O Manto Diáfano nº 12 - 30 de setembro de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 12 ∙ Brasília/DF ∙ 30 set 2016

Democracia legítima e eficaz O debate presidencial nos EUA As armas da diplomacia Estatuto da Metrópole Jantar em segredo

O Ministério Público como Robespierre institucional


5 O Ministério Público como Robespierre institucional: uma ameaça para a democracia?

7 Revista eletrônica Nº 12 ∙ 30 set 2016 ∙ Brasília/DF VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Henrique Carlos de O. de Castro Jorge Guilherme Francisconi Marcelo Falak Paulo Timm Rodrigo Stumpf González Walter Sotomayor Wilian Fernandes Pereira

Democracia legítima e eficaz?

9 Sobre mudanças e passados

11 Debate presidencial nos Estados Unidos: a vitória da política

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EDITORES Arno Vogel Benicio Schmidt Carlos Alves Muller Fabiano Cardoso

As armas da diplomacia

DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck

Os Abutres Começam a Voar em Círculos

PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

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FOTO DE CAPA Portrait of Maximilien de Robespierre (1758-1794) Public domain], via Wikimedia Commons

Origem e porquês do Estatuto da Metrópole

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

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27 Jantar em segredo

29 Encaixotando Brasília


EDITORIAL N

este número, Rodrigo Stumpf González analisa a atuação do Ministério Público brasileiro frente a situação do órgão com o desenrolar mais recente perante a Operação Lava Jato. O faz comparando-o a Robespierre. Benicio Schimidt perpassa os últimos acontecimentos políticos, econômicos e sociais para que possamos entender e nos situar neste turbilhão que se tornou a vida político-social brasileira, inclusive com o adendo das eleições municipais que se aproximam. Paulo Timm, economista e gaúcho, com a ironia típica que convém a seus compatriotas gaudérios, traça inquietante relato sobre os diversos movimentos separatistas mundo afora e, inclusive, os nacionais, sempre pela perspectiva de quem já desistiu da política e, talvez por isso mesmo, possa refletir o assunto de modo (im)parcial. Nosso autor e também professor no Brazilian Fulbright Distinguished Chair in Democracy and Human Development at the Kellogg Institute, da University of Notre Dame, nos EUA, Henrique Carlos de Oliveira de Castro, faz, in loco, um balanço do último debate presidencial entre Hillary Clinton e Donald Trump e as consequências quando se coloca frente a frente uma política profissional e uma pessoa de negócios que não está acostumada ao jogo político de peixes grandes. Walter Sotomayor nos brinda com excelente texto de seu livro sobre as relações diplomáticas Brasil-Bolívia e do caso Acre. Como Rio Branco, com todo seu jogo de cintura, garantiu a posse dessas terras para o governo brasileiro situado no centro de fervor cultural do Rio de Janeiro. O arquiteto e urbanista Jorge Francisconi nos ilumina com suas explicações acerca do Estatuto da Metrópole e de como foram mudando as definições para o planejamento das cidades ao longo dos anos. O escritor Wilian Fernandes Pereira vem com conto sobre a solidão e de como ela nos leva a enganá-la nos enganando a nós mesmos. Este conto, segundo palavras do próprio autor, é uma porrada sentimental. Tivemos que concordar e publicamos. Em mais um capítulo da novela Encaixotando Brasília, Arnaldo Barbosa Brandão começa a contar como foi parar na prisão militar no norte do Brasil. Suas aventuras pela desértica e infante Brasília podem tê-lo levado a prisão. A partir de agora descobriremos como. Uma boa leitura.



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O Ministério Público como Robespierre institucional: uma ameaça para a democracia? Rodrigo Stumpf González – Advogado e Cientista Político

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á alguns anos, em um seminário sobre política e direito, muito antes da Operação Lava Jato comentando o voluntarismo da atuação de alguns membros do Ministério Público, eu manifestei que o órgão estava se tornando uma forma de Robespierre institucional. Qual para Maximilen de Robespierre, “o incorruptível”, a defesa de um ideal de Estado em que se promova liberdade, igualdade e fraternidade, em que a corrupção do antigo regime seja expurgada parece abstratamente uma boa ideia. Porém o diabo está nos detalhes. O Ministério Público como conhecemos hoje no Brasil é uma criação da Constituição de 1988, mas que traz consigo elementos de um passado mais distante, como o Código de Processo Penal de 1941 e o sistema processual inquisitorial. Previsto na seção I do Capítulo IV, Funções Essenciais à Justiça do Título IV, da “Organização dos Poderes”, do texto constitucional, o Ministério Público ficou em uma zona de sombra em que não é um Poder do Estado, denominação restrita ao Executivo, Legislativo e Judiciário, mas com autonomia administrativa e orçamentária, o que lhe dá uma liberdade semelhante a de um poder. Ao mesmo tempo, a definição de defensor da ordem jurídica e da ordem democrática, dos interesses sociais e individuais indisponíveis lhe deu uma gama de competências que vai da função de acusador no direito penal à proteção de direitos coletivos e difusos. A situação de crise econômica e política do país também favorece uma crise de representação, em que jovens procuradores idealistas, armados da espada da

lei são vistos como vingadores do povo contra o flagelo da corrupção. A natureza meritocrática dos processos de seleção dos quadros do Ministério Público garantiria que seus ocupantes fossem considerados defensores legítimos da coisa pública, não conspurcados pela participação na política, vista como um mar de lama por grande parte da população. A narrativa do caso brasileiro frequentemente leva a comparações com a Operação Mãos Limpas, da Itália, que atacou a relação entre partidos e lideranças políticas e a máfia (nas suas várias formações, como a Camorra e a Ndrangheta). As comparações em geral passam por alguns fatos: o sistema processual italiano inclui o contraditório na coleta de provas, com a função do juiz de instrução; a Operação Mãos Limpas contou com uma certa complacência no uso de detenções de legalidade duvidosa, reminiscente do uso leis de exceção criadas no combate ao terrorismo dos anos 1970, de grupos como as Brigadas Vermelhas e, por fim, que o resultado final, além do fim da Democracia Cristã, foi o surgimento de Sílvio Berlusconi como novo líder político do país. Neste momento o Robespierre institucional tem passado, cada vez mais, da imagem do líder popular da Assembleia Nacional para a do dirigente do Comitê de Salvação Pública. É bom lembrar que a história do personagem desembocou no terror e no fim da Revolução, pelo golpe do 18 Brumário. A sede da população por soluções a antigos problemas, como a manipulação da coisa pública para o enriquecimento de uma elite corrupta, aliada a dirigentes políticos venais parece estar a ser satisfeita pela atuação do Ministério Público Federal, com o

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apoio da Polícia Federal, a autorização do Poder Judiciário e o silêncio da OAB. Qual o problema do ponto de vista da democracia? A questão é quais os instrumentos utilizados pelos novos jacobinos para obter os resultados até agora alcançados? Vejamos alguns: 1. O uso extensivo de formas de vigilância eletrônica, em especial a gravação de conversas telefônicas, inclusive de advogados com seus clientes; 2. O uso comum da prisão temporária de indivíduos não condenados e, em vários casos, nem mesmo réus, durante o processo de investigação; 3. A apresentação da interpretação dos acusadores com relação às provas coletadas ao público, como evidência de culpabilidade do acusado, mesmo antes do início formal do processo judicial e sem possibilidade de contraditório; 4. A concentração de investigações e processos em uma única jurisdição, a partir da interpretação de que se trata de uma única operação de investigação, com várias fases (na Lava Jato até o momento são 33) que atrai a competência de todos os casos para um único juiz; 5. A ampla utilização de acordos de delação, obtidos de investigados presos, para sustentar a ampliação do raio de investigações. Qualquer membro do Ministério Público defenderá estas ações como plenamente legais e compatíveis com a democracia. Há duas interpretações sobre este curso de ação: A primeira é de que se trata de uma excepcionalidade. A situação do país era tão grave, e o poder dos criminosos tão extenso, que medidas incomuns são justificáveis. Afinal de contas, a novidade é que empresários ricos e políticos influentes estão indo para a cadeia, o que não acontecia em nosso país. Ir contra estas medidas seria proteger esta elite. Tão logo o mal seja extirpado (e as metáforas sanitárias são comuns na fala de alguns agentes), não será mais necessário administrar o remédio amargo. O segundo é que não se trata de tratamento diferenciado, mas do efetivo exercício do direito brasileiro, nos termos da Constituição, de acordo com a interpretação vigente. Esta é a nova ordem que veio para ficar. No entanto, se pensarmos, como qualquer advogado (outra função essencial à justiça, conforme a Constituição), nos fundamentos liberais do direito

penal moderno, que, em últimas instância, também o são da democracia, tais como o da presunção da inocência, de não ser obrigado a fazer prova contra si mesmo, do contraditório e da não aplicação de pena antes da condenação, nenhuma das interpretações é compatível com a democracia. Os instrumentos usados pelos investigadores podem ter previsão legal, mas seu uso constante e combinado fere as garantias constitucionais dos investigados e de seus defensores. Quanto à primeira, a da excepcionalidade, aberta a Caixa de Pandora, como delimitar contra quem e em que momentos se permite o tratamento diferenciado? A seletividade na perseguição daqueles considerados transgressores não seria uma característica dos regimes autoritários?

Os instrumentos usados pelos investigadores podem ter previsão legal, mas seu uso constante e combinado fere as garantias constitucionais dos investigados e de seus defensores.

