O Manto Diáfano nº 11 - 20 de setembro de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 11 ∙ Brasília/DF ∙ 20 set 2016

Síria, a guerra começa a ceder Ronaldo Conde Aguiar: Sobrevivente Os Senhores da Guerra

Foto: pixabay.com – CC0 Public Domain

A festa brasileira em Ruão

Um pouquinho de Brasil Iaiá


5 As novas condições para o jogo Revista eletrônica Nº 11 ∙ 20 set 2016 ∙ Brasília/DF VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Carlos Alves Müller Edson de Oliveira Nunes Luiz Philippe Torelly Ronaldo Conde Aguiar Walter Sotomayor

6 Um pouquinho de Brasil iaiá?

8 Síria, a guerra começa a ceder

12 Filosofia e desigualdade: a festa brasileira em Ruão – 1550

EDITORES Arno Vogel Benicio Schmidt Carlos Alves Muller Fabiano Cardoso

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DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck

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PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

Os senhores da guerra, o filme e o destino: uma epopeia

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

Sobrevivente

22 Esta tal de estatística

25 Encaixotando Brasília


EDITORIAL N

este Manto Diáfano #11, nosso Editor-Chefe, Benicio Schmidt, faz sóbria análise da atual conjuntura político-econômica brasileira acerca dos contornos que estão sendo tomados em relacão às decisões políticas de nossos congressistas e da posse da ministra Carmen Lúcia no Supremo Tribunal Federal. Segundo ele, os tratados internacionais assinados na era Lula-Dilma têm vital importância nas decisões políticas e econômicas que nossos poderes Legislativo, Executivo e, principalmente, Judiciário têm pela frente. Já o Cientista Político Edson de Oliveira Nunes faz comparação certeira entre a cara do governo Temer com o Plano de Metas de JK, mas no caso do governo Temer é o Plano de Metas, sem as metas, porém com as mesmas alianças a partir de investidores internacionais. Walter Sotomayor disseca os possíveis contornos de um fim à guerra na Síria e suas consequências para o Ocidente, e o faz esmiuçando desde o início da Primavera Árabe e como isso levou a atual situação em que está a Síria. Do Arquiteto e Urbanista Luiz Philippe Torelly trazemos trecho de seu futuro livro de crônicas e ensaios. Este ensaio específico é sobre a apresentação tropical e indigenista feita ao rei de França, Henrique II, e os desdobramentos desta apresentação que levaram aos textos filosóficos de Rousseau e Montaigne, por exemplo, e de como a teoria do “Bom selvagem” surgiu. Temos o prazer de lançar, em primeira mão, trecho de Romance inédito de Ronaldo Conde Aguiar. Sobrevivente narra as memórias de Vitor e de como um simples menino do interior que ficava perdido em seu quintal pegou em armas durante a ditadura, fugiu, foi preso, torturado e, ainda assim, sobreviveu para contar a história recente do Brasil. O Jornalista Carlos Alves Müller traz crítica ao recente filme de Tabajara Ruas, Os Senhores da Guerra, sobre a guerra entre maragatos e chimangos em fatos que acabaram por ser de vital importância para a história do Brasil. Fabiano Cardoso escreve mais um texto sobre futebol com críticas ao modo como tradicionalmente vemos o esporte e como devemos tentar mudar esta visão se quisermos seguir atacando, e não apenas defendendo um estilo de jogo. Fechamos esta edição com mais capítulo da novela Encaixotando Brasília, de Arnaldo Barbosa Brandão. Aqui, nosso intrépido personagem conversa com Gaúcho sobre os possíveis motivos que o levaram à prisão do fim do mundo.



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As novas condições para o jogo Benicio Schmidt – Editor-Chefe e Cientista Político

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bom se acostumar. Com a queda de Eduardo Cunha, mais a posse da Ministra Carmem Lúcia no STF, o quadro vai ficando mais claro. Além da legislação brasileira, o Brasil tem assinado, desde Lula-Dilma, alguns Tratados Internacionais de Cooperação para controle dos fluxos financeiros, públicos e privados, com largo impacto sobre a matéria. Isso aumenta o protagonismo do Judiciário, mas também aumentará a responsabilização do Executivo e alterará a atuação do Congresso Nacional. Vai sendo confirmado o que a literatura internacional tem destacado. Os mandatários em exercício serão sempre os objetos centrais de atenção, de qualquer partido e de qualquer natureza partidária. As leis e procedimentos do novo jogo; assim como tem sido no campo diplomático de TODOS os países; fazendo de órgãos como o Itamaraty um “Estado dentro do Estado”. Como temos visto, desde 1950, pelo menos. Seja quem for o Presidente, seja quem for o partido hegemônico. Os rigores sobre os fluxos de comércio, os fluxos de capital (os mais frouxos e ainda livres), a troca de informações sobre Inteligência e Segurança Internacional são consequências desse novo ambiente. Na América Latina é mais difícil a percepção, dado o grau de imersão no Pensamento Mágico, que admite voluntarismo, populismo e um tremendo grau de dependência de lideranças carismáticas salvacionistas. Esses fenômenos consolidaram estruturas estatais pesadas, extremamente burocratizadas e dependentes de alianças de compadrio político. Agora, no horizonte histórico, verifica-se que são preços a serem pagos por todos. O mundo não será necessariamente mais seguro e melhor, mas será mais regulado, com as devidas penas e sanções, doravante. O protagonismo ascendente do Judiciário tem sua contrapartida na superexposição de juízes, magistrados em geral. Mas isso deve propor novos equilíbrios, pois a carga sobre seus membros tende

a se tornar insuportável. No Brasil – a justiça mais cara, depois do Paraguai, e das mais inoperantes do mundo – a solução tem sido encontrada no aumento vegetativo do aparelho judiciário, cada vez maior (número de funcionários e órgãos). Uma estultice, que deveria ser corrigida pela absorção de mecanismos inteligentes e não pelo aumento das respectivas burocracias. Mas, mais por influência externa do que nacional, chegaremos lá, ainda que lentamente. De qualquer modo, um novo “Espírito de Época” se abre e não deixa de ter aspectos muito positivos. Os últimos a entender serão nossos paroquiais parlamentares, ainda em grande maioria. Colocar “as barbas de molho”, é claro, é o primeiro movimento defensivo. Mas, especialmente aos novos quadros (existem!) se abrem novas oportunidades de visualizar uma Gestão Pública que não se confunda com uma Operação de Extorsão dos cofres públicos para diversificados e espúrios fins. É uma esperança, uma hipótese. A alternativa é essa que temos, com paralisia, desencanto com o capital e o poder coletivo, além das históricas mazelas que dividem e oprimem a maior parte da população.■

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Um pouquinho de Brasil iaiá? Edson de Oliveira Nunes – Cientista Político

P

restemos atenção. Muita atenção. O governo Temer botou a cara de fora. Este Programa de Parcerias de Investimento (PPI), agora aprovado pelo Congresso, pretende ser o coração técnico e fundamental do governo Temer. Estejam seguros. E imaginem: tal programa tem uma inspiração histórica, seu desenho decisório, sua relativa insularidade frente às forças político-partidárias, tem uma afiliação pragmática. Foi desenhado à semelhança do Plano de Metas de JK. Não é menos ambicioso. E não estou inventando. É isto mesmo que o governo tem em mente, mas não revela, uma nova estratégia de desenvolvimento baseado num processo decisório atípico. O governo tem na cabeça um novo plano de Metas sem as metas, mas com a mesma estratégia decisória: alianças poderosas com investidores internacionais, pacificação de investidores nacionais, restrição ao poder regulador da burocracia tradicional, rapidez no deslanchar de projetos, independência decisória com apoio direto da presidência da república. É isso mesmo, não duvidem, tem concepção, liderança e autoria. O Plano de Metas foi ancorado num processo decisório único, que escapava da patronagem político-partidária-congressual, escapava do inferno burocrático das licenças administrativas, das muitas vozes de vários ministérios para a concessão de qualquer projeto industrial, principalmente aqueles que envolvessem agentes estrangeiros. Escapava dos sindicatos e corporações variadas. Deixava a política tradicional segregada em coisas nas quais a dupla JK-Jango eram escolados. E tratava de proteger o “technical core” do Estado, o tal desenvolvimentismo industrial, das lidas do Brasil tradicional.

