Revista eletrônica ∙ nº 14 ∙ Brasília/DF ∙ 4 nov 2016
ELEIÇÕES 2016, RESULTADO FINAL
Rodrigo Rollemberg e as oportunidades perdidas Balanço das eleições municipais
Venezuela: a dificuldade de unir polos contrários
4 Impasses resistentes
6 Oportunidades perdidas e samba enredo no DF
9 Revista eletrônica Nº 14 ∙ 4 nov 2016 ∙ Brasília/DF
O Grito do abismo
VERBENA EDITORA
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CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Helio Gama Joana Zylbersztajn Jorge Guilherme Francisconi Paulo Timm Ricardo Prata Soares Walter Sotomayor Wilian Fernandes Pereira EDITORES Arno Vogel Benicio Schmidt Carlos Alves Müller Fabiano Cardoso DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico) FOTO DE CAPA www.pixabay.com – CC0 Public Domain
VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br
Um balanço das eleições municipais
12 Porto Alegre é demais?
14 O princípio da laicidade na constituição brasileira
17 Venezuela: a dificuldade para unir polos contrários
19 Impressionismos I – Lerner e o Banco Mundial
20 De um Diretor fracassado, uma Gaiola louca e um Penico Crítico, contra ou a favor do irresistível charme da Morte quando se aproxima A Hora
26 Encaixotando Brasília
EDITORIAL Após um breve período de interrupção, o Manto Diáfano está de volta. Benicio Schmidt explica os próximos passos do governo Temer e os problemas que devem surgir a partir de propostas controversas e de uma possível briga entre os poderes Executivo e Judiciário, que pode atrapalhar os rumos pensados pela administração Temer. Nosso editor-chefe ainda traça um paralelo entre esta crise e o famigerado Cromwell, que rivalizou com a monarquia inglesa. O arquiteto e urbanista, Jorge Guilherme Francisconi, mostra que, apesar do governador do DF ser privilegiado porque possui cargo em que se imiscui ao de prefeito, não possui planos estratégicos e fica apenas tentando refazer contas e dirimir pequenas crises setoriais. São oportunidades perdidas. Paulo Timm, economista, aconselha os estudantes que ocupam as escolas, com salvaguardas acerca do papel que a juventude teve em famigeradas ações mundo afora e pede que os jovens brasileiros tomem cuidado e não se esqueçam da verdade. O sociólogo Ricardo Prata Soares faz uma análise geral das eleições municipais e das novas configurações de eleitores surgidas após a derrocada do PT. Helio Gama, Jornalista, traz análise sobre o segundo turno em Porto Alegre e, após comparar, utilizando-se de vários índices, sua cidade com as demais capitais brasileiras, escrutina a configuração do novo parlamento portoalegrense e aproveita para dar um tapa no sistema representativo brasileiro. Em trecho de seu livro A Laicidade do Estado Brasileiro, publicado pela Verbena Editora (2016), Joana Zylbersztajnindica os princípios jurídico-filosóficos do Estado laico. Leitura que indicamos como obrigatória a legisladores/políticos religiosos. O jornalista, Walter Sotomayor, traz reportagem sobre a Venezuela e sua atual crise política e de como várias pessoas estão interferindo, desde o Papa ao ex-primeiro ministro espanhol, para dirimir as consequências dessa crise e fazer a Venezuela voltar aos trilhos. A ver… Novamente Jorge Francisconi traz, dessa vez, uma crônica de quando estava à toa passeando pelo banco Mundial e deparou-se com uma sala onda havia um plano de corredores de ônibus assinado por Jaime Lerner e de como essa experiência o fez voltar ao Brasil. Wilian Fernandes Pereiratraz peça de teatro insano-filosófica-metalinguística sobre a existência, os conceitos e a morte. Dá pra rir e pensar. De Arnaldo Barbosa Brandão trazemos mais um capítulo da novela Encaixotando Brasília. Boa leitura!
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Impasses resistentes Benício Schmidt – Editor e cientista político
A
natureza do Governo Temer, oriundo de uma operação parlamentar profundamente complicada, alegando discutíveis “pedaladas fiscais” da titular da chapa mandatária (Dilma-Temer) vencedora das eleições em 2014, acrescida de uma péssima trajetória no departamento de Comunicação Social, só tem trazido problemas ao atual Presidente. A crise fiscal, determinada por exonerações abundantes de tributos e taxas aos grandes grupos econômicos nacionais, principalmente exportadores, bem como a má condução gerencial de empresas sob controle majoritário do Estado, como Petrobrás e Eletrobrás, contaminaram o ambiente e provocaram o impedimento da então Presidente. O atual governo mudou suas prioridades, baseando-se nas cartilhas vigentes do Fundo Monetário Internacional, que buscam, antes de tudo, o equilíbrio das Contas Nacionais sob uma abordagem amplamente fiscalista. Sendo nossa carga tributária bruta uma das mais altas do mundo (32,5% do PIB). A atual administração fiscal e monetária busca afanosamente cortar benefícios sociais suspeitos de malversação, extrair excessos de investimentos supostamente não-eficientes (“Programa Ciência Sem Fronteiras”, do Ministério de Educação, Lei Rouanet e assim por diante). Aí está incluída a revisão de diversos benefícios consagrados em nossa política de previdência e assistência social (pensões rurais, seguro defeso, bolsa família etc.). Busca-se, também, uma revisão geral do regime de pensões e aposentadorias da Previdência Social, estabelecendo-se tempos e prazos para aumentar as dificuldades na obtenção da aposentadoria pelo RGPS. De outro lado, tem havido um crescente atrito entre os poderes da República causados pelas investigações da Polícia Federal, Judiciário e Ministério Público. O último, além da aguardada coleção de delações dos executivos da Odebrecht, foi causado pela disputa entre a Polícia Legislativa, comandada
pelo Senado, e a Polícia Federal. Isso não ajuda em nada à pretensão de estabilidade institucional. Os alvos necessariamente não são os declarados, mas os por serem identificados no futuro próximo. A presidente do STF reagiu aos ataques da presidência do Senado ao Judiciário, marcando para o dia 3 de novembro o julgamento de uma ação que impede réus em processos no Supremo de ocuparem cargos da linha sucessória da presidência da República. Uma ameaça a Renan Calheiros, que já responde por 12 inquéritos no STF.
O atual governo mudou suas prioridades, baseando-se nas cartilhas vigentes do Fundo Monetário Internacional, que buscam, antes de tudo, o equilíbrio das Contas Nacionais sob uma abordagem amplamente fiscalista.
Estes atritos não somente atingem a esfera institucional, mas alertam o mercado financeiro sobre a possibilidade da PEC 241, aprovada pela Câmara dos Deputados, encontrar dificuldades de aprovação no Senado, proximamente. Há temor no mercado de que a crise entre os Poderes modifique o cronograma de votações da PEC. O Presidente Temer busca a conciliação entre o Senado e o STF, mas a Presidente da Corte já avisou que não comparecerá a nenhuma reunião com este temário. Um caso clássico, envolvendo os três Poderes da República. Historicamente o grande exemplo de crises desta natureza com maus resultados é dado por Oliver Cromwell (1599-1658). Líder puritano, inimigo da Igreja Católica, parlamentarista convicto, foi eleito ao parlamento britânico (1628), conseguiu 4
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a morte do Rei Carlos I (1649), tornou-se o todo poderoso Lorde Protetor da Inglaterra (1653), morreu em plena glória. Mas os Realistas voltaram ao poder, restauraram o trono inglês, o corpo de Cromwell fora exumado e queimado em praça pública. Idas e vindas da história, preços a pagar pelas lutas entre Poderes do Estado. Diante da situação criada para atrair investimentos, e neste ambiente de instabilidade política, o governo estuda novos mecanismos financeiros para a proteção de investidores estrangeiros frente ao risco cambial nas concessões de infraestrutura. Um exemplo dos dramáticos custos financeiros, a partir da guerra política interna. Na perspectiva de atender à melhoria do ambiente de negócios, viabilizando as condições que permitiriam agilidade na política de desenvolvimento da infraestrutura – pilar para uma arrancada econômica contra a atual depressão econômica – o Governo Temer deposita suas esperanças na aprovação do PLS 559/2013 (Projeto de Lei do Senado), ora em tramitação, para obter resultados mais animadores. Este PLS altera regramentos referentes às licitações e contratações públicas revogando a Lei 8666/1993 (período Itamar Franco) bem como a Lei do Pregão (Lei 10.520/2002), bem como os artigos 1 a 47 da Lei 12.462/2011, que trata do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), em vigor atualmente. Uma das novidades do PLS 559/2013 é que seria possível a reabilitação do licitante ou contratado que tenha sofrido penalidades por prática de atividades penalizáveis, sempre que o envolvido ressarcir ou reparar integralmente a Administração pelos prejuízos causados e cumpra as condições de reabilitação definidas no ato punitivo. Na prática, é o estabelecimento das condições de obtenção da leniência, tão aspiradas