Quanto à segunda, seria considerar que o fundamento da nossa democracia é a defesa da Lei e da Ordem, para lembrar uma série de televisão conhecida, ou a “Ordem e Progresso”, segundo nossa bandeira, bens coletivos superiores, aos quais se submetem a liberdade individual e as garantias processuais. Ainda é uma democracia se considerarmos a existência de eleições, mas sujeita a uma série de adjetivos que a distanciaria da forma como é praticada em outras partes do mundo (e não precisamos ir à Europa para encontrar exemplos de respeito aos direitos individuais como fundamento da ordem política). A esperança estaria na revisão judicial. O voluntarismo dos acusadores pode ser refreado pela ação do Poder Judiciário, guardião das liberdades constitucionais. Este é um outro capítulo, que pretendo abordar em outro texto. Mas como na obra de Dante: “Lasciate ogni speranza, voi ch’intrate” ■

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Democracia legítima e eficaz? Benício Schmidt – Editor-Chefe e Cientista Político

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lguns especialistas em regimes democráticos têm chamado a atenção para um crescente problema para a realização plena da democracia, ou seja, para que ela cumpra metas de eficácia com base na sua legitimidade. A principal base da legitimidade da democracia está na realização de consultas regulares, o voto do cidadão, que, quanto mais extenso, incluindo analfabetos, mulheres e imigrantes, melhor e mais seguro. A eficácia da democracia está na sua capacidade de produzir efeitos positivos, como a redução das desigualdades de renda e propriedade, a garantia de possibilidades de ascensão social, oferecer segurança, saúde e educação a toda a população de um país. O regime democrático está em crise, em quase todo o mundo. Muito tem a ver com a incapacidade de tornar fluidas as relações entre a representação da cidadania pelo voto, a intermediação dos partidos políticos e a incapacidade das administrações públicas transformarem programas aprovados pela manifestação das urnas em algo concreto, efetivo. Essa situação de impasse tem levado a um crescente descrédito na “crença na democracia como o regime ideal de governo”, em várias pesquisas de opinião de largo espectro pelo mundo afora. Um fator que tem, também, influenciado a opinião pública é a ascensão da mídia de massa, incluídas aí as redes sociais, transformando as campanhas em permanentes, muito acima e com mais força do que as consultas eleitorais regulares e sistemáticas. São notícias e pressões sociais indo ao ar a cada segundo, em uma velocidade inaudita. As redes sociais, por sua vez, acabam por solidificar um ambiente de radicalismos, sem fundamentação devida, dada as condições simplificadoras da comunicação social. Daí se originam perfis e candidatos a posições políticas com caráter populista e tecnocrata menosprezando o Legislativo, com suas longas discussões e confrontos de posições. As novas

condições aumentam o poder das vozes das pessoas e grupos, mas enfraquecem, obviamente, o sistema eleitoral no qual o Legislativo está baseado, assim como o Executivo. Uma solução seria o sistema de sorteio, com a seleção amostral de grupo de população representativo (renda, etnia, idade, gênero, ocupação profissional etc.) que – acoplado ao poder do Legislativo – poderia orientar melhor a natureza de consultas mais amplas, devidamente informadas, que seriam formuladas à população em geral. É o caso específico do BREXIT (a saída do Reino Unido da União Europeia), por exemplo. Uma decisão plebiscitária que só foi entendida em seus efeitos após a consulta popular. Outro caso seria o da Irlanda, que mudou sua Constituição sob uma combinação de eleições com o sistema de sorteio: foi criada uma comissão para revisar alguns pontos da vigente Constituição. A comissão tinha 100 membros (o Presidente, 33 políticos eleitos e 66 cidadãos escolhidos aleatoriamente). Durante um ano reuniu-se, debateu questões como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e depois foi feita a consulta popular. Medidas aprovadas pela ampla maioria da população, que contou com os informes da comissão nacional. O Brasil, agora, resolve levar adiante uma reforma do ensino médio. Matéria em debate no Congresso Nacional desde 1988 e objeto de um Projeto de Lei de 2013 na Câmara de Deputados. Esta é a 16ª Reforma do Ensino Médio no país, desde 1854. Desta vez surge como Medida Provisória. Esta terá o prazo máximo de 120 dias de debates para ser aprovada pelo Congresso Nacional. Resta saber se todas as dúvidas serão resolvidas e se as prioridades do Executivo serão referendadas. Trata-se de mudança radical, como a divisão das grades curriculares, com a redução de disciplinas obrigatórias em função de escolhas voluntárias dos próprios alunos daquilo que entendem como “vocação” 7


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apropriada, abrindo-se a possibilidade de matrículas em formação técnica (robótica, por exemplo) na própria grade. Inicialmente, não deixa de causar algum espanto na não-obrigatoriedade da disciplina “educação física” na lista das matérias obrigatórias. As atividades esportivas têm muitas funções, de valorização dos exercícios nos adolescentes, na luta contra as drogas e um dos pilares projetados pelas autoridades atléticas como base de uma política esportiva abrangente e incentivadora de novos atletas de alta competição, exemplificadas pela recente realização da Olimpíada e Paraolimpíada no Brasil. Além disso, o governo federal busca atingir ambiciosa meta de generalização das escolas em tempo integral. Uma quimera inatingível em época de restrições orçamentárias, nos Estados e União. Isso custaria cerca de 1% do PIB dos Estados, inicialmente. Muitos já em condição insolvente, como é o caso do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, já parcelando os salários mensais de seus funcionários. A emulação tem origem no Estado de Pernambuco, que prevê, entre outras ações, a dedicação exclusiva dos docentes nas unidades, com gratificações extraordinárias aos professores. O modelo tem ação pedagógica concentrada no projeto de vida do aluno, disciplinas eletivas, estudo orientado e práticas em laboratórios. Com isso, Pernambuco saiu da sexta pior média do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) em 2007 para a primeira posição em 2015, com metade das escolas em tempo integral, alcançando exitosamente ainda alunos mais pobres, que receberam subsídios para substituir trabalhos eventuais que eram obrigados a fazer. A evasão nestas escolas foi 0,5%, contrastando com a média do Brasil, de 8%. Todas estas mudanças implicam melhorias institucionais e logicamente maiores gastos com a educação; bem acima das possibilidades dos Estados, a quem a União promete subsidiar durante o período de implantação. Além disso, a reforma proposta implica em debater sobre os destinos dos Institutos Federais de Educação e do PRONATEC. São exemplos de tentativas centralistas do governo, não levando em consideração a necessidade de um processo adaptativo das instituições aos planos “salvadores”. Além disso, a Medida Provisória, embora conte com o prazo de 120 dias para debates e ajustes, certamente provocará movimentos contrários por parte dos agentes diretamente implicados. Mais uma turbulência a ser enfrentada por todos. ■ 8


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Sobre mudanças e passados Paulo Timm – Economista

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ou de pouca política. Me desfiz de ser. E considero que a única questão realmente relevante não é a decidir sobre socialismo ou democracia, mas a de saber se Deus existe”. Palavras sábias de Guimarães Rosa, seja diretamente ou através de seu alter ego ficcional, Riobaldo, em “Grande Sertão: Veredas”, meu livro de cabeceira, como era a “Ilíada” para os antigos gregos. Eu também já me desfiz do pouco que fui de político. Ficaram-me algumas lembranças e este diálogo com vocês. Semana cheia, daquelas que serão lembradas pelos historiadores: Dilma voltou pra casa, temos uma mulher como nova Presidente do Supremo na linha de sucessão, caiu o deputado Eduardo Cunha, senhor de muitos anéis, além de polpudas contas no exterior e foi indiciado pelo Ministério Público, na Lava Jato, o ex presidente Lula da Silva, como o poderoso chefão da propinocracia. Brasília ferve. A mídia só fala nisso. E as ruas se dividem entre os intrépidos gritos de FORA TEMER e um silêncio ensurdecedor dos que não se manifestam. A maioria, perplexa, está com a respiração presa… Para onde iremos? Eu, que, como disse, já me desfiz da Política, sugiro modestamente que o melhor seria Temer renunciar e que novas eleições se realizassem para cumprir o restante do mandato cassado. Diante disso, os mais velhos assistem a tudo – preocupados – e lembram que estamos precisando de um Nelson Rodrigues, jornalista e escritor, famoso por suas crônicas nos anos 1950/60 para dar conta de tantas “obsessões”. Ou de um Paulo Francis, outro cínico antológico até no falar, que lhe sucedeu. Ou, enfim, qualquer outro desses clássicos românticos desiludidos, únicos capazes de encontrar nesta conjuntura alguma graça. Eu, escrevinhador de província, não ouso. Preferiria, aliás, fôssemos um país menor e menos complexo, nem que fosse para eu entendê-lo à contento da crônica.

Rio Grande independente, separado do Brasil? Que loucura! Na melhor das hipóteses íamos nos tornar um Uruguai ainda mais empobrecido. Não temos petróleo! O nosso Estado não consegue nem pagar seus funcionários, imagine Embaixadores no resto do mundo!? Que loucura! E, por falar nisso, estamos em setembro, e a gauderiada se alça – ou alceia como dizem os portugueses – no preparo das festividades da Revolução Farroupilha. Juremir Machado, escritor e ensaísta crítico consagrado, com vários livros sobre o evento, a contesta, e não vê a hora de pararmos de celebrar uma traição. Eu relembro o 20 de setembro sem euforia, mas como uma grande oportunidade para discutir mais uma de minhas teses condenadas ao fracasso: o Rio Grande independente. Também defendo a extinção do Senado Federal, o fim do monopólio da representação política por Partidos, a Escola em Tempo Integral, a reavivação do Trabalhismo como uma via para o desenvolvimento democrático no país e a Paz entre os povos… (entre outras). Rio Grande independente, separado do Brasil? Que loucura! Na melhor das hipóteses íamos nos tornar um Uruguai ainda mais empobrecido. Não temos petróleo! O nosso Estado não consegue nem pagar seus funcionários, imagine Embaixadores no resto do mundo!? Que loucura! ▶ 9


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Como disse, não moverei uma palha para a luta pela independência do Rio Grande do Sul. Já me desfiz da política. Mas adoro usar a pena para divulgar ideias e, sobretudo, promover confusão. Esse é o papel, aliás, do intelectual: criar caso. Certa feita, o grande Umberto Eco foi convidado pelo então Presidente François Mitterrand, da França, para participar de um seminário, realizado em Paris, para falar sobre a Crise e Perspectivas da Europa. Na sua hora de falar, ele se levantou e disse apenas, para espanto e irritação de todos: “— Nem existe crise, nem, muito menos, perspectivas.” Faço o que posso. E não escrevo apenas como indução ao esclarecimento, mas na esperança de estimular o agir. Alguém já disse, talvez tenha sido Emerson, o filósofo, que se Apolo só pensasse e não agisse seria um imbecil. Entre os clássicos, na Grécia e Roma, nem havia essa cisão entre uma e outra coisa. As ideias eram cultivadas como umbral da ação, assim como os argumentos o eram da razão. Vou por aí… Na Europa, por exemplo, de onde acabo de chegar depois de uma longa temporada de reflexão, muitas regiões defendem sua independência: Catalunha e País Basco, na Espanha; Escócia e, agora, Irlanda do Norte, na Inglaterra; Chechênia, na Rússia; para não falar no esfacelamento da antiga Iugoslávia em vários pequenos países ou da antiga Checoslováquia, divida em dois. Não vejo nada de mal que algumas regiões pensem e proponham sua autonomia política no Brasil, dentre elas o Rio Grande do Sul. Isso não é um ato contra o Brasil, mas a favor do Rio Grande, diante de duas situações problemáticas: uma, a importância do agir local num contexto cada vez mais global; outra, o fracasso do federalismo no Brasil, cada vez mais condenado à eternização do coronelismo no comando político da nação. Não se trata, aqui, das mesmas teses, hoje em voga de defensores da autonomia do Rio Grande no rastro da República do Piratini e contra os improdutivos irmãos do norte e nordeste. Não sabem o que dizem, embora, paradoxalmente, acertem no que não viram: a necessidade da separação do Brasil. A “minha” independência, embora antropologicamente amparada no entendimento das singularidades da cultura rio-grandense – mal existíamos quando o Brasil, já socialmente constituído, declarou-se independente, em 1822 –, nada tem a ver com o passado, seja ela dos farrapos ou maragatos e chimangos. Tem a ver com possibilidade de cons-

