O Menino da Colina

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O menino da colina [Um conto familiar]

Rafaelle da Silveira Santos Kniess [17.06.2014]



Era

assim que o menino esperava – sempre – no topo daquela colina, de onde podia enxergar a estrada de chão. Entrelaçava as pernas finas com um abraço e esperava. Fazia pouco tempo que havia perdido o pai num acidente de carro. Ironia do destino, num tempo e lugar em que quase ninguém tinha um carro. A mãe tornara-se mais severa e mais distante. Passara a se vestir toda de preto e assustava seus sete filhos com suas compreensíveis crises de choro, gritos e desespero, nos meses que se seguiram àquela tarde em que tudo mudou. Prestes a completar onze anos, ele e os outros três irmãos pouco mais velhos foram mandados pela mãe a colégios internos diferentes. E, assim, o menino perdera praticamente tudo. Restava a espera longa e poeirenta, por notícias de casa, dos irmãos, da mãe. E, principalmente, restava o olhar para trás, para a estrada que representava a transição de tudo. No topo da colina lhe fazia companhia um cão vira-latas. No futuro, seriam os cães as criaturas dignas de sua plena confiança. Naquele internato, às cinco e meia da manhã, os inspetores, muitas vezes, viravam as camas daqueles meninos mais dorminhocos, para que levantassem. E aqueles que, porventura, não se arrumassem no tempo estabelecido, tinham seu acesso ao refeitório impedido e, assim, acabavam sem o café da manhã, procedimento este que também era seguido em relação às demais refeições do dia.

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internos mais velhos costumavam dar as boas-vindas aos mais novos arremessando-os num riacho que cortava a propriedade do colégio, para que aprendessem a nadar. Quem, eventualmente, pedisse uma terceira xícara de chá ou de café, corria o risco de passar mal por ser obrigado a tomar um bule inteiro. Ele havia presenciado situação assim, por isso jamais pediu para repetir qualquer refeição. As manhãs eram dedicadas aos estudos; as tardes ao trabalho na lavoura ou em outras atividades do internato. O menino detestava arder sob o sol, mas foi naquele internato que aprendeu a plantar, a construir, a conversar consigo mesmo e a jogar xadrez, identificando naquela “nova família” quem eram os reis e quem eram os peões. Aprendeu, também, a abrir os olhos antes das cinco e meia da manhã. Tornou-se “perfeccionista”. Abraçou o silêncio e foi abraçado, pouco a pouco, pela melancolia. Executava suas tarefas com atenção e não pedia um segundo pão, não obstante escondesse sob a camisa do uniforme a metade do que lhe cabia, para dividir com seu amigo tão vira-latas quanto ele próprio se sentia desde que chegara ali. E, então, subia a colina todos os dias, à espera de notícias da sua vida passada. Não tardava a aparecer seu amigo, a quem passou a chamar – carinhosamente – pelo curioso nome de “Cajarana”. Nunca soube se ele era, de fato, um cão sem dono. Importava, apenas, que estava ali, a esperar a outra metade do pão em troca de um olhar de genuína amizade. Mas daquela estrada só vinha pó. Poeira de tudo: de tempo, de sonho, de saudade.

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om passar dos anos teve seus momentos de alegria, com a chegada de um carteiro solitário que despontava no horizonte, como se brotasse do chão de terra vermelha. Então, o menino e “Cajarana” corriam com a mesma ansiedade em direção à entrada do internato, onde um funcionário recebia as correspondências. Era um senhor grisalho e simpático que gostava de acalmar o coração dos meninos, avisando quando uma carta chegava. Algumas horas depois, os inspetores entregavam as correspondências aos seus destinatários, as quais, na sua maioria, já haviam sido escritas há, pelo menos, um mês. Sempre que recebia uma carta o menino a lia para “Cajarana”, que ouvia atentamente. As cartas contavam as novidades das pequenas cidades do interior: alguém casou, alguém foi embora, alguém morreu. E, ainda assim, como era bom olhar para o desenho inseguro das letras, feito por sua mãe!

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Desejava em cada uma das poucas cartas recebidas, ter lido o chamado da mãe - a notícia de que os irmãos haviam voltado para casa e que o pai, milagrosamente, ainda estivesse lá, à sua espera, para ensiná-lo a plantar e a construir. Talvez assim o sol não fosse tão escaldante. Talvez ele pudesse levar “Cajarana” para casa e apresentá-lo aos outros animais da fazenda. Mas o sol se despedia e ele lembrava que já era hora de descer a colina, de volta ao alojamento. E o devaneio se fazia pó, juntando-se à estrada. Anos se passaram, e “Cajarana” continuava lá, a acompanhar o menino que se transformava em um jovem prematuramente amadurecido. Os fins de tarde na colina já não tinham a angústia da espera. Em verdade, eram prelúdios de noites resignadas. Prestes a deixar aquele internato, o menino aceitara os fatos, a espera, a demora, a ausência, a dor. E, assim, a saudade lhe anestesiou paulatinamente, até que o menino ficou aprisionado dentro do corpo do homem. Tornou-se “ateu”, porque cansou de esperar pelas respostas. Seu olhar só deixava o vazio quando encontrava o olhar carinhoso do cão amigo, que o seguia sempre, como um anjo de quatro patas. Quando deixou o internato, a exemplo de outros tantos meninos, colegas de turma, que também seguiam de ônibus ou de carro para as suas pequenas cidades de origem, onde tudo começou para cada um, sabia nadar, falar consigo mesmo, jogar xadrez, plantar e construir. A estrada ainda era a mesma, feita de poeira e espera.

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arregando uma pequena mala, e pronto para dar continuidade à sua esperada longa jornada de vida, na busca da tão sonhada realização pessoal e profissional, visando melhores dias e um futuro mais promissor para ele e sua família, o menino fitou o olhar de “Cajarana” que, pelos seus cálculos, já devia ser um amigo idoso, a lhe dar mais um sábio conselho. “Você está certo meu bom amigo” – disse ele ao cão. E, assim, o menino e “Cajarana” seguiram sem olhar para trás, na direção contrária da estrada, dando continuidade ao destino reservado para cada um, com a esperança, no entanto, que os seus caminhos voltassem um dia a se cruzar, para a felicidade de ambos, amigos fieis que sempre foram desde o primeiro encontro.

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