pelas grandes empresas nacionais envolvidas nos recentes processos e inquéritos sobre desvios de recursos nas grandes obras de infraestrutura no Brasil. Segundo o relator, Senador Bezerra Coelho (PSB-PE), a última audiência (24 de agosto de 2016) foi crucial para elaboração de seu substitutivo com várias mudanças no projeto (PLS 559) que integra a Agenda Brasil, pauta anunciada para incentivar a retomada do crescimento econômico do País. Entre as mudanças estão a atualização monetária dos valores de referência, alterações de nomenclatura, reformulação dos limites de contratação integrada, conceito de contratação semi-integrada, mudanças na tipificação penal e aprimoramento da sistemática de seguros. A próxima reunião da Comissão, presidida pelo Senador Otto Alencar (PSD-BA), será, agora, após o segundo turno das eleições municipais. Igualmente, está em fase final (relatório) para a tramitação devida, o PL 3636/2015, que trata da leniência a empresas e pessoas físicas junto à Administração Pública brasileira, com intensa participação das Centrais Sindicais, das Confederações Patronais, da Casa Civil e do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). O PL altera regramentos anteriores da Lei 12.846/2013 e da Lei 8.429/1992. Uma luz no fim do túnel e certamente uma boa notícia nessa conjuntura econômica de depressão e crescente desemprego. Aparentemente, não havendo estas atualizações e modificações, a legislação atual não permitirá a possibilidade de leniência às empresas envolvidas em pendências junto à Administração Federal, nem permitirá a agilidade necessária para os primeiros contratos e licitações aventadas pelo governo, como modo de retomar o crescimento e reabrir a empregabilidade no País. ■
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Oportunidades perdidas e samba enredo no DF Jorge Guilherme Francisconi – Arquiteto e Urbanista
T
anto na esfera privada como na esfera pública de nossas vidas somos o produto de circunstâncias e de nossas opções. A responsabilidade de cada um corresponde ao seu poder de influência: na vida privada convivemos com poucas pessoas; na pública e social há dezenas, centenas ou milhares de pessoas que são afetadas por cada decisão que viermos a tomar. Ou seja, quanto maior o poder maior a responsabilidade do gestor público na melhoria ou perda da qualidade de vida do cidadão. Em qualquer nível de governo as políticas públicas se assemeFoto: anamobe via Visualhunt.com / CC BY-SA lham ao samba enredo de escolas de samba, onde enredo criativo orienta o cuida- fato que simplifica as relações do executivo com o doso planejamento do desfile na passarela, quando legislativo e facilita a gestão urbana pelo executivo. a qualidade é avaliada item por item e o tempo bem No DF não precisa haver superposições na gestão definido. Na passarela da vida – pública e privada – da infraestrutura urbana, educação, transporte púcada um desfila seu samba enredo. blico, saúde, segurança e tudo mais. Melhor ainda: Na passarela da política nacional o Governador o GDF recebe um formidável apoio financeiro da do DF tem o privilégio de ser o mais poderoso po- União na prestação de serviços públicos de segulítico do poder executivo local, com a melhor con- rança, educação e saúde. dição para administrar seu território porque conta O DF oferece excelentes condições possíveis para com os poderes constitucionais de governador e de que cada governador/prefeito estabeleça um prograprefeito. Como Governador, administra território ma de trabalho que, como o samba enredo, obtenha pequeno de alta renda per capita onde há investi- melhorias na metrópole e em cada cidade do DF. mentos que geram riqueza e desenvolvem poten- Mas não é isso que assistimos nas últimas décadas, ciais. Como Prefeito, administra a capital nacional e como resultado o GDF enfrenta grave crise finan(Plano Piloto) e várias cidades, grandes e menores, ceira, ética, gerencial e política. O cenário de hoje da metrópole do DF – cada uma com seus poten- é fruto de má gestão e de prioridades e objetivos, ciais e características próprias. algo heterodoxo, adotado pelos poderes executivo No DF [estado/município] existe uma única e legislativo nas últimos décadas. O produto geraCâmara Legislativa e um único Poder Executivo, do está na péssima qualidade dos serviços públicos 6
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prestados à população; em sindicatos que não assumem compromissos com qualidade dos serviços prestados e não reconhecem a crise, mas fomentam greve após greve para aumentar salários e trabalhar menos. Ainda que algumas destas categorias estejam entre as mais bem pagas do país. O Governador Rollemberg tem grandes potenciais nas mãos e suas dificuldades não superam aquelas que JK e Getúlio Vargas enfrentaram. JK enfrentou sucessivas crises da política sem reduzir seu envolvimento no Plano de Metas que transformou o país e acelerou o desenvolvimento nacional. Vargas, produto do positivismo gaúcho, conduziu a transformação do país por duas vezes. Em meio à crise que o levou ao suicídio, Vargas continuava atento ao futuro da Nação e iniciava seu dia no Palácio do Catete em reunião com Rômulo de Almeida, Jesus Soares Pereira e outros jovens da Assessoria Econômica que tratavam da criação da PETROBRAS, Eletrobrás, da Marcha para o Oeste, BNDES e outros programas e projetos estratégicos de similar importância. Getúlio, JK, Brizola, Lacerda, Geisel e Lula são lideranças políticas inspiradoras porque administraram a política do dia a dia e promoveram mudanças substantivas a partir de sambas enredos que ofereceram novos rumos para estados e para o país. O Distrito Federal está estagnado, sem samba enredo para orientar seu enorme potencial econômico, cultural, político, turístico e tecnológico. Os gestores permanecem prisioneiros do dia a dia; o Governador tem visão de mundo e segue práticas do político que chegou ao Senado mediante o tradicional sistema de trocas e favores. O Governador parece usar seu mandato para enfrentar crises setoriais e ajustar as contas de Brasília, sem propostas de mudanças e melhorias. É governador de oportunidades perdidas, mas não precisava ser assim. O GDF pode reunir especialistas para avaliar o potencial efetivo de propostas para diferentes setores de atividade como saúde, educação e tecnologia, ambiente urbano e ambiental, segurança, emprego, renda e outras mais. Caberia ouvir pessoas com potenciais para contribuir e avaliar exemplos de cidades mundiais e o Governador definiria os projetos estratégicos de seu samba enredo para garantir a sustentabilidade econômica, social, política, cultural, urbanística, ambiental, turística e urbano-ambiental do DF. A TERRACAP, recriada para ser agência de desenvolvimento do DF, poderá responder por muitos
destes projetos, deixando de ser apenas uma grande imobiliária que administra mal seu patrimônio de 50 bilhões de reais e não consegue defender-se de grileiros que ficaram com mais de 6 bilhões de reais de seu patrimônio. Há oportunidades perdidas para sustentabilidade do Distrito Federal em funções e uso do território. Como capital federal, Brasília deveria promover o turismo-cidadão estimulado por gestores de Camberra e Washington; como civitas nacional e Patrimônio Cultural da Humanidade, Brasília é cidade diferenciada, onde cabe implantar projetos que melhorem a qualidade de vida da população e que fortaleçam sua base econômica, como o turismo nacional e internacional. Assim fazem Paris, Rio de Janeiro, Londres, São Paulo, Bordeaux, Bilbao ou Barcelona. A qualificação da UNESCO passaria a ser usada como fator positivo e não apenas para indicar proibições! A estratégia é urgente e fundamental, porque a civitas está abandonada; vive do passado e magníficas fotos em redes sociais. A área monumental de Lucio Costa foi inventada para satisfazer a “eterna demanda do povo de transformar sua força coletiva em símbolos”, como disse Gideon. Seu território deve ser estendido ao Lago Paranoá, com uso e ocupação que mostrasse ao mundo o que é o Brasil, o que fomos, somos e queremos ser. Parques com museus dotados de modernas tecnologias tratariam da história e evolução do território nacional, da cultura, economia, sociedade e tecnologia ao longo do tempo. A fala regional da gente brasileira, por exemplo, permitiria expor falares, ditos, música, hábitos, economia, riqueza e diversidade da cultura e tradições de cada região do país. Estratégias de sustentabilidade socioeconômica envolvem o turismo bem como a transformação do Polo JK, por ora loteamento habitacional-econômico, em núcleo industrial semelhante ao Polo Industrial de Anápolis, que com gestão competente e ortodoxa atraiu grandes empresas nacionais e multinacionais. Para iniciar os trabalhos se dispõe de metodologia, diagnóstico e projeto urbanístico de empresa consultora de Singapura. Tecnologias de ponta exigem programa estratégico envolvendo as inúmeras universidades e empresas de tecnologia e informática no DF, além de SERPRO, BB, CEF, Ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia. Para gestão pública cabe projeto de aperfeiçoamento dos procedimentos administrativos do dia a dia – como licenças para atividades econômicas, e 7
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alvarás e habite-se na construção civil – e para fortalecer a participação da população na gestão urbana. Temas que exigem a liderança do Governador. Estratégias de Desenvolvimento do DF são fundamentais para estabelecer a sustentabilidade urbano-ambiental e econômico-social da metrópole, com definição do que cabe ao Plano Piloto e cada cidade e/ou região administrativa. Sem estudos e diretrizes estratégicas básicas continuarão existindo conflitos e superposições entre os que estabelecem o PDOT que trata do uso do território; o Zoneamento Econômico-Ecológico [ZEE]; o Plano Diretor de Mobilidade Urbana [PDTU]; Políticas Habitacionais; programas de recreação, de parques e jardins; Plano de Saneamento e outros Planos. Dispor de documento com diretrizes básicas para organizar o uso do território é fundamental, como foi visto em Seminário Internacional (2014), quando consultores internacionais e nacionais, e técnicos e gestores locais, trataram de objetivos e métodos a serem utilizados. Elefantes brancos no DF também exigem estratégias de sustentabilidade para que do limão saia uma limonada. O Estádio Mané Garrincha e entorno é limão com potencial para transformar-se no principal núcleo de estudo e pesquisa desportiva do país – como indicou o CONPLAN/DF. Este estratégico projeto exige o apoio dos Ministérios da Educação, Saúde, Esportes, Defesa, BID e BIRD, Ciência e Tecnologia e outros, além de entidades mundiais ligadas ao esporte, lazer e saúde. Outro elefante branco que o Governador herdou é o Centro Administrativo e entorno, que colide com o tombamento. Foi implantado sem projeto de mobilidade e de uso de ocupação das áreas urbanas em