truirmos um país menor e mais homogêneo, capaz de dirigir-se rumo a seu destino com maior facilidade do que sob o controle de um Poder Central extremamente absorvente e conspícuo, dominado por elites políticas que correspondem a outra realidade muito diferente da nossa. Somos a quarta economia do país e somos um dos últimos em termos de capacidade de interferência nos negócios nacionais. Curiosamente, até indicamos presidentes, como nos governos militares e na era petista, mas isso não altera a trama de relações nas quais estamos subsumidos, dentre elas, a trama da moeda, do câmbio e do crédito, totalmente dominados pela União, de longa data denunciados como desfavoráveis ao desenvolvimento regional, e a outra, mais perversa, da questão fiscal: pagamos um tributo anual ao Governo Central, equivalente à nossa dívida e que acaba, por determinação constitucional, alimentando os cofres das elites políticas atrasadas dos Estados com menor nível de desenvolvimento. Aos que dizem que seríamos um Uruguai piorado, em claro preconceito contra los hermanos ao sul do Rio Grande, digo que estaríamos muito mais para um Portugal revigorado, sem as peias da União Europeia, que tem mais ou menos nosso tamanho e uma qualidade de vida muito melhor, com um salário mínimo 2,5 vezes maior do que o nosso. E belas escolas públicas de tempo integral para suas crianças, sem Senado Federal, nem Governadores improdutivos. Sem bolsões de miséria, nem violência urbana, eis que o quinto país mais pacífico do mundo e um dos mais simpáticos… Aqui, então, sem qualquer saudosismo a minha lembrança do precedente. Se foi possível em 11 de setembro de 1836, e não 20 de setembro de 1835, como querem os CTGs, quem sabe o grito não poderá ser um dia ouvido: Camaradas! Nós que compomos a 1ª Brigada do Exército liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência desta província, a qual fica desligada das demais do império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Rio-Grandense, e cujo manifesto às nações civilizadas se fará oportunamente. Camaradas! Gritemos pela primeira vez: Viva a república Rio-Grandense! Viva a Independência! Viva o Exército republicano rio-grandense! Em 12/11/1836, o governo republicano publica o decreto de criação da bandeira tricolor. ■ 10


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Debate presidencial nos Estados Unidos: a vitória da política Henrique Carlos de O. de Castro – Cientista Político

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título é propositadamente dúbio: se refere tanto à “política” como atividade humana de busca de um deterEm um sistema eleitoral em que minado tipo de poder, como a mulheres o voto é facultativo e uma parte que a exercem. Penso que ambas foram vitoriosas no primeiro debate entre a significativa da campanha reside candidata Hillary Clinton, uma política em convencer os eleitores a se profissional no mais claro sentido da pacadastrarem e irem às urnas no lavra, com o candidato Donald Trump, um empreendedor e empresário agressidia da votação, parece evidente à vo, também com significado específico. maioria dos analistas que nenhum Ambos sempre foram bem sucedidos dos candidatos conseguiu, até nas suas respectivas carreiras, mesmo que nem sempre com elas concordemos. agora, encantar as suas bases (e As razões não se encontram apenas menos ainda ampliá-las). na opinião dos eleitores inscritos para votarem no dia 8 de novembro (pesquisa divulgada pela rede de televisão CNN imediatamente após o término do debate indicou que quase 70% entenderam que posição defensiva e nervosa, a partir de então a exa candidata Hillary Clinton foi melhor), mas no seu periência da candidata se fez valer. Mais do que usar desempenho durante o debate. Se nos primeiros 20 o que amealhou em muitos anos de trabalho na atiminutos o candidato Donald Trump conseguiu im- vidade política, Hillary Clinton fez questão de deixar por o seu ritmo, deixando a sua oponente em uma claro que o seu desempenho era devido a isso: ao ser

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provocada de forma irônica que havia se preparado para o debate, como forma de tentar desqualificar a adversária e fazer crer que se tratava unicamente de uma fachada, Hillary não apenas concordou como disse que se preparou também para ser presidente. Donald Trump, por sua vez, tentou reforçar a imagem do selfmade man, que sempre vence (discurso recorrente), que a sua fortuna material é a prova da sua competência. Indicou que usa de todos os recursos disponíveis para fazer valer os seus objetivos nos negócios, como quando disse que usou a legislação “que estava lá” para se beneficiar em quatro (segundo ele) falências de suas empresas. No entanto, essa competência (ou esperteza) empresarial não se transfere automaticamente para a atividade política, que tem as suas próprias regras (não escritas), dinâmica (imperceptível ao leigo) e timing (que não se aprende de improviso). Como todas as atividades humanas, a política e a atividade empresarial não são inatas e precisam de tempo, disciplina e perseverança para o seu aprendizado. Existe aqui nos Estados Unidos uma controvérsia se um debate pode decidir uma eleição. Muitos dizem que houve situações em que isso aconteceu e outras que foram irrelevantes. Em um sistema eleitoral em que o voto é facultativo e uma parte significativa da campanha reside em convencer os eleitores a se cadastrarem e irem às urnas no dia da votação, parece evidente à maioria dos analistas que nenhum dos candidatos conseguiu, até agora, encantar as suas bases (e menos ainda ampliá-las). O candidato Donald Trump, que atropelou o mais tradicional partido norte-americano e se tornou candidato à revelia de parte das suas maiores lideranças, talvez não tenha passado no teste de se cacifar como o digno representante republicano. A candidata Hillary Clinton, por sua vez, dado o seu perfil conservador e histórico belicista, mesmo que não tenha até então conquistado os corações e mentes dos democratas mais autênticos, especialmente os jovens, encantados que foram pela campanha de Bernie Sanders, talvez tenha tido um sopro de esperança com o seu desempenho no debate. Talvez o resultado do debate do dia 26 de setembro não decida este processo eleitoral, mas certamente vai colocar a campanha em outro patamar. ■

A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais. A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

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As armas da diplomacia Walter Sotomayor – Jornalista

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principal arma diplomática sempre foi o diálogo e por meio dele a persuasão. Certamente o diálogo, a partir de posições de força, constitui vantagem para quem dispõe de exércitos ou recursos econômicos. Foi assim que o brasileiro José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como o Barão do Rio Branco, resolveu a intrincada Questão do Acre e serviu a vários governos no início da vida republicana do Brasil. Aos recursos disponíveis, derivados da dimensão do país, deve-se acrescentar como qualidade pessoal do Barão o conhecimento profundo do assunto, bem como a história da formação territorial do Brasil. No livro Relações Brasil Bolívia: a definição das fronteiras, a ser publicado em breve pela Verbena Editora, a questão do Acre é assunto relevante observado a partir da documentação disponível nos dois países, que dividem vários quilômetros de fronteira. O Tratado de Petrópolis, de 1903, praticamente definiu essa linha após confrontos armados promovidos de um lado pelo Governo do Estado do Amazonas e os seringalistas que exploravam a borracha em território boliviano, e do outro, inicialmente pelos seringueiros da empresa do boliviano Nicolás Suárez e posteriormente por tropas do Exército da Bolívia. Nos dois capítulos publicados a seguir, do livro Relações Brasil Bolívia, o rápido perfil de Rio Branco dá lugar a um relato sobre o período que antecedeu sua chegada ao Ministério das Relações Exteriores. Durante o conflito, Rio Branco (na época em Berlim), e seus colegas e amigos Joaquim Nabuco (Londres e Roma) e Assis Brasil (Washington), além do chefe da legação em La Paz, Eduardo Lisboa, tiveram um intenso intercâmbio de correspondência. Com frequência lançaram mão da intriga junto à imprensa para frustrar os planos bolivianos. Assumiram um ponto de vista contrário ao da administração do presidente Campos Sales e de seu chanceler, o diplomata Olinto de Magalhães, que se atinha à letra do Tratado de Ayacucho, de 1867, ou seja, que reconhecia os direitos bolivianos sobre o Acre.

Rio Branco agiu, junto a seus colegas sediados em capitais importantes, à margem do entendimento da chancelaria, convencido de que o fazia em defesa dos interesses de seu país. Uma certa margem de manobra ou de autonomia dos agentes diplomáticos é parte da carreira, como demonstraram os diplomatas brasileiros que serviam na mesma Bolívia, em 2013, quando decidiram retirar um asilado político do prédio da embaixada brasileira em La Paz e transportá-lo até o Brasil. Fizeram no entendimento de que era necessário e urgente tomar uma iniciativa diante da omissão de seus chefes imediatos, o Chanceler e a Presidente da República.

Rio Branco O Barão de Rio Branco deve grande parte de seu prestígio como diplomata à solução que encontrou para o Conflito do Acre. Quando assumiu o cargo de ministro das Relações Exteriores, em 3 de dezembro de 1902, sua popularidade já era notória como resultado do sucesso obtido nas negociações de limites fronteiriços em processos de arbitragem com a França (1895) e Argentina (1898). O Acre foi sua consagração. Seus pontos de vista sobre o futuro do Brasil já eram conhecidos pela elite do Rio de Janeiro porque nunca deixara de se manifestar na imprensa. Seja com pseudônimo ou com seu próprio nome assinou artigos para defender seus pontos de vista. Ademais, era filho de um dos mais notáveis ocupantes do cargo, o Visconde do Rio Branco, a quem servira como secretário durante difíceis negociações no período que antecedeu à Guerra do Paraguai. Seus biógrafos atribuem à sua modéstia os sentimentos expressados em cartas a seus amigos, ao recusar a chefia do Itamaraty, cargo para o qual fora convidado pelo presidente eleito, Francisco de Paula Rodrigues Alves, que sucederia a Manoel Ferraz de Campos Sales a partir de 15 de novembro de 1902. O Barão era, sem dúvida, um dos mais eruditos em 13


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questões de fronteiras naquele momento entre os servidores públicos de alto nível do serviço exterior de seu país, pois fora negociador em dois processos de arbitragem. Suas dificuldades econômicas eram reais e sua saúde inspirava cuidados, mas os obstáculos listados em carta a Frederico Abranches, seu amigo de infância e amigo do presidente Rodrigues Alves, para eludir à nomeação poderiam ser considerados, também, como uma fórmula engenhosa de expor suas exigências ou condições para ocupar o cargo.

