TECITURAS - Coletânea de reflexões - Virgínia Leal

Page 1

CAPA

1


TECITURAS Coletânea de reflexões Virgínia Leal

Outros livros da autora, disponíveis no endereço www.virginiabarbosaleal.com.br:  O Caleidoscópio da vida  Fênix  Contadora de estrelas  Para quem não tem colírio  De algum anel azul  Relicário dos Homens

Olinda, novembro de 2021 Contato:virginiabarbosaleal@gmail.com Revisão: Ícaro Weiman Aguiar e Estela Carielli de Castro Capa e ilustrações: Erick Bruno Bastos Barros – erickbrunobb@gmail.com 2


SUMÁRIO Prólogo Tecituras PENSAR O PENSAMENTO 1. Pensamento – Ele nos define? 2. O pensamento é inato ou é aprendido? 3. O poder criativo do pensamento 4. Imaginação criativa 5. O poder do discurso 6. Você pensa de forma linear ou sistêmica? ESCOLAS DE PENSAMENTO 1. 2. 3. 4.

A influência do pensamento grego na nossa forma de pensar Cinismo – a deturpação desse estilo de vida As vantagens de ser cético O sentido da vida e a arte de bem viver

IDEOLOGIAS 1. 2. 3. 4. 5.

Ideologias – como elas nos afeta Ideologia e visão de mundo Consumismo – a ideologia do mercado Ideologia de gênero Ideologia política

VIRTUDES E DEFEITOS 1. 2. 3. 4. 5. 6.

Perfeitamente imperfeito Teimosia ou determinação? O predador mental Vocação A diferença entre o ícone e o popular A vítima carcereira

ÉTICA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

Ética, moral e transcendência Ética e civilidade Ética, instintos e pulsões Ética e política Hábito e moral Moralista, eu? Cidadania e engajamento

3


INSTÂNCIAS DA PSIQUE 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.

Os eus que nos habitam O Eu criança O Eu divino Por que o mal seduz? A defesa do ego De que estamos nos defendendo? As máscaras que usamos O olhar focado em si A derrocada da individuação pelo consumismo

LOUCURA E LUCIDEZ 1. 2. 3. 4.

A loucura civilizada O sofrimento na Loucura A loucura nossa de cada dia O direito de ser diferente

ESFERA DA ESPIRITUALIDADE 1. 2. 3. 4. 5. 6.

Espiritualidade Deus e o verbo As faces de Deus Religião, temor e recompensa O Sagrado e seus símbolos A relação do ser humano com a vida

ESFERA DOS SENTIMENTOS 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

Emoções e como elas nos afetam Zona de conforto De volta para casa Sensação de vazio Propósito versus vida vazia Resiliência e resignação O humor como sobrevivência

FELICIDADE E SOFRIMENTO 1. Felicidade – sentimento ou escolha? 2. Quando o medo atormenta a felicidade 3. Superar-se para ser feliz 4. Tenha amigos e seja feliz 5. A manipulação impede a felicidade 6. A experiência do luto 7. Felicidade na abundância 8. Felicidade versus inveja 9. Memórias que afetam a felicidade 10. Perdoar para ser feliz

4


5

PRÓLOGO Esta é a minha segunda coletânea de reflexões, abordando temas diversos. O resultado é fruto do instante, no qual estão inseridas a percepção fugaz de mim mesma e a minha visão de mundo. Muitos dos textos aqui colecionados mudaram de forma e conteúdo quando eu os revisava. A reformulação, quando decorreu da elaboração sequenciada de outras análises que traziam novo sentido à reflexão anterior. Tento exercitar o pensamento dinâmico e sistêmico, entrelaçado pelo tear da vida. Pretendo aproximar o abstrato ao concreto, levando o pensamento à experiência e vice-versa. O esforço é no sentido de trazer o que vejo e percebo, de acordo com o ângulo em que me encontro no momento. O que escrevo está impregnado de pulsação, sentimentos, crenças e ideologias que integram quem sou e, por isso, não é inocente nem neutro. O convite ao leitor é para ler com olhos críticos e investigativos, analisando o conteúdo propositivo apto a elaborar as próprias conclusões. Esta é minha contribuição. Boa aventura.

5


6

TECITURAS A vida é o tear que concebe a existência. Cada um tece a sua, com a linha das escolhas. Há quem as ideias o seduzam e se entretenha com elas, embora se renda à inevitável experiência. Outros se conduzem pela verdade, mesmo que ela seja uma ilusão. Há aqueles movidos pela realidade, a despeito da hesitação em alcançá-la. Alguns são permeados de ceticismo, e ainda assim praticam a confiança. Tem quem se conforte sendo virtuoso, mesmo ciente das limitações. Muitos caminham com fé, ainda que duvidem de Deus. Já eu sigo consciente dos tropeços e acertos, dos equívocos e atinos, das incoerências e contradições, do que é imaginário e do que é real. Tento viver o que se apresenta, atenta às próprias respostas, sem renunciar às ilusões que dão sentido à vida. E assim vou compondo a tecitura de quem sou, do que penso e do que sinto, ora bordando, ora remendando, ora refazendo a costura, até o dia derradeiro em que a morte dê o último arremate, e eu me entregue à incerteza do porvir.

6


7

PENSAR O PENSAMENTO

7


8

Pensamento – ele nos define? “Penso, logo existo”. Será? É o pensamento que nos define? Somos o que pensamos? Somos medidos, avaliados e julgados pelo que sabemos? O que significa para cada um pensar, existir e saber? A existência humana é apenas o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte? Para encontrar respostas a essas questões, há que se entender como o pensamento se processa. O pensamento é estimulado pelos sentidos e pela forma como somos afetados pela experiência. Aquilo que nos afeta produz uma imagem. À imagem é atribuída uma representação simbólica. O símbolo tem um significado específico, composto por utilidade e valor. Esse processo é traduzido pela linguagem com o uso da memória. A memória é um acervo de informações carregadas de valor e afeto. Pensar e lembrar são funções cognitivas que estão associadas. Cognição é a capacidade de associar pensamentos que são encadeados de forma lógica. É através dela que operamos o conhecimento e interpretamos o que percebemos. Através do conhecimento, assimilamos informações. Através dos sentidos percebemos e apreendemos a realidade. São funções cognitivas focar, selecionar, dividir e memorizar; analisar, avaliar, criticar e sintetizar; generalizar, abstrair, comparar e distinguir. Já induzir, supor, inferir e deduzir são hipóteses que podem não investigar com rigor as premissas, levando a conclusões falsas, e essas conclusões falsas podem se converter em crenças. As funções cognitivas operam de forma automática. O pensamento é concebido a partir das experiências resultantes da relação do indivíduo consigo mesmo, com o mundo e com outras pessoas. A vivência acontece quando somos afetados e essa resposta é sensorial e emocional. O pensamento organiza a experiência, dando a ela um sentido. Pensamentos e sentimentos estão interligados de forma indissociável. O pensamento provoca um sentimento e o sentimento atrai um pensamento. O pensamento é a conclusão tirada de uma experiência sensorial e emocional. A conclusão pode ser falsa, quando a experiência é emocionalmente imatura e ela converte-se em crença. Será verdadeira, pela compreensão do equívoco interpretativo da experiência, e essa compreensão leva ao aprendizado e à sabedoria. Não se pode conceber o pensamento como um processo mental separado da experiência sensorial e da emocional. Ele nasce, desenvolve-se e expressa-se como um sistema complexo e vivo. As deformações mentais, distúrbios emocionais e desarranjos sensoriais decorrem da tentativa de fracionar, fragmentar, dividir e isolar os elementos do sistema, de tentar separar a mente do corpo, das sensações, dos sentimentos e da ação.

8


9 Pensar com efetividade não é só assimilar informações e reproduzi-las ao acionar a memória, pois isso não nos diferencia de um computador; não é adotar irrefletidamente ideias preconcebidas, tampouco é usar a mente para praticar as atividades habituais e rotineiras. Pensar é essencialmente examinar de forma crítica o repertório pessoal de ideias e teorias assimiladas. O pensamento efetivo é aquele decorrente da reflexão sobre aquilo que se pensa, se sente e se faz. Pensar é subjetivar o pensamento, pensar por si mesmo. É tirar as próprias conclusões valendo-se dos recursos cognitivos. Será efetivo quando se tem consciência de estar inserido em um processo sistêmico decorrente das interações entre o pensamento, os estímulos sensoriais e a experiência. Qual a relação, então, entre a existência e o pensamento? O ser humano tem consciência de sua própria existência. Essa consciência vem da capacidade de pensar e de sentir. A existência pressupõe a interação consigo próprio, com outras pessoas e com o mundo. Os relacionamentos são experiências que provocam afetos. Os afetos são interpretados pelo pensamento. Para quem evita a experiência, a existência limita-se à sobrevivência. Existir é atuar na vida em seus diversos aspectos, com a mente e o coração abertos para novos aprendizados. Só é possível a atuação efetiva na vida pela experiência. A experiência só acontece quando há resposta sensorial e afetiva. A existência como forma de estar no mundo não é um conceito nem um estado, é um processo influenciado por vários fatores responsáveis pela visão de mundo, a exemplo da base familiar e cultural que contribuiu para a formação da personalidade. O pensamento é apenas um desses fatores.

9


10

O pensamento é inato ou é aprendido? O senso comum é achar que o pensamento é uma faculdade que integra a natureza humana. Esse é um tema polêmico entre os estudiosos. Há algum tempo, acreditava-se que a mente do bebê era uma página em branco. Hoje se sabe que o cérebro dele já traz componentes genéticos de inteligência, algumas funções cognitivas rudimentares e é aparelhado para adquirir outras. Penso que já nascemos com a estrutura cognitiva indispensável para desenvolver o pensamento. Entretanto, no nascimento, não há noção da palavra e da linguagem, nem do raciocínio lógico. É nesse sentido que entendo que o pensamento é aprendido. O pensamento progride à medida que o cérebro se desenvolve e recebe estímulos ambientais. Em sua função primária, o pensamento é a resposta da mente a estímulos recebidos pelos sentidos. Os neurônios se excitam e enviam uma mensagem ao sistema nervoso central, que processa a informação. Ainda que se admita que ele seja inato, para se ter efetividade, o aprimoramento é requerido. À medida que o cérebro se desenvolve, ele torna-se mais apto a realizar processos mentais elaborados, a depender do nível de aprendizado recebido. Uma criança que cresce num ambiente desfavorável à aquisição de conhecimento possivelmente terá dificuldades cognitivas. O pensamento é a atividade intelectual decorrente da associação ordenada ou encadeada de ideias. Ele só pode se processar mediante o conhecimento prévio armazenado na memória e traduzido pela linguagem. A linguagem constrói significados, definições e conceitos sobre as coisas, sobre as pessoas e sobre o mundo. O pensamento tanto é refletido pela linguagem quanto é determinado por ela. A linguagem propicia a interação e o entendimento entre as pessoas. O pensamento estruturado no raciocínio lógico é essencialmente desenvolvido e assimilado. A lógica contemporânea é o processo de investigação sobre o raciocínio. A lógica opera através de conceitos, que são determinados por regras previamente estabelecidas e aceitas. O conceito é uma convenção ou acordo, que atribui significado e valor a determinado objeto. É o processo de elaboração de ideias, cuja conclusão é tida como verdade. É pelo pensamento que a mente concebe a realidade, a partir da percepção pelos sentidos. O campo argumentativo do discurso se organiza e é controlado por esse método e tem por fim chegar à verdade. É o discurso a chave interpretativa da realidade, com a pretensão de uma conclusão verdadeira. Aquilo que os sentidos percebem e o pensamento traduz não é a realidade, mas apenas sua representação. As ideias criadas pelo pensamento têm a pretensão de entender a realidade. A problemática ao se lidar com o universo de ideias é o regramento dos conceitos que dificultam a mudança. Os conceitos tentam imobilizar a realidade, que é dinâmica e mutável.

10


11

A realidade só é apreensível através da experiência. Hoje já se admite a ideia de que toda verdade é provisória, que ela é sempre relativa e condicionada aos limites da mente, da capacidade de observação e de tirar conclusões. A lógica tenta afastar a contradição, o conflito e a incoerência, que são próprias do ser humano. A natureza humana não acompanha essa estrutura rígida de pensar. O pensamento precisa substituir a oposição entre verdade e erro, pela aceitação do erro como um elemento constante da busca da realidade e da verdade, que sempre será relativa. A verdade não pode ser estanque, precisa acolher aquilo que ainda não foi apreendido, percebido e estudado. A realidade e a verdade encontram barreira para serem assimiladas, porque o pensamento tenta substituí-las por sua representação. O pensamento só estará a serviço da realidade e da verdade se estiver alinhado com a experiência. A experiência é o resultado da interação humana com as coisas, com o mundo, do sujeito consigo próprio e com outras pessoas. Pela interação, a pessoa recebe estímulos em forma de sensações e emoções que provocam uma mudança interna, provisória ou permanente. A função do pensamento é entender a constante mudança de visão de mundo a partir da mudança interna. O pensamento efetivo é uma construção complexa e aprendida, um adestramento, um condicionamento adquirido, fruto de um regramento intermediado pela cognição e conduzido pela lógica. Quanto mais se entra no mundo das ideias, mais distante se fica da experiência. A veracidade do edifício conceitual só pode ser confirmada através da vivência da troca com tudo que existe. Por essa razão, há tanta diversidade de entendimento e percepção da realidade. Daí a importância de praticar o pensamento crítico e questionador. Há, portanto, que se pensar o pensamento. A visão de mundo depende do grau de desenvolvimento mental e da maturidade adquirida pela experiência bem aproveitada. A filosofia é um dos primeiros campos de produção de ideias, originárias de conceitos. É também a forma de entender, construir e desconstruir os próprios conceitos, de colocar em questão as certezas, de trazer a dúvida para reformular ou inovar o pensamento.

11


12

O poder criativo da mente A mente tem o poder de criar. Mas como esse processo se dá? Platão afirma que o mundo em que vivemos é uma reprodução pálida do mundo real, o mundo das ideias. É meu o entendimento de que tudo que criamos, imaginamos e concebemos já existe nesse mundo sutil, que também pode ser entendido como esfera de consciência. Somos dotados de uma consciência pessoal que integra a consciência maior. Quanto mais alargamos as fronteiras da consciência menor, mais acessamos os conteúdos da consciência universal. A consciência humana é limitada na capacidade de pensar. Ela cria de acordo com a maturidade intelectual, emocional e moral do indivíduo. Quanto mais a consciência menor for capaz de abstrair os elementos que interferem no processo criativo, como as defesas emocionais, as crenças, as emoções e as distorções morais, mais ela expande a compreensão. Acessar a fonte de tudo que já foi criado, através da intuição, é a primeira etapa do processo de criação. A qualidade da materialização daquilo que se plasma depende do nível de apreensão, da percepção do que foi colhido dessa esfera inteligível. A verdadeira criação é a capacidade de plasmar no mundo material sensível tudo que já existe no mundo sutil. Quanto mais isenta de interferências é a criação humana, mais ela se aproxima da fonte original de ideias. Vivemos num mundo ilusório, envolvidos na névoa da ignorância. Se queremos voltar à realidade e à verdade, precisamos aprimorar a forma de pensar, as qualidades e virtudes, desenvolver a capacidade cognitiva e amadurecer as emoções. Então, poderemos criar o bem e o belo e um dia retornaremos à casa que já foi nossa, através do poder criador da inteligência em expansão.