seu entorno. Se bem administrado, este limão poderá tornar-se uma das melhores limonadas oferecidas ao governo e à população do Distrito Federal. O potencial urbano-ambiental do Distrito Federal exige estratégias inovadoras para recuperação sustentável do cerrado e para qualificação do meio ambiente natural com as funções urbanas. A recuperação do cerrado é essencial e é comparável à dos tempos do Império, quando D. Pedro II mandou plantar a atual Floresta da Tijuca para solucionar a falta de água que surgia no Rio de Janeiro. Nos dias de hoje é necessário promover algo semelhante e, para isso, dispõe-se da iniciativa pioneira de Eugenio Giovenardi na recuperação do cerrado natural. O DF tem grandes potenciais para implantar padrões sustentáveis e inovadores para integração do meio ambiente natural com as atividades urbanas. Estratégias inovadoras de convivência urbano-ambiental e novos padrões de tecido urbano-ambiental podem ser implantados no Park Way e na região do Taquari/Altiplano. O tema foi tratado na TERRACAP, IBRAM e CDS/UnB, e está sendo debatido nas comunidades. Concluindo, há um enorme potencial para melhorias no DF que permanecem como oportunidades perdidas. Os temas exigem a liderança do Governador e, por certo, serão gulosamente absorvidas por comunidades e universidades, cujos alunos procuram temas concretos onde aplicar teorias, conceitos e ideologias que conhecem. Integrar universidades e redes sociais às estratégias de sustentabilidade do DF é essencial para o sucesso da iniciativa. Também será necessário contar com núcleos dinâmicos da sociedade e com o que sugira você, o leitor-cidadão. ■
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O Grito do abismo Paulo Timm – Economista
“George Bernard Shaw, o brilhante ícone do generoso socialismo “intelectual” fabiano, chamou a atenção para uma verdade: todo o progresso social depende das pessoas não razoáveis. As razoáveis aceitam o mundo como ele é porque creem que é o natural; os não razoáveis lutam para ajustá-lo ao seus desejos.” (Delfim Neto in Chegamos a esse momento?)
A
i mísero de mim. Ter visto o que já vi. Ver o que vejo agora. E suportar o que me está fadado a ver adiante. Me refugio em busca de consolo na leitura das crônicas de Umberto Eco no Jornal Expresso de Milão, no início da década, recentemente publicadas em Portugal. Ah torrenses, se o tivéssemos em meu próprio lugar aqui nesta coluna, como lhes seria proveitoso! Mas aqui nascemos, aqui vivemos, aqui curtimos nossos dias bons e ruins. E sonhamos… Aguentem-me. Umberto Eco, autor de ‘O nome da rosa’, foi um dos mais cultos – e cultuados – intelectuais do século XX . Ele dizia que a televisão matou a janela. Poderia ter acrescentado que a Internet matou a literatura, mas não chegou a tanto, embora crítico destes tempos. A verdade é que tanto a telinha quanto os smartfones nos deixam, à qualquer hora, na borda do mundo. Vivemos mergulhados nas densas brumas dos acontecimentos que se desenrolam carregados de magia, mistério e violência, cá e acolá. E não conseguimos mais viver sem esse bombardeio de imagens. Somos vizinhos. Agora mesmo, acabo de saber que estudantes e professores declararam guerra ao Governo Temer. O país tinha em 26 de outubro, 1.022 escolas e 84 universidades ocupadas em 19 estados. Uma insurreição. Dizem que estão contra ‘o golpe’, contra a PEC 241 e contra a Reforma do Ensino Médio, três fatos, aliás, já cumpridos, em vigor. Mas a juventude vai à luta contra esses fatos e reedita um interesse pela História que parecia adormecido. Aleluia! Vale lembrar, entretanto, que apesar de bem vindas estas mobilizações de jovens nem sempre são realmente promissoras e libertárias. Nem tudo que reluz é ouro… E sempre tem um velho pra embaralhar as vãs ilusões e para lembrar
que a juventude é como o amor: sublime, mas sempre tem algo de ridículo. Há poucos dias alguns desses mais vividos lembraram o cinquentenário da Revolução Cultural na China. Um horror que atrasou o despertar daquele país para o papel que hoje ocupa no cenário mundial. Horror que fascinou a intelectualidade europeia. Vide o filme ‘La chinoise’ de Jean-Luc Godard. Naquela mesma França de Pascal, Montaigne, Voltaire e Sartre, um só estudioso ousou contrariar a corrente e criticou as barbaridades maoístas, numa série de ensaios, pagando com severo isolamento o preço de sua autonomia: Pierre Ryckmans, que assinava como Simon. Foi a Guarda da Revolução, formada por jovens iranianos enfurecidos, que endossou e sustentou, também, o regime dos aiatolás em seu país, levando-o ao doloroso isolamento que se seguiu. No Brasil, um feito bizarro, mas sem maiores vítimas, além do bom senso: a passeata com a presença de Elis Regina, Vandré, e até Gilberto Gil contra o uso da guitarra elétrica em março de 1967, sob o argumento de que ela era expressão da invasão cultural. ▶
A famigerada Passeata Contra a Guitarra Elétrica
Foto: <http://jpress.jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2013/05/passeata.png>. (Link do site: <http://jpress.jornalismojunior.com.br/2013/05/especial-diversidade-preconceito-musical-brasil/>).
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Portanto, no recôndito do meu olhar, eis que distante de todo e qualquer ativismo, recomendaria aos jovens brasileiros que até redobrem sua energia, mas com atenção igualmente redobrada ao objetivo maior de sua luta: Mais Política! Esta se faz, sim, com paixão, mas não apenas com ela. No turbilhão das guerras, crises e revoluções, a primeira vítima é a verdade, que não se evidencia nessas ocasiões, senão com a
prudência, que é o olho das virtudes, onde se esconde a razão. É porfiando com paciência o rosário que se chega à pérola reservada ao destino… O pior, lembrem-se: Não é o pântano, é o abismo. E pior ainda do que o abismo é o seu grito mistificador. Por sorte, como diz sempre o nosso Bob Dylan tropical, Jorge Mautner: “Não há abismo onde o Brasil caiba”. Sobreviveremos. ■
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Um balanço das eleições municipais Ricardo Prata Soares – Sociólogo
N
ão se pode dizer que o eleitorado agiu embalado pela propaganda dos candidatos. Ao contrário, o maior contingente se absteve, votou nulo ou branco, ganhando até dos eleitos. Isto aconteceu também no primeiro turno com um índice até superior. Enquanto no segundo turno este contingente gira em torno de 35%, no primeiro (caso de São Paulo, Rio e BH) ele foi além de 40%. Os analistas veem aí ressentimento, revolta e alergia de política, mas sem dúvida nenhuma consciência, pois entraram na contramão da política tradicional. No segundo contingente, o dos eleitos, houve uma concentração de votos nos candidatos do PSDB e do PMDB, incluo aí os casos onde os dois disputaram o segundo turno como opositores. O tamanho deste contingente é de 40%, em alguns casos superando o primeiro. Mas não se pode dizer que foi além da votação que Aécio teve no segundo turno contra Dilma. Portanto, foram votos de oposição estruturada contra o PT, até por efeito do persistente discurso petista do Fla/Flu, no caso Lula/FHC. Mas, agora, tem a dividir o espaço com o PMDB que unificou o eleitorado que seguia Cunha ou agia como oposição com o time do Temer. É previsível que esta mistura venha a se diferenciar na próxima eleição de deputados, governadores e presidente. Não dá para calcular numericamente e nem adianta, pois isto dependerá da próxima campanha e do desempenho de Temer. Finalmente o terceiro ajuntamento, pois é uma soma diversificada. Há os casos de votação independente do partido, como em Crivella, em Kalil e Greca, com seus partidos inexpressivos. Mas se compõe também de partidos tradicionais como PSB, PDT e PTB que pontuaram bem. Agregam-se aí também
as tentativas de capitalizar eleitores petistas, embora com pouco sucesso, como o caso do PSOL. É bom lembrar que a candidatura de Plínio Sampaio, disputando contra a novata Dilma, ficou em terceiro lugar e que outras candidaturas como a de Heloisa Helena e Marina atingiram 20 milhões de eleitores. Pode-se concluir que o esfacelamento do PT não teve rumo orientado, foi diversificado como uma explosão que provoca estilhaços. Talvez os desiludidos com a política e com o PT, no primeiro grupo, não voltem tão cedo e continuem no processo de rejeição. A única novidade no cenário nacional é o movimento dos jovens ocupadores de escola. Ele é pré-eleitoral e ensaia levantar os punhos tradicionais tentando sinalizar um caminho de libertação semelhante aos ‘indignados’ que ocorreram na Espanha. Mas isto parece um grande equívoco. Suas duas bandeiras de negação são ações que o governo Temer deu continuidade do governo Dilma. Em primeiro, o ensino médio com três disciplinas obrigatórias e o restante opcional e sob critério estadual. Foi o projeto Mercadante e que atravessou toda a burocracia do MEC amadurecendo fora do prazo. A segunda, a PEC do Teto, foi gestada no governo Dilma/Temer e recebeu interinidade com Temer sem Dilma. Hoje parece ter sido incubada pelo empresariado como forma de negar maior tributação e pôr freio na gastança Dílmica. Portanto, é um movimento adolescente que carrega uma imensa ingenuidade, mesmo que travestida de intenções idealistas. Será um equívoco histórico, a menos que retorne ao leito dos ‘indignados’. Mas há quem veja neles um filho bastardo do petismo, escondido, pois não pode ser reconhecido nos cartórios políticos. A conferir. ■
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Porto Alegre é demais? Helio Gama – Jornalista
“Porto Alegre me tem Não leve a mal A saudade é demais É lá que eu vivo em paz Porto Alegre é demais!”