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O “escapismo institucional” ali praticado, que alguns chamaram de insulamento burocrático, protegeu as decisões da sanha natural da “pork barrel politics” e também dos sindicatos e corporações de amiguinhos políticos da dupla que presidia o país. Inventado um processo decisório até então desconhecido, e hoje estudado por muitos trabalhos acadêmicos, o plano andou. Escapou do Brasil tradicional, apenas para ser capturado, ali na frente, pelo mesmo Brasil do qual fugira. Foi engenhosa a solução de JK. E agora a querem reviver. Nos governos do PT a coisa ficou complicada. Tudo ficou penetrado pela política tradicional, pelos sindicatos e corporações, agora chamados, respeitosamente, de movimentos sociais. O perigo é que o aparato institucional brasileiro, daqueles que nos governam, é semelhante àqueles meninos que jogam bolas para o alto durante o sinal de trânsito (também conhecido como farol por aqueles que nos governam). As bolas e/ou os malabares precisam ficar ao alto o tempo todo. Uma não pode ser mais importante que a outra. E isto requer talento, de um lado, e de outro, custa caro. ▶ 6


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Para manter todas as bolas dos malabaristas funcionando, há que se agradar a todos. E não se pode achar que um vale mais do que o outro. Assim, sindicatos e “movimentos sociais”, financiados ou não, precisam ficar felizes; os políticos clientelísticos, precisam ficar felizes; as corporações e amiguinhos do ramo, precisam ficar felizes; o povão da rua, que não gosta das corporações, dos sindicatos, dos políticos e de “tudo mais que está aí”, precisa ficar feliz. E como se não bastasse é preciso fazer o Estado, no seu “technical core”, funcionar. O PT e associados fracassaram completamente na capacidade de agradar a esta diversidade de demandas. Entregaram tudo aos “amiguinhos” dos sindicatos, corporações, movimentos sociais, amiguinhos de corporações empresariais. E esqueceram da moçada da rua que não aprecia nenhum deles. Não pode! A governança requer uma sem-vergonhança apropriada. Não me venha de hegemonia ao leito, caro militante. Está em falta. Somos complexos e compósitos. Aprendeu agora, ou quer que eu desenhe? Agora estamos sobre outro governo, que parece mais com o outro, assim como o outro parecia mais com os outros, mas preferiu achar diferentemente. E agora me vem o governo dizer que reinventou o Plano de Metas, ou pelo menos a sua estratégia escapista para fazer o Brasil andar à frente. Dará certo? Tenho cá minhas esperanças, todas aprendidas em novelas italianas. E acho que dá certo por algum tempo. Mas precisa de muita coragem, de muita patronagem, de muitos pagamentos aos movimentos sociais, de muita obediência às burocracias de Estado. Mas entre a década de 1950 e o século XXI muita coisa mudou. Será que o modelo ainda serve (e estou seguro que este é o modelo que o governo está seguindo?) Será que a nova estrutura de poder brasileira, com este excesso de comando das corporações estatais, entre elas o judiciário, permitirá? Será que o governo terá a legitimidade da dobradinha JK-JG? Será que um modelo antigo ainda vale? Será que o Brasil é tão velho como parece? Ou tão novo como parece? Torço muito para que dê certo. Já vimos esse filme. Mas algum intelectual orgânico do governo também viu. Sim, há intelectuais orgânicos escondidos no governo Temer. A ver. ■ 7


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Síria, a guerra começa a ceder Walter Sotomayor – Jornalista

A

s notícias da guerra em nossos dias têm virado um mantra de números crescentes de mortos até se tornar irreal, como a guerra da Síria, onde os mais conservadores falam de 220 mil mortes em cinco anos, outros falam de 400 mil. Parece que a guerra cobra importância apenas porque incomoda a vida dos europeus, seu conforto, sua consciência. Sequer incomoda as pessoas em países como o Brasil, destino de milhares de sírios, mas que hoje vivem o conflito com o distanciamento criado por um século de separação. Mesmo assim, a televisão nos mostra com frequência incômo- Foto: Oriol Gascón via Visualhunt CC BY-NC-ND das fotografias de milhares de lares devastados, vídeos de crianças chorando cobertas 2013 uma guerra santa como aquela iniciada pelos de poeira em meio à loucura dos bombardeios, tra- árabes sob o comando de Saladino, em 1176, recuzendo até o nosso jantar a crueldade de uma guerra perando terreno das cruzadas cristãs. O Estado Islâmico, na verdade uma federação de em que combatentes e população civil estão muito próximos. Este é o lado trágico do conflito. É evidente diversas facções ultrarradicais, foi ampliando seu quem perde: pessoas comuns obrigadas a sair de suas controle com a mobilidade oferecida pelos veículos casas e de seu país à procura de lugares mais seguros Toyota convertidos na moderna artilharia dos deonde geralmente são discriminadas e rejeitadas. Essa sertos do Oriente Médio. A ferocidade de seus comtem sido a rotina dos últimos cinco anos. O horror de batentes foi exibida em milhares de vídeos postados pessoas sofrendo pesados bombardeios que tranfor- na internet entre os quais, certamente, os mais chocantes foram a execução de jornalistas ou voluntámam as cidades em entulho. O que inicialmente era o reflexo dos protestos rios das entidades humanitárias. Degolar parecia a contra regimes ditatoriais em outros países árabes palavra de ordem dessa luta contra o Ocidente. No início dos protestos a mídia ocidental derapidamente se transformou em uma cruenta guerra civil na Síria em que um dos grupos armados de monstrou maior entusiasmo com a perspectiva de oposição proclamou a criação de um Califado na mudança de governo na Síria do que na Arábia Sauregião compreendida entre o norte da Síria e norte dita, por exemplo, o que mostra apenas uma pardo Iraque. O chamado Estado Islâmico iniciava em te dos cacoetes e dos preconceitos ocidentais em

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relação a essa parte do mundo. A chamada Primavera Árabe, que no início exibia apenas protestos pacíficos nas ruas do país, foi virando rapidamente uma batalha entre diversos grupos armados e o governo, além, é claro, de outros países como Estados Unidos, Rússia, França, Turquia, Irã e Israel. O governo da Síria, mostrado pela mídia como responsável por uma grande matança sem sentido, uma vez que se esperava um rápido desfecho que daria lugar a um governo democraticamente eleito, parecia querer vender a utopia da transformação de um regime autoritário como o da família Assad, em uma democracia equilibrada e moderna semelhante às europeias. A Primavera Árabe derrubou um governo corrupto e autoritário na Tunísia, mas nada poderia garantir que a experiência no mais ocidentalizado dos países árabes se repetiria em outros. Mesmo assim, a mudança de governo na Tunísia enfrenta outros desafios porque a queda do velho regime deu asas a um movimento político islâmico, o Ennanda, que cada vez mais se inclina para uma islamização do país, que tem como orientação um retorno ao passado. O Ennanda não governa, mas todo mundo teme sua força, e as mulheres passaram a usar véu nos locais públicos para evitar os constrangimentos por supostamente ignorar os preceitos religiosos. Na vizinha Líbia, cujo regime se acreditava imbatível, por conta de seus fortes vínculos com os governos da Itália e da França, a Primavera Árabe teve rápido sucesso na região Leste e na cidade de Bengazi. A capital, Trípoli, parecia inexpugnável até que uma intervenção militar em 2011, de iniciativa francesa, contribuiu para a sua queda. Mas no lugar de um governo democrático, a intervenção unilateral francesa deu lugar a um grande caos político que se estende por cinco anos. O então presidente francês, Nicolás Sarkozy, justamente um político que havia recebido doações para sua campanha eleitoral do líder Muamar Kadafi, ordenou em 2011 os bombardeios contra as forças do governo. No lugar de um governo, agora há dois. O general Khalifa Haftar, considerado inicialmente o chefe da revolução, passou a ser considerado rebelde pela comunidade internacional quando se negou a reconhecer um governo de unidade nacional. Seu governo, sediado em Tobruk, controla a maior parte da riqueza petrolífera da Líbia. Mas o país está imerso em uma violência exercida por pequenas milícias. Uma parte do antigo

exército de Kadafi fugiu para o sul em uma tentativa de criar um novo país, ao norte do Mali, instalando ali um regime similar ao Estado Islâmico, que foi duramente combatido por forças francesas. Se no Egito a queda de Hosni Mubarak era vista como necessária por quem defendia um regime de mais liberdade, o resultado foi o inverso, com o país governado por uma ditadura militar implacável que tomou o poder depois de um breve exercício democrático. Ao analisar o conjunto de eventos da Primavera Árabe surge um mapa de interesses conexos em que qualquer mudança da situação política em um país rapidamente tem reflexos em toda a região. É possível que o equilíbrio dos anos 1980 esteja mudando. Como reação à hegemonia política e militar dos Estados Unidos as massas estimuladas por um líder religioso, o aiatolá Khomeini, derrubaram a monarquia aliada do Ocidente. O regime do xá Reza Pahlevi era parte do muro de contenção que se acreditava necessário contra a influência comunista da então União Soviética. Apesar da revolução do Irã, os Estados Unidos mantiveram o controle dessa grande região porque dependiam do petróleo que ali se produzia. A quase autonomia de fontes de petróleo dos Estados Unidos sugere a necessidade de diminuir a intensidade da ação militar, mas há inúmeros grupos armados, em grande parte criada e financiada pelos Estados Unidos, que partiram para a criação de um Estado Islâmico. A Turquia, que modernizou sua economia, mas enfrenta rejeição à sua aspiração de fazer parte da União Europeia busca consolidar seu peso político regional. Isso explicaria o financiamento de grupos armados para combater o regime de Assad. Em caso de vitória, o que parecia fácil há três anos, controlaria um país vizinho, ampliando, com isso, seu peso político. O início dos bombardeios russos, em um momento em que Assad parecia ter perdido a guerra, contrariou muito o regime de Erdogan, a ponto de autorizar a derrubada de um caça russo que havia ingressado no espaço aéreo turco. A Turquia não pode evitar, no entanto, a virada importante que representou no conflito a presença militar russa, que combateu sem meias palavras qualquer ameaça a seu aliado Assad. Nesse contexto é razoável pensar que muitos militares turcos estavam crescentemente incomodados

