Revista eletrônica ∙ nº 16 ∙ Brasília/DF ∙ 15 dez 2016
A CPI que não terminou em pizza O hoje e o amanhã do agronegócio Retórica e reforma da previdência Mensagem, de Fernando Pessoa, parte 1
A nova revolução tecnológica
4 Riscando fósforo no tanque de gasolina
6 CPI do futebol, a CPI que não terminou em pizza
Revista eletrônica Nº 16 ∙ 15 dez 2016 ∙ Brasília/DF VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão Jorge Sotomayor José Cruz Helio Gama Martinho Silva Paulo Timm Ronaldo Conde Aguiar Sonia K. Guimarães EDITORES Arno Vogel Benicio Schmidt Carlos Alves Müller Fabiano Cardoso
9 Viva Colômbia
10 Agronegócio hoje e suas possibilidades amanhã
12 A nova revolução tecnológica e implicações sociais
16 Reforma da Previdência
18 O encarceramento em massa
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DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck
O petróleo é nosso
PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)
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FOTO DE CAPA www.pixabay.com – CC0 Public Domain
Mensagem
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Encaixotando Brasília
EDITORIAL N
este número trazemos análise de Benicio Schmidt acerca das consequências das delações premiadas da Lava Jato para a sequência e o futuro do governo de Michel Temer.
José Cruz, jornalista esportivo, traz texto elucidativo sobre as descobertas de Romário e Randolfe à frente da CPI da CBF e de como o jogo político transformou o que poderia ser um clássico em um jogo morno, sem gols. O também jornalista, Helio Gama, pontua os prós e contras do agronegócio no Brasil e o que é preciso para que ele possa realmente sustentar o País. A socióloga Sonia Guimarães traz artigo pujante sobre as características e o futuro da quarta revolução tecnológica e a internet das coisas e de que modo isto ainda irá mudar como nos movimentamos, vivemos e sobrevivemos. Paulo Timm, economista e humanista, analisa a falácia do rombo da previdência social e o porquê as contas para este tipo de serviço não podem ser feitas por alucinados por planilhas. Do livro de Martinho Silva, Saúde Penitenciária no Brasil: plano e política (Verbena Editora, 2015, 120 pág.), trazemos trecho sobre a problemática do encarceramento em massa da população jovem e negra fruto da falida e ineficiente política de guerra às drogas praticada no Brasil. Também do livro de Ronaldo Conde Aguiar, Vitória na Derrota: a morte de Getúlio Vargas; quem levou Getúlio ao suicídio? (Verbena Editora, 2014, 2ª ed., 288 pág.), trazemos o emocionante relato do autor sobre a história por trás da história da criação da Petrobras. Em tempos de tensão e incertezas, sabe-se que o consolo pode estar na poesia. Por isso, e justamente por isso, publicamos neste número a primeira parte do livro Mensagem, de Fernando Pessoa. Em Encaixotando Brasília, nosso intrépido herói está a caminho do Rio de Janeiro, saindo de Brasília, a fim de prestar exame educacional no colégio Pedro II. Boa leitura!
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Riscando fósforo no tanque de gasolina Benicio Schmidt – editor e cientista político
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Governo Temer corre tremendos riscos frente à opinião pública. Sua desaprovação é enorme. As manifestações contrárias às suas políticas têm sido constantes e de expressão nacional. Nos últimos dias, a grande surpresa é a virada de opinião dos grandes meios de imprensa, e especialmente de colunistas que apoiaram acintosamente a deposição de Dilma Roussef. O mesmo acontece com políticos importantes da própria base governamental no Congresso Nacional, como o Senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) e assumido pré-candidato a Presidente em 2018. Todos sugerem que a gestão Temer não tem mais condições de governabilidade e que seriam necessárias novas eleições, imediatamente. Com a aprovação da PEC do Teto no segundo turno no Senado Federal (53 x 16 votos) o quadro se abre mais favoravelmente à administração Temer. Medidas microeconômicas, como o REFIS II, incluindo a separação entre ativos e passivos de empresas envolvidas na Lava Jato e que estão ansiosas por desmembrarem e venderem seus ativos. Os passivos não entrariam nas novas fusões ou vendas, sendo negociados posteriormente pelas empresas junto às autoridades fazendárias federais. Isso porque, como é publicamente sabido, grupos nacionais e internacionais estão assediando as Grandes Irmãs Empreiteiras para assumir seus controles. Um fato.
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Favorecido pela disponibilidade de capital internacional com baixíssimos juros, algo inusitado na história do capitalismo contemporâneo. Com isso, as empresas envolvidas na Lava Jato se tornam alvos fáceis e apetitosos, devido aos baixos preços de transação e pelo acesso a um mercado reprimido –
As delações da Lava Jato, no pouco que já foi publicizado, têm causado mais estragos do que a paralisia econômica do País ao Governo Temer. Sem sombra de dúvidas. A distinção entre “caixa dois” e “propinas” é uma possibilidade de defesa frente à legislação eleitoral anterior a 2016, dada a então possibilidade de doação de empresas às candidaturas e partidos políticos. 4
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principalmente em sua infraestrutura – de um país com mais de 200 milhões de habitantes, com alto desemprego gerando rebaixamento de futuros assalariados na nova fase porvir. As delações da Lava Jato, no pouco que já foi publicizado, têm causado mais estragos do que a paralisia econômica do País ao Governo Temer. Sem sombra de dúvidas. A distinção entre “caixa dois” e “propinas” é uma possibilidade de defesa frente à legislação eleitoral anterior a 2016, dada a então possibilidade de doação de empresas às candidaturas e partidos políticos. Isso é o que os implicados, preliminarmente em denúncias não-homologadas, certamente vão tentar operacionalizar por meio de seus advogados. Matéria difícil, onde é pedregoso o caminho para escoimar o legal do legítimo, com suas consequências penais; podendo mesmo implicar na anulação da vitória da chapa Dilma-Temer. Um tempo de incertezas, um tempo dolorido e de grandes complicações para o exercício da governabilidade. Naturalmente, como tem sido visto, o mercado econômico reage negativamente a essa instabilidade na medida em que não percebe horizontes mais claros e seguros para grandes decisões. Michel Temer está por anunciar outras medidas que visam dar suporte à governabilidade, incluindo aí uma reforma ministerial imediata, buscando estabelecer um padrão de autoridade e transparência como tem sido obtido nas atuais administrações da Petrobras e do BNDES. Por enquanto é um projeto de ação. O tempo é escasso e as pressões contrárias são imensas. O ambiente é de transição com enormes atritos, dentro e fora do Palácio do Planalto. O regime presidencialista carrega consigo esta característica, que impede usualmente a diferenciação entre Crise de Transição e Colapso do Sistema Político. Em que estágio estamos? Fosse o regime de natureza parlamentarista a solução seria facilitada, mas não é o caso. A queda do PIB, as altas taxas de desemprego, a abulia empresarial, os conflitos corporativos, as lutas fratricidas entre o Judiciário e o Legislativo são complicadores; além, naturalmente, das diárias revelações de desmandos de autoridades constituídas e o sopro emanado pelas revelações da Lava Jato. Curiosamente, dada a falta de alternativas emanadas naturalmente dos processos de conflitos políticos normais em uma democracia, talvez se trate – mais uma vez – de um acerto entre as elites estatais para o encaminhamento do mínimo quadrado possível. ■ 5
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CPI do futebol, a CPI que não terminou em pizza José Cruz — jornalista de esportes
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m ano e sete meses depois da primeira sessão, a CPI do Futebol no Senado Federal não terminou em “pizza”. Ao contrário, encerrou os trabalhos com dois relatórios: o oficial, do relator, senador Romero Jucá (PMDB/RR), e um alternativo, voto em separado dos senadores Romário (PSB/RJ), presidente da CPI, e Randolfe Rodrigues (Rede/AP). Essa dualidade de documentos resumiu uma disputa ao longo das audiências da CPI: de um lado, Jucá tentando evitar investigações e exposições das mazelas dos bastidores do futebol; e o autor da proposta da CPI, o senador Romário, promovendo uma investigação que implicou em quebra de sigilo bancário e acesso a documentos comprometedores da cúpula da CBF e do Comitê Organizador da Copa, com achados inéditos que confirmaram a corrupção no futebol. “Não há qualquer dúvida de que uma organização criminosa se apoderou da CBF para cometer crimes”, disse Romário, ao final dos trabalhos. Desde os tempos de jogador, um dos destaques da Seleção pentacampeã, em 1994, o hoje senador Romário já tinha a pulga atrás da orelha. Afinal, para onde iria tanto dinheiro da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), captado do prestígio da Seleção, se o futebol vivia e vive pelas tabelas, agravado por dívida de R$ 4 bilhões ao fisco, refinanciados em 2015? As respostas a essas indagações estão no relatório de 1.206 páginas que ele produziu. E, em futebol, o que significa “viver pelas tabelas”? Segundo o Bom Senso F.C – associação de atletas que tenta implantar o “Fair Play” também na gestão esportiva –, entre 2009 e 2013, os 23 principais clubes brasileiros apresentaram um déficit acumulado de R$ 1,2 bilhão. Mais: no mesmo período, o endividamento líquido das mesmas agremiações cresceu 90%, chegando a R$ 5,3 bi. O endividamento que ainda ocorre não se deve mais à dívida fiscal, pois
em 2015 a então presidente Dilma Rousseff sancionou um acordão com os clubes, quando parcelou os débitos em 240 meses, além de perdoar multas e baixar os juros significativamente.
Enquanto isso... Dos 800 clubes registrados na CBF, mais de 600 jogam apenas três meses na temporada toda, coisa de 20 jogos. O restante do ano as agremiações ficam inativas, sem receitas e contribuem para o desemprego ou o subemprego em geral. Esta realidade ocorre no futebol pentacampeão do mundo, o mesmo país dos tristes 7 a 1... Como demonstra um estudo do Bom Senso e outros de especialistas em marketing esportivo, faltam ações efetivas da CBF para dar rumo renovado e moderno para esta atividade, que gera muita receita e sugere outro tanto de corrupção, a partir da lavagem de dinheiro, enriquecimento próprio e evasão de divisas, principalmente. Para que se tenha uma ideia sobre o que significam os negócios da bola mundo afora, apenas na Copa do Mundo de 2014, no Brasil, a FIFA, que tem a CBF como uma das filiadas, registrou faturamento de R$ 16 bilhões.