12


13

Imaginação criativa Você ousa ultrapassar o convencional ou está confortável dentro dele? Lembro da história de uma criança que realizou um prodígio. Ao ser perguntada como ela conseguiu aquilo, respondeu que não sabia que era impossível. Esse é o espírito da mente criativa. Para ela, o impossível não existe. Imaginação é poder criativo. Quando ele é ativado, seja na descoberta de algo que já existe, seja como invenção ou inovação, mente e emoções entram em crise. A crise acontece porque essa força geradora desestabiliza o pensamento convencional, estruturado, desarruma as certezas e gera desconforto. Quando a crise se eleva à potência divina, expande a consciência e cria algo bom. O processo criativo acontece pela conjugação de percepção, imaginação e memória. Não é possível se criar do nada; a criação surge sempre a partir da base de conhecimento contido na memória, para conceber a nova ideia. A imaginação amplifica a percepção das novas imagens que chegam e são associadas às imagens já conhecidas para que se tenha noção do que se está vendo. A confiança e certeza na concepção acontecem quando o que foi imaginado passa a ser uma ideia forte e clara. É a associação da intuição com o poder da consciência maior. Uma mente confiante é capaz de materializar a criação, ainda que, no primeiro momento, pareça algo irrealizável. Para isso, é preciso ter coragem de ultrapassar o convencional, o já conhecido e estabelecido, as fronteiras da própria estrutura mental e abrir a mente a novas possibilidades. Estamos a todo momento materializando o que criamos, ainda que de forma inconsciente. Há que se perceber o que estamos construindo para poder fazer novas escolhas ao ligarmos a mente do ego à Mente Maior. A imaginação criativa nos aproxima de Deus, ao nos elaborarmos e nos expressarmos a partir das experiências que demos causa.

13


14

O poder do discurso A filósofa Viviane Mosé afirma que o que nos move não é a verdade, mas sim a ilusão. Ninguém quer despertar para a realidade final, a morte. Então, para não estar cara a cara com ela, tentamos enganá-la com a fantasia de eterna juventude. A velhice lembra a proximidade da hora derradeira. Colocamos a vida sob uma redoma construída por ideias, explicações, teorias e justificativas que nos dão falsa segurança, a sensação de domínio e controle sobre ela. Nesse contexto, o pensamento está a serviço da ilusão. Valendo-se desse estado de vulnerabilidade humana, provocada pela angústia que as vicissitudes e infortúnios provocam, algumas mentes afortunadas de inteligência usam de seu poder argumentativo para persuadir o indivíduo de que as ideias e promessas delas são a solução e a resposta para todos os problemas. Então, há uma combinação perfeita entre o poder de convencimento daquele que fala e o desejo de ser convencido do ouvinte. O discurso só prospera pelo autoengano de quem a ele se submete. E o que é o discurso? É um instrumento de controle e de poder. É aquilo que está por trás da ideia transmitida. É a intencionalidade para convencer o ouvinte da veracidade, legitimidade e bons propósitos da ideia transmitida através de afirmações, proposições ou enunciados. O objetivo é influir no raciocínio alheio, o mais das vezes provocando comoção. O discurso defende uma ideologia favorável a quem o manobra, cuja narrativa é organizada de forma a ocultar isso. Ele induz o ouvinte a crer que, ao adotar essa ideologia, estará defendendo seus interesses. Quando John Kennedy, em seu discurso, afirmou “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país”, ele defendeu a ideologia do patriotismo. E essa mesma frase é usada para justificar atos impositivos do Estado e a servidão a ele pelos cidadãos. Há, aí, uma inversão de posição e de valores. O Estado existe para servir à coletividade e não o contrário. Em nome da pátria, extorque-se os contribuintes com altos impostos desde que o mundo é mundo. Em nome da prosperidade do país, os empresários tiram a última gota de sangue do trabalhador. Para fortalecer os meios de domínio através da servidão voluntária, ainda circula outra ideologia, a de que “o trabalho enobrece o homem”. A maioria das pessoas simplesmente adere a uma ideologia. Para se desenvolver a capacidade de escolha, é preciso questionar o pensamento. Nenhum discurso ideológico sobrevive a uma análise crítica. Através da crítica revelam-se contradições, incoerências e incongruências. Percebe-se aquilo que está nas entrelinhas e que se pretende esconder. Para isso, é preciso ter a mente aguçada pela capacidade cognitiva, hoje um atributo raro entre as pessoas. O autoengano atualmente é tão forte que o convencimento se dá independente da credibilidade de quem discursa, muitas vezes acolhe-se até discurso de autoria desconhecida. Para ser aceita, basta que a ideia atenda à expectativa de quem a ouve ou lê. Aquilo que está sendo relatado não precisa ser

14


15 verdade, não precisa ser fato; aceita-se o que está sendo dito sem provas. O critério de validação é ele estar de acordo com o que se pensa ou se acredita. Os textos trazidos à internet estão permeados de sofismas – aqueles que fogem à lógica e induz a conclusões falsas, além de falácias, ideias falsas dadas como verdadeiras. Há que se resgatar ou desenvolver a capacidade de análise e crítica do que se faz, do que se lê ou do que se ouve, para que não se vire joguete de interesses escusos de manipulação e de poder.

15


16

Você pensa de forma linear ou sistêmica? Você ainda pensa de forma polarizada e dual? Preto ou branco? Bom ou mau? Já considerou que entre um extremo e outro há tons de preto e tons de branco e que o ser humano não é totalmente bom nem totalmente mau? Ao avaliar uma situação, você analisa a circunstância e o contexto em que ela está inserida? Analisa os fatores variáveis? A reflexão dessas questões será trazida aqui de uma forma bem simplificada. Há formas de pensar distintas e que podem ser adotadas de acordo com a necessidade de dividir e isolar uma parte para exame ou considerar a influência de todos os elementos para uma determinada conclusão. O método cartesiano é linear porque considera apenas o sujeito e o objeto a ser estudado. O método científico tem por base a teoria cartesiana. Ele isola o objeto de estudo em um ambiente controlado pelo cientista. O método sistêmico é complexo porque abrange todos as causas que compõem o sistema e que podem interferir no resultado. A forma de entender o mundo pela teoria cartesiana é baseada na razão e na lógica. A lógica é um conjunto de regras racionais determinadas para validar o conhecimento. Para uma proposição ser válida, é preciso que haja nexo entre a causa e o efeito. Essa teoria tenta abstrair ou ignorar a interferência dos sentidos de quem observa, porque afirma que as sensações e percepções são ilusórias. Hoje, sabe-se que as emoções têm sua própria lógica, que é pouco estudada. Para Descartes, só existe aquilo que pode ser provado. Então, o pensamento sistêmico é melhor que o linear? Entendo que são complementares. O pensamento linear observa uma parte do todo, e o sistêmico, ao constatar o que caracteriza a parte, a insere no todo para observar o que pode variar em suas características ou como ela pode afetar o seu entorno, de acordo com a influência das condições a que essa parte está submetida. Vêse, hoje, ao se criar uma vacina, que o resultado em laboratório é uma etapa que depende da segunda, que é constatar sua eficácia, ao ser aplicada no mundo real. Quando se fala de visão de mundo, entretanto, bem como compreensão do ser humano e suas atitudes e reações, estas se revestem de complexidade bem maior e examinar simplesmente o sujeito e a conduta pode comprometer a veracidade do que se está vendo. É preciso fazer um exame linear, porque, assim, aprendemos a pensar, levando-o em conta apenas como a primeira etapa de apreciação. Há que se ter, entretanto, a consciência de que foram excluídos fatores importantes, decisivos e determinantes do comportamento ou da forma como se interpreta o mundo. E ainda que a abordagem abranja um maior número possível de variáveis, ainda estaremos longe da realidade, porque o ângulo de visão humana é limitado, não vê em 360 graus. Há, ainda, características subjetivas da formação da personalidade e caráter individuais que não se podem apreender em sua totalidade, ainda que haja um esforço terapêutico nesse sentido.

16


17 O ser humano é um sistema que abarca vários sistemas – físico, mental, emocional e sensorial. Ele está inserido dentro de outros sistemas que formam um sistema maior. A evolução da forma de pensar, considerando essas interações, indica que o indivíduo não é detentor da verdade absoluta e que a realidade é produto da forma como o indivíduo é afetado pelas pessoas e pelo mundo. Então, a base do pensamento exclusivamente racional é inadequada quando o que se estuda envolve relações humanas. Por essa razão, seremos sempre injustos ao julgar uma pessoa ou sua atitude. Há que se exercitar a compaixão, a partir da consciência de que somos falíveis e suscetíveis ao erro. Há que se entender que não temos o poder de saber a motivação ou intenção das atitudes de quem quer que seja. O pensamento que se pode validar é aquele sustentado pelo amor.

17


18

ESCOLAS DE PENSAMENTO

18


19

A influência do pensamento grego na nossa forma de pensar O pensamento grego é a base que estrutura o pensamento ocidental. Desde a formação da mitologia, que aborda as questões fundamentais da existência humana em linguagem metafórica e figurada, à filosofia, que é o campo que produz o saber a partir da elaboração de conceitos fundamentais para o pensamento lógico e racional, entre eles, o próprio conceito de ideia. Dentre as diversas teorias do pensamento grego, destaco aquela que tenta desconstruir o edifício conceitual defendido pela própria filosofia, baseada em valores morais e na verdade. Para os gregos, o conceito é uma ideia defendida como verdadeira por meio de técnicas argumentativas e aceita pelo consenso de outros pensadores reconhecidos e validados publicamente. O sofismo afirma que não há verdade universal, há apenas a habilidade de convencimento através do discurso bem elaborado, valendo-se de uma boa oratória sustentada pela eloquência e persuasão. Ao questionar a construção de conceitos, ele não considera os valores morais como fonte de sabedoria. Hoje, essas técnicas são amplamente utilizadas no discurso político, jurídico e religioso e como ferramenta de venda. Partindo do pressuposto de que a verdade não existe, para o sofismo o que importa é vender a ideia, mesmo que não tenha sustentação lógica. Para essa forma de pensar, o homem é a medida de todas as coisas, e a verdade depende do ponto de vista de cada um. O sofismo usa as regras da lógica unicamente para apurar a retórica. Isso pode trazer, por consequência, conclusões deliberadamente falsas, porque parte de pressupostos falsos, e a intenção é induzir ao erro o interlocutor por meio da persuasão. Hoje, a deficiência cognitiva das massas contribui sobremaneira para o convencimento sem esforço, porque a lógica e o raciocínio não predominam nas mentes despreparadas para a crítica. Um dos métodos adotados de persuasão é dizer o que as pessoas querem ouvir, a promessa inserida no discurso de realização do desejo. A deficiência de pensamento crítico contribui para a proliferação de fake news e para a ascensão de influencers digitais e gurus mal-intencionados. Nesse cenário, o cidadão desavisado levanta a bandeira que não lhe pertence, defende interesses que não são seus e que são até contrários a ele. Acredita pertencer a uma classe social e econômica que não é sua, totalmente alienado das armadilhas manipulativas em que caiu. Se o conceito de verdade imutável vem sendo questionado, isso não invalida a existência da mentira e do falso. Ainda que a verdade conceitual seja apenas uma ficção, ela funciona e é necessária para que o tecido social não se esgarce, para promover a paz social e para um convívio harmônico. Abolir a estrutura conceitual que organiza e controla o comportamento em coletividade seria excluir a moral e a ética, os valores e virtudes indispensáveis ao aprimoramento pessoal, seria voltar à barbárie social, em que vale tudo, do cada um por si e do caos.

19


20

Cinismo – a deturpação desse estilo de vida A palavra cinismo é comumente atribuída a um defeito ou desvio moral, mas não foi sempre assim. O Cinismo é uma corrente de pensamento filosófico, embora questione a própria filosofia, assim como faz o sofismo. Basicamente, ele critica a adoção das convenções sociais como algo natural. Como já foi dito, a construção do pensamento grego tem por base convenções ou acordos originários de conceitos, que são ideias aceitas como verdades. A palavra cinismo vem do grego kynismós, que significa “como um cão”. O cinismo tem por fundamento a busca da felicidade, através da adoção de uma vida natural, “como a de um cão”, que hoje se equipara ao naturismo. Diógenes, o mais importante representante desse pensamento, morava na rua e dormia num jarro. Para ele, a felicidade se alcança pelo despudor – ausência de vergonha; pela autossuficiência, que só é possível pelo despojamento de tudo que torna o indivíduo dependente; e pela ausência de paixão, que é a causa de todas as perturbações. O pudor, segundo essa teoria, é uma convenção, não é natural. Diógenes não adotava o discurso como forma de convencimento. Os seus seguidores aderiram à sua prática, sua forma de viver. Para Diógenes, despudor é falta de vergonha, é a liberdade para atender às necessidades fisiológicas, que, por serem naturais e prementes, podem acontecer em qualquer hora e lugar. Hoje tal prática seria duramente punida, por ser enquadrada em atentado ao pudor, conceito que tem conotação de perversão sexual. O despudor ou falta de vergonha foi desvirtuado ao longo do tempo para hoje ser sinônimo de atrevimento, desaforo, descaramento e desfaçatez. Quem sabe isso tenha acontecido porque Diógenes contestava as convenções sociais com ironia e escárnio, chocando os ouvintes. E como essa teoria influencia a forma de viver dos tempos atuais? O pudor passou a ser uma virtude da pessoa escrupulosa, que tem uma atitude consciente, cuidadosa, cheia de zelo. Por conseguinte, o inescrupuloso é aquele desprovido de princípios morais, que tudo faz despudoramente para conseguir o que quer. A autossuficiência, que antes visava a autonomia, hoje é reflexo do egoísmo, do autocentrismo. E a ausência de paixão, ou imperturbabilidade, descambou para a apatia e a insensibilidade. O cínico, hoje, tem uma conotação pejorativa, é aquele agudo e mordaz, que não respeita sentimentos alheios, valores estabelecidos nem convenções sociais. O que se espera de quem está no caminho de aperfeiçoamento pessoal é vencer o egoísmo e desenvolver a capacidade de sentir. Se por um lado a vida despudorada é inviável para o convívio social, por outro é preciso que se tenha em mente que as regras que orientam a forma adequada para prática das necessidades fisiológicas e para o polimento social nas relações não é algo natural, inerente ao ser humano, é algo aprendido, é um adestramento.

20


21 Há uma tendência crescente pela adoção de uma forma de vida natural, o que evidencia isso. Convenções sociais são práticas impostas. Algumas são assimiladas em forma de hábito, outras causam apenas repressão. Para que o ser humano seja tido como civilizado, basta cumprir as convenções, ainda que internamente não as acolha e que as desobedeça de forma oculta quando tem chance. A civilidade é necessária como um pacto social de boa convivência. Mas ela em si não direciona o indivíduo para o aprimoramento pessoal. O desenvolvimento mental, emocional e moral é uma decisão interna que exige vontade, disposição e determinação, tendo o amor como bandeira a ser defendida para realização da verdadeira felicidade.