diplomata encontrava agora o espaço adequado a sua forma e a seus movimentos.2 Efetivamente, ao falecer 12 anos mais tarde, quando ainda se encontrava no exercício do cargo, todas essas ideias sobre o funcionamento da chancelaria tinham sido implantadas. Rio Branco não apenas tivera carta branca para organizar, a seu modo, a chancelaria, ao longo de três sucessivos governos, senão também para concluir a obra de consolidação das fronteiras mediante a assinatura de tratados com os países vizinhos. O Visconde de Cabo Frio não chegou a ser um obstáculo a suas reformas nem ao aumento de pessoal. Faleceu em 1907 colmado de homenagens por Rio Branco. Muitas das ideias de Rio Branco sobre a política exterior, como o tom de mútuo respeito que deveria ser adotado na relação do Brasil com os Estados Unidos ou a de que uma diplomacia, para ser efetiva, tem de se apoiar na capacidade militar dissuasora, continuam vigentes mais de um século depois. Rio Branco voltou ao país após 26 anos de relevantes serviços prestados no serviço exterior, e sua chegada ao Rio de Janeiro foi todo um acontecimento, ao ser aclamado por grande multidão no porto, quando desembarcou da mesma embarcação que servira, quase um século antes, com igual propósito para a chegada do monarca português, Dom João VI, que transferira o Reino de Portugal ao Rio de Janeiro para evitar a submissão a Napoleão Bonaparte. O conflito na fronteira com a Bolívia começou a interessar a Rio Branco quando se encontrava em Berlim, seu último posto como embaixador. Chamou sua atenção a atividade dos bolivianos que tentavam atrair capitais alemães para o consórcio que estava-se criando para administrar o Acre. Quando se encontrava em Berlim como chefe da legação brasileira, Rio Branco comentou o tema em comunicação oficial com seu colega Assis Brasil, chefe da legação brasileira em Washington. Assis Brasil foi convocado pouco depois por Rio Branco para integrar, junto com o senador e jurista Rui Barbosa, a equipe negociadora brasileira que iniciaria tratativas com os diplomatas bolivianos em busca de uma solução para o conflito do Acre. ▶

É preciso aumentar o pessoal, dar-lhe melhor remuneração, ter pelo menos um consultor jurídico e bons diretores de seção, como tínhamos antigamente (Carvalho de Morais, Lagos, Peçanha, Carneiro Leão e outros), organizar um gabinete do ministro, restabelecer a seção do Arquivo, dando-lhe o desenvolvimento necessário, porque esse é o arsenal em que o ministro e os empregados inteligentes e habilitados encontrarão as armas de discussão e combate. É preciso criar uma biblioteca e uma seção geográfica na direção do Arquivo, como em França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.1 Na mesma carta, Rio Branco manifestava seu respeito e admiração pelo Visconde de Cabo Frio (Joaquim Tomás do Amaral) quem, segundo ele, era o verdadeiro ministro há muitos anos, e que conhecera, já com cabelos brancos, 40 anos antes. O Visconde de Cabo Frio, muito apegado às tradições, uma espécie de memória viva da chancelaria, constituía realmente um obstáculo para as reformas que Rio Branco desejava empreender no Itamaraty. Mas a elas se sobrepôs com tato e homenagens, como relata um dos seus biógrafos. Desde o princípio governou, por isso, o Ministério do Exterior com uma completa autonomia, e fez dele o departamento de maior relevo do governo. Dirigiu o Itamaraty como um soberano, pela sua ciência dos negócios de política externa e pela arte diplomática de sua própria personalidade. Pois essa natureza de

1

Carta de Rio Branco a Frederico Abranches, em A.G. de Araújo Jorge, Rio Branco e as Fronteiras do Brasil (Uma introdução às Obras do Barão do Rio Branco), Senado Federal, Brasília 1999, p. 99.

2

Lins, Alvaro. Rio Branco (Biografia). São Paulo: Editora Alfa-Omega/Funag, 1995, p. 299.

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Ao assumir o cargo de chanceler, com 57 anos de idade (seu pai, o Visconde, fora ministro da Marinha aos 34 e das Relações Exteriores aos 36) tinha ideias muito claras de como deveria ser a política exterior da nova república ante a emergência de uma nova potência mundial, os Estados Unidos, e de como era urgente definir as fronteiras de seu país na região amazônica e especialmente com a Bolívia, cenário de um conflito que envolvia outras nações.

um consenso diferente ao da posição oficial defendida até fins de 1902 pelo chanceler Olinto de Magalhães. Assis Brasil, ministro em Washington desde 1898, começou a prestar atenção às tratativas para a formação de um consórcio anglo-americano muito antes da assinatura do contrato, e em seus contatos com o Secretário de Estado John Hay deixou claro que o Brasil utilizaria todos os meios a seu alcance para dificultar sua implementação3.

As armas da diplomacia

Em longa entrevista que sustentou em maio de 1902 com o Secretário de Estado John Hay, o ministro Assis Brasil recebeu garantias de que os Estados Unidos nunca protegeriam ofensas à soberania brasileira. Essa importante manifestação do chefe da diplomacia norte-americana foi uma resposta às dúvidas manifestadas por Assis Brasil sobre os direitos da Bolívia no Acre. Após conversar sobre temas comerciais, o diplomata brasileiro perguntou a Hay sobre a entrega da administração do Acre a um sindicato anglo-americano.

A negociação de um acordo entre Brasil e Bolívia para o conflito do Acre foi precedida por algumas iniciativas políticas do governo brasileiro que acentuaram a já considerável desvantagem boliviana na disputa desse território. A primeira medida, adotada em agosto de 1902, foi a proibição do governo brasileiro ao trânsito de mercadorias de ou para portos bolivianos pelo rio Amazonas. Ainda que a decisão vulnerasse a própria constituição brasileira e causasse prejuízos a empresas inglesas, francesas e alemãs, o Brasil manteve-a inalterada até o fim do conflito, para impedir o abastecimento militar boliviano e, principalmente, a entrada pelo rio dos empregados a serviço do consórcio anglo-americano que ficaria a cargo do Acre. A segunda, desenvolvida no âmbito diplomático, por iniciativa tanto do Ministério das Relações Exteriores como dos representantes brasileiros em Washington, Londres e Berlim, teve como objetivo obstaculizar a formação do capital necessário para a formação do Bolivian Syndicate. Os representantes diplomáticos brasileiros advertiram tanto potenciais investidores como os governos das grandes potências sobre os riscos de um investimento em um território que se encontrava em conflito. Nos seis meses que precederam à mudança de governo no Brasil, após a eleição de Francisco de Paula Rodrigues Alves, que substituiria Manuel Ferraz de Campos Sales (1898-1902), o ministro brasileiro em Washington, Assis Brasil, trocou mensagens com os ministros de seu país em La Paz, Eduardo Lisboa, em Londres, Joaquim Nabuco, e principalmente em Berlim, o Barão de Rio Branco, que ajudaram a formar

Fui há pouco procurado por alguns interessados nesse negócio, os srs. F. e F. – os nomes escaparam-me – de New York, muito boa gente, que me pediram para recomendar os seus interesses aos ministros americanos no Brasil e na Bolívia. Disse-lhes que não tinha dúvida em fazer a recomendação num sentido puramente genérico, como se recomendam e protegem todos os interesses americanos fora do país; mas adverti que me constava haver alguma dúvida entre o Brasil, o Peru e a Bolívia pela posse do território do Acre e que os direitos soberanos de qualquer desses países ficavam inteiramente fora da dita recomendação.4 Então o chefe da diplomacia dos Estados Unidos perguntou ao ministro brasileiro se era verdade que o Brasil reclamava algum direito no Acre. Respondi que, de fato, a nossa linha divisória com a Bolívia ainda não estava traçada sobre o terreno, ainda que constasse de ajuste escrito;

3

Assis Brasil, Joaquim Francisco. Um diplomata da República (Correspondência) 2 vols. Rio de Janeiro: CHDD/Funag, 2006.

4

John Hay, segundo relato de Assis Brasil, Op. Cit., p. 311.

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que, sobre a interpretação desse ajuste havia duas correntes de opinião no Brasil, sendo uma delas fortemente no sentido de pertencer-nos todo ou quase todo o chamado território do Acre; que, porém, o que estava impressionando a opinião brasileira era mais a forma do discutido arrendamento do que este em si mesmo.5 Assis Brasil aproveitou a ocasião para explicar ao Secretário de Estado a semelhança do contrato de arrendamento com os das chartered companies que foram a base de processos de colonização, especialmente na África, e para deixar claro que o Brasil não permaneceria impassível diante da decisão de conceder direitos a uma empresa de outro país na América Meridional. Hoje, entram alguns americanos no sindicato; amanhã, serão puramente ingleses; mais tarde, alemães – quem sabe quem! Que virão plantar um pé em território do Novo Mundo, valendo-se da fraqueza de certas nações, onde governos efêmeros aproveitam, sem escrúpulo, para enriquecer os seus membros, os curtos instantes em que os azares de agitação política lhes deixam dispor da Fazenda pública.6 Quando o contrato foi dado a conhecimento público e após conversar com o Secretário de Estado Hay, Assis Brasil escreveu em 17 de julho de 1902 ao chanceler Magalhães para sugerir uma estratégia (prática incomum tratando-se de um subordinado) que anularia esse contrato e com isso superar o problema: 5

Assis Brasil, idem.

