do treinador atônitos. Quem é Elbernilson? Elber do Corinthians? Nilson do Vasco? O Ni do Cruzeiro? Ou o Careca do Internacional? O cadastro da CBF não traz nenhum registro que corresponda ao nome ou RG. Pânico na CBF. Já estourando o horário, fazem uma última tentativa: ligam para a Federação Carioca. Um funcionário de lá acessa o computador e encontra o registro: Elbernilson dos Santos é atleta amador, lateral esquerdo com inscrição na Copa Suburbana pelo Ferroviário de Queimados, Baixada Fluminense. Os auxiliares seguem com caras de idiotas. Um deles lembra que o treinador ameaçou de brincadeira convocar um terceiro nome, mas jamais pensaram que estivesse falando sério. Ligam para a sede do Ferroviário. Cena tantas, que já perdemos a conta. A zeladora é a única presente no outro lado da linha. Diz que vai localizar o jogador. Seu filho irá correndo até a casa de Elbernilson, algumas quadras adiante. 49
A mulher do lateral informa o número do celular. A zeladora telefona de volta para a CBF, passa o número. Cena catastrófica. Um dos auxiliares liga: “Alô, Elbernilson?”. O bombeiro diz que é ele mesmo. “Onde você está neste momento?”. Elbernilson, luvas grossas e sujas nas mãos, uma chave-inglesa na outra, tem dificuldade para segurar o telefone: “Neste momento, estou na casa do técnico da seleção brasileira”. É só o que consegue dizer, porque o telefone cai da sua mão e se espatifa. Total desespero, a CBF não consegue mais contato com Elbernilson. Mas não resta dúvida, imaginam os assessores, candidatos ao Nobel da Lógica: tanto será Elbernilson o convocado que o técnico até o convidou para ir a sua casa. Decerto planejava levá-lo consigo para a CBF, com orientações no caminho sobre a entrevista coletiva, como se comportar com esses jornalistas malandros. Cena épica. Assim Elbernilson dos Santos, 23 anos, conhecido na Baixada Fluminense como Tarugo, é convocado para a seleção brasileira. A mais surpreendente convocação de todos os tempos. Típica de treinador ousado que não tem medo de errar, defendem alguns cronistas. Outros noticiam que Tarugo está sendo contratado pelo Flamengo. Um diretor do Vasco, sotaque lusitano, informa que há tempos estava de olho no jogador. Aparecem alguns amigos de infância do novo craque. “Desde criança ele demonstrava que iria se consagrar nos gramados”, dizem. Cena 171. O presidente do Ferroviário diz que foi ele o responsável pela convocação, ao pedir ao presidente da Federação para convidar o treinador da seleção para a abertura da Copa Suburbana, jogo que Tarugo matou a pau. Cena na UTI. O treinador se recupera lentamente. Seu médico dá entrevista garantindo que o enfartado irá treinar a seleção na Olimpíada, mas até lá terá longo período de recuperação. O presidente da CBF o visita, um fotógrafo é admitido para que registre o beijo do cartola na testa do treinador. Cena “olho vivo”. Os auxiliares seguem treinando os convocados. Pelo telefone, falam de Elbernilson para o técnico, o qual quase 50
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tem outro enfarte. Jamais havia ouvido aquele nome, muito menos lembra de algum Tarugo. Agora é tarde. Ele, a CBF, o futebol brasileiro, todos correm o risco de se desmoralizar. Melhor deixar assim mesmo. Cena polaca. Depois de um gol por acaso, em um treino, chutando da intermediária, surge uma proposta irrecusável para Elbernilson, o Tarugo. Seu gol foi igual ao marcado por Josimar contra a Polônia na Copa de 86. Os poloneses querem contratar o novo Josimar. Seu procurador (agora Elbernilson já está cercado de assessores, veste terno e gravata com uma corrente de ouro por cima, brincos com alargadores, cabelo moicano) fecha o negócio. Tarugo deixa a seleção sem jogar, mas está com o futuro garantido. Vai tirar sua família do barraco em Queimados para viver em Varsóvia, que ele não tem a menor ideia de onde fica. Cena cheia de vodca, muita vodca. Tarugo é recebido com festa. Está acompanhado da mulher, que exibe seus silicones, o Botox, casacão de pele. O casal é convidado de honra para um jantar, Tarugo enche a cara. Ninguém dá a menor bola, porque todos estão ainda mais bêbados. A estreia de Tarugo é marcada. Estádio cheio, chove muito. Os jogadores estão no vestiário fazendo aquecimento, quando começam a cair uns pingos por um bico de luz no teto do vestiário. Em minutos os pingos transformam-se em torrente. A luz apaga, tumulto. Cena no escuro. Alguém acende uma lanterna e focaliza o buraco por onde escorre a água. Tarugo empurra uma mesa, sobe nela e, sem vacilar, tira uma das chuteiras e a camisa do time. Envolve uma na outra e empurra ambas buraco adentro. Fica lá segurando, enquanto grita em português que aquela merda vai desabar. Ninguém entende, mas todo mundo pensa a mesma coisa e se manda, menos ele. Enésima cena. Na arquibancada a torcida é evacuada, o jogo é cancelado. Bombeiros entram no vestiário com grandes fachos de luz, descobrem o brasileiro evitando tanto a inundação do vestiário quanto a queda da arquibancada. É salvo. 51
Tarugo vira herói nacional. Um repórter da Globo entra direto de Varsóvia, contando a saga do jogador. Um fenômeno. Antes mesmo de estrear num clube polonês, já é o maior ídolo do país. Um deputado local defende a concessão de cidadania a ele, que passará a se chamar Elbernilson Taruguinski. Com isso, Tarugo pode ser convocado para a seleção polonesa, já que não chegou a jogar pelo Brasil. O filme termina. Sobem os créditos finais. A imagem parece que vai sumir quando corta para o mesmo repórter, para uma informação de última hora. Elbernilson Tarugo, antes mesmo de estrear na seleção polonesa, acaba de ser contratado pelo Manchester United por 40 milhões de euros. A tela escurece, deixando um pontinho branco no meio. Aparece o braço do Tarugo e fecha o buraco com estrondo, como no vestiário. Fim.
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O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
O Grampeador
Eis que chega o momento de revelações, sinto-me maduro para tanto. Não aceito sacanagens a priori como nunca aceitei imitações. Preparem-se para ouvir, sacaneiem depois. Em 1969, recém-retornado do Recife, donde vivi os anos dourados, meu pai achou um lugar para eu trabalhar. À revelia. Tratou de arranjar-me estágio no escritório de um aparentado nosso, uma revendedora de material de escritório. Passei um mês me familiarizando com o mostruário, outro decifrando a tabela de preços e, mesmo sem entender coisa nenhuma, fui colocado a vender. Os dois meses seguintes passei visitando escritórios no centro da cidade. Virei do avesso a Rua XV, as Marechais, a Monsenhor Celso, a Praça Tiradentes e arredores. Todas as ruas e mais algumas. Ao fim do périplo, fui bem sucedido com a venda de um grampeador. Explico bem: um grampeador. Alguém, funcionário de um daqueles escritórios, mostrou-se interessado e adquiriu, após analisar preços e consultar a diretoria, um grampeador. Como sou uma besta em grampeações, não guardei na memória nada além desta venda sublime e reparadora. Não lembro qual foi minha comissão, que jamais recebi. Cr$ 2, talvez. Porém, vendi um grampeador. Jamais me senti tão mal colocado em um emprego. Aquilo me era de uma violência tamanha que penso diariamente em conseguir 53
indenização do governo. Estou cuidando de preparar o dossiê. Para mim, 1969 é o ano que não terminou. Só terminará quando eu conseguir a reparação da tortura que sofri. Vejam bem: grampeadores têm a ver com grampos, grampear, essas coisas tão em moda hoje em dia. Talvez eu convença um poderoso desses que dão pareceres, os tais que permitem que se venda, enfim, a alma ao diabo. De minha parte, por enquanto vendi apenas um grampeador, glória que fariseu algum irá usurpar. Desde aquela época, noite após noite, antes de dormir, bato no peito e exclamo: não existiu no mundo vendedor como eu. Assim convencido, durmo o sonho dos bons vendedores, os que acham que um dia as coisas vão mudar e alguém irá comprar, pelas minhas mãos, ao menos, uma crônica, o artigo que hoje tento passar adiante.
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O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
Efeitos de uma Carreira de Sucesso em Curitiba
Imaginemos a hipótese. Depois de décadas, quando já não se acreditava que nascesse um escritor com talento para tanto, foi enfim publicado o grande romance da cidade. Difícil era aceitar o autor. O Valberto, quem diria. Aquele que durante os últimos 30, 40 anos frequentou o café na Boca Maldita falando baixinho, quase sussurrado, carregando sob o sovaco uns livros e um chumaço de papéis com anotações ilegíveis. Comentavam que era escritor, ainda que ninguém acreditasse: jamais havia publicado uma linha. Depois, tinha péssimos hábitos, incluindo o hálito, ainda pior. E aquele casaco ensebado que vinha sendo usado, diziam, desde a Idade Média. Aturava-se o Valberto porque tinha lido Goethe em alemão. E era dono de um exemplar de Orlando Furioso em português dos Açores, gasto por anos de pressão do braço sobre as costelas, temperado pelo cheiro de azedo que dali fluía. Então o livro foi publicado, um tijolo de 800 páginas que contava tudo. Desde a pré-história até os dias atuais. Os episódios históricos foram massacrados. Só um demente poderia afirmar que Gumercindo Saraiva desfilou a cavalo pela Rua Flores, disse alguém no café. As histórias sórdidas são Dalton sem tirar nem pôr, outro completou. O protagonista renascia a cada geração, descendente do índio Tindiguera, bisneto não reconhecido de João Gualberto – e todos viam nele o próprio Valberto, denunciado pela proximidade dos nomes. 55
Os leitores não se preocuparam com detalhes assim ínfimos. O livro foi para a lista dos mais vendidos, na segunda semana já estava em primeiro lugar. A tarde de autógrafos em um shopping paulista foi interrompida quando o autor teve câimbras nos dedos. Uma editora francesa comprou os direitos de distribuição na Europa, a edição americana estava sendo negociada. Valberto deu entrevista no programa do Jô – mas podia ter comprado outro casaco. A crítica foi unânime: o livro significava o renascimento da literatura brasileira. Voltou para casa depois das viagens de lançamento. Na segunda-feira encostou-se no balcão, pediu um café. Foi ignorado pelos presentes, interessados em discutir os resultados do futebol. Valberto não se conteve: pela primeira vez fez uma pergunta em voz alta, como se agora tivesse adquirido liberdade para tanto: - E o meu livro, gostaram? A conversa parou, os habituês se entreolharam e alguém resumiu o pensamento coletivo: - Livro, que livro?