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professor, político, poeta e compositor José Fogaça criou a música citada na epígrafe, enorme sucesso regional chamada “Porto Alegre é demais”. Normalmente, aliás, quando os porto-alegrenses escutam-na cantada pela mulher de Fogaça, Isabela, a emoção é grande e as lágrimas não podem ser contidas. Como mostraram as eleições municipais de domingo, 30 de outubro, atualmente, porém, a razão do choro talvez seja pelo fato de saberem que sua comunidade vive cada vez mais das glórias do passado, quando foram lançadas as bases de uma cidade progressista e uma das capitais mais ricas e confortáveis do país. Tanto que embora esteja definhando ainda mantém posição de destaque, entre as capitais brasileiras. Porto Alegre está com 1,48 milhão de habitantes, a décima cidade mais populosa do Brasil (estimativa do IBGE para julho de 2016). Em 1950, estava em 5º e em 1980 deslizou para 8º. Em contraste, Curitiba saltou de 9º para 7º, e Fortaleza de 7º para 5º, por exemplo. Prosseguindo no mesmo ritmo o êxodo que limitou o crescimento da cidade a 8,2% entre 2000 e 2016, Porto Alegre, nos próximos cinco anos será ultrapassada por uma ou mais das seguintes capitais: Goiânia, Belém, São Luís e Maceió, cidades que no período mencionado apresentaram crescimento populacional superior a 20% (Goiânia cresceu 32,7%). A cidade também perdeu representatividade econômica, sendo, hoje, uma metrópole sustentada pelo grande número de funcionários públicos que movimentam um forte setor de serviços. Assim, depois de ter sido a quarta cidade brasileira na produção do PIB, nos anos 1980, lentamente vem
Foto: PAULO BROCKMANN via Visualhunt / CC BY-NC-SA
perdendo terreno, caindo para sétimo lugar com PIB de 57,4 bilhões de reais em 2013 (o PIB de São Paulo era de 570,7 bilhões), mas estava em sexto lugar em renda per capita, com 39,1 mil reais. E mantém um dos mais elevados Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) entre as capitais brasileiras, com 0,805, 8,7% acima dos 0,744 de 2000. O maior IDH é o de Florianópolis, com 0,847, 10,6% acima dos 0,726 de 2000. Mas Palmas, a capital do Tocantins, por exemplo, que tinha um IDH de 0,654 em 2000, cresceu 20,5%, alcançando 0,788. Porto Alegre carece ainda de um sistema de Mobilidade Urbana moderno, como metrô urbano, a conclusão de linhas dos ônibus BRT, ampliação do transporte hidroviário, abertura da quarta Perimetral que consolide a tendência de crescimento da zona sul da cidade, reforma completa das calçadas, ciclovias extensas, a univer-
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salização do tratamento de esgoto, um sistema para limpeza e tratamento do lixo urbano e a concretização de dois projetos importantes: um para atrair empreendimentos industriais e outro para aproveitar os 14 mil hectares disponíveis para a produção de frutas e verduras, sem contar os péssimos serviços nas áreas de saúde, educação e segurança. Não é de surpreender, assim, que os eleitores de Porto Alegre tenham deixado de lado o PT, que governou a cidade por 16 anos e a dobradinha PMDB-PDT, que esteve na prefeitura por outros 12 anos, garantindo sólida vitória com mais de 60% dos votos válidos para o deputado federal Nelson Marchezan Júnior da coalizão PSDB-PP-PTB. Eleições, aliás, que produziram mais uma administração estapafúrdia resultante do sistema eleitoral brasileiro, sem representação parlamentar adequada. O partido do novo prefeito, o PSDB, conta com apenas um representante na Câmara de Vereadores com 36 cadeiras! No momento a nova bancada governista conta ainda com 4 vereadores do PP e quatro do PTB, ou seja, 9 representantes e 25% dos votos, com o que não aprova nem projeto para nome de rua. Mas numa Câmara com 16 partidos representados, não será difícil a conquista de outros partidos para a aliança governista como PRB e PSB, com 2 representantes cada e, ainda, Solidariedade, Rede, Novo, PR e PSD, com 1 representante cada, somando mais 9 vereadores e alcançando 50% dos votos. Se Marchezan conquistar também o DEM, por exemplo, com dois vereadores, garantirá a maioria absoluta. Em compensação o Poder Executivo terá de ser retalhado entre 11 partidos. Na oposição, estarão duas diferentes frentes partidárias: PT/PSOL (o PCdoB não conseguiu eleger vereador), com 7 vereadores, e PMDB/PDT/DEM/ PROS, com 11 assentos. Se estas duas facções conseguirem se entender, o que parece improvável, a vida de Marchezan ficará muito difícil. Nas eleições o PT e o PSOL apresentaram candidaturas próprias no primeiro turno: Raul Pont, do PT, ficou com 16% dos votos válidos, Maurício Dziedricki com 13% e Luciana Genro, 12%. No segundo turno, o candidato da aliança do PMDB, o vice-prefeito Sebastião Melo, obteve 39,5% dos votos válidos contra 60,5% de Marchezan. Porto Alegre voltará a ser demais? ■
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O princípio da laicidade na constituição brasileira Joana Zylbersztajn
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inda que a constituição brasileira não explicite ser o Brasil um país laico, traz diversos princípios norteadores que consolidam o princípio da laicidade no contexto constitucional. Os princípios constitucionais referentes à democracia, à igualdade e à liberdade (incluindo o princípio de liberdade religiosa), na lógica do mandamento do art. 5°, §2° da constituição – que reconhece a existência de direitos não expressos em seu texto, decorrentes do regime de princípios adotado por ela – formam o princípio da laicidade. Sendo um princípio, trata-se de um mandamento de otimização que deve ser realizado o máximo possível nas situações concretas. A constituição ainda prevê a regra da separação entre Estado e Igreja, que define características mais concretas à laicidade brasileira. Essa situação é a mais comum nas democracias contemporâneas, como menciona Marco Huaco:
A Laicidade do Estado Brasileiro Joana Zylbersztajn Verbena Editora
poucas são as constituições que, de maneira explícita, não deixam lugar a dúvidas sobre o caráter laico do Estado e do pluralismo religioso e ideológico, dando preferência a fórmulas ambíguas e pouco claras sobre as relações entre o Estado e o fator religioso. (HUACO, 2008: 60).
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Assim, é necessário abordar a teoria constitucional sobre os princípios, a fim de formar a moldura conceitual da laicidade, analisar o grau e forma de proteção jurídica do princípio e verificar suas possíveis consequências concretas. O debate da distinção entre princípios e regras tem encontrado destaque no âmbito acadêmico, sendo abordado de forma diferente por autores diversos. Desse modo, os conceitos sobre o tema não são unificados e cada teoria adota seus critérios de definição, tais como grau de generalidade da norma ou a importância da norma para o ordenamento jurídico. Usarei aqui a definição de Robert Alexy, que faz a distinção entre princípios e regras de forma qualitativa, de acordo com a sua estrutura e forma de aplicação (ALEXY, 2008: 90). 14
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Para Alexy, os princípios são mandamentos de otimização, ou seja, “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes” (ALEXY, 2008: 90). Isso significa que eles podem ser realizados em diferentes graus, dependendo do caso concreto, mas devem ser realizados o máximo possível. Já as regras são normas que fixam “determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível” e, por essa razão, devem ser sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Sendo válida, é necessário que se faça exatamente o que a regra exige (ALEXY, 2008: 91). Em caso de normas incompatíveis, princípios e regras também se diferenciam quanto ao modo de solucionar a situação. No caso de princípios colidentes, deve-se aplicar aquele cuja realização tem maior peso em face das circunstâncias do caso concreto, devendo ceder o princípio cuja realização for considerada menos importante naquela situação. Isso não significa, contudo, que o princípio não aplicado naquele contexto perca a sua validade. Pelo contrário, ele permanece válido e passível de ser aplicado em situações futuras, desde que a sua realização seja mais importante do que a satisfação de eventuais princípios colidentes na nova hipótese. Observa-se, portanto, que a aplicação dos princípios é determinada por meio das chamadas “relações condicionadas de precedência”, que são fixadas por meio de um processo denominado sopesamento ou ponderação, cujo objetivo é definir qual princípio deve prevalecer diante das condições do caso em questão (ALEXY, 2008: 93-99). Quer dizer, a colisão de princípios ocorre quando duas normas dessa espécie – se isoladamente consideradas – conduzem a uma contradição entre si. Ou seja, há colisão quando um princípio restringe as possibilidades jurídicas de realização do outro.
