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Anjo do lar

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Anexo

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É inegável a direta associação da mulher a certos estereótipos e espaços. O patriarcado a oprimiu e não permitiu que “sobrasse” outro espaço senão o privado, o doméstico. E o machismo, a inferiorizou e não a deixou ter opinião própria debaixo do seu próprio teto.

Em um discurso realizado em 1931 para a Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres, e publicado atualmente no livro Profissões para mulheres e outros artigos feministas (2020), Virgínia Woolf define o termo Anjo do lar, que se trata de um “fantasma” que acompanha a todas as mulheres induzindo-as a serem neutras para satisfazerem as necessidades do homem e da casa, e esse “anjo” diz coisas como “Seja afável; seja meiga lisonjeie; engane; use todas as manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente, seja pura.” conta Woolf (2020, p.12).

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Para a autora conseguir desempenhar as suas funções, no caso de escritora, ela narra que foi necessário matar esse “anjo”, e é compreensível a necessidade de calar quem a sufoca. Mas o que esta pesquisa almeja mostrar é que embora ainda existam vários “anjos do lar” circulando por aí, hoje em dia, muitos foram silenciados, e se é possível dizer, até transformados. Muitos anjos opressores se tornaram anjos libertadores, muitos perceberam que as asas são grandes demais para permanecerem presas apenas a um “teto sob quatro paredes”, seja por opção ou imposição, e que principalmente, elas foram feitas para voar. E agora, as mulheres que converteram esses fantasmas enxergaram que podem falar, lutar e, sobretudo, reivindicar.

Desde que esse discurso foi proferido, na década de 1930, evidentemente ocorreram diversas mudanças no contexto social e espacial, no entanto, quando se trata de avanços estruturais, questões socialmente arraigadas, as transformações são mais lentas. Essa lentidão nas transformações das divisões arcaicas de trabalho

influencia até hoje a sociedade, que desde sempre enxerga como obrigação da mulher o papel desempenhado dentro de casa, “Seu trabalho era da ordem do doméstico, da reprodução, não valorizado, não remunerado”, reitera Perrot (2007, p.109).

Nos dias de hoje, ainda se observa de forma drástica esse reflexo, segundo o estudo Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres, conduzido pelo IBGE, publicado em 2018, os homens dispendem em média 10,4 (brancos) ou 10,6 horas (pretos e pardos) por semana em tarefas domésticas, enquanto as mulheres brancas dispendem cerca de 17,7 horas semanais, e as mulheres negras ou pardas 18,6 horas de sua semana nas mesmas tarefas, ou seja, a mulher dedica a afazeres domésticos praticamente o dobro de tempo que o homem se dispõe.

Além da jornada doméstica, obviamente não remunerada, nos espaços em que elas deveriam ser reconheespaços privados

40% dos lares eram chefiados por mulheres até 2015 (Ipea, 2017)

39,2% dos feminicídios do Brasil, entre 2007 e 2017, ocorreram dentro de casa (Ipea, 2019)

17,7h

semanais gastas, no mínimo, em tarefas domésticas (IBGE, 2018)

Figura 3: Espaços Privados. Fonte: Elaborado pela autora.

cidas, nos seus empregos, as mesmas sofrem com a falta de valorização na folha de pagamento, e o mesmo estudo aponta que o salário médio mensal dos homens é de R$ 2 306,00 e o das mulheres de R$ 1 764,00, isto é, o equivalente a 76% do salário dos homens na mesma função. É importante ressaltar que esses dados consideram os empregos formalizados, ainda precisam ser considerados aqueles cidadãos que trabalham na situação informal, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais, também elaborada pelo IBGE, e publicada em 2020, a mulheres correspondem a 41,7% dos trabalhos informais, e com a lógica capitalista que segue sua pirâmide estrutural, como os números acima já comprovaram, a mulher preta e parda será a maior prejudicada, mais uma vez.

Refletindo sobre as informações citadas, é inquestionável a certeza da dupla (no mínimo) jornada de trabalho que a mulher leva. A consequência natural de todas as suas atribulações, como o trabalho, a maternidade, e a preocupação com a casa, reforçam a dificuldade de conciliação de tempo e diversas tarefas, sendo assim evidenciada a necessidade de uma moradia bem localizada e com infraestrutura básica, como saneamento, transporte público de qualidade, creches e postos de saúde próximos, entre outros elementos.

Seguindo essa premissa, e encarando de frente a atual realidade brasileira, as mulheres, principalmente as de baixa renda, moradoras de periferia, são as maiores vítimas dessa precariedade de infraestrutura mínima. Logo, é visível que são elas as mais afetadas pela falta de qualidade habitacional e de políticas habitacionais efetivas, uma vez que muitas não conseguem obter financiamentos por não corresponderem ao “perfil” de adesão.

Outro dado extremamente alarmante são os números correspondentes aos índices de violência doméstica. A moradia, o local que supostamente deveria oferecer se-

gurança e conforto, muitas vezes se torna o próprio cativeiro. Segundo o Atlas da Violência, disponibilizado pelo Ipea (2019), entre os anos de 2007 e 2017, 39,2% dos feminicídios ocorridos no Brasil foram dentro de casa, e enquanto os números de homicídios fora da residência caíram 3,3% os de dentro aumentaram em 17,1%.

Embora algumas informações assustem com o teor e sua veracidade, desconstruções já ocorreram no que se diz respeito ao “modelo tradicional” de arranjos familiares que muitas vezes suprimi e aproveita das mulheres em suas próprias moradas. Tais mudanças podem ser observadas na pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça feita pelo Ipea (2017), no período entre 1995 e 2015 o número de lares chefiados por mulheres aumentou de 23% para 40%, sendo assim, quase a metade dos lares brasileiros.

As reflexões colocadas até o momento, são para evidenciar o quanto é necessário assegurar o direito à moradia digna a todas as mulheres. Também para demonstrar o quanto o espaço privado, do lar, pode ser um reprodutor de um sistema estrutural muito maior e muito problemático. Garantir a equidade de gênero nas distribuições de tarefa, na remuneração, na valorização social e na segurança é garantir tempo e espaço para que as mulheres possam desenvolver as suas habilidades e individualidade, é entender que todos esses “anjos” que não só podem, como devem voar.

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