Duas tentativas A primeira tentativa para esmiuçar a caixa preta das finanças da CBF ocorreu quando Romário era deputado federal (2011-2014). Mas não houve tempo para aprovar e instalar a CPI. A ideia era mergulhar nas finanças da entidade para ver o que ocorrera em 13 anos, desde a realização da CPI da CBF-Nike, em 2001. Naquela ocasião, constatou-se corrupção escancarada, com evasão de divisas, enriquecimento ilícito, sonegação fiscal etc. 6
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Quando chegou ao Senado, em 2015, apoiado por 4,6 milhões de votos, Romário apresentou-se ao então presidente da casa, Renan Calheiros (PMDB/ AL), numa visita protocolar. Algo como para anunciar: “Estou na área”. No meio da conversa, Romário pediu apoio a Renan para criar uma CPI destinada a investigar as denúncias de corrupção na CBF. Renan sugeriu esperar por “um momento mais oportuno”. O tal “momento” surgiu, devastador, na manhã de 27 de maio de 2015. Naquele dia, o ex-presidente da CBF, José Maria Marin, foi preso em um luxuoso hotel de Zurique, na Suíça, com outros sete dirigentes do futebol mundial, momentos antes da instalação de uma assembleia da Federação Internacional de Futebol, a poderosa FIFA. Todos eram acusados de recebimento de propinas e operações ilegais por meio de bancos americanos. Marin, agora com prisão domiciliar, está em Nova York, onde será julgado em novembro de 2017. No rumo das investigações, seu substituto na CBF, Marco Polo Del Nero, e o ex-presidente Ricardo Teixeira, também foram indiciados pelos mesmos crimes. Com medo de ser preso pela Interpol, Del Nero nunca mais viajou ao exterior. Ainda naquela manhã da prisão dos cartolas Romário foi ao gabinete de Renan, que não teve mais argumentos para contestar a proposta, e autorizou a criação da CPI. No mesmo dia o senador Romário obteve 66 assinaturas e protocolou o pedido, que foi imediatamente lido em plenário. Começava, então, uma batalha de bastidores, com fortíssima interferência dos dirigentes do futebol. E somente dois meses depois, em 14 de julho, a Comissão foi instalada, com uma composição favorável aos interesses da cartolagem, isto é, disposta a barrar avanços dos investigadores. E assim foi, porque, na prática, Romário contava com apenas dois senadores favoráveis às investigações, Randolfe Rodrigues e Paulo Bauer (PSDB/SC). E, dependendo da votação, um ou outro poderia apoiar a mínima bancada investigativa. Nos bastidores, Vandenbergue Machado comandava a Bancada da CBF, garantindo quórum quando a pauta era favorável ou esvaziando o plenário quando não havia interesse em aprovar requerimentos para convocações, por exemplo. Vandenbergue, servidor aposentado do Senado Federal, é amigo de Renan Calheiros. Na recente delação do ex-senador Delcídio do Amaral, na Operação Lava-Jato, ele foi chamado de “amarra-cachorro de Renan”, o que jus-
tifica a sua liberdade para atuar no Legislativo, ainda usando credencial de funcionário, apesar de já estar aposentado pelo Senado Federal há muitos anos.
Troca de gentilezas Afinal, porque deputados e senadores são obedientes a uma instituição privada, como a CBF, a ponto de negar investigações de denúncias de suas suspeitas? Por que parlamentares, mesmo diante da prisão de um ex-presidente, José Maria Marin, do afastamento de outro, Ricardo Teixeira, e do indiciamento do atual, Marco Polo Del Nero, por corrupção, ainda tentam proteger a cartolagem responsável pelo principal patrimônio do nosso esporte, o futebol? A resposta não é difícil. De maneira histórica, a CBF patrocinou campanhas políticas. A CPI de 2001, comandada pelo então deputado Aldo Rebelo (PCdoB), já relacionava parlamentares beneficiados com verbas do futebol para suas campanhas. A troca de favores é evidente. Mais recentemente, depois que o Brasil conquistou a sede da Copa do Mundo, em 2007, os cartolas retribuíam as gentilezas dos políticos doando convites – alguns para os camarotes VIP – para jogos da Seleção. Mas a ousadia dos cartolas cresceu, e chegou ao ponto de distribuírem diretorias da CBF para deputados. Atualmente, três estão nesta situação, com salários de até R$ 40 mil mensais, como revelou o deputado Vicente Cândido (PT/SP), em uma entrevista. Ele é diretor Internacional da CBF. Já o deputado Marcus Vicente (PP) é o vice-presidente, e chegou a exercer a presidência, no impedimento de Marco Polo Del Nero. Marcelo Aro, deputado mineiro pelo PHS, ocupa, estranhamente, a diretoria de Ética da CBF. Mas nenhuma dessas trocas de favores foi tão ousada quanto à realizada em junho de 2008. Num jogo da Seleção Brasileira no Paraguai, o chefe da delegação foi um influente ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Marcos Vilaça, já aposentado. Algum tempo antes, Vilaça havia apoiado a criação de um grupo de trabalho do TCU para acompanhar e analisar os gastos públicos na preparação do país à Copa do Mundo. Neste panorama a CBF promoveu várias tentativas para “melar” a CPI, até que conseguiram, em março de 2016, quando foram aprovados re7
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querimentos para convocar Marco Polo Del Nero e outros membros da CBF. Mas o presidente do Senado, Renan Calheiros, segurou as convocações até o prazo da CPI se esgotar. Aproveitando-se do impasse, o relator, Romero Jucá, apresentou o seu relatório em 31 de maio, três meses antes do prazo da Comissão se esgotar. Enquanto isso, a equipe técnica do senador Romário trabalhava nos dados da quebra de sigilos de cartolas vinculados à CBF, do Comitê Organizador da Copa e no conteúdo de um HD (Hard Disc) do computador de Marco Polo Del Nero, apreendido na operação Durkheim, em 2012. O acesso a essas informações foi via judicial.
de bens e serviços, contratos de patrocínio, contratos de jogos amistosos, transferências de jogadores, tudo virou esquema para receber vantagens, que proporcionaram uma vida de luxo a dirigentes que só trabalharam para eles mesmos”, sintetizou Randolfe à imprensa.
Proposições para indiciamentos: RICARDO TEIXEIRA, Ex-presidente da CBF Estelionato; crime contra a ordem tributária; crime contra o Sistema Financeiro Nacional; lavagem de dinheiro, organização criminosa; crime eleitoral, considerando o seu envolvimento nas infrações penais listadas nos capítulos referentes ao caso FIFA; e ao financiamento não declarado de campanhas eleitorais pela CBF (caixa 2).
Balanço As investigações foram reforçadas com documentos do departamento de Justiça dos EUA, que também investiga corrupção internacional no futebol. Foi assim que a CPI identificou o modus operandi da “organização criminosa” que opera na CBF. Algumas provas foram obtidas a partir da troca de e-mails entre Marco Polo Del Nero e diversas pessoas, registros no HD apreendido na operação Durkheim. O relatório será encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF) e à FIFA. Baseados nisso, Romário e Randolfe Rodrigues, que assinam o relatório alternativo, pedem o indiciamento de nove pessoas. Na leitura do resumo do relatório alternativo da CPI, Randolfe Rodrigues usou uma entonação trágica de voz, para melhor ressaltar a gravidade dos achados e alertar a imprensa, que aguardava ansiosa a liberação do relatório.
JOSÉ MARIA MARIN, ex-presidente da CBF (preso nos EUA) Estelionato; crime contra a ordem tributária; crime contra o Sistema Financeiro Nacional; lavagem de dinheiro; organização criminosa; falsidade ideológica, considerando o seu envolvimento nas infrações penais listadas nos capítulos referentes à compra da sede da CBF; ao caso FIFA; e ao acordo fraudulento juntado no Superior Tribunal de Justiça – STJ. MARCO POLO DEL NERO, presidente da CBF Estelionato; crime contra a ordem tributária; crime contra o Sistema Financeiro Nacional; lavagem de dinheiro; organização criminosa; crime eleitoral, considerando o seu envolvimento nas infrações penais listadas nos capítulos referentes à compra da sede da CBF; ao caso FIFA; e ao financiamento não declarado de campanhas eleitorais pela CBF (caixa 2).
“Tudo o que a CBF fez, sob a direção dessas pessoas citadas (abaixo), foi corrompido. Fornecimento
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GUSTAVO DANTAS FEIJÓ (PMDB), prefeito de Boca da Mata (AL) Crime eleitoral, considerando o seu envolvimento nos ilícitos penais listados no capítulo referente ao financiamento não declarado de campanhas eleitorais pela CBF (caixa 2).
JOSÉ HAWILLA, empresário (preso nos EUA) Estelionato; crime contra a ordem tributária; crime contra o Sistema Financeiro Nacional; lavagem de dinheiro organização criminosa, considerando o seu envolvimento nos ilícitos penais listados no capítulo referente ao caso FIFA.
ANTONIO OSÓRIO RIBEIRO LOPES DA COSTA, ex-diretor financeiro Estelionato; crime eleitoral, considerando o seu envolvimento nas infrações penais relacionadas nos capítulos referentes à compra da sede da CBF; e ao financiamento não declarado de campanhas eleitorais pela CBF (caixa 2).
KLEBER FONSECA DE SOUZA LEITE, empresário Estelionato; crime contra a ordem tributária; crime contra o Sistema Financeiro Nacional; lavagem de dinheiro; organização criminosa, considerando o seu envolvimento nos ilícitos penais listados no capítulo referente ao caso FIFA. CARLOS EUGÊNIO LOPES, advogado da CBF Falsidade ideológica, considerando o seu envolvimento no ilícito penal apontado no capítulo referente ao acordo fraudulento juntado no Superior Tribunal de Justiça – STJ. ■
MARCUS ANTONIO VICENTE (PP), deputado federal e diretor Falsidade ideológica, considerando o seu envolvimento no ilícito penal apontado no capítulo referente ao acordo fraudulento juntado no Superior Tribunal de Justiça – STJ, ressalvada prerrogativa constitucional prevista no art. 102, inciso I, alínea b, da Constituição Federal de 1988.
Viva Colômbia Jorge Sotomayor – médico
A
cidade de Medellín, na Colômbia, causou grande impacto em todo o Brasil pela solidariedade demonstrada diante da grande tragédia ocorrida com o time de futebol catarinense. A população dessa cidade colombiana onde a Chapecoense jogaria a primeira partida da final da Copa Sul-Americana fez repetidas demonstrações de carinho para com os brasileiros diante da perda de vidas de jogadores, jornalistas e dirigentes do time que culminou com uma homenagem pública que lotou as instalações do estádio da cidade. O Nacional de Medellín fez um novo gesto ao oferecer a taça do Campeonato Sul-Americano à Chapecoense, sugestão ratificada posteriormente pela Conmebol. No dia do jogo, o Nacional promoveu um ato
público de homenagem que contou com a presença de autoridades brasileiras que estavam ali para agradecer o gesto. Diante de mais de 40 mil torcedores colombianos, o chanceler brasileiro agradeceu em nome do povo brasileiro essa demonstração de carinho e, no discurso, se emocionou até caírem as lágrimas. Disse que aquela tinha sido a maior emoção da vida dele. Medellín já havia manifestado sentimento análogo há 81 anos quando outro acidente perto da cidade privou o mundo da voz de Carlos Gardel e das inesquecíveis canções de Alfredo Lepera. Uma das principais avenidas da cidade foi batizada com o nome de Carlos Gardel e o bairro Manrique tornou-se um dos centros de difusão da música e da dança do tango e milonga. ■ 9
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Agronegócio hoje e suas possibilidades amanhã Helio Gama – jornalista
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nquanto o país assiste com receio crescente, as colunas que sustentam o sistema político democrático estremecerem, como se Victor Mature voltasse a desempenhar o papel de Sansão, a economia continua funcionando. A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) divulgou hoje, quinta-feira, 8 de dezembro de 2016, o terceiro levantamento da safra de grãos 2016/2017. De acordo com a pesquisa realizada pelos técnicos da CONAB e de outras instituições em todo o Brasil, durante o mês de novembro, os principais resultados foram os seguintes:
Foto: pixabay.com – CC0 Public Domain
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99 a área de plantio prevista é de 59,2 milhões de hectares (na safra 2015/2016 ela foi de 58,5 milhões de hectares; 99 a produção prevista é de 213,1 milhões de toneladas (foi de 186,1 milhões de toneladas na safra 2015/2016); 99 e a produtividade das lavouras deve registrar 3.602 quilos por hectare (a produtividade efetiva da safra 2015/2016 foi de 3.191 quilos por hectare).