6

Assis Brasil, Op. Cit. P. 312.

http://www.allabroad.org/ 16

Em resumo a situação é esta: os homens de dinheiro podem muito neste país e os do sindicato o são; eles conseguiram (provavelmente do presidente) que, ao menos, uma pressão moral fosse exercida sobre o Brasil. A grande questão desses homens não é tanto de levar adiante a empresa como de ganhar dinheiro. Reconhecem que a Bolívia não poderia pagar indenização do não cumprimento do contrato e é natural que pretendam envolver o Brasil, que pode pagar. Quem sabe se um meio hábil de pôr termo à questão não seria aconselhar a Bolívia a pagar uma indenização, ainda que para isso fosse necessário que nós a socorrêssemos? Em todo caso, eu julgaria temerário que nós infligíssemos agora à Bolívia qualquer outro castigo, além da decepção, digo, da denegação dos usos das nossas águas. Qualquer pretexto serviria para esta gente dar mais um passo. De tudo quanto tem dito este governo, mesmo agora, poder-se-ia ter como certo que ele nunca tentará positivamente fazer pressão natural sobre nós; mas os homens respeitam tão pouco o que dizem quando são poderosos, que o fraco não pode fiar-se absolutamente de palavra deles. No fim da conferência eu sugeri ao sr. Hay, como coisa minha e lembrada na ocasião, que o melhor que o sindicato tinha a fazer era reconhecer que a Bolívia fez um contrato que não pode cumprir e exigir dela uma indenização razoável. Mas a Bolívia não pode pagar – atalhou ele. – Se não lhe pedirem mais do que devem, ela


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pode – respondi –, e talvez o próprio Brasil, para acabar com este incômodo, a ajudasse.7

cano, o Encarregado de Negócios do Peru, Eduardo Lembke. Ambos tinham como adversário o ministro boliviano Felix Avelino Aramayo, sobre quem Cardoso de Oliveira lançou suspeitas de favorecimento ilícito, isto é, que a formação do consórcio favorecia a sua empresa. O diplomata brasileiro considerava incompatível o duplo papel de Aramayo como empresário e diplomata em Londres e essa condição foi um bom pretexto para desacreditá-lo, divulgando inclusive que Aramayo fora convocado por um juiz para responder processo, dois anos antes, contra sua empresa de mineração, em que Aramayo teria feito valer suas prerrogativas diplomáticas. Uma das intrigas mais exitosas foi publicada no jornal londrino Financial Times, segundo a qual o banqueiro Alfred Rothschild, um dos principais financiadores do governo do Brasil, estava a ponto de romper sua importante relação porque pretendia participar do consórcio que estava em formação para administrar o Acre. A notícia provocou um veemente desmentido de Rothschild que, mais do que o governo brasileiro, tinha interesse em manter boas relações com seu importante devedor. O desmentido converteu-se assim em uma rejeição pública desse negócio. Rio Branco, que havia trocado mensagens não apenas com a chancelaria, mas também com seus colegas de Washington, Londres e La Paz, estava empenhado em obter uma declaração do governo alemão de que não se imiscuiria no assunto e que, até o momento, desconhecia uma participação alemã no consórcio. Rio Branco divulgou uma nota aos banqueiros e à imprensa alemã e internacional na qual advertia que as fronteiras entre Brasil e Bolívia não estavam definidas e que, portanto, não era aconselhável investir no controle do território que também era disputado pelo Peru.10 A advertência pode ter influído para que o Deutsche Bank evitasse participar no negócio proposto pelo administrador do Bolivian Syndicate, Frederick Willingford Whitridge, dez dias antes, em Berlim. Rio Branco fracassara, no entanto, em sua primeira tentativa de obter declarações contrárias à participação dos alemães no consórcio. De modo

Assis Brasil, tinha evitado o pior: que o governo dos Estados Unidos considerasse o uso de meios militares para defender os interesses de empresários norte-americanos eventualmente prejudicados. Suas gestões foram exitosas ao conseguir que o Departamento de Estado encarasse o tema nos limites de um contrato como qualquer outro. Ademais, o presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, não atribuía eficácia ao direito internacional, como observa Kissinger: “O que uma nação não pode proteger por seu próprio poder não deveria ser garantido pela comunidade internacional”.8 Em Londres, o ministro chefe da Legação, Joaquim Nabuco, não participara no assunto porque fora nomeado chefe da missão negociadora de uma arbitragem sobre os limites brasileiros com a Guiana inglesa e tinha necessidade de permanecer em Roma, onde se examinava o assunto. Transferiu a responsabilidade de acompanhar a questão do Acre ao Secretário J.M. Cardoso de Oliveira que se esforçou para obstaculizar o estabelecimento do Bolivian Syndicate, apesar de o Brasil não ter base jurídica para fazê-lo, como observa Tocantins. Está visto que, sob o ponto de vista jurídico, o Brasil não tinha como opor-se ao ato. O Ministério do Exterior reiteradamente declarava que o Acre era boliviano, e jamais considerou o território como litigioso. Como, então, negar à Bolívia o direito de arrendamento? Mas, se o caso se apresentava assim, na realidade oferecia outro ângulo. A diplomacia é a arma que se usa em benefício dos interesses de um país, e com artes sub-reptícias pode conseguir aquilo que pelo direito formal se está impedido de pleitear.9 Em Londres, Cardoso de Oliveira trabalhou intensamente tendo como aliado, no propósito de impedir o estabelecimento do consórcio anglo-ameri-

7

Assis Brasil, Op. Cit. Vol II, pp. 327-328.

8

Kissinger Henry, Diplomacia, Francisco Alves y Univer Cidade Editora, segunda edição, Rio de Janeiro, 1999, p. 39.

9 Tocantins, Leandro. Formação Histórica do Acre, 4a Edição. Brasília: Senado Federal, 2002 Vol II, pp. 76-77. 10 A notícia da nota de Rio Branco foi publicada no New York Times, na edição de 14 de junho de 1902 sob o título “Warning to Investors” (Advertência aos Investidores).

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inesperado, porém, obteve um grande sucesso nas suas conversas com o Secretário de Estado para Assuntos Exteriores, o Barão Richthofen, quando este decidiu desaconselhar a participação de alemães no negócio, como relata Seixas Correia. Apesar de continuar sem informações regulares do Rio de Janeiro, Rio Branco seguiu cuidando de observar as ações alemãs. No encontro regular das sextas-feiras dos Ministros com Richthofen voltou a indagar-lhe se haveria alguma novidade. O ministro alemão reconfirmou que não havia sido procurado por qualquer potencial investidor e que, se fosse, os ‘dissuadiria de entrar no negócio’. Rio Branco observaria então, sem disfarçar seu contentamento com o êxito de suas gestões: ‘Isto é mais do que tinha prometido nas nossas anteriores entrevistas’.11 Essa ofensiva diplomática era possível pela existência de um diálogo fluido entre Brasil e os governos dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Alemanha, países em que havia representações brasileiras à frente das quais se encontravam experimentados profissionais da diplomacia. No Rio de Janeiro ou em Petrópolis esses países tinham também representações diplomáticas do mais alto nível. Inglaterra havia interrompido suas relações diplomáticas com a Bolívia em outubro de 1853, em decorrência das atitudes do então presidente Manuel Isidoro Belzu, que cometeu desmandos contra o Encarregado de Negócios britânico George-Augustus Lloyd. Só foram restabelecidas por Aramayo em 1897, mas Londres esperou até 1903 para nomear um cônsul em La Paz. A Inglaterra não teve representantes diplomáticos na Bolívia, segundo o Foreign Office, por um motivo que hoje seria considerado superado: a poderosa armada britânica não poderia exercer qualquer ato de pressão em defesa de seus interesses em um país que não possuía costa marítima, em que pese nesses anos se tinha convertido em importante destino de investimentos em infraestrutura. La Paz também não contava com uma representação diplomática alemã. ■

11 Seixas Corrêa, Luiz Felipe de. O Barão do Rio Branco, Missão em Berlim – 1901-1902, Fundação Alexandre Gusmão, Brasília, 2009, p. 98.

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Os Abutres Começam a Voar em Círculos Marcelo Falak

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brutal explosão de 2001 e a onda expansiva econômica que seguiu devastando a Argentina em 2002 haviam complicado a estrutura social, gerando abismos de pobreza e desigualdadesdesconhecidos durante muitas gerações e destroçando a legitimidade do sistema político e a autoestima dos cidadãos. A conversibilidade, essa paridade “1 por 1” entre o peso e dólar norte-americano, impossível e desequilibrada desde o início, havia sido definida com inteligência, ainda em 1991, pelo político radical Rodolfo Terragno: era como comprar um terno menor do que o correto, para ver depois como entrar nele. A única forma era perder peso. Com a crise, a Argentina havia feito isto, de modo preocupante. Isto não é mera metáfora, pois muitos argentinos perderam peso, literalmente. Os índices de pobreza e indigência eram um insulto para uma sociedade de classe média, vista há muito como a Europa da América Latina. A mobilidade urbana se tornou impossível, pois as ruas estavam sempre com manifestantes, para lamentar a situação. O movimento “piqueteiro”, invenção dos anos 1990, generalizava sua metodologia, além do imaginável. Trabalhadores despedidos em massa, empregados de empresas fechadas sem aviso prévio, empregados públicos pauperizados, músicos de orquestra que não recebiam seus salários e saíam a tocar sinfonias nos cafés e nas ruas. Todo país era um enorme caos, que a sociedade afrontou com salvadora paciência. Enquanto isso, as manchetes dos jornais mostravam fotos de crianças com ventres inchados e outros sintomas de desnutrição, como na África, segundo o imaginário local. Os sentimentos oscilavam entre a tristeza, o aborrecimento e a frustração. ▶

A Argentina Após os Fundos Abutres: Paralelos com o Brasil? Marcelo Falak Verbena Editora 2015

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Aos poucos os argentinos aprenderam a sobreviver, embora esta tenha sido a maior das crises, e voltaram a ser trabalhadores, industriais e comerciantes. O final do “1 por 1” voltava a converter o trabalho em algo rentável. A Argentina, sem ajuda de ninguém, conseguiu superar seus problemas. “Este país é indestrutível!”, se dizia naqueles dias de 2002 e 2003, com mais assombro do que orgulho. Porém, este renascer se dava em contexto muito particular: o país não pagava suas dívidas, o que os economistas designavam como algo muito parecido à morte. A realidade era outra, e não pagar as dívidas permitia cobrir as urgências sociais mais imediatas. Há que ser justo, pois para muitos economistas os males sociais de 2002, sobretudo, foram o resultado do default. A declaração da cessação de pagamentos, além do modo oportunista com que a realizou o presidente provisório Adolfo Rodriguez Saá, não foi uma escolha, senão uma imposição da realidade. O que disparou a ruína social foi o corte na cadeia de pagamentos e a paralisação de toda atividade econômica. A ruína foi o produto inevitável do hiperendividamento nacional, paciente criação de inúmeros funcionários irresponsáveis. É necessário afirmar isto, em primeiro lugar, para não cair no velho vício em depositar no exterior as culpas pelos próprios dramas. Tampouco se pode cair em um etnocentrismo inaceitável, pois o mundo existe. Por isso não se pode ignorar no drama argentino a presença de outros atores, como financistas inescrupulosos e entidades internacionais de desempenho ineficiente e imoral. O indignante é que quem participou daqueles episódios opinem, hoje, com a leviandade de quem nada há de revisar em sua consciência. O default de uma dívida que representava, em 2002, cerca de 166% do PIB foi então o desenlace natural de uma grande cadeia de erros e fatos, pelo menos, eticamente reprováveis (KANENGUISER, 2013:227). A recuperação posterior da economia e do emprego foram paralelos e, a situação de não-pagamento, um péssimo exemplo aos olhos do FMI e de outros governos, como o dos Estados Unidos. A Argentina mostra a outros países na mesma situação que havia vida depois do default, mesmo sendo algo perigoso e que mereceria castigo, como podem atestar os gregos, hoje. Também contra esta convicção poderosa houve luta naqueles dias dramáticos.

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Quem viu o filme Wall Street (1987) sabe o que é um Fundo Abutre. Especializam-se em comprar títulos da dívida de países, em geral pobres, que estão a ponto de cessar seus pagamentos ou, como ocorre no filme, ações de empresas próximas à falência.

