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Canalhas, arrependei-vos
Canalhas, arrependei-vos!
A canalhice é antes de tudo a arte da soberba. Soberba na gula e na fome, na alegria e na tristeza, no sexo e na abstinência. O canalha não faz esforço para ser, ele apenas é! Uma resultante de sua existência e deste lixo todo aí.
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Não é unicamente um dom dos magros como dizia Nelson Rodrigues ou uma dor como Walter Franco é coisa de sangue e pele, de hábito e vício e é notória em qualquer cretino, transeunte nestes tempos bicudos. Portanto, canalhas, arrependei-vos! É chegada sua hora, arrependei-vos já!
Eu havia tretado um monte de porcaria por quase vinte anos para alguns canalhas e sua corja de lacaios, esta classe que usam seu my name is para impor a dominação e o tráfico de influência de geração em geração, melhor ainda se for a sua. Esta gente empolada e cheia de falsos dogmas. Eu havia tretado por um credo e não um crédito para esta gentalha minúscula e sem escrúpulo, vexatória como um pau murcho e tosco.
Eu havia usado a gramática e a semântica para saltar e trapacear sobre seus catres, catequizando minha alma para que pudesse entrar em seus mundos vencidos e repletos de camas vazias, quadras inóspitas, hinários sorrateiros, traições encobertas com veludo e vexame.
Eu havia tretado como um servo, um bufão também e para o mais baixo escalão. Tretei para os que viviam das migalhas ofertadas como prêmio por sua abnegação. Eu desci baixo, muito baixo mesmo.
Quando você começa a descer não para mais até descer bem fundo - descer pode ser um hábito - ao escuro beco de prostitutas e drogados, dos vagabundos e miseráveis profissionais, de liberais iconoclastas do belo e do sacro e dos vencidos pela falta de vontade, pela preguiça e por todo tipo de política do pão e circo, de toda queda capital inexorável e sem compaixão.
De um lado e de outro um construir ruínas para tempos sombrios. O tempo não perdoa e a vida muito menos. Por ser única deve ser consumida agora, sem gelo e a seco, sem moderação alguma, pois todo o resto é curva e desolação.
Mas eu perdi também. Perdi tudo e todos. Perdi minha coragem, minha fúria, minha tinta e minha verdade. Perdi minha esperança e perdi dinheiro. Perdi tempo e meu verniz. Perdi para mim mesmo, como se o monstro do pântano em mim e que em todos habita cobrisse toda a extensão de forma humana - concedida pelo cosmo ou por um Deus que conclamamos sua existência e que não sabemos se está por todo sempre em tudo que vive e não vive - que me fora concedido para ser e estar nesta face da terra, neste espaço de tempo, neste tempo-espaço.
Sobra-me apenas voltar para este expurgo expresso. Uma ida ao inferno para recuperar minha alma e colocá-la no devido lugar antes que desapareça abjeta e de nenhuma serventia seja.
Eu havia deixado minha alma no armário, presa e enrolada num cobertor mofado e fétido. Agora eu fedia tanto quanto eles, mas sem os artifícios da perfumaria. Fedia a algo ainda mais vulgar e desprezível. Fedia como um impostor.
Nunca que chegaria a algum lugar assim. Nunca passaria como não passo de um rascunho de projeto de vida falho e frágil e triste e grosseiro. Eu havia feito o jogo deles por tanto tempo que me perdi por inteiro.
Aqui e agora apenas um rastejante sujeito que sequer tem direito ao próprio cigarro ou alguma bebida barata que possa entorpecer esta dor, que pulsa pura e fria assim, ardendo como que cortado à faca, como que quebrado este cerne enrijecido de tantos sonhos destripados qual bois num matadouro de vida limitada.
Eu sabia que agora a curva estava pendendo para baixo e talvez nunca mais voltasse a proporcionar dias de fartura e prazer. Fodam-se! As forças diminuíram e os joelhos racharam pelo peso extra de palavras lavradas sem qualquer verdade.
Eu sabia apenas assoviar algumas velhas canções que me fizeram a cabeça ainda jovem. As letras quase todas haviam desaparecido no buraco negro da memória, mas a alma delas estavam ali bem detrás daquela parafernália de impressos burgueses e inúteis, bem ao lado dos cânticos dos cânticos, sob teias de aranhas tão velhas quanto se pode crer que possam existir.
Eu não tinha mais muito tempo a perder, precisava fazer a limpeza dos armários, precisa limpar a casa antes de partir, antes de pegar o trem das sete horas que parte da estação central subterrânea e seixista e nunca, nunca mais ou mesmo pegar meu disco voador, la nave , o escaler intergalático, a ave de Perseu, ao comando da voz vinda de um canto quântico do espaço, a voz de Major Tom. Peripécias piegas a parte, eu sabia: não tinha mais tempo.
Daqui foram retirados todos os índios e negros autóctones, originários das primeiras lidas com a terra através do genocídio e da escravidão e logo após trouxeram seus próprios negros – nenhum índio - domesticados e viciados, corrompidos pelo trabalho serviçal e falso logro com as coisas do porvir.
No entanto continuavam a procriar e gerar novos escravos modernos, salvos por baixos salários e um Cristo sem face nos moldes da nova ordem pentecostal, onde a prosperidade é para todos desde que se pague o ingresso com a décima parte de seu suor.
Todos foram saciados em sua fome com o milagre da multiplicação tecnológica e midiática através da supressão da dor, da sublimação do desespero e da aceitação do seu lugar nos guetos e vielas, vencidos e dominados pela crença de que o bom comportamento e a nãoreação os levará ao palácio dos prazeres ou ainda acreditarem que façam parte do todo e não que sejam do todo a parte.
Aqueles que se resignam são presos e estuprados física e moralmente até a morte pelo vício na droga ou pela cadeia. Ausentados de suas famílias, de suas possibilidades infinitas. Proscritos da cadeia alimentar e do livre arbítrio. Párias apenas.
Eu não sou daqui e não sou de qualquer lugar. Não me reconheço neste tempo e a única preocupação imediata que tenho é a de como conseguir algum dinheiro para continuar a alimentar os pequenos, pagar o aluguel e os serviços básicos e, claro, tocar em frente.
Não penso mais em por fim à vida que me resta, pois quero assistir de camarote esta droga toda pegar fogo e se arrebentar qual veículo sem condutor. Isto tudo é uma piada maldosa, uma arte de levas traquinas a adoecer o espírito antes hirto e roto.
Tudo é há tempos um canto de escárnio e mal - dizer. A ordem natural do conhecimento foi alterada pela força da falta de senso, pela angústia da ausência de algo ou coisa que valha uma prece.
A regra do dia é que se deve vomitar e seguir adiante até a próxima ânsia de vômito e às vias de fato. Tudo é muito tudo e nada inteiro, sequer a metade. W.Benjamim disse que dissolveria no ar tudo que é sólido. Fato.
Nada dura uma fração, um instante, um relâmpago e toda ideia rói feito o mistério desta era de bispados e dominações. Na maioria das vezes dominados e dominadores sequer percebem a herança e legado, mas atuam por impulso no teatro de máscaras bem confeccionadas: para uns e por direito transmitido o ouro e o pão e a outros por concepção a lei e a prata da lei.
O ateísmo não gera culpa, mas libertação.