Revista eletrônica ∙ nº 13 ∙ Brasília/DF ∙ 10 out 2016
As estruturas não descem às ruas Os Marcelos da eleição carioca Paradoxos da conjuntura Eu não acredito A Guerra da identidade
O Desafio da Colômbia ao Brasil
4 As estruturas não descem às ruas
6 Revista eletrônica Nº 13 ∙ 10 out 2016 ∙ Brasília/DF
Paradoxos da conjuntura
VERBENA EDITORA
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CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Carlos Alves Müller George de Cerqueira Leite Zarur Marcus Freitas Mireya E. Valencia Perafán Paulo Baía Paulo Timm EDITORES Arno Vogel Benicio Schmidt Carlos Alves Müller Fabiano Cardoso DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico) FOTO DE CAPA www.pixabay.com – CC0 Public Domain
Eu não acredito!
9 Os Marcelos da eleição carioca
10 O desafio da Colômbia ao Brasil
14 A Colômbia terá uma terceira oportunidade sobre a terra?
17 A simbologia da Nossa Senhora na América Latina
22 VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br
Tapa na orelha
25 Encaixotando Brasília
EDITORIAL N
este 13º número do Manto Diáfano trazemos algumas análises após os primeiros debates para o 2º turno em algumas das principais capitais brasileiras que ainda necessitarão do pleito para eleger seus prefeitos. Paulo Timm analisa a conjuntura político-econômica brasileira após o primeiro turno dessas eleições municipais e de como o derrocada do PT, o grande número de abstenções e votos nulos e o pluripartidarismo irão lidar com os novos tempos e como isto pode ser um sinal de aviso à reforma política e eleitoral. Como os novos (velhos) atores políticos reagirão a esta nova conjuntura a se formar? Benício Schmidt, nosso editor-chefe, faz um balanço da monotonia pós-eleitoral que deve atingir o Brasil pelos próximos 2 anos e, paralelamente, traça o perfil da Seleção brasileira de futebol e de como Tite pode inspirar os políticos e seus partidos a reerguerem um país quebrado. Marcus Freitas, Professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), analisa as eleições para prefeito de Belo Horizonte sob a ótica de um Atlético x Cruzeiro e com todas as mandingas que um escrutínio com cara de decisão ludopédica pode ter. Paulo Baía, Sociólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), traça os erros e acertos do último debate entre os Marcelos do Rio de Janeiro e o que ambos devem fazer para angariar os eleitores indecisos e os que se abstiveram em escolher algum candidato no 1º turno. Tarefa difícil para candidatos nem tão antagônicos nem tão semelhantes. Carlos Alves Müller escreve sobre outra eleição: mais precisamente o plebiscito realizado este mês na Colômbia que referendou a derrota de um acordo de paz entre o governo e as FARC; uma luta armada que já dura cinquenta anos. Aqui, Carlos Müller faz uma comparação numérica do conflito caso este tivesse ocorrido no Brasil. Os números impressionam. Mireya Perafán, socióloga e professora da Universidade de Brasília (UnB), como colombiana nos dá a noção do que pode representar a decisão deste plebiscito para a Colômbia e de como a vitória do NÃO pegou a todos de surpresa. Do livro editado pela Verbena Editora, “A Guerra da Identidade: ensaios latino-americanos”, de George de Cerqueira Leite Zarur, trazemos trecho acerca da relação entre as Nossas Senhoras e a população negra, indígena, mestiça e de como isto moldou algumas das características nacionais na América Latina. Fabiano Cardoso narra uma história sobre relacionamentos e de como os fetiches podem apimentar ou destruir uma relação a dois. Em mais um capítulo de nossa novela em terras brasilienses, Arnaldo Barbosa Brandão narra as peripécias de quem, da prisão do fim do mundo, conta a Gaúcho como tomou um quartel general do exército durante o golpe de 1964.
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As estruturas não descem às ruas Paulo Timm – Economista
“S
e erros foram cometidos devem ser corrigidos e não mais repetidos”. (Ex-senador Eduardo Suplicy, ao comentar sua eleição recente para a Câmara de Vereadores de São Paulo; foi o mais votado com mais de 300 mil votos).
menos aprisionada a “interesses”. Não é fácil montar e manter isso. Fica aqui a lembrança para que se assista com atenção duas séries no Netflix: “Marselha” e “House of Cards” que tratam do assunto. 3. Quanto aos outros Partidos, o PSDB, segundo em votos e controle de Prefeituras, mas “terceiro” na hierarquia simbólica, até pelo peso de seus grandes nomes, dentre eles o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, a dupla José Serra/Aécio Neves, ambos ex-candidatos à Presidência da República com 50 milhões de votos, e agora o Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, já está com maior número de eleitores, mas ainda não conseguiu se organizar nacionalmente. O PSOL, em contrapartida, surpresa da vez, pela vitória relativa do deputado Freixo, que disputará, em desvantagem, com Marcelo Crivella o segundo turno na cidade do Rio de Janeiro, ainda é um fenômeno urbano, ao estilo do Podemos espanhol. Deverá até se consolidar como uma alternativa de esquerda mais consistente e sem os pecados do PT, mas, tendo saído de seu ventre, padece de vícios semelhantes, como a disputa interna marcada pela intolerância doutrinária, pela qual perdeu até ex-candidata à Presidência em 2010, Heloísa Helena. Mas o PSOL não tem uma liderança popular de massas, não tem visão para a construção de um Projeto Nacional, não tem articulação com movimentos sociais e sindicatos, não tem envergadura no país para ocupar o vazio deixado pelo PT. Pior: terá, no máximo, duas prefeituras. 4. Uma característica pouco notada destas Eleições Municipais de 2016 foi a consagração de um conjunto de partidos com forte expressão eleitoral, além dos tradicionais PMDB – PT – PSDB, que dominam há mais de três décadas a vida pública do país. Ela é o resultado de duas medidas: a flexibilização para a fundação e funcionamento dos Partidos, sem qualquer cláusula de restrição, e do apoio financeiro do Governo por meio não apenas do generoso Fundo Partidário, cujo Orçamento já beira o R$ 1 bilhão, mas também ao subsídio que dá às emissoras de rádio e
1. Encerrado o primeiro turno das Eleições 2016 três observações se impõem preliminarmente. Primeira: o grande vencedor deste pleito foi a rejeição de 40 milhões de eleitores, entre Abstenções + Nulos + Votos em Branco, ao que aí está, o que é um nítido alerta para a urgência de Reforma Política e Eleitoral; segunda observação: o PT levou uma surra, talvez mais por rejeição às suas práticas do que pela “revoada liberal”, tanto nas capitais como no Nordeste, devendo alertá-lo para uma renovação no discurso de suas lideranças no sentido de avaliar as razões internas para este refluxo e não apenas acusações a terceiros; terceira: o sistema pluripartidário, tão criticado por dificultar a governabilidade, está consagrado no país. 2. Quanto à derrocada do PT, fato mais marcante do pleito de 2016, não se deve falar nem em alvorada de um novo tempo, nem crepúsculo da sigla. Nem invenção, nem reinvenção. Apenas percalços. Será muito difícil este Partido mudar sua dinâmica interna, com a acirrada disputa de correntes, algumas delas francamente principistas quanto ao caráter de “classe” do Partido, voltado ao cumprimento de missão messiânica, e quanto à sua vocação para a construção do “socialismo”. Externamente, no contexto político nacional, o PT, apesar de ter perdido milhões de eleitores e metade das prefeituras que ocupou em 2012, continuará a ser um grande partido. PMDB e PT, aliás, continuarão a ser os dois maiores Partidos no país – e por longo tempo. Quase “irreversíveis”. Se organizaram ao longo do tempo no vasto território nacional e detêm, ambos, importantes canais de controle do processo eleitoral. Voto não é apenas um apertar solitário de botão na calada da urna. É uma “rede”, sempre mais ou 4
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TV para custear a propaganda eleitoral obrigatória. O PSD, o PDT, o PSB, o PR, o DEM, e o PTB controlarão entre 200 e 400 municipalidades cada um. Outro grupo menor, o PPS, PRB, PV, PSD e PCdoB, em torno de 100. Ora, isso revela uma diversificação partidária muito grande que está combinando opções de caráter ideológico com alternativas de interesses inclusive pessoais. Debita-se à essa diversificação permissiva a ingovernabilidade do país e que agora estará se deslocando para “Prefeituras de Coalização”, agravando o loteamento de cargos e do Estado. Talvez. Mas há que se considerar, também, que este processo é uma porta à abertura de lideranças que, de outra forma, seriam sufocadas pelas oligarquias que dominam os partidos mais antigos e mais fortes. Nesse sentido, ainda que paradoxalmente, a diversificação partidária é uma válvula à democratização da vida pública e, por vias tortas, um dos mecanismo de reforma política no país. 5. É possível falar em retrocesso da esquerda, à vista do fracasso do PT, nessas eleições como consequência de uma onda conservadora que varre a América Latina? Depende do que se entende como “esquerda”, tal como o PT a empolgou. Certamente os brasileiros disseram um rotundo “Não” ao discurso do “Nós contra Eles” do PT que acompanhou a estigmatização da classe média, tão cara ao empreendedorismo, à meritocracia e aos valores republicanos. Contudo, várias pesquisas continuam afirmando que os brasileiros almejam um modelo político-econômico com economia de mercado e forte intervenção do Estado como instrumento de regulação, promoção da cidadania e defesa dos mais vulneráveis, justamente o que os petistas diziam defender. Daí, aliás, os cuidados do Presidente Temer quanto às “Reformas” inseridas em seu programa “Ponte para o Futuro”, tão proclamadas, mas em rigoroso ponto morto. Não há clima na nação, nem no Congresso Nacional, para aventuras liberalizantes, ao gosto do novo PSDB de João Doria, Prefeito eleito de São Paulo. Sua vitória acachapante na quase totalidade das zonas eleitorais da cidade se, por um lado consagra a tendência politicamente mais conservadora desta capital frente a Rio, Porto Alegre e Recife, históricos redutos da esquerda, por outro, sugere a incapacidade do Prefeito Haddad para se firmar na periferia, com seus projetos urbanisticamente avançados. O espaço aberto foi ocupado pela astúcia tucana. E falando nos redutos históricos da esquerda, veja-se: o Rio de Janeiro mantém sua tradição rebelde, ao levar Freixo para o segundo turno, Recife sustentou o próprio PT no segundo turno e vai disputar com outro candidato de esquerda,
e apenas em Porto Alegre e outras cidades de maior porte do cenário rio-grandense percebe-se mesmo um retrocesso da esquerda. Isso me lembra uma velha queixa dos maragatos, que combatiam em armas os chimangos, arautos da esquerda no Estado do RS, instalados no Palácio Piratini entre 1889 e 1930, inicialmente pela mão de ferro de Júlio de Castilhos, depois de Borges de Medeiros, depois Getulio Vargas: “Não é por acaso que eles são autoritários...” Lembre-se, entretanto, voltando à cena nacional, que o PCdoB, aliado incondicional do PT, passou de 51 para 80 prefeituras, o PDT, outro aliado, embora mais vacilante, cresceu de 330 para 334, o PSB fez 414, as quais, somadas as 256 vitórias do PT perfazem 1/5 do total das municipalidades do país. O que não é pouco. Não carece de se falar em grande retrocesso da esquerda no país. Além dos resultados eleitorais, aí estão os movimentos sociais em inédito protagonismo, principalmente jovens estudantes. Estamos, sim, diante de uma nova realidade na esquerda brasileira em virtude da perda de hegemonia do PT e emergência de novos protagonismos aos quais deverá se articular, de uma ou outra maneira o PPS, em nova rota, a REDE de Marina Silva, embora em declínio, e o próprio PV, sempre cioso de sua maior independência. Isso sem falar na esquerda peemedebista, à la Requião no Paraná.
