O Manto Diáfano nº 15 - 30 de novembro de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 15 ∙ Brasília/DF ∙ 30 nov 2016

Geddel e Temer: a perda de autoridade Trump e o Brasil Ministério público será o novo Procon? Claudio Naranjo e o potencial da meditação Dramatis Personae, uma paródia a Romeu e Julieta

Mapa da Violência no Brasil


4 Trump e o Brasil

6 Revista eletrônica Nº 15 ∙ 30 nov 2016 ∙ Brasília/DF

Ministério Público será o PROCON das denúncias políticas

VERBENA EDITORA CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão Claudio Naranjo Helio Gama Julio Jacobo Waiselfisz Ricardo Prata Soares Walter Sotomayor Wilian Fernandes Pereira EDITORES Arno Vogel Benicio Schmidt Carlos Alves Müller Fabiano Cardoso DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico) FOTO DE CAPA www.pixabay.com – CC0 Public Domain

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

8 A perda de autoridade

9 O Rio Grande do Sul enfrenta sua “Calamidade Financeira”

11 Educação: blindagem contra a violência homicida?

15 O potencial da meditação como uma educação do espírito para além das religiões

20 Dramatis Personae

29 Encaixotando Brasília


EDITORIAL N

este Manto Diáfano trazemos relatório importantíssimo sobre o Mapa da Violência no Brasil, feito pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz e já publicado pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO), em 2016. Neste relatório, em que Waiselfisz nos autorizou a publicar, com extensa base de dados, o autor traça o perfil da violência no País em várias faixas etárias e faz correlação entre a violência e a educação, principalmente nas faixas etárias mais sujeitas à morte, inclusive pelo seu baixo nível de escolaridade. Nosso editor-chefe e cientista político, Benicio Schmidt, faz paralelos científicos baseados em observações para esclarecer quais seriam as relações políticas, comerciais, sociais e econômicas entre os EUA, de Donald Trump e o Brasil, em crise política e econômica que se alonga por mais tempo do que deveria. O cientista político Ricardo Prata Soares faz análise de como o Ministério Público Federal, a partir das novas evidências e conchavos políticos que surgem, pode vir a se tornar o Novo Procon da política brasileira. Walter Sotomayor, jornalista e mestrando pelo Centro de Pesquisas e Pós-Graduação Sobre as Américas e Caribe (CEPPAC), na Universidade de Brasília (UnB), analisa a mais nova crise política entre Geddel Vieira Lima e Michel Temer. Helio Gama, também jornalista e correspondente direto riograndense, analisa as medidas que serão tomadas pelo governador do RS, José Ivo Sartori, para tirar o estado da “calamidade financeira” em que se encontra. Do livro A Revolução que Esperávamos, de Claudio Naranjo, trazemos trecho acerca da meditação como elemento para a educação religiosa e social. Como este método milenar pode nos ajudar não apenas a aguentar, mas a viver os dias dadivosos que temos. De Wilian Fernandes Pereira trazemos peça teatral sobre uma paródia filosófica-atemporal-psicodélica de Romeu e Julieta.

Em Encaixotando Brasília, de Arnaldo Barbosa Brandão, nosso herói finalmente sai da prisão do fim do mundo e chega a Brasília, onde tenta adaptar-se a uma nova cidade sem esquinas, sem gente, mas com setores para tudo. Boa leitura!


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Trump e o Brasil Benicio Schmidt – Editor e cientista político

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Grosso modo, Trump vocalizou os interesses imediatos das massas excluídas da globalização econômica, dentro do território norte-americano. Uma reação impulsiva, sem a devida atenção aos demais efeitos que certamente virão ou a falta de atenção às promessas irrealizáveis de Trump como presidente. Entre as consequências problemáticas, certamente estarão a falta de apoio aos órgãos específicos da Organização das Nações Unidas (ONU) quanto ao Tratado do Clima, os tratados que dizem respeito ao processo de minorias e imigrantes; bem como pela agressividade protecionista que será projetada sobre a Organização Mundial do Comércio (OMC), com o recrudescimento de políticas nacionalistas, evitando a complacência comercial exercida por Obama como presidente. Aliás, e anterior à posse de Trump, a OMC já puniu o Brasil nesta última semana por causa das políticas de isenção tributária e outros deferimentos fiscais aos produtores de mercadorias exportáveis; ainda que caiba recurso dessa decisão, com poucas chances de êxito. Trump será instrumento de forja de uma nova ordem mundial, especialmente pelo novo jogo que será estabelecido pelas relações da União Europeia, China e Rússia com os Estados Unidos. Putin apoiou com entusiasmo sua candidatura, pois pretende afastar as limitações impostas à Rússia depois das ações de Putin na Ucrânia e na Crimeia. Há aí

eleição de Donald Trump a presidente dos Estados Unidos foi tida como improvável pela maioria da imprensa norte-americana e mundial, por várias razões. As pesquisas apontavam para fácil vitória de Hillary Clinton. Erraram porque seus métodos de coleta de informações não eram seguros: amostras que teriam de respeitar as peculiaridades dos estados do país não seguiram os manuais, os eleitores de Trump tinham constrangimento ou medo de declararem seus votos em um ambiente tão pressionado pela mídia (jornais, TV e redes sociais), e assim por diante. Trump propôs a “mudança” por meio de uma campanha errática, sem programa definido, mas com itens que cativaram – pela emoção – a grande parte dos excluídos e não-identificados com as elites financeiras beneficiadas pelo movimento mais recente de globalização dos interesses norte-americanos: intensa e extensa participação em atividades militares além das fronteiras, desde o primeiro governo George W. Bush, especialmente a guerra do Iraque e o desmantelamento da Líbia de Khadafi, deslocamento de indústrias nacionais para a Ásia em busca de custos mais baixos de reprodução do capital (baixos salários, isenções tributárias e favorecimento às exportações desde as novas bases) e também pelo relaxamento da legislação que manteve impunes os agentes bancários e financeiros responsáveis pela crise de 2008-2009, com efeitos pertinentes até hoje.

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interesses cruzados entre empresas russas e norte-americanas no campo de exploração de petróleo e gás, que necessitam do poderio russo frente à Ucrânia; de modo especial Obama foi sempre reticente em apadrinhar ostensivamente a estes interesses. Não será o comportamento de Trump, certamente. E isso poderá gerar novas alianças, uma vez que China e Rússia estão se entendo bem a respeito do Báltico e frente às pretensões armamentistas do Japão. O que fará os Estados Unidos de Trump, diante deste novo quadro internacional? Muito provavelmente haverá novo engajamento militarista com os desígnios de uma ordem mundial, com Trump já tendo se pronunciado a favor de dobrar o orçamento militar norte-americano, dos atuais US$ 865 bilhões para US$ 1,6 trilhões. Hoje o orçamento militar dos USA é dez vezes superior ao da Rússia; o que o faria mais de 20 vezes superior, com graves potencialidades de expansionismo, do que áreas não-ostensivamente ocupadas pelos USA no mundo de hoje. De outro lado, Trump ameaça taxar (35% a 45%) as importações da China e do México, de modo particular. Ocorre que parte razoável destas importações é originada de empresas norte-americanas. Taxaria ele os empresários americanos no Exterior? Suportaria ele a pressão dessas empresas, em verdadeira dupla-tributação para entrar no mercado nacional norte-americano? Problemas graves à vista. Resta projetar a situação dos “países emergentes”, como o Brasil. Certamente. As pressões pelo estabelecimento de bases militares em nosso território aumentarão, já que é um sonho antigo das autoridades militares norte-americanas. O regime de exportação de mercadorias brasileiras, principalmente insumos e commodities, aos Estados Unidos será prejudicado pelas taxações extraordinárias prometidas. Além disso, certamente, forças políticas conservadoras locais no Brasil terão tratamento diferenciado por parte de organismos norte-americanos, por exemplo, as Ligas e Associações que promovem a luta contra o aborto, a estatização dos serviços de saúde e assistência social. Aqui no Brasil estas forças terão mais apoio por parte do Governo Trump, na contracorrente dos movimentos sociais que têm conseguido relativo êxito, seja por decisões do Supremo Tribuna Federal, seja por decisões oriundas do próprio Congresso Nacional. ■

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Ministério Público será o PROCON das denúncias políticas Ricardo Prata Soares – Cientista Político

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m primeiro lugar, denúncia é diferente de delação. Nos próximos dias vamos conviver com interesses duvidosos ou ingênuos de confundir os dois atos. Antes da constituição que criou os ministérios públicos (união, federal, estadual e municipal) os cidadãos tinham como única solução para reclamar dos erros e malfeitos de governantes e funcionários públicos procurar a imprensa, rádios e TVs. Já a delação, ou alcaguetagem, se referia a pessoas envolvidas com quadrilhas, crimes e atos imorais que pretendiam colaborar com as polícias para abrandar ou se livrar de seus comprometimentos. Depois surgiram as Ouvidorias dos próprios órgãos públicos que se especializavam em receber denúncias e tomar providências internas. Mas elas pouco prosperaram embora tenham introduzido uma forma de garantir sigilo aos cidadãos denunciantes e uma facilidade de acesso das denúncias. De maneira complementar apareceram os números resumidos de telefones para denunciar crimes, roubos, estupros, pedofilia, palmadas em filhos… mas sobretudo denúncia para as delegacias de mulheres (lei Maria da Penha). Em segundo lugar, não vamos nos esquecer da crise estrutural da Opinião Pública. Me basta lembrar da obra de Habermas, na versão espanhola chamada de História da Opinião Pública e na versão brasileira (feita pelo Portela, se não me engano – meu livro está emprestado) ficou chamado de A Crise Estrutural da Esfera Pública. Ou se quiserem basta recordar deste tema preferido pelo Tarso Genro em artigos e muito bem acompanhado pelo Cesar Maia. O fato é que o Estado invadiu o espaço da opinião pública, secularmente esfera da sociedade civil e dos jornais. Começou (e sou deste tempo) com as ‘informações

de utilidade pública’ e falava de novas tarifas, apagão controlado de energia elétrica, passando por novos programas do BB. Depois passou a dar suporte aos slogans dos governos. E finalmente descambou com a artilharia de propaganda governamental. O governo Dilma extrapolou tudo e pisou em cima do espaço público se apropriando dele quase por completo (profecia do Habermas) e até invadindo as Redes Sociais com articulistas bem pagos e mal contratados. Paralelamente foi criado por lei o PROCON como forma de se fazer reclamações, mas isto atinente aos consumidores ou referente aos serviços de empresas privadas. O PROCON nasceu por obra e graça do Geraldo Alckmin, enquanto deputado. Logo nos primeiros anos foram milhões de reclamações dirigidas ao órgão. Alguns políticos aproveitaram enormemente deste novo ‘espaço ou esfera’. O caso mais brilhante foi o de Russomano, se tornando um algoz das maracutaias das empresas privadas. Mas como ele nunca soube passar para promessas políticas, começa bem e acaba morrendo na praia. Lula, ao contrário, soube capitalizar o consumo dos pobres, inventou a classe ‘C’ em ascensão (em parte por conta da sobrevalorização da moeda Real face ao dólar e às importações crescentes de produtos de consumo). O aumento efetivo do salário mínimo foi decisivo, mas Lula chegou a prometer que pobre iria andar de avião em um de seus arroubos demagógicos. Mas ficaram de fora as reclamações de buracos de ruas e rodovias, as falhas do atendimento do SUS, a precarização do ensino fundamental, e outros tantos exemplos que poderíamos dar. Mas aproveitando o caso da educação, os jovens estudantes pobres (aliados a professores oportunistas) se viram na contingência de ocupar seus espaços: 6


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os prédios das escolas. Diga-se de passagem, foi o efeito retardado das jornadas de junho de 2013, pelas catracas livres e pela redução da tarifa de ônibus. Mas é claro que estas reivindicações e ocupações de espaço não podiam reconstruir a Esfera Pública, mesmo porque os políticos ficaram de fora. Finalmente, a partir de 1988, as denúncias dos cidadãos passaram a ser encaminhadas timidamente para o Ministério Público por terem o poder de oferecer denúncia pública de crimes políticos e administrativos. Durante as investigações, a partir de denúncias dos cidadãos, surgiram oportunidades de pessoas envolvidas no crime de fazerem delações e negociar suas informações para reduzir suas responsabilidades. Criou-se então a lei da ‘colaboração premiada’, promulgada por Dilma. Assim, delação tem a ver com réus ou investigados. O que importa aqui, lembrada a diferença conceitual de reivindicação ou demanda, é que a Lei Popular da Ficha Limpa colocou nos braços do MP os recursos de denúncias ao nível municipal e estadual contra a compra de votos, sobretudo. Talvez muitos não tenham observado as chamadas do MP nos informativos dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) nesta última eleição. E nem tenha observado o alto crescimento das intervenções dos promotores suspendendo candidaturas e até cassando prefeitos eleitos, como foi o caso de Belém. Eu acordei, na verdade, foi com um movimento na forma de abaixo assinado aqui na praia de Pipa, dirigido ao Ministério Público para poder limpar algumas praias entupidas de comércio ilegal, até a beira-mar, de passeios de lanchas que levam turistas para ver golfinhos. A lei da colaboração premiada abre um espaço para denúncias complementares às investigações dos promotores por pessoas não envolvidas, mas que precisavam de proteção. Estas formas de proteção ao colaborador são incipientes no Brasil. Afinal eles podem sofrer retaliações dos denunciados, especialmente de quadrilhas e grupos de criminosos e até das PMs e Prefeituras. Infelizmente as formas de colaboração com a Justiça rapidamente ganharam o apelido de delação. E houve até o péssimo exemplo da ex-presidente que repudiou os atos de colaboração dando-lhe o significado popular de dedo-duro e sob um contexto passado que a levou à prisão. Mas não se esqueçam que o denunciante do posto de gasolina (lava a jato) em Brasília, encaminhado a Curitiba, continua escondido ou protegido na Califórnia.