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O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
Memรณrias Engarrafadas
Em Tempos de Eça e Sapucaí
Eis que, pelas circunstâncias da vida, fui obrigado a frequentar a escolinha do Detran. Lá me apresentei, para a sequência de comprovações necessárias a demonstrar que eu sou eu mesmo. Explico: você fica em uma fila, na calçada em frente ao prédio. Então um guarda confere seu nome na lista de inscritos que traz em uma prancheta, como se fosse um Joel Santana. Aberta a porteira, digo portão, sobe-se dois lances de escada e, surpresa, outra fila: agora para entrar na sala de aula. O instrutor manda você encostar o dedão no aparelho de comprovação biométrica e aparece seu escracho na tela. Pronto, você é você em carne e osso, digo, em tela. Aí basta assinar a lista de presença. Só falta que peçam reconhecimento de firma. Pior: ao fim da primeira parte – existe um, vamos lá, recreio entre as duas aulas da noite, a ser aproveitado do outro lado da rua, onde funciona a apropriada lanchonete, bem instalada no porta-malas de um Kadett – os portões se fecham e todo o procedimento precisa ser feito outra vez. Guarda na porta, lista, dedão, assinatura. Muito bem, quem manda completar 20 pontos na carteira! Aprendi, nos cinco dias do cursinho, que um dos veículos precursores do automóvel foi a “literia”. Sim, caro leitor, a vetusta liteira de tantos textos e imagens de antanho virou, na apresentação do esforçado mestre, uma “literia”. 59
Não fosse isso e o fato do professor, talvez Raimundo, ter afirmado que personalidade histriônica era própria de pessoas histéricas, confesso ter relembrado coisas que já havia esquecido desde outras encarnações. Além de haver aprendido outras que em meus tempos de primeira habilitação não faziam parte da grade curricular, digamos assim. Mas aprender nunca é demais, já dizia Eça pela boca do Conselheiro Acácio, no tempo das “literias”. Ainda mais que este ano se comemora os 100 anos de criação da UFPR. Gancho instalado, passo a demonstrar minha perplexidade pelo que leio em coluna de um dos nossos diários. Escreveu lá o colunista que determinada foto era o tempo da ereção do prédio histórico da universidade. Teria sido melhor o sujeito ter escrito “construção”, até para evitar a algum engraçadinho sugerir ter sido a centenária argamassa incrementada com propriedades do Viagra – mesmo que tal artifício fosse desconhecido na época. Pois é. Como disse a pobre mulher vinda do interior, quando levada pelo filho a um shopping center, desde logo extasiada com a decoração de Natal que iluminava a fachada do prédio: - Veja, meu filho, o que é a natureza! Isso posto, já me animo a novo gancho, agora para comemorar o fato de haver sobrevivido a mais uma temporada natalina e novo-anina, se me entendem. Por não costumar sair de férias, fiquei preocupado com a possibilidade de estarem de barriga para cima todos os demais habitantes desta nem sempre agradável comuna. Telefono a um amigo meu, pessoa educada, porém inculta, como adiante se comprova. Ao perguntar se poderíamos marcar reunião para o início de janeiro, ele consentiu: - Pode vim quando quiser. A gente nunca fica sem tá aqui. São coisas do humanismo, como também já explico, contando outra história e engatando um terceiro e último gancho. Roberto Pinheiro foi um bom profissional de marketing. Criativo e expansivo, morreu sem realizar o sonho de voltar às grandes empresas em que tinha trabalhado, talvez porque as corporações prefiram pessoas discretas e opacas. 60
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Bob Pine, como era conhecido no hemisfério norte, contava uma história interessante. Ele havia trabalhado com Eron Alves, exvendedor que tinha inventado a galinha dos ovos de ouro. Eron vendia um carnê, que a pessoa pagava durante 12 ou 24 meses. Ao quitar as prestações, o sujeito passava a ter direito ao valor do crédito em roupas, vendidas em lojas do próprio Eron, a Erontex, pelo preço que ela, a empresa, estabelecia. Pinheiro quis saber do criador do método a sua fonte inspiradora. - Eu me baseei no humanismo, explicou candidamente Eron Alves. - Como assim, no humanismo? - É, o humanismo, essa coisa do ser humano sempre querer conquistar mais do que o outro. E que nos preparemos para o carnaval que já passa pela porta da minha Sapucaí. Este ano não será igual àquele que passou, dizia a velha marchinha. Acho que vou sair fantasiado de “literia”. O problema é encontrar quem queira se instalar embaixo do aparato para que eu saracoteie em cima. A escravidão já foi abolida há mais de 120 anos e hoje o humanismo está em voga.
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O Ano em que Morei na Praça
Praça Santos Andrade, 864. Nada de Bruno & Marrone e sua praça sertaneja, era um apartamento de primeiro andar, com janelas de frente para a capela do Colégio Santa Maria. Aquele inverno fez um frio digno da Estação Comandante Ferraz, que ainda não existia e muito menos tinha pegado fogo. Faz tanto tempo que foi antes de outro incêndio, aquele que destruiu o grande auditório do Teatro Guaíra, ali de frente para a Faculdade de Direito. Eu estudava, por assim dizer, na dita faculdade. Acordava dez minutos antes da aula, atravessava a praça e, depois de um cafezinho na cantina, ia direto a Roma, no terceiro andar. Triste rotina. As catilinárias me davam sono, mesmo porque o professor não era lá nenhum Cícero, de tal forma que eu me sentia liberado para cruzar a praça no sentido contrário, ler qualquer coisa, tirar uma soneca ou, apenas, tiritar um pouco mais. Em alguns fins de semana ficava sem falar com ninguém além dos garçons que serviam o prato de canja com que me aquecia durante o almoço ou o pedaço de pizza que matava a fome noturna. O vento que vinha direto da Antártida pegava o passante de frente antes da esquina do Correio. Sempre impliquei com aquele vento, que teimava em subir a João Negrão na contramão. Quando chegava a mesada paterna, em um tempo em que o dinheiro vinha fisicamente, se bem me expresso, era possível combater o frio na quadra abaixo, na Marechal Deodoro ainda de bitola estreita. 62
O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
Existiam ali algumas casas habitadas por moças especialistas em vender certo tipo essencial de calor. Elas também costumavam frequentar o Bar do Renato, ao lado do Guaíra, já na Amintas de Barros. Não soube mais das gêmeas que recepcionavam os enregelados visitantes com um conhaque, que de francês só tinha o preço. Não fossem elas talvez eu tivesse sucumbido como Robert Scott e seus pôneis. Quase sucumbi antes mesmo do inverno, agora lembro. Fui derrubado por uma crise de apendicite uns dias antes do carnaval. Sorte que o cirurgião era meu tio, João Fleury Rocha Jr. Depois de horas tratando de separar as vísceras sãs das nem tanto, deu o caso por resolvido. Fui encaminhado ao repouso do quarto. Pois sim: o tal carnaval se intrometeu entre os meus lamentos. Pior ainda, o sucesso da temporada era aquele do “tanto riso, ó quanta alegria, mais de mil palhaços no salão...”. E um no hospital, Zé Keti esqueceu de cantar. Cheguei a preferir as pontadas agudas da doença do que aquelas que me zumbiam nos ouvidos. Tanto que ainda hoje não consigo ouvir o arlequim chorando pela colombina. Bem sei que se trata de um clássico do nosso cancioneiro, mas aí está outra questão complicada. Cada vez que ouço essa expressão, lembro da Inezita Barroso, com seus duzentos anos de carreira em prol do nosso cancioneiro. Mesmo correndo o risco de ser processado qual um Houaiss, sugiro a hipótese: existe pouca coisa mais chata do que os exemplos acima, entre tudo o que o homem já inventou. Não esquecendo dos monumentos intragáveis que a nossa pródiga humanidade tem sido capaz de parir. Depois voltei para casa, o inverno foi aquilo mesmo e, no fim do ano, desisti em nome dos confortos da casa paterna, então em Recife. O frio pernambucano tem 20 graus e o Cícero que lá ensinava foi condescendente, permitindo minha aprovação em Direito Romano. Tudo isso vem a propósito de já não sei o quê. Quem sabe tenha sido o incêndio na estação da Antártida, o finado carnaval deste ano ou uma dor profunda que anda me atacando o lado direito. Só sei que não posso ouvir falar em “nosso cancioneiro”. 63
Não Vale uma Lantejoula
Houve um tempo em que ocupei a diretoria executiva da Fundação Cultural de Curitiba, na segunda gestão de Jaime Lerner na prefeitura. Entre as incumbências do cargo estava a de gerenciar o carnaval, ainda que a cidade não tivesse grande intimidade com ele. O representante das escolas era conhecido como Afunfa, empresário do ramo da zoologia, como se diz nestes tempos de correção político-ideológica. Já na primeira reunião esclareceu que representava a Liga das Escolas de Samba, nada tinha a ver com a Associação ou com a Federação. Pus-me pasmo. Eram não mais que seis ou sete escolas e já estavam divididas em três facções. Cheguei a achar que o carnaval curitibano era comunista: como se sabe, bastam dois militantes para haver dissidência na esquerda. Fato é que escrevi tempos depois uma crônica satirizando nosso carnaval. O que eu não sabia era que no meio há falta de humor. Fui atacado a umbigadas. Em um seminário no Solar do Barão, algumas baianas de ala me encurralaram a golpes de umbigo: “Não tem carnaval em Curitiba, é? Não tem, é?”. Escapei com alguma munição a mais no arsenal de ironias. O único bem-humorado da tropa era Glauco Souza Lobo, hoje fora dos trâmites foliônicos. Glauco, em um baile, chegou a envergar fantasia de Ernani Buchmann, vestido de preto, grandes olheiras, imensos óculos. Fiquei lisonjeado. Com a publicação do livro Cidades e Chuteiras, em 1987, 64
O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
virei inimigo número um da carnavália, por dizer que os problemas do nosso carnaval começavam na dureza dos quadris e seguiam pelo nome das escolas de samba. A primeira delas chamava-se Não Agite – e que meu falecido amigo Luiz Fernando Arzua, um dos fundadores, não queira me assombrar por isso. É que, imagino, a essência do carnaval está na agitação, não na falta dela. Mas fazia sentido: o jornalista Valério Fabris, ao levar os filhos à Marechal Deodoro, foi impedido de sambar na arquibancada. Um guarda alertou-o para o perigo de tamanha insanidade. Outra famosa escola local foi batizada como Acadêmicos da Sapolândia. É de imaginar que seus componentes fossem batráquios sambantes, rãs e pererecas incluídas. Anos atrás fui com Fernando Ghignone, ex-secretário da Cultura, conferir o, perdoem o exagero, movimento carnavalesco. Chovia. Juro, e já não exagero, que nas arquibancadas, entre a Barão do Rio Branco e a Marechal Floriano, havia um único sujeito, impedido de assistir ao funéreo espetáculo por estar possuído pelo sono dos ébrios. Do outro lado da rua, sob as marquises, abrigavam-se, talvez, cem pessoas. Eis que invade a Deodoro um bloco tido como Vai na Rolha. O carro alegórico era uma Kombi, sobre a qual amarraram o altofalante. De dentro saltaram alguns sujeitos, garrafas na mão, a berrar seu samba-enredo para as friorentas testemunhas encasacadas: “Vai na rolha, o, vai na rolha, a”. Um fenômeno. Nos últimos anos mudaram a parafernália para o Centro Cívico. Lá continua a não significar coisa alguma. Melhor seria promover bailes populares nos bairros – Glauco Souza Lobo realizou alguns, ao assumir na gestão Maurício Fruet o mesmo cargo de diretor executivo da Fundação Cultural de Curitiba. Mas eram bailes na Marechal. Melhor se fossem na periferia, onde está a população que não tem meios de viajar durante o carnaval. A insistência em promover desfiles de escolas de samba traz um único resultado: o de atrapalhar o trânsito. O que se vê nos desfiles é indigência criativa. Nem animação existe, até porque o sistema de 65
som insiste em executar – no sentido de sentenciar – músicas como A Jardineira e Me Dá um Dinheiro Aí, entre outros sucessos do tempo da Tia Ciata. Vejo apenas uma justificativa para que se invista nos nossos mambembes desfiles. O de favorecer a ficção como meio de expressão artística, porque aquilo que é tido como desfile de escola de samba, no sentido curitibano da expressão, não passa disso. Federico Fellini assinaria embaixo.