Conclusão Passada a “tempestade” destas eleições – surpreendentes em todo sentido –, do impacto do Impeachment de Dilma, da Lava Jato, que daqui a pouco serena seu ímpeto deixando uma sequência de sentenciados em suas poltronas sob o controle de meras tornozeleiras eletrônicas, da brutal recessão econômica que o PT ainda se recusa a admitir e de admitir sua parcela de responsabilidade, voltaremos às “estruturas”, marcadas pela presença, à esquerda, pelo PT e movimentos sociais e, oxalá, novos agentes, ao centro pelo PMDB, suas prefeituras e amplas classes médias ao longo do país e, à direita, pelo PSDB, apoiado pela grande mídia e grandes fortunas. Elas, as “estruturas”, aliás como diziam os estruturalistas teóricos em maio de 1968, na Paris convulsionada, “não descem às ruas”. Mas estão lá… E se não aprenderem a conviver com um mínimo de civilidade republicana, não construiremos a democracia. Com a recuperação do bom senso, daqui a pouco estaremos todos discutindo a sucessão presidencial de 2018. ■ 5
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Paradoxos da conjuntura Benício Schmidt – Editor e Cientista Político
A
política vai ficando bastante monótona, pelo menos até 2018. Vão reinventando estilos e modas; enquanto crianças serão visitadas por “especialistas”, “prá mó” de darem certo no futuro. Como isso será feito? Ora, depois veremos, pois temos a PEC 241, sobre o teto de gastos, depois teremos de encaminhar a mudança da Previdência, a definitiva regulamentação da repatriação dos capitais ilegalmente depositados no Exterior, teremos de encaminhar uma pequena Reforma Política que será centrada na cláusula de barreiras e na proibição de coligações em eleições parlamentares, e assim por diante. Mas devo agora me referir a uma nova e repentina onda de monotonia que certamente nos levará à depressão. Puseram o TITE no comando da Amarelinha. Ele começou falando e falando. Depois foi a campo. Não precisou treinar muito, porque os jogadores já tinham ouvido suas messiânicas palestras e visto, à exaustão, suas entrevistas na TV. Era só agregar a bola (“agregando valor”, apud Tite)… e estava tudo encaminhado. Pois foi. Não paramos de ganhar de los hermanos… e o público foi enrouquecendo, gritando “Tite! Tite!”… Esquecendo o “Fora Temer”, gradualmente, pois entre uma e outra coisa houve eleições municipais e daí… Bem, todos sabem a história. Aí, na última partida jogada pelas eliminatórias da Copa do Mundo da Rússia (1918), além de golear os Bolivianos e Bolivarianos, a turma jogou bonito, o Neymar vai se tornando um “cidadão” a fórceps embaixo da asa de Tite, ardiloso vai enquadrando o pivete. Curioso, no Barcelona ele não apronta, mas aqui faz de tudo para irritar os adversários e chamar a atenção do distinto público. Mas, do ponto de vista estritamente técnico, acho que a entrada de Philippe Coutinho (assim mesmo!) e Giuliano… fez a mudança… São muitos os fatores, mas Tite, ao final da peleja, voltou a dar entrevistas… que não terminam de tantos detalhes. O diabo mora nos, vem só, detalhes, e Tite é seu escrutinador, ou seu hermeneuta. De repente, a Amarelinha é favorita, joga bem e temos menos um problema nacional. Vamos ficar paralisados diante disso, ou vamos exigir mais
tensões e desorganizações com destemperos? Não estávamos acostumados com a serena solução da Questão Nacional. O futebol é uma delas. O que fazer? Como vamos interditar as palestras de Tite na mídia, com seus ensinamentos, sua disciplina conquistadora? Onde vamos parar? Sem dúvidas, Tite abre o primeiro paradoxo da conjuntura, com o país se estrebuchando na crise econômica e fiscal e a seleção brasileira de futebol dando certo. Mas houve eleições municipais, como sabemos. O PT foi amplamente minimizado, em tamanho de eleitos (prefeitos e vereadores) e também pela perda de grandes capitais, como é o caso de São Paulo. No conjunto do país, com prefeituras conquistadas ainda no primeiro turno, os vitoriosos foram PMDB (1.028 prefeituras) e PSDB (792). O segundo turno deve confirmar essa tendência, claramente. Considerando os municípios acima de 50 mil eleitores, que somam cerca de 85 milhões de eleitores, o grande vencedor, mesmo sem o segundo turno em 55 cidades, é o PSDB, que elegeu 14 prefeitos em primeiro turno e 70 nas cidades médias. Superando amplamente o PMDB, que elegeu 7 no primeiro grupo e 53 no segundo. PSB e PSD são os principais emergentes, indicando uma forte tendência de fortalecimento das suas bancadas na Câmara Federal em 2018. Ainda há indícios de ressurgimento do DEM. Do outro lado, o PT naufragou nessa faixa, conseguindo eleger apenas 1 prefeito em primeiro turno (Rio Branco) e com apenas 1 candidato em segundo turno das capitais (Recife). Na faixa média ainda conseguiu eleger, simbolicamente, 13 prefeitos, dos quais apenas 2 em São Paulo, 3 foram no Rio Grande do Sul. O PSD emerge na Bahia na faixa média, com 7 Prefeitos eleitos contra apenas 1 do PT de Jaques Wagner e do atual Governador Rui Costa. Em Minas Gerais, onde o Governador Fernando Pimentel é do PT, este só conseguiu eleger 2 prefeitos entre as cidades médias. O PSB, com 35 prefeitos eleitos nas cidades médias, é a terceira força com 10 prefeitos eleitos em São Paulo, o dobro do alcançado em Pernambuco. O PDT, como alternativa ao PT não parece ainda ter 6
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musculatura suficiente, embora tenha reeleito o Prefeito de Natal, em primeiro turno e 22 prefeitos na segunda faixa, dos quais 6 ainda no Rio Grande do Sul, resquícios do legado brizolista. No Ceará, onde os irmãos Gomes tentam um protagonismo nacional, foram apenas 3, mas melhor que o PSDB, de Tasso Jereissati, que elegeu apenas 1 nessa faixa. Um caso ilustrativo da decadência, talvez momentânea, do PT e seus aliados ocorreu nas eleições à prefeitura de Santos (SP). A candidata petista, Carina Vitral (PCdoB), ex-presidente da UNE, fez apenas 6,61% dos votos, contra o vencedor Paulo Alexandre Barbosa (PSDB) com 77,74% dos votos. Em todo o país houve alto índice de abstenções (18%), quase igual ao de 2012 (16%). No Rio de Janeiro foi maior (26%), um quarto do eleitorado! Esse índice, dadas as alternativas entre Marcelo Crivela e Marcelo Freixo, deve aumentar no segundo turno. As ausências serão facilmente justificáveis em cartórios, para que não haja penalidades e impedimentos aos eleitores faltosos. Todavia o Estado castiga pesado quem não vota, exercitando um direito de não ir às urnas. Coisa que na maioria ampla das democracias no mundo é garantida aos cidadãos. Nelas, o voto é um direito. Aqui é tratado como obrigação. Imposição negada por boa parte do eleitorado que, por isso, é tratada como alienada. Convicção compartilhada por partidos à direita e à esquerda, que na Constituinte de 1988 derrotaram a proposta do voto facultativo sob o argumento de que o voto obrigatório seria uma garantia democrática em país de pouca educação. Posta na mesa a questão, quase uma exclusividade do Brasil no mundo, temos de reconhecer que o eleitor derrotou, na prática, a obrigatoriedade do voto. A Reforma Política deveria contemplar a possibilidade do voto facultativo, diante desse comportamento?
As ausências serão facilmente justificáveis em cartórios, para que não haja penalidades e impedimentos aos eleitores faltosos. Todavia o Estado castiga pesado quem não vota, exercitando um direito de não ir às urnas.
O grande paradoxo da conjuntura surge do fato que as vitórias, até aqui, de prefeitos e vereadores, dificilmente têm sido resultantes do trabalho dos partidos políticos. O caso da eleição de João Dória Jr. em São Paulo não pode ser tomada como vitória do PSDB, mas sim, no máximo, de uma divisão que teve em Geraldo Alckmin seu grande protagonista. Dória dificilmente governará com quadros do PSDB, que lhe negou apoio unânime, obrigando-o a patrocinar sua própria campanha com as relações sociais e empresariais que possui. O mesmo aconteceu com a emergência e atual liderança para o segundo turno do Deputado Nelson Marchezan Jr. (PSDB), candidato a prefeito de Porto Alegre. Ele tem sido apoiado por grandes empresas, pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e outras forças extra-partidárias. Por enquanto é o favorito, com 60% das preferências dos eleitores; enquanto o PSDB fez apenas 1 entre 36 vereadores. Dória Jr. e Nelson Marchezan Jr. são vitoriosos, sem que o PSDB saia como vitorioso, paradoxalmente! Sinal dos tempos, sintomas de que a opinião pública não se identifica com programas partidários, nesta época de grande questionamento das instituições políticas no Brasil. ■
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Eu não acredito! Marcus Freitas – Romancista
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e uma coisa sabemos: em Belo Horizonte, dia 30 de outubro, vai dar Galo na cabeça. Seja qual for o eleito no segundo turno, o chopp será na sede de Lourdes. Gaalôôôô! Eu sou atleticano, e há anos estou esperando o Galo vencer, mas esse ano não falha. Você viu o número do candidato João Leite? 45. Exatamente leitor, 45. Pois faz quarenta e cinco anos que o Galo não ganha o campeonato. Não é para acreditar? A hora é agora! Foi por isso que o João não ganhou antes. Esperou coincidir o número do partido com o do tempo de espera. Sabe como é, simpatia de goleiro. Mas você já está se perguntando: e se der Kalil, cujo número é 31? Ora, trinta e um anos se passaram entre o nosso campeonato de 1971 e o ano de 2002, o do último campeonato de mata-mata. Dali para a frente foram pontos corridos, e estamos na 14ª edição desse formato, entendeu? 45 menos 14 é igual a 31, portanto pode dar Kalil que a gente ganha do mesmo jeito. Não tem erro! Se bem que, numa disputa entre João Leite e Kalil, o melhor mesmo era um mata-mata. Se um perder, o outro perde também. Sabe aquele 0 x 0 tão ruim que dá vontade de que ambos os times percam pontos? Pois é, estamos assim. O único consolo é que os jogadores que estavam na reserva, e não conseguiram vir para o segundo tempo, eram ainda piores. Você acha que é metáfora? Quantos candidatos você pensa que concorreram ao caneco em Belo Horizonte? Onze. Isso mesmo, você acertou: onze! Um time completo, assim escalado, à antiga: João Leite, Rodrigo e Délio; Vanessa, Sargento Rodrigues e Maria; Kalil, Tibé, Eros, Marcelo e Reginaldo Lopes. Até o número de candidatos era premonitório. Por isso que eu digo, é a hora. Tá certo que o time todo era muito ruim, do goleiro ao ponta esquerda, mas fazer o quê, não é? João Leite é o guarda-metas. As metas todas que ele anunciou vão ficar guardadas se ele ganhar, porque dinheiro não há; Délio, o candidato da continuação, jogou toda a disputa na defesa, bem plantado, sem sair do lugar; Rodrigo, o PMDBista, de vez em
Foto: Pixabay.com / CC0 Public Domain