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com a progressiva islamização do seu país. Os militares foram, ao longo de boa parte do século XX, os guardiães da constituição aprovada pelo criador da Turquia moderna, Kemal Ataturk. A tentativa de golpe militar se explica como uma reação a esse processo alentado por Erdogan. O fracasso do golpe dá carta branca para continuar a ajuda aos grupos radicais que operam na região. Erdogan tenta essa volta ao passado depois de quase um século de governo laico, e é tão forte a sua posição que não hesitou em virar um novo Pinochet ao colocar na cadeia mais de 40 mil pessoas sob o olhar perplexo, mas condescendente, da União Europeia. Atitude semelhante à da Turquia, ignorada pela imprensa ocidental, é o apoio de Israel aos mesmos grupos que combatem Bashar El Assad. Quem denuncia o envolvimento de Israel é Buthaina Shaaban, assessora política e de meios de comunicação de Bashar El Assad: “O regime de Israel tem concentrado todos seus esforços para desestabilizar a região e tem fortalecido seus vínculos com organizações terroristas”, disse no início deste mês. A Síria e Israel nunca interromperam hostilidades na fronteira comum, as Colinas de Golan. O canal iraniano HispanTv confirma essa participação israelense no conflito da Síria e cita como fonte o deputado israelense Akram Hason, que denunciou a ajuda de seu país ao grupo Fath al Sham (antigo Frente Al-Nusra) que combate junto com o Estado Islâmico o regime de Assad. O governo do Irã, além de denunciar a participação de Israel, Arábia Saudita e Qatar, na guerra civil síria, tem sustentado economicamente o regime de Assad. Com as atividades produtivas praticamente paralisadas e um embargo econômico de países ocidentais desde o começo dos enfrentamentos, o governo

sírio sobrevive graças à ajuda financeira do Irã, estimada entre US$ 6 a US$ 20 bilhões anuais, e ao fornecimento de material bélico russo. O comprometimento econômico do Irã é tão importante no conflito interno da Síria quanto o reposicionamento do país após a assinatura, há um ano, do acordo nuclear com os Estados Unidos. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, torpedeou o acordo até o cansaço fazendo proselitismo contra em solo americano em uma atitude que os Estados Unidos, aparentemente, só toleram aos israelenses. O desgosto de Telaviv com o rumo dos acontecimentos está sendo compensado por Washington com mais ajuda militar. O anúncio de uma ajuda de US$ 38 bilhões para um prazo de dez anos, condicionada à aquisição de material de fabricação americana, é um movimento nesse sentido, embora seja parte de uma política tradicional dos Estados Unidos em relação a Israel. O acordo entre Irã e Estados Unidos tem outros desdobramentos. Cumpridas as formalidades com as inspeções de órgãos das Nações Unidas, a comunidade internacional inicia uma lenta distensão em relação ao governo iraniano, o que se traduz em liberação de contas bancárias retidas desde 1979, fim do embargo comercial e a retomada de relações comerciais com o mundo que devem potencializar seu papel na região. Essa mudança nas relações entre Teerã e Washington foi encarada como uma grande derrota política para Arábia Saudita e Israel. Se o Irã se sente muito mais à vontade para ajudar a Síria, a Rússia também tem sido essencial para uma grande virada militar no conflito. O governo russo, além da ajuda militar, cuja eficiência tem sido elogiada no Ocidente por ter sido a única que conteve o Estado Islâmico, teve intensa atuação diplomática em busca de um cessar fogo.Os russos, além

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de obterem uma trégua para permitir ajuda humanitária à população civil, estabeleceram uma inimaginável cooperação na área de inteligência com os Estados Unidos. Na prática, é um acordo para acabar com o Estado Islâmico. Neste setembro de 2016, uma notícia aparentemente corriqueira, emitida em Damasco, dava conta da retomada do subúrbio de Daraya, na periferia pobre da capital, por parte das tropas governamentais. Era um indício muito claro de que o país estava voltando ao ponto de partida. A luta havia deixado, além dos milhares de mortos, a sensação de que um dos mais fortes protagonistas dessas batalhas, o chamado Exército Islâmico, que havia criado um Califado no norte do país, era o principal perdedor. Os combatentes do Exército Islâmico ainda controlavam a cidade de Raqha, no norte do país, perto da fronteira com a Turquia, mas os acontecimentos dos últimos meses pareciam um prenúncio da derrota final. Os movimentos da diplomacia dos principais países envolvidos tem sido intensos, desde o início do conflito, embora seus resultados tivessem sido mínimos. As negociações em busca de uma solução do conflito foram iniciadas em 2011, tanto entre os principais atores, Estados Unidos e Rússia, como atores secundários como a União Europeia. Como o Conselho de Segurança não conseguiu aprovar sanções econômicas contra o governo de Bashar El Assad, devido ao veto russo, os Estados Unidos, a União Europeia e os países árabes, leia-se as monarquias do Golfo, decidiram impor essas sanções à margem do organismo. “A Síria está sitiada por conta dessas sanções unilaterais”, lamentou o embaixador da Síria na ONU, Bashar Jaaffari. De fato, como geralmente acontece, as sanções tiveram um efeito contraproducente ao privar de alimentos e medicamentos a população civil em zonas de conflito. Os encontros do início de setembro criaram a expectativa de aceleração do processo de negociações como decorrência do que acontece nos campos de batalha. As consultas entre os diversos governos envolvidos foram retomadas com mais vigor pelo enviado especial da ONU para a Síria, o ítalo-sueco Staffan de Mistura, o que se aceleraria na última semana do mês, durante o período de sessões de Assembleia Geral, momento em que há uma intensa movimentação de chefes de Estado em Nova York. ■

A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais. A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

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www.pequi.org.br


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Filosofia e desigualdade: a festa brasileira em Ruão – 1550 Luiz Philippe Torelly – Arquiteto e Urbanista

“Nos tempos antigos, os homens não conheciam as doenças, o sofrimento ou a morte. Não havia brigas. Todos eram felizes. Naquele tempo, os Espíritos da floresta viviam junto com os homens.” (LÉVISTRAUSS, 2010: 320).

nibais, parte de seu livro Os ensaios. A festa teve um aspecto inusitado e grandiloquente por suas proporções e riqueza de detalhes. Envolvia a representação em grande escala de um cenário brasileiro, com fauna e flora originais, inclusive, onde trezentos homens, dentre eles cinquenta indígenas, simulavam um confronto entre tupinambás e tabajaras, com a vitória dos primeiros. Sua significância advém do ensaio de Montaigne e de sua influência sobre as ideias de Jean Jacques Rousseau, da Revolução Francesa de 1789 e das origens do socialismo, especialmente da luta de classes e da crítica ao fundamento da propriedade privada. Importante mencionar A utopia, de Thomas Morus, obra que antecede em algumas décadas a de Montaigne, como uma das fontes primeiras dessas formulações. Parte desse acontecimento perenizou-se em gravuras e na pedra, nos baixos relevos na Igreja de Saint-Jacques em Dieppe. Em 1580, Montaigne publica a 1ª edição de Os ensaios, na qual está incluído aquele intitulado Os canibais. Nele retrata uma sociedade edênica e, num imaginioso diálogo com Platão, afirma:

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lgumas coincidências acabam por nos fazer crer em sincronicidade e em como situações históricas de um passado remoto podem ressurgir, naturalmente, sob outras circunstâncias e roupagem. Esse é o caso do presente texto. Fico sempre à procura de “novidades”, especialmente de relatos de viagens ou acontecimentos inusitados que fujam à regra da história dos vencedores e das grandes datas que possam, como uma lupa, desvendar o particular. Foi assim que me deparei com um opúsculo de título curioso, Uma festa brasileira celebrada em Ruão em 1550. Foi amor à primeira vista. De autoria de Ferdinand Denis e publicado em 1850, relata um acontecimento na história da França e do Brasil, com profundas raízes na filosofia e no imaginário da desigualdade que sempre determinou as relações entre a maioria dos homens. Tal fato foi inicialmente relatado na denominada Narrativa da suntuosa entrada, atribuída a Maurice Sève, publicada em Ruão em 1551. O texto registra a “entrada” realizada em homenagem ao rei de França, Henrique II, e à rainha Catarina de Médicis, em 1550 (FERDINAND, 2011: 38. Cf. JONES, 2013: 129-130). As “entradas” eram celebrações, muitas vezes de caráter teatral ou religioso, em homenagem a acontecimentos ou personalidades de que se utilizava a realeza para exibir seu poderio e riqueza: a antiga fórmula do pão e circo. Frequentes no ancien régime francês, essas efemérides ocorreram até o século XIX, como na repatriação dos restos mortais de Napoleão Bonaparte ou no enterro de Victor Hugo, que atraiu mais de um milhão de parisienses. O episódio de Ruão tornou-se célebre e chegou aos nossos dias graças ao texto de Montaigne, Os ca-

É uma nação em que não há nenhuma espécie de comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum termo para magistrado nem para superior político, nenhuma prática de subordinação, de riqueza ou de pobreza, nem contratos nem sucessões, nem partilhas, nem ocupações além do ócio, nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, nem metal, nem uso de vinho ou de trigo. As próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão são desconhecidas. (MONTAIGNE, 2010: 146). Nosso autor relata em sua obra que tais informações sobre os indígenas brasileiros, no caso os tupinambás, teriam sido narradas a ele por um homem 12