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O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
O Bloco das Sólidas Cadeiras
Coisa rígida que és, cidade sem molejo. Cintura erigida em prémoldado, nada irá te suavizar. Tuas filhas, polacas ou não sejam, jamais serão baianas. Não vão dançar ivetes, não cantarão morais. Serás para sempre Jardineira, por que estás tão triste? Vais procurar ritmo que não te violente, que samba não te leva às avenidas, seja não por vergonha. Tens lá teus encantos, branca cidade de imensas ancas. Nenhum que exija balanços ou separe fêmur e ilíaco no mesmo movimento, um lá, outro cá. Monumento de concreto, teu carnaval é lápide. Travas luta antiga contra o descadeirar. Tua folia recende a polca, Valsa do Imperador. Marchas a passo de ganso enquanto o país sacode. Melhor tentar outras paradas – militares, por que não? Estarás melhor de dragonas que de peitos de fora. Se a vida te permitir uma só epifania, que seja a consciência. Enfim, reconheça em ti o sepulcro do gingado. Vais parar de fingir, o balanço que não tens, a proibir o malemolear. A eslávia não conhece frevo, nórdica urbe. Teu carnaval é insípido, verdura hidropônica. Violento como periferia alguma será capaz de ser. Marca de neurose, nunca traço de alegria. Tuas escolas de samba traem o ridículo, desde os improváveis nomes. Não Agite – e por isso mesmo ninguém samba. Acadêmicos da Sapolândia, charcófagos do banhado sambador. Unidos na falta 67
de animação, para que ninguém te acuse de concorrer, Rio, Recife, Bahia. Ao teu gélido carnaval falta suor, sal da miscigenação. Sobra grossura, convento enlouquecido de Freiras Decaídas. Teu asfalto molhado é o inferno dos mestres-salas, teus bailes gays, o paraíso de chicoteadores sádicos. Baixa estatura. Altos desvios. A vergonha te cobre nas cinzas da quarta-feira, uns panos servindo ao tardio pudor. Conheces, de carnaval, nada mais que o da televisão. Aquela graça tua rigidez cadavérica não alcança. Só repercutes o surdo sinistro que para sempre te fará desgraçada dançarina.
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No Tempo em que Porco Marchava
Talvez eu andasse exagerando na bebida, mas desconfio da hipótese: sempre fui bêbado lúcido, mesmo que eles não existam. Fato é que um dia, sem anúncio prévio, vejo dois dos grandes talentos com quem trabalhava à época batucando uma – seria inevitável o cacófato se não fosse esta frase entre travessões – marcha deliciosa. Sérgio Mercer e Solda tinham sacado a Marcha do Porco Chovinista. Mercer usou a introdução de outra música composta por ele, a Marcha do Saldo Médio. Naquele tempo, ele e muitos dos seus amigos, eu incluído, vivíamos pendurados em bancos. (De minha parte, prossigo na saga). Era difícil prorrogar os títulos, os gerentes exigiam bom saldo médio na conta. Mercer transformou aquilo em música: “Minha vida não tem remédio/ O gerente quer saldo médio”. Então gritava: “Fui no Banco Itaú/ O gerente me mandou...” e mandava ver na introdução. “Fui no Banco do Brasil/ O gerente me mandou pra...” e dá-lhe o tarará-tarará da abertura. Com a introdução emprestada, compuseram o Porco Chovinista. Eles cantavam o refrão com empolgação de puxador de samba, batendo o punho na mesa. Era muito engraçado. Chico Branco virou parceiro na composição das estrofes da segunda parte. Tinha alguns aspectos, digamos, chulos naquela letra, como o grossérrimo: “Tire os 69
pelos do teu sovaco” ou o preconceituoso “Quando a mulher reclama/ Deve ser falta de cama”. Dei um palpite ou outro na letra, extraídos da versão definitiva como pelo encravado. Minha participação ficou apenas na organização das estrofes, se bem me lembro. Ou seja, a formatação: aqui canta isso, aqui canta aquilo. A Marcha do Porco Chovinista espalhou-se como rastilho. Virou sucesso do Bife Sujo ao Ile de France. É verdade que a época ajudava. Os chauvinistas eram uma espécie de porco expiatório da liberação feminina, se me faço entender. O tema virou sucesso carnavalesco, quando Solda, Dante Mendonça e seus alcoólicos notórios inventaram o Bando do Porco e com ele desfilaram no carnaval. Faz tanto tempo que, na época, o carnaval curitibano ainda estava na terceira idade. O mesmo Solda contou que certa vez encontrou em Maringá um sujeito que cantava a marcha como se fosse composição dele. Nem ao menos pagou um rabo de galo – ou de porco – ao verdadeiro autor, sentado ao lado. Devia ser um daqueles porcos da Revolução dos Bichos, usurpador de obra alheia. Pois está aí o problema. Mesmo tendo feito sucesso, a Marcha do Porco Chovinista jamais rendeu um tostão em direitos autorais. A obra foi gravada, mas não editada. Só nos resta lamentar tamanha miséria. Porca miséria.
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O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
Quando Bob Dylan Virou Samba
Éramos todos malucos, ainda que Sérgio Mercer fosse trabalhar de terno e gravata. Solda bebia e, fumando, já esperava. O hoje procurador de Justiça, Dr. Francisco José Albuquerque de Siqueira Branco, atendia prosaicamente por Chico Branco. Trabalhávamos na P.A.Z., agência de publicidade na esquina da Mateus Leme com Davi Carneiro, duas quadras abaixo da Praça do Gaúcho. Por ali perambulávamos, gazeando serviço, preparando o organismo para o início dos trabalhos alcoólicos, ao fim das tardes. Pois foi em uma tarde daquelas que descobrimos, em frente ao cemitério, o antigo Bar América saindo de cena. Em seu lugar entrava o Rei do Siri, dirigido por um catarina que imaginamos boa praça, até porque era na própria que tratava de estabelecer seu boteco. O tal Catarina depois se revelou um sujeito intratável, de tal forma que seu nome foi esquecido no sexagésimo terceiro escaninho dos fatos inúteis. Ficou a lembrança da sua frase preferida, “Deixa pro beque”. Quem melhor nos tratava era uma moça de bons propósitos, a Lurdes. Passamos a divulgar o Rei do Siri a bandeiras desbragadas – ou seriam as bandeiras despregadas e seríamos nós os desbragados? O fato é que, a cada noite, a mesa comandada por Sérgio Mercer aumentava de tamanho. Ele, Solda e Chico Branco haviam composto uma paródia deliciosa de Garufa, o Siri Tango, que era o must da noite, na 71
impagável interpretação do próprio Sérgio Mercer, acompanhado de seu bandoneón imaginário. Até que a coisa excedeu. Na mesma mesa, certa quarta-feira, estavam, pasmem, todos – além de nosotros anfitriões – Jaime Lerner, Dalton Trevisan, Paulo Leminski e Alice Ruiz, Nireu Teixeira, Caio Soares, Dante Mendonça, Tataio Bettega, Rogério Dias, Miran, Dico e Raquel Kremer, Carlos Eduardo Zimmermann e duas figuras da vida carioca: o gaúcho José Monserrat Filho, jornalista e advogado, naquela época defendendo-se em uma agência de publicidade, e Pedro Galvão, paraense, diretor de criação da LM Propaganda. Ambos estavam em Curitiba para um evento de criação publicitária. Não lembro como aquilo terminou. Sei que, dia seguinte, a cabeça repuxando para a Namíbia, garganta seca, estômago revirado, tivemos que encarar a hora do almoço para terminar uma campanha que tínhamos deixado para a última hora. Foi quando alguém lembrou que um dos presentes parecia não ter gostado da noitada. Havia até mesmo reclamado que não gostava de tango, preferia Bob Dylan. Ora, Bob Dylan em mesa de boteco? Pois é, assim saiu o Samba do Bob Dylan: Encontrei o Bob Dylan No Bar Rei do Siri Comendo uma casquinha Tomando Bacardi Cheguei e perguntei Alô, my boy, você aqui? Yes, me respondeu “Gente boa”, estou aí. Pegou sua guitarra E pôs-se a cantar Like a Rolling Stone Pirelli e Firestone If Not For You 72
O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
Gente boa eu vou chegar Farewell, deixa pro beque Amanhã I shall come back No dia seguinte O Bob apareceu Com seu amigo Dico, O Leminski e um judeu Disse “Lurdes, venha cá” Doze Brahmas vou tomar E a conta da patota Você dá pro Monserrat Raquel muito agitada Previa confusão Rogério deu no Dante Tremendo bofetão Bateu a dona justa E levou Pedro Galvão Que gritava Bob Dylan Veja só que situação. (breque) Eu cheguei de avião E vou voltar de camburão.