21


22

As vantagens de ser cético Você acredita em tudo que lê e ouve? Os céticos, não. Eles duvidam da percepção e afirmam que não é possível atingir a certeza através da mente e dos sentidos. A palavra cético vem de sképsis – investigação, indagação. O ceticismo entende que a investigação resulta em achar o que se está procurando ou em afirmar ser impossível encontrar o que se procura, ou, ainda, persistir na busca. Aqueles que encontram a resposta são chamados de dogmáticos, ou os que estabelecem verdades. O cético duvida, mas se mantém investigando. A verdade, para os céticos, é inapreensível. Para demonstrar isso, dizem que Carnéades fez um discurso a favor de uma determinada tese e convenceu a todos; no dia seguinte, fez outro discurso contra a mesma tese e igualmente convenceu a todos. Para os adeptos do ceticismo, há argumentos convincentes para conclusões diferentes da mesma questão. Quando isso ocorre, a atitude correta é suspender o juízo, ou seja, não tirar nenhuma conclusão e continuar investigando até que se chegue a uma posição confortável e autêntica. Até os critérios usados na investigação para se chegar a uma conclusão são passíveis de dúvida. Para os céticos, não se posicionar sobre uma questão polêmica não é problema, e sim se posicionar de forma não criteriosa e precipitada. O ceticismo sofreu influência do cinismo e ampliou o pensamento sofista que afirma que “O homem é a medida de todas as coisas”. Ao desconfiar dos sentidos e da própria mente, trouxe conclusões, das quais destacamos: há diferentes percepções da realidade face à diversidade constitutiva entre os homens na forma de pensar e sentir; há diferença entre as sensações da mesma pessoa no decorrer da vida sobre a mesma questão e que podem falsear a percepção da realidade; há diferença de circunstâncias de vida, favoráveis ou desfavoráveis, que podem mudar a forma de ver a realidade pelo mesmo indivíduo, a depender da idade. A percepção do que se vê é apurada pela frequência com que observamos. Por fim, o sentido da vida para os céticos é a tranquilidade de espírito e, para isso, não convém angustiar-se em se posicionar. Mais vale continuar investigando até estar confortável em seu posicionamento. O ceticismo conclui que a ação é determinada pela aparência das coisas, porque as impressões sensíveis não estão sujeitas a questionamento. A atitude cética é extremada, porque encurrala os próprios seguidores em suas conclusões, pois, ao afirmar que a verdade não é apreensível, há que se questionar essa própria afirmação. Há que se ter em mente que não é possível ao homem apreender a verdade absoluta, ou seja, aquela observada em todos os ângulos, pois os meios de percepção humana são limitados. Já foi dito que os conceitos ou ideias tidas como verdade são convenções entre pensadores. Aquilo que se aceita como verdade precisa ser experimentado para comprovação. Prova disso é que muitos conceitos tidos como imutáveis vêm sendo questionados e hoje até se apresentam com significado reduzido, ampliado ou modificado.

22


23 O homem é o produto da soma de suas experiências. O conhecimento mental é a base, a referência para a ação, mas o próprio conhecimento sensorial adquirido pela experiência deve ser considerado. É preciso ter a mente aberta para novas percepções e novos conhecimentos, por mais que aparentemente contradigam as certezas. É pelo exame do preestabelecido que se pode chegar a conclusões autênticas e mais próximas da realidade. Essa é a vantagem de ser cético sem ser descrente de tudo.

23


24

O sentido da vida e a arte de bem viver O sentido da vida é buscado desde a mitologia. O herói mítico Ulisses afirma que o sentido da vida é ocupar o seu lugar no mundo. Várias são as respostas para o sentido da vida dadas pelas escolas filosóficas. Para o sofismo, é a arte do convencimento; para o cinismo, é uma vida despudorada, autônoma e desapaixonada; para o cético, é a busca da imperturbabilidade; para o hedonismo, é a fruição do prazer; para Aristóteles, é alcançar o máximo do potencial; Para Sócrates, é a felicidade. Na religião cristã, Jesus ensina que a vida só tem sentido se for voltada para os outros. Para o filósofo Spinoza, a boa vida é aquela em que se tem alegria ou potência de agir. Há uma escola de pensamento que entende que o sentido da vida é a arte de bem viver. E o que seria isso? Fiz uma pesquisa no YouTube e encontrei essa expressão usada para propaganda de atividades de lazer, palestra de uma religião, sobre desenvolvimento pessoal, sobre “12 regras para a vida” e tantas outras mais. Em nenhuma delas o conceito original foi preservado. Para o estoicismo, a arte de bem viver é fazer aquilo que lhe corresponde, que lhe é inerente, a vocação absoluta. A felicidade, portanto, é resultado da prática da arte de bem viver. Epíteto, a figura mais importante dessa forma de pensar, afirma: “A felicidade é um verbo. É o desempenho contínuo, dinâmico e permanente de atos de valor. Nossa vida é construída a cada momento e tem utilidade para nós e para as pessoas que tocamos.” Mas, para que se possa praticar atos de valor, continua Epíteto, o indivíduo precisa se apropriar do próprio modo de funcionamento. Para esse pensador, há diferença entre solidão – que é o exercício do diálogo interno, e o isolamento – que é o desacompanhamento de si mesmo. Quanto mais consigo se vive, mais se granjeia conviver com o outro. A partir do centro do ser, é possível chegar ao coração das coisas e se posicionar na vida. E cumprir aquilo que lhe corresponde pelo desenvolvimento dos valores, das virtudes e da sabedoria. Não ocupar o seu lugar no mundo contribui para a desordem do universo, tem consequência sistêmica. O propósito humano é sair da ignorância em direção à sabedoria. O ideal humano é um fator de soma, é fazer diferença, é trazer a palavra que faz sentido na vida de alguém. Se é possível resumir todas as teorias focadas, a arte de bem viver é estar alinhado ao propósito pessoal de vida, àquilo que é natural e inerente às suas habilidades, à tarefa de vida. O propósito e a vida altruísta são indissociáveis. O prazer, a potência de agir ou alegria, a imperturbabilidade e o desapaixonamento são consequências de uma vida com propósito, tendo o amor como fio condutor. Para seguir o propósito pessoal, é preciso conhecer o próprio potencial, buscar atingir o máximo dele, descobrir e ocupar seu lugar no mundo, posicionar-se na vida e desenvolver a arte de convencimento com o propósito de

24


25 servir. Ao seguir em direção ao próprio propósito, o indivíduo estará praticando a arte de bem viver e certamente terá encontrado a felicidade.

25


26

IDEOLOGIAS

26


27

Ideologias – como elas nos afetam Você tem opinião formada sobre determinado assunto? Você é consciente das bases que sustentam seu ponto de vista? Para ajudar a responder essas perguntas, é preciso lembrar como as ideias se formam. A ideia é a representação mental de algo concreto ou abstrato. O conceito, por sua vez, delimita ou define o significado de algo. A proposição e aceitação de uma ideia se dão pelo pensamento racional e lógico, construído pela articulação organizada e estrutural de conceitos. A finalidade de uma proposição é conduzir o raciocínio a uma determinada conclusão. É assim que a ideologia é construída. A ideologia, na forma como a concebemos hoje, é uma ideia falsa. Assim como o sofisma, é um pensamento que, em um determinado momento do raciocínio, de forma sutil, foge à lógica e isso leva a uma conclusão equivocada ou falsa. Essa construção é deliberada e intencional, para induzir o indivíduo ao erro de raciocínio. A finalidade é convencer a pessoa de que a ideia apresentada é verdadeira e benéfica. O ideário da ideologia pertencente à classe dominante tem a pretensão de ser universal, ou seja, que esse ideal seja buscado por todos. A ideologia é assimilada pelas pessoas na forma de uma consciência falsa e alheia à realidade. Aliena o indivíduo da realidade social e assim ele não vê as desigualdades, a competição entre os pares, o fomento de disputas entre iguais, a sedução da mídia que estimula desejos e os transforma em necessidades. São ideias implantadas de forma sutil e ardilosa, através das poderosas máquinas da propaganda, ou introduzidas na formação do aluno pelo ensino oficial. As formas mais eficazes de assimilação são as imagens e frases de efeito. Entre essas ideias manipuladoras, predomina aquela que faz o indivíduo crer que pertence a uma classe social, cultural e econômica que não é a sua e, com isso, a pessoa passe a defender interesses que não são seus. Depois de tudo que foi dito, você é capaz de identificar qual é a ideologia que sustenta sua opinião formada? Esse é um bom motivo para reflexão.

27


28

Ideologia e visão de mundo Na reflexão anterior, a ideologia foi abordada como ideia falsa. Agora será desenvolvida a noção de ideologia como a base de como o indivíduo vê o mundo. A ideologia já foi uma ciência que cuidava de analisar como as ideias se formam, como os elementos constitutivos de agrupam. Nesse sentido, ideologia é o conjunto de ideias, noções e opiniões que uma sociedade tem sobre um determinado assunto. É a visão coletiva de mundo, a forma como uma sociedade ou uma comunidade vê as coisas e os assuntos ou opina sobre eles. Assim, a ideologia seria o ideário de uma sociedade. Essa visão idealizada de mundo não é neutra, porque tem o propósito específico de manutenção da ordem social. A ética serve a esse propósito. Platão defendeu a ideia da existência de dois mundos, o sensível, aquele apreensível pelos sentidos, e o inteligível, o mundo das ideias. O mundo sensível ou material seria uma cópia imperfeita do mundo inteligível. O propósito humano seria o de aproximar o mundo inteligível do mundo sensível. O ideal humano antecede à ética. Ao longo da história humana, ele foi criado e é difundido pelas religiões. A figura do homem virtuoso agrada a Deus e é o ideal a ser perseguido pelo crente. Logo, a transcendência da matéria sempre foi um ideal buscado desde os primórdios do mundo civilizado. Ocorre que, ao idealizar o mundo das ideias, não foram considerados os desvios desse ideal decorrentes da ignorância e do erro. Essa é uma das razões da intolerância à imperfeição. Por outro lado, houve uma supervalorização desse mundo conceitual, a ponto de torná-lo uma realidade paralela ao mundo concreto. Cada vez mais, o homem se afasta do mundo dos sentidos e emoções e mergulha no mundo mental, intelectual e racional. Essa dissociação da experiência o impede de alcançar o ideal aspirado. Pela impossibilidade de aprimoramento pessoal nesse universo das ideias não praticadas, os ideais transformam-se em crenças, e as crenças sustentam o pensamento viciado e o comportamento equivocado. Esse é um ambiente favorável para a proliferação de ideologias falsas, com um propósito deletério. Se estamos num mundo material, só é possível alcançar a maturidade através do aprendizado, e este só é possível através da experiência apreendida pelos sentidos e pelas emoções. Ao contrário do pensamento platônico, penso que eles são aliados ao propósito dessa unidade entre o mundo inteligível e o mundo sensível. Para estar vivo, é preciso viver e o entorpecimento dos sentidos e das emoções nos tira a vitalidade e potência de vida. Para se ter uma mente clara, é preciso amadurecimento dos sentidos e das emoções. Aquele que consegue isso está mais apto a rejeitar uma ideia falsa, buscar e aprimorar as virtudes que elegeu e construir sua própria visão de mundo.

28


29

Consumismo – a ideologia do mercado O “capital simbólico” é, na verdade, um efeito da distribuição das outras formas de capital em termos de reconhecimento ou de valor social, é “poder atribuído àqueles que obtiveram reconhecimento suficiente para ter condição de impor o reconhecimento”. (Trecho de Coisas ditas, de Pierre Bourdieu) A ideologia direciona a forma de ver o mundo e a reflexão em pauta é sobre a visão mercantilista das associações. O mercado é um sistema de troca que se retroalimenta, onde operam as forças da procura e da oferta. Essa é a fonte da cultura utilitarista das relações. Ocorre que o que antes estava circunscrito à esfera econômica, agora foi expandido às demais relações humanas. Há que se entender como isso se deu. O mercado é uma engrenagem movida pelo consumo. O funcionamento dessa máquina é autoperpetuador, fomentado pela sociedade de consumidores. Nessa matriz, o indivíduo tanto é sujeito quanto é objeto de consumo. Ele é sujeito de consumo ao adquirir bens e serviços. E é objeto quando ele mesmo é um produto à venda. E o que o indivíduo oferece ao mercado? A força de trabalho e a produção intelectual. Esse capital profissional cresce à medida que ele é aperfeiçoado, através de aquisição de conhecimento e de experiência. Quanto mais aprimorado é seu capital simbólico, mais atrativo ele se torna para o consumo. Na visão de mundo do mercado, as competências, habilidades e padrões éticos são vistos como capital simbólico ou o poder do indivíduo para impor reconhecimento e barganhar vantagens. Essa mesma lógica foi trazida para as relações sociais e até afetivas, passando a ser um componente importante na formação da identidade e personalidade do indivíduo. Está à venda a imagem, ostentada nas redes sociais, verdadeiras vitrines virtuais. Para essa imagem ser atrativa, o marketing identifica que atributos ou capital social são demandados e precisam ser adquiridos ou exibidos. Se outrora essas forças de procura e oferta eram regidas pela necessidade, hoje são potencializadas pelo desejo. De acordo com Freud, o desejo é uma pulsão constante que impulsiona o indivíduo à satisfação. É também autoperpetuador, porque o vazio da falta nunca é preenchido. Quando um desejo é satisfeito, ele desloca-se para outro objeto aleatório. O marketing tem uma função determinante no fomento de desejos, a partir da criação de valores e construção de relacionamentos baseados em trocas. Ao criar valores, transforma desejos em necessidades. A propaganda encoraja desejos que são selecionados pela pesquisa de demandas. O bem a ser adquirido traz um conceito, que é mais que um significado. Quando alguém compra uma roupa “de marca”, por exemplo, ele não está apenas comprando uma vestimenta, está definindo estilo de vida e status.

29


30 Essa ideologia teve fácil aceitação social, em decorrência de vários fatores. A confusão entre necessidade e desejo. O refreamento da pulsão dos desejos e dos sentimentos encontrou no consumo uma válvula de escape. O individualismo crescente converteu as relações afetivas à lógica utilitarista. Trocou-se a necessidade de amor pela de admiração, de reconhecimento e de validação. Como esses substitutos não preenchem o vazio das necessidades reais, o impulso ao consumo se renova, podendo chegar ao excesso, em forma de compulsão. O indivíduo, então, deixou de ser cidadão, sujeito de direitos e deveres sociais, para ser uma peça da máquina mercantilista. A ostentação deu visibilidade aos consumidores anônimos. O consumidor, ao vender sua imagem, confunde seguidores com amigos; acumulação de bens, sucesso e status com prazer e felicidade; afetividade com busca de satisfação instantânea, efêmera e fugidia. Uma vida vazia de sentido e desprovida de consistência, ou uma vida líquida, como diz Zygmunt Bauman. Olhar o mundo como um mercado de trocas, onde impera o interesse e o utilitarismo nas relações é a ideologia que nos afasta do amor, da abnegação, do serviço e da razão de viver. Essa é a causa do materialismo egoísta que nos distancia de Deus. Tomar consciência de como somos influenciados pelo consumismo é o primeiro passo para mudar essa realidade.