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Segundo Alexy, essa situação não é resolvida com a declaração de invalidade de um dos dois princípios e com sua consequente eliminação do ordenamento jurídico. Ela tampouco é resolvida por meio da introdução de uma exceção a um dos princípios, que seria considerado, em todos os casos futuros, como uma regra que ou é realizada ou não é. A solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Levando-se em consideração o caso concreto, o estabelecimento de relações de precedência condicionadas consiste na fixação de condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro. Sob outras condições, é possível que a questão de precedência seja resolvida de forma contrária. (ALEXY, 2008: 96). Já no caso de conflito entre regras, a escolha da norma que será aplicada não deverá ser feita com base nas circunstâncias particulares do caso concreto, como na colisão entre os princípios. Nesse caso, a escolha ocorre de modo abstrato, com base em critérios pré-definidos, como a sucessão cronológica, a superioridade hierárquica ou a relação de especialidade entre as normas conflitantes (conforme os postulados lex posterior derogat priori; lex superior derogat inferior; e lex specialis derogat generalis) (FERRAZ JR, 2001: 207). Em outras palavras, deve-se aplicar a regra mais recente em detrimento da mais antiga; a regra hierarquicamente superior em detrimento da regra de hierarquia inferior; ou, ainda, a regra mais específica em detrimento da regra mais geral, independentemente das peculiaridades do caso concreto.
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Quer dizer, se há duas regras incompatíveis, apenas uma deve ser considerada válida no ordenamento jurídico, derrogando a norma conflitante – exceto nos casos em que haja em uma das normas uma cláusula de exceção que possibilite a permanência de ambas as previsões no ordenamento jurídico. Desse modo, tais relações determinam qual regra deve ser considerada válida (e, portanto, aplicada) e qual regra deve ser declarada inválida (e, consequentemente, não aplicada), o que conduz ao entendimento de que o conflito entre regras deve ser resolvido na dimensão da validade,1 enquanto as colisões entre princípios “ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso” (ALEXY, 2008: 94). É importante destacar que as colisões entre princípios e os conflitos entre regras têm modos de solução distintos, pois há uma diferença entre a estrutura de cada uma dessas espécies de norma, cujas implicações afetam diretamente a sua forma de aplicação. É isso o que observa Virgílio Afonso da Silva, quando comenta que “regras garantem direitos (ou impõem deveres) definitivos”. Se isso é assim, e se existe a possibilidade de conflitos entre regras, é preciso que se encontre uma solução que não relativize essa definitividade. Dessa exigência surge o já conhecido raciocínio “tudo-ou-nada”. Se duas regras preveem consequências jurídicas diferentes para o mesmo ato ou fato, uma delas é necessariamente inválida, no todo ou em parte. Caso contrário, não apenas haveria um problema de coerência no ordenamento, como também o próprio critério de classificação das regras: o dever-ser definitivo cairia por terra (SILVA, 2009: 47-48). Na mesma lógica, o sopesamento entre princípios colidentes não poderia preterir um princípio para realização de outro que, mesmo sendo mais recente ou específico, tivesse menos peso diante das condições do caso concreto. Isso implicaria a descaracterização do princípio como mandamento de otimização. Feitas essas considerações gerais sobre a distinção entre princípio e regra, cumpre esclarecer as razões de recorrer a este modelo em detrimento das
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demais propostas de classificação das normas de direitos fundamentais. Além de proporcionar uma abordagem coerente e evitar os problemas de sincretismo metodológicos (SILVA, 2005: 115-143 e SILVA, 2003: 607-630), a distinção estrutural entre princípios e regras adotada aqui tem especial valor para a análise da proteção jurídica da laicidade no direito brasileiro por duas razões. Em primeiro lugar, ela permite observar com clareza a diferença entre dois conceitos que, apesar de terem extensão distinta, são recorrentemente vistos como sinônimos – a laicidade e a separação entre Estado e Igreja. O conceito de laicidade abrange a separação entre Estado e Igreja, mas não se confunde com esta, pois transcende os seus limites, exigindo também o respeito à liberdade religiosa e a igual consideração de todas as crenças. Essa distinção tende a fortalecer a proteção jurídica da laicidade, evitando que o seu conteúdo seja reduzido à proibição de associação entre a esfera estatal e uma organização religiosa específica. Além de evitar a confusão entre essas duas noções distintas, a classificação entre princípios e regras, sobretudo no que concerne aos desdobramentos relacionados com a definição de princípio como mandamento de otimização, tende a fortalecer a proteção da laicidade na medida em que passa a exigir a fundamentação de qualquer restrição a este princípio, cujo âmbito de proteção é prima-facie o mais amplo possível. ■ Bibliografia ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão e Dominação, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. HUACO, Marco. A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito. In: LOREA, Roberto Arruda (Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, 2003, v. 1, p. 607-630. SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico. In: ______. (Org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 115-143. SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2009.
Segundo Virgílio Afonso da Silva, “todo conflito entre duas regras cujas consequências jurídicas, para o mesmo ato ou fato, sejam incompatíveis deve ser resolvido no plano da validade. Sempre que há conflito entre regras, há alguma forma de declaração de invalidade”. (SILVA, 2009: 49).
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Venezuela: a dificuldade para unir polos contrários Walter Sotomayor – Jornalista
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diálogo entre o governo e a oposição da Venezuela teve início no último dia de outubro com os auspícios da Igreja Católica em busca de uma saída para a grave crise política, econômica e social que se aprofundou nos três últimos anos da administração do presidente Nicolás Maduro. A tentativa de buscar uma saída política ocorre quando a oposição, que controla o Parlamento venezuelano, completara os requisitos para a realização do chamado Referendo Revogatório que poderia destituir o presidente. O governo de Maduro teve início quando se encontrava disposto a ignorar qualquer decisão do Parlamento e ao mesmo tempo aprofundar medidas repressivas contra a oposição, em uma escalada responsável pela prisão de vários dirigentes políticos. Os diferentes partidos políticos que integram a oposicionista Mesa de Unidade Democrática (MUD) temiam que as negociações fossem apenas uma estratégia do governo para ganhar tempo. A reunião foi realizada, apesar de Maduro a presidir, criando o mal estar na oposição, mas analisou a agenda de três pontos: situação dos direitos humanos, repressão e presos políticos; temas sociais e econômicos e; análise do calendário eleitoral. Inicialmente a oposição havia subordinado sua assistência ao encontro à libertação dos presos políticos, mas o encontro foi realizado apesar das resistências. O analista Fernando Mires recorda que em uma negociação geralmente se adota a posição intermediária diante das posições maximalistas apresentadas inicialmente pelos dois lados. Os resultados concretos da negociação poderão demorar, mas o povo na rua parecia indicar a possibilidade de um confronto que países vizinhos, ou não, querem evitar, além da necessidade de se
adotar medidas urgentes para enfrentar o que se configura como uma crise humanitária de grandes proporções diante da falta de alimentos e medicamentos. O governo exibia grande incapacidade para enfrentá-la mostrando que o problema não é apenas de falta de recursos. O governador e dirigente de oposição, Henrique Capriles, defende uma solução pela via de consultas populares, exatamente como o fazia em seu tempo Hugo Chávez. Em entrevista à revista digital Prodavinci, Capriles recorda a estratégia de confronto de Chávez: “O confronto foi o que prevaleceu nas duas últimas décadas. E Chávez, que permanentemente estimulava o conflito, como os resolvia? Mediante eleições. Nós venezuelanos nos acostumamos a viver no confronto, mas a nossa válvula de escape foi o processo eleitoral. E os mesmos senhores que agora estão no governo diziam que se não havia eleições, Chávez as inventava. Então a solução para a crise necessariamente passa por um processo eleitoral.” O governo sabe que o processo eleitoral colocaria um ponto final no chavismo. Por isso Maduro não apenas desconheceu a decisão da Assembleia Nacional, mas a própria existência institucional do Legislativo. Sabe dos riscos: a empresa espanhola Datanalisis estima que em um referendo quase 70% dos eleitores votariam pela saída de Maduro. Diante de posições tão desencontradas, o início do diálogo é muito auspicioso e exibe seu primeiro resultado positivo ao colocar frente a frente o presidente e os dirigentes da oposição, um avanço obtido graças à mediação do Papa e ao trabalho intenso desenvolvido por um grupo de facilitadores do diálogo comandado pelo ex-Primeiro-Ministro espanhol José Luis Rodriguez Zapatero. Essa diversidade de 17