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O Ser que me Habita
Os bons bebedores têm levado vantagem cá neste espaço. Dante Mendonça e Toninho Vaz costumam fazer mais barulho que os abstêmios Solda e Rogério Dias – talvez porque um dos efeitos da bebida seja mesmo o tom exagerado, acima do padrão corriqueiro de decibéis. Tentarei empatar o jogo. Solda não bebe há algumas décadas, acho que duas. Há muitos anos, antes ainda dos cabelos brancos e da proeminência abdominal, consultou um hepatologista. Depois me sussurrou: “Ainda temos uns 20 anos”. Não usou o período oferecido, parou logo depois da consulta. Pouco antes ou depois do Rogério Dias, sei lá. O fato é que os dois são os únicos remanescentes vivos da trupe Sequelas do Alcoolismo, cujo componente mais dedicado era Paulo Leminski, que não sei se morreu do álcool ou da sequela. Wilson Bueno dizia ter parado de beber porque o álcool consome a alma da pessoa. A frase é ótima, com o timbre próprio do mestre que foi, mas tanto exagerada. Dante e Toninho, os dois porta-vozes das delícias alcoólicas do pedaço, não me parecem sujeitos sem alma. Ambos seguem mostrando seu talento – e talento não é a própria vivacidade da alma? São fiéis seguidores dos ensinamentos do guru Jaguar, espécie de deus da pilequice nacional. Dante é autor, inclusive, do livro 74
O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
O Botecário, bíblia dos frequentadores desses antros do delírio, e já às vésperas da 2a edição. Toninho Vaz, naturalizado carioca, talvez por isso não deixe passar semana sem cantar os prazeres dos bares de lá. Tempos atrás li uma declaração de Domingos Pellegrini na qual ele confessa ter perdido 12 quilos ao parar de beber. Carregava no corpo quilos, e litros, de substâncias depositadas pelo álcool. Malte, lúpulo, fermento, resquícios de cana, uva e, se apreciasse destilados exóticos, milho, arroz, cereais diversos. Não sei quantos quilos perdi desde que deixei de beber, se é que perdi algum. Usei quase todos aqueles anos prescritos em teoria pelo hepatologista do Solda. Até o dia em que, apesar de tratar a bebida com todos os rapapés, notei que ela andava me tratando mal. Dores, mal-estares, incômodos, ela não hesitava em me provocar. Chegamos, assim, a um acordo. Ela seguiu sua vida nas prateleiras, taças e copos que aprecia. Agressivo como os ex-bebedores, passei ao consumo imoderado de águas gasosas e refrigerantes também. Bebi por um tempo que posso calcular em 40 anos. Quatro décadas de convivência alcoólica, nem sempre bebendo cerveja. Essa foi minha companheira, digamos, por 35 anos. Então, aos cálculos. Nos últimos tempos eu tomava três latas por dia, não mais. Digamos que tenha sido essa a medida média ingerida durante 35 anos de dedicação. Vezes 365 dias por ano, fora os bissextos. Pasmemos: o total chega a quase 40 mil latas. Quantas cervejas cabem num caminhão desses cheios de engradados, meu ébrio amigo? Não deve ser tanto. Mas a cerveja não foi minha única paixão fermentada. O vinho teve espaço no generoso fígado que me habita. Bebi em média quatro garrafas por semana, talvez cinco, durante aqueles anos em que abdiquei da cerveja, além de muitas outras noites em que meu saber interno exigia. Concluo que, se a mesquinharia tivesse vencido a sede, hoje eu seria dono de uma adega de quatro mil garrafas. Faria inveja a um Barão de Rothchild, quem sabe. Meu avô foi cultor da boa cachaça nacional, hábito que passou ao seu neto mais velho, o sóbrio autor destas linhas. Não se trata de 75
pinga, coisa diferente da pura cachaça envelhecida. É incomparável seu valor, como bem sabem os brasileiros, a começar por nosso mandatário. Então, vamos supor que eu tenha consumido, a pretexto de abrir os trabalhos, uma garrafa de boa cachaça por semana, 52 por ano. Quase duas mil ampolas ao longo dos 35 anos em que encarei, depois, algumas cervejas. Eis aí, portanto, a avaliação do ingerido, a partir do dia em que parei de beber whisky, hábito que apreciei por quase 10 anos. Vou evitar o balanço do líquido escocês, porque depois da quinta dose sempre me atrapalhei com cálculos envolvendo milhares. Tudo isso sem jamais beber antes do anoitecer, em dias de semana. Encerrado o ciclo, portanto. Entre ganhos e perdas, acho que a guerra terminou empatada. O álcool venceu algumas batalhas, infringindo diversos vexames ao oponente, como os tombos, as quebras de copos e garrafas, as discussões bizantinas, as dores de cabeça, as ressacas morais, vergonhas que jamais esquecerei. Na conta das minhas vitórias, arrolo a maior de todas. A sobrevivência. Não sei se voltaremos a nos encontrar. Saí do relacionamento sem mágoas, afogadas que foram todas. Por enquanto, entrego aos milhões de pinguços nacionais a sede que já me assolou e que, como dizia o grande Luiz Fernando Arzua, nos fazia diferentes dos mortais comuns. Enquanto eles bebem uma dose, nós sempre pretendemos beber o estoque.
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O HOMEM COM DOIS LADOS ESQUERDOS
Micose no Blues
Até hoje não descobri se ao boêmio é melhor a fidelidade extrema a um bar ou se a solução está em prevaricar a cada dia em boteco diferente. Não sei nem me interessa saber, posto que jamais fui fiel a bar algum. Entrava e saía de tantos quantos a sede exigisse, fosse qual fosse o adiantado da hora. Falar nisso: também não sou capaz de atinar com a palavra adiantado da expressão acima, considerando que um boêmio está sempre atrasado. Fica assim estabelecido que éramos infiéis contumazes, trocando de bar como trocávamos de meias. Falar em meias: o Leminski chegava a trocar ambas ao mesmo tempo, saindo de casa com uma amarela e outra vermelha, achando tão normal quanto um Raul Seixas. Pena a Lina Faria não ter fotografado. Entre um bar e outro, incorporavam-se outros tantos à maratona. É que bares têm manias, como se velhos fossem. Fecham em horas inoportunas, os tira-gostos nem sempre estão a gosto. Falar nessas coisas: um dia sou chamado ao Geraes, botequim mineiro que não vingou na esquina da Rua do Rio com a Visconde do Rio Branco. Antes de sentar pergunto ao chefe da mesa como vai tudo. O chefe era Nireu Teixeira. Vai mal, disse ele. A cerveja que devia estar gelada, vem quente. O torresmo que deveria vir quente, eles servem gelado. Não se fazem mais bares como antes, suspirou. 77
Então uma noite estávamos no Bar do Queixo, adrede conhecido como Botafogo. Mesa grande, aquela quantidade enervante de homens. E uma mulher, Cleide Werner, namorada do João Alfredo, economista do IPPUC. A Cleide é de Blumenau, veraneava em Camboriú. Todo fim de semana, João Alfredo embarcava em um Catarinense para ver a namorada. Algumas vezes o velho Werner deixava a menina subir a serra. Seus cuidados eram justificados. A Cleide tinha 17 anos, parecia ter 14. Seu namorado já era homem feito, cheio de malícias, se me faço entender. E de micoses. Foi o que ficamos sabendo aquela noite, quando, sabe-se lá por quais razões, a Cleide contou que João Alfredo gostava de ir à praia colocar suas micoses ao sol. Inconfidência catarina, mal que ataca as pessoas lá nascidas, eis que a senhora minha mãe também de lá é procedente. Conheço, pois, tais pecadilhos. Sérgio Mercer trocou meio olhar com o Solda e ambos acertaram a perdiz ao mesmo tempo. Mercer levantou sacudindo a barriga para emendar uma versão de Because of You. A letra era minimalista: “Micose of You/ Blue me now/ Cambor he you”. Mas o que ele fez com essas nove palavras (cinco, em português), os scats que foi capaz de mandar ver, qual uma Aretha Franklin, uma Billie Holliday, só quem estava lá pôde se deliciar. Falar em instrumentos tocados pelo Mercer: ele criou dois, os quais, por isso mesmo, tocava como ninguém. O bandoneón imaginário e o trompete vocal. O bandoneón era escravizado sobre a coxa, na qual depositava um lenço, por supuesto. O trompete era tocado com o canto da boca, o dedão direito sobre o lábio inferior, os dedos abertos à frente, mindinho direito grudado ao dedão esquerdo. A execução de Micose of You durou quase dez minutos. Mercer e seu trompete, dignos do Satchmo, jamais foram ouvidos de novo. Felizmente, jamais olvidados. João Alfredo foi imortalizado. Ninguém sabe se o sol de Camboriú ajudou a curar suas micoses. A Cleide casou com ele mesmo 78
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assim. Melhor: ainda estĂŁo casados. TĂŞm dois filhos, a Ana e o Bernardo, sobre os quais nĂŁo consta terem herdado os fungos do pai.