quando foi ao ataque, mas é ruim no jogo de cabeça; Vanessa, do PSTU, e Maria, do PSOL, jogaram ambas na lateral, sem avançar; Sargento Rodrigues, do PDT, policiou o meio-campo, sem sair pro jogo; Kalil está jogando de ala, diz que vai furar o bloqueio adversário com seus dribles. É ver para crer; Tibé, do PTdoB, é aquela promessa da base, que quando sobe ao time principal se perde no meio da partida; Eros, do PROS, quer ser centroavante, mas não acerta o gol; Marcelo, do PR, se propõe a pensar o jogo, mas tem um futebol muito burocrático; E Reginaldo Lopes, do PT, ficou esquecido lá na ponta esquerda. Ninguém deu bola para ele. Com um time desses, não admira que a peleja vá para os pênaltis entre João Leite e Kalil. João parece levar alguma vantagem, porque ao mesmo tempo chuta bem e é goleiro. Mas Kalil pode bem tirar um coelho da cartola. Opa! Isso não, nada de coelho, senão dá América! Melhor o cartola tentar cantar de galo. O que me preocupa um pouco é que o hino do Atlético diz, em seu verso mais característico, que “nós somos campeões do gelo”. Pode ser que, em qualquer caso, a gente entre numa fria. Mas não tem nada não. O que importa é que o Galo vai ganhar. Eu não acredito! ■ 8
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Os Marcelos da eleição carioca Paulo Baía – Cientista Político
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aço aqui as observações que fiz no dia 07 de outubro na rádio BandNews sobre o debate de candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro. Escolhi a ordem por sorteio que fiz. Assim, vamos a Marcelo Crivella: Marcelo Crivella estava calmo e bastante à vontade frente às câmeras de televisão, mostrando que domina o meio televisivo e conhece o público que ouve rádio e vê televisão. Crivella fez suas falas em sintonia com o que dizem as pesquisa qualitativas, repetiu os discursos vitoriosos em São Paulo e Salvador, fez um contundente apelo à austeridade fiscal e sinalizou para a diminuição dos gastos de governo com gestão honesta e despartidarizada, com o anúncio de enxugamento da máquina estatal e corte radical nos cargos de natureza política. Desqualificou a gestão de Eduardo Paes e o PMDB, mas fez uma ponte para os eleitores de Pedro Paulo e sobretudo para os vereadores eleitos para a Câmara Municipal. Crivella falou para os seus eleitores e para 71% do eleitorado que votou nos candidatos derrotados no primeiro turno, assim como para quem se absteve, votou nulo ou em branco. A estratégia de Crivella foi eficiente ao mirar nos que têm uma visão estigmatizada de Crivella como fundamentalista religioso, além de demostrar emoção em seu discurso televisivo. Como exemplo disso indico as falas sobre o carnaval carioca, a parada gay e as citações de natureza acadêmica de César Benjamim e Fernando Mac Dowell. Crivella não falou para seus eleitores exclusivamente, ou seja, não falou para convertidos. Agora vamos para Marcelo Freixo: Marcelo Freixo passou uma sensação de estar ansioso frente as câmeras de televisão; foi muito frio em termos de emoção, só havendo uma fala em que a emoção foi visível, nas considerações finais. Com boa presença no vídeo, Freixo falava extensivamente sobre os temas em pauta, o que o obrigava a
realizar falas longas e rápidas. Isso não é bom para a televisão, que exige falas sintéticas e muito objetivas. Freixo desperdiçou preciosos segundos falando muito do PMDB e não de Eduardo Paes. Como o próprio Freixo disse, sua proposta de governo é longa e detalhada. E ao apresentá-la Marcelo Freixo não era sintético como o tempo de televisão exige. Assim, ele recorreu a falas excessivamente acadêmicas e conceituais, como quando procurou diferenciar estatizante de publicizante, e quando contou a história do morro da providência. Exemplos que em uma palestra são ótimos. Porém, apenas iniciados compreendem e assimilam tais referências em um debate de televisão com pouco tempo para esclarecimentos. Marcelo Freixo teve excelente desempenho para quem já é seu eleitor e para sua assessoria, mas não falou para os 71% de eleitores que não votaram nele nem em Crivella. Assim, tenho a percepção que Freixo falou para convertidos e iniciados, pecando pelo excesso de academicismo. Em seu conjunto o debate da BandNews foi ótimo, mostrando em especial a enorme diferença ideológica dos candidatos e suas visões bastante antagônicas de cidade. Também quero destacar que os candidatos a vice são dois excelentes e qualificados professores da UFRJ, com larga experiência em gestão. Fernando Mac Dowell e Luciana Boiteux são ótimos. Pode-se disser que os dois candidatos obtiveram êxito em suas estratégias de debate na televisão e no rádio. Avalio que a estratégia de Marcelo Crivella foi mais eficiente para fixar seu nome junto a maioria do eleitorado e a estratégia de Marcelo Freixo foi bem sucedida na formação de um campo ideológico, de valores e crenças humanitárias e sociais, mesmo que minoritário. ■ 9
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O desafio da Colômbia ao Brasil Carlos Alves Müller – Jornalista
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ireya e eu temos vários amigos brasileiros que viajaram à Colômbia nos últimos anos. Juntos, dariam uma bela excursão, em todos os sentidos. Alguns nos pediram dicas e orientações. Em um ou outro caso as perguntas se relacionavam à segurança. Não passaram por alguma situação difícil. Voltaram impressionados com aspectos diferentes da viagem, mas todos com a cordialidade, com a calidez dos colombianos e espantados: “que diferença em relação ao estereótipo da violência, da guerrilha e do narcotráfico”. Como se explica que esse país tenha derrotado um plebiscito destinado a referendar um acordo de paz? —, perguntam agora. “O Brasil não é para principiantes”, diz a conhecida frase de Tom Jobim. E quanto à Colômbia?
cia envolvendo não apenas as FARC, mas também o Exército de Libertação Nacional (ELN) – ainda em combate –, os “paramilitares” –, de extrema direita –, e outras organizações guerrilheiras que desapareceram, como o M19. Mas não inclui a violência política entre os Partidos Liberal e Conservador, ainda mais antiga, mas não menos sangrenta e cruel.
O espantoso número de vítimas Vamos fazer algumas extrapolações. Segundo o Alto Comissariado para a Paz colombiano, o conflito deixou, “ao menos”, 220 mil mortos e 45 mil desaparecidos. Pela nossa regra de três isso equivaleria a, “ao menos”, 1,1 milhão de vítimas. Antes de atribuir aos colombianos uma inclinação cultural à violência convém refletir um pouco, pensando no país de Tom Jobim. Segundo o Mapa da Violência 2016 – Homicídios por Armas de Fogo no Brasil, estudo do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz para a Flacso –, somente entre 1980 e 2014, 968 mil pessoas morreram à bala no Brasil, sem guerrilha e apesar da aprovação do resultado favorável ao desarmamento no plebiscito realizado em 23 de outubro de 2005. Claro que se os dados fossem calculados em proporção e relativos ao mesmo período, é óbvio que ainda assim seriam muito menores, mas nem tanto quanto razoável… No seu momento de maior expansão, as FARC chegaram a ter cerca de 20 mil guerrilheiros. Atualmente contam com 7 mil a 8 mil. Do lado oposto estão os 450 mil militares das três forças e da Polícia Nacional, que participam diretamente dos combates. No Brasil, isso significaria 1,8 milhão de homens e mulheres mobilizados, quando o efetivo brasileiro
De acordo com o Alto Comissariado para Refugiados da ONU, (ACNUR), somente de 1997 a 1º de dezembro de 2013 foram registradas oficialmente 5,2 milhões de pessoas deslocadas de seus locais de moradia pelo conflito, um drama que afeta desproporcionalmente as populações indígenas e afrodescendentes. Enquanto o Brasil tem uma população de cerca de 206,5 milhões de habitantes, conforme a estimativa do IBGE, a Colômbia tem quase 48 milhões. Ou seja, se num cálculo grosseiro fôssemos aplicar ao Brasil os dados sobre o conflito interno com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), iniciado há meio século, teríamos que multiplicar alguns números por 4. Claro que algumas estatísticas incluem vítimas e as consequências da violên10
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atual é de cerca de 330 mil militares, em ambos os casos, números do Banco Mundial. Já a Guerrilha do Araguaia, o maior movimento do gênero durante o regime militar, teve 70 guerrilheiros contra os quais foram mobilizados, direta ou indiretamente, 20 mil homens, pelo menos 750 em combate. Para manter suas forças armadas, o Brasil, em 2015, gastava 1,4% de um PIB de 1,8 trilhão de dólares. Já a Colômbia gastava 3,4% de um PIB de 290,1 bilhões de dólares. O percentual é o maior das Américas, Estados Unidos inclusive, que gastam 3,3%. De acordo com o Alto Comissariado para Refugiados da ONU, (ACNUR), somente de 1997 a 1º de dezembro de 2013 foram registradas oficialmente 5,2 milhões de pessoas deslocadas de seus locais de moradia pelo conflito, um drama que afeta desproporcionalmente as populações indígenas e afrodescendentes. O Comissariado Colombiano menciona “ao menos” 6,7 milhões de deslocados e 9 milhões que foram deslocados ou perderam suas terras. Pelo mesmo cálculo, no Brasil, seriam entre 20,8 milhões e 36 milhões. No primeiro caso, o equivalente a toda população atual de Minas Gerais e, no segundo, mais do que a população somada dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. É isso mesmo! Espantoso, não? Como 51% dos deslocados foram para as 25 maiores cidades, não é difícil pensar o impacto disso sobre as condições sociais urbanas. A área rural despovoada ou tomada dos agricultores pelos envolvidos no conflito, segundo o ACNUR, é de 2,6 milhões de hectares. Como o Brasil é aproximadamente 7,7 vezes maior que a Colômbia, aqui isso seria o equivalente a 20,1 milhões de hectares ou 201 mil km2 – mais do que todo o Estado do Paraná. O terrível drama humano tem outros números não menos tenebrosos com relação aos quais se poderia fazer a mesma extrapolação para a realidade brasileira: “pelo menos” 2 mil massacres, 30 mil sequestros, 13 mil vítimas de violência sexual, 11 mil de minas antipessoais. Diante desses números, cabe perguntar novamente e com mais veemência: como se explica que esse país tenha derrotado um plebiscito destinado a referendar um acordo de paz? De fato, é difícil explicar. Tão difícil que o Presidente colombiano Juan Manuel Santos e o líder das FARC Timochenko (Rodrigo Londoño Echeverri) sequer se deram ao trabalho de elaborar um “Plano B” para o acordo de paz, no caso da derrota no