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atores políticos, entre os quais se encontrava o subsecretário de Estado dos Estados Unidos, Thomas Shannon, deixava em evidência também o baixo perfil exibido pelo Brasil. Se a diplomacia brasileira despertava a desconfiança da oposição no início da crise venezuelana devido à promiscuidade dos governos do Partido dos Trabalhadores com o chavismo, hoje o constrangimento do governo brasileiro é consequência da repetida pecha de ilegitimidade que carrega desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff. O fato concreto é que o Brasil ficou sem opções, como observa o analista Matias Spektor: “Desde o início (Dilma) se colocou com uma das partes do conflito, e fez vista grossa para os abusos que o chavismo vinha cometendo. O Brasil perdeu espaço de manobra. Você só tem espaço de manobra se é visto por todas as partes em disputa como interlocutor legítimo”, disse em uma entrevista à revista Época. A Venezuela buscou no Brasil uma alternativa à excessiva dependência da relação econômica e política com os Estados Unidos e das exportações de petróleo. Em um país cuja bebida preferida é o whisky e onde não se consegue produzir a comida para uma população de 30 milhões de habitantes, há evidentemente graves problemas que contrastam com a imagem de superabundância pelo fato de ser um dos maiores produtores de petróleo do mundo. O governo brasileiro ofereceu assistência técnica ao chavismo e a Odebrecht virou quase a única operadora do esperado desenvolvimento. A empresa brasileira, utilizando créditos do BNDES, construiu grandes obras de infraestrutura mas também agrovilas na tentativa de implantar projetos de agricultura familiar, como agricultura extensiva, na tentativa de diminuir a grave dependência do país da importação de alimentos. Hoje a Venezuela é um dos grandes devedores do Brasil como resultado de investimentos estimados em mais de US$ 20 bilhões. As negociações ocorrem quando a oposição demonstra uma importante capacidade de mobilização que levou às ruas multidões pedindo o fim do chavismo. A oposição teme que o governo aproveite o diálogo para ganhar tempo na esperança da recomposição dos preços internacionais do petróleo e assim
superar o pior da crise econômica e o descontentamento com o regime que governa o país desde 1999. O analista e dirigente político de oposição, Vladimir Villegas, considera que o descontentamento desencadeia a mobilização popular e que o sucesso dela depende muito de seu caráter pacífico. Villegas, já foi membro da Juventude Comunista e posteriormente apoiou Chávez, foi embaixador no Brasil em 2002 e no México em 2005, para depois se distanciar do chavismo. Villegas, um dos ex-chavistas que adotaram um forte tom crítico em relação a Maduro, diz que “a Venezuela precisa de um urgente processo de reinstitunacionalização”, ao condenar os excessos autoritários do regime. O fator militar surge como garantia da permanência de Maduro no poder e até agora não houve indícios de qualquer fissura na disposição do aparato militar e policial que sustenta o governo. Os dez anos de governo de Hugo Chávez, encerrados com sua morte em 2012, pareciam ter fechado um ciclo em que as mudanças políticas e sociais foram impulsionadas pelo carisma do ex-militar e pela enxurrada de dólares provenientes da venda de petróleo em uma conjuntura de preços em alta. A morte de Chávez coincidiu com uma forte queda nos preços, e a desordem fiscal herdada e aprofundada por Maduro. O presidente exibe uma grande incapacidade não apenas para a gestão econômica, mas principalmente para enfrentar o crescente descontentamento da população com a carestia geral. Como resposta à crise econômica, Maduro anunciou um aumento do salário mínimo. O valor do mínimo exibe uma curva ascendente, se olharmos o valor nominal, mas na realidade exibe uma queda vertiginosa quando se olha para o valor real no período compreendido entre maio de 2013 e agosto de 2016. Fica impossível manter o poder aquisitivo dos salários diante do corrosivo avanço de uma inflação de 2.300% nos últimos 12 meses. Na falta de respostas ou de soluções para os problemas Maduro tem apelado seguidamente à força militar e policial para reprimir protestos e suas decisões têm sido seguidamente ratificadas por um judiciário totalmente caudatário do Executivo. Agora todos esperam que o bom senso prevaleça. ■
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Impressionismos I – Lerner e o Banco Mundial Jorge Francisconi – Arquiteto e Urbanista
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ais uma vez mudava de rumo. A década de 1960 Com a municipalização da Constituiçãoencerrada, como seriam os anos 1970? Aproveitei uma chance e saí Cidadã no Brasil, em 1988, as empresas de de Syracuse para vasculhar por ônibus retomaram o domínio do transporte oportunidades no calor de agosto urbano e somente municípios muito ricos em Washington. Não lembro se conhecia alguém, mas o certo é que, melhoraram seus sistemas modais. na hora do almoço, fiquei vagueando pelos corredores do Banco Mundial para sentir o ambiente. De repente vi a palavra CURITIBA. Porta aberta, lá fui eu. As paredes da sala estavam em Curitiba. Com Flecha de Lima nas Relações Excobertas por projeto para ônibus diferenciado que teriores, os corredores de ônibus se tornaram proandava em linha exclusiva, com ruas em parale- duto de exportação para América Latina e coquelulo para carros e urbanização em dégradé! Concei- che mundial. tos, propostas e detalhes maravilhosamente bem Com a municipalização da Constituição-Cidaapresentados. E estava a linda Inês posta em sosse- dã no Brasil, em 1988, as empresas de ônibus retogo quando entrou o dono da sala. Um especialista maram o domínio do transporte urbano e somente em transporte urbano com PhD em Berkeley, mas municípios muito ricos melhoraram seus sistemas sem a competência de muitos amigos meus… Em modais. Na América Latina, Bogotá assumiu a lisua primeira fala esculhambou o projeto porque o derança na operação de corredores e, quando fui à funcionamento das portas não atendia a não sei o Venezuela, no final dos anos 1990, a tarefa da equiquê. Este foi meu primeiro contato com a proposta pe era implantar melhorias e corredores com recurde um tal Jaime Lerner. sos do Banco Interamericano de Desenvolvimento Acontece que Velloso apoiou o projeto experi- (BID) e do Banco Internacional para Reconstrução mental de Jaime, os resultados foram positivos e a e Desenvolvimento (BIRD). Depois, corredores viComissão Nacional de Regiões Metropolitanas e raram BRT e PACs financiaram obras de engenhaPolítica Urbana (CNPU), aonde cheguei em 1974, ria, sem incluir ônibus ou exigir o mais importante: e a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos a operação! (EBTU) investiram em Curitiba. Em 1978 fui para No frigir dos ovos, o PhD do Banco Mundial esa EBTU e, com apoio financeiro do Banco Mundial, tava errado, Lerner estava certo e tive sorte quando implantamos corredores exclusivos em regiões me- decidi retornar ao Brasil e enfrentar o IPM que hatropolitanas e aglomerados urbanos por todo país, via deixado nas costas. Mas isso é outra estória… mas sem vincular uso do solo e corredores, como Não podia prever o que iria acontecer! ■
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De um Diretor fracassado, uma Gaiola louca e um Penico Crítico, contra ou a favor do irresistível charme da Morte quando se aproxima A Hora Wilian Fernandes Pereira
Personagens Gorda; Bule; Penico; Diretor; A Freira; O Padre; O Frio; Croquete; A Falsa Verdade; Gaiola; A Verdadeira Verdade; A Hora; A Morte.
Cena I [Entra a Gorda de trancinhas com um penico rosa na cabeça]. Gorda: Loucura! Loucura! Ahhhh… [Puxa os cabelos, joga o penico na frente do palco, onde ele fica até o fim, exceto pelo que se move, e fala]. Bule: Nem Bela, nem Fera. Sou um Bule que fala. Eis a Gorda desesperada por ter deixado escapar uma ideia boa que tivera dentro de um ônibus. Uma ideia qualquer, que na hora pareceu importante. Gorda: Como?! Como?! Bule: A verdade não existe. Nada é a única coisa que existe. A existência em si é inexistente. Nunca, nunca, nunca… Ninguém pode mudar isso. O Padre [imitando uma onça]: Não, não, não… Bule [Fazendo um gesto no ar, no meio do palco, como se lá existisse uma parede entre ele e o público]: Qual a verdadeira distância entre esta parede e a tinta que está sobre ela? Numa vela acesa, onde termina o fogo, onde começa a luz? Tal é o limite entre o bom senso e a loucura, mais fino que o mais fino dos fios imateriais?! Gorda: Assassina de ideias! Não tivesse esperado e ela estaria aqui comigo agora. Mas se foi, e para sempre, vagando no mundo indefinido das ideias perdidas que se misturam na sombra gélida do vale escuro do Nada. [O Penico atravessa rolando o palco vagarosamente. Enquanto isso]: Bule: Podem me achar estranho, me chamar de “filósofo”. Mas, afinal, o que é um filósofo? O que ele faz? Pra quê que ele serve? O filósofo é um poeta? Porque eu não quero ser filósofo. Quero ser poeta. Mas nem sempre se é o que se quer ser ou o que se pensa que é. Não, não sou um filósofo, não sei o que é isso. Desconheço a própria Filosofia. 20
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Cena II Bule: Assim é a vida. Escreve-se um texto e se reescreve, se rescreve, escreve-se de novo…, e nunca fica pronto. Nunca. Publica-se para parar de escrever, como diria aquele velho argentino cego. Gorda: Sim, sim, e eu é que sou a louca. [Bruscamente] Não! [De volta ao normal] Já disse e repito: Assassina de ideias, de boas e más ideias, eis o que sou. [E bate com as mãos nas coxas, duas vezes]. Bule: Ploc, ploc, ploc: disse uma geladeira à outra. Gorda [Para o bule]: Volte para a Bela, porque esta é natimorta, e Inês era alcoólatra! Bule: Quem é vivo aparece quando pode.