No dia da votação dos novos controles da corrupção, na comissão, eu assisti um orador do PT voltando à carga de desvirtuação do conceito de denúncia, recorrendo até a uma marchinha de carnaval. E eu pergunto: os cidadãos incomodados com crimes e malfeitos devem ficar calados? A quem devem recorrer para tentar melhorar a qualidade de serviços e redução da corrupção? Até onde eu sei os cidadãos podem passar informação até com sigilo para a imprensa ou ligar para a ouvidoria, se houver no caso, e finalmente procurar o Ministério Público. Repito, este último caminho foi muito difundido nas eleições recentes como forma de denúncia de compras de votos e atos criminosos de candidatos. Assim imagino que o MP passará a ser o canal fortalecido para as denúncias de cidadãos cumpridores de seus deveres e sem nenhum envolvimento com crimes. E, portanto, não são delatores ou dedos-duros e precisam de proteção da Justiça. Basta estender o assunto para denúncias de pedofilia, estupros e maus tratos de crianças. Isto é alcaguetagem? Basta lembrar da torcida pela aplicação da Lei Maria da Penha, das campanhas e denúncias contra turismo sexual com adolescentes e outras tantas mais. Não tenho dúvidas que a sociedade civil não irá mais recuperar sua Opinião Pública, na forma anterior. Poderá fazê-lo utilizando-se das redes sociais, onde os cidadãos, agrupados em ‘grupos de amizade’, difundem o que interessa do noticiário político (artigos, reportagens, comentários, análises recortadas ou por inteiro, além do recorte de vídeos de TVs, sem esquecer a abundância de charges). Mas no momento o que se faz é negar as intervenções do Executivo e aderir ao Judiciário, não ao seu todo, mas na supervalorização do papel de poucos juízes que passaram a atingir os governos passados e o atual, a partir do caso Petrobras. Moro se tornou o herói vingador dos descalabros do Executivo, com maracutaias mil e com as diversas formas de 171 eleitoral. Lembrai que os eleitores sempre detestaram os políticos que ‘prometem e não cumprem’ e até aderiram temporariamente ao ‘rouba mas faz’. Temos então um deslocamento institucional do papel de ingerência do Executivo na Opinião Pública para o Ministério Público Federal. De Adhemar de Barros até agora, o contra-slogan passou a ser “rouba e não faz nada ou faz errado”. Enfim, o feitiço virou contra o feiticeiro. ■ 7


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A perda de autoridade Walter Sotomayor – Jornalista

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incerteza é a principal característica da política nacional em 2016. Ao longo das três últimas décadas de aprendizado democrático, o Brasil já viveu essa situação inúmeras vezes e a incerteza deu lugar à confiança no futuro. O primeiro trauma, após o longo período autoritário, ocorreu às vésperas da mudança. O presidente que fora escolhido acabou na UTI e uma figura inesperada assumiu o comando da transição. Parecia que o destino se empenhava em enganar o povo. Anos depois, o exterminador de marajás se convertera no principal marajá. As evidências de recebimento de propina eram frágeis, mas todos tinham certeza de que o chefe da nação preferira ser um chefe de quadrilha. Novo trauma nacional. Em 2016, uma nova mudança, ainda mais traumática, levou ao governo um político que convertera seu partido em uma máquina oportunista, sem projeto, sem a perspectiva da grandeza que é esperada dos estadistas. Ele tinha um déficit de legitimidade porque muitos, petistas ou não, achavam que chegara de maneira pouco ortodoxa ao cargo. Ele acreditava, assim como boa parte da população, que poderia erguer um governo abraçando algumas causas, como a luta contra a corrupção, o ajuste fiscal e a retomada de um grau mínimo de normalidade antes das próximas eleições. Bom, se a legitimidade era um problema, depois do episódio Geddel Vieira Lima, agora, o problema é de autoridade. O Brasil todo ficou sabendo que o Presidente da República pressionou o ministro da Cultura para atender o amigo, o Secretário de Governo, porque este estava “muito irritado”. Nunca antes havíamos visto um presidente agindo para evitar a irritação de um comandado. Em uma semana todos ficaram sabendo que o ministro contrariado tinha interesse pessoal na construção de um prédio cuja altura seria uma agressão ao patrimônio histórico nacional, além de quebrar normas de um órgão regulatório. O ministro se defendeu alegando que a

proibição promoveria insegurança jurídica e tiraria o emprego de muita gente. Para piorar a situação, o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, sugeriu que o caso fosse levado ao exame da Advocacia Geral da União, como se o prédio em questão fosse um bem público que se encontrasse ameaçado. Houve, como se vê, uma sucessão de equívocos, amplificados a todo o país ao longo de uma semana. Se havia baixa legitimidade, agora foi constatada ausência de autoridade. Um homem educado na obediência às leis parecia não compreender que elas devem ser cumpridas, inclusive pelos poderosos. Logo ele, que chegara à presidência exibindo a habilidade política, fruto de anos de aprendizado no Congresso, como uma de suas principais virtudes, operava como um amador. Sobre a habilidade política do presidente, Cora Ronai escreveu em O Globo: “Uma pessoa verdadeiramente dotada de habilidade política conhece, enfim, os limites do seu poder, e percebe a extensão da paciência dos cidadãos, mas Temer desconhece uns e ignora a outra.” Políticos de primeira linha, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e segundo na linha de sucessão, partilham desse mesmo modo de encarar as coisas. Maia deu por encerrado o caso, uma vez que considerava o ministro como peça chave para ajudar na formação de maiorias no Congresso, e que, segundo ele, não houve nada grave porque, afinal, a proibição para construção do prédio fora revista. Como registrou Cora Ronai, “para ele, tráfico de influência só é crime quando o traficante logra o seu intento”. Em 2016, o Brasil está mal de presidente e pior de vice, mas será necessário entender que o mau momento será superado. Na sexta-feira passada, após um almoço no Palácio da Alvorada, o ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, resumia a situação: “é o que tem”. Quer dizer, estamos mal e por enquanto não tem saída, registrando a resignação com a fragilidade do atual governo que esconde também o medo pelo desconhecido. ■

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O Rio Grande do Sul enfrenta sua “Calamidade Financeira” Helio Gama – Jornalista

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governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, anunciou na segunda-feira, 22 de novembro de 2016, com pompa e circunstância, um amplo conjunto de medidas que recebeu o nome de “Um novo Estado”. Com elas, o governo regional pretende vencer o que o próprio Sartori chamou de “Calamidade Financeira”, ou seja, a situação virtualmente falimentar da administração estadual gaúcha. O pacotão anunciado envolve muitas mudanças na estrutura do estado. Das 29 secretarias no governo anterior, o Rio Grande do Sul está com 20 e agora vai fechar outras três, passando para 17 secretarias. Das 19 fundações estaduais, 9 serão extintas, das 7 autarquias, 2 deixarão de existir e das 11 companhias estaduais a promessa é de extinguir uma e privatizar (ou federalizar) quatro. Também foram anunciadas dezenas de outras medidas que mudam ou alteram regras referentes ao serviço público e ampliam o ajuste fiscal. A iniciativa recebeu muitas aprovações porque pode promover cortes cavalares nas despesas. Mas também está sob uma saraivada de críticas severas tanto da oposição ao governo, na Assembleia Legislativa, quanto de técnicos e setores da sociedade civil. Estes, sem levar em conta ainda o conteúdo principal do programa acharam importante destacar a priori o atraso do governo para propor grandes mudanças apenas no início da segunda metade da gestão e suas naturais implicações. Entre estas não pode ser subestimado o fato de a base parlamentar de Sartori não demonstrar mais a unidade que garantiu a aprovação de outros projetos difíceis no começo da administração, como são os casos do PDT, PSDB e DEM, que se movimentam para disputar o

governo estadual em 2018, embora ainda não contem com os nomes de candidatos. Também existem sérias dúvidas sobre alguns dos capítulos que constam do “Novo Estado”. Algumas críticas se dirigem à insignificância de algumas mudanças proposta, como nos casos da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (FEPPS) cujo custo é zero, e a Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, (FIGTF) com custo anual de R$ 500 mil. Alguns setores da sociedade criticam com vigor, também, outras três mudanças: a) virtual extinção da Agência Gaúcha de Desenvolvimento e Promoção do Desenvolvimento (AGDI), considerada vítima de uma mistura letal entre miopia na observação da realidade e incompetência na gestão. Isto porque no século XXI cresce a globalização e seria exatamente a AGDI quem deveria exercer os papéis de desenvolver as relações internacionais do Rio Grande do Sul e atrair investidores, trabalho que poderia representar muitos bilhões de dólares; b) a suposta paralização das TVE e Rádio Cultura. A maior objeção é que os governos rio-grandenses não conseguiram compreender que suas emissoras não deveriam ser consideradas como estatais, como fizeram, mas instituições públicas, o que demandaria outra estrutura administrativa e financeira, sem custos para o Tesouro; e, por último, mas não menos importante, c) a extinção da Fundação de Economia e Estatística (FEE). Afinal, embora seja preciso reconhecer que a Fundação não realiza um bom trabalho, sua existência, em outras condições, é fundamental para

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a sociedade porque ninguém sabe para onde vai se não souber onde está. E é exatamente este o objetivo dos órgãos aos quais competem coligir os dados a respeito da evolução da economia e da sociedade, por exemplo, com eficiência e em tempo hábil. O governo também propõe várias mudanças no funcionamento da máquina estatal, como a eliminação da remuneração dos funcionários cedidos aos órgãos classistas sem que exerçam suas funções originais. Também mudam as licenças-prêmios, reduzidas, e acabam os adicionais por tempo de serviço. Mas o governo foi tímido ao tratar da questão da contribuição previdenciária, pois manteve o direito ao recebimento de salário integral mediante a contribuição de 14% (os contribuintes pagam outros 28% como contribuição do Estado). E também não propôs medidas para o estabelecimento da meritocracia no sistema de remuneração. Mas, em compensação, foi estabelecido um teto para o pagamentos de aposentadorias e pensões, cuja soma, agora, não poderá ultrapassar o limite legal de salário (pouco mais de R$ 30 mil, atualmente). E ainda são estabelecidas uma série de restrições ao pagamento de vantagens que, aliás, eram indefensáveis, para servidores civis e militares. Além de uma providência da maior importância que estabelece que o repasse dos famosos duodécimos aos “Poderes e Órgãos serão calculados pela Receita Corrente Líquida efetivada, limitados ao orçamento previsto”. Sartori também incluiu no pacote várias mudanças na área de benefícios fiscais. Mas o governo, segundo alguns observadores, perdeu uma grande oportunidade para anunciar ações oficiais que resultem no crescimento econômico e social do Estado com o apoio da iniciativa privada, como na infraestrutura, por exemplo. ■

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Educação: blindagem contra a violência homicida? Julio Jacobo Waiselfisz – Cientista Político

1. Introdução Os diversos mapas da violência publicados a partir de 1998 permitiram evidenciar que a violência homicida no país vem avançando de forma progressiva e assustadora, atingindo na atualidade níveis de verdadeira pandemia com sua taxa que ronda os 30 homicídios por 100 habitantes. As mesmas evidências apontam que em todos os agrupamentos estudados – crianças, adolescentes, jovens, mulheres etc. – o Brasil se encontra entre os 10 países mais violentos do mundo, chegando ao extremo de afirmar que: No Brasil, país sem disputas territoriais, movimentos emancipatórios, guerras civis, enfrentamentos religiosos, raciais ou étnicos, conflitos de fronteira ou atos terroristas foram contabilizados, nos últimos quatro anos disponíveis – 2008 a 2011 –, um total de 206.005 vítimas de homicídios, número bem superior aos 12 maiores conflitos armados acontecidos no mundo entre 2004 e 2007. Mais ainda, esse número de Homicídios resulta quase idêntico ao total de mortes diretas nos 62 conflitos armados desse período, que foi de 208.349.