Um ataque silencioso e profundo Enquanto os argentinos trabalhavam duro, algo grave se passava sem que lhe dessem atenção. Poucas semanas antes do estouro de 2001, os traders da Bolsa de Valores começaram a registrar uma série de curiosas compras de títulos da dívida pública. Quem entraria neste negócio, que qualquer pessoa sensata gostaria de sair? Tratavam-se de papéis que imediatamente não serviriam nem para reciclagem, mas os Fundos Abutres começaram a sobrevoar um país agonizante, com paciência, para devorá-lo logo após a morte. Para estes corretores da Bolsa, que ultimamente apenas ouviam as acusações dos clientes a quem prometeram ganhos e somente entregavam perdas, a chegada destes fundos de nomes desconhecidos era uma bênção. Mas, para o país, começava uma história trágica. Quem viu o filme Wall Street (1987) sabe o que é um Fundo Abutre. Especializam-se em comprar títulos da dívida de países, em geral pobres, que estão a ponto de cessar seus pagamentos ou, como ocorre no filme, ações de empresas próximas à falência. No primeiro caso, se trata de litigar, com todo o tempo do mundo, para que quando o país tenha logrado alguma normalidade reclamar ante os tribunais internacionais o pagamento de 100% dos bônus que são verdadeiro lixo, comprados a preço vil, não superior a 20% do valor nominal. Mais focados em contratar advogados hábeis do que bons economistas, conseguem ganhos que podem chegar a 1.000%. Veja, leitor, se há atividade tão lucrativa que não implique jogar sua honra aos cães?! Isto não é problema para os abutres, pois se alimentam de carniça, dos despojos dos devedores. Trata-se de uma atividade com moralidade nula, mas legal. Ou, ao 20


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sua falta de escrúpulos com a aquisição de hipotecas a ponto de incidir em juros de mora, para levar a juízo os devedores e ficar com suas casas. Refinado em seus métodos, Dart Management comprou, mais tarde, bônus brasileiros em suspensão de pagamentos por US$ 1,4 bilhões de dólares nominais, pagando apenas US$ 375 milhões de dólares. Em 1992, o então Presidente Fernando Collor de Mello reconheceu-lhe uma dívida de US$ 955 milhões de dólares, mas a crise política fez com que Fernando Henrique Cardoso tivesse de resolver o problema. Dart, então, ameaçou bloquear o acordo que o Governo do Brasil tentava acertar com centenas de bancos e credores de boa fé para reestruturar uma dívida de mais de US$ 50 bilhões de dólares. Tal foi a extorsão que praticou que o Congresso Nacional autorizou um pagamento de US$ 980 milhões de dólares, o que lhe permitiu obter um lucro de mais de US$ 600 milhões de dólares. Desde então, foi declarado “inimigo do povo brasileiro”, embora continuasse a fazer negócios. O Brasil não é o único país que o repudiou. Também seu país natal, os Estados Unidos, a cuja cidadania renunciou por não pagar uma dívida impositiva que chegou a somar US$ 200 milhões de dólares. Desde este conflito, em meados dos anos 1990, descobriu um inesperado e duplo sentimento patriótico pelas Ilhas Cayman e por Belize, país a quem se ofereceu para representar como cônsul na Flórida. O Internal Revenue Service fechou-lhe as portas. Tempos depois, litigou contra o próprio Estado centro-americano. Suas andanças continuaram pelo mundo, da Turquia ao Cazaquistão e Equador, até fixar-se pelas privatizações na Rússia pós-comunista. A ideia de Dart era replicar na Rússia o modelo conhecido, dividindo empresas para vendê-las em separado, mas encontrou rivais tão inescrupulosos quanto ele mesmo. Em 2005 foi atacado em sua mansão em Saratosa, por sicários russos, arriscando a vida de sua esposa e filhos. Então, o litígio com as autoridades dos Estados Unidos não tinha retorno e o cárcere era um destino mais do que provável. Asilou-se nas Ilhas Cayman e nunca regressou à casa.

menos, toda a legalidade que o dinheiro pode comprar, já que os Fundos Abutres conseguiram, com argúcia, que não se aplique a proibição legal explícita de comprar ativos financeiros com o único propósito de litigar em corte, como no estado de Nova York. (New York Judiciary Law § 489: NY Code — Section 489: Purchase of claims by corporations or collection agencies. Em: <http://codes.findlaw.com/ ny/judiciary-law/jud-sect-489.html>). No segundo caso, se busca dividir as companhias em pedaços, para vender seus ativos e também obter ganhos siderais. Os postos de trabalho não são obstáculos para tipos como Gordon Gekko, personagem do filme citado. Esta Argentina, período outubro-novembro de 2001, era o último país do mundo onde um investidor medianamente sério e informado poria um dólar. Todavia, houve operações de compra e venda de títulos públicos por cerca de US$ 3 bilhões de dólares nominais. Eram de Fundos Abutres (…). (BURGUEÑO, [s/d]:19). As ordens de compras provinham de fundos com nomes tais como: (...) NMI, Elliot, El NMLTD, Gramercy. Southern Cross, Leocadia, W.R.Hu , Fintech, Aurelius, Olifant, Blue Angel, ACP Master, Los Angeles Capital Meridian, HWB Victoria Strategies, FFI Found, Caronte LTD, Old Castle Holding, Wilton Capital, Zylberberg Fein LLC, Vr Global Partners e Capital Ventures, entre outros. (IDEM:20). Poucos meses depois, já no Governo Eduardo Duhalde, as tendências de bônus-lixo em poder dos abutres chegariam a US$ 10 bilhões de dólares. Somente esperavam o momento adequado para entrar em juízo.

O “inimigo do povo brasileiro” O Brasil conhece muito bem como operam estes fundos altamente especulativos, já que sofreu diretamente a ação de Kenneth Dart, um herdeiro de um império industrial que fabrica copos de tergopol (uma espécie de isopor), mas que não se conformou com sua riqueza. Entrou nas finanças e exercitaria

O surgimento de Paul Singer Sempre um pioneiro, Dart foi o primeiro a apostar na crise argentina de 2001, como seu maior investi-

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dor. Mas outro homem, Paul Singer, da NML Elliot, jogaria tão fortemente como Dart e se converteria em outro emblema do voo dos abutres sobre o país. Singer é um personagem mais complexo, pois tem a pretensão de fazer negócios como um abutre mas, diferentemente de Dart, pretende ser considerado um homem respeitável de negócios. Ninguém, nem os bilionários, podem aspirar a ter tudo! Às vezes filantrópico, às vezes defensor do casamento homossexual, às vezes permeável a uma regulação leve dos negócios com hedge funds – cujos excessos, antecipou, levariam à crise global de 2008 –, evitou as excentricidades de Dart e sempre foi influente na política norte-americana, como doador ao Partido Republicano. Advogado formado em Harvard, iniciou sua carreira com casos de quebra de negócios e, como Dart, encontrou um meio de fazer dinheiro com hipotecas impagáveis. Em 1977 fundaria a Elliot Associates.

Depois de uma espera de quatro anos, em outubro de 2000, obteve um pagamento à vista de US$ 58 milhões de dólares. Um lucro de 400%. (IBID.:47). Defensor ferrenho dos contratos (se se permitem ironias), foi, em seguida, atacar a paupérrima República do Congo. Transformara-se em um abutre, mas se defendia: ‘(...) não há razões para que países como o Congo não paguem suas dívidas’, já que se tratam de Estados ‘onde há líderes com posições cômodas, com capacidade de pagamento’. Singer assegura que nunca avança sobre países que não podem pagar. (IBIDEM). Uma tautologia, pois é claro que avança sobre os que podem pagar. Para quê fazer o contrário? O não dito por Singer é que, ao irromper extorsivamente em processos de renegociações de dívidas soberanas, não apenas se aproveita dos devedores, mas também dos investidores de boa fé. No caso argentino, o que tornou possível o Estado ser capaz de pagar foi o esforço de seu povo e dos investidores que aceitaram um forte abatimento de seus créditos. Isto tornou viável a economia. Singer, grande protagonista do juízo contra a Argentina, especula, como seus pares abutres, com o esforço dos demais, por isso não podendo ser considerado um investidor respeitável. ■

(...) com somente US$ 1,3 milhão de dólares de seus amigos e parentes, mais alguns recursos próprios. Sua promessa era concentrar-se na arbitragem de moedas (...). (IBIDEM:45). A crise da Bolsa de Valores de 1987 e a recessão a princípios dos anos 1990 o levariam, como a outros, a buscar negócios liquidando empresas falidas. Daí a tornar-se um abutre da dívida soberana era um passo. Debutou na República Peruana, cujos títulos comprou em 1996, US$ 11 milhões de dólares por bônus com valor nominal de US$ 20,7 milhões. Negou-se a qualquer negociação, perseguiu o país em tribunais da própria República do Peru, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica e Reino Unido.

Bibliografia KANENGUISER, Martín. La maldita herencia. Una historia de la deuda y su impacto en la economía argentina: 1976-2013. Buenos Aires: 2ª Ed., Edição do autor, 2013. Disponível em: <http://es.scribd.com/doc/168387799/La-Herencia-Maldita-Martin-Kanenguiser#scribd>. BURGUEÑO, Carlos. Los buitres. Historia oculta de la mayor operación financiera contra la Argentina. Buenos Aires: Edhasa, [s/d].