Cena III Diretor: Atenção… Claquete!!! [Passa um imenso croquete atravessando o palco, correndo em pulinhos]. Diretor: Ei, parado aí! Que palhaçada é essa? A Freira [com voz de freira, olhando vagamente para o alto, cambaleando, com um terço na mão]: Louvado seja Deus Pai, todo poderoso… Croquete: Ei, peraí! Não mete Deus nessa história, maluca. Diretor: Afinal, cadê o roteiro da peça? Não tem ninguém dirigindo essa cena? [Passa um volante de carro rolando no palco. Roda mais ou menos na metade, na frente, e cai, ficando lá]. [O Penico para de brincar com o penico e dirige-se ao Diretor]. Penico: Cansado! Estou cansado de seus caprichos! Você tem que perceber que há certas coisas que não se podem fazer em cena. [Todos tiram a roupa, menos a Freira. A Gorda grita loucamente, puxando as trancinhas pra cima. O Padre insinua um strip-tease, já nu]. Croquete: Louvado seja!
Cena IV Diretor: Borboletas amarelas e azuis; milhares de borboletas. Uma imensa borboleta, a borboleta-mãe, as conduz. Descem por finíssimos fios de ouro, parando em círculos. Soltam gritos de borboleta, e piscam seus grandes olhos de rubi. São borboletas metálicas. Batendo as asas e rodando, todas juntas, tocam levemente o chão. Levantam-se numa roda e seu movimento provoca um tornado que carrega todo o público. A Grande Borboleta se foi. Logo, todos se confundem numa nuvem rodopiante que sobe e que se expande mais e mais. Toda a Terra gira. Em breve todo o Universo fará parte desse imenso balé. O Padre [vestido de borboleta, borboleteando]: Borboletas, borboletas, borboletas… Ai, Vaticano!!!
Cena V [Toc, toc, toc]. Croquete: Toc-toc o caralho!! O Padre: CA-RA-LHO! Diretor: Quem bate? O Frio: Sou o Frio. Trago borboletas vivas e coloridas para alegrar o ambiente. Croquete: Corram, corram todos! Quem bate é o Frio, e carrega consigo borboletas tristes e frias. Borboletas podres, mortas. [Entra O Frio]. O Frio: Oh, sim, a verdade existe. Pra bem da Verdade, a verdade realmente existe! Poderão perguntar “Se ela existe, onde está? Onde está a Verdade?” Mas isso é parte do futuro. A Verdade mora no futuro, e só seres do futuro podem ouvi-la. É preciso ter ouvidos de borboleta para ouvi-la. 21
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[Entra a Falsa Verdade]. Falsa Verdade [cheia, vaidosa, lenta como um hipopótamo da Disney]: Ró, ró, ró, ró… Amores… Fhum!!! Quantos já tive? Em meu nome escreveram-se livros e tratados, e muitos falam de mim, falam bem de mim. Pra muitos, sou uma deusa, sou tudo o que possuem. Mas não me possuem. Ninguém é dono de mim. Milhares me apreciam e me cultivam, mas não se pode me amar!!! Croquete: Falta sal em toda a comida. Croquete, senhor Diretor! Croquete! Alguém por favor venha me comer. Agora. Quero que me comam agora! O Padre: Isso, come, come mesmo, agora! A Freira: Ai, meu Nosso Senhor Jesus Cristo… Croquete: Saio de cena. Sai da frente que eu tenho pressa. Cansei de tanta gostosura não saboreada [e dá uma reboladinha desdenhosa]. Gorda [pra Falsa Verdade]: Quem é você? Falsa Verdade: Sou a musa dos sofistas, dos mentirosos, dos intelectualóides e, é claro, de professores universitários. [Num gesto james-bondíaco]: Meu nome é Verdade, Falsa Verdade. Diretor: Corta! Como assim “professores universitários”? Penico: Que importa? Hein? O Frio bateu a porta e nos encheu de borboletas secas, frágeis cadáveres que se desmancham ao menor dos ventos. Vomitemos!!! [Todos vomitam por aproximadamente 5 minutos].
Cena VI Penico: Sabe, você é um fracasso. Um completo fracasso. Você não é de nada. Aprenda com os grandes. Veja só. Picasso sim fazia isso direito! O Padre: PI-CAS-SO! Diretor: Picasso era um gênio. Eu não sou um gênio. Penico: E você, é o quê? Diretor: Ora, eu sou um fracasso! Penico: Não, não! Você tem que pechinchar. Eu falei que você é um fracasso, mas você não pode aceitar meu preço logo de início. Manda menos, menos. Diretor: Tudo bem, eu estou confuso! Penico: Confuso? Você está maluco! Diretor: Ei, peraí! Maluco já é demais. Penico: O que você precisa é de audácia. [Entra a Gaiola assobiando]. Gaiola: Venho representar a Loucura, entre outras entidades. Veio a Morte ter comigo. Freira [fazendo o sinal-da-cruz]: Em nome do Pai, do Filho… [A Gorda grita histericamente, até se cansar]. Diretor: E o que disse a Morte? Gaiola: Mandou-me assobiar. Diretor: E… Gaiola: E nada. Vai se aposentar enquanto eu assobio. O Croquete: Oh, não, não… precisamos todos morrer. Diretor [para o Penico]: Audácia eu tenho. [Pega a Gaiola pelo braço]: Vivamos, minha Gaiola, e amemos sempre, sem dar pelo rumor dos velhos severos nem mesmo um centavo! Gaiola: Quem casar-se com A Loucura, apaixonar-se-á pela lua, e pelas estrelas, e pelos vapores. Morrerá sem feedback… Penico: Sei, sei como é. Certa vez apaixonei-me por um peido, mas ele se perdeu no ar, para sempre. Fiquei só paredes… Freira: Cansada, muito cansada disso tudo. [Assumindo ares agressivos e proféticos]: Satanás está reinando neste lugar. Vem Jesus, vem Jesus, vem Jesus… 22
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O Padre [como quem faz uma coreografia do É o Tchan!]: Vem… vem… vem, vem, vem, vem, vem. Uoulll!!! Diretor [filosófico]: Um peido, eis o que somos! Um dia teremos todos desaparecido, para sempre. Nunca, nunca há um peido igual ao outro, assim como nós. Peidemos todos, agora. [Todos peidam longamente por 3 minutos]. Falsa Verdade: a Loucura acha que é a dona da Verdade. E eu te digo que EU sou a Verdade. Gaiola: És tão louca quanto possível! [Toc-toc-toc]. TODOS: Toc-toc o caralho!!! [O padre afasta as mãos em mais ou menos um metro, e faz uma cara de “Nossa!”]. Verdadeira Verdade: Abram a porta!!! Sou o advogado das borboletas que foram malditas e maltratadas nesse recinto. Abram agora! Diretor: Afinal, quem é o personagem principal aqui? [todos se entreolham e fazem um “sei lá” com os ombros]. Gaiola: Vem comigo (pega o Diretor e os dois saem voando, soltando gritos de fios de aço]. Freira [para a porta]: Quem é? Verdadeira Verdade: É a Verdade. Falsa Verdade: De verdade? Verdadeira Verdade: É. [A Gorda empurra e derruba a Falsa Verdade e grita histericamente, puxando as trancinhas. Entra a Verdadeira Verdade]. Verdadeira Verdade: O que fizeram aqui com minhas lepidópteras? Diretor: Perderam-se no redemoinho que produziram, e que em breve nos engolirá a todos. Falsa Verdade: Basta! Vou me apagar agora. Oh, sim, dê-me um cinzeiro. Freira: Tome! Isso mesmo. Livre-se já do fogo do inferno, pois A Hora se aproxima. [A Falsa Verdade se apaga no enorme cinzeiro no canto da sala. Entra a Gaiola]. Gaiola [histérica]: São todos loucos; devem todos morrer! Gorda: Loucos seríamos se confundíssemos filme policial com Jornal Nacional, mas não fazemos isso, certo? Quem aqui sabe se deve se divertir ou não quando vê uma cena de guerra onde um explode a cabeça do outro? Depende do canal, né?! Não, não nos confundimos; não somos loucos. Diretor: Maluco já é demais. Falsa Verdade: Concordo! Penico: Ei, você já morreu! Falsa Verdade: Ah é. [Enfia a cabeça de novo no cinzeiro]. Bule: Calem-se todos. É chegada A Hora. O Padre: Que hora? Bule: A imensa, a grande, a única Hora possível de chegada. A irreconhecível e incomensurável Hora. A Hora que não passa, mas que tem pressa de chegar. [Toc-toc-toc]. [Todos ficam em silêncio, entreolhando-se]. A Hora: Vou arrombar a porta!!! Diretor: Não!!! Você pode causar danos irreversíveis à realidade. Você não leu Moebius? O Padre: Hãn… E o Rola Doida também vem, vem? Freira [para o Padre, agressiva]: Esconjuro-te, seu depravado! Ah, mas o Santo Padre vai saber… seu… gostoso depravado! [e dá uns gritinhos, toda doida]. O Padre [cantando]: O Papa é pop, o Papa é pop… O Penico: e o Diabo é o pai do rock! Falsa Verdade: Adoro o tipo que faz citações. É assim.… tão… IFCH. Penico: Ah, mas essa peça nunca, nunca vai ser encenada. Há certas coisas que não se podem fazer em cena [e todos se entreolham. A Gorda coloca o penico rosa na cabeça.] 23