Foto: <a href="https://pixabay.com/en/users/Makri-236257/">Makri</a> via <a href="https://visualhunt.com/">Visual hunt</a>

a) algum indicador de níveis educacionais (cobertura escolar, anos de estudo da população, proporção da população que finalizou o ensino fundamental ou médio etc.) da cidade, ou município, ou região; b) taxas de homicídio dessa mesma área. A partir dessas associações aglomeradas os resultados são bem decepcionantes. Pouco ou nada pareceria muita explicação neste campo. Uma das poucas exceções a essa regra é o excelente trabalho de Serguei Dillon Soares, de 20071, do qual este estudo é devedor. Nas palavras do próprio autor:

Em função dessas magnitudes, de seu impacto social, político, econômico, na saúde pública etc. resulta surpreendente a enorme escassez de estudos e de fontes de informação sobre o tema, quando comparado com outras áreas. Menos frequentes ainda são os estudos sobre as causas e/ou determinantes desses elevados níveis de violência homicida no país, notadamente, os níveis educacionais. E os poucos que existem o fazem relacionando indicadores aglomerados:

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O texto consiste tanto de uma análise exploratória que compara as taxas de mortalidade por homicídio por idade para diferentes níveis de instrução formal, quanto de uma análise de regressão para achar coeficientes de correla-

DILLON SOARES, Serguei. Educação: Um escudo contra o homicídio. IPEA. Textos para Discussão 1298. Brasília, 2007.

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ção parciais. As regressões são estimadas com a utilização de dados agrupados e pareados por células definidas por sexo, idade, região de residência, cor e escolaridade. Estimou-se um modelo linear de probabilidade de uma regressão logística. O texto reforça três resultados já conhecidos. O primeiro é que mulheres sofrem de homicídio a uma taxa quase dez vezes inferior à dos homens. O segundo, que negros têm maior probabilidade de morrer vítimas de homicídio do que brancos. O terceiro é que jovens entre 16 e 36 anos perfazem o grande grupo de risco para a morte por homicídio. O principal resultado inovador é que a escolaridade reduz significativamente o risco de morte por homicídio, embora sua magnitude mais exata dependa do modelo estimado.

Outra informação relevante, exigida pela legislação, é a causa da morte. Tais causas são registradas pelo SIM, seguindo os capítulos da Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). A partir de 1996, o Ministério da Saúde adotou a décima revisão da CID, que continua vigente até os dias de hoje (CID-10). Este trabalho centrar-se-á nos homicídios que, de acordo com a última classificação da OMS, abrangem as categorias X85 a Y09: agressões intencionais (homicídios); População por Nível Educacional e Idades para o cálculo das taxas: a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) anualmente, salvo em anos censitários, coleta informações populacionais numa amostra representativa por Unidade Federativa (UF) em aproximadamente 100 mil domicílios e 400 mil pessoas de todas as idades. Para as análises do presente estudo foram selecionadas as vítimas de homicídio de 15 ou mais anos de idade, por terem sua situação educacional relativamente consolidada e, de modo que a única referência ao tema que consta nas Declarações de Óbito agrupa os dados, deve-se obrigatoriamente utilizar esse agrupamento como referência.

Talvez pelas técnicas sofisticadas utilizadas ou talvez não fosse essa a intenção do autor, mas o trabalho não teve a devida repercussão na época.

2. Metodologia Se a abordagem utilizada neste estudo é diferente da utilizada por Dillon Soares, as fontes empregadas foram as mesmas, inclusive por serem praticamente as únicas existentes para os indicadores analisados: Homicídios: a fonte básica para a análise da mortalidade no País, em todos os Mapas da Violência até hoje elaborados, é o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde (MS). Pela legislação vigente, nenhum sepultamento pode ser realizado sem a Certidão de Óbito correspondente, lavrada à vista da Declaração de Óbito, preenchida por médico ou, na falta dele, por duas pessoas qualificadas que tenham presenciado ou constatado a morte. As Declarações de Óbito, um instrumento padronizado nacionalmente, são coletadas pelas secretarias municipais de saúde, transferidas para as secretarias estaduais de saúde e centralizadas posteriormente no SIM/MS. Essa Declaração fornece dados relativos à idade, ao sexo, ao estado civil, à profissão e ao local de residência da vítima. Também informa o local da ocorrência da morte, dado utilizado para desenvolver o presente estudo.

FAIXAS DE ANOS DE ESTUDO: »» »» »» »»

0 a 3 anos de estudo; 4 a 7 anos de estudo; 8 a 11 anos de estudo; 12 e mais anos de estudo.

Em razão das grandes diferenças nos resultados deve-se agrupar as vítimas em 4 grandes grupos etários que representam fases diferenciadas do ciclo de vida: FAIXAS ETÁRIAS DAS VÍTIMAS DE HOMICÍDIO: »» »» »» »»

15 a 19 anos de idade; 20 a 29 anos de idade; 30 a 59 anos de idade; 60 e mais anos de idade.

O mecanismo proposto é relativamente simples: a) estimar as taxas de homicídio para cada faixa de escolaridade registrada na declaração de óbito; b) comparar as taxas de homicídio, calculando a diferença percentual entre as faixas extremas (de 0 a 3 anos de estudo e 12 anos ou mais);

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c) essa diferença percentual constitui a probabilidade diferencial de ser vítima de homicídio.

educacionais mais elevados. Vê-se, assim, que jovens de 15 a 19 anos de idade que têm 0 e 3 anos de estudo (analfabetos ou com alfabetização deficitária) têm 4.473% a mais de chances de morrer assassinados do que aqueles que têm 12 e mais anos de estudo (finalizaram o ensino médio ou mais). De forma proporcional ao tamanho de ambos os universos, por cada jovem de 15 a 19 anos com 12 ou mais anos de estudo vítima de homicídio morrem 46 com 0 a 3 anos de estudo.

3. Resultados Os resultados para esses quatro grandes grupos etários serão expostos a seguir: JOVENS DE 15 A 19 ANOS DE IDADE Pode-se ver pela tabela 1 que, segundo os registros do SIM, no ano de 2014, morreram um total de 7.708 jovens de 15 a 19 anos de idade vítimas de homicídio. Para uma população estimada pela PNAD de 17,4 milhões nessa faixa etária, ter-se-ia uma taxa de homicídio de 44,3%0002 de jovens de 15 a 19 anos. Taxa bem acima da média nacional para todas as idades, que nesse ano foi de 29,4%000. a) 1.726 desse desses jovens assassinados só tinham de 0 – nenhum – a 3 anos de estudo. Para uma população estimada pela PNAD de 657 mil jovens nessa faixa etária há uma taxa de homicídios de 262,7%000 jovens de 15 a 19 anos de idade que tinham entre 0 e 3 anos de estudo; b) no extremo oposto, jovens com 12 anos ou mais de estudo registraram um total de 34 vítimas nesse ano de 2014. Para uma população com esse nível de estudos de 591,9 mil, teríamos uma taxa de homicídios de 5,7%000 absolutamente inferior à faixa anterior.

JOVENS DE 20 A 29 ANOS DE IDADE Pelas evidências disponíveis é nesta faixa etária que a vitimização por homicídio atinge sua máxima expressão. Com um total de 16.591 vítimas na população de 31,3 milhões de jovens de 20 a 29 anos de idade, resulta numa taxa de homicídio 52,9 homicídios. Todavia, essa é a faixa etária em que a blindagem educacional atinge seu máximo nível de proteção. Tabela 2. Anos de estudo das vítimas de homicídio de 20 a 29 anos de idade e probabilidade (%) de vitimização por homicídio. Brasil, 2014. Anos de estudo

Anos de estudo de 0 a 3 de 4 a 7 de 8 a 11 12 e mais Total

Vítimas de homicídio Número 1.726 4.473 1.475 34 7.708

% 22,4 58,0 19,1 0,4 100,0

População na faixa de anos de estudo

Taxa Número % %000 262,7 657.048 3,8 107,7 4.152.428 23,9 12,3 12.008.608 69,0 5,7 591.876 3,4 44,3 17.409.960 100,0

%

Taxa %000

Número

%

Probabilidade diferencial de homicídio (%)

3.713

22,4 264,0

1.406.481

4,5

6.516

de 4 a 7

8.234

49,6 198,0

4.158.042

13,3

4.863

de 8 a 11

4.339

26,2

23,9 18.137.213

57,9

500

24,4

Total

305

1,8

16.591

100,0

4,0

7.643.609

52,9 31.345.345 100,0

Se a taxa de homicídios para o grupo de 12 anos ou mais de estudo foi de 23,4%000 e a de 0 a 3 anos de estudo de 264%000, a probabilidade diferencial para essa faixa etária é de 6.516%, isto é, de 1 para 66!

Probabilidade diferencial de homicídio (%) 4.473 1.775 114 –

ADULTOS DE 30 A 59 ANOS DE IDADE. Já para a faixa etária adulta essa capacidade protetiva perde ímpeto, mas não é de se jogar fora, pesem as dificuldades de adultos recomeçar a estudar: »» na faixa de 12 anos e mais de estudos, a taxa de homicídios em 2014 foi de 4,1%000;

c) a última coluna da tabela – probabilidade diferencial de homicídio – quantifica a relação entre esses extremos de tempo de estudo, tomando como base as taxas de homicídio dos que possuem níveis

2

Número

População na faixa de anos de estudo

de 0 a 3

12 e mais

Tabela 1. Anos de estudo das vítimas de homicídio de 15 a 19 anos de idade e probabilidade (%) de vitimização por homicídio. Brasil, 2014.

Vítimas de homicídio

O símbolo %000 representa “por 100.000” indivíduos da população de referência.

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»» Na faixa de 0 a 3 anos de estudo, de 41,6%000; »» O diferencial foi de 912%, isto é, 1 para 10. Proporcionalmente ao tamanho de ambas populações, por cada “educado” vítima de homicídio houve 10 vítimas no grupo de baixa ou nula escolaridade.