plebiscito. Declararam isso antes da votação e a perplexidade posterior o confirma. Não estavam sós. Pouca gente acreditava que o NÃO poderia vencer. Embora a assinatura do acordo antes do plebiscito fosse uma agência da Corte Constitucional, era difícil imaginar que não viesse a ser confirmado pela população. As negociações terminaram em Havana, no dia 24 de agosto. O acordo foi assinado em Cartagena de Índias, em solenidade testemunhada por governantes de inúmeros países, em 26 de setembro, e o plebiscito, realizado em 02 de outubro. A Fernando Henrique Cardoso não deve ter ocorrido a lembrança do dia em que sentou na cadeira de prefeito antes da eleição. Nem por isso deixou de escrever um artigo com seu amigo, o ex-presidente chileno Ricardo Lagos, a favor do acordo ao qual se referiram em espanhol como “Este es un logro impresionante”. Não devem ter lembrado que o substantivo, que significa “conquista”, em português, corria o risco de assumir a conotação de uma tradução literal mal feita. A favor do acordo estavam, também, quase todos os intelectuais e celebridades colombianos, muitos militando na campanha pelo SIM. Jornalistas experientes igualmente sucumbiram ao “já ganhou” do SIM. Foi o caso do britânico John Carlin, que desmascarou em livro-reportagem a corrupção na Fifa e, depois de passar um mês percorrendo a Colômbia, escreveu o artigo “Lo mejor y lo peor de la humanidad” (CARLIN, 2016a) no qual apontava o acordo como exemplo do “melhor”, naturalmente. A decepção ficou evidente no título de outro artigo, publicado três dias depois, intitulado “O ano que vivemos estupidamente” (CARLIN, 2016b), no qual o plebiscito virava “plebiscídio” e o NÃO, equiparado a Trump, Brexit etc. O resultado surpreendeu os responsáveis pelas pesquisas de opinião, pois todas apontavam uma grande vantagem do SIM e não estavam necessariamente erradas até a véspera da votação. Se o respeitável público conhece algum especialista em teoria dos jogos, peça que explique como é possível que essa virada aconteça, em parte pela abstenção dos partidários da opção que se encontra à frente. A explicação será plausível. Algo semelhante aconteceu com os últimos guerrilheiros que chegaram ao poder, os sandinistas nicaraguenses, em 1979. Ganharam as primeiras eleições após o triunfo e, nas seguintes, com o país assediado pela contrarrevolução, tudo indicava que ganhariam novamente com folga. Apuradas as urnas, o contrário 11
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havia acontecido. Lembrei do episódio, pensando que ele daria um toque de originalidade a este artigo, mas fui “furado” pela premiada jornalista mexicana Alma Guillermoprietto em artigo para a The New York Review of Books (GUILLERMOPIETRO, 2016). Ela estava nas praças centrais de Manágua e de Bogotá nos dias das votações e, a posteriori, pôde reconhecer o momento em que o clima mudou. Carlin, Guillermoprietto e vários outros repórteres talentosos, do tipo dos que vão às ruas, erraram em suas previsões sobre o resultado. Mas muitas das informações sobre suas causas estavam em suas matérias e desmentem grande parte das “explicações” de analistas “de estúdio” e diletantes. Quase todas têm algo de verdade, mas não explicam tudo. Vejamos algumas delas
O NÃO foi obtido por meio da manipulação, mas não apenas por meio dela. Muitos dos que pregaram e votaram contra os acordos sustentaram argumentos razoáveis, por mais equivocados ou enviesados ideologicamente que fossem, como o ex-presidente Andrés Pastraña (que no final da década de 1990 tentou, sem sucesso, um acordo com as mesmas FARC). Seus argumentos eram jurídicos e muito mais serenos que os do histriônico Uribe. Havia também os NÃO ressentidos, que consideravam que não era justo que os guerrilheiros não sofressem penas severas, essa posição também é compreensível, especialmente da parte das vítimas, mas há os NÃO vindos de áreas mais sombrias das almas, voltados apenas para vingança, sem pensar no futuro. Houve manipulação. Manipulação grosseira, sórdida e mesquinha. As regras do plebiscito previam que a campanha deveria tratar do conteúdo do acordo, mas o primeiro a reconhecer que houve exploração subliminar do medo foi o gerente da campanha, Juan Carlos Vélez, que reconheceu, literalmente, em entrevista que a estratégia apelou a mensagens mentirosas e a tergiversações e teve a assessoria de especialistas panamenhos e brasileiros. Na manipulação foram atuantes diversas lideranças religiosas. Entre os pastores e dirigentes evangélicos ouvidos pela BBC (COSOY, 2016), a campanha pelo não partia da afirmação de que o acordo vulnerava princípios dos evangelhos em questões como as de igualdade de gênero. Mas a campanha infame contra o acordo não foi exclusividade do pentecostalismo e adjacências. O fundamentalismo católico seguiu pela mesma linha. Assim, nas redes sociais, era possível encontrar colombianos ricos, instruídos e católicos afirmando que não se poderia ser a favor de um acordo cujo texto não mencionasse “Deus”. Ou ainda, que previa que “comunistas ateus” teriam lugar no Congresso, omitindo, entre outras coisas, que as cinco cadeiras asseguradas às FARC no Senado pelo acordo conferem apenas direito de voz, mas não de voto. Segundo eles, a Colômbia estaria na iminência de se tornar chavista, sob a presidência de Timoshenko. Desde o plebiscito, o processo de paz na Colômbia se transformou numa nuvem, menos por sua insustentável leveza e mais porque muda de forma a cada hora. Prova disso é o anúncio do Prêmio Nobel da Paz ao presidente Santos. Não é absurdo pensar que a decisão já estava tomada, supondo que o SIM venceria ou se foi um recado com sutileza nórdica
Os muitos tons de NÃO O NÃO não é uma rejeição absoluta ao acordo. Se o SIM é sim, o NÃO significa várias coisas, inclusive um “não assim, mas um sim em outras condições”. O SIM ou o NÃO, se distribuíram geograficamente de forma desigual, mas não se pode dizer que foi área rural X urbana. Em Bogotá e outras cidades o SIM ganhou com folga, mas o NÃO venceu em Medellin e outras. O SIM ganhou por ampla maioria em algumas das zonas mais afetadas, mas não em todas. Há um NÃO criminoso que se beneficia da guerra, como fornecedor do Estado, com o roubo de terras e de muitas outras formas. Não por acaso, um dos maiores contribuintes para a campanha do NÃO foi a União dos Produtores (empresários) de Banana, gente que massacra os trabalhadores rurais desde quando os “Cem Anos de Solidão” ainda eram um manuscrito. A clivagem não é de classe, ou pelo menos não apenas de classe. Há NÃO sincero e sem interesses espúrios, inclusive vindo de pessoas que perderam muito com o conflito. O líder da campanha pelo NÃO, o ex-presidente Álvaro Uribe, teve sua família duramente atingida pela violência, mas muitas outras vítimas, entre as quais ex-sequestrados e parentes de mortos pelos guerrilheiros fizeram campanha pelo SIM, como a ex-candidata à presidência e refém durante seis anos, Ingrid Betancourt, que não apenas apoiou o acordo como, depois de anunciado o Nobel para o presidente Santos, disse que ele também deveria ter sido conferido às FARC. 12
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aos colombianos na base do “vejam lá o que vocês vão fazer”. Seja como for, o destino de 48 milhões de colombianos está em jogo.
Apesar de tudo… Apesar de tudo isso e apesar dos anos em que o país sofreu com as centenas de ataques do narcoterrorismo, capaz de explodir em voo um avião comercial (matando seus 107 passageiros e três pessoas em terra, na suposição de que a bordo estava Cesar Gavíria, candidato a presidente e líder nas pesquisas), apesar da violência dos paramilitares de direita que massacraram camponeses e assassinaram sistematicamente pessoas suspeitas de “esquerdismo”, entre os quais muitos intelectuais brilhantes, a Colômbia se manteve como a mais duradoura democracia sul-americana. Apesar de toda a destruição econômica e dos gastos militares, sua moeda, o Peso, é a mesma desde que o Padrão Ouro foi abandonado, em 1931, algo espetacular, comparado a países como Argentina ou Brasil (que trocou seis vezes de moeda só no final do século XX). Apesar de tudo, o analfabetismo é menor que no Brasil, as pessoas são mais acolhedoras e a vida cultural é extraordinariamente rica – e muito além das Shakiras a que se limitam a mencionar os amantes do pop. A genialidade de Gabriel Garcia Márquez e o peso do “realismo” fantástico foram um manto nada diáfano para uma geração de escritores que conseguiu emergir e vêm produzindo uma literatura urbana vigorosa capaz de refletir essas décadas violentas; autores como Héctor Abad Faciolince e Juan Gabriel Vázquez, pouco traduzidos e menos conhecidos no Brasil. O Brasil não é para principiantes, mas em relação à Colômbia, o jogo é difícil até para profissionais. ■
Bibliografia CARLIN, John. Lo mejor y lo peor de la humanidad. El País, Internacional, 01 out. 2016a. Disponível em: <http://internacional.elpais.com/internacional/2016/10/01/actualidad/1475327956_482781.html>. Acesso em: 6 out. 2016. CARLIN John. O ano que vivemos estupidamente. El País Brasil, Opinião. 03 out. 2016b. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/03/internacional/1475498967_321999.html>. Acesso em: 6 out. 2016. COSOY, Natalio. El rol de las iglesias cristianas evangélicas en la victoria del “No” en el plebiscito de Colombia. BBC Mundo, 5 out. 2016. Disponível em: <http:// www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-37560320>. Acesso em 6 out. 2016. GUILLERMOPRIETO, Alma. Colombia: What Happened to Peace. The New York Review of Books. NYR Daily, 4 out. 2016. Disponível em: <http://www. nybooks.com/daily/2016/10/04/colombia-farc-referendum-what-happened-to-peace/>. Acesso em: 6 out. 2016.
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A Colômbia terá uma terceira oportunidade sobre a terra? Mireya E. Valencia Perafán – Cientista Social
“Era como se Deus tivesse resolvido pôr à prova toda a capacidade de assombro e mantivesse os habitantes de Macondo num permanente vaivém do alvoroço ao desencanto, da dúvida à revelação, ao extremo de já ninguém poder saber com certeza onde estavam os limites da realidade. Era uma intrincada maçaroca de verdades e miragens, que provocou convulsões de impaciência no espectro de José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro e o obrigou a vagar toda a casa mesmo em pleno dia. (Cem anos de Solidão, Gabriel García Márquez)
É
so dizer que o emaranhado de verdades e miragens se contrapõe a um emaranhado, igualmente denso, de interesses e arraigadas posições conservadoras que obstaculizam aquilo que tantos colombianos, como eu, aspiramos desde que temos consciência. Quando se iniciaram as negociações públicas com as FARC, há quatro anos, o Presidente Juan Manuel Santos assumiu o compromisso de que qualquer ponto que se acordasse em Havana teria que ser aprovado pela cidadania para assim garantir sua legitimidade. Depois de analisar as possíveis vias que a Constituição colombiana oferece como mecanismos para a participação cidadã, o Governo de Santos optou pelo plebiscito como o melhor caminho. O referendum e a consulta popular demandariam o cumprimento de um grande número de requerimentos, que inviabilizavam, no curto período de tempo, sua implementação. As FARC tinham proposto, desde o início das negociações, a realização de uma Assembleia Constituinte, proposta curiosamente aprovada também pelo grande artífice da campanha do “Não”, o Senador e ex-Presidente Álvaro Uribe. Estas diferenças, levaram a que o 6º, e último ponto da agenda de negociações com as FARC sobre a “implementação, verificação e referendamento”, provocasse um novo entrave na negociação.