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Isso significa que está sendo previsto crescimento substancial na produção nacional de grãos de 14,5%, ou 27 milhões de toneladas (a safra anterior, como se sabe, sofreu muito com as intempéries). Os grãos, no caso, são os que alimentam as pessoas e as criações de animais e incluem as culturas de verão (algodão, amendoim, arroz, feijão, girassol, mamona, milho, sorgo e soja) e as culturas de inverno (aveia, canola, centeio, cevada, trigo e triticale). Se o país tivesse mantido o ritmo de seu crescimento recente, durante o qual a produção nacional de grãos evoluiu de 162,8 milhões de toneladas, em 2010/2011, para 207,8 milhões de toneladas, em 2014/2015, ou 27,6%, 45 milhões de toneladas, o país provavelmente estaria agora com uma produção próxima de 240 milhões de toneladas. Mas, na verdade, falar em possibilidade de crescimento produtivo do agronegócio brasileiro, no caso, seria abrir a necessidade de lembrar das omissões do poder público brasileiro em pelo menos três aspectos cruciais. Irrigação e produtividade: Como se sabe, a produtividade agrícola nos bons projetos de irrigação costuma crescer pelo menos 50% sobre os números anteriores. No caso brasileiro, nas áreas que forem beneficiadas em um programa de 15 milhões de hectares, por exemplo, haverá um acréscimo de mais de 1.500 quilos por hectare, ou seja, um total de 22,5 milhões de toneladas na produção. Infraestrutura e logística: O agronegócio brasileiro tem sofrido muitos prejuízos pela ausência de um sistema de transportes de qualidade, de custos razoáveis e que contribua para a preservação ambiental. Ferrovias e hidrovias precisarão se juntar às rodovias, com ampliações dos dois sistemas, de forma que, no final do processo, seja possível reduzir as atuais perdas, que representam algo parecido a 25% da safra (sendo a metade em razão das desistências de plantio). Isso representará um acréscimo potencial de ¼ na produção brasileira de grãos, ou algo como 50 milhões de toneladas. Programa de Colonização/Reforma Agrária - 1: Se for estabelecido que a reforma agrária no Brasil iniciou oficialmente em 1965, ou seja, há 51 anos,
até hoje não conseguiu beneficiar mais de 800 mil famílias de agricultores. O plano colocado em prática pelo presidente Abraham Lincoln, em 1841, com a entrega de aproximadamente 400 mil títulos de propriedade constituiu a base da sólida produção agrícola familiar daquele país. Ao lado disso, também ficou estabelecido que invasores de terras serão retirados legalmente pelo proprietário da área, ou pela polícia, sem delongas. Programa de Colonização/Reforma Agrária - 2: Ora, se o Brasil localizar, e marcar, 35 milhões de hectares, dos quase 90 milhões de hectares que possui disponíveis imediatamente para a produção, selecionar corretamente cerca de 1,2 milhão de famílias de sem-terras e de minifundiários, e organizar algo entre oito e doze blocos de terras a serem entregues para consórcios nacionais ou estrangeiros capazes de administrar um complexo processo de organização de colônias produtoras que contem com a formação da mão de obra, sistemas adequados de fornecimento de sementes, preparação das terras, incluindo irrigação, e plantio, assim como a instalação de cooperativas para a colheita a comercialização. Instalação de escolas, Igrejas, Centros médicos. Um programa dessa magnitude, supermercados, entre outras necessidades, precisarão ser feitas. Programa de Colonização/Reforma Agrária - 3: É possível que em cinco anos, o país já pudesse estar com esse programa totalmente incluído no agronegócio brasileiro, produzindo mais de quatro mil quilos por hectare em aproximadamente 10 milhões de hectares, ou um acréscimo de 40 milhões de toneladas na produção de grãos do país, sem contar as produções de frutas, carnes, hortícolas, entre outros. Programa de Colonização/Reforma Agrária - 4: É importante registrar, ainda, o forte impacto que o acréscimo de mais de um milhão de propriedades agrícolas (com mais de 4 milhões de pessoas, o equivalente à Região Metropolitana de Porto Alegre com 34 municípios) poderá representar para fornecedores que vão desde máquinas e equipamentos agrícolas e de eletrodomésticos, passando por vestuário de trabalho, produtos de consumo diário, instalação de pequenas indústrias artesanais, energia e finanças. ■
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A nova revolução tecnológica e implicações sociais Sonia K. Guimarães – socióloga
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inda estamos em processo de adaptação às transformações tecnológicas que caracterizam a chamada “terceira revolução industrial” – tecnologias da informação, biotecnologia e nanotecnologia – e, já nos encontramos diante de nova ruptura tecnológica, identificada como “quarta revolução industrial”. Este tipo de revolução se caracteriza pela possibilidade de substituir pela máquina as ações cognitivas não rotineiras – até então consideradas prerrogativa de humanos. A chamada quarta revolução industrial apoia-se nos sistemas ciber físicos (cyber physical systems), em que cada objeto ou ser vivo torna-se “inteligente” (smart) a partir da incorporação de sensores que permitem contínua comunicação e interação, não apenas entre humanos, mas entre humanos e máquinas e máquinas entre si, por meio de conexão à Internet sem fio. Esse sistema, conhecido por “Internet das Coisas” (Internet of Things, IofT1, em inglês), permite que equipamentos com recursos digitais comuniquem-se entre si (por exemplo, interações entre automóveis que permitirá o fluxo de carros autônomos) e/ou com humanos, para a tomada de decisões. A nova revolução baseia-se na capacidade de explorar volumosos e complexos conjuntos de dados (big data) gerados pelo uso extensivo de recursos eletrônicos na atividade cotidiana – telefones celulares, e-commerce, redes sociais, comunicação eletrônica, GPS, dentre outros – que, paralelamente aos objetivos-fim, disponibilizam grande quantidade de informação. Técnicas sofisticadas de análise científica de dados (data analytics) buscam reconhecimento de 1
“padrões” (padrões visuais, sensoriais e comportamentais) de modo a gerar algoritmos (sequência de instruções bem definidas, necessárias para a realização de uma tarefa implementada por meio de computador, robô ou por ser humano) que indicam os passos a serem seguidos para o desempenho de uma tarefa ou procedimento. (FREY & OSBORNE, 2013). O desenvolvimento de algoritmos sofisticados possibilitou a informatização de procedimentos cognitivos não-rotineiros, por meio de operações que caracterizam a chamada “inteligência artificial” (IA). A nova tecnologia pode ser aplicada com grande eficiência e menor custo em diferentes áreas da vida cotidiana como saúde, educação, transporte, energia, agricultura dentre outras. (BRYNJOLFSSON & MCAFEE, 2011). A introdução dessas tecnologias trará completa remodelação do sistema de produção que deverá operar com baixa intervenção humana, autonomia, flexibilidade e maior eficiência. A flexibilidade nos modos de organização da produção demandará elevada capacidade de adaptação de empresas e empregados. A manutenção e reparação de equipamentos também será inteligente evitando duplicação de procedimentos e utilização de componentes e recursos desnecessários. Nesse contexto, a criação de valor se realiza pela capacidade de antecipar resultados (falhas de equipamentos, por exemplo) e pela capacidade de criar cenários futuros, a partir da análise científica de dados (data analytics). A utilização de tecnologias inteligentes altera a natureza da competição entre empresas que tende a realizar-
A expressão Internet of Things, foi utilizada pela primeira vez, em 1999, por Kevin Ashton, pesquisador britânico e professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), no título de uma apresentação sobre seu projeto de radiofrequência. A expressão pretende descrever a conexão via Internet entre objetos da vida cotidiana.