30


31

Ideologia de gênero Para falar sobre ideologia de gênero, é necessário trazer as noções de identidade, subjetividade, sexo, gênero e orientação sexual. Identidade é o perfil, o modo de ser de um indivíduo. Já a subjetividade é a forma como ele vê o mundo e a si mesmo. Sexo é a distinção anatômica e biológica entre o homem e a mulher e diz respeito às genitálias e ao aparelho reprodutor. Gênero é a dimensão social e cultural, o papel a ser desempenhado de acordo com o sexo. Já a orientação sexual tem a ver com a prática erótica, a escolha de relações afetivas e do objeto de desejo; é pela sexualidade que se define a orientação heterossexual ou homossexual. Há, ainda, outras formas de sexualidade. Atualmente, as ciências sociais entendem que gênero é produto do contexto social e histórico e não resultado da anatomia. É um aprendizado sociocultural prescrito para cada sexo. Esse aprendizado é heteronormativo. Nessa linha de pensamento, identidade de gênero é a experiência subjetiva a respeito de si mesmo e das relações com os outros gêneros. De acordo com a cultura ocidental, influenciada fortemente pelo cristianismo, a identidade de gênero tem características e papeis previamente determinados para o homem e para a mulher. Para essa noção binária, a constituição biológica determina o gênero ou a conduta esperada, não apenas em relação à sexualidade, bem como em relação a sua atuação performática. A teoria de gênero tem duas vertentes, ambas mal interpretadas. A primeira tem por base o determinismo do gênero binário a partir do sexo feminino ou masculino e da heterossexualidade. E a segunda decorre do desvio desse padrão normativo, expresso em diversidades de formas independentes da orientação sexual. Essas vertentes converteram-se em ideologia quando passaram a ser uma prática política voltada a interesses de uma categoria social. De um lado, a intolerância do fundamentalismo religioso à diversidade de gênero, de outro a defesa da hegemonia patriarcal que propaga o preconceito e discriminação do diferente. Com o intuito de obter adesões, essas abordagens ideológicas propagam inverdades, associando o diferente a práticas imorais, pervertidas e bizarras, a exemplo de pedofilia, zoofilia e estupro. E afirmam que levar à escola a educação sexual e de gênero induz a criança à homossexualidade. A teoria de gênero é fruto da luta das mulheres pela emancipação dos padrões normativos. O modelo feminino socialmente imposto já sofreu muitas mudanças, pela conquista do direito ao voto, ao mercado de trabalho, ao controle da gravidez, à igualdade de salário, a profissões, ocupações e papeis sociais que antes eram proibidos às mulheres. A mulher hoje tem liberdade para construir sua identidade pessoal, sem precisar corresponder às expectativas sociais. Os homossexuais, por sua vez, conquistaram o direito ao casamento e a serem tratados como pessoas normais e não como um desvio mental patológico.

31


32

O que a teoria de gênero reivindica é que haja liberdade na escolha de papeis sociais, de parcerias afetivas, da aparência ou performance e de orientação sexual, para qualquer sexo. O que essas pessoas querem é o direito a viver a singularidade de sua identidade de gênero. Elas lutam para serem tratadas com respeito e tolerância, nas diversas formas de expressão de gênero e de sexualidade. Há muito ainda que se fazer num país que é recordista em violência preconceituosa contra os homossexuais e pessoas transgêneros. Façamos a nossa parte.

32


33

Ideologia política “Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?” Paulo Freire Há uma teoria que afirma ser a política uma forma de ideologia. Segundo essa teoria, ideologia é a intervenção eficaz na realidade social, a partir de uma ideia baseada no conhecimento de seus conflitos, visando transformar essa realidade. Dessa forma, tanto os conceitos de ideologia como de visão de mundo quanto de ideia falsa estão inseridos nesse pensamento. Para ser considerada ideologia, ela precisa transformar a realidade, seja de forma positiva ou negativa. A política, portanto, tanto pode ser uma intervenção transformadora da realidade social, visando ao domínio de uma categoria sobre a outra, quanto meio de transformação da visão de mundo, tendo por função a resolução de conflitos. Hoje a classe deu lugar à categoria, porque a equação de classes sociais, como burguesia versus proletariado, cada vez mais deixa de fazer sentido. Primeiro, porque o indivíduo não consegue mais se identificar com sua própria condição e confunde ascensão social e financeira com mudança de classe. Segundo, porque, cada vez mais, o poder de barganha da força de trabalho tem se enfraquecido com o avanço da tecnologia que extingue postos de trabalho e a perda de direitos trabalhistas. Terceiro, porque a classe burguesa deu lugar a uma categoria anônima de poder representada pelo mercado. Agora, a equação não envolve pessoas, e sim a divisão entre mercado e consumo. É nessa esteira de pensamento que os conflitos sociais acontecem, de um lado os interesses do mercado, de outro os interesses dos consumidores, estes na condição de sujeitos e objetos de consumo. Nesse sentido, há muito, a política deixou de cumprir sua função social transformadora e os políticos passaram a operar na preservação do status quo ou do estado atual. Salvo honrosas exceções, não há exercício político e sim politicismo ou práticas de negociatas. Quando muito, são discursos exortativos que clamam por transformação, caracterizados por mera intenção de vontade, sem implementação ou eficácia. Muitos desses discursos são demagogos, feitos por líderes populistas, explorando a ignorância das massas, visando exclusivamente a adesão de votos. Os políticos, em sua maioria, ainda que sejam conscientes dos principais conflitos sociais, não estão interessados em resolvêlos. Preferem usar da força coercitiva do direito, através de sua atividade legislativa, para coibir e punir. Toda essa estrutura e atuação tem bases ideológicas excludentes. Enquanto o exercício da política não operar sobre a consciência da real condição de cada indivíduo, o político não promover uma sociabilidade

33


34 satisfatória e não for um agente de resolução eficaz de conflitos, a sociedade continuará a presenciar atritos, desordem, violência de toda ordem e insatisfação generalizada do cidadão. Como diz Paulo Freire, todas as pessoas são orientadas ideologicamente, quer tenham consciência disso ou não. O que é preciso observar é se a ideologia assimilada é inclusiva ou excludente. Na política, o que se vê é uma polarização excludente. De um lado, o mercado quer liberdade de atuação, mas não respeita as necessidades e direitos dos consumidores. De outro lado, os consumidores, ao reivindicarem a intervenção do Estado em seu favor, resistem a elaborar considerações e fazer concessões sobre fatores indispensáveis à sobrevivência do sistema onde está inserido. A democracia eficaz é aquela em que cada membro da sociedade é consciente de seus direitos e obrigações e é capaz de identificar, distinguir as necessidades sociais e interesses das pessoas e agir de forma a equilibrar esses dois âmbitos. E, principalmente, em que os agentes políticos operem subjetivamente para obter resultados objetivos favoráveis, tanto na construção da sociabilidade quanto da sustentabilidade do sistema social e econômico.

34


35

VIRTUDES E DEFEITOS

35


36

Perfeitamente imperfeito Há quem se desaponte com o companheiro, o familiar, o amigo, alguém notável, por uma atitude deles tida como reprovável. A pessoa sente-se enganada porque os tinha em alta conta. O que a pessoa não percebe é que foi ela que os colocou num patamar de perfeição onde não há margem para o erro. Colocar a pessoa nesse lugar é torná-la desumana. A falha é inerente ao ser humano. Faz parte do aprendizado em qualquer nível ou esfera de conhecimento e desenvolvimento pessoal. Vivemos no mundo de dualidade, onde percebemos a vida e a nós mesmos através dos contrastes. A noite revela o dia, o mal é ausência do bem, o acerto se obtém pela lição tirada do erro. A consciência não consegue estar permanentemente atenta a ponto de evitar uma conduta intempestiva, inadequada, impensada, insensata ou desajustada. Por receio de desaprovação, a pessoa coloca uma máscara de perfeição e finge ter virtudes que acredita serem necessárias para conseguir admiração. Não percebe que a máscara não a blinda dos atos falhos, que acabam por revelá-la. A pessoa intolerante o é, em primeiro lugar, para com sua própria imperfeição e, por isso, não aceita a falibilidade alheia. O erro não define quem somos, porque somos muito mais que ele. É preciso reprovar a atitude equivocada e não a pessoa que a praticou. Não se pode reduzir alguém ao erro, porque há que se considerar o conjunto de atitudes que compõe a história pessoal do indivíduo e sua identidade. É preciso considerar a vida pregressa daquele que está sendo julgado para avaliar se se trata de um fato isolado ou uma tendência que se repete obstinadamente. Aquele que não aprendeu com o equívoco não pode ter o mesmo tratamento de quem o reconhece, se arrepende e parte para a reparação. O primeiro está mais suscetível a reincidir na conduta danosa. É comum as pessoas autênticas e espontâneas receberem críticas e serem induzidas a se “encaixar” no modelo idealizado. Sua forma de ser assusta, porque revela aquilo que o outro tem e tenta, a todo custo, esconder. A integridade é a capacidade de se conhecer e de se acolher por inteiro, tanto nas qualidades quanto nos defeitos. Isso não quer dizer usar de complacência ou indulgência com suam própria ignorância. Mas que, para mudar de conduta, é preciso tornar o engano consciente, estudá-lo e evitar agir a partir dele. Convém seguir a máxima que diz “Conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Quem age em coerência com aquilo que honra sua humanidade torna-se uma pessoa livre e digna e converte-se em alguém perfeitamente imperfeita. Assim como deve ser.

36


37

Teimosia ou determinação? Muitas pessoas entendem equivocadamente que teimosia é uma qualidade, pois a confundem com determinação. A teimosia é a resistência em vislumbrar outras possibilidades, é a rigidez em manter o ponto de vista, a atitude, o hábito. Ela está a serviço da ignorância, mais que isso, de não querer saber, mais que isso, de não querer saber que sabe. A ignorância é a fonte de todo mal e a teimosia coloca um véu sobre a realidade. Ela está a serviço, também, do voluntarismo, do querer obstinado, do desejo que as coisas sejam do seu jeito e aconteçam de imediato. A teimosia é o uso da mente para manter a irracionalidade. Sua única estratégia argumentativa é a de justificar a rigidez, a resistência, a imobilidade, tentar sustentar as coisas como estão. Enquanto a determinação é a persistência que caminha na direção do propósito, a teimosia concentra todos os esforços em se manter fixo. A determinação não é linear, ela muda de sentido ou de direção quando é preciso, sabe aguardar, avançar e recuar. A teimosia não sai do lugar. A determinação não perde o foco, a teimosia é dispersa. A determinação é serena, a teimosia é ávida e ansiosa. A determinação considera a desistência quando percebe que não é a melhor alternativa. A teimosia não muda de atitude, ainda que fracasse invariavelmente. A determinação e a teimosia são lados da mesma moeda, constituem uma força neutra, cujo resultado se diferencia de acordo com a atitude interna de seguir o fluxo ou tentar interrompê-lo. A teimosia pode ser convertida em determinação a partir da escolha.

37


38

O predador mental Quem não já foi vítima de alguém que sistematicamente lhe desqualifica? Na infância, na escola, na adolescência, no trabalho. Ainda que esse tipo de atuação cause danos significativos, há um tipo de predador mental mais sofisticado, inteligente e perverso, que usa uma técnica de manipulação própria para que a vítima duvide de si e de suas percepções, chegando a pensar que está louca. Esse método é chamado de gaslighting. O predador mental é frio e calculista e tem um foco: desestabilizar emocionalmente a vítima para tê-la sob controle. Ele age sistematicamente para confundir. Sua forma de atuação é planejada minuciosamente a partir da observação aguçada dos pontos vulneráveis do seu alvo. Começa de forma insidiosa e sutil, em pequenas coisas e, à medida que tem resultados, vai evoluindo o seu método de tortura. A subjugação da vítima chega ao ponto dela própria não acreditar no que está à sua frente, tão grande é a capacidade de persuasão do molestador. A segurança com que ele nega a realidade, acompanhada de uma atitude de superioridade favorece a dúvida. Simultaneamente ao processo de confundir a vítima, ele faz uma campanha de desqualificação dela, que vai desde a aparência, inteligência, ideias e modo de ser, à própria personalidade e caráter. Quanto mais o predador expressa insatisfação e culpa a vítima pela infelicidade dele, mais ela se empenha em agradá-lo, ainda que o que ela faça nunca seja suficiente para ele. O predador tem uma capa de pessoa de bem, é benquisto, admirado e aprovado pelas pessoas em seu entorno. Consegue inverter a situação a seu favor através de uma cruzada de demonizar o alvo de suas investidas, colocando-se ele próprio como vítima. Age em público de forma provocativa para desestabilizá-la e, assim, comprovar aos outros o retrato dantesco que faz dela. Por não ter o apoio das pessoas, muitas vezes, até mesmo da própria família, a vítima receia desaprovação e rejeição dos outros e, por isso, evita qualquer crítica ou atitude de rebelião que possa ter em relação ao abusador. Isso faz com que ela passe a tratar as ações do predador de forma natural e até a ele se aliar. Com o tempo, ela pode chegar a ter uma relação aparentemente saudável com ele, mesmo após a separação, para que não precise se isolar do ambiente social e familiar comum. A vítima do predador é uma pessoa fragmentada e destruída. Torna-se insensível às suas próprias necessidades e às necessidades dos outros e acaba por ter, sem perceber, atitudes igualmente abusivas. Pessoas que convivem com predadores mentais sofrem de baixa autoestima, são deprimidas, confusas, têm lembranças turvas e sentem culpa e vergonha de si. Tornam o predador o centro de sua vida, chegando a negligenciar outras áreas pessoais, e falham no desempenho de papéis de mãe e de profissional, o que aumenta a menos-valia, num interminável ciclo vicioso. Sentem-se insuficientes e inadequadas. Muitas perderam a força para reagir e para sair do julgo. Precisam de ajuda profissional para se reconstruírem e se fortalecerem. Necessitam de alguém que as valide como pessoas e confirme suas percepções, que diga que o que elas veem é real, que elas não são aquilo que o

38


39 predador diz que são, que elas não têm culpa e que elas estão sendo vítimas de uma relação abusiva.