possível que na última semana o espectro do Libertador Simón Bolivar, junto com o de outros personagens históricos da Colômbia, como Jorge Eliecer Gaitán e Luis Carlos Galán, tenha caminhado inquieto à luz do dia, pela praça que leva seu nome no centro de Bogotá, ao testemunhar o desesperançado resultado do Plebiscito pela Paz do dia 02 de outubro último. Há muito tempo não sentia uma tristeza tão profunda como aquela que me gerou o resultado de 6.431.376 votos (correspondentes ao 50,21%) pelo “Não” ao acordo de paz em contraposição aos 6.377.482 (49,78%) pelo “Sim”. Naquele momento não podia acreditar que a Colômbia tivesse dado esse pulo no vazio, optando pela guerra e desconhecendo seis anos de forte trabalho por parte das comissões da mesa negociadora (dois anos de maneira sigilosa). Um grupo nada desprezável de colombianos virava de costas para um futuro sem dúvida desafiador, mas num contexto indiscutivelmente favorável à construção de alternativas para uma sociedade afetada por mais de cinco décadas de conflito armado. O que fez com que esse número de pessoas fosse às urnas se manifestar contra os acordos de Paz? Hoje, ainda triste, mas com elementos que me ajudam a entender a complexidade deste processo, pos14
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Para o Governo Colombiano aprovar o Acordo numa constituinte implicaria abrir novamente as negociações, trazer temas diferentes aos que foram negociados em Havana e não colocar o ponto final a estes quatro anos de diálogo. De outro lado, para as FARC e para a oposição ao governo desde o partido Centro Democrático criado por Uribe, o plebiscito seria um empurrão importante à governabilidade dos últimos anos do segundo mandato de Santos, aspecto que unia, paradoxalmente, os dois extremos deste conflito. As FARC, alegavam que sua proposta outorgava maior seguridade jurídica aos acordos de Havana, além do quê, com a constituinte, poderia se inserir de uma forma mais imediata na vida política do País, como aconteceu na constituinte de 1991 com outro movimento guerrilheiro, o M19. Os motivos do Centro Democrático – opositores ferrenhos ao governo e ao acordo de Paz –, para propor a constituinte, não foram claros. Como afirmaria Pérez González-Rubio, Constituinte de 1991, numa coluna da Revista Semana (02/04/16), “Quienes proponen una Constituyente con competencia para reformar íntegramente la Carta no dan una sola buena razón para ella. No dicen para qué la quieren […] ¿Qué querrán derogar y qué querrán incorporar en la Constitución quienes abogan por reformarla mediante ese mecanismo extraordinario? O risco de uma assembleia, como destacado por Pérez González-Rubio e pelo senador Navarro Wolf, outro constituinte da reforma de 1991, estava em que sua composição seria a mesma do Congresso atual, com poucas possibilidades das FARC e seus ideais estarem representados e uma grande chance de, em vez de avançar, resultar num forte retrocesso. Frente à proposta da constituinte Santos foi enfático e manifestou: “nosotros hemos dicho que esa Asamblea no será el sistema de refrendación y que lo único que hay es un plebiscito, al que esperamos que la Corte Constitucional le dé el visto bueno” (El País, 30 de março de 2016). No dia 18 de julho de 2016 a Corte aprovou a constitucionalidade da regulação estatutária do plebiscito para referendar o acordo final com o objetivo de pôr fim ao conflito e iniciar a construção de uma paz estável e duradoura. O resultado do dia 02 de outubro surpreendeu até os que promoveram o Não. A estratégia da campanha do Centro Democrático, como declarado pelo Chefe da mesma, Juan Carlos Vélez, ao diário La República, foi provocar a raiva e indignação
das pessoas e não discutir o teor do Acordo. A esse grupo somaram-se as igrejas cristãs – a Missão Carismática Internacional é um dos bastiões do Centro Democrático. Como relatado pelo site La Silla Vacia, essas igrejas mobilizaram os fiéis, sobretudo para o “Não”, argumentando que a presença de uma “ideologia de gênero” no Acordo, consistia em sustentar que a noção de homem e mulher não é fruto de um desígnio divino, mas de uma construção cultural. As igrejas defendiam que fosse discutido o “modelo de família”, embora este tema não fosse tratado nenhuma vez no Acordo. Depois da alegria dos contrários ao Acordo de Paz e da profunda tristeza dos que o apoiavam, no dia 5 de outubro, o Presidente Santos promoveu uma reunião com os promotores do Não. O senador Uribe e outros integrantes do Centro Democrático, quatro deles presidenciáveis para as eleições de 2018, estavam presentes junto a representantes das igrejas. O resultado da reunião foi nada alentador e aqueles que nos últimos seis anos se opuseram às negociações com as FARC não levaram pontos a serem discutidos sobre o Acordo pela Paz. Ao sair da Casa de Nariño, Uribe sinalizou que os ajustes que sugerem ao Acordo vão desde o tema rural, até fazer profundas mudanças para não pôr em risco “a propriedade privada” e o “conceito de família”. O Governo solicitou celeridade em apresentar as propostas que serão levadas a Havana para serem discutidas com as FARC e, dessa forma, avançar rapidamente, tirando “o País da zona cinzenta” em que ficou depois do resultado de 02 de outubro. O cessar fogo bilateral decretado no dia 29 de agosto perdeu sua vigência pelo resultado negativo da votação e foi estendido até 31 de outubro por uma nova disposição presidencial, o que gerou a reação do chefe máximo da guerrilha, Timoleón Jimenez, que afirma pela sua conta de twitter: “@JuanManSantos anuncia que el cese al Fuego con las @FARC_EPueblo va hasta el 31 de octubre ¿De ahí para adelante continúa la guerra?”. A incerteza gerada por esta denominada “zona cinzenta” provoca na população uma tardia, mas importante reação, e são realizadas multitudinárias marchas promovidas, sobretudo, por estudantes das principais capitais do País, para respaldar a Paz. Para Hector Riberos, colunista da Silla Vacia, cabe agora à sociedade civil tomar partido nesse processo: “El mensaje y el propósito de las marchas y de la acción ciudadana es impedir que la máquina de la guerra 15
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vuelva a arrancar. Ni una víctima más, de ningún lado. Es la expresión de la concepción humanista que conllevaba el voto del SI”. Junto com as marchas, outro elemento que nos permite ganhar um ar de esperança é o comunicado conjunto nº 2, de 07 de outubro, no qual as delegações do Governo Nacional e as FARC-EP, reunidos em Havana com os países garantidores das negociações e com o chefe da Missão Especial das Nações Unidas na Colômbia, reconhecem que, embora por pouca margem, os resultados do plebiscito sejam a favor do “Não”, é importante continuar escutando, de maneira rápida e eficaz os diferentes setores da sociedade com o propósito de dar garantias a todos. No mesmo comunicado, as partes informam sua vontade de manter o cessar fogo e de hostilidades bilaterais em definitivo e de continuar, de maneira paralela, avançando na implementação das “medidas de construção de confiança de caráter humanitário”. Dentro do panorama esperançoso, apesar de ainda existir uma grande incerteza e sensação de derrota, somam-se a essas atitudes conciliadoras de Santos e das FARC e da população saindo às ruas a respaldar a Paz, o reconhecimento feito a Juan Manuel Santos por meio do Nobel de Paz. Isto é visto como um importante apoio da comunidade internacional aos diálogos de Paz, ainda que a resposta à pergunta do plebiscito: “Você apoia o acordo final para o encerramento do conflito e para a construção de uma paz estável e duradoura?” tenha sido “Não”. Para o Comitê Nobel da Noruega o Presidente Santos foi escolhido por seus “decididos esforços” para levar a paz a seu país após 52 anos de conflito armado. Para o Instituto de estudos para o Desenvolvimento e a Paz – Indepaz, o Nobel é parte do fim da guerra.
Críticos do Prêmio, como o jornalista britânico John Carlin, opinam que foi prematuro. Para ele, embora Santos tenha firmado o acordo com as FARC, falta reconciliar-se com seu maior opositor, o Senador Álvaro Uribe Vélez. “Hasta que los dos se pongan de acuerdo no se puede hablar del fin definitivo de una guerra civil que ha durado más de medio siglo (…) Como líder casi en solitario de la exitosa campaña por el No, Uribe tiene en sus manos ahora el destino de su país”. Outros, como Hector Riberos, acham que seria muito ingênuo pensar que após seis anos tentando bloquear o processo, o Centro Democrático liderado por Uribe, depois de lográ-lo, vá se dispor a facilitar a solução. Por inacreditável que possa parecer, a Paz tinha, sim, opositores e são aqueles que, como bem explica Santiago Gamboa em seu livro “La Guerra y la Paz” (Ed: Debate, 2014), estavam escondidos por trás de argumentos aparentemente neutros, cortinas de fumaça de “quer e não quer” como: “Queremos paz, mas com dignidade”. Para Gamboa, a paz é uma realidade objetiva e social, enquanto a dignidade responde à subjetividade individual. São muitas as forças que devem se unir para facilitar a construção desta Colômbia em paz que muitos aspiramos. Dependerá de muitas vontades e, desta vez, nesta terceira oportunidade que se oferece à estirpe de Aureliano Buendia, a que se referia Gabriel Garcia Márquez, dependerá, em grande medida, daqueles que não foram às urnas, daqueles que acharam que a negociação era de outros. A paz que possa ser construída precisará ser cuidada, protegida, fortalecida. E corresponde a nós, o povo colombiano, garantir que seja estável e duradoura. ■
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A simbologia da Nossa Senhora na América Latina George de Cerqueira Leite Zarur
A
explicação para a extraordinária emoção no culto à Nossa Senhora na América Latina está na importância da figura materna na família dos escravos índios, negros e mestiços nos tempos coloniais. A mãe era a figura protetora e a fonte de afeto. O pai podia ser o capataz ou o dono de escravos que, embora em alguns casos concedesse a alforria aos filhos, na maioria das vezes não transferia o laço biológico para o plano social. Filhos não reconhecidos por seus pais biológicos eram por eles mesmos escravizados ou mantidos em situação servil. A guerra de conquista nas quais as mulheres integravam o botim antecedeu a escravidão indígena. Consolidada a economia da cana de açúcar no Brasil, após a substituição do trabalho escravo indígena pelo negro, os homens eram mantidos no trabalho e na senzala e as mulheres trazidas para a Casa Grande. Além de realizarem o trabalho doméstico, eram objeto da volúpia do todo poderoso senhor. Joaquim Nabuco (1999) nos fala dessas “pobres mulheres” negras e de sua desproteção. Por outro lado, é significativo que a Igreja concedesse ampla liberdade à criação de Nossas Senhoras com rostos indígenas, negros ou mestiços, ao contrário do que acontecia com seus outros santos e santas. Deixava em aberto a possibilidade de apropriação popular do símbolo. Por isto quase não existe diferença entre Nossas Senhoras “canônicas” e “não canônicas”, pois a Igreja nunca impôs um padrão rígido para sua imagem. Todas são mais ou menos “canônicas” e a tendência da Igreja é aceitar a iconografia popular. Ao tempo em que Nossa Senhora consola o indivíduo, constrói a identidade de povos, comunidades, regiões e países. A identidade dos países latino-americanos está associada à figura da Virgem, com a qual cada estado possui uma relação especial. Tal relação é elaborada a partir de uma manifestação de sua parte descrita em uma dada narrativa históri-
A Guerra da Identidade: ensaios latino-americanos George de Cerqueira Leite Zarur Verbena Editora 2014
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ca. Nossa Senhora, frequentemente, assume o nome do local em que se manifestou. Comunica-se com pessoas humildes. Em muitos casos com índios ou negros. Se não se comunica diretamente, envolve-as como personagens centrais da narrativa que descreve sua manifestação. Há duas diferentes funções simbólicas das imagens e narrativas (“textos”) relativas à Nossa Senhora enquanto padroeira dos países da América Latina1. No primeiro, Nossa Senhora é a mediadora étnica, mãe de índios, negros, mestiços e pobres. No segundo, são santas espanholas transplantadas para a América, o que transmite a ideia de que as nações do Novo Mundo seriam extensões de países europeus. O papel de mediadora étnica na construção da identidade nacional surge a partir de dois critérios:
As Nossas Senhoras da América Latina contempladas pelas duas últimas possibilidades são as que desempenham a função simbólica de mediadoras étnicas. Constroem a ideia de nação, a partir do povo indígena, negro ou mestiço.