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Dos Perigos da Exumação de Textos e suas Nauseabundas Emanações
A aluna de faculdade desejava fazer em seu trabalho de conclusão de curso algumas análises de textos meus que jazem por aí, em velhas estantes ou em bibliotecas pouco frequentadas. Ela soube, sei lá por quais fontes duvidosas, das andanças que minhas crônicas fizeram nos últimos 30 anos Longe de ficar lisonjeado, fiquei temeroso. As crônicas que talvez valessem a pena foram aproveitadas em livro. As demais, que descansassem em paz. Tratei de desencorajar a menina, mas resolvi gastar algum tempo na Biblioteca Pública, a conferir os despojos. Nada encontrei que fosse publicável. De interessante, só o caminho percorrido, desde a revista Panorama até a série sobre o futebol paranaense, produzida com Carneiro Neto e Vinicius Coelho, em 2004. E velhas lembranças. Em 1986, o Correio de Notícias, gestão Cícero Cattani, pulsava febril. Estava todo mundo lá, de Mussa José de Assis ao fotógrafo Júlio Covello. A campanha política ao governo e ao Senado davam o tom do noticiário, com o Correio servindo de linha auxiliar à campanha de Alvaro Dias, José Richa e Affonso Camargo. Alvaro e Richa navegavam nas pesquisas, enquanto Affonso via seu opositor, Enéas Faria, aproximar-se. O grande líder nacional era Ulysses Guimarães, avalista do Plano Cruzado e dono de toda credibilidade possível. 80
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Na campanha de Affonso haviam sobrado duas pessoas: Luiz Cláudio Romanelli e eu. Pior: aquela noite seria realizado o último comício da campanha, na Boca Maldita. Em tempos de nenhum controle ou regulamentação sobre os programas políticos, os vídeos eram entregues duas horas antes de irem ao ar. E não tínhamos nenhuma ideia do que produzir, enquanto líamos os jornais do dia. Então Romanelli teve um estalo. “Que tal publicarmos uma carta do Ulysses ao Affonso, lembrando os tempos em que os dois tocavam sozinhos o PMDB?”, perguntou ele. Vislumbrei ali um veio interessante. Coloquei o papel no cilindro da máquina e comecei: “Meu caro Affonso. Lembro-me de quando enfrentávamos juntos os cães da ditadura...” Parei. Aquilo era referência ao ataque que Ulysses havia sofrido na Bahia, acuado pelos cachorros incitados por soldados da Polícia Militar. Só que havia um problema. Li a frase inicial em voz alta. - Romanelli, isso não vai dar. Naquele tempo, Affonso estava do lado dos cães. Ele pensou um pouco e não deixou barato. - Mas agora está latindo do lado de cá. Continue. Escrevi uma carta emocionada, gravada pouco depois pela voz do locutor Paulo Roberto. Ficou ótimo. Corremos ao Correio de Notícias, atrás das imagens. E editamos o programa com todo o cinismo de que poderíamos ser capazes. Aquela noite, não subi ao palanque. Fiquei embaixo, na calçada, vendo a movimentação em torno do aparelho de TV colocado no fundo do tablado. Todos estavam ali, ninguém sabia o que iria ao ar. Ao término do seu programa, Affonso foi cumprimentado por todos – Alvaro, Richa, candidatos a deputado. Ao me ver, pediu a carta, da qual ele não tinha conhecimento. Gritei que estava com o Romanelli, já ia chegar. Affonso queria ler a mensagem em seu discurso. Não recebeu a carta, porque se visse o papel jornal na qual fora 81
escrita, saberia que era mentirosa. Meses depois, fui visitá-lo no Senado. Recebeu-me com toda a educação – Affonso foi uma das pessoas mais educadas, puras e decentes que a política brasileira já conheceu. À saída, lembrou de me pedir que lhe enviasse o original da carta, para que a lesse na tribuna e, assim, fosse arquivada nos anais do Senado. Fiquei de pedir a Luiz Cláudio Romanelli. E nunca mais se falou nisso. Foi o que me veio à mente aquela manhã na Biblioteca. Liguei para a moça da faculdade, abri mão da homenagem. De fato, o chorume emanado desses textos antigos pode ser insuportável.
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As Proezas Nunca Narradas do Glorioso Gotham City
Lembro-me ter sido convocado a uma reunião. O responsável foi, como sempre tinha sido e continuou sendo vida afora, Marcos Villanova, o Villa. O assunto versava sobre a composição de um time de futebol de salão, a ser composto por Chico Branco e Simão Pedro na zaga, João Alfredo Gonçalves na armação e ele, Villa, no ataque. Ocorria faltar um goleiro, função para a qual haviam pensado me convidar. Também não havia reservas – talvez houvesse, um zagueiro, se bem lembro, mas ele falhava muito, em todos os sentidos. Nosso banco era, portanto, um deserto. O nome do time, verdadeiro terror futuro do futebol de salão curitibano, seria Gotham City. Assim, as camisetas teriam o vermelho como única cor. Pensei que a cor poderia ser preta, já que o nome fazia referência ao Batman, mas fui aconselhado a desistir da empreitada. A cor vermelha tinha por motivo o sangue que deitaríamos nas camisetas. Pelo menos não seria homenagem às bermudas para lá de suspeitas usadas pelo Robin, o que já era um avanço. O primeiro problema a resolver, posto que aceitei a incumbência, foi prover o goleiro de uniforme apropriado. Não havia camisa vermelha de mangas compridas. Chico Branco, assaz gentil, ofereceu-me a camiseta adequada, cuja usava como pijama, no inverno. Movidos pela esperança de que aquele ano não fizesse muito frio ou que sua mãe providenciasse outra indumentária invernal para 83
o filho, pusemo-nos a campo. À quadra, digo melhor. Quadra dura. Foram embates terríveis, encarniçados e sanguinolentos, os que travamos. No chão inóspito – parece-me que era concreto – do Centro Israelita impusemos derrota inesquecível aos hebraicos, única derrota sofrida por Israel no período compreendido entre as guerras dos Seis Dias e do Yon Kippur. O time deles trazia craques do porte de Marcelo Jugend, Nathan Kulish, Mendel Knopfholz e mais um exército arregimentado em todos os kibutzin existentes ao sul do Equador. Tendo em vista a deficiência no item kibutz do lado de baixo do Equador, convocaram jogadores da banda de cima, também. A vitória se deu por placar folgado, de forma a não deixar dúvidas. Nosso banco de reservas, deserto como sempre, não precisou entrar em ação, mesmo porque estava desabitado como o Saara. O jogo, que passou à História como a Batalha dos Desertos, deixou em mim diversas cicatrizes nos joelhos. Os dois times terminaram em piores condições. Algumas semanas depois, nosso atacante-empresário, responsável pelo calendário de jogos, conseguiu agendar jogo contra o time que todos temíamos, o Lacoste. Ao contrário do nosso esquadrão, legítimo representante da classe média curitibana, o Lacoste era time de ricos. Todos tinham automóveis, enquanto nós preferíamos o transporte público, às vezes substituído por prosaica carona. O Lacoste e seus playboys tinham por uniforme, lógico, camisas Lacoste, de qualquer cor. Eles podiam entrar em quadra com cinco cores diferentes, estava valendo. Uma inovação, a qual a Fifa jamais considerou. Deveria: o futebol ficaria parecido com um desfile de carnaval, os costureiros enlouquecidos de prazer. Para nós, uma camisa daquelas equivalia a um ano inteiro de salário do respectivo pai. O Lacoste tinha como goleiro o grande Galocha, campeão pelo Curitibano sei lá quantas vezes. Na zaga jogava Sedu Branco, espécie de Guiñazu daquele tempo. Na frente, os diabólicos gêmeos Dalton e Ronaldo Silva. Nossas desvantagens eram todas. O jogo seria realizado na Socie84
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dade Hípica, reduto deles. Em quadra de areia, piso para o qual não estávamos adaptados. Embaixo das traves, trabalhei como um mouro, no primeiro tempo. No segundo, como dois mouros. Defendi até pensamento dos almofadinhas, exceção feita aos dois gols que não pude evitar. Assim terminou, depois de umas oito horas de luta – é o que minha memória teima em garantir – aquele jogo, tido na História como a Batalha dos Desertos II – Guerra na Areia. O que ainda me emociona, e confesso chegar às lágrimas ao contar tal epopeia, foi a atitude dos gothanianos. Ao fim do combate, o time, em caravana – sim, estávamos no deserto – veio em minha direção. Abraçaram-me, agradecidos. O nosso capitão, declarou, então, que eu fazia jus a um moto-rádio moral. O moto-rádio, prêmio oferecido durante tantas décadas ao melhor em campo, naquele era meu. Não pedi nem um vale, mero papel que comprovasse a homenagem. Pouco importava: aquele prêmio imaginário foi o maior troféu que já me permiti receber.