39


40

Vocação Você tem algo que faz bem? Já descobriu um jeito de usar essa aptidão a seu favor e de colocá-la a serviço de um bem maior? A sensação de vazio é um chamado da alma para se alinhar ao nosso propósito de vida, e a realização desse propósito se dá através do exercício amoroso de uma atividade compatível com a habilidade de cada um. Há um momento na vida que é um divisor de águas, que define o direcionamento profissional de cada um. Nesse ponto, muita gente não conhece suas aptidões e socorre-se dos conhecidos testes vocacionais. As pessoas não foram educadas para perceber seu talento, muitas vezes o talento até é reprimido pela família, quando esta o considera um dom que “não dá dinheiro”. O próprio método oficial de ensino muitas vezes não favorece a descoberta dele, porque não inclui na grade programática o aprendizado que lhe é correspondente. O que é certo é que todos têm uma tendência, ou várias, para determinadas atividades, algo inato e natural. A habilidade também pode ser adquirida pelo conhecimento e/ou pela prática. Quando conhecimento e prática se conjugam, acontece o que se conhece por capacitação ou competência. Independente do grau de instrução do indivíduo, todos têm facilidade nata em desenvolver uma determinada atividade. Hoje já se sabe que há vários tipos de inteligência e para que a pessoa se realize profissionalmente precisa descobrir a sua. Há a inteligência para escrever e aprender línguas, a orientada para questões espaciais, como arquitetura e engenharia, a inteligência matemática, a lógica e analítica, a musical, a artística, a voltada para o autoconhecimento, para se comunicar, para compreender a natureza ou investigar a existência, como os filósofos e sociólogos. Penso que, para o bom desempenho de uma atividade ou profissão, devem ser consideradas não apenas as aptidões do fazer natas ou adquiridas, mas em especial as virtudes. Entre elas, destaco organização, observação e perspicácia, percepção, compreensão e capacidade de sensibilizar o outro, capacidade de comprometimento e engajamento, de motivação, persistência e determinação, paciência e compaixão, entre outras. Essas qualidades que formam a personalidade e caráter do indivíduo podem ser postas em prática independente de formação e fazem a diferença em qualquer ambiente e atividade. Tudo que foi dito até agora visou a compreensão do que seja vocação. A palavra vocação vem do latim vocare, que significa chamar. É o chamado da alma para seguir um determinado caminho, a missão de vida a que a pessoa está destinada, de acordo com a inclinação natural a algo que lhe é inerente. Existem pessoas com múltiplas habilidades, e isso dificulta que o indivíduo decida o que fazer. Qualquer uma delas que a pessoa escolher estará cumprindo sua vocação. Há quem intuitivamente a descubra, siga sua trajetória

40


41 e sinta-se realizado porque age em coerência com ela. Outras precisam passar pelo vazio que os levam à busca de um sentido para vida e à realização de seu propósito. E a realização do propósito acontece quando descobrimos e pomos em prática, de forma amorosa, nossa vocação, atendendo não apenas aos interesses pessoais, mas principalmente ao bem maior.

41


42

A diferença entre o ícone e o popular A pessoa popular atrai muitos simpatizantes, mas quantos amigos ela tem? Há quem deseje ser popular, por acreditar que isso aumentaria a sua autoestima. Há um equívoco aí. A pessoa popular é sedutora, seu poder atrator está direcionado a contentar a todos. Para isso, não se posiciona diante das circunstâncias, adota uma postura de “neutralidade”, além de uma identidade maleável ao interesse de agradar. Não se define nem se autoafirma, vive uma vida falsa. É diferente do ícone, que é aquele que se distingue dos demais pelo exemplo da conduta que adota. Destaca-se por praticar as ideias e princípios em que acredita. Não tem interesse em agradar nem arregimentar admiradores. Ele naturalmente atrai a apreciação das pessoas pelo que é e pela aura de amor que emana. O ícone lida com opositores, o popular não. O ícone está em constante aprendizado e desenvolvimento, o popular vive num mudo irreal. Muitas pessoas desejam ter um ícone como amigo, enquanto o popular só atrai admiradores. É isso que diferencia uma vida vazia de uma vida plena de sentido. Dito isso, cumpre perguntar: você ainda quer ser popular?

42


43

A vítima carcereira O sentimento de culpa te vitimiza, chamar a responsabilidade te empodera. Daniel Ramirez Muitas pessoas vivem a sofrer pelo erro não perdoado. É um equívoco manter-se nessa situação, que não favorece o crescimento pessoal próprio nem da pessoa lesada. A primeira coisa que precisam entender é que culpa é um sentimento escravizador e paralisante. A culpa decorre da não aceitação da falibilidade que é própria do ser humano. Todos cometem erros. A culpa é confundida com remorso, que é o arrependimento do erro praticado, o reconhecimento dele. Para que a culpa se converta em remorso, é preciso aceitar a imperfeição e que os desacertos fazem parte do aprendizado. Ao admitir a falha, o próximo passo é assumir a responsabilidade pelo dano causado e seguir em direção à sua reparação. A correção é mais fácil quando o dano é de ordem material. Mesmo assim, só é possível com o consentimento da pessoa prejudicada. Quando o prejuízo é de ordem emocional, decorrente, por exemplo, de traição e agressão, entre outros, o conserto, que seria a mudança de atitude junto à vítima, só depende da chance que esta der. Em qualquer caso, não havendo perdão, nada há que se fazer em relação a ela. Não perdoar é escolha da vítima, alimentar o ressentimento é decisão dela, não dar uma nova chance é seu direito. O transgressor precisa estar atento às manobras da vítima para mantê-lo refém da culpa, seja por vingança, seja para tirar vantagem dele e até mesmo pelos dois motivos. A vítima carcereira é aquela que não perdoa, mas está sempre por perto, exibindo seu sofrimento e veladamente acusando a pessoa por sua infelicidade. De uma forma ou de outra ela está sempre lembrando do mal causado, alimentando, assim, a culpa de quem supostamente lhe vitimou. A vítima carcereira alimenta-se da vitimização e da cobrança sem fim ao suposto agressor. Ela escolhe não se libertar do passado e tenta manter o equivocado preso a seu erro, fazendo-o acreditar que é um malfeitor. Para se libertar dessa situação, o agressor precisa perdoar-se e, para perdoar-se, é preciso se olhar com sinceridade, sem indulgência, mas também sem crítica condenatória. Verificar as circunstâncias, a motivação do ato, o nível de maturidade que tinha ao praticá-lo. Essa análise é importante para tornarem conscientes forças ocultas que interferem nas atitudes, além de evitar repeti-las. Ela é necessária, também, para que não se aceite a versão dos fatos da vítima, que podem não corresponder à realidade. Há que entender que todo castigo tem um tempo de duração para que seja legítimo, e quando é permanente convertese em vingança desmedida e em tirania. Nas relações que envolvem questões práticas, convém separar o erro do suposto agressor da cobrança da pessoa prejudicada para que seja possível avaliar o erro com objetividade. Uma vez constatado que o equívoco causou danos, cabe investigar a sua causa, para não o repetir. O próximo passo é tentar restaurar o dano. Se a pessoa prejudicada não aceitar reparação, o infrator se isenta de responsabilidade. Assim deve ser também nas questões afetivas. Há

43


44 uma forma indireta de ajudar a vítima carcereira, nutrindo compaixão pela escolha dela em apegar-se à dor e ao ressentimento e orando pela sua cura. Além disso, manter-se de coração aberto para acolhê-la, caso consiga sair desse quadro aflitivo. Quando se comete um erro que causa dano efetivo, se atenta contra as leis divinas e é possível restaurar a ordem assumindo a responsabilidade pela transgressão, pagando o preço, inclusive, de não ser perdoado. Assumir a responsabilidade importa em mudar de atitude e buscar fazer o bem a outrem, quando não for possível a reparação direta à vítima.

44


45

ÉTICA

45


46

Ética, moral e transcendência Essa é a primeira das reflexões que iremos fazer tendo por tema ética e moral. Os conceitos de ética e moral são diversos e, muitas vezes, invertidos. Há estudiosos que entendem que ética é o conjunto de princípios, valores e virtudes que regem uma determinada sociedade em um determinado tempo, e a moral é a conduta individual alinhada com esses princípios. A ética é a teoria, e a moral é a prática. A ética tem alcance coletivo, e a moral é restrita ao indivíduo. Em sentido inverso, a ética é o comportamento moral individualizado, enquanto a moral é o conjunto de hábitos e costumes de uma sociedade. Há quem entenda que a ética é universal e atemporal, enquanto outros entendem que ela é construída a partir de valores morais de uma determinada sociedade e que sofre modificações pelo tempo. Ética e moral podem ser convertidas em regras, cuja transgressão é passível de punição, ou podem se limitar a um ideal a ser buscado, cuja violação acarreta reprovação social. Integram esse universo os conceitos de justiça, de livre arbítrio, da causa e efeito, de direito e dever, de obrigação, do que é justo, íntegro, tolerável. Somam-se a tudo isso outros conceitos como os de política, civilidade, cooperação, urbanismo, convenções, acordos e pactos sociais, bem comum e muitos outros. Ética e moral são conceitos, ou seja, códigos de conduta acordados para a boa convivência e a paz social. É diferente da ânsia ou propensão do ser humano à transcendência da matéria, a perseguir uma conduta que o eleve da condição animal para o desenvolvimento e exercício pleno dos potenciais inerentes à sua natureza. Os princípios, as virtudes e os valores éticos e morais nem sempre correspondem a essa tendência inata e, em alguns casos, até são contrários a ela. Outra questão a considerar é que a forma como cada indivíduo decodifica esses conceitos sofre a interferência de uma série de fatores, como a capacidade cognitiva de interpretar o mundo, o conhecimento de seu universo interior, a formação da personalidade e do caráter, a influência do meio e as conclusões tiradas das próprias experiências. O maior equívoco humano está no antropocentrismo, por adotar a si próprio como centro de tudo que está em seu entorno e o entendimento de que o mundo existe para lhe servir. Daí derivam as deturpações de valores, como apego, posse e individualismo – características do egoísmo; de segregação, de exclusão, de preconceito; de competição, de ambição e ganância, de ver a fartura em oposição à escassez, entre outras. Deriva igualmente o moralismo, que é a perversão da moral e se expressa pelo julgamento irrefletido, que desconsidera, muitas vezes de forma intencional, a complexidade, a situação e o contexto do que se está avaliando. O moralismo é uma atitude hipócrita de quem usa o código moral para proveito próprio, de quem o invoca enquanto o viola em segredo.

46


47 A verdadeira ética e moral tem por princípio o bem comum, a solidariedade e a fraternidade. É inclusiva, e sua base é o amor. Aquele que as pratica o faz de forma autêntica e espontânea e não por conta da coerção social e do medo de punição. A pessoa que acessa a sua essência é norteada pelo seu centro de sabedoria. Quem compreendeu que cada um tem seu lugar no mundo contribui com a unidade que forma o grande tecido de singularidades, tecido esse que integra o sistema universal, e é regido por leis sagradas e divinas. Percebe que a atuação de cada um contribui para a ordem ou o caos na rede de interações e favorece ou compromete a harmonia e a paz sistêmicas.

47


48

Ética e civilidade Você já deve ter ouvido alguém dizer: “Vamos conversar como pessoas civilizadas”. O que isso quer dizer? Para muitos, ser civilizado é estar inserido numa civilização. Civilização, por sua vez, é o estado de desenvolvimento intelectual, cultural, artístico, social e político de uma sociedade. Em tese, a pessoa civilizada estaria habilitada em todas essas esferas de conhecimento. O que se destaca aqui é a civilidade social, que é a arte da boa convivência por meio da aplicação de códigos de conduta preestabelecidos, tendo por base o respeito mútuo. Pode parecer que sejam atitudes desnecessárias e superficiais, mas a etiqueta social é de fundamental importância na formação da sociedade harmoniosa e para a boa convivência. Relações respeitosas são importantes para o bom entendimento entre pessoas, povos e países. A civilidade varia no tempo e acompanha as mudanças do contexto social, econômico e político de uma determinada cultura. Civilidade envolve desde protocolos, formalidades e etiquetas que determinam boas maneiras na forma de falar, de ouvir, de se vestir, nos modos, a uma conduta polida, refinada, nobre, cortês e fidalga, própria de uma conduta ética. Fazendo uma retrospectiva histórica, na França, o código de conduta era determinado pelo rei. Era ritualizado, teatralizado e hierarquizado, portanto, excludente. Havia uma grande preocupação com a perda de prestígio. Era praticado pela nobreza quando visitava a corte. Os serviçais precisavam aprender algumas regras de conduta para servir os nobres. Estes desprezavam o trabalho e valorizavam o ócio. A agressividade manifestava-se pelas intrigas. No Renascimento, a etiqueta da Itália pautava-se na crença da igualdade entre os homens, portanto, era inclusiva, e o critério de nobreza levava em conta as qualidades do indivíduo, não era dada pelo nascimento em uma família nobre, como na França. Com a ascensão da burguesia, a civilidade passou a ter como referência os valores franceses de liberdade, igualdade e fraternidade e sofria influência da religião protestante e da nova ordem econômica. Contemplava como valores o trabalho, a moderação, a austeridade, a poupança e a acumulação capitalista. A conduta levava em conta as aparências e imperava a hipocrisia. Num segundo momento, ela adotou a conduta perdulária francesa e, dessa forma, houve um afrouxamento de valores. O critério de distinção de classes passou a ser o luxo e a ostentação. A civilidade atual contempla uma miscelânea dessas várias etiquetas sociais, que existiram em várias épocas e lugares. Os códigos de conduta mais valorizados têm por base o respeito mútuo e a educação no convívio social. Todos sabem que não é adequado ir ao trabalho com roupa provocante, nem em trajes de banho, há um código de ética profissional em que a civilidade

48


49 necessariamente está inserida. Em festividades formais, a indumentária adequada é valorizada. Há regras de comunicação entre chefe e subordinado e vice-versa, entre vizinhos e ao se dirigir a uma autoridade. Elas são diferentes da comunicação informal mais íntima, permitida entre amigos, entre cônjuges e entre familiares. É de senso comum a reprovação de quem ouve música em volume alto, não organiza o lixo, não obedece às leis de convivência do condomínio. Assim como é desrespeitoso furar a fila, fechar alguém no trânsito, levar todo o estoque de mercadoria em tempo de escassez. Quando se trata de comunicação, a civilidade exige um tratamento amistoso e respeitoso, em especial o respeito à diversidade de opinião. Convém discordar sem agressividade, não interromper quando alguém fala e saber ouvir. Nesse momento de pandemia, a ética exige um código de conduta rigoroso em relação aos hábitos de higiene e na prevenção de contágio. Não é civilizado transitar sem máscara, não respeitar o distanciamento mínimo. A etiqueta social agora é não apertar a mão, não abraçar, não constranger alguém convidando-o a um evento que importe em aglomeração. Lamentavelmente, estamos vendo o total desrespeito aos códigos de conduta básicos de convivência. O individualismo predomina, e a educação social mínima foi desprezada. Precisamos promover o renascimento de hábitos sociais saudáveis para a boa convivência, para que a ética seja praticada de forma ampla, e possamos nos qualificar como pessoas civilizadas.