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que havia morado no Novo Mundo por dez ou doze anos. Tudo indica que ele teve acesso, entre outras, às obras Singularidades da França Antártica, do abade e cosmógrafo André Thevet, e Viagem à terra do Brasil, do pastor Jean de Léry. Deve-se destacar que as obras citadas lhe eram contemporâneas e seus autores, um católico e outro calvinista, se encontravam em lados opostos na guerra religiosa que incendiava a França do século XVI. Tal guerra culminaria com a tristemente famosa Noite de São Bartolomeu de 1572, que desencadeou escaramuças em todo o país, ceifando milhares de vidas. Os franceses, desde o início do século XVI, estiveram em contato com os indígenas na costa brasileira, com o objetivo de extrair o pau-brasil, a primeira riqueza a atrair navegantes e corsários. A tentativa de fundar a França Antártica na Baía da Guanabara e adjacências, a partir de 1555, foi uma iniciativa que objetivava o estabelecimento de uma colônia permanente. A empreitada foi frustrada, pois, além da dura oposição militar dos portugueses, acabou envolvida em lutas religiosas entre calvinistas e católicos, o que comprometeu seriamente sua unidade militar, favorecendo a vitória lusa. Desde as primeiras viagens às Américas, os índios foram levados para além-mar, na condição de escravos ou troféus exóticos da “terra dos papagaios”. Um dos casos mais célebres foi o de Catharina Paraguassu, que se casou na cidade francesa de Saint-Malo, em 1528, com Diogo Álvares, o famoso Caramuru, náufrago português que morava entre os índios onde hoje se localiza a cidade de Salvador, na Bahia. Há farta mitologia sobre o casal, tido como a primeira união entre brancos e índios no país. Outro caso emblemático foi o de Essomericq, levado para a França pelo capitão Binot Paulmier, em 1504, do quem adotou o nome de família. Essomericq radicou-se no país e casou-se com uma natural.

Ambientou-se de tal forma que um bisneto, o abade Jean de Paulmier, tornou-se cônego da Catedral de Lisieux. Nesse contexto é que foram levados para Ruão os cinquenta indígenas participantes da citada festa brasileira. A festa em si não é tratada por Montaigne, apenas o diálogo entre os índios e o rei Henrique II, ápice e corolário de seu ensaio que entraria para a história da filosofia. A “entrada” à qual me referi foi um acontecimento que procurava reproduzir para os franceses o modo de viver dos indígenas, classificados pelo senso comum de “bárbaros” ou “selvagens” por seus hábitos e costumes. Guardadas as devidas proporções, promoveu uma espécie de escola de samba a evoluir um enredo. Na época já existiam numerosas descrições de seres e plantas do Novo Mundo, alguns monstruosos, que mesclavam fantasia e realidade, com origem em mitos e lendas da Antiguidade e do Medievo. Dois deles se tornaram particularmente famosos: a ipupiara, cabeça e focinho de cão, seios femininos, mãos e braços humanos e patas de ave de rapina e as famosas amazonas, mulheres guerreiras de seios desnudos, já mencionadas desde Alexandre, o Grande. Deixo a cargo do leitor a consulta a duas obras que descrevem com pormenores o acontecimento, por não ser esse o objetivo primeiro dessas anotações. A primeira delas é a de Ferdinand Denis, já citada. A segunda é o excepcional livro de Afonso Arinos de Melo Franco, O índio brasileiro e a Revolução Francesa, publicado em 1937. Arinos realizou ampla e profunda pesquisa sobre a influência do índio brasileiro nas ideias do Iluminismo e da teoria da bondade natural, especialmente sobre Diderot e Rousseau e seus desdobramentos no ideário da Revolução Francesa. Livro de juventude, escrito aos 32 anos, figura como uma das obras mais importantes produzidas no país na primeira metade do século XX, malgrado sua ótica conservadora ao desenvolvimento de teorias calcadas

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no conceito de bondade natural dos indígenas, como por exemplo o marxismo, especialmente em sua crítica à propriedade privada. Vários pensadores e filósofos antecederam Rousseau na formulação dos princípios da bondade natural e do mito do bom selvagem. Dentre eles, Thomas Morus, Erasmo de Roterdã, Montaigne e Diderot, apenas para citar os mais notórios. No entanto, coube a Rousseau, especialmente em seus dois discursos – Sobre as ciências e as artes e Sobre as origens da desigualdade –, a síntese das ideias políticas que duas décadas depois influenciariam a Revolução Francesa, tendo como dístico os famosos princípios Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Mais tarde, duas outras obras se somam às primeiras para consolidar sua doutrina política e filosófica: Do contrato social, sobre os paradigmas políticos que podem reconduzir o homem ao seu estado natural e assegurar a soberania política da vontade coletiva, e Emílio, em que formula uma proposta pedagógica coerente com suas concepções. Em várias passagens do Discurso sobre as origens da desigualdade, Rousseau qualifica o conceito de bondade natural. Uma delas, inclusive, destaca as similitudes com a citação de Montaigne:

merecemos louvor por condená-los austeramente, só porque sem pudor andam desnudos, pois os excedemos no vício oposto, no da superficialidade de vestuário”. O indígena se transfigura em selvagem, bárbaro, preguiçoso à medida que avança a colonização, quando passa a conviver com os portugueses e com aqueles, muitas vezes seus descendentes (mamelucos), que querem destruir seu mundo, subjugá-lo, subverter seus usos e costumes e roubar suas terras, como ainda vemos no Brasil de hoje. A crítica, especialmente às ideias de Rousseau, advêm em parte de seu comportamento exótico e de sua vida pessoal, dissociada de suas concepções, e de suas denúncias aos valores e instituições da civilização ocidental. Marilena Chauí, na introdução à edição brasileira do livro Do contrato social, nos esclarece:

Ora, nada é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das luzes da sociedade civil, e compelido tanto pelo instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo depois de ser atingido por algum mal. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, “não haveria afronta se não houvesse a propriedade”. (ROUSSEAU, 2000, VOL. II: 93).

O achado do livro de Ferdinand Denis me levou a outros, guiado por um magnetismo em que o acaso e a curiosidade têm certa participação. Montaigne nos deu a chave da relevância do episódio e de sua oportunidade na atualidade brasileira. Ao final da festa, o rei convidou três dos indígenas para uma conversa. Falou-lhes por muito tempo sobre as excelências da cidade de Ruão e da festa em si. Perguntou-lhes, então, do que mais tinham gostado. Eles responderam, em primeiro lugar, que achavam estranho que tantos homens fortes e armados obedecessem a uma criança e que não escolhessem entre eles um igual para comandante. Em segundo lugar, mostraram seu espanto e indignação em ver que, enquanto alguns estavam abarrotados de todas as comodidades e tinham mesa farta, outros estivessem pelas ruas da cidade reduzidos à fome e à pobreza. Concluíram com essas palavras o seu diálogo com o rei: “e achavam estranho como essas metades daqui, necessitadas, podiam suportar tal injustiça, que não pegassem os outros pela goela ou ateassem fogo em suas casas” (MONTAIGNE, 2010: 157). Decorridos 466 anos da Festa Brasileira e 227 da Revolução Francesa, infelizmente ainda remanescem a desigualdade, a pobreza, a violência, o etnocentris-

Se os abusos do estado social civilizado não o colocassem abaixo da vida primitiva, o homem deveria bendizer sem cessar o instante feliz que o arrancou para sempre da animalidade e fez de um ser estúpido e limitado uma criatura inteligente. O propósito visado por Rousseau é combater os abusos e não repudiar os mais altos valores humanos. (CHAUÍ, 2000: 13).

Pode-se dizer que as duas passagens fazem parte do mesmo discurso. Daí a longevidade das obras desses dois autores cuja influência sobre a filosofia, a literatura, a antropologia e a etnografia atravessou os séculos e alcançou os nossos dias. Registre-se que ambos se valeram dos relatos de Thevet, Léry e Staden e que, embora naturalmente se surpreendessem com os casos de canibalismo e outras práticas dos indígenas, reconheceram suas inúmeras qualidades e virtudes, como na seguinte passagem de Jean de Léry: “O que disse é apenas para mostrar que não 14


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mo, apesar da criação de instituições aparentemente democráticas, esforço permanente desde a Renascença e o Iluminismo. Estudos recentes realizados na Itália, abarcando o período de 1427 a 2011, e na Inglaterra, de 1170 a 2012, a partir de censos e declarações de renda entre outras fontes, concluíram que os sobrenomes dos mais ricos e dos mais pobres não haviam se alterado. Guardadas possíveis imprecisões e distorções, esses estudos constituem indicativo de que o dinheiro não mudou de mãos, a par de avanços na educação e na saúde e na proteção ao trabalho. Gregory Clark e Neil Cummins, da London School of Economics, revelam que as universidades mais famosas do país, como Oxford e Cambridge, são quase que exclusivas dos mais ricos, mantendo uma elevada seletividade mesmo com ampliação das possibilidades de acesso. Segundo Neil Cummin:

insustentáveis, arbitrárias, que ameaçam de maneira radical os valores da meritocracia sobre os quais se fundam nossas sociedades democráticas. (PIKETTY, 2014). É exatamente isso o que está acontecendo no Brasil. Há sério risco de desmonte da política de recuperação dos salários, de ampliação dos direitos trabalhistas e dos benefícios sociais que, entre 2001 e 2013, reduziu o percentual de brasileiros que vivem em extrema pobreza de 10% para 4%. Mais: 25 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema ou moderada no mesmo período. Saímos do malfadado mapa mundial da fome. É o que diz o relatório de abril de 2015 do insuspeito Banco Mundial, Prosperidade compartilhada e erradicação da pobreza na América Latina e Caribe. Refletindo sobre a crise política, institucional e moral na qual o país está imerso – na ineficácia e porque não falar na anomia de suas instituições, na instabilidade da economia, nos milhões de empregos perdidos, no retrocesso das conquistas sociais e políticas das últimas décadas, na corrupção e impunidade que o mercado impõe ao estado, exclamo: ainda temos muito a aprender com a bondade natural e o “bom selvagem”! ■

Essa correlação é inalterada ao longo dos séculos. Ainda mais notável é a falta de um sinal de qualquer declínio na persistência de status social durante períodos de mudanças institucionais, como a Revolução Industrial do século XVIII, a disseminação da escolarização universal no final do século XIX (no Brasil só a atingimos na 2ª década do século XXI), ou a ascensão do estado social-democrata no século XX. (DONATO, 2016).