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Sociedade dos Amigos Idos
O Turco
Um pândego, poucas pessoas tiveram o talento daquele turco sem-vergonha. Sem-vergonha? Acho pouco, tratarei de piorar: cretino, safado. Um dos mais céticos, mais engraçados, mestre para imitar, craque na arte de juntar palavras, Jamil Snege foi uma perda desgraçada. Jamais fomos apresentados. No início dos anos 70, em frente ao café instalado no térreo do Palácio Avenida, depois que ali havia falecido um dos melhores bares da boemia curitibana, reunia-se um grupo de, que vá, intelectuais. Tinha de tudo, falando mal de todos os governos então vigentes. Melhor ainda, fazendo grandes comédias daqueles governos. Jamil já era autor reconhecido, Tempo Sujo tinha sido bem comentado. Já havia também a barba bem cuidada, aquelas unhas agressivas. E o humor implacável. Rindo, ficamos amigos. Lembro-me de uma noite, já em frente ao café na quina da Galeria Tijucas com a Boca Maldita, em que ele resolveu imitar Liberalino Estevão, poeta simplório que vivia de suas Populiras, quadrinhas diárias publicadas em jornal. Rolamos de rir com o show, tanto quanto na madrugada em que encarnou o livreiro, comunista e filósofo de plantão Aristides Vinholes. O encarnado era uma espécie de, ao mesmo tempo, ídolo e vítima de todos nós, com sua voz baritonal, suas manias, as citações recorrentes. 89
Jamil tirava aquelas imitações de seu armazém mental de secos e molhados. Estocava tudo para oferecer depois, com uma capacidade para caricaturar como poucas vezes vi em humoristas profissionais. Aos meados dos anos 1970 incomodou-se com a publicidade. Não encontrava satisfação no que fazia, resolveu jogar tudo para o alto. Abriu a loja Cordel, para viver o sonho de todos nós. Uma loja em que vendia gaiolas sem passarinhos, tapetes persas nos quais voaríamos ao lado de personagens da literatura. A Cordel vendia sonhos, então em falta, conforme John Lennon. Melhor teria feito se vendesse os cuques que o cartunista Solda, seu ex-redator na P.A.Z., alegava ainda manter em estoque. Não podia dar certo, deu no que imaginamos. Se era turco, mais ainda era italiano, herança da mãe. Administrava com o coração, como os negócios não permitem que se administre. Falido, aceitou convite para tornar à publicidade. Então reencontrou a alegria. Voltou a editar – por essa época saiu Ficção Onívora –, criou grandes temas publicitários. Trabalhávamos na mesma sala, ele, Bira Menezes, César Marchesini, Oscar Visser e eu. Oscar cheirava azedo, Jamil o chamava de arenque. Implacável, ajoelhava imitando uma foca a pedir seu peixinho. Agora já era de matar de rir, não só rolar. Foi quando me apelidou de Nana. Até o fim, volta e meia, vinha com o apelido infame. Uma amiga minha, ex-namorada que trabalhou com ele, sempre achou que aquela era mesmo a maneira pela qual meus amigos me chamavam. Mandei ligar para o Turco para desmentir. O safado confirmou. Enveredou pela comunicação política e se deu bem. Inventou grandes personagens, mas não mereceu retumbantes vitórias majoritárias, com a exceção daquela que levou José Richa ao Iguaçu. Ele que merecia ter levado um candidato à presidência da República, deu-se por satisfeito ao criar, para o mesmo governo estadual, o poema O Meu Paraná Eu Traço, peça maior de louvor ao estado em que nasceu. Houve poucos capazes de tanta generosidade com o texto alheio. Quando Paulo Leminski lançou o Catatau, foi dele, no Diário do 90
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Paraná, página inteira, a primeira resenha. Toda favorável. Leminski não imaginava isso. Turco e Polaco eram rivais, não só em literatura. Sua penúltima crônica tratava dos livros de suas meninas, três jovens já passadas dos 70 a quem ele vinha dando guarida literária. Escreveu que as obras poderiam se situar na ampla sombrinha da crônica. Mas, definiu, tal conceituação não seria possível, porque crônica era o que escrevia fulano etc. e tal. O fulano etc. era eu, o livro era o tal Onde me Doem os Ossos. Durante o tempo em que sofreu aquele maldito câncer, liguei diversas vezes para o Turco. Não quis visitá-lo, porque ele mesmo não incentivava visitas. Conversamos, rimos um pouco, não passamos do trivial. Então veio o dia fatídico. Eu estive lá, entre os que foram sofrer a sua saudade. Achei que iria suportar bem os trâmites dolorosos. Quase consegui. Antes de baixarem o caixão, José Maria Pizarro sacou de sua voz de Repórter Esso para ler o último verso do poema Senhor, obra-prima do velho sátiro: Já inspecionei a proa, Amarrei a carga, Desatei a vela. O vento sopra forte e Enfuna meu coração De alegria. Agora é contigo, Senhor. Toma o leme e risca O rumo do meu barco – Não penses que irei por Este mar sozinho. Já choraste a morte de um amigo, senhor? Lamento dizer, não irás chorar nenhuma como chorei a morte do Turco. Culpa dele. Jamais um homem será capaz de escrever versos capazes de emocionar tanto o próprio enterro. Artes de Jamil Antônio Snege. Engraçado, implacável, para sempre chorado. 91
Mercer e seus Outros
Muitos anos depois de eu ter deixado a Fundação Cultural de Curitiba ele veio me pedir desculpas, alegando ter me dado muito trabalho na época. Não me lembro se reagi com uma grosseria ou um “deixa pra lá”, mas não posso deixar de lembrar que ele me deu, sim, trabalho. Não só aquele trabalho de diretor-executivo da FCC, muitos pelos 20 anos nos quais convivemos. Apresentou-me uma legião de amigos, um número jamais aferido de bares e restaurantes e um bom humor sem igual. Mercer era um sujeito diferenciado. Eu não havia, até então, conhecido um redator publicitário de terno e gravata, de resto traje incomum aos criativos. Pois ele envergava o seu para cumprir também o expediente no Tribunal de Justiça. Trabalhava em dois, três lugares ao mesmo tempo, ainda que se sentisse à vontade, mesmo, nas mesas de bar. Dentro dele habitava um artista argentino que só se manifestava na passagem do sétimo para o oitavo whisky – que ele bebia em copo alto, com água gasosa e muito gelo. O argentino não acordava antes do sétimo, jamais depois do oitavo. Surgia sempre com o cumprimento tradicional: Señoras y señores, muy buenas noches. A partir dali, nem Dios seria capaz de imaginar o que viria. Um ventríloquo falando portunhol, um dançarino de tango, um compositor munido de seu bandoneón imaginário, tudo poderia ser possível. A noite só terminava ao enésimo chamado da Maria Helena ou de 92
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algum impertinente como eu, tratando de levá-lo para casa. Não sem protestos. Mais de uma vez gastou saliva xingando gerações anteriores da minha família, até que eu o sentasse num sofá da sua própria casa. Para ir embora era obrigado a levar a chave, caso contrário ele fugiria. Passou abstêmio os últimos 15 anos de vida. Tinha consciência da impossibilidade de convivência com o artista argentino. Preferiu deixá-lo em hibernação a correr o risco de saber no dia seguinte, pelos outros, as artes inventadas na noite anterior pelo rebelde personagem. Criou, ao longo da vida, uma série de campanhas, temas, símbolos de alto nível. O Coração Curitibano, para as campanhas de Jaime Lerner, e o Lixo que não é Lixo, para a prefeitura de Curitiba, são duas das mais marcantes. Sob a pele do Barão de Tibagy escreveu deliciosas crônicas sobre bares, restaurantes e os prazeres da mesa. Compôs músicas e sátiras de todo o tipo. Era mestre em pegar assuntos da moda e transformar em refrão musical, como fez quando surgiram as palavras mordomia e, anos depois, maracutaia. Foi um gênio da arte picaresca, mestre no texto e na esgrima verbal. Uma pessoa adorável. Horas antes do derrame que o matou, conversamos pelo telefone. Deixamos marcado para a semana seguinte um jantar no restaurante Camponesa do Minho. Na data estabelecida, fui lá jantar com a Tânia. Ele tinha sido enterrado horas antes. Depois escrevi uma crônica, Mercer não Foi ao Jantar. Ontem procurei a crônica para que fosse publicada nessa homenagem que se fará a ele dez anos depois. Não encontrei. Sumiu em algum escaninho, talvez excluída de um arquivo qualquer de computador. Pouco se me dá, escrevi esta. Perder uma crônica não é nada para quem perdeu um amigo como Sérgio Mercer.