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Origem e porquês do Estatuto da Metrópole Jorge Guilherme Francisconi – Arquiteto e Urbanista

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governança interfederativa para orientar a estrutura e a práxis político-administrativa que será criada; e o poder executivo estadual poderá ser penalizado, ainda que muito dependa dos municípios e do poder legislativo. O Estatuto se assemelha às Leis Complementares de 1973/1974 quando: estabelece ordenamento jurídico único para cenário nacional extremamente diversificado e exige Plano Diretor Urbano Integrado (PDUI); quando ignora as diferenças que há entre o território da metrópole – que atende redes e hierarquias urbanas; a territorialidade metropolitana – que estabelece a área sujeita a urbanização contínua da conurbação, e a territorialidade setorial – de cada serviço de interesse comum. Em décadas passadas, quando metrópoles e desenvolvimento econômico eram temas globais e prioridades nacionais, o IBGE estudou a rede urbana nacional, usando variáveis da geografia econômica, regional e urbana para oferecer diagnósticos e proposições que orientassem as políticas urbanas brasileiras. Após a II Grande Guerra o grande desafio global era a reconstrução de países devastados por bombardeios aéreos e a distribuição da produção econômica por suas redes urbanas. Na Rússia foi utilizado o saber do regional science de Isard para distribuir polos industriais em cidades por detrás dos Urais. Tudo para dificultar a invasão por terra e a destruição por uma única bomba atômica. Já na França houve o fortalecimento de métropoles d’équilibre, mediante aménagément du territoire que adotava teorias de Perroux e outros, para reduzir a dominância da região de Paris no território francês. Os países subdesenvolvidos [terminologia da época] adotaram sambas enredo semelhantes. Os grandes objetivos eram a industrialização e o desenvolvimento econômico – vide JK, com redução das

etrópoles e aglomerados são os mais importantes centros urbanos do país por conta do tamanho de sua população e participação na economia, na cultura e tudo mais que afeta o desenvolvimento regional e nacional. Sua urbanização contínua ignora limites municipais e, para promover a oferta qualificada de serviços públicos urbanos, a Constituição Federal estabeleceu os serviços de interesse comum, que diferem dos serviços de âmbito municipal administrados por Prefeituras. O desafio metropolitano que o poder público brasileiro enfrenta desde os anos 1960, consiste em promover a qualidade de vida e reduzir as disparidades urbanas nas metrópoles. Em 1965, o Ministério do Interior delimitou e promoveu debates sobre o modelo de gestão estadual para regiões metropolitanas, mas a partir dos anos 1990, a União se retirou do tema e os problemas se agravaram. No século XXI, a Câmara dos Deputados assumiu as rédeas da questão metropolitana. O desafio metropolitano é um fato concreto da realidade brasileira que exige soluções, e como na política não há vácuos, o legislativo federal produziu o Estatuto da Metrópole. Sancionado em 2014 quando muitos estados já haviam criado suas metrópoles e aglomerados urbanos segundo heterogêneos critérios próprios. O Estatuto veio para estabelecer diretrizes e procedimentos que Governos Estaduais devem cumprir. Neste cenário, sua implantação pelos estados enfrenta dificuldades que precisam ser periodicamente analisadas. Para entender aonde chegamos é necessário lembrar o que foi feito. As políticas metropolitanas evoluíram ao longo do tempo segundo o samba enredo de cada etapa. O Estatuto da Metrópole difere substantivamente dos anteriores porque: o poder legislativo assumiu o papel condutor e o executivo um papel secundário; se estabelece o conceito de

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BNH) para planos diretores urbanos e setoriais. Em 1968, Faissol assumiu a coordenação do Grupo de Áreas Metropolitanas (GAM) do IBGE que, em 1973, produziu seu documento setorial. Após a Lei Complementar no 14/73 delimitou o território e estabeleceu um modelo padrão para gestão de oito metrópoles que, como cidades-mãe, polarizavam macro regiões nacionais. Ao incluir Belém do Pará, a LC atendia demandas políticas visto que a metrópole amazônica carecia de urbanização contínua supramunicipal, assim como ignorou a metrópole carioca e indicou para a fusão estadual que permitiria atender a Constituição. Um pecado original da LC no14/73 foi selecionar e delimitar oito metrópoles a partir das funções regionais e ignorar outros núcleos urbanos em que havia conurbação supramunicipal. Como solução foram criados aglomerados urbanos, definidos e delimitados pelo IBGE para que a Secretaria Executiva da Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU) apoiasse conurbações de capitais estaduais (Maceió, Florianópolis, Goiânia etc.), bem como outros aglomerados no país. O samba enredo das Leis Complementares envolvia a melhoria das condições urbanas para fortalecer o desenvolvimento econômico; redução de disparidades regionais e modernização da administração

disparidades regionais – vide SUDENE. Um tema central era o papel das metrópoles na promoção do desenvolvimento nacional. Berry fizera estudo comparativo mundial e não encontrara nenhuma correlação. Mas como seria no Brasil? Como avaliar? Que programas e projetos caberia adotar? Como alcançar os objetivos? Este foi o desafio dos anos 1960 e 1970. O IBGE absorveu várias correntes de pensamento para pesquisar e definir a rede urbana brasileira, cabendo aqui um destaque especial ao geógrafo francês Michel Rochefort. A metodologia quantitativa de Preston James, Walter Isard e Brian Berry também colaborou, graças a Speridião Faissol e outros. Na década seguinte, quando as regiões funcionais já haviam sido delimitadas, o samba enredo evoluiu para a gestão de metrópoles, microrregiões e outras áreas. Muitos municípios e estados já haviam criado suas entidades metropolitanas e tornou-se necessário integrar teoria e prática para fortalecer e aperfeiçoar seus sistemas de planejamento e gestão. Para isso, em 1965, o Ministério do Interior reuniu especialistas e entidades metropolitanas e foi adotado um programa de trabalho para encaminhar a questão metropolitana que acelerou a consolidação das instituições metropolitanas, com apoio técnico e financeiro do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo/Banco Nacional da Habitação (SERFHAU/

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simples. Como a de proibir o trânsito de caminhões de lixo de outros municípios por seu território. Na transição do governo autoritário para o da Constituição Cidadã de 1988, a gestão metropolitana praticamente desapareceu por conta do rol de atribuições outorgadas aos municípios na gestão urbana; a ênfase na gestão participativa; a escassa presença do governo federal em políticas urbanas; e a transferência da questão metropolitana para o nível estadual. Mais tarde, o Ministério da Cidade adotou fundamentos e políticas preconizadas pela Reforma Urbana que ignoravam a realidade factual da práxis metropolitana. O entendimento foi de que metrópoles eram a soma de cidades cuja gestão cabia às prefeituras. Serviços de interesse comum ficariam sob competência municipal; a gestão metropolitana foi classificada de entulho do regime autoritário. No Poder Legislativo, porém, logo surgiu outro entendimento. Em 2004, o Deputado Walter Feldmann apresentou o Projeto de Lei no 3.460/04, que institui diretrizes para a Política Nacional de Planejamento Regional Urbano e cria o Sistema Nacional de Planejamento e Informações Regionais Urbanas. A partir da aprovação deste PL pelo Poder Legislativo e sua sanção pelo Presidente da Republica, a responsabilidade maior pela gestão metropolitana

pública. Seu modelo de gestão correspondia ao sistema político autoritário, centralizado e técnico da época que permitia uma gestão intergovernamental em que o nível federal apoiava programas regionais interurbanos e programas setoriais, como habitação, saneamento, patrimônio histórico e outros; os estados coordenavam programas regionais e setoriais, e a gestão de projetos intra-urbanos de metrópoles; e as prefeituras respondiam por atividades intra-urbanas municipais. Esta política urbana multidisciplinar e intergovernamental buscava o bem-estar do cidadão e teve resultados positivos, enfrentou dificuldades e gerou fiascos. Alguns dos quais ressurgem na Estatuto da Metrópole, como a dificuldade para estabelecer territorialidade metropolitana que corresponda às exigências de planejamento de gestão de serviços metropolitanos. Ou a definição autoritária do sistema político-administrativo para gestão metropolitana. A abertura política dos anos 1980 produziu um samba enredo que surge na eleição dos antes nomeados prefeitos de capital, quando a gestão metropolitana foi enfraquecida por prefeitos de capital que eram candidatos naturais à sucessão do Governador em exercício. Além disso, prefeitos de municípios menores aceleraram a destruição da gestão metropolitana com medidas administrativas bastante

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foi transferida do Poder Executivo para o Poder Legislativo – estadual e municipal. Com este resumo da evolução da questão metropolitana chegamos aos dias de hoje, quando o tema continua sendo debatido no cenário global e nacional. A implantação do Estatuto da Metrópole enfrenta inúmeras questões, carências e gargalos, cuja solução exige o apoio da União, em especial do IBGE, do IPEA e do Ministério da Cidade. Como estudos, planos e projetos para o planejamento, gestão ou redução das disparidades do tecido urbano, que exigem variáveis e territorialidades que dependem do IBGE. Entidades metropolitanas levaram ao IPEA e Ministério da Cidade problemas que enfrentam para alcançar objetivos a que se propõem. Como a governança interfederativa, difícil de conceituar e mais difícil ainda de implantar em nível local; ou a escolha dos serviços de interesse comum, cujas características correspondam àquela metrópole ou aglomerado; ou como integrar o planejamento territorial com projetos de serviços comuns e planos diretores, projetos e serviços municipais. A atual crise política e econômica limita a capacidade do gestor público para investir nos projetos e obras exigidas pela governança interfederativa. Ainda assim, o poder executivo estadual será punido se não cumprir o Estatuto, embora não receba apoio da União; não disponha de recursos administrativos, técnicos e financeiros; esteja sujeito a perdas políticas e, dificilmente irá desfrutar vantagens e resultados pelo esforço de cumprir o Estatuto. Num cenário confuso, em que várias assembleias estaduais aprovaram decisões esdrúxulas que conflitam com a realidade e com o espírito e objetivos do Estatuto da Cidade. O Estatuto da Metrópole foi criado para que, em cada metrópole que integra a realidade urbana nacional, haja políticas públicas que aperfeiçoem a qualidade de vida de cada cidadão. Para obter resultados será necessário concentrar esforços – públicos e privados –, bem como tratar o inovador Estatuto com cuidado e atenção. Neste sentido espera-se que o Seminário no IBGE permita oferecer aperfeiçoamentos e que iniciativas do Ministério da Cidade permitam avaliar questões complementares. As expectativas são muito favoráveis. ■

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Jantar em segredo Wilian Fernandes Pereira

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m homem, ele não tem nome, é genérico. De todas as idades, moço, metade velho, está sentado, pensando, olhos vagos e fixos, tentando refinar um sentimento indefinido que ele tem, um misto de ansiedade tranquila com expectativa insatisfeita e plácida, corrosiva. Sente vontade de beber umas cervejas, um uísque, uma vodca, tomar LSD, fumar um beque: sair da realidade; ou apenas sair de casa e encontrar alguém, conversar, ter companhia, fazer amor com ternura, muitas vezes, em diferentes ritmos. O homem deita-se em sua cama, de cuecas, olha para um e o outro lados, vagabundo; para o teto, fixo, profundo. Decide ir ao supermercado, compras do mês, e logo cede a todo anúncio publicitário que explore seus sentimentos de solidão do tipo “Lasanha que faz dois pratos”, “Caipirinha: duas doses”, “Pipoca para duas pessoas”. Desiste das compras, deixa o carrinho cheio, mas devolve alguns potes para as prateleiras, só por tédio. Resolve então fazer um luxuoso jantar para dois, ainda que não tivesse companhia certa, até então. Faz a comida, toma banho, serve à mesa romântica, taças, velas, chiaroscuro, porcelana. Elegantíssimo, escuta Coltrane enquanto monta a cena. Senta-se disposto a jantar consigo mesmo, tendo sua digníssima sombra por companhia. Come, vagarosamente, procurando não avaliar sua condição-contradição, não se enxergar no mais extremo desespero da condição solitária, não olhar para o vazio do lugar à frente, o copo cheio (fez até um brinde, no ar!), a comida esfriando, pela metade. Tremulante, termina o jantar, já meio bêbado, buscando com a mão firme, triste mas decidida, o corpo da taça que transpira. Vai para o quarto e tira a roupa em frente ao espelho (exceto as cuecas, imaculadamente brancas), veste um pijama, abraça o travesseiro, apaga a luz. Seus olhos vagueiam no escuro, ele de lado, iluminados por uma luz azulada, como se a noite tivesse brilho próprio.