49


50

Ética, instintos e pulsões Quando alguém é violento ou cruel, é comum se dizer que essa pessoa não é humana. Na verdade, entre os animais, só o homem é cruel e violento. O animal é agressivo, ou seja, usa o vigor de sua potência nas situações de perigo e de ameaça à sobrevivência. Agressividade é diferente de violência. A agressividade humana é uma força que bem canalizada impulsiona o homem à atividade, a enfrentar desafios, a empreender. A violência é um distúrbio psíquico cuja impetuosidade descontrolada viola o direito do outro, seja no âmbito sexual, urbano, verbal ou psicológico e não depende de provocação da vítima. A violência é produto da distorção sociocultural. E o que isso tem a ver com ética? Partindo do pressuposto de que a ética é a forma de organizar e estruturar o convívio em sociedade, o seu principal objeto de controle é a violência. O que mobiliza as pessoas a aderirem a esse sistema de regras é a promessa de proteção contra os perigos e contra a agressão. A ética, portanto, é algo imposto, um adestramento. Ocorre que o descumprimento desse pacto trouxe revolta e, com ela, o fomento daquilo que se queria reprimir. A agressividade perverteu-se em violência. Diz-se, ainda, que o indivíduo não tem controle de seus instintos e isso interfere na conduta ética. De início, há que distinguir instinto de pulsão. O instinto é uma programação, um comportamento genético e herdado, próprio de uma determinada espécie animal e o ser humano também o tem. É o impulso que o prepara para a sobrevivência e preservação da espécie. O instinto surge em situações pontuais para preparar o corpo e a mente para reagir ao perigo. Afastado o perigo, o instinto deixa de atuar. Já a pulsão é uma força constante que impulsiona um comportamento direcionado à satisfação de um desejo indeterminado. Há pulsão de vida, de morte, de sobrevivência, sexual, do ego e outros. É um estado constante que pressiona a psique em busca da satisfação do desejo e do prazer. É um ímpeto, uma força que provoca impacto na dimensão psíquica. É algo que nos habita e nos toma, nos atravessa, nos instiga. Ela nos leva em direção ao que falta. E o que nos falta é um vazio impreenchível. É esse não preenchimento que impulsiona o indivíduo a seguir na vida, a viver. Enquanto o instinto é natural, a pulsão é derivada da privação e contenção de realização do desejo. Tanto o instinto quanto a pulsão são fenômenos involuntários, assim como as emoções e sentimentos, e o que define a singularidade de um indivíduo é o que ele faz com o choque dessas forças. A contenção da pulsão é terreno complexo e delicado que pode descambar para reações psíquicas inconscientes como a sublimação, recalque e repressão. Essa barreira à pulsão não a elimina e sofre pressão por ela. Essa pressão manifesta-se em forma de sintomas como a compulsão, pensamentos repetitivos, ansiedade e muito mais. A livre vazão da pulsão vai de encontro aos preceitos éticos porque pode violar o direito do outro. Ainda que sejam forças involuntárias, é possível torná-las conscientes para não agir a partir delas.

50


51 Instintos e pulsões são amorais, não se adestram à ética. São fatores que dificultam a assimilação e prática moral, mas não as inviabilizam. Ao tomar ciência desses impulsos que habitam o inconsciente, pode-se evitar ser dominado por eles. E usar a mente para canalizá-los a favor do aprimoramento pessoal. Para isso, o homem é dotado de criatividade e capacidade de reflexão e pode usá-las para tentar sanar a angústia da falta. É isso que mobiliza o homem a buscar dentro de si algo que transcende aquilo que é genético e psíquico, algo numinoso, divino, simbólico e sagrado.

51


52

Ética e política Atualmente a prática da política vem sendo tão desvirtuada de sua finalidade maior que a palavra política tem sido associada à corrupção e ao uso do poder em proveito próprio ou em proveito de uma minoria privilegiada. Em sua concepção, política é a ciência e a arte que tem por objetivo levar os seres humanos a atingir o cume de sua potência e aptidões, em prol de uma sociedade justa. Nesse sentido, ética, civilidade, cidadania e política são práticas que têm em comum os valores aceitos e aprovados pela coletividade, voltados a atender às necessidades de todas as ordens dentro de uma sociedade. Não deveria haver conflito nem contradição ou oposição entre elas. Se a ética é o regramento das relações humanas em sociedade, e a civilidade é adotar hábitos saudáveis ao convívio entre as pessoas, a política, de um lado é a responsabilidade do cidadão em trazer sua contribuição para o bem comum e do outro é a ação dos representantes do povo, no sentido de conciliar o conjunto de forças que conflitam entre si no seio social. É um arranjo, uma tentativa de equilíbrio das forças e dos interesses e necessidades díspares. A política se expressa nos poderes Executivo e Legislativo, cada um com suas funções. Ao Executivo é atribuída a tarefa de criar e aplicar políticas públicas voltada ao bem comum, e ao Legislativo é atribuído o poder regulador das relações de várias naturezas jurídicas entre cidadãos, empresários e o Estado, em consonância com a finalidade última de articulação das várias frentes, na tentativa de harmonizá-las. O que conflita e distancia ética de política é a prática. É incomum as ações convergirem para esse arranjo de forças que compõem a sociedade. A desvirtuação dos valores leva ao desequilíbrio social, por predominar interesses que fogem à finalidade da política, gerando, assim, mais conflitos. Hoje, a política tende a duas vertentes em função da intervenção do Estado nas relações sociais, a que defende a intervenção mais forte do Estado, para evitar injustiças sociais, e a que apoia a participação mínima do Estado, para que haja liberdade de iniciativa empreendedora. Nem sempre se atinge a conciliação dessas necessidades, no sentido de viabilizar a atuação livre do mercado sem que o cidadão e consumidor se torne hipossuficiente nessa relação. É preciso considerar que o cidadão é o agente construtor do processo cooperativo da formação da sociedade. Sua importância vai desde a escolha dos seus representantes pelo voto, e superveniente fiscalização e cobrança de suas ações, à sua efetiva contribuição para uma sociedade mais justa, através da prática da cidadania. Sem a prática da cidadania, é utópica a realização de uma sociedade justa e harmônica.

52


53

Hábito e moral Por que será que fazemos ou dizemos algo que em sã consciência não diríamos ou faríamos? Aquilo que é conhecido como ato falho ou a expressão popular “Foi sem querer, querendo”? O ato falho acontece quando o resultado esperado é substituído por outro contrário e aparentemente alheio à vontade de quem o praticou. Há um determinismo psíquico que traz um sentido não aparente. É um ato bem-sucedido, na medida em que o desejo inconsciente nele se realiza. Para tentar responder essa pergunta convém recorrer a neurociência, que aborda a força do hábito. Segundo ela, o ser humano tende a buscar a estabilidade e não gosta de dispender energia, adota a conhecida “lei do menor esforço”. O hábito vem ao encontro dessas tendências. Outra constatação da neurociência é a de que o ser humano é relativamente irracional e que a racionalidade é apenas uma possibilidade. Não é o racional que nos rege de forma predominante. Vimos os instintos e pulsões e como eles atuam e agora veremos o hábito. O hábito não é plenamente consciente, é um padrão automático de comportamento. Partindo da premissa da tendência à imutabilidade, o hábito convém porque colabora com a estabilidade, não gasta muita energia e não há perda de tempo, além de ser agradável. Por todos esses fatores, o hábito dificulta a mudança, porque mudar é quebrar o hábito e isso importa um período transitório de instabilidade, além de muito dispêndio de energia. Quando se pretende mudar hábito, a defesa da estabilidade promove o autoengano. Fazemos promessas a nós mesmos de que iremos mudar num futuro próximo, não agora, sabendo que estamos nos enganando. Há hábitos que nos prejudicam e que se convertem em compulsão ou vício, e alguns são moralmente reprováveis. O autoengano é potente na medida em que o hábito é forte e a mudança é difícil. O hábito é forte quando gera recompensa prazerosa, quando satisfaz um desejo, ainda que venha de um prazer negativo ou pernicioso para si e para os outros. Por isso, hábitos morais são mais difíceis de se mudarem. Há outros fatores que interferem na mudança e que dizem respeito à natureza e à formação de valores. Somos formados pelo temperamento, que é constituído por comportamentos herdados pela genética; pelo caráter, que é a formação de virtudes e valores derivados da educação e da cultura e originários da nossa própria essência, aquilo que transcende a genética e aquilo que foi aprendido. Devido à ignorância e desconexão da essência, o indivíduo é regido predominantemente pelo temperamento, pelo caráter, pelos instintos e pelas pulsões. Se o caráter não foi bem desenvolvido, há dificuldade em educar os instintos e pulsões, e afloram os defeitos morais. Dessa forma, os vícios morais tornam-se hábitos difíceis de mudar. Quando a pessoa toma consciência dos erros de valoração, a tendência do menor esforço a leva a reprimir o hábito, ao invés de mudá-lo. E como aquilo

53


54 que foi reprimido causa pressão para se expressar, desavisadamente ele se manifesta como ato falho. O mundo está sempre mudando, e, com ele, o conceito do que é certo e o que é errado. O que antes era reputado como valor, com a refinação moral agora é visto como defeito. Para a mudança de hábito, é preciso descobrir o gatilho que o mobiliza, além da recompensa que ele traz. A mudança se inicia pela decisão, aliada à motivação, que ativa a vontade. É preciso renunciar à recompensa destrutiva que o hábito viciado traz e, para isso, é preciso cultivar o prazer positivo, aquele que pretende preencher a falta, na forma mais plena e perene possível. O prazer do gozo, em si, não é bom e nem é mal, depende da motivação e da forma como o obtemos. Há um outro prazer igualmente importante que advém da ânsia de algo que transcende o sensorial, que vai além, que alimenta o espírito. O prazer do amor, em seu sentido mais profundo. Quanto mais alimentarmos o espírito, mais fácil será mudar hábitos viciados no prazer negativo.

54


55

Moralista, eu? Muitas vezes adotamos determinada conduta, sem nos darmos conta do que ela representa, munidos das melhores intenções. É o caso do moralismo. Para definir o que é moralismo, empresto o enxerto de uma fala de Lewandowski. “Já o moralismo representa uma espécie de patologia da moral. Enquanto nesta há um certo consenso das pessoas no tocante à distinção entre o certo e o errado, no moralismo alguns poucos buscam impor aos outros seus padrões morais singulares, circunscritos a certa época, religião, seita ou ideologia. Os que discordam são atacados por meio de injúrias, calúnias ou difamações e até agressões corporais. No limite, são fisicamente eliminados. Paradoxalmente, quase sempre os moralistas deixam de praticar aquilo que exigem dos demais.” Temos visto, nas redes sociais, o fenômeno do cancelamento. E o que seria isso senão uma atitude moralista? Há que distinguir moralismo de moralidade. A moralidade está associada ao que se entende por certo e errado, ao que é direito e justo, aos bons costumes. Já o moralista usa de forma distorcida esses conceitos, ajustando a seus interesses pessoais e desconsiderando o bem comum. Essa atitude hipócrita esconde suas próprias transgressões às normas que defende. O mais grave da atitude moralista é arvorar-se em justiceiro, em defensor da moral, e expor, em busca de adesão, a suposta falha ou erro de alguém, promovendo a execração pública. Essa atitude chegou ao extremo de condenar qualquer pensamento contrário ao do julgador, independentemente de ser imoral ou não. Então, a vítima é excluída e exilada do convívio social. Um exemplo de comportamento moralista que causa danos irreversíveis é a notícia tendenciosa a um determinado julgamento, como acontece em certas práticas jornalísticas. O julgamento é impresso nas mentes desavisadas, e a reputação daquela pessoa é arruinada. Mesmo que depois se constate a inocência, a imagem fica irremediavelmente manchada. A atitude policialesca do moralista tem por motivação desviar o foco de si e esconder, muitas vezes até de si mesmo, a tendência transgressora. O moralista não percebe que, ao adotar essa atitude, que se reveste de crueldade e perversidade, está violando os preceitos morais que defende. No fundo, o moralista ou legalista é um rebelde enrustido. E como o moralismo interfere na conduta ética? Ao distorcer o conceito de moralidade e, com isso, não promover a paz social e o bom convívio. Ao usar a moral em proveito próprio. Ao praticar, em alguns casos, bullying e até mesmo a injustiça. Quando adotada ao extremo, pode ser enquadrada em crime

55


56 de calúnia e difamação. Por ser contrária a uma atitude ética. Moralismo é a falsa moralidade. Então você pode perguntar, “Moralista, eu?”. Sim, todos nós, em algum nível, somos moralistas. Ao julgarmos e condenarmos de forma precipitada, superficial e inconsequente, sem conhecermos a intenção, a motivação, o contexto, as circunstâncias do suposto erro, estamos sendo moralistas. Acima de tudo, estamos sendo hipócritas, porque não temos autoridade moral para julgar quem quer que seja, pois todos estamos sujeitos ao erro. Para o cristão, é violação a um preceito fundamental do cristianismo que conclama não julgar para não ser julgado.

56


57

Cidadania e engajamento É comum pensar em cidadania exclusivamente como o exercício do voto. Cidadania é o conjunto de direitos e deveres civis, políticos e sociais conferido constitucionalmente ao cidadão. Os direitos civis dizem respeito à segurança, integridade física e mental, proteção contra preconceito e discriminação, privacidade, liberdade de pensamento e de expressão, de religião, entre outros. Os direitos políticos incluem a observância dos princípios que regem os procedimentos judiciais para processamento de reivindicações do cidadão, para reparação ou remédio legal, o direito ao voto e outros. Entre os direitos sociais estão a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança e a previdência social. Merecem destaque os seguintes deveres do cidadão:  Escolher os governantes do país;  Cumprir todas as leis e a Constituição;  Proteger o meio ambiente e todo o patrimônio público e social do Brasil;  Respeitar os direitos das outras pessoas;  Fazer as contribuições tributárias e previdenciárias devidas;  Educar e proteger os seus semelhantes; e  Contribuir com as autoridades. A cidadania é o corolário de todos os outros valores oriundos da moral e da ética, como a civilidade, política, bons hábitos, controle das pulsões e dos instintos. O Estado, representado pelos três poderes, está, ou deveria estar, a serviço da comunidade e, em última instância, do cidadão. A ética de um povo é o somatório da conduta de cada cidadão, expressa pelo nível de civilidade, de bons hábitos e do respeito aos deveres a ele atribuídos. É comum, ao se falar de cidadania, só invocar direitos, enquanto os deveres são relegados. Flagrante é o desrespeito ao direito alheio, a falta de educação civil e social e a desproteção e agressão à coisa pública. Para reivindicar direitos de cidadania, é preciso cumprir os deveres como cidadão. A falta de educação política elege representantes que não irão cumprir com seu dever de fidúcia, ou seja, não irão agir de acordo com a confiança que lhe fora depositada. A falta de educação civil viola o direito dos outros. E a falta de educação social desrespeita o meio ambiente e o patrimônio público. Muitas pessoas não praticam hábitos sociais saudáveis, de forma a propiciar a boa convivência. Exemplo disso é ativar som em volume acima do permitido, furar fila, jogar lixo no chão e muito mais. Ser cidadão não é apenas morar em uma cidade e votar, é agir de acordo com as normas de conduta criadas para propiciar o bem-estar, a harmonia e a paz social. Sem cidadania, não há ética, nem civilidade, e a política é apenas o exercício de poder da minoria sobre a maioria. A forma mais ativa de cidadania é o engajamento ou envolvimento em favor ou em defesa de uma causa civil, social ou política. Isso pode se dar através de organizações não governamentais ou por ato pessoal e individual. 57


58 Exemplo de cidadania é exercer cargos não remunerados em entidades sem fins lucrativos, fazer caridade, promover educação em uma comunidade carente e muito mais. Cada cidadão tem habilidades e aptidões que podem ser colocadas a serviço da comunidade. O exercício da cidadania engajada é a forma mais sublime de contribuir politicamente dentro de uma comunidade.