Bibliografia BANCO MUNDIAL. Em meio à estagnação econômica, Brasil enfrenta o desafio de continuar combatendo a pobreza. 20 abr. 2015. Disponível em: <http://www.worldbank.org/pt/news/feature/2015/04/20/brazil-low-economic-growth-versus-poverty-reduction>. Acesso em 15 jul. 2016.

Thomas Piketty, em seu livro O capital no século XXI, lançado em 2014, causou furor, e às vezes críticas azedas, ao constatar a progressão da desigualdade. Ele analisa em profundidade a dinâmica de acumulação do capital e sua evolução em longo prazo, bem como a distribuição da renda entre o capital e o trabalho, em um período de três séculos, em vinte países. Na introdução de seu livro, afirma:

CHAUÍ, Marilena. “Introdução a Rousseau”. In: ROUSSEAU, Jean Jacques. Rousseau. Coleção Os Pensadores, volume I. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 13. DONATO, Mauro. Desigualdade: estudos sobre as famílias ricas mostram que os pobres são os mesmos de sempre. 13 jul. 2016. Disponível em: <http:// www.diariodocentrodomundo.com.br/desigualdade-estudos-sobre-as-familias-ricas-mostram-que-os-pobres-sao-os-mesmos-de-sempre-por-donato/>. Acesso em: 14 jul. 2016. FERDINAND, Denis. Uma festa brasileira celebrada em Ruão em 1550. Brasília: Senado Federal, 2011. FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1976.

O crescimento econômico moderno e a difusão do conhecimento tornaram possível evitar o apocalipse marxista, mas não modificaram as estruturas profundas do capital e da desigualdade – ou pelo menos não tanto quanto se imaginava nas décadas otimistas pós-Segunda Guerra Mundial. Quando a taxa de remuneração do capital ultrapassa a taxa de crescimento da produção e da renda, como ocorreu no século XIX e parece provável que volte a ocorrer no século XXI (caso brasileiro), o capitalismo produz automaticamente desigualdades

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. JONES, Colin. Paris, biografia de uma cidade. 5 ed. Porto Alegre: L&PM, 2013. LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2007. LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac Naify, 2010. MONTAIGNE, Michel. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Rousseau. Coleção Os Pensadores, volumes I e II. São Paulo: Nova Cultural, 2000. STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. São Paulo: Martin Claret, 2006. THEVET, André. Singularidades da França Antarctica, a que outros chamam de America. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944.

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Sobrevivente Rio de Janeiro, 1955 ou 1956

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oi nos Bancários que, pela primeira vez, eu soube da existência de comunistas no mundo. A verdade é que eles eram muitos no edifício (e nas adjacências), a começar por Agildo Barata, responsável em 1935 pelo comando da rebelião comunista no 3º RI, na Praia Vermelha. Nos anos 1950, ele residiu nos Bancários, época em que se desligou do PCB por divergências com o Comitê Central, conforme ele mesmo contou em “Vida de um revolucionário”. No fim da vida, amargurado ou descrente da ideologia que o fizera lutar, sofrer, ser preso e permanecer longos anos longe dos amigos e da família, Agildo sofreu um derrame e teve o lado esquerdo do seu corpo prejudicado. Foi um lutador, um líder, um homem extraordinário. Um comunista convicto e sincero como poucos que conheci, embora de longe. Graciliano Ramos, em “Memórias do cárcere”, faz referências elogiosas a ele, destacando a sua tenacidade e capacidade de liderança.

Sobrevivente Ronaldo Conde Aguiar Verbena Editora 2016

“Esquisita pessoa, Agildo. Minguado, mirrado. A voz fraca e a escassez de músculos tornavam-se impróprio ao comando. A sua força era interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto preciso, na hora exata. (...) Agildo conseguia discernir a alma alheia”.

pp. 64-68

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Joaquim nunca fez carga contra os comunistas, inclusive por que, segundo ele, tinha alguns amigos comunistas, gente que ele gostava e respeitava. Nunca ouvi Estrela falar a respeito de comunistas ou do comunismo, talvez ela nem soubesse do que se tratava. Nós tínhamos uma vizinha de porta, chamada Yeda, que, na juventude, tinha sido do Partido Comunista Brasileiro. Ela era muito amiga de D. Maria Barata, mulher de Agildo Barata, outra pessoa sobre a qual Graciliano escreveu. “Maria era exuberante e explosiva, aceitando provocações e dando a resposta necessária, alheia ao perigo, desprezando consequências. 16


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A mulher sempre visível, o andar firme e direto, a voz forte, impelida às resoluções violentas, numa alegria sã”.

— Devagar, meu filho. Quando Nikita Krushev denunciou os crimes de Stalin, em 1956, durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Boris sofreu uma crise depressiva braba, que lhe valeu um enfarte que quase o matou. Foi levado às pressas para o hospital, onde ficou internado por semanas.Tive pena dele, compreendi o alcance do seu sofrimento e decepção, afinal ele aprendera a ver Stalin como um governante generoso, boníssimo, interessado apenas na edificação segura do socialismo e no bem-estar da humanidade. Boris superou a crise cardíaca, mas também nunca mais foi o mesmo, acho. Perdeu a crença e a esperança. Era triste vê-lo sem aquela antiga chama. Sem aquele velho entusiasmo. Nada dói mais que a perda das ilusões – na vida, na política e no amor. Naquela época eu já tinha o hábito de ler, mas o pai de Luís Carlos orientou algumas leituras minhas – o que foi ótimo, pois ele me fez conhecer autores que, talvez, eu não fosse ler tão cedo.Por sugestão dele li Victor Hugo, Emile Zola, Lima Barreto, Eça de Queirós, Romain Rolland, Dostoiévski, Stefan Zweig, muitos outros. Li também os romances da Editorial Vitória, do PCB, tais como “Espártaco”, de Howard Fast, “Primeiras alegrias”, de Konstantin Fédin, “Terra e sangue”, de Mikhail Choloklov, “A colheita”, de Galina Nikolaieva, “A lã e a neve”, de Ferreira de Castro e “Assim foi temperado o aço”, de Nikolai Ostrovski, livros que, na época, me impressionaram bastante. Gostei demais dos livros do português Ferreira de Castro, especialmente de “A selva”, ambientado na Amazônia. Boris – é claro – me emprestou ou me deu também textos de literatura marxista. Tentei ler, mas na época não entendi porra nenhuma. Achei-os entediantes.

Yeda era um amor de pessoa, sempre solícita, compreensiva e inteligente. Era casada com um médico psiquiatra, um sujeito esquisito, mandão, muito culto e autoritário chamado Ítalo. Eu, rapazinho, conversava com Yeda e Ítalo assuntos que jamais me passaram pela cabeça tratar com Joaquim, muito menos com Estrela. Tive um amigo nos Bancários, o nome dele era Luís Carlos (em homenagem a Prestes), cujo pai era dirigente do Partido Comunista Brasileiro. Não recordo o nome do pai do Luís Carlos (para facilitar a narrativa, vou chamá-lo de Boris), mas eu gostava de ir ao seu apartamento. As paredes da sala eram coalhadas de livros, que também se espalhavam, em pequenos montes, sobre móveis, cadeiras e cantos dos cômodos. Todo mundo dizia que os comunistas eram o diabo, queriam escravizar as pessoas, roubar as crianças dos pais, dominar a alma e a mente do povo. Meu tio Belarmino, irmão de Joaquim, era anticomunista de carteirinha e maçom. Ele acreditava que os comunistas eram demônios travestidos de gente. Eu olhava para o pai de Luís Carlos e não conseguia ver nele a personificação do diabo.Boris usava um bigode à Stalin, fumava muito, era formal e conversava conosco com voz pausada, calma, segura. Era bancário, mas seria facilmente tomado como um professor. Um bom professor, por sinal. Ele nos contava muitas histórias sobre a União Soviética, o heroísmo do povo soviético durante a luta contra os nazistas e a construção do socialismo, repleta de sacrifícios e sofrimentos. Repetia, com sincera emoção, que a União Soviética perdera mais de vinte milhões de pessoas na II Grande Guerra, o que era verdade. Boris falava muito de Lênin e de Stalin, a quem chamava de “guia do povo soviético” ou de “guia da construção do socialismo”. Falou-nos também de alguns intelectuais comunistas, como Jorge Amado, Dalcídio Jurandir, Eneida de Morais, Portinari, Graciliano Ramos, muitos outros. Um dia, Boris nos explicou como seria o Brasil socialista. Ouvi eletrizado. À noite, conversei a respeito com Joaquim, que, após me olhar fixamente disse apenas: “devagar, Vitor, devagar.” Meu pai sempre dizia isto quando me via entusiasmado ou excitado com alguma coisa.