4. Considerações finais Tema atual de discussões e controvérsias, a diminuição da maioridade penal e suas sequelas ganham as ruas e o imaginário de diversos segmentos da população. Construir mais cárceres, mais delegacias especializadas, mais necrotérios e mais punição são as saídas aconselhadas por essas propostas. Com escasso embasamento e nenhum estudo que aponte a necessária eficiência dessas políticas. Mas os dados oficiais disponíveis estão a nos apontar os caminhos a seguir, se realmente se quer pensar em um futuro para os jovens. Não serão delegacias especializadas, nem encarceramentos massivos que permitirão superar a onda de violência que afeta e atemoriza a população. Será o singelo e histórico ato de escolarizar, avançar com a educação para a juventude que irá resolver diversos problemas com um ato apenas: cimentar o desenvolvimento econômico, social e político do país, o que não é pouca coisa. Houve a oportunidade de evidenciar que essa capacidade protetiva, essa blindagem que o nível educacional permite, concentra-se primordialmente na faixa jovem, precisamente o setor mais afetado, de longe, pela violência homicida. ■

Tabela 3. Anos de Estudo das vítimas de homicídio de 30 a 59 anos de idade e probabilidade (%) de vitimização por homicídio. Brasil, 2014

Anos de estudo

Vítimas de homicídio Número

%

População na faixa de anos de estudo

Taxa %000

Número

%

Probabilidade diferencial de homicídio (%)

de 0 a 3

5.638

32,5

41,6

13.568.797

16,5

912

de 4 a 7

6.889

39,8

37,6

18.301.972

22,3

817

de 8 a 11

4.130

23,8

12,1

34.086.815

41,5

195

12 e mais

667

3,9

4,1

16.249.249

19,8

17.324

100,0

21,1

82.206.833 100,0

Total

IDOSOS DE 60 E MAIS ANOS DE IDADE Continuando a tendência vista na faixa anterior, aqui o diferencial protetivo é o menor em todas as faixas etárias analisadas: 86%, ou seja, para cada vítima na faixa superior morrem quase 2 na faixa inferior. Tabela 4. Anos de Estudo das vítimas de homicídio de 60 e + anos de idade e probabilidade (%) de vitimização por homicídio. Brasil, 2014

Anos de estudo de 0 a 3

Vítimas de homicídio Número 848

Taxa %000

% 51,1

6,8

População na faixa de anos de estudo Número 12.397.042

% 44,5

Probabilidade diferencial de homicídio (%) 86

de 4 a 7

467

28,1

6,1

7.652.699

27,5

66

de 8 a 11

242

14,6

4,8

5.019.706

18,0

31

2.797.855

10,0

27.867.302 100,0

12 e mais Total

103

6,2

3,7

1.660

100,0

6,0

http://www.allabroad.org/

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O potencial da meditação como uma educação do espírito para além das religiões Claudio Naranjo

O

assunto deste artigo faz parte de um tema mais amplo. Assim como no plano individual coexistem a vida e a patologia, também na escala coletiva, ao mesmo tempo, evoluímos e somos arrastados por uma patologia global, espécie de câncer da comunidade e da história. O cogitar sobre o potencial aporte da meditação a um futuro processo educacional, enquadra-se, igualmente, na proposição de que, se por detrás das múltiplas manifestações do problema do mundo está o descuido da consciência, daí resulta a importância de se abordar a mudança social mediante uma reforma da educação.

A Revolução que Esperávamos

I

Claudio Naranjo Verbena Editora

Um dos aspectos da meditação é a quietude; o estancar da corrente do pensamento. Estamos sempre em movimento, estamos sempre fazendo isto ou fazendo aquilo. E não nos damos conta da nossa compulsão de fazer, cuja forma mais sutil é a compulsão de gerar pensamentos e, também, o desejo compulsivo de encher o vazio do nosso ser com algo do passado ou do futuro: o próximo movimento, a próxima coisa, o próximo projeto, a próxima realização… Pascal dizia, há séculos, que o problema do mundo é que as pessoas não conseguem ficar quietas nos seus aposentos, e creio que tinha mais razão nisso do que usualmente se logra compreender. Em cada pessoa há uma falta de paz e a sua correspondente incapacidade de estar satisfeita consigo mesma e com a vida, o que é profundamente relevante para a paz do mundo. A quietude é uma prática meditativa passível de assumir muitas formas. Vamos encontrá-la em diversas tradições: no hinduísmo, no budismo, no taoismo, no sufismo e no cristianismo. Os padres da Igreja pensavam que aquele que não alcança o silêncio não pode aceder à comunhão, porque não

2015 pp. 153-162

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panaceia: cura todas as nossas compulsões automáticas de acordo com nossos tipos específicos de ego (ou tipos distintos de máquina psicológica). Embora sejam diversas as motivações dominantes em diferentes tipos de pessoas, de modo que podemos dizer que há mentes covardes, mentes preguiçosas, mentes luxuriosas (que buscam sempre a intensidade para se sentirem vivas), mentes acomodadas (querendo sentir que tudo está quentinho e confortável, pois buscam tanto o prazer quanto a evitação compulsiva do desprazer). Tudo isto perde algo do seu poder na pessoa que tenta distanciar-se dos seus pensamentos. E ainda mais, pois alguém que vive completamente envolto em seus pensamentos nada vê para além deles, e perde contato com suas vivências. A vida ordinária é uma condição na qual estamos de tal maneira absortos em nossas recordações, em nossas antecipações do futuro e em nossos comentários sobre a vida, que sequer estamos vivendo o presente. Não estamos, sobretudo, vivendo esse aspecto do presente que é o simples quedar-se, ou estar aí. Estar presentes, meramente sentindo nossa existência, parece-nos pouco interessante. Esse tipo de presença

há encontro com o divino sem chegar, primeiro, a uma mente silenciosa. Tal foi a grande especialidade de São João da Cruz. E Santa Teresa o considerava o mais competente educador dos noviços, quando fundou a Ordem dos Carmelitas. A prática da quietude não envolve apenas o corpo, naturalmente, mas também o pensamento. Entretanto, alguém que busca o repouso do pensamento descobre que o obstáculo para alcançar este fim é a agitação emocional: um constante andar em busca disto ou daquilo… E nossa excessiva agitação tem suas raízes no mundo das necessidades neuróticas, ou paixões, que não é outra coisa senão o que os antigos chamavam o mundo dos pecados. Não consegue aquietar-se uma pessoa que tem demasiada ambição, por exemplo, pois o ambicioso está sempre lutando em prol de seu projeto, criando algo, ou imaginando possibilidades futuras. Ficar quieto fa-lo-á sentir que perde tempo. Da mesma forma, uma pessoa demasiado invejosa tampouco pode aquietar-se. E todos estes pecados reconhecidos pelos antigos têm em comum o problema de distanciar-nos da paz e da quietude. Por esse motivo podemos dizer que, neste sentido, a prática da quietude é uma

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não é muito cotada, hoje em dia, quando se valoriza, principalmente, a informação e tudo aquilo que é prático. Simplesmente deixar-se estar não tem nenhum valor prático, e apenas aqueles que começam a evoluir interiormente começam também a perceber o valor disto que é o estar presente, ou saber-se presente. Às vezes encontro-me com pessoas que à pergunta – “Que andas tu buscando em tua vida?” – me respondem dizendo “estar aqui e agora”. E este interesse profundo no estar aqui e agora me parece um sinal de inusitada maturidade. Participei, certa vez, no foro sobre educação juntamente com alguém que praticava o budismo Zen. E quando lhe perguntaram do público: “que é Deus para ti?” sua resposta insólita me agradou muito – “Eu creio que Deus é a apreensão do momento presente, do qual temos apenas um vago e retardado sentimento.” – Quer dizer: Deus nos escapa momento a momento. E Deus é uma intuição daquilo que sentimos como sendo o fundo de nosso ser, que na realidade não é nosso, nem de ninguém, senão simplesmente O Ser. O não escapar-se do presente por meio do afazer imaginativo é uma porta de entrada para esta sensação de existir, à qual damos tão pouco valor em comparação com os nossos projetos e ambições, mas que é, por sua vez, o começo da descoberta de que a vida é sagrada. E se não temos contato com o nosso Ser, não temos contato com o Ser de mais ninguém. Tudo, então, se transforma em pensamentos, abstrações, coisas… A quietude é, portanto, uma porta magna. Um portal para algo que, em última análise, constitui um mistério, porque ainda não a vivenciamos. Uma porta, no entanto, parece ser algo como a água para os peixes dos quais se diz que não a percebem justamente porque vivem nela. Não há nada mais familiar do que ‘nós mesmos’ – o sujeito de nossa própria consciência, que se nos tornou invisível por causa de sua familiaridade. Se, no entanto, cultivarmos este ‘eu sou’, regando-o com nossa atenção como uma plantinha à qual se deita água todos os dias, ele vai se transformando não apenas num manancial de paz, senão, igualmente, de grande bem-estar. Uma paz que não é ausência de conflitos, mas uma espécie de força interior capaz de persistir, inclusive, em meio à agitação de nossos embates. A educação para a paz parece-me uma necessidade humana das mais importantes. Devemos, no entanto, entender que a paz do mundo requer a paz

interior. E, para qualquer pessoa, seria uma dádiva das mais importantes, alcançar uma tranquilidade maior simplesmente encontrando-se com o fundo imóvel de sua própria mente, em vez de perder-se na multiplicidade de seus impulsos e nas abstrações dispersas do pensar. E o que custaria consegui-lo? Seria necessária a existência de suficientes pessoas capazes de entender o assunto, e o surgimento de alguma iniciativa neste sentido. Mas, nas grandes burocracias, é difícil ter iniciativa. Eu sempre disse que a educação parece um grande elefante branco: a mais difícil de mover, talvez, entre todas as burocracias. E sabemos que as grandes burocracias começam por servir a algo, mas terminam por servirem-se a si mesmas. Este é um enorme problema sociológico. Mas não vou deter-me demasiado no tema da paz, confiando em que, algum dia, entender-se-á constituir ela um problema importante e descurado da educação. II Interessa, não somente, sabermos e podermos ficar quietos, deixando a mente em repouso ao silenciar o pensamento. Interessa, igualmente, o que nos pareceria justo o contrário: deixar a mente fluir. Pois somos vida e, como organismos vivos, também a nossa mente é parte do processo da vida. Entretanto, não somos verdadeiramente livres ao ponto de permitir que a vida flua de forma espontânea em nós. As crianças, que ainda não perderam a espontaneidade e a iniciativa são muito mais livres do que nós. Mas, pouco a pouco, vão-se domesticando, e a educação ocupa-se de que terminem por tornarem-se iguais a nós. E, assim, vão perdendo também a alegria. Graças ao processo de domesticação ao qual se as submetem – considerando, particularmente, que a felicidade não está contemplada nos fins da educação. Algum dia a felicidade humana dependerá de que nós nos interessemos pela felicidade das crianças. E é uma lástima que não se encontre na visão política de hoje o que foi, outrora, o programa de muitos dos grandes sábios na Grécia antiga. Licurgo, Sólon e Platão compartilhavam a ideia de que não se pode aspirar a uma comunidade feliz sem ocupar-se de formar pessoas virtuosas. E o que entendiam por virtuoso era algo muito diferente 17


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do que concebe o nosso moralismo. A virtude era, para eles sobretudo, um estado interior do qual procedia, naturalmente, o bem. Isto implica que somos intrinsecamente bons se estivermos bem; e que todo aspecto destrutivo deriva de alguma interferência na nossa natureza, quer dizer, das nossas pragas circunstanciais. Interessam, então, não apenas a cura pelo silêncio e pela atenção para com o fundo de nossa consciência, mas também a cura por intermédio da liberdade e da obediência à nossa vida verdadeira, que não estamos vivendo por causa de todos os tipos de interferência. Não vivemos a Vida, e tampouco se pode dizer que estamos em harmonia com a Vida. O processo de domesticação, educação e criação nos alienou e já o parto tecnológico nos privou do contato com a fé na natureza que deveria inspirar-nos. Claro que o mundo de hoje parece pensar que, como os animais, o feto tem muito pouca consciência. Se, no entanto, imaginássemos que o feto é consciente não seria tão indiferente à profissão médica a separação de um recém-nascido de sua mãe, ou que se o asfixiasse um pouco, quando se lhe corta prematuramente o cordão umbilical (considerando que os médicos estão muito ocupados e apressados), ou que se lhes apliquem palmadas nas espáduas para provocar-lhes o choro. Embora haja apenas 0,5% de possibilidades de complicação nos partos naturais, é muito revelador que, nos países sul-americanos, ao menos a metade dos nascimentos se dê por cesariana. À parte o fato de que isto revela um despotismo da cultura sobre as mães, mostra também uma interferência na ordem natural, coerente com a maneira pela qual o sistema técnico-econômico se apropria das nossas vidas, desde que nascemos, separando-nos da mencionada ordem natural. Pensava-se, geralmente, que à criança tudo isso não lhe importava em nada. Mas eu penso que os recém-nascidos, ainda ignorantes do mundo, todavia não perderam de todo essa consciência, que nós passamos o resto da vida buscando. Sem que o saiba, aquele que busca a iluminação, ou o divino, anseia recuperar a mente do feto, como já pensava Freud ao sustentar que os estados oceânicos do misticismo envolviam a recuperação de uma memória da condição fetal. Não devemos, entretanto, pensar que interpretá-lo dessa maneira – que somos parte do todo e que alguma vez soubemos disso –, seja

