O SARILHO DE CEDILLO...OU A FRONTEIRA PROIBIDA!

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O SARILHO DE CEDILLO...

OU A FRONTEIRA PROIBIDA!

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O SARILHO DE CEDILLO...OU A FRONTEIRA PROIBIDA!

Era uma vez - as boas histórias começam assim, certo? - duas aldeias quase perdidas e não menos esquecidas!

Montalvão

As aldeias desta história chamam-se Montalvão - no extremo mais nordeste do Alentejo - e Cedillo - o ponto mais avançado a poente da Extremadura espanhola.

Cada uma encarrapitada em seu monte, contemplando-se a distância que rondará uns 8 quilómetros, mais coisa, menos coisa.

São pequenas, cerca de 400 habitantes envelhecidos em cada uma e a única riqueza é a coragem de não abandonarem as suas terras.

Cedillo

Como é que eu me fui lembrar disto?

Quando ando por aí, uma esquina a seguir a outra, às vezes as histórias vêm ter comigo, outras vezes sou eu que as descubro. Foi o caso desta que vos contarei.

Há algo que recomendo vivamente: olhem para um rio, pesquisem todas as travessias que tem e, num dia (ou mais...) façam-se à estrada e atravessem-nas de uma margem para a outra alternadamente. Vão ver que se divertem e encontram paisagens surpreendentes.

Foi o que fiz com o Rio Tejo. Podem ler aqui: “Por este rio acima...”

E ao investigar onde o poderia atravessar - são 15 travessias, 13 pontes e duas barragens em território português... e ainda mais duas de barco! - descobri que no exacto ponto em que o rio passa a ter as duas margens em Portugal, existe uma barragem anónima que une essas margens e que é, vejam lá, espanhola. Tinha que conhecer!

ANDEMOS PARA TRÁS NO TEMPO...

Quando os tempos eram outros, os caminhos eram feitos pelos pés dos que os percorriam. Assim acontecia com as gentes de Montalvão e Cedillo.

Desciam o monte, atravessavam o rio manso com água pelo joelho (ou abaixo) e subiam o monte para se juntarem aos seus vizinhos.

A rapaziada jogava uma futebolada, comiam uns petiscos e catrapiscavam as moças.

Duas horas de caminhada para cada lado era pouco esforço para a riqueza do convívio.

Vista panorâmica de Montalvão

Assim se fazia a vida em território ermo, com uma particularidade que não era de somenos: de um lado Espanha, em frente Portugal.

O rio servia de fronteira.

Nada que preocupasse uns e outros.

Era coisa de políticos, as sessões de traulitada seculares já eram coisa de passado longínquo ... e os guardas fronteiriços, quando os havia, conheciam os que não deviam deixar passar.

O rio, que antes as unia, é o Sever, afluente do Tejo (que como veremos, também é protagonista).

E como é normal nestas circunstâncias, muitas famílias se fizeram com raízes de cada lado do rio. Porque as pessoas são mais fortes que divisões imaginárias. O ponto alto do lado de cá eram (são) as festas em honra de Nossa Senhora dos Remédios.

Estávamos nos anos 50 e 60 do século passado. Tempos muito cinzentos: ditaduras em ambos os países, Espanha a recuperar da pior das guerras, Portugal a caminhar para uma à distância de um continente.

A MIRAGEM DO DESENVOLVIMENTO

Naquela época, Espanha renascia das cinzas. O crescimento económico e a industrialização obrigaram à construção de diversas barragens nos principais rios para fornecerem a energia necessária.

O Tejo, o mais comprido e um dos de maior caudal, foi naturalmente eleito. Entre outras, foi aqui construída, já próximo da nossa fronteira, a enorme Barragem de Alcântara (a maior da Europa antes do Alqueva) e em 1974 foi inaugurada a Barragem de Cedillo que é a figura principal desta história.

Cedillo visto de Montalvão

Barragem de

As populações destas aldeias, mas principalmente em Cedillo, viveram alguns anos de prosperidade e esperança: a primeira porque a construção deu emprego a muitos e trouxe até aqui outros tantos e a segunda porque houve a miragem de que finalmente estes ermos pudessem também beneficiar das maravilhas do desenvolvimento.

Depois da festa da inauguração, em 1974, rapidamente perceberam que as esperanças eram vãs: os que vieram logo abalaram, os que abandonaram as terras não quiseram voltar e quanto a riqueza... talvez, mas não ali.

Acresce ainda que a construção ainda levou 20 filhos das duas terras...que as condições de segurança não eram as de hoje e deixavam muito a desejar.

Mas o pior foi que Montalvão e Cedillo ficaram isoladas, uma de cada lado da albufeira e o caminho que antes faziam agora já não era praticável.

Não se atravessava a vau... e ponte foi coisa prometida e nunca vista!

Os oito quilómetros do passado são hoje cerca de 100, que separam familias e amigos de sempre!

Cedillo
Rio Sever - albufeira da barragem

UM POUCO DE GEOGRAFIA E OUTRAS CURIOSIDADES

Esta região caracteriza-se pela aridez dos terrenos e pelos vales cavados pelos leitos do Rio Tejo e do seus afluentes. O Sever na margem esquerda, que já mencionei, mas também Pônsul e o Erges, na margem direita.