58


59

INSTÂNCIAS DA PSIQUE

59


60

Os eus que nos habitam No momento em que você precisa fazer uma escolha importante, você pode ser atormentado pelo ruído de várias vozes internas. Elas são simultâneas, com opiniões diferentes e conflitantes. Enquanto uma é exigente e crítica, outra lhe desmotiva, ao dizer que você não vai conseguir e começa frases com “e se...”. Enquanto uma é impulsiva e quer começar já, outra é insegura, hesitante e procrastinadora. E, nesse rebuliço, a voz que analisa, pondera e confia fica abafada. E você fica no meio dessa confusão, sem saber o que fazer. Isso acontece porque existem vários eus ou instâncias da psique. Mas como estão escondidas no inconsciente ou semiconsciente, elas atuam de forma desordenada, caótica e livre em nossa mente. Muitas vezes pensamos, sentimos e agimos a partir de um Eu oculto e não nos damos conta disso. Quando você age movido pela destrutividade, ou de forma imatura ou fingindo ser o que não é, ou quando sente leveza, alegria e a imaginação aflora, ou ainda quando tem um vislumbre de sabedoria, quem está no comando em cada uma dessas situações? Para que essa pergunta seja respondida, precisamos distinguir e identificar todas essas vozes. Na psicologia há os conceitos de id, ego e superego. O id é a parte dos instintos, desejos e impulsos primitivos do indivíduo, que são classificados como os “princípios do prazer”. O ego, por outro lado, abriga a personalidade da pessoa, mantendo o equilíbrio entre as vontades do id e as repressões do superego. Trago aqui uma abordagem diferente desses eus, a partir dos conceitos do Pathwork. Segundo essa metodologia de autoconhecimento, habita em cada um de nós o Eu inferior, o Eu superior e a máscara. Além deles, ainda há a consciência sobreposta, o eu observador e o eu criança. Quando nos conhecemos melhor, aprimoramos nossa capacidade de escolha e criamos realidade positiva em nossa vida. Nas próximas reflexões, trataremos de cada um deles.

60


61

O Eu criança Inicio a explanação dos vários eus com aquele mais leve, espontâneo e criativo. A vida vista pela ótica da criança interior é divertida. Quando você se sentir curioso, aventureiro, aberto para o novo, movido pelo humor, pela alegria e prazer, é a criança interior que veio à tona. Quando ela atua de forma saudável, você acredita nas pessoas, resgata a inocência, a capacidade de confiar, e surge profundo desejo de se entregar à vida. Você é convidado ao mundo da magia e da imaginação. Você recupera sua capacidade de sonhar. Para a criança, nada parece impossível. Essa criança em nós continua a existir, esperando que a resgatemos. Quando é esquecida, ela fica irritada, impaciente, muito brava e começa a “aprontar” em sua vida. Ao se sentir abandonada, cria confusões, colocando você em situações difíceis de lidar. Quando você fica birrento, desobediente, briguento, indisciplinado, impaciente, voluntarioso e respondão, é ela se vingando por se sentir abandonada. Ao se identificar com ela, você não percebe que quem está agindo é a consciência infantil. Costumamos tentar calar a voz infantil comendo uma caixa de bombons, bebendo uma garrafa de vinho ou mergulhando no trabalho, mas ela não se deixa enganar. Essa criança precisa ser vista, validada e ouvida, precisa expressar seus sentimentos. Como qualquer criança, precisa de limites e de ouvir nãos para que possa desenvolver-se emocionalmente, sem perder as características que lhe são inerentes. Precisamos entender que agora somos o pai e a mãe dela. Precisamos entender e determinar quando a criança pode fazer escolhas por nós e quando é o adulto que deve decidir. As escolhas sobre lazer, diversão e aventura são dela. Mas, na hora de tomarmos decisões sérias, é o adulto que tem que agir. À medida que dermos à criança interior o que ela necessita, ela passará a confiar no adulto que nos tornamos e deixará de nos boicotar. Ela se tornará uma agradável aliada e nos lembrará de tudo que esquecemos de bom e belo ao nos afastar dela.

61


62

O Eu divino Todos nós já experimentamos uma súbita onda de bem-estar e alegria, uma sensação que brota amena e que amplia a percepção da vida e de nós mesmos. Em uma fração de segundos, tudo passa a fazer sentido. Uma compreensão além da mente racional, que não se pode traduzir em palavras, porque ela vem da inteligência imagética do amor. É uma fagulha que ilumina o caminho e nos afasta a dúvida, e passamos, então, a saber. Esse saber é simples, suave, delicado e vibra todas as fibras do ser. Ele lembra quem somos e nos encoraja à entrega, a seguir confiante com a corrente do mar da vida. Essa maravilhosa experiência se apresenta quando estamos relaxados e descontraídos, sem expectativas, quando estamos inteiros no presente. Chega em forma de inspiração, intuição, enlevo, estado alterado de consciência. Acontece quando permitimos que o nosso eu divino venha à consciência. Para isso, precisamos dar contenção ao ego, que acha que sabe tudo, que acredita que pode trazer todas as respostas. O eu superior é o amor em sua potência máxima, uma força poderosa de alta vibração energética e, por isso, ainda não conseguimos sustentá-la por muito tempo. A centelha divina que nos habita é conselheira, professora e remédio para nossas almas. Quando nos conectamos com ela, o julgo é leve, porque sabemos que o Eu inferior é temporário, é luz condensada que precisa voltar a ser rarefeita para retornar à origem. Nós encobrimos essa consciência com camadas de matéria densa em forma de defesas, crenças, negatividades e ignorância. À medida que nos conhecemos e aceitamos a imperfeição, abrimos uma fresta na sombra por onde a luz penetra e trazemos clareza para a vida. Então, descobrimos que estamos todos ligados por uma teia invisível feita da mais pura luz. Essa rede de luz conecta e dá sentido a todas as experiências vividas. Quando acessamos o Eu superior, ficamos bem-humorados, as vozes desconexas da mente se calam, o ritmo do tempo muda. Percebemos os “recados” vindos da fala de um estranho ou de um poema, do riso de uma criança, de um olhar amoroso. Somos um com a brisa que passa, a chama que arde, o fluxo e refluxo das ondas, o dia que surge ou que se põe. Tornamo-nos conscientes dos eventos sincrônicos que apontam o caminho, tornando suave a trajetória. Os contornos que nos limitam se abrandam, facilitando a expansão de nosso ser. A dimensão divina é feita de criatividade e imaginação, um lugar de formas, cores e sensações. É através dela que podemos modelar de forma saudável e prazerosa nossa vida. O Eu superior nos ajuda a encontrar o caminho de volta ao lar sagrado que abandonamos e de onde nos perdemos ao nos afastar da luz. Para isso, é preciso aprender a confiar e nos entregar a ele, que é o destino final triunfante e glorioso que pacientemente nos aguarda.

62


63

Por que o mal seduz? Se você não queria, mas fez, quem fez então? Por que o mal seduz? Por que somos atraídos por notícias trágicas e dramáticas? Por que o enredo das novelas líderes de audiência gira em torno de conspirações, intrigas, maledicência e emoções descontroladas? Por que os filmes que têm por temas crimes e violência são campeões de bilheteria? Por que somos inclinados a seguir a tendência negativa do grupo e a fazer o que não faríamos se estivéssemos sós? Para refletir sobre essas perguntas, é preciso retomar o tempo da infância. Na primeira infância, o mundo da criança é a mãe. À medida que ela se descobre como indivíduo, passa a ter uma percepção autocentrada da vida. É tarefa dos pais ajudá-la a construir a personalidade de forma a incluir os outros nessa visão de mundo. Na missão disciplinadora dos pais, em relação aos instintos e tendências egóicas, os pais despertam no filho desconfiança e medo, e, assim, é formada a consciência sobreposta na psique infantil, que continua a atuar na fase adulta. Essa consciência é a instância repressora, exigente, inflexível, implacável e cega de discernimento. Então, a pessoa vive um conflito entre obedecer a esse comando cruel, recalcar suas emoções e sentimentos ou rebelar-se e experimentar culpa e medo. Então, todos nós temos uma caixa de Pandora, onde mantemos prisioneiros os defeitos, as falhas de caráter, as emoções que tememos ao nos vermos imperfeitos. Tiramos tudo isso de nosso campo de visão, mas não evitamos o clima geral egocêntrico . Ocorre que, uma hora, tudo que é recalcado encontra o caminho de expressão, e aí, diante de um estímulo recebido, essa caixa é aberta e tudo que está lá sai de forma intensa e exagerada. Tomados por culpa, vergonha e medo, empurramos as más inclinações de volta para a prisão, para aliviarmos a consciência, num infindável ciclo vicioso. Somos seduzidos pelo mal porque não olhamos de frente para ele, porque o reprimimos. Os estímulos trazidos pelas notícias e pela diversão, por exemplo, encontram ambiente fértil para desencadear, sem culpa e vergonha, as más tendências. Ao fazer isso, estamos dando força ao mal, que emergirá involuntariamente por não termos domínio sobre ele. O mal nada mais é que a ignorância, a ignorância que insistimos em alimentar não olhando para todas as instâncias imaturas da consciência que precisam ser desenvolvidas. Ignorância, também, da nossa essência divina e da sabedoria que lhe é inerente. Precisamos conhecer e aprender sobre esse eu ignorante que chamamos de Eu inferior, esse aspecto que não cresceu, que não foi educado. Para isso é necessário observar a consciência falsa e sobreposta, portanto imatura, para poder transformar os conceitos equivocados, as crenças distorcidas, a rigidez e a dureza que compõem essa instância repressora. À medida que entendemos como ela atua, menos nos submetemos a ela e mais acessamos a verdadeira

63


64 consciência orientadora. E mais permitimos a expressão do Eu inferior para que ele possa ser acolhido e integrado ao eu real, não o reprimindo, nem atuando a partir dele. Quanto mais o conhecemos, menos seremos surpreendidos por atos impulsivos e descontrolados próprios de sua natureza. Pode parecer estranho afirmar que a disciplina liberta. Se não formos capazes de dar contenção aos instintos primitivos distorcidos pela imaturidade do ego, não seremos livres para fazer escolhas a partir do eu real.

64


65

A defesa do ego Diante de uma situação real ou ilusória, em que somos tomados de emoção tão intensa que o discernimento é tolhido, não conseguimos dar a resposta adequada à circunstância. Ou nos paralisamos diante da suposta ameaça, ou fugimos do enfrentamento, ou atacamos desnecessariamente. Para enfrentar equilibradamente esses momentos e para que o indivíduo possa sobreviver psicologicamente a eventos traumáticos, a mente aciona uma proteção temporária. Até aí tudo bem. Ocorre que o mundo está tão complexo e ameaçador que desmantelou esse mecanismo de defesa, e ele é acionado, constantemente, até se tornar um hábito. A defesa emocional é indispensável à saúde mental. O esquecimento temporário ou amortecimento do impacto, por exemplo, de algo doloroso ou traumático é necessário, para que a estrutura do ego seja preservada e o indivíduo possa lidar com a emoção, às vezes avassaladora. Entretanto, quando ativamos esse recurso de forma habitual e permanente, surgem efeitos colaterais danosos que podem suplantar os benefícios iniciais. Passado um tempo da experiência difícil, é preciso reativar a lembrança dela e lidar com a emoção que a acompanhou e que continua embotada. Enquanto a emoção estiver amortecida, continuamos a fazer a leitura equivocada da realidade, porque a emoção cristalizada ativa a defesa sempre que evento semelhante ocorre, reagindo ao que aconteceu no passado. Assim, esse sistema passa a atuar de forma prejudicial à própria saúde mental que pretende preservar. Isso ocorre porque o ego em desequilíbrio sente-se facilmente ameaçado e reage mal a qualquer sensação de desconforto, frustração e contrariedade, que interpreta como ameaça real. Ele cria uma sofisticada dinâmica de justificativas para manter a defesa a qualquer custo e as adota para si próprio e para os outros. Dessa forma, promove um falso bem-estar e segurança. Essa estratégia é usada para não sentir dor. Ocorre que as emoções se organizam em uma estrutura indissociável, de sorte que ao evitar sentir tristeza, por exemplo, é reprimida igualmente a alegria. Enquanto tudo isso ocorrer de forma inconsciente ou semiconsciente, automática e independe da vontade, não teremos o domínio de nossas ações. É preciso observar como usamos essas defesas para não entrar em contato com as emoções que presumimos serem insuportáveis e incontroláveis.

65


66

De que estamos nos defendendo? Como já foi dito, somos dotados de um sistema natural de defesa. Esse sistema permite a ampliação dos sentidos e focaliza a nossa atenção para o perigo. Essa ameaça pode ser contra a integridade física e/ou psicológica, sendo legítimos os recursos para nossa sobrevivência. Entretanto, é preciso observar determinado tipo de defesa corrompida. Tornamo-nos pessoas defensivas, em constante estado de alerta contra a dor emocional. Defendemo-nos de qualquer suposta ameaça à nossa autoestima. Ao menor sinal de que o orgulho possa ser ferido, acionamos a defesa. É o ego que se sente ameaçado. A defesa nos afasta de nós mesmos e nega a realidade de quem somos, tanto nos defeitos quanto nas qualidades. Ao nos mantermos permanentemente defensivos, limitamos o alcance dos sentimentos e o potencial do amor e da criatividade. Diante da identificação com o eu idealizado, nos afastamos da verdade, de nós mesmos e da vida. O eu idealizado é a principal estratégia de defesa para manutenção do voluntarismo. Ele é usado, também, para afastar os conteúdos emocionais que o ameaçam. Esse eu artificial adota três tipos de defesa, que são distorções dos atributos divinos do amor, do poder e da serenidade. São distorções porque são atribuídas a um eu falso. A submissão é uma forma de distorção do amor, é o recurso usado de modo a forçar os outros a cederem à vontade do submisso. O submisso é dependente e acata a suposta subjugação alheia em troca de aprovação, simpatia, ajuda, proteção e amor. Usa de manipulação para gerar sentimento de culpa em quem supostamente o submete. Para sustentar essa estratégia, precisa reprimir o ressentimento, bem como negar sua força. É o caso, por exemplo, de uma mãe que faz tudo pelo filho, mas não aceita ajuda dele, tornando-o, assim, refém de sua falsa bondade. A pessoa submissa vive em conflito entre submeterse e tentar preservar sua dignidade. A agressividade é uma distorção do poder, é uma tentativa de exercer controle sobre os outros. O agressivo ostenta a máscara de independência, agressividade, competência e dominação. Esforça-se para esconder a vulnerabilidade sentida na infância. Ele faz de sua vida uma luta pelo domínio e só se sente seguro se acreditar que tem controle sobre tudo. Para isso, não pode expressar sentimentos nem fraqueza e nega necessidades emocionais básicas como conforto, afeto, cuidado e descontração. É orgulhoso, competitivo e obstinado pelo sucesso. A distorção da serenidade se dá pelo retraimento, indiferença e fuga à vida. Quem adota essa máscara nega a existência de problema, porque coloca-se com frieza acima das dificuldades. A ausência emocional provoca a eliminação quase total dos sentimentos, que ficam intactos, mas ocultos. Quem usa essa defesa foge para o mundo intelectual ou para vida espiritual. Ostenta um semblante impassível, enquanto internamente é um vulcão em erupção. Ainda que cada um tenha uma defesa predominante, é comum a alternância desses mecanismos no mesmo indivíduo, de acordo com a situação

66


67 enfrentada. Todos eles têm como objetivo manter a imaturidade do ego, que assim não fortalece sua estrutura. É importante tomarmos consciência dessas defesas e do modo como as usamos. Dessa forma, aos poucos, poderemos abrir mão desse aparato equivocado, que, ao invés de nos defender, nos alija de nós mesmos. Ao desistirmos desses falsos atributos, iremos encontrar em nós as virtudes que fingimos ter.