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O Cachorro Louco
Paulo Leminski conheci muitos. Fui aluno do professor, colega do publicitário, patrão do poeta doente. Amigos mais de 20 anos. Da lira dos próprios ao impróprio caixão. Posso escrever sobre o rapaz com fama de gênio, capaz de resumir em uma aula a matéria do ano inteiro para o vestibular. Ou sobre o compositor travestido de cantor, a esganiçar maltratando o violão com tamanha fúria que fez quebrar, felizmente, a cadeira do canto em decapê da casa de minha mãe. Também do autor a andar pela casa das Mercês teorizando aos berros, enquanto Alice, sentada no chão, tratava de cortar os rolos com o texto já composto do Catatau para montar as pranchas, de modo que, assim, pudéssemos revisá-lo – tarefa que jamais chegou a ser realizada, se posso dar crédito às lembranças que me restam da época, para sempre envolta nos eflúvios que dali emanavam. Talvez conte a visita que a família Leminski nos fez na casa de praia, dois dias inteiros de churrasco, cachaça e cigarros. Eu queimando os industrializados, tantos que jamais voltei a pitar cigarros de qualquer espécie, ele fumando também os artesanais, como desde sempre. Falaria do pai que se negava a ver a doença do filho, ocupado demais estava, ou do sujeito que costumava furtar livros da biblioteca dos amigos, como levou da minha um raro exemplar – comprado no mercado das pulgas de Paris – de Júlio César, de Shakespeare, tradução francesa de André Gide. 94
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Conto, afinal, sua última molecagem. Depois de Jaime Lechinki e eu comprarmos o caixão, ele, inchado, não coube. Pedro Franco fez-me companhia na volta à funerária, viagem macabra para a troca por um ataúde de dimensões extremas, não fosse seu futuro ocupante um sujeito assim mesmo. Meu acesso compulsivo de choro ao ver Paulinho Teixeira do Blindagem puxar, à beira do túmulo, aquela interpretação maravilhosa de Valeu, foi emoção, homenagem, saudade e expiação – por não ter sido com ele mais rigoroso, relevando mentiras evidentes: “Agora só bebo uma ou outra cervejinha”. Saudades do PauLeminski cachorro louco, do Paulo pauleira, polaco provocador irresistível, de quem me restaram alguns exemplares de seus livros, relidos sempre, a imaginar o riso irônico que a tudo dedicava, com que talvez ainda nos veja. (Publicado na biografia de Paulo Leminski, O Bandido que Sabia Latim, de Toninho Vaz)
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Poty e os Caminhões
Ele veio chegando, sandálias de franciscano, rosto redondo de eslavo que não era, antes italiano com nome de imperador. Notei os pés inchados, bolachudos. Poty parecia sofrer de gota. Havia concordado em fazer uma visita à fábrica de caminhões da Volvo, para quem tinha ilustrado uns anúncios. Os textos eram meus, pequenas histórias no formato de uma página de Veja, a compor a campanha institucional da marca naquele ano. Era a segunda vez que eu procurava o artista. A primeira tinha sido alguns anos antes, quando resolvi fazer um anúncio saudando Curitiba para uma caderneta de poupança gaúcha prestes a se instalar aqui. Sérgio Mercer encarregou-se de convencer Dalton Trevisan, em troca de bom dinheiro, a ceder os direitos de sua crônica Em Busca de Curitiba Perdida. Para ilustrá-la, escolhemos um ou outro desenho do livro Curitiba de Nós, textos de Valêncio Xavier com ilustrações de Poty. Para os anúncios dos caminhões, mandei os textos pelo correio para o Rio de Janeiro, cidade em que vivia Poty. Seriam quatro anúncios, ele devolveu uma dúzia de ilustrações. Eram lindas, difíceis de selecionar – o espaço não permitia mais de uma. Os anúncios começaram a ser publicados e elogiados. As crônicas eram um tanto sentimentalóides, sobre um garoto que tinha o hábito de sentar em uma curva de estrada para adivinhar pelo ronco de cada motor a marca do caminhão. Na época já não se criavam 96
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anúncios com textos grandes, institucionais contando uma história, como havia sido comum nos anos 60 e 70. Apanhei Poty na casa de seu irmão João Lazarotto e seguimos para a fábrica. Ao subir a Brigadeiro Franco, ele quis parar na Praça 29 de Março, onde havia produzido um painel de concreto do qual gostava muito. Falamos sobre o campo do Poty F. C., curiosa coincidência, que ficava ali até o time ser expulso para a construção da praça. A região era chamada de Galícia, não sei se influência espanhola ou polonesa, eis que ambos os países têm a sua. Poty examinou cada detalhe da praça até se certificar de que o bar que havia na esquina ainda estava lá. Então, arrastando suas sandálias – ele andava assim, quase sem levantar os pés do chão – convidou-me para um trago. Em pé, no balcão, pediu uma vodca. Estávamos no meio da manhã, precisávamos visitar uma fábrica, participar de um almoço, mas para ele já era hora de iniciar os trabalhos. Aquele dia, até eu levá-lo de volta, não bebeu mais. Fiquei sem vê-lo mais de dez anos. Quando ele já estava vivendo outra vez em Curitiba, fui visitá-lo, procurando contratá-lo para fazer um painel em nanquim sobre papel para a Máster, agência da qual eu era sócio. Poty criou outra daquelas suas obras-primas, incluindo cenas do Circo Sarrasani, do pescador de bacalhau do anúncio de Emulsão de Scott, do Buraco do Tatu e da Antisardina, o segredo da beleza feminina, entre outras. Talvez seja o menos conhecido dos seus painéis e um dos poucos a adornar ambientes fechados ao público em geral. Anos depois da morte do artista, a Imprensa Oficial, sob a direção de Miguel Sanches Neto, publicou um álbum com dezenas dos seus desenhos em pranchas. Quando recebi meu exemplar, encontrei lá diversos desenhos da série dos caminhões. Eram reproduções dos originais não utilizados na campanha, que eu havia lhe devolvido na manhã em que visitamos a fábrica. Selecionei algumas das reproduções, mandei emoldurar, a Tânia pendurou na nossa sala. Napoleón Potyguara Lazarotto era um sujeito tão desprendido, tão generoso, que tratou de mandar presentes quase cinco anos depois 97
de morto, como se aqueles desenhos não pertencessem a ele, mas a quem os havia encomendado. Jamais vi alguém tão parecido com São Francisco, a começar pelas sandálias. Não por acaso, São Francisco é o personagem central do mural em aluzejos que ornamenta o jazigo da família no Cemitério da Água Verde, onde Poty foi enterrado ao cair da tarde de um dia mal humorado do longínquo ano de 1998.
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Mestre Nireu
Nireu foi meu amigo de infância nos últimos 30 anos das suas andanças, se não me escapa a exatidão. Devemos nossa mútua apresentação a instâncias de Sérgio Mercer, que jurava sermos, os três, produtos da mesma laia. Tão certo estava ele que terminamos aquela mesma noite na minha casa, sorvendo lá o penúltimo copo em homenagem a nossa antiquíssima amizade. No primeiro dos dois volumes do Espeto Corrido, o indefectível Mercer – sempre ele, dedicando tempo integral a aproximar amigos – deu-me a incumbência de escrever um dos prefácios. No plural, porque Nireu não é homem de sujeitar-se a um só – naquele livro foram três, pelo menos. Eis que tratei o homenageado como múltiplo, posto não haver adjetivo melhor para um sujeito pluritalentoso como ele. Inúmeras são as versões existentes sobre o talento e as facetas que ele assumia quando incorporado a uma mesa de bar. Era capaz de segurar horas a fio um bom papo em qualquer estabelecimento decente que servisse gelado o que assim devia ser servido, quente o que quente deveria estar. A propósito, certa tarde cheguei ao bar onde Nireu e seus seguidores já comandavam a mesa há algum tempo. Perguntei como estavam as coisas. Pois com aquela calma que lhe é exclusiva, respondeu: – Isso aqui está uma porcaria. A cerveja, que deveria estar gelada, vem quente. O torresmo, que deveria ser servido quente, está gelado. Mudamos de bar. Aboletados no outro, bebendo cerveja gelada, Nireu seguiu contando as histórias que encantavam os amigos. Seus personagens, de 99
tão verazes, traziam nome e sobrenome. Seu talento era maior, a ponto de superar os patamares da conversa. Sabia escrever como poucos. Craque das redações, traçou todas as funções com a competência dos puros, aqueles que não geram inveja, ciúme, rancor. Geravam vontade de aprender, de fazer como o mestre fazia. Talvez por isso escrevesse com simplicidade, virtude que exercia igualmente para resolver problemas, alguns dos quais pareciam, aos menos dotados, tarefas próximas do impensável. Conselheiro em tempo integral, mereceria ser, por supuesto, nome de ruas, praças e colégios, visto ser difícil de acreditar terem sido melhores o Laurindo, o Araújo, o Zacarias. Nireu foi também músico de mão cheia. São de domínio público o ritmo e a animação que aplicava às caixinhas de fósforos, ao acompanhar o que viesse. Sozinho, sem necessitar de apoios de outros instrumentos – de resto, menos importantes – empolgava a audiência como se fosse bateria de escola de samba. Ciro Monteiro foi bom neste mister. Nireu, excepcional. O país não conhece o seu talento criativo, já que, fora dos limites dos territórios curitibanos, ninguém enxergava nele o insuspeito caixeiro musical que era. Não sabe o que perdeu, o Brasil. Tanto melhor para nós, assim apreciadores privativos da sua arte. Seu último desempenho musical foi no Teatro Paiol, tocando a caixinha no show de aniversário de 70 anos do Jaime Lerner. Já quase aos 80, neto no colo, mostrou a velha destreza de sempre. Foi embora, e não é figura de retórica, pouco tempo depois. Pensei que pudéssemos pedir cerveja gelada, entoando baixinho, no início, em sinal de luto, subindo de tom ao decorrer, um bom samba, de Noel ou Ismael. O resto deixaríamos por conta do próprio defunto. Ele descruzaria os dedos, tiraria a caixinha do bolso do paletó e ali mesmo, deitado como para sempre se viu obrigado a estar, faria o show da sua vida. Mestre Nireu seria capaz. (Primeira versão publicada em Todo Mundo é Nireu, encarte de comemoração aos 70 anos do mestre) 100
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Adieu, l’Ami
“Ernani, é o Chico, filho do Carlos Antunes. Meu velho faleceu esta noite”. A mensagem acima chegou às 2h38min47s. Acordei com o sinal do celular e não acreditei no que li. A perda inesperada do amigo me fez perder também o sono. Carlos Antunes era um privilegiado. Apaixonado pela família que tinha construído com a esposa Roseli, dividia com ela outras paixões. Uma delas era o Atlético, clube que foi responsável pela vinda da família para Curitiba, em 1949. O velho Rui Santos, seu pai, conhecido como Motorzinho, foi convidado a dirigir o juvenil do Atlético. Três meses mais tarde, já era o treinador dos profissionais, responsável pelo Furacão de 1949, campeão estadual. Carlos herdou o apelido paterno e a vocação pela bola, mas não passou de campeão juvenil. Trocou o gramado pela sala de aula e aí chegou ao sucesso. Sempre como professor de História, matéria da qual era doutor e pós-doutor, diplomado pela Universidade de Paris. Sua biografia é extensa, com mais de 70 trabalhos publicados. Concorreu e venceu a eleição para a presidência da Associação dos Professores da UFPR, foi chefe do Departamento de História, pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e diretor do Setor de Ciências Humanas. Reitor da Universidade Federal do Paraná, entre 1998 e 2002, sua gestão ficou marcada pela forma democrática e acessível com que 101
dirigiu a entidade. Um de seus orgulhos era o título de símbolo de Curitiba para o histórico edifício-sede da universidade. A história merece ser contada. Um grande banco nacional promovia naquele tempo um concurso, pelo voto popular, para escolher o monumento que simbolizaria a cidade. Em primeiro lugar, nas apurações parciais dos votos, estava o conjunto arquitetônico do Jardim Botânico, ícone recente na paisagem curitibana. Carlos pediu o apoio de Francisco Cunha Pereira Filho, então à frente da Gazeta do Povo e da RPC TV. Engajados na campanha, os dois veículos de comunicação trataram de mudar o jogo. Em pouco mais de 15 dias a eleição foi encerrada com a vitória do prédio imponente da Praça Santos Andrade. Já nos conhecíamos há muitos anos, mas foi por essa época que nossa amizade se tornou mais próxima. Carlos foi o primeiro a avalizar minha candidatura à Cadeira 2 da Academia Paranaense de Letras. Na noite de 17 de outubro de 2005, quando tomei posse em solenidade no Clube Curitibano, fui saudado por ele. Infelizmente, sua morte prematura impediu que outros novos integrantes da Academia tivessem a mesma ventura. Ele coordenava um grupo de acadêmicos que se reunia com frequência. Ao seu chamado, Adherbal, Albino, Dante, Virmond, Paulo Vítola, Valério e eu inventávamos um motivo para conversar. Os assuntos iam da própria APL à literatura e dali ao futebol e à culinária. Sim, porque cozinhar era outra de suas preferências. Dominava tanto a cozinha quanto a história dela. Autor de uma inspirada História da Alimentação no Paraná, foi orientador de diversas monografias e teses sobre o tema. E coordenava no Brasil o movimento slow food, que valoriza o sabor da alimentação em contraponto às refeições frenéticas da vida contemporânea. Era o que o impulsionava a congregar também outras turmas, compostas por companheiros da universidade, vizinhos de praia ou torcedores do Atlético. 102
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Seu velório foi realizado, e não poderia ser em nenhum outro lugar, no prédio histórico da UFPR. Tive a dolorosa honra de discursar em nome da APL na cerimônia de adeus. Era tão fácil falar do Carlos, foi tão difícil naquele momento. Um dia antes, ao sair do velório, passei em uma livraria ao lado da universidade, onde encontrei uma biografia de Balzac. Fiz questão de comprá-la, em memória do amigo que tinha na França sua segunda pátria. E onde, a propósito, também tinha sua turma de amigos. Carlos Roberto Antunes dos Santos era assim. Um catalisador de amizades, uma pessoa de grandes qualidades. Ainda tinha muito a realizar, mas deixou um legado que não será esquecido.