diminuir o alcance de nosso anseio. De tanto que nos foi dito “Presta atenção nisso”, “Cuidado com isso”, “Não vás cair”, “Presta atenção no que te estou dizendo” etc., e por meio de tantas obrigações as crianças se desconectam dessa condição de simplesmente estarem em paz e de se saberem Ser. Isto de dar passagem à vida é, aparentemente, o oposto da quietude. Mas trata-se antes de uma complementaridade. Pode-se dizer que, no meditar, há uma dimensão que vai desde a luz vermelha (do convite a descontrair-se) à luz verde (do convite ao deixar-se fluir). Os meditadores sabem muito bem que apenas conceitualmente as duas coisas são incompatíveis. Na tradição Zen costuma-se dizer que devemos deixar a mente ser como o céu imóvel e imperturbável por onde passam as nuvens. Em outras palavras, que, embora se deixe a própria mente ser como o céu, que é puro espaço, isto implicará que ela, como o espaço, seja permeável. Quanto mais sadia nossa mente, mais permeável será. E isto se vai traduzir no acréscimo da capacidade de aceitar as coisas e, sobretudo, de aceitar nossa própria experiência do momento; o que se traduz, além disso, no fato de sermos capazes de aceitar os demais em vez de sentir a necessidade de nos armarmos contra ameaças imaginárias ou hipotéticas à nossa forma de ser. Dizer que nos convém entregar-nos à corrente da vida ou a uma espontaneidade maior tem a ver com a confiança de que, dentro de nós, existe uma inteligência orgânica. Durante o século XX, Cannon introduziu o termo homeostase, referindo-se a um mecanismo elementar de autorregulagem biológica. Muito mais amplamente, porém, caberia falar de algo como uma sabedoria do instintivo. Nossa mente tem uma complexidade muito maior do que aquela que pode abarcar a mente pensante. Assim, não poderíamos navegar através da vida deixando-nos guiar apenas pela nossa mente racional. E isto sabem-no aqueles que falam das características da boa liderança, na empresa, ou que se movem no mundo dos negócios, que exigem olfato – quer dizer, intuição. Chamo este aspecto do meditar a dimensão da entrega. E a entrega parece muito presente pela história das religiões, porém de forma tergiversada. Pois o abandonar-se a Deus, que para o místico é um dissolver-se no divino (e por meio disto dissolver também a própria vontade pessoal numa obedi18


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ência à vontade divina, como na frase “Faça-se a Tua vontade”, do Pai-nosso), transformou-se em obediência à Igreja, aos seus emissários e autoridades. A vontade divina, no entanto, não passa por uma legislação ou por um código, por mais que se trate de um código tão sublime como o dos mandamentos de Moisés. Pois a natureza da entrega é um estado de permeabilidade a uma influência supra-humana, independente de mandatos verbais ou mesmo conceituais. E, seguramente, porque se tratou de codificar essa entrega, tornando-a uma obediência a tais ou quais preceitos, de tal ou qual religião (incluída especialmente aquela autodescrita como caminho da entrega, o islã), implica uma traição da entrega propriamente dita, que é uma renúncia ao controle por parte das autoridades religiosas. Impõe-se um mandato de controle sobre a própria mente em virtude de exigências policialescas mascaradas. Dizia Nietzsche, no século XIX, que aquilo de que mais necessitava a civilização do seu tempo (a cultura cristã em decadência) com seu espírito inquisidor, moralista e repressivo era uma nova injeção do espírito dionisíaco, que havia inspirado a religião original da humanidade. Por mais que tivesse sido o centro da religião original da Europa, desde que se estabeleceram os deuses olímpicos, Dionísio passou a ser um deus marginal entre os gregos. A época do seu predomínio foi pré-patriarcal. E diz Alain Daniélou que Dionísio não é outro senão o Shiva, da Índia. Este autor cita uma curiosa observação: quando Alexandre Magno invadiu a Índia, os iniciados que o acompanhavam encontraram-se com os iniciados nos mistérios de Shiva e se entenderam com eles, reconhecendo-se como parte de uma mesma escola e irmandade.

Hoje em dia, associamos Dionísio ao prazer. Mas o prazer é apenas um aspecto do dionisíaco. Mais fundamental é a rendição à espontaneidade que, por sua vez, implica a fé na natureza – tanto interna, quanto externa, em contraste com o espírito da civilização, que pretende controlar, predizer, e explorar a natureza, tirando partido dela e domesticando-a para fins que lhe são alheios. Este cultivo da entrega pode ser posto em prática de diversas maneiras. Uma delas é a forma da própria meditação, no silêncio. Mas também se pode dar-lhe expressão por meio da imagística (como no sonho dirigido) e até na prática de dar curso à livre expressão do pensamento, como na livre associação da psicanálise. Especialmente liberadora é a entrega ao movimento espontâneo, como na disciplina do Movimento Autêntico, que é um convite a deixar-se levar, por algo desconhecido, para além do pequeno eu cotidiano. Dizemos desses momentos, nos quais entra em funcionamento algo para além de nossa vontade, que são momentos de inspiração – como na atividade dos artistas inspirados. Estava relatando que podemos conceber o caminho da entrega como uma complementaridade com respeito ao caminho da quietude. E diria ainda que quanto mais conseguirmos a quietude (quer dizer, isto que os chineses chamam wu e wei, o não-fazer, o poder permanecer sem fazer, o não sermos escravos da ação compulsiva habitual), maior profundidade e autenticidade alcançarão nossas vidas, ordinariamente tão cheias de saídas pela tangente. Ao invés de vivermos realmente nossas vidas, vivemos muito de empréstimo, e muito de aproximação, e também de falsificação. Em síntese, cada um dos polos da complementaridade do deter-se/fluir-se favorece o outro.■

www.verbenaeditora.com.br 19


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Dramatis Personae Wilian Fernandes Pereira

Personagens Romeu Boticário Moça de Las Vegas Mendiga Mercúcio, 3 gordas e 1 ovelha

Cena 01 – Int./Dia. – Sala de Botica Italiana Medieval (Roots) – Romeu e o Boticário Romeu: Boticário, boticário, seja criativo! Seja rápido! Dê-me um medicamento que simule a morte, pois que a viver sem Julieta prefiro mil vezes estar quase-morto… Boticário: Não preferes morrer? Romeu: Quem, eu, Romeu, morrer por amor? Morrer por amor em plena civilização? Ora, senhor! Eu sou um cidadão, um gentleman, um aristockrato! Morrer pela diferença de um nome, um simples sobrenome? Oh, senhor Boticário, o que há de verdadeiramente num nome? Acaso não pensas que uma rosa, fosse ela chamada por qualquer outro nome, exalaria o mesmo doce perfume? Boticário: Senta-te, Romeu. Eis a tua cadeira, toma-a. Estás pálido e frio, verde como a lua invejosa, lua cheia Romeu… Romeu: Oh, escuta, Boticário! Eu sem Julieta já não posso Ser. Ouves, amigo, ouves? É o canto da cotovia, a ave da aurora. Apressa-te, phile, eu vos rogo… Boticário: Ora ora Romeu… Cala a boca, não delira na realidade. Lembra-se daquela vez que você se convenceu de que seu nome era outro? Você mal ainda era uma criança, e já delirava a realidade. Observa, silencia, fecha a matraca. Beba este remédio. Você entenderá a realidade. Há muitas coisas, e várias pessoas, entre o céu e a terra, Romeu. Você não imagina a metade, sequer a décima ou centésima parte. Romeu: Mas eu só dizia que… (interrompido). Boticário: Nada digas, para que tua tolice não aumente. Ou pelo menos te preserva de te tornares um tolo público. Bebe o remédio. Você vai entender que entre Verona e o Kansas há muito mais tipos e tantos-tantos de bruxas feias em furacões e sapatinhos dourados de Dorothies do que você percebe… Você, Romeu, nada entende sobre a realidade… Você é um baile de máscaras! Romeu: Tomo este pequeno frasco, caro Boticário. Espero que me faça de fato morrer. Eu para Ser já não presto. Ser cansa demais, e sem Julieta… Boticário: Romeu, seu problema não é Julieta. Vamos, beba isto. Você vai andar até o centro, e de lá vamos nos reencontrar, e do centro sai toda ação, que o centro da roda é fixo. Romeu: Falas com maestria, caro senhor, mas confesso que pouco entendo do muito que dizes. Já não consigo pensar. Sinto na pele um torpor antigo, amarelo, tonto. Acho que vou morrer… Boticário: Tomara que sim, eu espero, se assim pelo menos você calar a boca. Mas não te aborreças. Nada vai ser como antes, mas tudo ficará bem… Em breve, Romeu, você amanhecerá completamente curado. [CORTINAS] 20


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Cena 02 — Int./Noite. — Discoteca Anos 70 (Studio54) — Romeu prostrado no sofá Romeu: “Boticário, boticário, seja criativo! Seja rápido! Dê-me um medicamento que simule a morte, pois que a viver sem Julieta prefiro mil vezes estar quase-morto…” Oh, não, isto eu já falei… Oh, sim, percebo: sim, sim, estou certo: vejo o astro apolíneo, oh, o Sol, sim, já é dia… Mas… espera aí… vejo o dia uma ova… onde estou? Cadê a porra do sol, caralho? [CLOSE UP: GLOBO ESPELHADO] [PANORÂMICA 360º DA DISCOTECA, PLANO AMERICANO. ROMEU ATÔNITO. CHEGA UMA DANÇARINA DE LAS VEGAS, REBOLANDO COMO RACHEL, DE BLADERUNNER] Moça (com bandeja e saltos): Ora, vejo que já acordou, e cedo. Tome, beba isto. O boticário mandou que bebesses isto. Vá, ande, engula! Vai te fazer bem. Romeu: Eu? Beber isto? Onde está o boticário? O que aconteceu? Quem diabos-de-raios-que-o-parta é você? E que lugar esquisito é este? Moça: Vamos, Romeu, não se preocupe. Você logo vai entender. Romeu (bebe o remédio e diz): Quem é você? Qual é o seu nome? O que está acontecendo? Como vim parar aqui? Moça: Oh, pobre Romeu… você está aflito. Mas sei o que te passa. Eu também já amei Julieta. Mas, pobre Romeu, você hoje não a reconheceria. Julieta está tão diferente… Romeu: Você conhece Julieta? Julieta está aqui? Mas como você sabe que… (interrompido). Moça: Escute-me bem, Romeu: esqueça-a. Esqueça-me. Aquela Julieta já não existe. Eu mesma já mal existo. E você, Romeu, você só existe ainda por alguns minutos. Depois… Romeu: Depois o quê??? Me diga, ande! Ou eu vou te matar! Onde está Julieta, o que aconteceu? Moça: Uma coisa aconteceu. Uma coisa que você irá descobrir. Uma coisa terrível e fatal a todos nós, civilizados. Romeu: Então, se é mesmo como dizes, nem mesmo me adiantaria chorar. Ah, pobre coração machucado, arrastado pela vida da morte, apartado pela morte das ilusões… Oh, moça, então dizes que Inês é morta? Moça: Sim, e não adianta chorar sobre o esperma-não-derramado. Inês é morta, Romeu. Eu lamento muito, profundamente… Mas Julieta vive! Romeu: Como? Vive? Mas eu pensei que dizias… (interrompido). Moça: Pobre Romeu confuso, falas de Inês ou de Julieta? Deve ter sido o medicamento. Aliás, como te sentes agora? Romeu: (Embasbacado, pensando alto): Julieta vive… Moça: Bem, Romeu, eu vou indo. Julieta transformou-se em outra pessoa, ou melhor dizendo… é… como dizer… Romeu: Vamos, diga logo: transformou-se no quê? Moça: Julieta, Romeu, não é mais uma pessoa. Agora ela é uma coisa. Uma coisa. Romeu: Coisa? Mas como é possível uma coisa assim? Qual é o tamanho de vossa nova tecnologia e ciência, senhorita… de roupas estranhamente mínimas?? Moça: Julieta coisificou-se, e isto não é mera tecnologia. Demoramos milênios para conseguirmos os resultados. Mas Romeu, por Zeus, durma. São estes outros tempos, Romeu, e os perigos de hoje são muitos. Não se preocupe, apenas descanse… Aproveite seus últimos minutos de vida como pessoa, aproveite-os para matar saudades do que não voltará. Observa teus sentimentos nobres, de Verona e de berço, e teus elevados ideais. Você não vai atrás da coisa, Romeu. A coisa vem até você. Apenas não se assuste. A coisa tomará conta de tudo… Mas logo você se sentirá à vontade nesta civilização. Relaxe, Romeu. Eu voltarei, cada vez mais nua. Romeu: Ora, espere. E como esperas que eu descanse? Qual o teu nome, por que te vestes e despes, quem de fato és??? Moça: Há mais perguntas entre o céu e a terra do que julgam nossas vãs respostas, respostas, respostas, Romeu. Responder ou não responder a questão, eis a questão… Romeu: Ó moça, vejo e sinto que rápido se faz o phármakon, pois que sinto e tenho os pés frios, as pernas gelando-se, os joelhos duros e as coxas hirtas. Sinto-me parando o coração, perante a mente embotada e completamente parado o ar… Não sei se respiro… 21


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Moça: Não te assustes, Romeu, é o ar. Eis o teu novo sono, Romeu. O novo sono revelador. Se entregue à simples, inegável e incombatível presença da coisa… A própria coisa se faz respirar, e teu pulmão não é mais teu. A isto chamamos “O SONO TECNOLÓGICO”, e convém, mas não adianta se assustar… Relaxe, Romeu. Se entregue à tua nova realidade. [ROMEU DESABA AO SOLO, DORMINDO].