Self-Portraitor: antologia quase poética. Wilian Fernandes Pereira Edição do Autor, 2010. pp. 450-451 "Esta e outras obras do autor podem ser adquiridas em: <livrosdoze.com.br>."

Dorme e vê se esquece, se passa, se o vazio termina, esta falta de sentido da vida moderna e antiga, o estranhamento, a sinestesia nauseante, se passa. Fumar, essa droga, comprar, esse vício, dançar, chorar, contar piadas; pra um deprimido, dá tudo na mesma e nada resolve (tem coisa que até piora). Toca seu corpo; tem barriga, fingindo que não há nada, sequer vísceras, muito menos expostas, até que um sentimento esquisito outra vez irrompa, como uma alergia violenta ou uma arte verdadeira, indisfarçável, inegável, irrefutável. E aí ele se distrai novamente, de maneiras diversas, mas sob o mesmo fundo, o mesmo medo, essa coisa difícil de transmitir, tão pessoal, mas tão comum, facilmente compartilhável… ■

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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa Brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.

Capítulo 12 Nas andanças noturnas pelos poucos bares de Brasília conheci um sujeito no Amarelinho, um bar no início da W3 Sul que tentava copiar o similar da Cinelândia. Chamava-se Virgolei (o nome era esse mesmo). Depois de uns chopes quentes e uma conversa confusa sobre política, convidou-me para frequentar reuniões político-culturais, realizadas semanalmente na residência dele. Ficava em um daqueles prédios de apartamentos, denominados por siglas e números misturados, parecendo códigos de acesso a alguma coisa, onde engavetavam os funcionários públicos. Achar o prédio na primeira vez foi uma dificuldade, ficava na 307 Sul, de frente para o Eixinho, era a primeira quadra que tinham completado, projeto do Niemeyer para variar, os prédios tinham brise soleil para todos os lados, um artifício para proteção do sol usado por Corbusier em Paris, mas em Brasília virou artifício estético. Não me adaptava à falta de ruas com nomes e números normais, por pouco não desisti. Se tivesse feito não estaria aqui, mas depois de várias tentativas mostrei o endereço: SQS 307, Bloco J, apto 507 a um bêbado que parecia tão perdido quanto eu. Ele olhou durante alguns minutos, depois apontou o dedo, e era lá mesmo.

As tais reuniões do Virgolei eram coisas típicas de Brasília, de quem não tinha nada para fazer à noite, porque os bares eram poucos, lembro do Mocambo, Amarelinho, Pigalle e do Caravelle, as mulheres, pouquíssimas e desconfiadas. Tudo isso agravado por um frio noturno cortante, frio de altitude, de planalto, que não encontrava obstáculos e saía varrendo tudo. Eram oito pessoas sentadas em poltronas velhas e no chão, duas eram moças, garotas na faixa dos dezoito anos. Uma delas muito bonita, e pelo modo como se referia aos pobres, com excessiva indulgência, percebi de imediato que era uma destas filhinhas de pai rico por quem eu habitualmente tinha aversão, mas que hoje em dia é o sonho de qualquer rapaz de minha idade. Por iniciativa do Virgolei foi feita uma apresentação geral, porque teriam três caras novas no grupo, uma era a minha. Dei um nome falso. Disse que me chamava Reinaldo, era estudante e morava em Taguatinga. Não fiz mal intencionado. Fazia, e até hoje faço isso por diversão mesmo. Quando a moça ou rapaz da loja de roupa pergunta meu nome com o interesse de aumentar a intimidade entre cliente e vendedor, costumo dar um nome que me venha a cabeça, tipo Carlos, Temístocles, mas


o meu preferido sempre foi Reinaldo. Já houve casos que me identifiquei como Riobaldo, “Riobaldo de quê?”, disse a garota com quem pretendia sair. “Tatarana”, respondi. Ela achou estranho, mas não entendeu nada. Apresentaram-se todos, guardei alguns nomes, Virgolei, Nivaldo, Neide, Doris, não lembro dos outros nomes e talvez não seja conveniente citá-los, quem sabe. Discutia-se de tudo no grupo, desde o último romance do Capote até o primeiro filme do Goddard. Perdíamos um tempo danado com o romance da moda: O Apanhador no Campo de Centeio, um livro chato que a moça grã-fina adorava e que todos pensavam ser um livro para adolescentes, mas que no fritar dos ovos era um livro para loucos, pelo menos eu achava. O prato principal era a política. Obviamente, todos eram de esquerda, uns mais, outros menos. E como era natural, quem não era de esquerda, era direita e, portanto, inimigo, e jamais apareceria nas reuniões do Virgolei. Desconfiava que não era tão simples. Mas aqueles não eram tempos de nuances. Jango era visto como de esquerda e, logo, deveria ser defendido a qualquer custo segundo os participantes, todos muitos jovens, exceção do Virgolei que deveria ter uns trinta e cinco. Ninguém se perguntava se Jango era fazendeiro, populista barato e se manejava aqueles sindicatos controlados pelos pelegos que sobreviviam desde Getulio metendo a mão no dinheiro dos Institutos de Previdência, ou seja, o nosso dinheiro que Juscelino juntou com a grana emprestada dos americanos e construiu Brasília. Convivemos uns seis meses, mas se você me perguntar, “Virgolei de quê?”, eu não saberia responder. Sei que não era falso, porque vi o porteiro chamá-lo de Doutor Virgolei. A moça com pose de grã-fina, com quem eu implicava, sempre tinha propostas excessivamente radicais e quando citava aqueles filósofos de esquerda tipo Sartre e outros despirocados, num francês

impecável, eu sempre pensava preconceituoso: essa aí é daquelas que vive cagando pasta de dente e mijando perfume francês. A movimentação no quartel aumentava a cada dia com reuniões e reuniões de oficiais que discutiam abertamente a situação política. Alguma coisa estava para acontecer e como os militares sabiam, na guerra a surpresa é fundamental. Civis não têm esta visão estratégica e nem viam a luta política como uma guerra, pelo menos o pessoal do Virgolei não via. Aos sábados gostava de bater perna pelo Centro de Brasília, que ficava na W3 Sul, na altura da 507 e se espraiava pela Rua do Supermercado Número 1, se é que podíamos chamar de rua um trecho com, no máximo, cinquenta metros de comprimento que ligava o Mercado ao Clube de Vizinhança, ideia de jerico do Lúcio Costa que não deu certo. Nunca entendi Lúcio Costa, de um lado da W3 botou lojas, cinemas, bares, do outro lado, aquelas casinhas enfileiradas tipo cidade do interior. Nesta época, Brasília tinha um “Centro”, ficava por ali, na 507 Sul, o Cine Cultura era a referência do Centro. Pensando bem, era um centro de cidade do interior, depois apareceram os Shoppings que deglutiram logo o centro, nem esperaram que ele envelhecesse como devia, hoje está jogado às baratas, sujeito a esses projetos de prancheta feitos por arquitetos que só pensam em beleza, como se beleza resolvesse alguma coisa; beleza nunca pôs mesa, como a maioria das mulheres sabem desde sempre. Era sábado, peguei o ônibus na Rodoviária, rodoviária era modo de falar, na realidade era o encontro de dois viadutos, a rodoviária ficava embaixo. Saltei no início da W3 e fui andando (esperar ônibus era perder tempo, igual acontece hoje em dia) tentando chegar ao “Centro”, não havia muito o que ver, os ipês e as espatódias ainda eram adolescentes, as vitrines tinham ficado no Rio, camelô era

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coisa raríssima, e gente, coisa mais rara ainda. O que sobrava era espaço, sobrava lugar para estacionar, sobrava rua, o trânsito era lento como o ritmo dos funcionários públicos. Andar debaixo daquela claridade toda, levando sol na cara era uma das poucas coisas que me dava prazer naquela cidade. Neste sábado estava sem sorte, encontrei na Civilização Brasileira o major de óculos com cara de intelectual. Tinha-o visto uma única vez, na inquirição sobre o teste de QI, depois soube que trabalhava no Quartel General. Fingi que não o vi, mas ele se aproximou e me cumprimentou, cordialmente. Começamos então uma conversa discreta sobre livros, que rapidamente descambou para ideologia e para a política, por iniciativa dele, por mim discutiria cinema, melhor, os filmes do Godard. — Marx acertou no atacado, mas errou no varejo, Gramsci tinha mais consistência porque viveu tempos mais modernos, mas o futuro será mesmo de Proudhon. — Disse ele convicto, querendo mostrar erudição, ou então queria me testar. Eu nem conhecia o tal Proudhon, detestava Marx, achava um tremendo simplificador, além de chato. Gramsci já tinha lido alguma coisa, sabia que era italiano e escreveu seus livros na prisão, um péssimo lugar para exercer a literatura. Mal sabíamos que o futuro seria do Delfim Neto, do Roberto Campos, dos sindicalistas do PT, dos acadêmicos do PSDB, dos

analfabetos que lotam o Congresso e, principalmente, da turma do mercado financeiro. Acho que percebeu minha ignorância e lançou um argumento mais pragmático: — Jango, sem apoio dos empresários, dos banqueiros, do Congresso, da classe média e dos americanos, irá certamente tentar apoio dos sindicatos, onde os comunistas detêm o poder. — Não é tão simples, a posição de todos os atores é muito ambígua. O que poderá derrubá-lo é a guerra fria que está muito quente ultimamente —, e completei:— empresários e banqueiros têm tanto medo dos militares quanto do Jango e não gostam de golpes nem revoluções. Os pobres também não, porque no final tudo pipoca nas costas deles. Aprendi essas bobagens com os paraquedistas em Deodoro, mas sabia que não era bem assim. Na minha cabeça, o problema com o Jango foi não ter arranjado um general para se escorar como fez Getulio e Juscelino. Dutra não precisou, escorava em si mesmo. No fundo, a conversa não me interessava, mas aceitei porque queria saber qual a intenção dos militares, percebia que se tratava de alguém bem informado. Meu interlocutor tirou os óculos por um momento e falou em tom de brincadeira. — Você gosta da palavra “ambígua”, não é? Acredito que deve ter feito mesmo aqueles 198 pontos e, bom atirador como é, quero estar do seu lado quando a confusão começar, sem ambiguidades. ■

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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