Argentina (circa 1630) Nossa Senhora de Luján O Estado argentino exterminou sistematicamente os indígenas. No entanto, o símbolo nacional, a Virgen de Luján, é morena. Conta a história que um português manda esculpir a imagem em Pernambuco. A imagem escolhe o local de sua igreja, quando a carreta que a transportava não avança. O escravo africano Manuel, vendido no Brasil, acompanha a imagem e a ela dedica sua vida. Darcy Ribeiro considera o povo argentino “um povo transplantado”, transplantado da Europa sem maiores mudanças após a extinção dos indígenas. Porém, é visível, mesmo na europeia Buenos Aires, a presença de rostos indígenas. E lá está “la Virgen Morena de Luján”, a testemunhar que a mãe dos pobres tem a pele escura. Aparentemente, muitas das cópias tornam-se mais escuras ou claras do que a imagem original.
1 – A iconografia: imagem morena ou inteiramente negra. Enquanto algumas possuem inconfundível feição indígena, outras possuem apenas a cor de pele que sugere a mestiçagem; 2 – A narrativa da comunicação entre Nossa Senhora e as pessoas por ela escolhidas. Podem ser índios ou negros isoladamente ou em conjunto com brancos. Assim, são definidas quatro possibilidades lógicas relativas à combinação da iconografia com a narrativa: 1ª – Aparência europeia associada à narrativa europeia original ou outra narrativa de texto europeu, como, por exemplo, os relativos à participação da Virgem em feitos militares associados com o Estado-nação; 2ª – Aparência indígena associada à narrativa europeia. Não há nenhum caso concreto; 3ª – Aparência europeia associada à narrativa local, com a participação maior ou menor de índios e, em alguns casos, de negros; 4ª – Aparência indígena associada à narrativa local, com a participação maior ou menor de índios e, em alguns casos, de negros.
Nossa Senhora de Luján.
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Há várias listagens e descrições das Nossas Senhoras latino-americanas e suas histórias particulares. O dossiê FIDES (agência do Vaticano) intitulado Nossa Senhora na América Latina apresenta um extenso levantamento assinado pelo Padre chileno Raul Feres. O site do Santuário Nacional de Aparecida apresenta sua «Academia Marial» com outra lista. O site «Oficina das Letras» exibe, também, uma lista de Nossas Senhoras Nacionais com a respectiva história. Existia um site <nossa-senhora.spaces.live.com> que trazia os santuários, imagens e descrições de Nossa Senhora em todo o mundo. O site Usina das Letras apresenta outra listagem. Há dezenas de sites na Internet com listas semelhantes.
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No texto de Luján, aparece um português, o Brasil e o escravo negro Manuel. As fronteiras, por volta de 1630, quando a imagem chegou à Argentina não estavam definidas, pois foi a época do domínio espanhol sobre Portugal, o que conduz a uma representação de um passado ideal de paz na América do Sul.
Américas. São absolutamente negras muitas de suas imagens encontradas pelas casas Brasil afora. Entretanto, a imagem é, de fato, castanha escura. Era originalmente policromada em azul e vermelho, cores desaparecidas após a imersão na água. A cor negra foi-lhe atribuída no presente século pelo imaginário popular (Ver: ALVES, 2005). Só então teria assumido a função de mediadora étnica. A figura maternal negra, em consórcio com um presumível “pai branco”, preenche plenamente esse papel no Brasil do século XX, quando o país assume sua identidade mestiça. O governador de São Paulo, Conde de Assumar, em viagem para Minas Gerais passa pelo Vale do Paraíba. Três pescadores recebem ordens de obter o peixe para o banquete do Conde. Nada pescam até que a imagem de Nossa Senhora da Conceição apareça na rede. A partir desse momento conseguem grande quantidade de peixe. A narrativa é muito sucinta, mas este curto texto tem implícitas algumas das grandes contradições da sociedade brasileira. Quem eram os três pescadores? O que lhes aconteceria se não tivessem capturado uma grande quantidade de pescado? Por que foi tão importante o sucesso da pescaria, a ponto de necessitar da interferência de Maria? O fato de Nossa Senhora da Aparecida ser percebida como negra fornece uma pista. Os pescadores poderiam ser escravos, pois a produção de alimentos, como todo trabalho braçal, era função de índios ou negros. No Vale do Paraíba do início do século XVIII, provavelmente de índios ou mamelucos. A questão seguinte é a da punição para escravos improdutivos. Podia ser brutal e não levar em conta o acaso ou a eventual impossibilidade de se obter o produto esperado. A culpa era, em geral, atribuída à “preguiça” do escravo, como demonstra a pedagogia popular com o terrível exemplo do menino do pastoreio. No Brasil das rígidas hierarquias sociais e da extrema violência repressora para garanti-las, faz-se necessária a proteção de Nossa Senhora quando não se produz o que espera para o banquete dos senhores. A narrativa da interferência de Nossa Senhora da Aparecida em favor dos pescadores não é, portanto, ingênua como aparenta. Traz implícitas premissas importantes que organizam a sociedade brasileira. Embora Nossa Senhora da Aparecida seja a padroeira oficial do Brasil, dado o tamanho do território brasileiro, esta não deixa de ser uma imposi-
Bolívia (Final do século XVI) Nossa Senhora de Copacabana Com feições indígenas, é chamada de “Maria Negra”. Foi esculpida por um índio e sua igreja se encontra sobre um importante templo inca que, antes da chegada dos europeus, já era local de peregrinação. Nossa Senhora foi identificada pelos indígenas com a Deusa incaica Pachamama. Nos países andinos a sociedade tradicionalmente se estratifica em índios, ladinos (mestiços) e brancos. Embora os ladinos sejam estereotipados como mestiços, muitos “brancos” bolivianos, peruanos e equatorianos são biologicamente mestiços. Assim, a Maria indígena é identificada como a mãe de todos os índios e mestiços, bem como de muitos “brancos”. É a mãe comum que une a nação no plano simbólico. Já o vínculo com o pai divide e estratifica, varia de grupo para grupo e define a diferenciação étnica.
Brasil (1717) Nossa Senhora da Aparecida
Nossa Senhora de Aparecida.
Enquanto há virgens morenas indígenas ou de cor marrom, Nossa Senhora da Aparecida é a única imagem considerada negra de Nossa Senhora da 19
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no altar. Um índio e seu filho encontram a tela intacta caída no chão. A imagem católica é pintada sobre uma tela indígena. O simbolismo é o da fé católica sobre o substrato indígena. Uma mulher espanhola simples e humilde a venera, mas é uma índia e seu filho que a encontram intacta. Chiquinquirá é uma ação entre duas mulheres, uma europeia pobre e uma indígena, que culmina com a restauração miraculosa da imagem da terceira mulher, Maria. Além do ingrediente étnico, a padroeira da Colômbia se manifesta a mulheres. Sua imagem recebeu como ex-voto a espada de Simón Bolívar.
ção dos estados hegemônicos do Sudeste brasileiro sobre as demais regiões. Há muitas Nossas Senhoras associadas com pequenas regiões, cidades e locais no Brasil. Há, ainda, aquelas santas cujo culto é tão disseminado que representam marcas identitárias regionais. Tais regiões representam áreas culturais clássicas para a antropologia. No Sul do Brasil destaca-se Nossa Senhora Medianeira, cujo santuário na cidade de Santa Maria atrai centenas de milhares de romeiros. É inteiramente europeia, introduzida em 1930. A narrativa histórica sobre a origem de Seu culto remete a um conflito armado que teria evitado. Sua área de influência se estende ao Planalto Catarinense e onde estiverem os gaúchos. Nos cerrados de Minas Gerais e de Goiás, além do Divino Espírito Santo, tem primazia o culto de Nossa Senhora da Abadia. Embora europeia, sua imagem foi encontrada no Córrego Água Suja, na Região do Alto Paranaíba em Minas Gerais. Era chamada de “Nossa Senhora da Água Suja”, denominação que a Igreja vem procurando, até por razões estéticas, eliminar. A cidade de “Água Suja”, com o seu santuário, hoje se chama “Romaria”. Nossa Senhora da Abadia tem outro santuário em Muquém, Goiás. A Amazônia é a terra de Nossa Senhora do Nazaré. Em Belém do Pará, no dia da padroeira, acontece a maior festa católica do mundo. Sua história lembra a de Nossa Senhora de Luján, pois Nossa Senhora de Nazaré escolheu o lugar em queria permanecer. Já no Nordeste estão Nossa Senhora da Vitória, que deu o nome à cidade de Vitória da Conquista na Bahia (após um massacre de índios) e Nossa Senhora dos Sertões. Não são santas cujo culto tenha se estendido regionalmente, visto que se há um símbolo religioso que identifique o Nordeste brasileiro é o Padre Cícero Romão Batista.
Equador (Final do século XVI) Nossa Senhora de El Quinche Aparece uma mulher (branca), com seu filho, que promete aos índios moradores da localidade do povoado de Oyacachi curar uma doença de ossos que incidia sobre as crianças, caso se convertam à nova religião cristã. Posteriormente a imagem é transferida para a localidade de El Quinche, situada a 50 Km de Quito. Esta é uma situação ambígua, na qual a compaixão característica de Nossa Senhora é subordinada a outros valores, pois a misericórdia maternal impediria a doença de ossos entre os índios, independentemente de sua religião. Ao contrário, é sugerido o uso do medo da doença para sua conversão e submissão em troca da cura. A identidade nacional é a firmada pela submissão do indígena. Trata-se, juntamente com o caso venezuelano, de exceção no padrão simbólico encontrado nos diferentes países em que Nossa Senhora defende amorosamente os indígenas.
Paraguai (século XVII) Nossa Senhora de Caacupê
Colômbia (Final do século XVI) Nossa Senhora Chiquinquirá
Um índio guarani convertido ao cristianismo é perseguido por índios mbayas. Promete à Virgem que, se não fosse encontrado, lhe faria uma estátua com a madeira da árvore onde se escondera. Milagrosamente não é encontrado por seus perseguidores. Esculpe a imagem, que reaparece após enchente que arrasa o vale em que se encontra a cidade de Caacupê, onde se inicia sua veneração.