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se refere à capacidade de precisão e destreza na realização de tarefas. A tendência será A chamada quarta revolução industrial de que robôs atuem em procedimentos que apoia-se nos sistemas ciber físicos (cyber exijam destreza como cirurgias médicas ou, como já ocorre na montadora de telefones physical systems), em que cada objeto ou ser celulares da Apple, na China (Foxconn), que vivo torna-se “inteligente” (smart) a partir utiliza robôs para realizar a montagem de da incorporação de sensores que permitem telefones celulares. No processo de ensino à distância robôs podem atuar como tutores, contínua comunicação e interação, não desenvolvendo estratégias de ensino e de apenas entre humanos, mas entre humanos avaliação que visam a atender necessidades e máquinas e máquinas entre si, por meio individuais dos alunos. Os robôs estarão presentes em muitas outras atividades. de conexão à Internet sem fio. A nova revolução tecnológica inclui também a introdução e difusão de impressoras 3D que podem fabricar ampla gama de objetos, -se, sobretudo, a partir da capacidade da empresa de desde partes do corpo até móveis, roupas e outras imoferecer ao mercado não apenas menor custo, mas pressoras 3D. Com a queda de preços (a impressora também resultados quantificáveis, previsíveis e con- Buccaneer custa US$ 350,00), as impressoras 3D estão fiáveis. Em razão dessa característica, o novo con- se tornando acessíveis não apenas a empresas, mas texto é também chamado “economia de resultados”. também a consumidores que podem assim se tornar A indústria automobilística tem utilizado inten- produtores. As tecnologias de impressão 3D terão um samente as novas tecnologias inteligentes em dife- impacto significativo sobre a organização econômica. Como tem ocorrido historicamente, transformarentes funções, até chegar à criação do carro autôções tecnológicas tendem a afetar a estrutura dos nomo, atualmente em fase adiantada de testes. Na área médica, a telemedicina será usual: check mercados de trabalho, alterando não apenas o perfil up de rotina poderá ocorrer por monitoramento re- dos postos de trabalho, mas também a natureza do moto, assim como, a Internet das Coisas: registros trabalho. No caso das novas tecnologias, a ruptura eletrônicos e acessórios inteligentes como sensores parece ser realmente dramática: não apenas funções ingeridos pelo paciente ou inseridos em vestimen- rotineiras são eliminadas, mas também atividades tas, permitirão a administração personalizada de cognitivas não rotineiras. medicamentos e tratamentos ao paciente. A telemeHá consenso entre os estudiosos quanto ao imdicina e o uso de robôs serão de grande utilidade pacto generalizado das novas tecnologias no mercaa parcelas de populações como as do meio rural e do de trabalho. A controvérsia reside na discussão pessoas com dificuldades de deslocamento, que po- acerca da capacidade da revolução digital reproduderão ser atendidas mais facilmente, pelo menos, no zir os resultados positivos das revoluções tecnológicas anteriores tal como a criação de novos setores e que se refere a diagnósticos simples. O urbano também se tornará “inteligente”, con- a extraordinária ampliação de empregos. Em estudo sobre as implicações da difusão das tectando com sistemas informatizados que tornam mais eficientes a gestão de áreas relacionadas ao flu- nologias digitais no mercado de trabalho em países da xo de tráfego, ao monitoramento de segurança, ru- OCDE, Berger & Frey (2016) argumentam que o merídos, temperatura, iluminação públicas; a gestão de cado de trabalho atual tende a se caracterizar por: resíduos, bem como ao monitoramento de efeitos a) aumento da demanda por habilidades cognitivas, visto que os setores que movimentam a economia a gerados pela mudança climática. A utilização de robôs deverá expandir-se não partir dos anos 2000 são intensivos em conhecimento; apenas em razão de tendência à queda de preço, b) crescimento de postos de trabalho em setores mas também pelo aperfeiçoamento da tecnologia de tecnicamente estagnados e de baixa produtividade sensores que têm propiciado melhora significativa como alimentação, hotéis, varejo, serviços no setor no desempenho dos mesmos, especialmente no que público, cuidados com saúde, serviços pessoais; 13
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c) redução da demanda por ocupações de qualificação e renda médias dada a extensa informatização das mesmas. Se esse quadro persistir, a tendência seria a polarização do mercado de trabalho: no topo, postos de trabalho em setores intensivos em conhecimento, com salários mais elevados do que a média; no polo inferior, atividades de baixa produtividade; enquanto no centro do espectro formar-se-ia um “buraco” dada a redução de ocupações de competência e renda médias. (BERGER & FREY, 2016). Observe-se que os setores intensivos em conhecimento apresentam crescimento pouco significativo vis-à-vis o crescimento de postos de trabalho em setores tecnicamente estagnados e de baixa produtividade: em 2013, empregados no setor das tecnologias de informação e comunicação (TICs) e subsetores associados constituíam apenas cerca de 3% do emprego total em países da OCDE. (BERGER & FREY, 2016). Estima-se que cerca da metade dos empregos nos EUA (47%) em setores de produção, transporte e logística, serviços administrativos e vendas seja informatizada em futuro próximo. Semelhante tendência deverá ocorrer, também, dentre outros países, na Suíça, Alemanha e Reino Unido com perspectivas de informatização de 48%, 42% e 35% de atividades ocupacionais, respectivamente. (FREY & OSBORNE, 2013). Neste contexto, vasta camada de trabalhadores estaria em situação “não empregável”. Resta a questão: em que medida a ampla informatização de atividades cognitivas não rotineiras será capaz de criar novos empregos que desfaça a polarização social que se anuncia, acentuando a desigualdade de renda, associada à desigualdade de competências. O Pew Research Center – centro de pesquisas sobre opinião pública, localizado em Washington, DC – realizou, em 2014, levantamento com cerca de 2000 profissionais especialistas da área de tecnologias informacionais para conhecer a visão dos entrevistados sobre os avanços da inteligência artificial (IA) e da robótica e sobre o impacto dessas tecnologias no mercado de trabalho. Os resultados desse levantamento evidenciam a complexidade do fenômeno. (SMITH & ANDERSON, 2014). A grande maioria dos respondentes concordou que até 2025 as tecnologias em questão estariam integradas à vida diária de grandes contingentes populacionais e, em muitas áreas, sua penetração seria próxima de 100%. Porém, os resultados do levanta-
mento demonstram uma divisão entre os especialistas quanto à percepção sobre as implicações da IA e da robótica no que concerne ao cenário econômico e ao emprego: 52% apresentam uma visão otimista sobre as transformações, enquanto 48% as veem com preocupação. A maioria dos respondentes “otimistas” (52%) baseia-se na experiência histórica para afirmar que as revoluções tecnológicas tendem a criar mais empregos do que destruir e supõe que seja alta a probabilidade de que o mesmo ocorra na atualidade; prevê o surgimento de uma nova onda de inovações e criação de novas ocupações, em que se verifique a colaboração entre humanos e robôs. Prevê uma revolução nos modos de produção, em que prevalecerá a presença de pequenas empresas. Dentre esses respondentes há os que ressaltam que os efeitos não serão os mesmos para todas as sociedades, visto que as novas tecnologias requerem padrão elevado no que concerne a níveis educacional, tecnológico e de infraestrutura relacionada. Há também os que acreditam que a nova tecnologia favorecerá uma redefinição social do significado e valor do trabalho e emprego, o que levará a redefinição das formas de distribuição de riqueza. Nesse registro, certas formulações adquirem um certo viés utópico, como na visão de Vinod Koshla, cofundador, em 1982, da empresa de software e hardware, Sun Microsystems (Silicon Valley), adquirida pela Oracle Corp, em 2010, por US$ 7,4 bilhões. Na perspectiva de Vinod, em 30-40-50 anos, apenas os que desejarem terão um emprego/trabalho formal; segundo ele, as novas tecnologias trarão aumento de produtividade e crescimento econômico, de tal forma expressivo, a ponto de ser possível distribuir a riqueza de forma a permitir a cada um uma vida digna por meio de renda mínima garantida. (Vide: vídeo no YouTube intitulado: Vinod Khosla: Majority of Jobs Will Be Done by Machines in 40 Years). Soluções menos radicais visualizam oportunidades para a reavaliação do lugar social do emprego/trabalho, com redução das horas de trabalho e maior autonomia em sua execução. Destacam que características exclusivamente humanas, como empatia, criatividade, julgamento ou pensamento crítico são necessárias em muitas ocupações e que empregos que demandem competências dessa natureza não serão substituídos tão facilmente por máquinas, pelo menos no curto prazo. 14
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Os que demonstram preocupação com o avanço tecnológico atual discordam da perspectiva “otimista”, e sustentam que a situação presente difere das anteriores em razão do ritmo acelerado em que as mudanças tecnológicas ocorrem, o que dificulta os ajustamentos sociais necessários às novas exigências. A evidência estaria no desemprego tecnológico e na estagnação da renda constatadas nas atuais sociedades de altas rendas. Os entrevistados acreditam que não apenas o desemprego crescerá mas, que se constituirá um segmento social “não empregável”. Entre os empregados, preveem o crescimento da desigualdade de renda, visto que empregos melhor remunerados serão escassos. Segundo esse grupo de respondentes a classe média tenderá a reduzir-se em razão de efeitos adversos sobre trabalhadores de baixa e média qualificação, rupturas da ordem social serão inevitáveis. Os respondentes convergem quanto à avaliação de estruturas sociais existentes (referindo-se à sociedade norte-americana), em especial em relação às instituições educacionais, que julgam despreparadas para desenvolver as habilidades requeridas pelo mercado de trabalho futuro, em que os seres humanos competirão com máquinas muito eficientes.
transformação. Nesses tempos de mudanças tecnológicas aceleradas o sistema educacional, por exemplo, deve ser dotado de agilidade suficiente visando à reestruturação sempre que necessário. O sistema educacional, para estar em consonância com a natureza dos novos postos de trabalho, deverá privilegiar o desenvolvimento de capacidades próprias aos seres humanos tais como capacidades que envolvem inteligência social (formas complexas de comunicação, capacidades de colaboração e de adaptação a situações desconhecidas); inteligência criativa (originalidade, resolução criativa de problemas e capacidade artística), assim como expressão emocional (empatia), capacidades que serão determinantes no desempenho de novos postos de trabalho e que demandam completa reestruturação do sistema de formação educacional. As sociedades serão obrigadas a reestruturar não apenas seus sistemas educacionais, mas também valores sociais e instituições políticas de forma a adequarem-se às novas situações. Ao aceitar o mundo onde robôs “inteligentes” serão os “novos trabalhadores”, uma redefinição radical de muitos aspectos que guiam a vida social atual deverá ocorrer: desde a concepção associada ao lugar social do emprego (e desemprego), à renegociação do pacto social, incluindo novas formas de redistribuição da riqueza que, supostamente, deverá apresentar crescimento significativo. A estrutura social, econômica e política atual não está em consonância com as possibilidades que se abrem com a revolução tecnológica que se inicia. ■
Considerações finais As tecnologias digitais constituem, hoje, uma das forças motrizes mais importantes para o aumento da produtividade e do crescimento econômico, ao mesmo tempo em que contribuem para mudanças sociais significativas, em especial na esfera do emprego e do trabalho. O desenvolvimento de novas tecnologias e sua disponibilidade no mercado nem sempre são acompanhadas pelo correspondente desenvolvimento de capacidades humanas, de instituições e organizações sociais para se adequar ao processo. Deve-se, contudo, considerar que as implicações sociais – positivas ou negativas – geradas pela adoção de novas tecnologias dependem de decisões políticas e sociais. No que se refere às implicações sociais e, em especial, em relação à realidade do trabalho, as sociedades deveriam preparar-se melhor para enfrentar os riscos decorrentes de mudanças tecnológicas como as que experimentamos hoje, buscando adiantar-se às demandas de qualificação de um mercado de trabalho em constante
Referências BERGER, T. and C. FREY, “Structural Transformation in the OECD: Digitalisation, Deindustrialisation and the Future of Work”, OECD Social, Employment and Migration Working Papers, No. 193, OECD Publishing, Paris. 2016. DOI: <http://dx.doi.org/10.1787/5jlr068802f7-en>. BRYNJOLFSSON, E. & McAFEE, A. “The second machine age: Work, progress, and prosperity in a time of brilliant technologies”. WW Norton and Company. 2014 FREY, C. & OSBORNE, M. “The Future of Employment: How susceptible are jobs to computerisation?” Oxford: Oxford Martin School, University of Oxford. Sept. 2013. SMITH, A. & ANDERSON, J. “Views from Those Who Expect AI and Robotics to Have a Positive or Neutral Impact on Jobs by 2025”. Pew Research Center, Internet, Science & Tech, Report: AI, Robotics, and the Future of Jobs. August 6, 2014. Disponível em: <http://www.pewinternet.org/2014/08/06/ views-from-those-who-expect-ai-and-robotics-to-have-a-positive-or-neutral-impact-on-jobs-by-2025/>. WORLD ECONOMIC FORUM. “Industrial Internet of Things: Unleashing the Potential of Connected Products and Services”. Davos, Switzerland: Janeiro, 2015.