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Gaiola [mais louca do que nunca]: Quietos! Tenho suas almas acorrentadas, amarradas umas às outras, comigo! Um passo em falso e eu as mordo. Sim, morderei suas almas borrachudas até ter uma indigestão, mas aí vocês serão pedacinhos menores e mais sujos do que já são [gargalhadas loucas e assustadoras, sem cair no estilo bruxa má, mas mais parecido com uma pá alucinada]. A Hora: Abram a porta!!! A Freira [assustada, como quem assiste à realização de uma profecia]: Trombetas, Guardiões, fogo… Miséria e fome sobre a terra. Fome, fome. Cadê o Croquete? Croquete: Ah, nem vem que agora eu não quero mais! Eu sou velho e fresco! O Padre: Isso. Agora ele tá com dor de cabeça, sua borralheira! O Frio: Precisamos morrer. Chamem a morte, rápido! Gaiola [com ar lento e esnobe, lixando as unhas]: Oh, mas ela está muito, muito ocupada. Vocês vão ter que esperar mais um pouco. O Bule: Temos o direito de morrer! Queremos morrer agora! [A Gorda grita um grito longo, seguido de mais alguns gritinhos e depois soluços]. Diretor: É chegada A Hora. O Padre: Tudo bem, tudo bem… Deixa que a Terra come… Humpf! Falsa Verdade: Verdade, façamos as pazes. Bule: Nenhuma paz é possível, nunca, nunca. E também não se pode mudar isso. [A Freira desmaia]. Verdadeira Verdade: Verdade seja dita! A Hora: Andemos. Mal cheguei e já estou atrasada. [O Diretor bate no Bule]. A Freira: Não, deixa comigo. Pensei e decidi: Eu quero ser homem. Jesus era homem. Vem senhor, vem senhor… Transforma-me em tua carne e sangue de gostoso pelado na cruz! O Frio: Toc-toc-toc o caralho!!! O Padre: Ai, nem me phale. [Surge a Gaiola, rodando, desesperada, soltando finos gritos de rubi, mastigando a primeira alma do fio]. Diretor: Pra mim chega! Eu desisto! O Penico: Chega o quê? [Entra A Morte]. Morte [em tom profético]: Só os loucos serão salvos! [A Gaiola se acorrenta a si mesma e grita assustadoramente, como uma besta inanimada.] Freira [já com voz de homem]: Aleluia, aleluia!!! Diretor: Fim, então. Que seja. [A Morte entra pela porta. Morrem todos, exceto a Morte, que dança com a falecida Falsa Verdade. A Loucura aparece e assiste a tudo de longe. A Gaiola grita. A Gorda, nua, levanta-se e fecha as cortinas].
Fim
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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa Brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.
Capítulo 14 No dia 31 de março de 1965 (soubemos da data pelo discurso do Comandante pela manhã, debaixo de uma chuvarada amazônica), ficou claro que o Comandante não parecia ser do time que ganhou, fez um discurso dúbio, defendendo soluções constitucionais e blá blá blá, deve ter sido um daqueles que ficou quieto, agora estava fodido tendo que passar um tempo no Oiapoque, como nós, e toda sua carreira iria para o brejo. Passei a entender seu comportamento complacente com as piadas que fazíamos sobre o golpe. À noite, o Gaúcho convocou os amigos mais próximos para uma surpresa a ser realizada quinze minutos antes do gerador ser desligado. Pensei em qualquer coisa, menos no que ele fez: o enterro simbólico do Castelo Branco, retratado por um boneco tão feio e mal ajambrado quanto o próprio. Ficou atrás das grades cinco dias, mas acabou saindo porque recorreu à tabela. Um ano e meio depois de chegar ao Oiapoque fui solto. Me deixaram em Brasília. Fui aconselhado pelo Gaúcho, sempre bem informado, a não ir para o Rio. Era melhor ficar em Brasília mesmo. Disse-me à noite, debaixo do Ipê Amarelo: — A situação vai radicalizar-se, o Rio será muito perigoso, e, depois, ninguém vai procurar o criminoso ao lado da delegacia, não é tchê? —, e soltou sua risadinha.
Deitei na rede e, lá de cima do Oiapoque, dei uma boa olhada no Brasil. O que vi foi um precipício insondável e eu estava na beirada, precisava parar com aquela rebelião interna desenfreada que acabaria me derrubando de algum avião ou me enterrando numa fronteira degradada qualquer. Não conseguia me entender, não era como o Gaúcho que pensava em ideologia, a mim só interessavam os riscos; Marx, Lenin, Brizola ou Castelo Branco que se danassem, não praticaria qualquer extravagância por eles. O problema era eu mesmo. Pelo tropel dos cavalos do Gaúcho, das duas uma, ou viveria transverso, irregular, com o nome trocado como meu pai, ou acabaria residindo para sempre no subsolo do cemitério do Catumbi, como a maioria dos meus amigos de infância. Precisava decifrar rápido, mas sozinho. Como sempre, olhando para trás, o mais longínquo que conseguisse alcançar uma maneira de viver a vida, sem atropelos, prisões e confusões. Não sei se conseguiria, o Gaúcho achava que não, dizia que eu era muito destrambelhado, não prestava atenção em nada. Queixa de professor. Nesta retrospectiva, não me esqueci do que disse o tal coronel com óculos de intelectual sobre o risco de “andar em cima da linha”, só não entendi porque associou o resultado do teste de QI com loucura! Agora entendo.
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Acordei cedo, ainda escuro, arrumei os poucos pertences: calça de brim Coringa, sapato marrom, camisa de manga comprida, um relógio de pulso e outras bobagens que comprei de uma índia que vendia produtos contrabandeados da Guiana. Sentei na rede, dei uma última apreciada no Ipê amarelo e no Guapuruvu, abracei todos os companheiros e fui me apresentar ao Comandante, com um sorriso preso na garganta e um medo terrível de que algo acontecesse em cima da hora. Ouvi o motor do DC-3 descendo e senti o fedor da fumaça de querosene das lamparinas acesas ao longo da pista esburacada. Nem ouvi a voz do comandante me chamando, ele então saiu do gabinete precário e disse que me levaria até ao avião e que queria me falar algo particular. Algum tipo de conselho, pensei, tipo aqueles que meu pai me dava e entravam por um ouvido e saíam pelo outro. — Lembra-se da sua pergunta no jantar sobre minha vinda pra Fronteira? pois bem vou respondê-la. Sei que pensam que estou aqui por causa da política, você é muito jovem e pensa que só existe a política e a luta pelo poder e imagina que tomei partido de uma das facções e me dei mal. É bom que entenda que existem muitas outras coisas além da política, estou aqui por uma destas coisas, por isso e somente por isso, estou e sempre estive cagando e andando para a política. Política é a arte de prever e tentar obter o comando. O Brasil é imprevisível, tudo pode acontecer, inclusive você obter o comando. Deu uma longa parada, como se não quisesse rememorar alguma coisa e continuou. — Antes de ser transferido pra cá, era professor no Instituto Militar de Engenharia, aquele prédio bonito da Praia Vermelha. Mi-
nha família, assim como de outros professores, residia em um apartamento, num naqueles prédios altos que ficam em frente ao IME. Morava no paraíso e fazia o que mais gostava na vida. Era quarta-feira, estava dando a minha aula de descritiva, sala lotada, minha matéria era muito popular e eu adorava dar aulas, então aconteceu o improvável, o impossível. A moça que tomava conta do meu menino mais novo de dois anos deixou-o escapulir dos seus braços, do sétimo andar. Quando recebi a notícia não acreditei que pudesse acontecer, mesmo durante o enterro achei que não podia ser meu filho, que estava sonhando. Na semana seguinte não pude dar aulas, na outra também não, na terceira semana pedi transferência pra Fronteira. Primeiro foi negada, insisti, falei com o Diretor do IME que precisava me isolar, sair dali, se ficasse iria explodir. Parou de falar de repente e disse: “Vá, seu avião está esperando”. Esticou o braço magro e comprido e apertamos as mãos úmidas, a minha era o medo de dar tudo errado na última hora, a dele, bem, a dele era pra sempre. O Gaúcho estava errado, eu também, o homem não ficou de lado nenhum, quase foi parar na terceira margem do rio. Veio parar neste fim de mundo porque não aguentou arrumar o berço do filho morto, a mulher deve vir logo para ajudá-lo a suportar a dor, dor inesquecível. Saí correndo com a sacolinha nas costas, a alegria por estar solto e o medo de dar tudo errado na última hora. Pensei: o Gaúcho e seu otimismo crônico vão me fazer falta, embora ele tivesse um ditado no bolso que usava a meu favor quando queria ganhar o jogo de vôlei ou me encorajar: “confiança é o que você tem antes de entender o problema”. Meu problema agora era Brasília, uma certa Brasília. ■
Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano
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