Rio de Janeiro, 1958 ou 1959 Fui à casa de Clarice temendo o pior. A mãe dela, pelos meus cálculos, poderia engrossar comigo. Eu estava disposto a responder grosseria com grosseria. Para minha surpresa Laura me recebeu educadamente, embora mantendo distância e frieza. Após me olhar de cima a baixo, perguntou como eu ia e me informou que gostava de receber os amigos da filha. Nenhuma vez se referiu a mim como namorado da filha. — O Vitor vai me ajudar a fazer o exercício de geografia. — explicou Clarice. 17


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mana”, de Honoré de Balzac. Paulo Ronai era um dos maiores especialistas em literatura francesa, especialmente da obra balzaquiana. Ronai atuou em vários campos, todos com brilhantismo: na tradução, no ensino, na crítica e no ensaísmo literário. Como professor era severo e exigente, mas seguro e sábio. Como, aliás, deve ser o professor que se preza. Paulo Ronai é autor de um livro que gosto muito: “Como aprendi o português e outras aventuras”, editado em 1956 pelo Instituto Nacional do Livro. Em 2013, a editora Casa da Palavra lançou uma reedição do livro. Merece ser lido. Eu o tenho em minha mesa de cabeceira.

Laura limitou-se a dizer “sei”, como se duvidasse da minha capacidade de ajudar a filha num reles exercício escolar. Laura virou-se para a filha e disse que ia descansar um pouco, tivera um dia péssimo no trabalho. Pediu desculpas – e nos deixou a sós na sala.

Rio de Janeiro, 1955 ou 1956 Em meados dos anos 1950, me transferi do Santo Antônio Maria Zaccaria para um colégio da rede pública municipal, o Souza Aguiar, cujo endereço não podia ser melhor: Rua Gomes Freire, no bairro da Lapa, ao lado do Teatro República, em frente ao prédio do Correio da Manhã, um dos grandes jornais brasileiros. Para ser admitido no Souza Aguiar tive que fazer uma prova de conhecimentos gerais, uma espécie de vestibular. Foi um acontecimento marcante na minha vida, não só por que desafogou o combalido bolso de Joaquim, como me proporcionou contato com grandes professores, que marcaram a minha vida. Pode parecer estranho aos mais jovens, mas naquele tempo o ensino público no Rio de Janeiro tinha uma qualidade que o fazia rivalizar e até superar as melhores escolas privadas. Exemplo clássico, sempre citado, era o Pedro II, mas o Souza Aguiar não ficava atrás em matéria de ensino e excelência. Paulo Ronai, Orlando Valverde, Bella Josef, Almir Câmara de Matos Peixoto, Leodegário Amarante de Azevedo Filho, Silvio Elia, Ernesto Faria, Edmundo Moniz – eis parte do elenco do corpo docente do Souza Aguiar. Fui aluno de todos. Quem quiser ter mais informações sobre eles, conhecer a obra que escreveram, é só procurar no Google. Só para dar um exemplo: Paulo Ronai, meu professor de latim e francês, era húngaro e veio para o Brasil na época da guerra. Dominava uma quantidade enorme de línguas. Sua obra principal, a meu ver, foi a organização e orientação (notas, prefácios, revisão das traduções) da mais completa e estupenda edição em língua portuguesa de “A comédia hu-

*** Um amigo meu, a quem conheci no Souza Aguiar, contou-me a seguinte história: Em 2003, uma instituição privada de ensino superior convidou-me para dar um curso para professores de 2º grau da rede pública. Em princípio, não aceitei. As aulas comprometeriam as manhãs de oito sábados seguidos – e eu tinha planos de aproveitar as minhas manhãs de sábado em coisas mais aprazíveis, inclusive dormir até mais tarde. Mas o coordenador do curso, que era meu conhecido, insistiu tanto que acabei aceitando. Logo na primeira manhã ocorreu-me a infeliz ideia de fazer à turma (cinquenta professores) uma pergunta: quantos livros vocês leram nos últimos seis meses? O silêncio da turma obrigou-me a refazer a pergunta: e nos últimos doze meses? A turma permaneceu em silêncio. Fiquei puto – e engrossei: alguém aqui já leu pelo menos um livro na droga da vida? Acreditem: apenas quatro professores levantaram a mão. E só uma se lembrava do título do livro que lera. Como esses professores vão criar nos alunos o hábito da leitura se eles próprios não têm esse hábito? Eu não soube responder a pergunta do meu amigo. ■

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Os senhores da guerra, o filme e o destino: uma epopeia Carlos Alves Müller – Jornalista

“Acho que à nossa coragem física de guerreiros devemos acrescentar a coragem moral de enfrentar a realidade.” (Érico Veríssimo. O Tempo e o Vento. O Arquipélago. Vol. II)

1923.

O sangue corre pelos campos do Rio Grande do Sul, mais uma vez. Ainda não nasceu a geração de gaúchos que passarão a vida sem que seu estado seja campo de batalha. Esse é o cenário de “Os senhores da Guerra”, filme de Tabajara Ruas, baseado no romance homônimo de José Antônio Severo, que estreou nos cinemas brasileiros no dia 15 de setembro. Não é um daqueles filmes folclóricos, embora o público não escape de alguns segundos de uma dança da chula, nem daquelas produções “regionalistas”, em que um ator global interpreta “um certo capitão Rodrigo” com um sotaque ridículo. Neste caso, por trás do gauchismo há conflitos humanos universais, que podem ser rastreados aos clássicos gregos, como a guerra que opõe irmãos, e fragmentos do confronto político que perduraria por décadas na história do Brasil, o que talvez não seja percebido por uma parte do público. Claro que o filme segue cânones cinematográficos e faz “citações” ou “concessões”, como se prefira, a gêneros consagrados como o histórico, o faroeste e às histórias do amor entre jovens em meio à violência que os cerca. Mas é tudo verdade. Ou quase. A reconstituição de época é de um cuidado raro nas produções brasileiras, as cenas de luta são verossímeis – as armas disparam um número plausível de tiros e não matam metade da população, como certos filmes que abusam dos efeitos especiais (e da tolerância do público). E a fotografia é, em várias sequências, deslumbrante.

Em meio à balaceira ao melhor estilo dos faroestes de John Ford, de quem Tabajara é grande admirador, os irmãos Júlio Raphael e Carlos Bernardino Bozano alinham-se às facções antagônicas na Revolução de 23. É assim que ficou conhecido o conflito desencadeado pela reeleição fraudulenta do governador Antônio Augusto Borges de Medeiros, do Partido Republicano Riograndense, para seu quinto mandato no marco da “Ditadura Científica” idealizada por Júlio de Castilhos sob inspiração do Positivismo. De acordo com a Constituição castilhista do Rio Grande do Sul, para se reeleger, Borges de Medeiros teria que obter ¾ dos votos. Apesar da brutalidade contra os opositores e das evidências de fraude, sua vitória foi confirmada por um Legislativo submisso. A oposição iniciou um levante armado, sabendo que não teria chances contra a poderosa Brigada Militar (como até hoje é chamada a PM gaúcha). Sua esperança era forçar uma intervenção federal, mas o presidente Artur Bernardes, que enfrentava agitação militar contra seu governo desde antes da posse (movimento tenentista e o lendário episódio dos “18 do Forte”), e sabendo também que a Brigada era capaz de enfrentar com chances de vitória as tropas federais aquarteladas no Estado, preferiu tentar um acordo mediado por seu ministro da Guerra, o general Setembrino de Carvalho. A paz foi assinada em dezembro de 1923 e ficou conhecida como Pacto de Pedras Altas, local onde fica um castelo de estilo medieval, sede da 19


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fazenda do liberal Assis Brasil, contradição que seus adversários nunca esqueciam. Os revoltosos aceitaram que Borges de Medeiros cumprisse seu quinto mandato em troca de não disputar a eleição seguinte e de uma série de alterações na legislação reivindicadas pela oposição. Alguns de seus líderes, entretanto, não aceitaram o acordo e voltaram a se exilar no Uruguai. Borges de Medeiros, ex-delegado de polícia, era uma figura soturna. Autoritário, mas não ignorante, exímio manipulador dos homens, era obcecado pelas noções de ordem e progresso... e austeridade (ao morrer, em 1961, mantinha-se graças à ajuda de amigos). Seus partidários, apelidados de “chimangos” (ou pica-paus) – em referência a “Antônio Chimango”, um livreto satírico, nele inspirado – se distinguiam por um lenço branco no pescoço. Sob seus governos, o Rio Grande tinha o terceiro PIB estadual, alternava com Minas a segunda maior arrecadação e tinha na produção de arroz a primeira lavoura verdadeiramente capitalista do país, utilizando metade da frota nacional de tratores. Porto Alegre foi a primeira capital brasileira a contar com serviço público de iluminação elétrica. O estado iniciou um processo de industrialização e tinha uma malha ferroviária que se distribuía pelo interior a partir de Santa Maria. O Rio Grande progredira, mas a pecuária estava em crise, depois dos altos lucros obtidos durante e imediatamente após a I Guerra Mundial. Borges de Medeiros era conservador, do ponto de vista das finanças públicas. Negava-se a usar recursos oficiais para amparar um segmento econômico ou a negociar com o governo central uma política semelhante à de apoio à lavoura cafeeira e outras medidas tributárias reivindicadas pelos pecuaristas. Os rebeldes eram liderados por Joaquim Francisco de Assis Brasil, um fazendeiro não especialmente rico, mas culto e persuasivo. Seus partidários eram os “maragatos”, conotação pejorativa aplicada pelos chimangos, porque seus líderes militares, na maioria veteranos da Revolução Federalista de 1893, exilaram-se numa região do Uruguai onde predominavam imigrantes da região espanhola da Maragatería. Se distinguiam pelo lenço vermelho.