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Reforma da Previdência Paulo Timm – economista
O
Governo Temer apresentou sua proposta de Reforma da Previdência, ponto fundamental da retórica do déficit público, único elemento visível da Política Econômica do Ministro Meirelles, “o plano”. Retórica, a propósito, é a arte da tergiversação, infensa à dialética de argumentos consistentes. Para variar, todos os áulicos do Poder, começando pela grande Mídia, celebram o feito, reafirmando incessantemente que o problema é aritmético. Convém lembrar que essa história do déficit de Previdência se arrasta em cantilena fajuta desde a Era FHC e teve, no início do primeiro Governo Lula um capítulo lamentável. Lula inventou a taxa previdenciária, dos servidores aposentados, à razão de 11%. Absolutamente ineficaz, além de ferir direitos adquiridos. Na época, isso acarretou a expulsão do PT dos deputados Heloísa Helena, Babá e Luciana Genro, que denunciaram a traição. Fundaram o PSOL. A famigerada “Reforma”, que levou à expulsão de deputados federais do PT, denominados de “radicais” pela direção do partido então no poder, foi comparada ao “Mensalão”. Com a condenação de José Dirceu, José Genoino e outros petistas, o STF colocou o debate da compra da Reforma da Previdência com o dinheiro proveniente do “Mensalão”. Na esteira deste fato, um juiz de primeira instância de Minas Gerais ordenou que fosse paga a pensão integral à viúva de um servidor público. Dada aquela largada, esta taxa de contribuição, agora, vai a 14%, mas não descansarão enquanto não chagar a 30%, como o Governador do Rio de Janeiro já tentou com os servidores fluminenses. Agregada ao imposto de renda isso significa uma mordida espúria de metade os proventos dos velhinhos. Em nome da “racionalidade”... Meu Deus! Tudo engano, mentiras e manipulação, já denunciados por vários estudiosos não alinhados com o Governo. Previdência é um assunto por demais importante para ficar nas mãos de peritos contadores,
obcecados por planilhas. Previdência, por ordem, no mundo civilizado, é, em primeiro lugar, um assunto de natureza Ética; em segundo, conceitual; em terceiro, uma questão de números. Os peritos e grande parte dos cronistas especializados ou simplesmente amateurs, muito em voga nos programas da TV, invertem tudo. Começam pelos números, sobretudo do amadurecimento das massas e jamais mencionam o fato de que a crise atual é muito mais uma consequência da recessão econômica do que de fatores estruturais. São “novos malthusianos”, que se esquecem da evolução da produtividade ao longo do tempo. O último trabalhador empregado, cuja produtividade é um múltiplo dos mediata e imediatamente anteriores, ganha mais e deve isso a seus ancestrais. Mas isso é muito difícil para os “cabeças de planilha” entenderem. Melhor passar o facão em direitos sociais. Depois, nenhum sistema de previdência funciona sem o apoio do Estado e a previdência pública tem se mostrado como a maior garantia aos trabalhadores. Garante, não apenas a aposentadoria, como as lacunas por doença, apoio à maternidade, acidentes etc. O Estado não somente deve contribuir para a Previdência, preenchendo os hiatos contábeis, como, em última análise, se constituir como criação ética suprema da humanidade e núcleo de organização das sociedades modernas. Isso não é marxismo. Nem comunismo. Nem esquerdismo. É o fruto do pensamento social contemporâneo, desde Mannheim, passando por Weber e vários outros estudiosos de respeito. Finalmente, Previdência não se confunde com Assistência Social. Se há 150 bilhões de reais de déficit neste ano, por que o Governo não mostra com clareza a origem deste furo, situando-o ao longo do ciclo? O regime militar, por exemplo, incorporou o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) à Previdência, o que é basicamente um justo programa assistencial. Fê-lo indevidamente,
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como foi indevido pendurar as aposentadorias militares, que têm um estatuto profissional diferenciado, pendurando tudo na Previdência Social. Militares deveriam ser subsidiados, quer na ativa ou nas reformas, pelo próprio Orçamento do Ministério da Defesa. É um assunto estratégico de interesse nacional e não dos trabalhadores strictu sensu.
A Lei Orgânica de Assistência Social também é responsabilidade do conjunto da sociedade e não exclusivamente dos sujeitos ao regime previdenciário. Impõe-se, pois, um debate conceitual sobre cada uma destas contas hoje debitadas à Previdência Social. Finalmente, como elevar a idade mínima para 65 anos quando a esperança de vida das populações vulneráveis – moradores de periferias urbanas, negros e mais pobres, salvo raras exceções, não passam de 55 anos? Agora está explicado, também, porque não havia mulheres no primeiro ministério Temer: ele já tinha em vista esta nefanda Reforma da Previdência que iguala a idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres em 65 anos. Sabia que os políticos atuais haviam perdido a alma, mas agora vemos que perderam foi o juízo. Mulheres ganham 30% menos do que os homens e estão sujeitas a duas jornadas de trabalho, incluindo as duras tarefas domésticas ainda pouco assumidas por seus companheiros. Por isso têm direito a uma idade menor na aposentadoria. é um reconhecimento da sociedade aos seus múltiplos papéis e não apenas uma referência à sua eventual vulnerabilidade. Mas o que sabem disso os peritos contadores? O Brasil, enfim, é um país complexo. Nem por isso, indecifrável ou ingovernável. Mas o Governo esquece que a Lei e o Estado, que não é, senão, seu prolongamento civilizatório, existem para proteger os mais fracos, já que os mais fortes sempre souberam se defender por conta própria. E, aliás, impor sua dominação... ■
Demonstrativo do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) da União – Fonte Ministério da Fazenda (MF) – Base: R$ Bilhões – Ano de 2015 Benefícios Pagos aos Servidores Militares (Reserva, Reforma e Pensão).
(31,1)
Benefícios Pagos aos Servidores Civis da União (Aposentadorias e Pensões).
(73,1)
Total de Benefícios Pagos aos Servidores Inativos da União.
(104,2)
Contribuição Patronal (União).
17,4
Contribuição dos Servidores Civis.
11,8
Contribuição dos Servidores Militares.
2,5
Total de Contribuições Recebidas no RPPS da União. Total de Déficit Previdenciário Gerado no RPPS da União.
31,7 (72,5)
Fonte: <www.ricardobergamini.com.br>.
Gastos com Pessoal Militar das Forças Armadas – Fonte: Ministério Público (MP) Base: Ano de 2015 Itens
Quantitativo
R$ Bilhões
%
Ativos
363.914
20,3
39,50
Reserva e Reforma
151.022
18,2
35,40
Pensionistas
148.022
12,9
25,10
Total Pessoal Militar
662.958
51,4
100,00
Fonte: <www.ricardobergamini.com.br>.
http://www.allabroad.org/
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O encarceramento em massa Martinho Silva
F
enômeno que começou nos EUA e estendeu-se globalmente, o encarceramento em massa só tem paralelo histórico no século XVII, quando do Grande Internamento descrito por Foucault, o confinamento, exclusão e isolamento de uma quantidade relativamente alta de pessoas em locais que mais serviam como depósito do que para qualquer outro fim (GARLAND, 2001). Enquanto os ditos “loucos”, “sifilíticos”, “criminosos”, “prostitutas” e “devassos” foram os enclausurados no momento histórico do Grande Internamento, agora são os “negros” e as pessoas envolvidas com o tráfico de drogas (os consumidores e distribuidores, principalmente, ainda que também os produtores) que têm ocupado as prisões estadunidenses. Em números absolutos o Brasil é o quarto país do mundo que mais encarcera, o EUA o primeiro, a China e a Rússia, respectivamente o segundo e terceiro, de modo que o Brasil encontra-se entre os principais focos desse processo de encarceramento em massa. Quando o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (2003) foi lançado, antes do momento em que o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (INFOPEN) era alimentado regularmente pelos Estados da Federação, estimava-se em 230 mil a população prisional no país, enquanto os últimos dados disponibilizados pelo INFOPEN apontam para aproximadamente 540 mil pessoas privadas de liberdade. Para o Conselho Nacional de Justiça esse número chega a 700 mil. Nesse intervalo de quase 10 anos, a população prisional cresceu muito mais do que a população brasileira. Ou seja, por conta do ingresso do Brasil entre os países que vivem e convivem com o fenômeno do encarceramento em massa – de ordem política e econômica, pelo menos – a maior parte dos planos, programas e políticas de saúde, lida com uma população que cresce bem menos do que aquela que o
Saúde Penitenciária no Brasil: Plano e Política Martinho Silva Verbena Editora 2015
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Plano deve cobrir. Este fenômeno é um fator limitador do alcance tanto do Plano quanto da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (2014) que está em formulação, já que a oferta de ações e serviços de saúde para a população carcerária fica mais difícil de ser planejada e a alocação de recursos mais complicada ainda de ser estimada com antecedência. Assim, a cobertura populacional torna-se um indicador questionável, embora ainda deva figurar como meta a ser alcançada por uma política que se pretende universal. A cobertura da população penitenciária, indicador do Plano, fica mais ou menos estável de 2008 até o então momento, em torno de 30%, enquanto a cobertura da população brasileira em atenção básica, indicador da Estratégia de Saúde da Família, foi de 35% para mais de 60% neste mesmo período. Ora, isso quer dizer que o Plano, em relação à Estratégia, estagnou? Não. Pelo contrário, avançou muito no que se refere ao credenciamento de Estados e equipes. Já a população prisional cresceu muito em relação à população brasileira, de modo que a avaliação do alcance do Plano deve levar em consideração este elemento. É nesse contexto que se pode compreender outro desafio apontado pelo gestor federal de saúde prisional: “Condições de estrutura do Sistema Prisional: Expansão do cuidado versus aumento da população penitenciária”. Ainda em diálogo com o discurso inaugural do Ministro da Saúde, para garantir acesso à saúde com qualidade e monitoramento, é preciso refinar os instrumentos de avaliação do Plano e da futura Política, de modo que comparações entre programas e estimativas de avanço possam ser realizadas de maneira mais apropriada. A fragilidade da estratégia atual para a política prisional se revela. A política prisional deve ter em mente três fatores inter-relacionados: i) déficit de vagas; ii) tratamento penitenciário, reintegração social e apoio ao egresso; e iii) redução do encarceramento e alternativas penais. Ou seja, sem prejuízo de se construir mais presídios e retirar presos de delegacias, deve-se também criar condições de reintegração harmônica de apenados e egressos à sociedade e investir em soluções não privativas de liberdade para crimes com potencial ofensivo leve e, em alguns casos, médio. Do contrário a equação da política penitenciária não fechará. ■
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O petróleo é nosso Ronaldo Conde Aguiar
“Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue”. Getúlio Vargas, Carta-Testamento.