Cena 03 — Int./Noite. — Onírico Sobre-Sem Cenário — “O sonho de Romeu” MERCÚCIO ENTRA CORRENDO NU, DE PERUCA PINK, COMENDO ALGODÃO DOCE VERDE. CAI UM PENICO NO PALCO (DO ALTO-CENTRO). ENTRAM 3 GORDAS PINTADAS COM BOLAS E COMEM 3 CACHORROS-QUENTES, ENQUANTO UMA ENORME BOCA MULTIMÍDIA SE ABRE, FAZENDO EXPLODIR 3 DENTES. NESTE INSTANTE, SOLTA-SE UMA OVELHA NO PALCO, PARA VER O QUE ACONTECE.

Cena 04 — Int./Noite. — Discoteca Anos 70 (Studio54) — Romeu desperta Romeu (monólogo): Acordo e vejo que novamente vivo o pesadelo, e que para sempre perdi a velha Verona. Este é o tempo novo, mas que tempos? E onde está o Sol? Sonhei com Mercúcio. (Pra que lado está o Norte?). Mercúcio carregava ovelhas, acho que do pai dele. E vi Julieta — ah, meu amor — com as bochechas rosadas, comendo queijo-com-goiabada. Mas, pobrezinha, no sonho ela estava com dor-de-dentes… Por fim, vi bicicletas jorrando de um banquete de muitos tipos de pães e salsichas, pais e mães nus, de mãos dadas e todos juntos, com os pés no riacho ao fim da tarde, discorrendo-se sobre o amor e escorrendo-se em fendas verticais e travessias horizontais de diferentes vértices, durações e calibragens. Sonhar, sonhar, sonhar que se esquece e que nem se faz sentido… Sonhar para lembrar, mas como entender o que dizem? Serão estas lembranças reais? Se alguém mais pudesse ver os meus sonhos, será que mos diria como os digo? Ah, que no seio do tempo algum dia algum Fulano ou Freudicrano explique o fato e elabore, sob fino tato, a fixação retratada da luz etérea refratada da doce imagem onírica da noite, que traz meu amor. Fantasmagórico, semi-confuso, erótico e completo.

Cena 05 — Int./Noite. — Discoteca — Romeu parece Alice e encontra-se com Dorothy, depois foge. Romeu [TERMINA DE ACRODAR E SAI ANDANDO PELA BOATE. ECONTRA UM ENORME BOTÃO SURREAL VERMELHO SOBRE O SOLO, ESCRITO “JUMP HERE”]: Jum... pê.. ére.. Oh, creio desconhecer esta língua bárbara, este estranho dialeto, ainda que não me sejam estranhas as letras do alfabeto. O que fazer? [PERAMBULA SOBRE O BALCÃO DO BAR, ENCONTRA UM FRASCO ESCRITO “EAT ME”]: Mais e mais hieróglifos, nesta estranha sala… Preferiria a morte verdadeira, por real e efetivo veneno do Boticário… Antes a morte sem ilusões do que a psicodelia desta nova realidade para a qual aquela porção mágica me despertou. [ENTRA A MOÇA DE LAS VEGAS, VESTIDA DE DOROTHY DO MÁGICO DE OZ]. Moça: Romeu, não seja ridículo. Não diga “PSICODÉLICO”. Vai estragar a peça… Deixa de ser anacrônico, Romeu! Romeu: Sinto muito, moça. (E ALOPRA) Aliás, meu nome é Romualdo (atira a peruca ao chão) e essa Julieta-coisa aí já tá difícil demais, e essa mina eu já comi várias vezes, então foda-se esta peça, que eu já tô puto de ficar falando difícil. 22


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[Entra o Boticário] Boticário: Romeu, calma. Para de inventar nomes novos, e instala o seu cabelo. Romeu, Romeu, esse Romeu não está de brincadeira, Romeu. Presta atenção que você não é Sansão, mas acredite, amiguinho [APONTA PARA A PERUCA NO CHÃO] que, sem este cabelo, você não é NADA. NADA!!! Entendeu??? Moça [de Las Vegas, agora vestida de Dorothy]: Vamos, Alfredo, não o pressione tanto assim. Romualdo é apenas um menino… Boticário [FURIOSO, ATIRA SUA PRÓPRIA PERUCA AO CHÃO]: Me-ni-no? Você falou “menino”? Ah, eu não acredito. É, é menino sim, pra criar vergonha na cara. Não quer ser ator, não quer? Então não veio porque quis ao espe-tá-cu-lo de teatro?? Então termina a peça, cacete!! Vamos, Romeu, coma o frasco sobre o balcão e pule sobre o botão vermelho no assoalho escrito Djâmp Hiar… Romeu, baby baby, Show Must Go On… E, aliás, sua prostituta ridícula vestida de “Não há lugar como o nosso lar, Totó” [ABSOLUTAMENTE IRÔNICO]. Não defenda este pivete pervertido, só porque ele te fode no camarim, todas as terças com certeza, e quem sabe, todos os dias. Moça: Oh, mas assim me ofendes! Boticário, sem peruca: Ah, que merda, vai pra puta que pariu, porra, caralho cacete-inferno diabo escroto-da-porra ,véi! Etc. Ok. Parei. Stop total. Agora eu que se-me foda-se. [“— SIM, FOI O QUE ELE DISSE”] Romeu [subitamente e em voz alta]: Não a ofendas, pois realmente a fodo, e também por isso sou livre. Não ouse, caro senhor, enfrentar um jovem-dilacerado-insano. Esta realidade não é minha. Agora, eu só lamento… E a obedecer-lhe como dantes, ó Boticário, prefiro mil vezes fingir que faço a fazer, pois que sou ator e sincero, mas pago contas, e meu coração custa mais caro do que meu atual salário… Fa-lo-ei, ou melhor, caro senhor: fa-lo-ía, pois que estou fora e cansado, sinto fome, sede e falta de amor, a mim não mais interessa o teatro, e o público? Eu quero que o público que se foda… Falei. [RETIRANDO-SE, VOLTA-SE E COMPLEMENTA, PTONÍSICO] Queres-me que muito vos diga ou mos cale. Na calle remôo e dôo de ver Que sinto que posso e podia e possuo Mas quão mais difícil se me torna crer… Tão, mas tão mais difícil simplesmente ser. Ser… [E RETIRA-SE, DIZENDO DE COSTAS]: Escuta, senhor Boticário: há mais reticências entre o céu e a terra, que o limite total do teu estoque infinito de travessões, aspas, interrogações e ponto-e/ou-vírgulas. [ROMEU SAI CORRENDO. FADE OUT].

Cena 06 — Ext./Dia — Rua. Romeu caminha Romeu (pensando alto): “Acordo, e vejo que novamente vivo o pesadelo, e que para sempre perdi a velha Verona.” Não, não, isso eu também já disse. Estou gradualmente me tornando um velho vinil riscado, riscado em mim mesmo. Começo a repetir frases. Já me faltam falas no teatro, e agora também na vida. Sempre venho a repetir-me, conforme você vê, que eu mesmo já acabei de falar tudo isso agora mesmo, só que imediatamente antes. Romeu (em pensamentos íntimos e secretos): Ah, tão cansativo estou aqui, Romeu, na terra de ninguém e sem noção de tempo, a todos estrangeiro e em todas as partes, apátrida do tempo; raptofuga, sufocada e sôfrega, sugada e ausente num enorme buraco-negro-do-tempo. Cadê eu de eu-mim mesmo? Onde ficou I ME MINE? Romeu (novamente pensando alto): Mesmo assim, não interpretei o sonho da cena. Pois que não sei o que houve ou acontece, mas sei que sim, houve a cena. A cena da base da boca feito pipoca, pow-pow-pow de três dentes a menos… dentes de gordas pintadas de bolas? Ou teriam sido focas? [GRADUALMENTE OFEGANTE] Não, não! Bolas! Focas, teria sido sonho, e delírio na realidade. Eram gordas pintadas de bolas, comendo hot dogs, sim, estou certo, eram gordas humanas, em número tri. 23


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[FILOSÓFICO] Porém, o que significa “delírio na realidade”, se a própria Verona já não É nem HÁ, nada CONTÉM nem FICA? Inexisto de mim mesmo, e como afirmo — tão valente quanto ignorantemente — que por certo afirmo ter visto gordas e não FOCAS??? Ora, não importa. O que pretenderia um diretor assim? Certamente a vida, como Verona, e como o teatro, também carece de verdadeiro roteiro. Sim, é sono. É o mais puro sono cibernético, o sono e os sonhos tecnológicos e automáticos, ai sensação desgraçada que sinto no corpo e nos ossos, Romeu. Ai de mim pra mim mesmo! [SUBITAMENTE, ROMEU DEPARA-SE COM UM CRUZAMENTO DE RUA, COM PORTA DE LOJA FECHADA SOB LAJE, CAIXA DE MADEIRA, PAPELÃO DE COLCHÃO E UMA MENDIGA COM A MÃO ESTENDIDA, NO CENTRO DE QUALQUER CIDADE, PEDINDO-LHE DINHEIRO]. [ARREPENDIDO, ENQUANDO ATRAVESSAVA O CRUZAMENTO EM DIREÇÃO, VARANDO A CALÇADA, ROMEU COMPLETOU, DIZENDO:] O que pretendia aquele roteiro, aquele roteirista? Que intenção doentia… ou… mórbida… ou… ai credo… o quê que um cara quer fazendo um espetáculo assim? Este roteiro é ridículo!!! [PORÉM, VOLTADO DE SÚBITO ARREPENDIMENTO E SEVERA CULPA, EXIGENTE DE AUTOPUNIÇÃO, ROMEU VOLTA-SE À PLATEIA/PÚBLICO E CONFESSA ABERTAMENTE QUE, NO FUNDO, DEVERIA TER MESMO TERMINADO A PEÇA. PORÉM SEGUE CAMINHANDO FIRMEMENTE, DIZENDO SOMENTE ISTO:] “— Je ne regrette rien. Non, rien de rien. Foda-se”. (Mas como o teatro mexe com a gente… e como mexe…).