Formado em Direito, em São Paulo, republicano e abolicionista desde jovem, Assis Brasil era autor do primeiro livro brasileiro de Direito Constitucional, foi embaixador nos Estados Unidos (como diplomata teve importante participação na questão do Acre), deputado e ministro. Dizia que “não são os ricos que fazem a riqueza; são os pobres”; que “povo ignorante e pobre será sempre escravo ou em perigo de ser escravizado”. Defendia a participação dos assalariados nos lucros das empresas. Foi líder revolucionário, derrotado, exilado, vitorioso e, posteriormente, partidário da conciliação para pôr fim à “rude e ruinosa luta entre irmãos... porque se trava entre perdulários da bravura”. No início de 1924, os revoltosos de 23 que não aceitaram o Pacto, voltaram a atacar com o objetivo de se aliarem aos militares que se rebelaram novamente em São Paulo e no noroeste do Rio Grande do Sul, sob o comando de um jovem capitão que se tornaria lendário: Luís Carlos Prestes. Eram os ex-tenentes que se insurgiam contra Bernardes, em quem personificavam todos os vícios da Velha República e tratavam de levar o Brasil a uma nova era, nem que fosse à força. Havia motivos, portanto, para que os jovens gaúchos se identificassem com quaisquer das facções em conflito. No devido tempo, herdariam as bandeiras de seus líderes e assumiriam papéis importantes na História do Brasil ao longo das décadas seguintes, defendendo com ardor variável, e muitas vezes intercambiável, os ideais de progresso, justiça social, pluralismo, autoridade, unitarismo, federalismo etc. Entre esses jovens estava o deputado estadual Getúlio Dorneles Vargas, um dos que não se atreveram a desafiar Borges de Medeiros e depois... Bem, vocês sabem o que ele fez depois, em companhia de correligionários como Osvaldo Aranha. Também sabem o que fez Prestes e têm ideia do que alguns “tenentes”, já com a alma rebelde obliterada, fizeram ao participar do golpe contra João Goulart, em 1964. Assis Brasil e seus partidários criaram o Partido Libertador, que nunca teve maior expressão fora do Rio Grande do Sul, mas deixaria um herdeiro tardio, nascido em outubro de 1924 – Paulo Brossard, falecido em 2015, depois de ter sido deputado,

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senador, ministro da Justiça e Ministro do Supremo Tribunal Federal... e libertador por toda a vida, embora o partido tenha sido extinto em 1965, pelo Ato Institucional nº2. Tudo isso tem a ver com o filme de Tabajara Ruas e com o Brasil que nos toca viver. Não vou ser estraga prazeres, contando o final. Mas posso dizer que, em 1924, os dois irmãos Bozano seguiram seus ideais em lados diferentes do conflito. Já Maria Clara, a protagonista feminina da história de amor, a jovem sufragista que se tornou noiva do tenente-coronel borgista Júlio Bozano, tornou-se a primeira catedrá-

tica de medicina brasileira, respeitada internacionalmente como pediatra – um marco na igualdade de gênero no País. Os Senhores da Guerra estreia neste setembro em que, como há 181 anos, os gaúchos comemoram mais um aniversário da Revolução Farroupilha. Mas o Rio Grande de hoje não é mais do que um eco distante daquele Estado em que os jovens romanticamente esbanjavam bravura, como disse Assis Brasil. No mundo de hoje, a realidade não é mais do que uma versão patética de uma epopeia que nunca chegou a acontecer. ■

Os Senhores da Guerra Produção executiva LIGIA WALPER Da obra de JOSÉ ANTONIO SEVERO Um filme de TABAJARA RUAS Tabajara Ruas nasceu em Uruguaiana (RS) a 11 de agosto de l942. Cineasta e escritor, Tabajara estudou arquitetura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre e na Kongeligkunstacadami, em Copenhagen. Estudou cinema na High School de Vejle, na Dinamarca. Entre 1971 e 1981, por sua atuação política, foi exilado, e morou no Chile, Argentina, Dinamarca, Portugal e São Tomé e Príncipe. Anistiado, voltou ao Brasil e morou em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Atua em cinema desde 1978 como diretor, roteirista e produtor. Tabajara completou 30 anos como autor de literatura com 10 romances publicados no Brasil e em 9 países. Também publicou folhetins, ensaios, artigos, participou de coletâneas e fez traduções, além de editar diversos livros para publicidade.

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Esta tal de estatística Fabiano Cardoso

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á no Netflix um filme chamado “O Homem que Mudou o Jogo”. De início já digo que o filme é bom. Não apenas pelo ator da estampa, mas pela temática, ainda mais, diga-se de passagem, ter a história algo de verídica, mas vá saber, é Hollywood. Em resumo, o filme mostra a saga de uma pequena equipe de baseball que chega às finais do campeonato com um time de orçamento diminuto. Mas não se tratou de um milagre ou um “acordo do treinador com o time”, um “pacto entre os atletas”, um “grupo unido que, naquele momento, se fechou e foi atrás do objetivo”. Não. Aliás, no caso, o treinador do time acaba seguindo as sugestões de um técnico em estatística que usa a teoria de um matemático sobre dados

obtidos dos jogadores em relação ao desempenho em diversos fundamentos do baseball. O treinador chega a usar jogadores que sempre jogaram em determinadas posições em outras, pois, àquela altura de suas carreiras, eles rendiam melhor executando outros tipos de movimentos (o que no baseball, em princípio, é importante). Me pergunto, então, e algo assim ser feito deste no futebol? A primeira crítica que chega é a de que o esporte bretão (hoje não tão bretão assim) não se faz por estatística, que é um esporte de paixão e que isso tiraria toda a graça do jogo. A outra é a de que isto pode funcionar nesses esportes em que a estatística é importante, mas não no futebol. Não, no futebol isso não funciona. ▶

Foto: pixabay.com – CC0 Public Domain

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Estes tipos de críticas me lembram uma amiga que morou por 4 ou 5 anos no Japão. Ao iniciar o processo para obtenção da licença para dirigir, esta minha amiga deparou-se com algo um pouco mais complicado que a burocracia: a tradição. Havia a exigência de se preencher um questionário todo com kanjis, a mão. Como ela não sabia os kanjis, pediu que o funcionário escrevesse para ela, o que foi respondido com um sonoro “não, isto não posso fazer porque me é proibido. Tem que ser com sua letra”. O máximo que ela conseguiu foi que ele escrevesse (desenhasse) numa folha em separado e ela copiasse para o formulário. Após três tentativas (pois sempre havia algum kanji que não estava desenhado corretamente), o funcionário me pega o formulário preenchido e o copia para o computador. Minha amiga, revoltada, interveio: “Ué, se você está passando pro computador, porque eu não pude fazer direto no computador?” e o funcionário respondeu: “Há quatrocentos anos fazemos assim. É assim que tem que ser feito”. O futebol também sofre deste problema de tradição. Por exemplo. Por que, diabos, não podemos fazer um teste, como no futebol americano, de termos treinadores separados para defesa, meio-campo e ataque? Acaba que temos atacantes que erram em demasia chutes a gol, que não sabem fazer um pivô, que não conseguem driblar um zagueiro; laterais que não conseguem acertar um cruzamento, que não sabem atacar nem defender. Se a meritocracia fosse aplicada nos clubes brasileiros teríamos jogadores disputando, a tapas, um comercial de goiabada. Falta ao futebol brasileiro, além de coragem, tática e fundamento. Ambos podem ser melhorados com a ajuda de elementos como a estatística, a exemplo do filme citado no início deste artigo. Já há diversas reportagens que mostram a utilização de

http://www.allabroad.org/ 23

equipamentos que medem o deslocamento do atleta em campo, quanto ele gasta de energia, de calor, de água etc. Tudo isso auxilia na preparação física do atleta. Mas acaba que isso, sem a aplicação de fundamentos e de tática, serve apenas para mostrar que há um jogador que consegue fazer tempo olímpico de 100m durante uma partida, mas que, de resto, não consegue roubar uma bola, fazer um passe, chutar a gol ou se posicionar corretamente em campo. Romário, que ficou mais conhecido por “ficar na banheira”, era um velocista. Saía feito uma flecha (sem a bola ou com ela) e, quando entrava na área, era gol. Depois de uma certa idade percebeu que não precisava se desgastar tanto, podia ficar lá, paradão, esperando a bola. Aprendeu a se posicionar como poucos, a dominar a bola em espaço diminuto, a driblar com perfeição e a chutar a bola pra dentro do gol com técnica (aprimorada após aperfeiçoar os fundamentos) inigualável (lembrem-se do gol de biquinho de Ronaldo a lá Romário). Romário fazia o simples parecer complicado a ponto de responder com genialidade sobre polêmicas sem importância, como o tipo de bola usada em uma Copa do Mundo: “É, continua redonda, né?”. É certo que elementos como a estatística podem não modificar o jogo, mas auxiliam, e muito, o desenvolvimento dele. É certo que o elemento humano sempre estará presente e sempre decidirá o destino de um resultado. Um jogador pode não dar a mínima para o fundamento, por exemplo. “Ah, ele quer me ensinar a chutar a bola! Até parece! Vou fazer do meu jeito”. Mas, se não quisermos ficar para trás, de novo, precisamos prestar atenção a estes pormenores. Afinal, o gol é só um detalhe. Ah, para os que se perguntam sobre o sucesso do tal time de orçamento diminuto… Vejam o filme. Vale a pena. ■


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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa Brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.