Não é uma “virgem morena”, mas a narrativa conduz à relação étnica projetada no plano religioso. Um quadro de Nossa Senhora do Rosário foi pintado sobre uma tela tecida pelos índios. Após mostrar sinais de deterioração, uma mulher espanhola humilde a encontra e a coloca em um peque-
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A narrativa paraguaia opõe dois grupos indígenas. De um lado, os Guaranis cristianizados pelas missões jesuíticas, que com sua língua e cultura representam a grande matriz étnica e cultural do povo paraguaio. De outro, seus inimigos históricos, os Mbaya Guaicurus, os índios cavaleiros cujos descendentes Kadiweu estão em território brasileiro. Durante a guerra do Paraguai, os Mbaya tomam partido do lado brasileiro, após ataques do exército paraguaio contra suas aldeias. A construção simbólica manifesta hoje, embora a imagem seja do século XVI, a oposição entre índios cristianizados paraguaios e índios pagãos brasileiros. No século XVI, os Guarani já eram inimigos dos Mbaya.
la); Nossa Senhora de Fátima (Guiana e Suriname); Nossa Senhora La Purissima (Nicarágua); Nossa Senhora da Assunção (Panamá); Nossa Senhora da Divina Providência (Porto Rico); Nossa Senhora de Altacracia (República Dominicana); Nossa Senhora Sipária (Trinidad e Tobago); e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (Haiti). São as padroeiras de estados frágeis. De fato, a grande santa de muitos países da América Central é Nossa Senhora de Guadalupe, principalmente nos de elevada população indígena, embora não seja a padroeira oficial de muitos países. Chama a atenção o caso do Haiti, pois este seria, por excelência, o país cuja padroeira teria a cor da pele de seu povo com narrativa correspondente. A fragilidade na identidade nacional se reflete na ausência de um símbolo religioso próprio. Há, ainda, os casos de imagens transplantadas da Europa, mas que adotadas como padroeiras de Estados nacionais mais fortes, sofreram acréscimos locais de cunho histórico-nacionalista-militar. É o que acontece com as santas padroeiras do Chile, do Peru e do Uruguai. A padroeira do Chile é Nossa Senhora do Carmo de Maipú. Maipú é o local onde se deu uma batalha decisiva para a independência do Chile. Nossa Senhora do Carmo é considerada “generala” do exército chileno. Nossa Senhora das Mercês tem o título de “marechala” do exército peruano. A padroeira do Uruguai é “Nossa Senhora dos Trinta e Três”, uma imagem da Virgem de Luján diante da qual os trinta e três revolucionários que iniciaram a revolta pela separação da Província Cisplatina do território brasileiro fizeram o juramento de lutar até a morte. A identidade da Nossa Senhora dos Trinta e Três como uma Virgem de Luján transformada, à qual se atribuiu um novo nome e significado, manifesta a orientação identitária do Uruguai no sentido da Argentina no momento de sua separação do Brasil. Não obstante, é uma nova identidade que surge. ■
Venezuela (1651) Nossa Senhora de Coromoto Chefe dos índios conhecidos como Coromotos tem visão de Nossa Senhora que lhe diz para ir “onde moram os brancos receber água na cabeça para ir para o céu”. Índio se submete, recebe as atenções de um encomendero supostamente bondoso, mas foge antes do batismo. Tem outra visão da Virgem e tenta feri-la com arco e flecha, quando se vê com a imagem de Nossa Senhora em sua mão, pintada “em papel de seda ou pergaminho” ou, em outra versão, pintada em uma “pedra ovalada”. Espanhóis resgatam a imagem e a levam para uma igreja. Após ser mordido por uma cobra, o índio finalmente pede o batismo antes da morte. Como no caso equatoriano, a narrativa expressa a inevitabilidade do cristianismo, neste caso explicitamente associado à encomienda e à resistência vã da parte do indígena. A picada de cobra, o diabo do imaginário cristão, tem conotações evidentes. Fica a dúvida se o ataque do animal teria sido acidente ou punição ao índio por não desejar o batismo. A morte do chefe dos Coromotos serve de lição para que outros índios aceitem, sem resistência, o cristianismo e, com ele, o sistema de encomienda, por meio do qual eram brutalmente explorados. As nossas senhoras que reúnem a aparência europeia à narrativa europeia clássica como foram trazidas do Velho Mundo são Virgen de La Paz (El Salvador); Nossa Senhora do Rosário (Guatema-
Bibliografia ALVES, Andrea Maria Franklin de Queiroz Pintando Uma Imagem: Nossa Senhora da Aparecida 1931 – Igreja e Estado na Construção de Um Símbolo Nacional. Dissertação de Mestrado em História, Universidade de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados. 2005. NABUCO, Joaquim. A Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1999.
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Tapa na orelha Fabiano Cardoso
H
á três anos, Deodato estava parcimoniosamente vivendo. Protelara relacionamentos sérios em prol de arrumar-se. Sua última namorada o deixara em frangalhos, o trocara por um homem visivelmente com atributos inferiores aos seus. Em consequência, após sofrer por tempo consideravelmente justo, Deodato tomou ação resoluta: ficaria um bom tempo sem mulher, sem namorada, a fim de fazer aquilo que lhe era quase impossível de ser feito pela presença constante de companheira. Leu clássicos de todo tipo, literários, científicos, religiosos, acadêmicos. Quase esgotou suas habilidades em jogos de vídeo game de diversos gêneros, ação, esportes, em primeira pessoa, com histórias de demônios, aventuras, espionagens, guerra. Foi ao cinema sozinho, ao teatro, ficou em casa vendo programas de auditório, de perguntas e respostas. Chegou mesmo a considerar a participação em um de reality show. Enfim, fez quase tudo o que tinha vergonha de fazer quando estava namorando. Mas nem por isso deixou de sair, desde que sem compromisso, com outras garotas. Nem, e não sejamos sisudos, deixou de frequentar locais onde com poucas perguntas e um punhado de dinheiro se pode ter a companhia de uma profissional qualificada em assuntos humanísticos. Passada esta fase de autoconhecimento, Deodato, sem o saber, conhecera na fila do caixa de uma padaria a mulher que mudaria sua rotina de homem solteiro. Romina estava com os braços abarrotados de produtos alimentícios. Deodato, que lá entrara apenas para comprar um par de pilhas pro controle remoto do televisor, gentilmente ofereceu à Romina que passasse a sua frente, dada a dificuldade da moça em conseguir segurar todo aquele aparato alimentício. Conversa vai, conversa vem, acabaram por marcar de tomar uma cerveja no dia seguinte. Ironicamente, Romina entrara na padaria para comprar, também, pilhas, mas saiu de lá com leite, três tipos de pães, dois tipos de queijos, iogurte, alguns tipos de frios, cerveja, refrigerante e um pote de sorvete de flocos. A pilha ela esqueceu de pegar.
Na mesma noite em que marcaram a cerveja, terminaram na casa de Deodato. Tomaram café da manhã juntos, na padaria, pois Deodato, em casa, tinha apenas café. Dois dias depois foram ao cinema e, lado a lado nas poltronas, Romina carinhosamente aplicava um cafuné em Deodato. Seus dedos deslizavam pela cabeça dele em suaves movimentos aleatórios desde a parte superior até a nuca, passando por trás da orelha, mas concentrando-se, principalmente, logo acima da nuca. Deodato, por sua vez, limitava-se a acariciar a perna esquerda de Romina. Alguns meses se passaram e Deodato e Romina já eram dois pombinhos apaixonados. Carícias, chamegos, afagos, mãos dadas, sorrisos. Em momentos mais íntimos, e aqui entre nós que eles não percebam esta invasão de privacidade, Deodato usava e abusava em explorar quase toda a superfície do corpo de Romina; não se limitava apenas à perna esquerda. Suas mãos pareciam veleiros deslizando por águas tranquilas durante o alvorecer. Às vezes se detinha por mais tempo em determinada parte do corpo dela, apertava aqui, ali acolá… Já Romina, mantinha-se apegada à região superior, mais precisamente na cabeça, perto da nuca, chegando-se, por vezes, por trás das orelhas. — Você tem algum fetiche? — Como assim, fetiche? — Ah, sei lá… Alguma coisa que te excita mais. — Tipo uma fantasia sexual? Como você usar uma fantasia de policial gostosa? — Não necessariamente uma fantasia de festa. Peraí, policial gostosa? — Ou jogadora de vôlei… — Policial gostosa que nem em filme pornô ruim? — Ou você pode usar uma camisa do meu time… — Não, você não entendeu. Eu não vou usar nada. Esquece que eu comecei esse assunto. Depois dessa conversa um tanto quanto reveladora, Deodato percebeu que Romina passou a massagear mais suas orelhas. Quando transavam, inclusive, dava várias mordiscadas, algumas que deixavam marcas. Da parte temporal da cabeça, Romina pas22
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sou a insistir mais e mais na orelha. Apalpava a hélice, mordia o lóbulo, beijava a fossa triangular, alcançava, sabe-se lá como, a incisura intertrágica e acariciava com o indicador o antitrago. O mais impressionante para Deodato é que, claramente, Romina ofegava mais candidamente enquanto mexia na orelha dele. Um dia, Deodato, enquanto estavam os dois no sofá tentando escolher algo para ver no televisor, jogou o controle da TV para o alto, tirou a blusa e lançou-se com olhar ávido para Romina, que sorriu e, antes de alcançar a orelha do namorado, foi surpreendida com uma mordiscada em seu próprio lóbulo direito. É claro que não foi uma mordiscada perfeita, mas pensou: “a prática pode levar à perfeição”, bem, não necessariamente com essas palavras, mas pensou. Sentiu seu braço arrepiar, sua nuca ficou mais sensível e um gemido seco escapou de sua boca. Terminado o intercurso sexual, Romina exibia um sorriso sincero, ofegava e minutos depois dormiu tranquila apoiando a cabeça no peito de Deodato. Já Deodato, assim que Romina, adormeceu, conseguiu se desvencilhar de seus braços e cabeça. Dirigiu-se ao banheiro e, sem perceber, escovou os dentes. Voltou pro sofá e cochilaram juntos vendo uma série de TV. Algo o incomodava, mas ainda não sabia bem o quê. Dois dias depois, durante mais uma transa em que Romina tentava, insistentemente, se apoderar da orelha de Deodato e, de modo invasivo levava sua própria orelha em direção à boca dele, Deodato, num ato não premeditado, agarrou a mão esquerda de Romina e começou a beijá-la avidamente. Em pouco tempo transaram mecanicamente. Poucos minutos depois Deodato exibia um sorriso natural e espontâneo, ofegando e mirando o teto com olhos perdidos. Já Romina, levantou-se e foi ao banheiro. Lavou as mãos e voltou ao quarto; deitou ao lado de Deodato e dormiu sem saber muito bem que sensação era aquela que a incomodava. No dia seguinte, a volúpia arrefeceu, de repente, porque enquanto uma tentava concentrar-se na orelha, o outro concentrava-se nas mãos… Três meses depois, Deodato e Romina terminaram o namoro porque ele havia descoberto que tinha um fetiche por mãos e detestava que lhe pegassem nas orelhas. Mais tarde acabou confessando que conhecera uma moça com lindas mãos. Se separaram amigavelmente, mas Deodato deixara o coração de Romina em frangalhos. ■ 23
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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa Brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.
Capítulo 13 À noite, na casa do Virgolei, onde já exercia alguma influência e querendo aumentá-la, exagerei um pouco e falei com gravidade: “eles vão tentar derrubar o Jango, tenho quase certeza”. Virgolei aproveitou a deixa e fez um longo discurso que começava em Sócrates, passava por Spartacus, continuava com Marx e Engels e terminava em Brizola, dizendo que devíamos nos preparar para defender o povo, “com armas se for preciso”, olhando para mim, como se eu as tivesse. Tinha apenas uma pistola Beretta de pequeno calibre que ficava no bolso da calça para alguma eventualidade e elas sempre ocorriam, numa cidade que tinha algo de faroeste, com aventureiros de todo o Brasil tentando a sorte. O debate tornou-se acalorado e quanto mais jovem o participante mais radical era a opinião, melhor dizendo, o discurso. No calor da discussão, talvez para mostrar importância, caí na besteira de dizer que tinha um plano caso houvesse um golpe, na próxima reunião discutiríamos o assunto. Naquele momento não tinha plano algum, mas a partir dali comecei a maquiná-lo. — O plano deve ter um objetivo considerável, grandioso. Se é para correr riscos, então que seja por um grande objetivo. — Comecei, e todos concordaram.