Cena 07 — Ext./Dia — Rua. Mendiga Mendiga (dirigindo-se a Romeu, que passava): Pelamordedeus moço me dá um trocado que eu tô doente operada das versícula ruim de tudo sem remédio que fiz cerorgia das varsíca e do instráunsbo que tava com úrça e grastite do fígo pra mór di dô no apêndice e pior que meus fío tá em casa sem cumê que o pai deles bebe e bate neles tudo e bate neu e ispanka nóis que o sinhor pelamordedeus me dá umas moeda que… (e começa tudo de novo, igualzinho). Romeu: Você dorme aqui? Mendiga: Quê que é, moço, o quê que o moço qué? Repete? Romeu: Você mora aqui, na rua? Mendiga: Que que é, moço, o que que o moço qué? Repete? Romeu: Você mora aqui, na rua? Mendiga: Quem pergunta? De que filme você veio, que não se repete e sabe? Quem é você, sujeito-cidadão, que nunca te vi? Romeu: Eu sou Romeu, você não acreditaria. Aquele mesmo Romeu da Julieta, só que agora deu tudo errado, eu queria morrer e parei numa boate dos anos 70, agora descobri que sou ator e não sei quem é você, nem onde estou, nem quando é… Mendiga: Tu falas bem, para um vagabundo desempregado com roupas ridículas e cara de hippie fedido. Romeu: Tu também, senhora, fazes bom uso da regra culta da coisa, mas — que coisa! — não é que de tempos em tempos todas as coisas mudam, e até algumas mudam para o estado de coisas? Mendiga (desconfiada): De que tipo de coisas você está falando, menino? A quê precisamente te referes? Romeu: Do tempo aonde eu vim, havia pessoas. Na eternidade de minha literatura vivo, mas veja que agora tudo-morro, que as drogas do Boticário e os remédios da Moça de Las Vegas me conduzem gradualmente ao sono tecnológico, no qual já me resfrio, já nem sinto que já não sinto nada, e sentir algo já não me faz falta, nem dói… Sinto o coração dormir, sedado tecnológico, enquanto instala-se a dormência profunda, contende, civilizada entre as células e fibras dos meus músculos e ossos… Você já se sentiu assim? Mendiga: Sim, é o ar. O ar te coisifica, gradualmente aqui. Quanto mais você respira, mais o ar te faz essa 24


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coisa… Calma, a sensação passa. Dentro em pouco você esquecerá que precisa respirar ou defecar, pensar ou sentir. A coisa vai tomar conta total. Não a julgue. Está no ar. É idiotismo resistir ao que tudo permeia… Você sente medo de estar sendo coisificado, Romeu? Romeu: Como sabes que me chamo Romeu? Mendiga: Ora, você me falou, Romeu da Julieta, lembra? Romeu: Oh, céus, os trópicos me fazem mal, e posso jurar ter sido vítima da picada letal de algum inseto afrotransamazônico letal e místico, que me retira totalmente as forças. Mendiga: Ora, crie modos de homem. Deixa de viadagem, moço. De que romantismo doente você veio, do qual se expressa? Romeu: Culpe-me, senhora, por minha inconveniência, se a aborreço, mas não ouse criticar-me no mínimo detalhe, pois nada sobre mim sabes. Exagero-me ao gosto do homem da forja, aquele que faz. E este, senhora, é envolvido pelos mais densos mistérios, e sobre ele nada se diz, pois nada se sabe… Mendiga: Tu te referes ao Criador? Romeu: Qual deles? O que criou o quê? O Creador ou o Tecnocreador? Ele-Aquilo ou o Homem? Mendiga: Confundes-me, como antes. Não, Romeu, agora escuta. Minha história, caro senhor, fora destes papéis todos, sinto muito, mas esta eu não posso nem poderei jamais contar-lhe. Vós não acreditaríeis, nem tampouco iríeis compreender. Romeu: Falas deveras bem, para uma mendiga… Mendiga: Tu também, para um mero veado covarde de merda. Romeu: Senhora, do tempo aonde eu vim… (interrompido). Mendiga: Eu sei, Romeu, eu sei. Aqui há algo chamado o tempo, esta vertigem que primeiramente te gelou os pés. Deus dá, a cada dia, o pão-tempo nosso conforme o merecido… Mas ó, luz do dia, como aqui envelhecemos rápido. Pouco antes, na eternidade, eu… Romeu: Então é isso: você também não é daqui, você veio de lá, não veio? Mendiga: Romeu, pobre Romeu. Um dia acordei radiante e dirigi-me ao lindo riacho, seguindo dois passarinhos, duas rolinhas, que foram brincar na areia e se refrescar na água empoçada… Porém, Romeu, logo vi você, no dia P do nosso Plano, dirigir-se ao Boticário e encomendar-lhe a morte. Não poderia suportar viver sem o seu amor [PEGA NO PAU DELE], nem a dor daquele novo matrimônio, que diziam as criadas ser dos mais arrombativos de todos os caralhos… Ai de mim, que era ainda tão nova! Romeu: Tu acaso estás afirmando que… és Julieta? Mendiga: Quem mais o teria pegado no flagra, naquela manhã, trocando masturbações com Mercúcio, o negão, que de amigo parecia mais era ser seu namorado? Romeu, você me traiu com um homem? Romeu: Julieta, não é nada disso. Eu posso explicar. Mas você… (interrompido). Mendiga: Aqui não é mais Verona, Romeu. Nem eu sou mais Julieta. Aqui nós não temos mais nomes. Aqui só temos funções. Funções compridas. Cumpridas funções. Você viu a Moça de Las Vegas? Percebe que ela não se-chama nada??? Romeu: Julie… (interrompido). Mendiga: Eu de amor morreria, mas tu não. Amas, Romeu, apenas tua mão (e talvez a de Mercúcio, ao que me pareceu). Pois que sim, fingi-me de morta e fui também à discoteca, nosso Hades, se na Grécia houver mendigos. Romeu: Dizes que estamos na Grécia? Mendiga: Não Romeu, não estamos na Grécia. Aqui neste lugar, sob o tempo, simplesmente estamos. Contente-se em estar. Aqui não existem relógios. Romeu: Por que não vejo o Sol? Mendiga: É o novo Sol Tecnológico Mundial. Luz difusa, em vez de globo solar. Dizem que faz bem para a pele, e para as plantas. Fortalece mesmo as que são de plástico. Romeu: Julieta, por que te pareces com Marcela, aquela vampira dos contos de réis? O que te passou? Por que tão ríspida e dura? Por que tão envelhecida, dura, com tantos cabelos brancos? Mendiga: Aqui o tempo conta. Aqui você não é Romeu, não há Montecchios ou Capuletos, nem Silvas ou 25


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Pereiras, Oliveiras, Carneiros, Johns ou Jacks… Aqui não tem nem Romeu, nem Romualdo. Aqui, você não se diz. Aqui, Julieta foi crucificada numa nova forma, como Deus, quando desperta das Sete Noites e se crucifica num novo Universo… Eu não sou mais Julieta do que qualquer mendiga, e aqui é assim, ó, rapaz que um dia amei. Meu nome não tem nome, senão sujeira. De nada adiantarão tuas lamúrias, nem o sacrifício desinteressante de teus cordeiros oníricos. Vou e volto-me, e me despeço. Boa sorte, Nova Coisa. Falar-te me custou DUAS FICHAS, o imposto sobre realidade está cada vez mais alto, e as máquinas cada vez mais perfeitas. Que a Coisa te faça bem. Se quiser, use meu corpo. Sempre gostei do seu pau tamanho médio. [VOLTANDO-SE AO NORMAL, PENDE A CABEÇA E SE RESTABELECE COMO MENDIGA AUTOMÁTICA]. Mendiga: Pelamordedeus moço me dá um trocado que eu tô doente operada das córna que meus óio tava terrírve e ieu inganhei a cergorgia de gráça mai tá fartãno o colíru [ETC. ROMEU NADA ENTENDE, E SAI ANDANDO]. Romeu: Julieta, para com isso. Fale comigo sobre a velha Verona, sobre os acontecimentos, como viemos parar aqui e o que será de nós no dia-após-dia da Coisa. O que aconteceu ao nosso eterno amor? Mendiga: O moço bonito aí tá a fim de sacanagem, é? É? Vem cá, meninão, vem aqui que a titia vai te mostrar uma caverna escura pra você brincar de escorregar, vem! [ROMEU CAI EM SI]. Romeu/Romualdo: Desculpe, senhora. Acho que estou delirando. Tchau, eu vou embora…

Cena 08 — Ext./Dia — Romeu vira mendigo Romeu [SENTADO NUM CANTO, COM CAIXOTE E GARRAFA, MENDIGANDO-SE AO PASSAR DOS DIAS <alternar luz azul // amarela // negra, + trilha sonora>]. [NUM PAPEL AMASSADO ESCRITO “SHAKESPEARE” ELE ANDA, SUJO, BARBUDO, LOUCO E LÊ:] “Na modernidade — onde quer que se encontre, indiferentemente — situamos sítio e cena, pessoas de igual dignidade, levadas por antigos rancores e injúrias, causam novamente nova e pior ruína, fazendo de sangue sujas mãos inocentes e dantes civis.” “Os terríveis momentos de tal vida e o amor pela mortalidade da transformação de pessoas em coisas (coisas insignificantes e imundas), isto não poderá ser retratado, não cabe no cômico.” “Somente com Sabão, Ordem e Beleza, a Civilização irá obter a vitória com a morte total da sujeira, a sujeira social dos filhos da civilização. E somente assim a ira implacável dos Deuses das Famílias (com todos os seus diferentes e diferentemente poderosos e ricos SOBRENOMES) poderá ser canalizada.” “Este terá sido [DIZIA O PANFLETO], durante um curto-período de tempo, o assunto de nossa representação” [TERMINANDO A LEITURA, ENTRA JULIETA] Mendiga: [VIRANDO-SE AO PÚBLICO/LENTE]: “E se a escutardes com atenção benévola, procuraremos nos redimir com perfeito zelo das faltas cometidas”. Romeu mendigo (para a mendiga, tomando-lhe a mão): “Se profano com minha mão este santo relicário, eis a gentil expiação: meus lábios, dois ruborizados peregrinos, estão prontos a suavizar com um terno beijo tão rude contato.” Mendiga: Me solta, cara. Me erra, porra!

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Cena 09 — Int./Noite — Palco Vazio, Sem Plateia — O boticário-diretor Boticário (monólogo): Pois a fingir-me que morro, prefiro de fato morrer. Que pior castigo por sobre mim incida, se não foi só por amor Que vivera sem ter vivido uma última breve existência. Confusos olhos, ouvidos, saberes-expectativas e expectorantes, respeitável público… preparemos-nos para grandes e acaloradas ondas de aplausos, vaias e deformações de toda ordem. O diretor gostaria de saber. E, por FIM, se acaso me perguntardes: “Quem foi teu guia para a descoberta deste lugar?”, direi simplesmente: “— Mesmo que todo o oceano longínquo fizesse estar tão longe tão belo espetáculo inútil, mesmo assim eu o percorreria inteiro, por Amor, somente e todo ele mesmo, que me incitou a indagar o ONDE e o QUANDO, sem explorar os PORQUÊS. A mim ressoa ‘porquês’ a ‘porquês’, a língua dos porcos.” [E ASSIM TERMINAM-SE AS FALAS, EXCETO PELO QUE DIZ POR ÚLTIMO]: — E foi tão-somente ao amor que eu lhe dei os meus olhos, minha vida inteira, e toda a minha tinta. Por amor executei, ponto-a-ponto, os passos de minha pena.

Cena 10 — Int./Palco — Cena Final. A mortalha das coisas [ROMEU E JULIETA MENDIGOS, AOS TRAPOS, CAIXAS E JORNAIS, IMÓVEIS, LADO-A-LADO, MÃOS DADAS OU NÃO. MÚSICA DE FUNDO E PROJEÇÃO DE DATASHOW SOBRE ATORES ESCRITO “(COISA RES THING CHOSE KOISA COSA ETC)”]. FADE OUT. CUT.

Fim

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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa Brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.

Capítulo 15 Uma Certa Brasília

então ficava encalhado em cima da mesa do Perica. E assim a vida ia correndo e nada funcionava. Os alunos fingiam que aprendiam, os professores fingiam que ensinavam e nós fingíamos que trabalhávamos. Eu e o Berinaldo morávamos no prédio do Ministério, sexto andar, num quartinho adaptado que mal cabia o beliche, em compensação tínhamos uma vista e tanto: a Catedral inacabada, a Rodoviária e a pastagem verde da Esplanada, completamente vazia depois das seis, e uma escuridão de quarto-minguante durante a noite. Durante o dia, um ou outro carro circulando vagarosamente. Outra vantagem é que descíamos dois andares e estávamos na repartição, não precisávamos encarar os ônibus sujos e fedorentos de Brasília. Depois de algum tempo neste paraíso, o Perica conseguiu um apartamento na Coreia e nos botou pra fora dizendo que o Ministério não era lugar pra morar, mas pra trabalhar; como se alguém trabalhasse naquela merda. Depois disso é que houve a tragédia, mas não consigo controlar o riso quando me lembro do Perica (o apelido era porque ele vivia reclamando, não ganhava uma tal gratificação de periculosidade). Qualquer um riria, mesmo a contragosto, se ouvisse a descrição da tragédia contada pelo Berinaldo. O Perica caiu

Conheci o Berinaldo na repartição. Éramos datilógrafos do MEC, entramos por concurso que exigia “duzentas dedadas por minuto”, como dizia o Claudio Rola. A nossa seção era chefiada pelo Perica, um baixinho chato pra cacete que ocupava uma mesa enorme, de modo a ficar bem claro quem mandava ali, quer dizer, quem achava que mandava. À direita do Perica ficava a mesa da Marinalva, à esquerda o Claudio Rola, o mais antigo funcionário do setor. Quem via aquele silêncio, aquela ordem, jamais poderia imaginar a tragédia que estava pra acontecer e que iria parar na manchete do Correio Braziliense. Nesta época, as mesas das repartições públicas não ficavam amontoadas coladas umas às outras como veio a ocorrer depois, e também não haviam inventado ainda as tais baias, cujo nome não deixa dúvida sobre os ocupantes. No lugar dos computadores, quem dominava as mesas eram as máquinas de escrever, menos a do Perica, que não precisava escrever nada, só assinava os documentos que encaminhava para outro chefete qualquer, que mandava para outro e assim aquele monte de papéis formavam um processo, que finalmente ia parar em alguma prateleira empoeirada, ou