Vitória na Derrota – A morte de Getúlio Vargas
O
petróleo já depôs presidentes, reis e xeiques. Estimulou revoltas, ditaduras e guerras. O petróleo corrompeu, assassinou, sufocou nações e povos. Produziu riqueza e miséria, pujança e atraso, alegria e dor, modernização e desigualdade, desenvolvimento e subdesenvolvimento. O petróleo deu ao homem a sociedade moderna, urbana, industrial, tecnológica, assim como forneceu ao homem um poder quase divino, ilimitado e insensato de destruição. O petróleo nos cerca, nos encanta, nos esmaga. O petróleo gera bilhões de dólares e contribui para pôr em xeque a sobrevivência ambiental do planeta. A história da humanidade, nos dois últimos séculos, confunde-se mesmo com a história do petróleo. No Brasil, o petróleo também escreveu parte da nossa história. E ajudou a levar um presidente ao suicídio.1
Ronaldo Conde Aguiar Verbena Editora 2014
1 A história do petróleo no mundo e no Brasil está sendo escrita. Citam-se aqui alguns títulos importantes.: YERGIN, Daniel. O petróleo: uma história mundial de conquistas, poder e dinheiro. São Paulo, Paz e Terra, 2010, 1065 p.; JUHASZ, Antonia. A tirania do petróleo: a mais poderosa indústria do mundo e o que pode ser feito para detê-la. São Paulo, Ediouro, 2009, 431 p.; SHAH, Sonia. A história do petróleo: entenda como e por que o petróleo dominou o mundo. Porto Alegre, L&PM, 2007, 240 p. Sobre a luta do petróleo no Brasil, ver: COUTINHO, Lourival & SILVEIRA,
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mais intransigentes no plenário tomaram conta da emenda e foram muito além do que nós pretendíamos. Os parlamentares da UDN passaram a apoiar a tese do monopólio estatal do petróleo e também a estatização das refinarias e de todas as subsidiárias que viessem a ser criadas em razão do complexo petrolífero estatal no Brasil”.2 A julgar pelo depoimento de Tancredo, Getúlio agiu, no episódio, com malícia e argúcia – e deu uma demonstração evidente da sua reconhecida capacidade de avaliar as pessoas, os políticos e a natureza do jogo político brasileiro. O projeto da Petrobras havia sido elaborado pelo economista Jesus Soares Pereira, membro destacado da Assessoria Econômica da Presidência da República. Cearense, Jesus Soares Pereira fez carreira no serviço público, tendo participado de numerosas missões, como a elaboração de um importante estudo sobre os recursos florestais brasileiros e o I Plano Nacional de Eletrificação. Em 1964, o golpe militar o alcançou numa das diretorias da Companhia Siderúrgica Nacional. Não era um ativista político, mas um homem de profundas convicções nacionalistas e populares. Talvez por isso, talvez por ato de vingança daqueles que estavam do outro lado da trincheira, Jesus Soares Pereira foi incluído na lista dos 100 primeiros cidadãos – lista que incluía os perigosíssimos João Goulart, Luis Carlos Prestes, Leonel Brizola, Celso Furtado, Miguel Arraes, Josué de Castro, Darcy Ribeiro, entre outros – que tiveram os seus direitos políticos suspensos por 10 anos pelo Ato Institucional nº 1 (AI-1). Nada existia contra ele, mas Jesus Soares Pereira preferiu se exilar no Chile, onde dirigiu o Departamento de Recursos Naturais e Energia, da Cepal, órgão vinculado à ONU. Ao comentar os debates em torno do monopólio estatal, Jesus Soares Pereira disse o seguinte:
No dia seis de dezembro de 1951, Getúlio encaminhou ao Congresso o projeto de lei de criação da Petróleo Brasileiro Sociedade Anônima, cuja sigla e abreviatura seria Petrobras. A empresa, uma sociedade por ações com controle majoritário exercido pela União, teria por objeto “a pesquisa, a lavra, a refinação, o comércio e o transporte do petróleo e seus derivados, inclusive de xisto betuminoso, bem como quaisquer atividades correlatas ou afins”. O projeto da Petrobras provocou, de imediato, variadas reações. Os entreguistas (designação que os nacionalistas usavam contra os que defendiam os interesses das grandes empresas internacionais do ramo petrolífero) partiram para o ataque, nos jornais e no Congresso, dispostos a desmoralizar e derrotar a iniciativa de Getúlio. Os setores nacionalistas, por sua vez, reconheceram que o projeto era um avanço, embora tímido. Criticaram duramente o presidente por não ter incluído explicitamente no projeto o monopólio estatal, contrariando, na essência, uma das mais caras teses dos nacionalistas, mote, inclusive, da campanha “O petróleo é nosso”. Esta é uma das tantas e muitas acusações que até hoje se faz a Getúlio, sem que sejam consideradas certas circunstâncias da época. Tancredo Neves, então deputado federal pelo PSD de Minas Gerais, participou, juntamente com os deputados Antônio Balbino (da Bahia), Walter Cavalcanti (do Ceará) e Brochado da Rocha (do Rio Grande do Sul), de uma reunião com o presidente, na qual Getúlio afirmou que “se ele mandasse ao Congresso o seu projeto da Petrobras com a cláusula do monopólio estatal, este seria fatal e violentamente combatido”. O presidente mostrou-se favorável ao monopólio – e pediu a eles que apresentassem uma emenda ao projeto instituindo justamente o monopólio, “porque assim haveria mais facilidade nas negociações parlamentares”. A emenda foi elaborada e apresentada por Brochado da Rocha. E ela acabou sendo aprovada. Segundo Tancredo, Getúlio foi extremamente hábil e astuto, pois conseguiu confundir e dividir as oposições. “Tão logo foi apresentada a emenda”, acrescentou Tancredo, “os adversários de Vargas
Se o projeto do Executivo não previa um monopólio de jure, a ser executado pela Petrobras, visava a um monopólio de facto, pois outra não poderia ser a consequência prática do programa traçado para a empresa.3 Em outras palavras, Jesus Soares Pereira quis dar a entender que o monopólio era parte integrante do
2
DELGADO, Lucília de Almeida Neves; SILVA, Vera Alice Cardoso da. Tancredo Neves, a trajetória de um liberal. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 265.
3
PEREIRA, Jesus Soares. Petróleo, energia elétrica, siderurgia: a luta pela emancipação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 99.
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projeto, embora não estivesse claramente contemplado no seu texto. O debate, o confronto e as tensões entre as forças políticas dentro do Congresso – e mais o “ruído” provocado pela campanha de “o petróleo é nosso”, que dominava a sociedade brasileira – fariam o resto. O monopólio estatal seria, como foi, inevitavelmente incorporado à lei de criação da Petrobras.
a defender o monopólio estatal e, outro, a recusa in limine do projeto, por entendê-lo restritivo aos capitais externos. Um dos políticos que mais lutou contra o projeto de criação da Petrobras foi Assis Chateaubriand, na época senador pelo PSD da Paraíba. Chateaubriand, como se sabe, era desabusado e atrevido, não tinha escrúpulos de ordem pessoal, política ou empresarial. No dia 31 de outubro de 1952, fez um discurso no Senado, no qual disse: “Se a Standard Oil nos entregasse 13% dos impostos que paga e 50% dos lucros que aufere, eu concordaria em que se lhe desse, até, metade da administração do Brasil, para negociar”. Chateaubriand defendia escancaradamente o capital estrangeiro porque não acreditava na capacidade dos brasileiros: era impossível, dizia, a exploração petrolífera no Brasil por brasileiros. Aos berros, a bancada nacionalista protestou energicamente contra as palavras de Chateaubriand, que se limitou a se divertir com os gritos e as reclamações dos pares. No dia seguinte, os jornais e a televisão de Chateaubriand deram destaque ao discurso do chefão, informando que ele, o discurso, causou vivo interesse em todo o país e calou os parlamentares nacionalistas. Chateaubriand orquestrou violenta campanha, por meio dos Diários Associados, contra o nacionalismo, que ele acusava de ser um blefe ou um disfarce bolchevista. Os nacionalistas, dizia, eram financiados pelo ouro de Moscou. Como senador, Chateaubriand foi longe na sua pregação oposicionista a Getúlio, culpando-o das mazelas do país e do incentivo a políticas que, em sua opinião, não serviam ao país. “No entender de Chateaubriand, a crise política por que passava o país era resultado da incapacidade de Getúlio de conviver com um regime constitucional, já que sua (de Getúlio) trajetória estava intimamente ligada à dissolução das instituições democráticas”.4 Chateaubriand e Lacerda sempre bateram na mesma tecla: Getúlio era intrinsecamente um ditador, não acreditava, não sabia viver nem governar na democracia. “Lembrai-vos de 1937!”, repetiam, quase à exaustão. A tramitação parlamentar do projeto de criação da Petrobras durou exatos 23 meses – um período
***** A vida política brasileira nem sempre segue uma linha coerente. Há momentos em que ela parece ser um encadeamento de fatos desconexos, uma espécie de jogo sem regras, objetivos e, mesmo, jogadores. Noutros, ela sugere um mundo surrealista, no qual maneiras de ser, atitudes e comportamentos não se pautam pela lógica mínima, sendo impossível, portanto, prevê-las ou desvendar o seu significado. É um mundo aleatório, composto de episódios meramente acidentais e fortuitos, destituídos – ou aparentemente destituídos – de sentido. Quando o projeto de criação da Petrobras chegou ao Congresso, as próprias correntes nacionalistas, com o apoio do Partido Comunista do Brasil (PCB), passaram a acusar Getúlio de ceder às pressões dos trustes petrolíferos norte-americanos. Isto porque o projeto não contemplava claramente o monopólio estatal. No fundo, era uma denúncia zarolha, mas que reflete, talvez, as pressões políticas da época. É bom lembrar, no entanto, que, em 1946, durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, a bancada do PCB votara a favor da participação de capitais estrangeiros na exploração petrolífera no Brasil. Este não será o primeiro, nem o único, exemplo de confusão ideológica do velho partidão. Em 1954, partindo de uma análise equivocada da realidade brasileira, o PCB estará ao lado da direita, pedindo a renúncia ou a destituição de Getúlio. No lado oposto, a UDN, que sempre defendera, por doutrina e princípio, a participação (e não somente apenas a participação) das empresas estrangeiras na exploração do petróleo, dividiu-se: um grupo de parlamentares, formado justamente pelos mais ruidosos opositores de Getúlio, passou
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ABREU, Alzira Alves, et. al. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2001, p. 1339.