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Bagder
As mulheres caíam por ele seduzidas pelos olhos azuis. “The young blues eyes”, zombava ele em causa própria, antes ou depois de cumprir os trâmites exigidos. Gostava de seu nome de imensidão imperial, fazia dele outro de seus argumentos fatais, ainda que fossem poucos os que o entendessem, à primeira audição. Magno Bastos Dias foi Vagner, Magder e, em uma panificadora da qual era assíduo no balcão do cafezinho, época estudantil, Bagder. Os Vastos Dias foram acrescentados por mim, à mesma época, em vã e inconsciente tentativa de imaginar vida longa àquele inconsequente. Sobre os argumentos acima citados, ele os tinha em bom número. Aos iniciais, podemos relacionar a facilidade com que falava outras línguas – ao menos, inglês, francês e italiano, se bem que suas irmãs desdenhassem da última – e o talento ao piano. Namorou, e apaixonou-se, por uma grande herdeira das glórias acadêmicas e políticas nacionais graças ao dedilhar do teclado. Primogênito de Mário e Aspásia Bastos Dias, Magno veio ao mundo para divertir-se. Niilista em tempo integral, talvez tenha sido a descrença geral o que nos tenha aproximado, nos tempos da faculdade. Incrédulo, mas determinado: antes dos 20 anos já era professor de inglês. Um dia aportou no Rio de Janeiro, portando como eu um diploma de bacharel em Direito. Dividimos o apartamento em Ipanema 104
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durante dois anos – com Nego Miranda e o fotógrafo de cinema argentino Luiz Lazzarini, este no fim. A certa altura resolvemos comprar, Magno e eu, um fusca em sociedade. Ninguém botava fé naquela parceria automobilística. Pois durante o tempo em que rachamos as despesas do carro, jamais tivemos alguma desavença. Na vida também não tivemos alguma desavença. Morávamos no mesmo lugar, éramos donos do mesmo carro, trabalhamos um tempo na mesma agência de publicidade (insistência dele, que poliu minha imagem, em inglês, quando me apresentou ao gringo dono do boteco) e, por último, e principalmente, namoramos duas irmãs. Víamos todos os filmes, íamos a todas as praias, bebíamos o que nosso dinheiro permitia, cantávamos as que podiam ser cantadas – músicas, inclusive. A vida permitiu que fôssemos testemunhas dos respectivos casamentos – no meu caso, mais ainda: ele nos deu, a Tânia e a mim, o privilégio de batizar sua filha Kapucine. Cerimônia informal, nos jardins da casa que ele e Beatrice, sua mulher francesa, tinham em L’Isle Adam, próximo a Paris. Uma de suas histórias virou cinema, outra crônica literária. Leopoldo Serran, roteirista maior do cinema brasileiro, aproveitou uma tirada magneriana em seu livro Duas Histórias para Cinema. Na Praia de Ipanema, um novo rico detalhava as virtudes da riquíssima herdeira com quem estava envolvido. Olhos azuis, peitos durinhos, Mercedes com motorista, casa de inverno nos alpes suíços, educação europeia. Magno ouviu aquilo com todo o desdém do mundo e vaticinou: “Ou tem chulé ou mau hálito. Não existe perfeição, rapaz”. À época, fomos convidados a uma festa, em cobertura na Lagoa. Antes, à saída da praia bebemos incontáveis chopes no Veloso, na esquina dos Morais, Prudente e Vinicius. Magno começou a sentir febre, mas não quis desistir. O piano da casa prometia a atenção feminina. Ocorre que ele se sentiu mal. Entrou em um banheiro, tirou a roupa e deitou-se nu, sobre o piso de mármore. Queira eliminar o calor que sentia. Eu estava envolvido em outros assuntos, só vi, há horas tantas, 105
certa confusão na porta de um banheiro. Procurei o Magno com os olhos, não encontrei. Imaginei que algo tinha ocorrido. Quando entrei banheiro adentro, dezenas de garotas olhavam para o chão, onde jazia, nu em pelo, deitado em cima da própria roupa, o nada pudico Bagder. Fui abrindo caminho até cutucá-lo com a ponta do sapato. Ele abriu os olhos e determinou com a fleuma que lhe era característica: - Ernani, vá pegar o carro que está na hora de ir. Levantou, vestiu-se com toda a solenidade, despediu-se das moças e saiu. Nireu Teixeira publicou esta história em seu livro Espeto Corrido. Magno e Beatrice passaram um reveillon lá em casa, na praia. Pouco depois, ligou da França, dizendo que estava com um tumor no rim. Fez a cirurgia, enfim inútil. Teve tempo de ver nascer sua quarta filha, Melodie, voltar ao Brasil a passeio e fazer piadas sobre todos os assuntos. Inclusive sobre o câncer, “essa mancha microscópica que agora apareceu no pulmão. Vamos beber que é melhor”. Fomos enterrá-lo em L’Isle Adam. Três dos seus irmãos, Martha, Luciano e Patrícia, Dico Kremer e eu. A vida desperdiçando uma figura daquelas aos 51 anos. Poucos meses depois, Mário e Aspásia fizeram publicar, na Gazeta do Povo, uma homenagem a ele, a partir de um texto escrito por seus amigos ingleses. Foi um cidadão do mundo, o Magno. Vasto como o nome que o batizou com requintes de exatidão.
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Outras Obras do Autor
• CRIAÇÃO QUE RIMA NÃO DANSA – Trovas Fesceninas Com Benedito Pires, Fernando Nogueira, Janes Metidieri e Rubinho Gomes Capa: Bira Menezes Diagramação: Janes Metidieri Editora Fescenina Ltda.: Curitiba, 1983 Esgotado • CIDADES E CHUTEIRAS – Crônicas Capa e Projeto Gráfico: Miran Editora Módulo Três: Curitiba, 1987 Esgotado
• O LIVRO DA ATRUCO – Histórico da Academia Paranaense de Truco Capa e Projeto Gráfico: Bira Menezes Heads Propaganda e Master Comunicação: Curitiba, 1996 Esgotado
• OS HERÓIS DA LIBERDADE – Ficção Capa e Projeto Gráfico: G. Anjos LetraViva Editora: Curitiba, 1999; 2ª reimpressão: Curitiba, 2002 Esgotado
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• QUANDO FUTEBOL ANDAVA DE TREM – Pesquisa histórica Capa: Renato Kadota Projeto Gráfico: Márcio Renato dos Santos Imprensa Oficial do Paraná: Curitiba, 2002; 2ª edição: Curitiba, 2004 Esgotado
• ONDE ME DOEM OS OSSOS – Crônicas curitibanas Capa e Projeto Gráfico: Solda Get Edições: Curitiba, 2003 Esgotado
• O PONTA PERNA DE PAU – Crônicas de futebol Capa e Projeto Gráfico: Junior Gonçalves Oficina do Impresso: Curitiba, 2005
• A CAMISA DE OURO – A seleção brasileira nas Copas do Mundo Com fotos de Charly Techio, Denise Bellani e Tânia Buchmann Capa e Projeto Gráfico: Luís Fertonani Getz: Curitiba, 2006 Esgotado • O CAÇADOR DE MOSCAS – Crônicas publicitárias Capa e Projeto Gráfico: Leandro Teodósio Ajir: Curitiba, 2007
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• O LIVRO DO TRUCO – Edição revista e ampliada do livro de 1996 Capa e Projeto Gráfico: Sérgio Carneiro Midiograf: Curitiba, 2007
• O BOGART CURITIBANO – Contos Capa: Fábio Dudas Projeto Gráfico: Fonte Criativa Imprensa Oficial do Paraná: Curitiba, 2008
• SOBRE TOUROS E HOMENS – Roteiro para cinema Capa: Adriane Belik Projeto Gráfico: Marco Buchmann Cooperativa Cinema e Mídias Digitais: Curitiba, 2011
• SUMIÇOS DELIRANTES – Roteiro para cinema Capa e Projeto Gráfico: Luiz Postal Cooperativa Cinema e Mídias Digitais: Curitiba, 2011
• BIOBIBLIOGRAFIA DA ACADEMIA PARANAENSE DE LETRAS – 1936-2011 – Acréscimos, revisão e edição A partir da obra original de Túlio Vargas, Valério Hoerner Jr. e Wilson Bóia Capa e Projeto Gráfico: Rita Solieri Brandt Edição da APL: Curitiba, 2011
Pedidos das obras em catálogo pelo e-mail marcobuchmann@gmail.com Pedido mínimo: quatro exemplares Valor do exemplar: R$ 25,00 (mais despesas postais) 113
Impresso em agosto de 2013, pela Ajir Artes Grรกficas e Editora Ltda., capa Supremo 300g e miolo em papel Pรณlen Bold 90g, 112 ps.