Este último serve também para delimitar a fronteira entre Espanha e Portugal. Como se situa cerca de 50 quilómetros a montante dá-se a curiosidade de, entre a sua foz e a do Sever, o percurso do Rio Tejo ser também ele fronteira - a norte Portugalregião de Castelo Branco e Parque Natural do Tejo Internacional - e a sul Espanha (província de Cáceres).

A Barragem de Cedillo tem vários pormenores interessantes:

- O paredão situa-se na confluência do Tejo e do Sever.

Serve os dois rios por onde se espraia a sua albufeira;

Albufeira do lado do Sever

- A barragem é espanhola

... mas os dois pontos de amarração do paredão estão em território português!

E como a lei internacional define, quando um rio é fronteira, a divisão faz-se pelo meio do seu leito ... quase diria que a maior parte do paredão também está em território nacional.

- O seu objectivo é a produção de energia eléctrica, mas foi construída de forma inusitada: os geradores estão construídos no topo em vez de ser como é habitual, no seu interior.

Resquícios das desconfianças entre os ditadores Franco e Salazar. Por questões de segurança assim se fez, diziam...

- Apesar de ser quase desconhecida, não é pequena: a altura do paredão é ligeiramente inferior à de Castelo de Bode e a capacidade de produção de energia é similar à do Alqueva!

Feitas as explicações necessárias, o que me trouxe até este recanto? Sem serem as pessoas da zona com que tenho falado, ninguém ouviu falar de Cedillo. Para saber algo mais detalhado só mesmo pesquisando nas wikipedias deste mundo e afins...

Albufeira do lado do Tejo Paredão ancorado nas duas margens portuguesas Topo da barragem com os geradores

A MINHA CURIOSIDADE

Já disse como a descobri. Desde que aqui estive a primeira vez que fiquei encaganitado (em alentejano técnico, significa "curioso", "intrigado"). Porque razão tal inquietação por uma barragem, ainda por cima espanhola? Venham daí, que eu conto!

Chega-se lá por descida íngreme. Estrada estreita e numa curva da estrada, a última, finalmente a vislumbramos.

Parece quase clandestina... não fosse o tamanho da parede com imponência proporcional às encostas quase verticais onde está “amarrada” .

Deste lado, não temos imediata percepção da albufeira. Só quando nos aproximamos se percebe que é barragem de dois rios em simultâneo. Interessante...

Chegada à barragem

Nesse dia, reparei também que havia um acesso por cima do paredão que conduzia a uma estrada que subia do outro lado. Mas estava vedado com um portão.

Estranhei ... e a minha curiosidade cresceu ainda mais.

“Isto merece investigação cuidada” pensei.

Parte já vos contei atrás, para que percebessem o contexto. Porque o resto é bastante mais interessante...

Nesse dia, o portão estava fechado...

A FRONTEIRA PROÍBIDA

Recordo que temos uma barragem espanhola mas “presa” em terra portuguesa, que retém a água de 2 rios e separou duas aldeias irmãs a quem a fronteira pouco lhes diz.

Na realidade, essa separação (que obriga a um percurso de cerca de 100 quilómetros) só acontece durante os dias da semana. Desde a manhã de sábado até à noite de domingo, a estrada que passa por cima da barragem é aberta ao trânsito.

Ou seja, existe uma passagem transitável entre os dois países...mas que está fechada a maior parte do tempo. Principalmente quando poderia ser útil para o desenvolvimento da região.

Façamos um pequeno intervalo narrativo: em 1985, a maioria dos países da União Europeia, mais a Suiça e a Noruega, assinaram um acordo cujo objectivo é a realização de um dos pilares da União: a livre circulação de pessoas e bens.

Dessa forma foram abolidas as fronteiras internas, restando apenas aquelas que separam de países exteriores. O Acordo de Schengen entrou em vigor em 26 de Março de 1995. Nós viajantes sabemos bem o que isso significa: circularmos entre países sem sequer pararmos!

Voltemos à Barragem de Cedillo: nessa mesma data de 1995, alegando razões de segurança, quem administra a infraestrutura resolveu manter fechado o respectivo acesso.

Era domingo. O portão - a fronteira - estava aberto!

A Barragem de Cedillo não só viola o Acordo de Schegen (admito que lhe seja permitido por ser uma fronteira privada, nos meandros insondáveis da lei) como é a única fronteira existente dentro do espaço comunitário onde vivemos.

Respondem assim a quem os questiona: “Se trata de una vía privada que forma parte de la central hidroeléctrica y, por tanto, no está diseñada como vía pública. Iberdrola no puede permitir el libre tránsito de vehículos o personas por medidas de seguridad” excepto ao fim de semana, digo eu!

É a fronteira proíbida!

VOLTEI LÁ

Assim, para vos poder contar esta história e conhecer finalmente o lado de lá, fui a Cedillo num domingo.