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marcado por intensos debates, manifestações de rua e doses excessivas de vilania. Getúlio, mais uma vez, não foi perdoado: todos, entreguistas e nacionalistas, por razões diversas, o acusaram e atacaram. Diziam-no submetido aos interesses dos trustes e, ao mesmo tempo, inimigo dos capitais norte-americanos. A Assessoria Econômica, é claro, não ficou ausente do conturbado ambiente político brasileiro: Assis Chateaubriand, secundado por Carlos Lacerda, chamou-a de “antro de comunistas”. O ex-presidente Artur Bernardes, ardoroso nacionalista, foi precipitado e injusto: afirmou que Getúlio havia sido “ilaqueado em sua boa-fé” por seus auxiliares “ao não incluir o monopólio estatal como cláusula expressa do projeto da Petrobras”. O tiroteio não poupava ninguém, principalmente Getúlio. As companhias petrolíferas instaladas no Brasil vinham acumulando lucros imensos e a iniciativa de Getúlio era um sinal evidente que elas, e os ganhos exorbitantes, seriam duramente afetadas. O deputado Artur Bernardes revelou dados impressionantes:
Finalmente, em 3 de outubro de 1953, Vargas sancionou a Lei no 2004, que criava a Petrobras, instituindo com ela o monopólio total da extração e parcial do refino do petróleo.6 Sob o ângulo dos interesses nacionais, a criação da Petrobras foi seguramente uma vitória – mas uma vitória maiúscula, talvez a maior vitória do povo brasileiro. A Petrobras tornou-se não apenas o guardião do monopólio petrolífero, mas um símbolo do nacionalismo econômico e político numa determinada época da história brasileira. Foi, segundo Darcy Ribeiro, mais uma pisadura na ferida que Getúlio abrira na carne dos entreguistas. O primeiro presidente da Petrobras foi Juraci Magalhães. Tenentista na década de 1920, apoiou e lutou pela Revolução de 1930, tornando-se, no ano seguinte, interventor na Bahia. Reprimiu sem dó as atividades da Aliança Nacional Libertadora, movimento de esquerda antifascista do qual participava seu irmão, Eliézer Magalhães. Durante o Estado Novo, voltou às fileiras do Exército. Em 1950, tentou retornar, sem sucesso, ao governo da Bahia. Com o início do segundo governo Vargas, foi nomeado presidente da Companhia Vale do Rio Doce e, em seguida, adido militar brasileiro nos Estados Unidos. Em 1957 tornou-se presidente nacional da UDN. Em 1964, participou da conspiração e do golpe que derrubou João Goulart. No governo do general Castelo Branco, o primeiro do ciclo militar, foi nomeado embaixador nos Estados Unidos, quando pronunciou a frase-síntese do capachismo pátrio: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. A criação da Petrobras tornou-se uma espécie de senha em sentido contrário: derrotados nessa importante batalha, os conspiradores orientaram sua ação para o golpe de Estado. Era necessário, conforme dissera Carlos Lacerda, recorrer a tudo para impedi-lo de governar. ■
Pude constatar que entre 8 companhias petrolíferas com sede no Distrito Federal, controladoras da grande maioria do comércio no país, 4 efetuaram 90% dos negócios. E aí pude ver que os principais itens dos seus balanços, publicados no Diário Oficial de 1947, assim se expressavam: a Standard Oil, com um capital de 77 milhões de cruzeiros, obteve, naquele ano de 1946, o lucro líquido de 257 milhões e mais 39 milhões, retirados do fundo de reserva; a Shell, com capital de 148 milhões, retirou um fundo de 271 milhões e distribuiu 68 milhões de dividendos; a Atlantic, com 41 milhões de capital, obteve 63 milhões de lucro líquido e retirou 44 milhões para fundo de reserva; a Caloric, com 15 milhões, obteve 68 milhões de lucro líquido e retirou 31 milhões de fundo de reserva.5
5
PEREIRA, Osni Duarte. Desnacionalização da Amazônia. São Paulo, Fulgor, 1958, p. 7.
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Após a criação da Petrobras, Getúlio terá menos de um ano de poder e vida.
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Mensagem Fernando Pessoa Fonte: Site Domínio Público <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=15726>.
Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum
Nota Preliminar O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja. A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado. A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes. A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.
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PRIMEIRA PARTE: BRASÃO Bellum sine bello. I. OS CAMPOS PRIMEIRO / O DOS CASTELOS A Europa jaz, posta nos cotovelos: De Oriente a Ocidente jaz, fitando, E toldam-lhe românticos cabelos Olhos gregos, lembrando. O cotovelo esquerdo é recuado; O direito é em ângulo disposto. Aquele diz Itália onde é pousado; Este diz Inglaterra onde, afastado, A mão sustenta, em que se apoia o rosto. Fita, com olhar ‘sfíngico e fatal, O Ocidente, futuro do passado. O rosto com que fita é Portugal. SEGUNDO / O DAS QUINAS Os Deuses vendem quando dão. Comprasse a glória com desgraça. Ai dos felizes, porque são Só o que passa! Baste a quem baste o que lhe basta O bastante de lhe bastar! A vida é breve, a alma é vasta: Ter é tardar. Foi com desgraça e com vileza Que Deus ao Cristo definiu: Assim o opôs à Natureza E Filho o ungiu.
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II. OS CASTELOS PRIMEIRO / ULISSES O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo — O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou. Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre. SEGUNDO / VIRIATO Se a alma que sente e faz conhece Só porque lembra o que esqueceu, Vivemos, raça, porque houvesse Memória em nós do instinto teu. Nação porque reencarnaste, Povo porque ressuscitou Ou tu, ou o de que eras a haste — Assim se Portugal formou. Teu ser é como aquela fria Luz que precede a madrugada, E é já o ir a haver o dia Na antemanhã, confuso nada. TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE Todo começo é involuntário. Deus é o agente. O herói a si assiste, vário E inconsciente. À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce. “Que farei eu com esta espada?” Ergueste-a, e fez-se. 26
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QUARTO / D. TAREJA As nações todas são mistérios. Cada uma é todo o mundo a sós. Ó mãe de reis e avó de impérios, Vela por nós! Teu seio augusto amamentou Com bruta e natural certeza O que, imprevisto, Deus fadou. Por ele reza! Dê tua prece outro destino A quem fadou o instinto teu! O homem que foi o teu menino Envelheceu. Mas todo vivo é eterno infante Onde estás e não há o dia. No antigo seio, vigilante, De novo o cria! QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES Pai, foste cavaleiro. Hoje a vigília é nossa. Dá-nos o exemplo inteiro E a tua inteira força! Dá, contra a hora em que, errada, Novos infiéis vençam, A bênção como espada, A espada como benção! SEXTO / D. DINIS Na noite escreve um seu Cantar de Amigo O plantador de naus a haver, E ouve um silêncio múrmuro consigo: É o rumor dos pinhais que, como um trigo De Império, ondulam sem se poder ver. Arroio, esse cantar, jovem e puro, Busca o oceano por achar; E a fala dos pinhais, marulho obscuro, É o som presente desse mar futuro, É a voz da terra ansiando pelo mar. 27
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SÉTIMO (I) / D. JOÃO, O PRIMEIRO O homem e a hora são um só Quando Deus faz e a história é feita. O mais é carne, cujo pó A terra espreita. Mestre, sem o saber, do Templo Que Portugal foi feito ser, Que houveste a glória e deste o exemplo De o defender. Teu nome, eleito em sua fama, É, na ara da nossa alma interna, A que repele, eterna chama, A sombra eterna. SÉTIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE Que enigma havia em teu seio Que só gênios concebia? Que arcanjo teus sonhos veio Velar, maternos, um dia? Volve a nós teu rosto sério, Princesa do Santo Graal, Humano ventre do Império, Madrinha de Portugal! III. AS QUINAS PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL Meu dever fez-me, como Deus ao mundo. A regra de ser Rei almou meu ser, Em dia e letra escrupuloso e fundo. Firme em minha tristeza, tal vivi. Cumpri contra o Destino o meu dever. Inutilmente? Não, porque o cumpri.
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SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça A sua santa guerra. Sagrou-me seu em honra e em desgraça, Às horas em que um frio vento passa Por sobre a fria terra. Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me A fronte com o olhar; E esta febre de Além, que me consome, E este querer grandeza são seu nome Dentro em mim a vibrar. E eu vou, e a luz do gládio erguido dá Em minha face calma. Cheio de Deus, não temo o que virá, Pois venha o que vier, nunca será Maior do que a minha alma. TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL Claro em pensar, e claro no sentir, É claro no querer; Indiferente ao que há em conseguir Que seja só obter; Dúplice dono, sem me dividir, De dever e de ser — Não me podia a Sorte dar guarida Por não ser eu dos seus. Assim vivi, assim morri, a vida, Calmo sob mudos céus, Fiel à palavra dada e à ideia tida. Tudo o mais é com Deus! QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL Não fui alguém. Minha alma estava estreita Entre tão grandes almas minhas pares, Inutilmente eleita, Virgemente parada; Porque é do português, pai de amplos mares, Querer, poder só isto: O inteiro mar, ou a orla vã desfeita — O todo, ou o seu nada. 29
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QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? IV. A COROA NUN’ÁLVARES PEREIRA Que auréola te cerca? É a espada que, volteando. Faz que o ar alto perca Seu azul negro e brando. Mas que espada é que, erguida, Faz esse halo no céu? É Excalibur, a ungida, Que o Rei Artur te deu. ‘Sperança consumada, S. Portugal em ser, Ergue a luz da tua espada Para a estrada se ver! V. O TIMBRE A CABEÇA DO GRIFO / O INFANTE D. HENRIOUE Em seu trono entre o brilho das esferas, Com seu manto de noite e solidão, Tem aos pés o mar novo e as mortas eras — O único imperador que tem, deveras, O globo mundo em sua mão.
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UMA ASA DO GRIFO / D. JOÃO, O SEGUNDO Braços cruzados, fita além do mar. Parece em promontório uma alta serra — O limite da terra a dominar O mar que possa haver além da terra. Seu formidável vulto solitário Enche de estar presente o mar e o céu E parece temer o mundo vário Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu. A OUTRA ASA DO GRIFO / AFONSO DE ALBUQUEROUE De pé, sobre os países conquistados Desce os olhos cansados De ver o mundo e a injustiça e a sorte. Não pensa em vida ou morte Tão poderoso que não quer o quanto Pode, que o querer tanto Calcara mais do que o submisso mundo Sob o seu passo fundo. Três impérios do chão lhe a Sorte apanha. Criou-os como quem desdenha.
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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa Brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.
Capítulo 16 Arribei de Brasília para o Rio de Janeiro pela Itapemerim, se não acontecesse nada, a previsão era um dia de viagem. Saí na sexta, a prova era segunda, aproveitaria para rever meu pai, mãe e irmãos. Soube que melhoraram de vida, saíram da região do Catumbi, estabeleceram-se na Tijuca, na Rua Uruguai, quase esquina da Conde de Bonfim, num apartamento minúsculo, mas o sonho da minha mãe de ser tijucana finalmente se realizava; pelo meu pai a família estaria até hoje no mesmo lugar de quando chegou do Nordeste. O ônibus amarelo atravessou o Rio São Marcos, deixou o Goiás para trás e começou a singrar o Sertão de Minas, parando primeiro em Paracatu, cidadezinha que parecia ser habitada exclusivamente por cachorros, eram tantos e tão esfomeados que, pelos meus cálculos, tinham devorado quase toda a população de humanos e fundaram uma república da cachorrada, com Prefeitura, Câmara, Fórum e tudo mais, onde o mandachuva era um cachorrão malhado enorme, que meteu o olho no meu sanduíche de mortadela, balançava a língua molhada e não sossegou enquanto não decidi dar-lhe a metade, saiu mastigando, sem que os cachorrinhos menores fossem perturbar seu almoço.