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do quinto andar do Ministério, altas horas da noite, morreu na hora. Foi encontrado na manhã do outro dia estatelado na calçada com os olhos arregalados e nu em pelo. Ao lado dele, a Marinalva, mais nua do que ele. Ninguém sabe direito como foi, só se sabe que voaram juntos para o céu. Segundo a mulher do Perica, para o inferno, pelo menos foi o que ela berrou bem alto no cemitério. — Meu desejo é que os dois vão para o inferno! O fato é que a janela não aguentou o esforço, obra de carregação feita às pressas para inaugurar a cidade. A fofoca durou um ano, só acabou quando o novo chefe emitiu um memorando proibindo qualquer comentário sobre o caso, mas o Berinaldo continuava cochichando: “agora entendo porque ele queria ganhar a gratificação de periculosidade”. Todas as amizades, namoros, brigas, mortes e até casamentos em Brasília tinham origem no trabalho. Não tinha como haver amigos de infância (a cidade tinha cinco anos de existência) nem amigos dos botecos, não havia botecos, nem amigos da esquina, não havia esquinas. O apartamento que o Perica nos arranjou, como tudo na cidade, era extravagante, feito às pressas, o banheiro maior que a sala, a cozinha diminuta, o prédio foi construído ao rés do chão, sem pilotis, com um acabamento de terceira; e olha que o dinheiro da construção era dos Institutos de Previdência. As janelas pequeníssimas para reafirmar que eram apartamentos para os pobres, porque havia uma hierarquia das janelas, quanto mais pobre a casa ou o apartamento, menor o tamanho das janelas. Área pobre da cidade. Agora, nem é mais, porque os pobres foram sendo empurrados para cada vez mais longe, hoje estão a dezenas e até centenas de quilômetros. Naquela época, a estrutura urbana obedecia a uma hierarquia singular, os mais ricos moravam nas quadras 100 e 300 da Asa Sul, área mais alta com prédios bem acabados e janelões de fora a fora, os menos ricos nas 200 e os pobres nas 400, onde as ruas viravam lamaçais na época da chuva, que em Brasília

eram torrenciais e quando começavam não paravam mais e o pior é que iam de dezembro a março, passando por cima do Natal, Ano Novo e Carnaval. Ia me esquecendo dos “candangos”, os que trabalhavam pesado na construção. Esses moravam nas “invasões” e acampamentos construídos pelas empreiteiras. A Asa Norte, bem, a Asa Norte era um vazio, a não ser pela barraqueira que tomava conta da W3 Norte e pelos blocos de apartamentos rústicos nas 312 e 409, onde moravam funcionários públicos de baixo escalão, vindos do Rio por causa de uma grana extra no contracheque que chamavam de dobradinha, e não só por isso, mas também por causa dos choques de trens da Central, dos assaltos, dos preços dos aluguéis e outras coisas. Logo trataram de fundar a Acadêmicos da Asa Norte que se confrontava com a Unidos do Cruzeiro no Carnaval, sempre debaixo do aguaceiro. As mulatas, trazidas dos subúrbios do Rio, preparavam-se para o grande dia, lambuzavam a melhor maquiagem, sapatos altíssimos, caprichavam nas fantasias. São Pedro nem aí, bem na hora do desfile despejava toda a água acumulada durante os seis meses anteriores, o povo todo escondia-se debaixo das marquises da W3 Sul, até a comissão julgadora corria para o Caravelle enquanto passava o temporal. Finalmente mudaram o Carnaval pra Rodoviária, pelo menos não chovia e tinha a vantagem de ser o ponto final dos ônibus. A quadra em que morávamos era a 409/10 Sul. Também chamada de Coreia, tinha sido invadida e depois esvaziada pela polícia, foi uma verdadeira guerra, tiros, mortes e pancadaria, daí a menção à Guerra da Coreia, terminada nos anos cinquenta. Em Brasília era comum a invasão de terrenos e até apartamentos. Quando eu e o Berinaldo fomos tomar posse do tal apartamento desajeitado que o Perica conseguiu, tinha sido invadido, qualquer imóvel vazio era ocupado, o sujeito viajava e quando voltava a casa tinha sido invadida por alguém. O cara pregou na porta um cartão de um deputado, daqueles que andavam por aí dando golpes, autorizando-o a morar no local. Cha-

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mar a polícia era perder tempo como sempre, então o Claudio Rola arranjou um alicate de cortar cadeado, diz ele que veio dos americanos, coisa que eu nunca tinha visto, de uma eficiência atroz, foi “trac” e o cadeado voou longe, pegamos a cama e tudo mais que mobiliava o apartamento e jogamos pela janela, sentamos na porta e ficamos esperando o afilhado do deputado. O homem nem criou caso, pegou sua tralha, botou numa Kombi e caiu fora. Ainda berrei da janela: — Vá morar na puta que o pariu seu invasor filho da puta! Mandei que o sujeito fosse morar além das muralhas medievais que demarcavam os limites do Plano Piloto, para onde normalmente iam residir os muito pobres, que não queriam invadir áreas públicas e particulares, ficavam fora do Plano Piloto, em lugares que nem constavam dos mapas. Para os urbanistas de Brasília, se o local não constava do mapa, os moradores, para todos os efeitos, não existiam, urbanista só vê o mapa, a realidade que se dane! Esse era o Plano criado por um urbanista que se dizia socialista, imagine se não fosse. O pior é que tem gente que defende a muralha medieval até hoje, estes residem do lado de dentro, onde está o castelo presidencial, os hospitais, universidade pública, o Lago Paranoá com seus clubes exclusivos e outras benesses. O governo não permitia nem a prostituição no interior do muro, se bem que a putaria fosse de difícil controle, infiltrava-se pelos ministérios, palácios, embaixadas, castelos, legislativo, executivo e judiciário, invadia a W3 à noite, extravasava para o cerrado e estabelecia-se oficialmente na BR-040. O Berinaldo era um mato-grossense quieto, de poucas conversas e que raramente tomava banho. Na época do frio o homem mal lavava o rosto. Não sei como ele aguentava, porque a poeira vermelha infiltrava-se nos lugares mais imprevisíveis. Melhor assim, pensei. Jamais moraria de novo em “repúblicas” com muita gente, aguentando tipos que bebiam demais e viviam em função da genitália feminina. O

Gaúcho tinha razão, em Brasília estaria mais seguro e com aqueles endereços exóticos, ninguém achava ninguém. Como alguma pessoa poderia ser localizada no MSPW QI 19, CH 13 Casa 10, onde morava o Claudio Rola, meu colega de trabalho que vira-e-mexe me convidava para um churrasco. Sabia que era uma chácara, ele sempre distribuía um mapa e mesmo assim era uma batalha pra achar o lugar, perguntava a um, indagava de outro, apontavam o dedo e nada. Não havia bairros, as ruas não tinham nomes, nem placas. Agora botaram umas plaquinhas no Plano Piloto, nas cidades periféricas continua como sempre, sem placas de ruas, mas também se tivessem não adiantaria nada, as ruas não têm nome, é sempre uma mistura de letras e números que anteciparam os códigos dos bancos e computadores. Não era bem uma cidade, não no sentido tradicional, mais parecia um canteiro de obras extravagante, prédios estranhos, distantes demais uns dos outros e entre eles pequenas árvores retorcidas, rodeadas por uma vegetação rasteira alheia aos meus olhos, acostumados com a Amazônia e com a Mata Atlântica. Ali não adiantava sair apalpando, observando a roupagem da cidade, a cidade ainda era uma criança e andava nua. Não havia ruas, nem becos, esquinas, nada! Os bares e botecos ficavam nos lugares mais inesperados, assim como os cinemas. As coisas nunca pareciam ser o que eram na realidade, igrejas se assemelhavam a armazéns, padarias pareciam cinemas, o Cine Brasília, visto de fora, tanto poderia ser uma escola, um templo protestante e até mesmo um cinema; imagine um cinema sem um café ou bar nas proximidades? Todos os prédios pretendiam ser monumentos, soltos, expostos pelos sete lados, incluindo o de dentro, porque o vidro era obrigatório. E o que era mais bizarro: não havia praças. Outra coisa que me deixava perplexo era o número de palácios, era palácio disto, daquilo, do Jaburu, do Alvorada, Itamarati, do Comércio, e por aí ia aquele excesso de palácios. No Rio, que eu conhecia bem, lembrava apenas do Palácio do Catete e o das

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dentro que não conseguia divisar de longe. Aproximei-me, curioso, tentando saber que produto precioso era aquele, que obrigava as pessoas interessadas a tanta espera e quando recebiam saíam exultantes, correndo, dando pulinhos. Ouvi claramente o camelô gritar: “este é garantido!” Imaginei que fosse algum remédio popular feito de ervas, tinha uma cor amarronzada, acabei por perguntar a um dos compradores, que me olhou desconfiado e não respondeu, aguçando ainda mais minha curiosidade. Finalmente, a muito custo, cheguei ao bolo de gente e indaguei do dono do negócio, que me respondeu secamente: — É fezes, mas é garantido, não tem qualquer tipo de lombriga, com nossa merda seu exame de fezes dá sempre Negativo. Aí entendi tudo! Os empregadores exigiam abreugrafia e exame de fezes que, levadas ao laboratório, davam negativos para os nossos vermes habituais, se os candidatos ao emprego levassem suas próprias fezes certamente daria positivo para uma infinidade de lombrigas e eles perderiam a vaga. Já tinha visto muita coisa na Amazônia, no Rio e em outros lugares, mas nunca tinha visto ninguém comprar merda. A partir daquele dia passei a acreditar que no Brasil podia-se vender qualquer coisa que teria compradores. Comecei a acreditar que assim como um produto daquele tinha compradores, por que eu mesmo não poderia me dar bem naquela cidade, oferecendo minhas competências? Confesso, fiquei mais confiante, cheguei a pensar em estudar, terminar o primário, fazer o ginasial e científico. Meu pai fez minha inscrição no Pedro II, que promovia uma prova anual, dava direito ao diploma do ginásio, um tal Artigo 91. ■

Laranjeiras, além do Cine Palácio, que era um pulgueiro. Os palácios de Brasília pretendiam ser palácios mesmo, com mármores, granitos, estátuas, lagos e tudo mais. Na certa, tudo aquilo seria, no futuro, preenchido pela nobreza brasileira: reis da malandragem, príncipes da sacanagem, barões do jogo do bicho e marqueses do contrabando. Zanzando pelos lados da rodoviária, bateu-me a curiosidade e fui ver no Teatro Nacional, cujo prédio era uma espécie de pirâmide com o cume cortado (devia ser influência egípcia), uma exposição sobre o plano de Brasília. Era tudo muito certinho, arrumadinho, com um setor para cada coisa, bancos, comércio, escolas, cinemas, hospitais e até igrejas tinham seu setor; contei oitenta. Achei um exagero, mas pensei que no Brasil era assim mesmo, ou ordem demais ou zona total. Tantos setores a serem edificados, tantas pirâmides e palácios resultavam em obras, e obras provocavam a chegada em massa de migrantes pobres de todo o Brasil procurando emprego e isto não faltava, as construtoras iam buscar os operários onde estivessem. Parecia uma daquelas cidades do Faroeste que víamos no cinema, gente de todo o Brasil tentando melhorar de vida e passando por cima de tudo. Uma cidade de aventureiros, atrás de ouro ou diamantes, e o caminho das pedras era um emprego no governo. Foi em Brasília que vi, pela primeira vez, alguém comprando um produto insólito. A fila começava na W3 Sul na altura da 509, melhor, em frente ao Cine Cultura e ia até a 511, esticando-se por uns quinhentos metros, e o mais singular, só tinha homens. No princípio da fila notei um ajuntamento maior de pessoas e bem no centro um camelô, vendendo uns frasquinhos miúdos com algo

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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o manto diáfano

nº 15 ∙ Brasília/DF ∙ 30 nov 2016

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