A ideia é tomar o Quartel General da Capital. A reação foi um silêncio inicial e depois uma excitação exagerada, principalmente do Virgolei que se levantou da poltrona mais confortável, onde se sentava sempre e já falava como novo comandante: — Vou preparar uma proclamação convocando todos à luta. — Mas como tomar o QG? — continuei e eu mesmo respondi: — Simples, como todo grande plano, desocupando o quartel e isto poderá ser feito à noite, quando somente ficam lá a guarda e os sentinelas, tenho um conhecido que já tirou guarda lá. — Como esvaziar o quartel? — todos perguntaram, praticamente em coro, exceção do Virgolei que já elaborava sua proclamação à nação. — Isto podem deixar comigo. Quando toda a guarda tiver saído e ficarem apenas os dois sentinelas, vocês entram e tomam o QG. — Mas, e se os sentinelas reagirem? — Podem ficar tranquilos, eles só usam balas de festim, as de verdade ficam guardadas lá dentro. O Quartel General funcionava em um dos prédios da Esplanada dos Ministérios – ainda não se construíra aquele prédio faraônico do Niemeyer no Setor Militar que o pessoal cha-
ma de Forte Apache – o que tornava tudo mais fácil, principalmente porque a Esplanada era uma área isolada da cidade, vazia depois das oito da noite. Isto antes do empreguismo generalizado que tomou conta do serviço público, onde, se todos forem trabalhar ao mesmo tempo, não haveria cadeiras, nem mesas, nem espaço suficiente. As sentinelas costumavam sentar nas laterais do prédio para descansar e às vezes até cochilavam encostadas nas árvores. Aquilo era uma bagunça em termos de vigilância devido à desimportância de Brasília sob o ponto de vista militar e político. O importante ainda era o Rio de Janeiro, onde o Presidente e os políticos passavam a maior parte do tempo, se pudessem transferiam de volta a Capital e só não voltavam por causa dos milicos, que desfiavam um caminhão de razões: a segurança, integração do país, coisa que vinha desde Tiradentes, desde José Bonifácio, desde sei lá quando. O fato é que se preocupavam muito com a segurança do Brasil, mas a guarda dos quartéis era uma esculhambação mesmo e eu contava com isso para fazer o plano funcionar. — Só preciso saber o dia do golpe e executamos nossa operação um dia antes. — Mas como o Senhor vai esvaziar o QG? — insistiu um garoto de seus dezoito anos. E o “senhor” que antecedia a pergunta decorria da grande importância que adquiri no grupo depois que inventei o tal plano. — Isto fica por minha conta, já sei como fazer. Só espero que vocês façam sua parte. Passamos a treinar nos finais de semana nas cercanias da Capital, lá pelos lados de Cristalina, no meio do cerrado, refazendo todos os passos da operação. Uma parte da turma ia numa Vemaguet cinza de um dos garotos, a outra no carro da moça grã-fina. Sempre faltava alguém, mas não a mesma pessoa, o que eliminava suspeitas. Era uma espécie de diversão, difícil separar a brincadeira da ação real,
afinal eram garotos com dezoito, vinte anos. O único adulto mesmo era o Virgolei, cujo cérebro devia ter no máximo dois neurônios, ambos marxista-leninistas. Analisei com cuidado de topógrafo as distâncias entre os prédios da Esplanada, a localização do Ministério da Marinha, a guarda da Marinha, que era mais esculhambada que a do Exército. Tracei algumas possibilidades de que houvesse reação, mas nem contei muito com isso. Fizemos um mapa, quase do tamanho deste aí que o comandante botou na parede, só que pouco detalhado, incluía parte da Esplanada com os ministérios parecendo coisa de militares, iguaizinhos e alinhadinhos, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional, talvez a coisa mais horrenda da arquitetura mundial, na época ainda não havia aquela meia bolota grandiosa com um buraquinho no final de uma rampa ridícula, que dizem ser um museu, embora possa servir para qualquer coisa, como ocorre sempre em Brasília. Soube por um amigo de confiança da 2ª Seção que o golpe contra Jango seria dado no dia 2 de abril, evitariam o dia primeiro, podiam pensar que era gozação, o Brasil nunca era levado a sério pelos europeus e americanos. Ficou de confirmar dois dias depois, dia 26 de março confirmou tudo, inclusive quem chefiaria; segundo meu informante, a contagem regressiva começou no dia em que houve a Rebelião dos Sargentos em Brasília, no mês de Setembro de 1963, quando vários oficiais foram presos pela sargentada, a Esplanada foi fechada, uma confusão dos diabos. — 26 não, foi 27, tchê. Eu estava lá —, atalhou o Gaúcho. Preparamos tudo para tomar o QG no dia 31 de março às dez da noite, tendo a iniciativa das ações, surpreendendo o adversário. Na mesma noite, o Virgolei ditaria uma senha por telefone para mais de 20 grupos em todo o Brasil, que segundo ele eram comandados
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por um General de esquerda com base no Rio, coisa que provavelmente nunca existiu a não ser na imaginação do próprio Virgolei. Iria pôr meu plano em ação para tirar a guarda do prédio às nove horas, confiando exclusivamente na principal qualidade dos militares: cumprir ordens. Às nove horas da noite do dia 31 de Março, peguei o telefone do Bar do Batista, um pé sujo solitário estabelecido na 409 Sul, onde hoje estão aqueles restaurantes bacanas, e liguei para o Comando da Guarda do QG. — Aqui fala o general Capistrano, chame o oficial superior da guarda imediatamente —, falei com voz ligeiramente alterada, voz de general. O tal general Capistrano existia de verdade, cruzei com ele certa vez na porta do QG, bati continência e ele respondeu um bom dia com voz rouca e forte e lembro bem que na blusa bege estava escrito Gal. Capistrano, era um sujeito alto, muito magro, de andar apressado, queixo empinado, tentei copiar sua voz, que na realidade tinha algo a ver com a minha. Uma voz educada, que não me era desconhecida, respondeu do outro lado. — Superior da guarda falando, pois não, meu general. — Coronel, aqui é o general Capistrano falando do Palácio do Planalto. Ordeno que se desloque imediatamente para cá com sua guarda, entendeu, IMEDIATAMENTE —, berrei, de modo incisivo. — Mas general —, tentou contemporizar o superior da guarda. — Deixe de ambiguidades, homem, obedeça à ordem —, insisti taxativo. Peguei o Gordini vermelho que comprei financiado pela Caixa Econômica, a quem devia umas dez prestações atrasadas, e saí em alta velocidade para o local onde estava meu “grupo operacional”, como eu os chamava, para que se sentissem mais importantes. Eles viram quando a guarda do QG se deslocou
para o Palácio do Planalto e dirigiram-se resolutos para tomar o prédio. Virgolei comandava o grupo com o papel de sua proclamação ao povo no bolso da calça jeans surrada, na cabeça um boné ridículo semelhante ao do Che Guevara. Estacionei o Gordini próximo à Catedral e fiquei observando de longe, como fazem os generais em combate, pelo menos nos filmes de guerra que tinha visto. O plano corria às mil maravilhas. Voltei para o Bar do Batista, tomei dois chopes para comemorar e liguei para o QG, Virgolei atendeu, disse que tudo ia bem, mas que teria havido qualquer coisa não prevista, pois não conseguia comunicação com seu pessoal nos outros estados e menos ainda com o tal general de esquerda que comandava tudo. Voltei para a Catedral, liguei o rádio do carro, o Repórter Esso dava em edição extraordinária: “uma coluna de tanques comandada pelo general Mourão Filho dirige-se de Minas para o Rio de Janeiro. Não há reação do Governo constituído”. Pronto, lá se foi o elemento surpresa. Voltei ao Bar do Batista e avisei ao Virgolei para abandonar o local imediatamente. Ele nem conseguiu responder. Tiraram-lhe o telefone da mão, ainda ouvi alguns sons, vozes e um tiro. Liguei mais uma vez, atendeu um homem que apenas perguntou: “quem fala?” Não respondi. Arriscando me ferrar, voltei para a Esplanada, parei no primeiro retorno em frente à Catedral e notei vários carros cheios de soldados em frente ao prédio do QG. Virgolei e o grupo se estreparam, pensei. Por via das dúvidas, dormi na casa de um amigo numa sobreloja adaptada para residência na 412 Sul, mas pensando bem, ninguém sabia meu nome verdadeiro, nem onde morava. Apenas uma descrição física não era suficiente para me identificar. Para não despertar qualquer suspeita fui trabalhar no dia seguinte, mesmo porque era obrigado, estava de prontidão.
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As notícias eram desoladoras. Soube por um soldado que tinha um monte de gente presa no BGP, mas não se falava em mortes, Virgolei e seu grupo deviam estar engaiolados, não se sabia onde. Pelas reações ocorridas no país fui percebendo que o Brasil era uma terra de borra-botas, de cagões, a começar pelo Presidente que devia liderar a resistência e fugiu. A maioria dos generais, que se diziam de esquerda, se borraram. Jurei que nunca mais me meteria em política, ia tratar da minha vida. “Este país é um caso perdido, só tem cagão”, pensei. Passaram-se mais de dois meses e tudo ficara mais calmo, comecei a pensar em algum modo de descobrir o destino do Virgolei e seu grupo, nesse ínterim, para me sentir mais seguro, resolvi trocar de carro, me livrar do Gordini vermelho que poderia ter sido visto ou mencionado por alguém. Adquiri um Dauphine branco, enguiçava mais que o anterior. Um belo domingo de Maio, tarde friorenta em Brasília, estacionei na W3, na altura da 509 Sul, em frente à Padaria Planalto, pedi um refrigerante e fui bebê-lo na porta, notei que em volta do Dauphine aglomeravam-se vários carros da polícia e dois jipes do Exército. Pensei: estou fotografado. Estava mesmo. O cretino do Freitas mandou-me sentar e disse calmamente, prazeroso: — Você está preso por tempo indeterminado. Demos uma batida na sua casa e sabemos que foi você que chefiou aquela operação ridícula para tomar o QG. O pior é que desgraçou a carreira do Valdetaro, um oficial com um grande futuro pela frente. Ainda bem que ele tem uma inteligência invulgar e uma memória pri-
vilegiada. Aquela foi boa: dar ordem para um oficial superior. O mais grave é que ele cumpriu. — E deu uma risada, como se estivesse contente com o que aconteceu ao Valdetaro. Se fosse ele teria cumprido a ordem mais rápido ainda, pensei. — Mas tchê, só não entendi como o tal Valdetaro soube que foi você. Reconheceu tua voz no telefone? O Gaúcho queria comer até o caroço e deliciava-se com os detalhes. — Não. Não foi a voz, pois falei com ele apenas três vezes na vida e por telefone apenas uma. Foi por causa de uma palavra: AMBIGUIDADE, AMBÍGUO, AMBÍGUA. Em todas usei este termo, ele percebeu. Era um sujeito ligado em livros, nas palavras. — Puta, mas que azar tu deste, tchê! Bem feito, quem manda ter QI alto? — e soltou sua risadinha. Agora era aguentar a cadeia até o fim, ainda bem que a mala do Gaúcho veio atulhada de livros, alguns em francês. Decidimos que eu ia aprender a língua dos “grandes romancistas” como ele dizia. Tempo é que não ia faltar. Pela experiência dele, bem maior que a minha, nós ainda ficaríamos ali muito tempo, sem qualquer informação do mundo exterior, a não ser quando chegava um ou outro preso e contava as novidades, cada vez menos animadoras. “Vais começar com o Exupéry”. Antes de completar um ano no Oiapoque, deu-se o inesperado, o comandante aplicou trinta dias de prisão ao Gaúcho, atrás das grades, pois presos já estávamos. Pensando bem, foi merecido. Conto como foi.
Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano
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