O ônibus ia quase vazio, assim, logo que saí de Brasília pulei para o último banco, pensando em usá-lo como cama durante a viagem. O motorista deu uma buzinada, sentamos todos e nada da viatura andar. Próximo à porta do ônibus, dois remanescentes dos humanos de Paracatu, beijavam-se e abraçavam-se sofregamente, atrasando a viagem, um deles era representante da força policial local, o outro, uma mulher grandona, carnuda, peituda e bunduda, que se sentou na única janela disponível, a do penúltimo banco, eu no último, atrás dela, todo ligadão, estava naquela idade onde quem mandava era a testosterona, se é que há alguma em que ela não mande e desmande. O ônibus voltou a singrar o vazio, o nada, a faixa preta era visível a quilômetros, subia morros, descia morros, horas sem ver um carro ou caminhão, de hora em hora, cruzávamos com caminhões carvoeiros de cargas altíssimas, entortadas, na eminência de desabarem, se aparecesse alguma curva, mas nada, era tudo reto, silencioso e de ambos os lados do asfalto, o cerrado de Minas, onde vicejava uma arborização similar à de Brasília. Aqui e acolá, viam-se pés de Buritis seguindo uma trilha cerrado adentro, mal sabíamos que no futuro distante, o gado,
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e depois a soja, transformariam tudo aquilo em paisagens repetitivas, com uma única cor e textura. Os descendentes dos personagens do Guimarães Rosa, a estas alturas, estarão perdidos nos campos de soja e arroz, isto se conseguirem trabalho, pois o mais provável é que tenham ido parar em Brasília. Cochilei e acordei com o aviso do motorista: — Três Marias, duas horas para o almoço. As águas do velho Chico eram utilizadas para tudo, agora apareciam ali represadas, no intuito de serem usadas como energia. O pequeno, mas asseado restaurante pertencente a uns franceses desgarrados, servia peixes frescos, que o velho Chico fornecia. O marido trabalhava na hidroelétrica e a mulher montou o restaurante, convidaram-me para conhecer a cozinha toda arrumadinha, um peixão enorme recém chegado, ainda mexendo-se no vasilhame e os ajudantes cortando-lhe a cabeça para a sopa que serviriam à noite. Queriam saber onde aprendi francês: — É uma longa história, na volta eu conto. Sei lá se voltaria, não pensava muito no futuro, vivia levado pelos acontecimentos, por isso estava bem em Brasília, cidade onde ninguém perguntava nada a ninguém, de onde veio, se tinha família, essas coisas. Convidei a mulherona para almoçar comigo. Ela, pega de surpresa, aceitou. As duas horas passaram rápidas, logo o motorista, buzinou longamente e avisou: “dez minutos!”. O casal francês ainda nos serviu, gratuitamente, duas tacinhas de licor, ficaram emocionados porque puderam conversar com alguém na língua deles. — A próxima parada é em Sete Lagoas —, disse-me a mulherona de voz delicada. Convidei-a para sentar no último banco, expliquei que ficaríamos com mais espaço, pensava em diversão. Não aceitou. Fiquei pensando para que tanta energia, devia ser para iluminar as ruas vazias de Brasília, comentei
com a mulher. Ela disse apenas: “siderúrgicas”. Agora entendia aqueles caminhões com carvão. Siderúrgicas eram “indivíduos” vorazes, já mastigavam o cerrado, agora estavam de olho na energia do velho Chico, pareciam os cachorros de Paracatu. O ônibus amarelo subia e descia monótono. A proximidade do motor me permitia ouvir um barulho estranho quando o ônibus chegava ao pico das ladeiras. No ermo do Sertão, já escurecendo, perto de Cordisburgo, o ônibus velho estrebuchou, resfolegou e parou de vez, o motorista baixinho, de calça azul, camisa branca e gravata preta, desceu despreocupado, como se aquilo fosse normal, “acontecesse o tempo todo”, avisou-nos: — Enguiçou, socorro só amanhã. — Prá mim tanto faz, desde que chegue ao Rio até domingo —, falei com minha companheira de viagem. Ela também não mostrava preocupação. Disse apenas: — Sou de Minas, estou em casa. Pensei que eu nunca tinha este conforto. Descemos todos para esticar as pernas. Subi uma ladeirinha às margens da estrada deserta, divisei ao longe um buriti perdido e mais nada, ali era o sertão de que tanto se falava, onde aconteciam tantas coisas nos livros e eu não via nada de interessante. Anoitecia, esfriava rapidamente, vento frio do cerrado de Minas, altitudes. A maioria voltou ao ônibus, a mulherona sentou no último banco, sob o olhar de reprovação de todas as mulheres e o de surpresa e inveja de todos os homens, incluindo o motorista, que a tratava com alguma intimidade, como se fossem conhecidos. Morava em Paracatu e ia visitar parentes no subúrbio do Rio, em Madureira. Disse-me que não conhecia Brasília e tampouco Copacabana, fora criada em Paracatu mesmo, no meio da cachorrada. Não sabia explicar porque a cidade tinha tantos cães soltos, a única coisa que
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a incomodava era fazerem sexo nas ruas e ficarem engatados durante horas, até que alguém chegava com uma lata d’água e jogava nos animais, acabando com a sacanagem. A conversa ia trilhando esse caminho erótico quando ela se levantou e pegou uma colcha de algodão colorido tecida a mão, elaborações da sensibilidade mineira, e perguntou naturalmente se estava com frio. Frio, frio, não estava, mas se a ideia era ficar debaixo do lençol colorido, sim, sentia muito frio; não estava acostumado com o vento do cerrado. Meia hora depois já estávamos atracados como dois besouros no cio, para indignação das mulheres, diversão e inveja dos homens. O breu da noite favorecia-nos, embora o motorista tivesse mantido a luz da cabine acesa para atrapalhar. De tempos em tempos, faróis de caminhão iluminavam o ônibus, via olhares curiosos, tentando desvendar o que fazíamos debaixo da colcha colorida. Sol ameaçando no horizonte, passamos a dormir comportadamente, logo chegou outro ônibus amarelo, tão destrambelhado quanto o primeiro. Embarcamos todos, mantendo a mesma posição. Paramos num posto em Cordisburgo, comemos uns pães de queijo frios, bebi um copo de café com leite quente, olhei a mulherona mais alta que eu, e quase perguntei sobre o cabo da polícia de Paracatu, mas fiquei quieto, chegando ao Rio perguntaria. Sete Lagoas tinha de fato muitas lagoas, em volta da mais bela instalou-se a cidade. Por que não fizeram assim em Brasília? deixando a cidade em volta do Lago Paranoá, ignoravam o que a cidade tinha de mais bonito: o lago. A ideia é que os prédios não tivessem concorrência de ninguém, reinassem sozinhos, eliminaram até os monumentos, os heróis montados em seus cavalos, como no Rio. Pensava em Brasília quando chegamos a Belo-Horizonte. Descemos do ônibus e fomos andando abraçados, para surpresa ainda maior dos passageiros
que, as estas alturas, mal me dirigiam um bom dia ou boa tarde. Descemos a Serra de Petrópolis, absorvendo o cheiro verde da mata e eu aproveitando o balanço do ônibus, o corpo da mulherona esfregando-se no meu e ela estranhamente pedindo desculpas, por uma coisa que me dava prazer. Coisa de mineiros, pensei. Uma hora depois, já no plano, sentimos o fedor característico do Rio, na entrada da Avenida Brasil, mistura de esgotos com fumaça de carros e, longínquo, o cheiro do mar. Ela saltaria logo depois e pegaria o ônibus para Madureira, antes disso perguntei sobre o noivo. Disse-me que depois conversaríamos sobre isso, voltaria para Paracatu em um mês, se eu quisesse, ligasse, e passou-me o telefone e endereço do trabalho. Embora não devesse, dei-lhe o endereço de onde morava em Brasília. Ajudei-a a descer com a mala, com os passageiros esticando o pescoço para fora da janela. Saltei na rodoviária do Rio no sábado à noite, estranhei o burburinho, o movimento de gente, coisa inexistente em Brasília na época. Às oito da noite em ponto, me apresentei no portão do Pedro II, com o papel da inscrição na mão. — O Senhor não pode entrar —, disse-me o bedel filho da puta. — Por quê? — indaguei surpreso. — Está sem paletó e gravata —, e foi logo me empurrando do degrau para o chão. Tentei, sem sucesso, às correrias, comprar um paletó e gravata na Rua Larga, quase consegui, a loja baixava as portas de aço, quando entrei por debaixo, não quiseram me atender, reclamei, pedi, quase implorei. Nada. Voltei pra casa espirrando canivetes. Esta era a cordialidade carioca, de que tanto falam, são um bando de filhos da puta, isso sim! Cansei de ver gente cair no chão atacada pela epilepsia, as pessoas passavam por cima, nem olhavam, agora ficam com esta conversa fiada de sociabilidade perdida devido à vio-
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lência. E de onde saiu a violência? Do nada? O povo do Rio precisa prestar atenção nele mesmo, notar como os homens são grosseiros, dão em cima da mulher dos outros sem pestanejar, falam palavrões a granel, lançam coisas dos prédios, metem os carros nas calçadas, avançam sinais. Precisam perceber como suas mulheres são estridentes, as crianças malcriadas, não respeitam nada. Ficam reclamando da violência, dos roubos, furtos, assaltos, como se agissem corretamente com educação. Enjoei de dar uma nota de dez para pagar um café na Praça Saenz Peña e observar a senhora da caixa devolver-me o troco aos poucos, esperando que me retirasse, sem receber o valor correto. Levei cano de taxista metido a malandro. Os cariocas são tipos muito interessantes, em qualquer circunstância, sempre se acham cheios de razão, mesmo quando batem o carro na traseira dos outros, descem do automóvel como se o sujeito tivesse dado ré e batido no dele. Ainda bem que o Gaúcho me avisou, porque não me aguentaria no Rio, aquilo tinha virado uma bagunça geral. Imagine que na terça-feira, antes de voltar para Brasília, tentei reencontrar o passado e pegar um cinema em Copacabana, no Metro. Na volta, estabeleci-me no meio do amontoado de gente que se
postava no ponto de ônibus da Santa Clara, de repente, um safado que estacionava na calçada começou a acelerar seu fusquinha no intuito de que saíssemos da frente para que passasse. O povo todo abriu, nem me mexi do lugar, o cara aproximou o fusquinha de escapamento aberto e encostou o para-choque nas minhas canelas, tentando me assustar. Meti a mão no bolso, peguei a Beretta italiana que comprei em Brasília e fiz-lhe sinal para que viesse. O cara era abusado e ainda deu umas aceleradas no motor para me assustar. Engatilhei a arma e quase lasquei bala. Alguns chegaram a correr, o dono do Fusca abandonou o carro ali mesmo. O Gaúcho estava certo, no Rio me daria mal, terminaria na prisão, de novo. Até hoje tenho raiva do Pedro II, aquele colégio de merda, metido a besta, dirigido por velhos caquéticos! Embarquei no ônibus, ainda gripado e voltei para Brasília, onde ninguém naquela época dava bola para paletó e gravata, a não ser deputados, ministros, senadores. Logo no Rio, aquela cidade esculhambada. Nunca entendi que para fazer uma prova precisasse estar enfateado, abaianado, como um idiota. Deveria esquecer de estudar em escolas, continuaria por minha conta, individual, como sempre, pisando nas bordas do deserto. ■
Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano
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