Parei primeiro em Montalvão (já conhecia). No alto, no castelo do qual resta uma ruína, a vista a 360º onde se vislumbra a sul a Serra de S. Mamede, a noroeste a Serra de Nisa, mais ao fundo para norte e em dias de boa visibilidade o maciço longínquo da Gardunha que esconde a Estrela. Para nordeste lá está: Cedillo!

“Acceso Portugal” No Castelo de Montalvão

Montalvão

Montalvão

Montalvão: Igreja Matriz

Montalvão

Montalvão: Igreja de S. Pedro

Montalvão: Depósito de água e ruína do Castelo

Ao lado do castelo fica a Igreja Matriz. Felicidade de viajante, nas escadas conversavam dois amigos.

Septuagenários, um de Montalvão, outro de Cedillo.

Do primeiro não retive o nome, do segundo sei hoje que se chama Jesús Martinez e há muito luta para que seja construída uma ponte: “que una Cedillo a Montalvão?” perguntei-lhe.

Respondeu-me que não: “a ponte até existe, é a barragem” e não só permite a circulação entre as duas terras, como tem a extensão até à outra encosta e permitiria ligar a Castelo Branco. Depois precisava apenas de cerca de 3 quilómetros de estrada a construir para fazer a ligação a Monte Fidalgo e depois à capital da Beira Baixa.

Tinha que ir investigar se seria assim...

Obtive também a resposta a outra questão que me interpelava desde o início: que contrapartida teria dado Espanha para que o Estado Português abdicasse da sua soberania sobre dois pequenos pedaços de território (se fosse hoje seria inconstitucional, e mesmo na época...). Pois parece que foi dado o compromisso que 25% da electricidade produzida se destinaria a Portugal. Não à borla, obviamente...

Montalvão: Santa Casa da Misericórdia

Fiz-me ao caminho pela estrada já conhecida. Cheguei à barragem e lá estava o famigerado portão agora escancarado.

Atravessei calmamente. O percurso é estreito e vê-se nitidamente que não suportaria muito tráfego para lá de atrapalhar a normal laboração da central.

Logo a seguir, à esquerda, pequena descida leva-nos até à beira da albufeira. É aí também que está o embarcadouro para os barcos que percorrem esta albufeira em passeios turísticos. As paisagens em estado selvagem merecem esta visita.

Em Montalvão .. de abalada até ao outro lado Ancoradouro no Tejo Rio Tejo: albufeira de Cedillo Rio Tejo: albufeira de Cedillo Margem direita (portuguesa). Acesso de Monte Fidalgo

Depois segui por estrada sinuosa (em melhor estado que a do nosso lado) até Cedillo. Sem surpresa, é terra pequena.

Mas totalmente diferente de Montalvão.

Onde esta tem ruas estreitas e raramente a direito, a pequena aldeia espanhola tem ruas mais espaçosas e mais a direito.

Curiosidade: a sua igreja é devota de S. António de Pádua.

Esse mesmo, o nosso Santo António de Lisboa.

A caminho de Cedillo Cedillo: rua principal Igreja de S. António de Pádua Igreja de S. António de Pádua

Tristes negócios que Portugal faz: cede território e soberania sobre a sua parte da fronteira, aceita um quarto da energia produzida (alguém controla?) numa barragem que em bom rigor se situa maioritariamente em terreno português e é alimentada pelo Tejo que aí é metade português e pelos afluentes que também o são.

Verifiquei que, em certa medida, os responsáveis da barragem terão a sua razão em não permitir uma circulação normal.

O trajecto por aqui encurtaria substancialmente as distâncias entre a região de Cáceres e Lisboa, as praias do Atlântico, Castelo Branco e as zonas mais industrializadas deste lado da fronteira. Por outro lado, abria também todo o potencial económico em sentido contrário. O acréscimo de trânsito seria demasiado para o perfil da travessia actual e poderia colocar em risco a infraestrutura da barragem.

Faça-se então a ponte! Em tempos, logo depois do fecho...houve essa possibilidade. Do lado de cá havia financiamento para a obra. Do lado de lá não quiseram! Parece que agora há novamente verba. Será desta?

Uma coisa é certa: as populações irmãs de Montalvão e Cedillo merecem que os seus anseios sejam atendidos. Por todas as razões...e mais uma: há a promessa de instalação de uma bomba de combustível em Cedillo, logo que a travessia esteja concluida. Que bem falta faz a quem aqui vive.... e não só!

E assim se resolvia o sarilho gerado pela Barragem de Cedillo!

EM CONCLUSÃO
Aviso em território português

NOTA DO AUTOR

Algumas semanas depois de ter visitado esta zona, realizou-se em Viana do Castelo, uma Ciméria Ibérica entre os governantes portugueses e espanhóis. Dela saíu a promessa de até 2025 ser construida a tão ansiada ponte. E até foram afectados 9 milhões de euros saídos do PRR português. Veremos se é desta....

NOTA FINAL

Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Motociclismo, na edição de Novembro, sob o título “O sarilho de Cedillo” .

O texto corresponde com ligeiras alterações mas inclui mais imagens que o espaço disponível numa revista impressa não permite.

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