Capítulo 11

QI de 198 pontos Com 24 anos a gente não tem noção de nada, eu então, muito menos. Não pretendia implantar república comunista, nem capitalista e nem budista, me fixei num culpado: o maldito teste de QI, no fundo não queria aceitar a besteira que fiz. Se não fosse ele jamais seria descoberto, pensava. O problema é que vivia impaciente para sair daquela ilha perdida no meio do cerrado. Para os políticos e burocratas encastelados no poder era fácil, bastava pegar o avião e estavam no Rio ou São Paulo, onde passavam quatro dias por semana. Pessoas como eu estavam condenadas àquele vazio e silêncio insuportável, principalmente para quem vinha de grandes cidades. Silêncio terrível, amplo, de túmulo fechado. Precisava pensar em um jeito de sair dali. Voltar a lavar vitrines no Rio, não, isso não, aguentar os xingamentos dos gerentezinhos de lojas, não dava. Imaginei uma alternativa arriscada, mas plausível, para escapar de Brasília: ia ser paraquedista, assim seria transferido de volta para o Rio, ao mesmo tempo poderia satisfazer minha vontade de rasgar tudo e atirar-me aos

ventos, vontade que aflorava com mais vigor cada vez que me sentia contrariado. Mas havia uma dificuldade. Era necessário fazer uma prova escrita, um exame físico rigoroso de arrasar qualquer um e um teste de nível mental, ou seja, um teste para medir o coeficiente de inteligência do candidato, se é que isso era possível, mas aqueles também eram tempos de credulidade, hoje acho que ninguém acredita mais nisso e a sigla QI tem outro significado mais adequado aos novos e velhos tempos. Embora só tivesse estudado até a quarta série do primeiro grau passei fácil na prova escrita. No teste físico quase morri, fui parar no posto de saúde, mas deu para passar. Teste de QI não reprovava ninguém a não ser que o sujeito fosse um beócio, pensei. Enganei-me. Estava fazendo a mala para viajar quando fui chamado urgente pelo Freitas, este sim um beócio reconhecido por todos que lidavam com ele. Nem bem me apresentei, o cretino disse que estava preso. Passei dois dias perguntando a mim mesmo o que poderia ter feito de errado. Talvez a briga no Mocambo, há duas semanas? Um sujeito bêbado começou uma discussão idiota com outro cara e dei de me meter na


confusão sem necessidade, aí o cara puxou um facão, normalmente usado por nordestinos, e partiu pra cima de mim, tive que atirar no sujeito, mas a bala passou de raspão e acertou no escudo do Flamengo que ficava na prateleira. Não deu em nada, mas o proprietário do Mocambo, um baixinho invocado e flamenguista doente, se deu ao trabalho de ir ao Setor Policial Sul e deu queixa na delegacia. Ou quem sabe foi a confusão no Caravelle, por causa do caldo de galinha que joguei no garçom sem a menor necessidade. Pode ter sido o tiroteio na Zona de Brasília, “nas casas”, quando minha Beretta falhou e tive que correr, acabei caindo numa vala de onde os bombeiros me tiraram e me levaram pra casa, aonde cheguei só de cuecas, perdi até os sapatos, foi uma vergonha. Podia ser tanta coisa, sentia que se esvaía minha tentativa de mudar de cidade. Finalmente, o safado do Freitas voltou a me chamar e cheio de formalidades mandou que entrasse em um salão enorme onde estavam dois homens. Havia uma mesa e quatro cadeiras bem no meio da sala, os três sentaram-se de um lado e eu do outro, como numa inquirição formal. Percebi que me observavam como se eu fosse um animal estranho, e não “aquele rapaz que joga futebol e atira muito bem”, como alguns deles comentavam sempre. Fiquei esperando a pergunta com as costas fora do encosto da cadeira e o pescoço esticado prá frente, curioso, mas não ansioso, estava acostumado a me dar mal. — Como o Senhor fez para tirar esta nota toda no TSE 2 —, perguntou o do meio, um sujeito de óculos de aro fino com jeito de intelectual. TSE 2 era o tal teste de QI adaptado para militares e certamente originário dos americanos, como quase tudo no Brasil e praticamente tudo no Exército depois da Segunda Guerra. O Freitas foi emendando com seu modo grosseiro. — Roubou a prova, alguém ajudou? Explique-se logo.

— Explicar o quê? Indaguei surpreso. Esperava qualquer acusação, menos aquela. O homemde óculos levantou-se, deu uma volta pela sala e perguntou com calma, de modo professoral, sem alterar o tom de voz: — O senhor já fez este teste alguma vez? — Bem, eu fiz o TSE 1, este não —, respondi, me referindo ao TSE 2, que era muito mais complicado, mas nada de assustar. Se eles soubessem que acertei todo o TSE 1, estava frito. — Estamos com um problema aqui, sabemos que o Senhor não tem capacidade de acertar o que acertou no teste, então precisamos investigar como fez isso, que artimanha usou, afinal de contas nem na Academia se tem notícia de alguém que tenha feito mais de 195 pontos, não é Valdetaro? — Disse o terceiro homem, dirigindo-se ao de óculos que obviamente chefiava o grupo. Então é isso. Fiz pontos demais no teste. Mas como, se chutei pelo menos umas dez questões? Pensei, me sentindo culpado. — O que o Senhor tem a dizer? — e puxaram um bloco de papel, como se fosse um inquérito. Como era inocente, acabei me enfezando: — O teste é fácil. Acho que acertei umas 190 questões e chutei as dez finais que eram muito ambíguas, mas não impossíveis de acertar —, respondi com uma ponta de ironia, notada pelo homem de óculos, que passou a me olhar como se tratasse de um animal a ser observado. — Uma última pergunta, você acertou a questão dos números em sequência? — Questionou o terceiro homem. — Acertou sim —, respondeu o próprio Valdetaro. — Rapaz, se fez de verdade estes 198 pontos, vou lhe dizer uma coisa, e é bom que você anote bem anotado: você anda muito em cima da linha, no limite, do outro lado está a loucura, cuidado, muito cuidado. ▶

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Lembro que a pergunta era: “qual o próximo número da seguinte sequência, 13-16-2226-38-62... Nunca mais esqueci estes números. Quase queimei todos os fusíveis e a fiação, nem sabia que tinha acertado. O sujeito de óculos de intelectual ainda disse uma única palavra, quase uma pergunta: “ambíguas”? Mandaram me soltar no outro dia e fui morar em Realengo. Mas aquele famigerado teste tinha selado meu destino. O Gaúcho me olhava cada vez mais intrigado, tentando imaginar o que tinha acontecido posteriormente e o que o teste tinha a ver com todo o resto que me jogou no atoleiro, no fim do mundo. — Continue, tchê, estou curioso e não consigo atinar onde vais chegar. Não vais me dizer que viestes parar aqui por causa do tal teste? Passei onze meses me lançando ao vento, arriscando a vida, confiando naqueles paraquedas vagabundos, sobras da Segunda Guerra que os americanos nos mandavam. Deviam ser dobrados às minúcias, nos detalhes, daquela dobração resultava de abrir ou não abrir, de vez em quando morria alguém se espatifando em cima de uma árvore ou engolido pelos grotões que existiam às centenas na Baixada Fluminense, isso quando não caíamos no mar com vento forte, os cordões enrolados no pescoço, bobeou, morria enforcado. Muitos, quando estavam lá em cima, no corredor do avião, não conseguiam pular e eram empurrados pelos

que vinham atrás, cansei de meter os pés nas costas de borra-botas para que voassem. A única coisa boa eram as discussões com colegas sobre política. A política real, e não a que via nos jornais cinematográficos e lia nos jornais escritos: o desgoverno do Jango, o ódio lacerdista, o papel dos militares naquilo tudo. Além disso, Realengo estava muito distante dos meus interesses. Não tinha sequer uma livraria, um cinema, nem tampouco uma loja que exibisse algo de que gostasse. Era louco por cinema, principalmente por aqueles filmes intrincados do cinema europeu. Para terem uma ideia, vi “O Ano Passado em Marienbad” umas seis vezes. Em suma, Realengo era pior que Brasília, sem considerar a obrigação de acordar às seis da manhã e encarar o trem da Central lotado até a boca. A verdade é que nunca estava confortável em lugar algum e não me pergunte a razão, porque não sei. Dei oito saltos, peguei o brevê e voltei. O Gaúcho cortou a narração e disse em tom de brincadeira: — Talvez goste daqui, tem minha livraria e os filmes do Comandante, só faltam as lojas. — E soltou sua risadinha. — Devia mandar você se foder, você e essa sua risadinha de merda. — Vamos lá tchê, estou curioso pra saber como vieste parar aqui. — Então fique quieto que vou contar. Prepare-se porque é uma história fantástica. ■

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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