67


68

As máscaras que usamos Já falamos que uma das dificuldades de nos conhecermos e nos revelarmos é o personagem que criamos de nós mesmos. Esse personagem atua de forma compatível com o padrão idealizado de perfeição. Esse padrão é uma construção individualizada, que nem sempre corresponde às referências de valores e virtudes universais, mas à forma como os assimilamos. Não há nada de errado em querermos o aprimoramento pessoal. O equívoco é a expectativa fantasiosa de sermos perfeitos, ou de alcançarmos a mudança imediata. O engano está no caminho traçado para alcançar esse objetivo. Esse personagem é uma máscara que esconde o verdadeiro eu. Por ser artificial, não permite que entremos em contato com quem de verdade somos, que o conheçamos e, em consequência, dificulta a ascensão para novos níveis de aprendizado. A máscara é uma defesa do ego que acredita que o mundo e as pessoas são hostis; que supõe que só será admirado, aprovado e acolhido se não demonstrar fraqueza ou defeitos; que teme castigo, porque já o experimentou pelos pais ao agir equivocadamente; e porque muitas religiões descrevem Deus como um pai punitivo. Usamos máscaras pelo desejo de pertencimento, para evitarmos o conflito, o atrito, o confronto; por termos medo da rejeição, do desprezo e de sermos ignorados, medo de perdermos o amor de quem amamos; porque queremos reconhecimento e validação. De tanto usarmos máscaras, esquecemos quem somos e acreditamos ser o personagem que criamos. Isso é um problema porque o nosso lado sombrio, a todo momento força passagem e uma hora aflora de forma intempestiva e descontrolada. São os chamados atos falhos, que nem sempre percebemos quando se apresentam. É por isso que escondemos quem somos, porque acreditamos que somos apenas aquela face sombria que se revela involuntariamente. Nós somos muito mais que nossa negatividade, nós somos, em essência, luz. E ao tentarmos esconder a sombra, ocultamos igualmente o que há de melhor em nós. O que fazer, então, para mudar essa condição? Vamos pensar juntos sobre isso na próxima reflexão.

68


69

O olhar focado em si Pessoas que passam por experiências de quase morte relatam ter visto seu corpo, como se estivessem fora dele. No documentário “Quem somos nós?”, há um momento em que a protagonista se observa passando, enquanto as duas – observadora e observada – trocam olhares. Há uma instância da consciência espectadora de si mesma. Quando se está atuando a partir dela, há um distanciamento da mente impregnada de sentimentos e crenças, e o olhar é mais neutro e isento de julgamento. Por integrar o Eu superior, o Eu observador tem a percepção ampliada do que observa e ajuda o eu real a entender a verdade sobre si próprio. Através dele é possível identificar os pontos cegos de distorções da personalidade e perceber os erros, equívocos e autoengano, como atuam as defesas, os defeitos negados, a consequência das escolhas. Enquanto se observa a negatividade em si mesmo, as qualidades e virtudes se apresentam e colaboram para o entendimento do contexto. Quando esse olhar focado em si se apresenta após o evento, possibilita identificar e registrar o gatilho que acionou uma determinada reação e o padrão da resposta. O Eu observador ajuda a entender a contribuição de cada um para o evento desagradável ou alegre. Quando é possível essa percepção enquanto se vive a experiência, poder-se-á mudar o rumo dos acontecimentos. Estar alinhado com o eu observador não é viver tenso e alerta, é um estado relaxado e de entrega à sabedoria interior, intencionando e invocando o encontro espontâneo com essa instância sagrada. Para quem está movido pelo propósito de autoaprimoramento e tem compromisso com a verdade interior, o Eu observador é uma ferramenta indispensável para essa jornada. E, ao conhecer a verdade sobre si mesmo, libertar-se-á das amarras e armadilhas do ego.

69


70

A derrocada da individuação pelo consumismo “Faltam pessoas que realizem em silêncio aquilo que não tem futuro. Hans Magnus Enzensberger Para falar sobre individuação, cumpre trazer a noção do que seja personalidade. A personalidade é a entidade que exterioriza a consciência na existência. Consciência composta por várias dimensões, quais sejam biológica, genética, cultural, histórica, ética/moral, religiosa, familiar e espiritual. A individuação é um processo que considera vários fatores como decisivos para a realização humana. Os primeiros são aspectos que compõem a própria personalidade, é a apropriação dessa estrutura para afirmação do eu. Em seguida, o desenvolvimento da autonomia e de sua capacidade de fazer escolhas. Esse processo é o que comumente se conhece por autoafirmação, assertividade ou empoderamento pessoal. Outro agente importante para essa construção é o reconhecimento dos limites. Reconhecimento que vai desde identificar as próprias habilidades e capacitação, à aceitação da ignorância; até a percepção das fronteiras que há entre a moderação e o excesso transgressor; desde o respeito às regras de conduta sociais e dos valores éticos ao desregramento dos prazeres. É preciso observar as restrições impostar para evitar invadir a seara do outro ou ser invadido em sua fronteira; aceitar os limites do próprio desenvolvimento pessoal e ativar a potência para superá-los. O último agente, e não menos importante, é a interação com os outros. Nesse contexto, é necessário ser capaz de conter a influência danosa que o outro exerce sobre si e a excessiva importância que se dá à opinião alheia; de assumir a própria vida, através da responsabilidade por suas escolhas e pelas consequências decorrentes; de não se colocar na posição de vítima da vida, do destino, das pessoas. A busca do encontro não deve ser motivada pela complementariedade ou pela realização através do outro, mas sim pelo genuíno interesse naquele que não é o eu, interesse esse não orientado pelo critério de utilidade. A grande dificuldade para a individuação é o fato de a pessoa estar inserida na sociedade consumista que promete prazer a qualquer custo. Esse ideal de felicidade utilitária ultrapassa a dimensão material do objeto de desejo e alcança até a objetivação da pessoa. Dessa forma, o outro não é mais visto como indivíduo, mas como meio de fruição. Essa ideologia do prazer é incompatível com a individualidade, uma vez que conhecer-se pode ocasionalmente trazer sofrimento. Sofrer é oposto do prazer, que é a base dessa sociedade hedonista. Ademais, a procura frenética por satisfação não conhece limites, nem de si, nem ao espaço do outro, ou até mesmo das regras de convivência. E a interação focada no prazer não valida, reconhece e respeita o outro em sua singularidade.

70


71 Felizmente, há aqueles que conseguem despertar dessa hipnose coletiva e entrar em contato com o vazio dessa vida sem sentido. E isso os motiva a fazer o caminho de volta ao encontro consigo mesmo e com o outro. Inicia-se, assim, a distinção entre o que é volátil e o que é perene, o que é supérfluo e o que é essencial. Ao fazer esse percurso, podem perceber que a autonomia inclui a alteridade, a interdependência e a importância da comunhão. Descobrem que esse é o único caminho para promoverem a realização pessoal sustentável.

71


72

LOUCURA E LUCIDEZ

72


73

A loucura civilizada Discorri, em vários textos reflexivos sobre a ética, a respeito de padrões de comportamento que viabilizam a convivência harmoniosa e pacífica em comunidade. Apontei a necessidade de sua existência, sem a qual o convívio seria impossível. Por outro lado, abordei a problemática resultante dessa estrutura, face ao alijamento da singularidade como componente. Agora, quero destacar o sofrimento psíquico que esse adestramento social pode causar e que resulta em sintomas, a mais das vezes rotulados de loucura. Para se falar de loucura, é preciso considerar o parâmetro de normalidade. Será que estar perfeitamente adaptado ao comportamento preestabelecido, àquele que é esperado, aceito e válido, é ser normal? Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e Roberto Crema, no livro “Patologia da Normalidade”, definem que normose é “um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida”. Por essa definição, quanto mais adaptada a pessoa for a esses padrões, menos normal será. Partindo do pressuposto de que as regras de conduta social impõem ao indivíduo renunciar ou controlar seus impulsos, pulsões e desejos em prol do convívio idealizado, a civilidade é castradora. Renunciar ou moldar a expressão do desejo ao permitido é fonte de infelicidade. Como tal, deve ser reconhecido, para que não se perca de vista nem se amorteça o desejo de forma danosa à natureza instintiva humana. Reprimir impulsos, pulsões e desejos gera infelicidade, causa sintomas e perda de sentido da vida. Considere-se, ainda, que cada pessoa tem sua forma própria de ver a realidade e de afetar e de ser afetado nas relações com outro e com o mundo. Ao se tentar “encaixar” num padrão, estar-se-á rejeitando a diversidade. Muitos renunciam à sua individualidade para serem aceitos, reconhecidos e validados e aí o sofrimento se instala. Os transtornos mentais são sintomas da opressão causada pelas regras éticas e de civilidade. O que muitos reputam como loucura é a mais genuína normalidade, é a sustentação da singularidade em um sistema que pretende homogeneidade. É esse tipo de imposição que cria a discriminação, a intolerância e o preconceito. Aquele que se homogeneizou não suporta o diferente porque este revela a autenticidade desprezada pelo outro. A ética, a civilidade e a moralidade são mecanismos de repressão, ainda que necessários e úteis. Incorporá-los à personalidade de forma indiscriminada e sem avaliação crítica pode trazer transtornos mentais de toda ordem. Esses transtornos nada mais são que a rebelião daqueles que não conseguem adaptarse àquilo que lhe é nocivo. Nesse sentido, é uma loucura bem-vinda, porque pode devolver a sanidade mental ao indivíduo.

73


74 Aquele que pratica a ética sem perder de vista qual é sua motivação e finalidade consegue manter um mínimo de sanidade mental, ainda que não evite os sintomas derivados da contenção. Ele preserva a individualidade no exercício de sua conduta ética.

74


75

O sofrimento na loucura O culto à aparência de felicidade rejeita qualquer forma e expressão de sofrimento. Vale qualquer coisa para ostentar alegria, contentamento e bemestar. Para abafar qualquer percepção de dor e sofrimento, come-se em excesso, trabalha-se em excesso, compra-se em demasia, bebe-se, fuma-se, festeja-se freneticamente. Tenta-se abafar o sofrimento pelas compulsões que insensibilizam. Se nada disso funcionar, recorre-se às drogas farmacológicas. Ansiolítico para dormir, antidepressivo para acordar. Medicação para não ser afetado pelos estímulos de toda hora, por um lado, e, para evitar virar “zumbi”, do outro. Precisa-se desesperadamente “voltar à normalidade”, para ser incluído, respeitado, aceito, admirado e validado. O indivíduo não se dá conta de que foi tomado pelo delírio da felicidade. Esconder o sofrimento é a loucura da modernidade. A tentativa de estar em conformidade com o sistema de referência social leva as pessoas à alienação de quem de fato são. Tornam-se atores e atrizes no palco da vida, sem plateia e sem fama. Marionetes movimentadas por mãos invisíveis, puxadas por cordões que elas mesmas teceram. Diz-se que a loucura consiste na perda da noção de realidade. Entretanto, todos nós vivemos num mundo fictício, o mundo dos pensamentos, dos conceitos, da mente, das ideologias, dos estereótipos, das crenças, das ideias pré-concebidas, dos valores artificialmente construídos e que mudam de acordo com a conveniência. O contato com a realidade está cada vez mais raro e distante. Lacan já dizia que o diagnóstico mais desesperador é a normalidade. A humanidade vive uma loucura coletiva. É considerado louco aquele que escapa ao padrão de “normalidade.” Ele é uma ameaça ao preestabelecido e à falsa segurança psicológica oferecida pelo sistema civilizatório. Aqueles que ousam sair da “caixinha” sofrem forte repressão. Abençoada seja a genialidade em sua autenticidade inventiva, que desafia a loucura conhecida por normalidade. Abençoados são os curiosos, os “excêntricos”, os contestadores, os rebeldes, os afoitos e aventureiros, porque provocam o desconforto necessário para sacudir os mortos vivos. O sofrimento é inerente ao ser humano. Ele é originário da consciência da própria existência e de sua finitude. Vem também do choque com a civilização e seu sistema dominador e tirano. Toda dor, angústia e desespero são derivações desse saber, dessa percepção empurrada para o inconsciente. Para esse sofrimento não tem cura. Pode-se tentar amortecê-lo, substituí-lo por outros, mas ele sempre se fará presente, ainda que não se possa identificá-lo. A depressão é o sofrimento pressionado para baixo, abafado. A ansiedade é a sombra da dor que se quer evitar ameaçando emergir. A patologia está em negar a existência da dor e na resistência em senti-la. As dores da existência precisam ser identificadas para que se aprenda a lidar com elas. A verdadeira felicidade está na força para suportar o sofrimento

75


76 inevitável. A dor nos dignifica e nos engrandece. É um fenômeno que se processa no corpo, onde ele é elaborado, sentido e exaurido, até nova onda se formar e percorrer seu trajeto. Ao aprender a se relacionar com o sofrimento, sentindo seus efeitos, deixando essa pulsão seguir o seu curso, adquirimos resiliência, que é potência de vida. É ela que nos move, que estimula a criatividade, a inventividade, a arte. Quanto melhor lidarmos com o sofrimento, mais amadureceremos emocionalmente, menos ele nos dominará. Alienar-se do sofrimento é um subproduto da loucura em se tentar ser “normal”. Para ser feliz é preciso saber conviver com a loucura e o sofrimento. Só assim abriremos espaço para as coisas boas da vida.

76


77

A loucura nossa de cada dia Pode parecer absurdo afirmar que a loucura se expressa cotidianamente. É que nos acostumamos a tratar como normais os hábitos, atitudes e comportamentos ditos comuns, ou seja, aqueles que a maioria pratica sem questionar. O exercício que faremos agora é questionar a normalidade atribuída a certos padrões. Estaria em pleno gozo de suas faculdades mentais aquele que não respeita seu metabolismo interno? Que acorda às cinco horas da madrugada para trabalhar, quando seu organismo pede para dormir até às sete? Que come o que lhe faz mal e mais do que precisa? Que não atende à premência dos movimentos peristálticos ou dos órgãos excretores porque acha que não pode parar? Que não respeita a necessidade de repouso físico e mental? Que não percebe mais a resposta sensorial aos estímulos a que é submetido? Que perdeu a sensibilidade de sentir? Se tivéssemos uma mente sã, tentaríamos conciliar o que pensamos com o que sentimos e com o que fazemos. Não perderíamos o precioso tempo que não se recupera com discussões inúteis, no vão esforço em querer ter razão. Não venderíamos horas valiosas de vida em troca de ter. Não teríamos por meta a acumulação de dinheiro e bens, que muitas vezes nem temos oportunidade de desfrutar. É loucura espalhar lixo que nos retornará em forma de poluição. Desperdiçar comida que faltará a alguém. Habitar sozinho uma casa projetada para muitos, enquanto outros moram na rua. Provocar o desmatamento que nos asfixiará. É normal agir contra os próprios interesses e nem ter consciência disso? Aceitar e até contribuir com a opressão sobre si? Promover o autoboicote e adotar comportamento autodestrutivo? Agir como se tudo estivesse bem, enquanto o mundo desmorona a seu redor? Não, não podemos dizer que gozamos de saúde mental. Perdemos a capacidade de nos relacionar com o sofrimento e com a frustração. Não sabemos lidar com o conflito, com a diversidade de maneiras de ser, nem com pensamentos que abalem nossas certezas. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”. Bem-estar físico, mental e social completo, ninguém o tem. Esse critério de saúde é incompatível com a natureza humana, que é contraditória, muitas vezes incoerente e conflituosa. Não é possível manter um estado completo de bem-estar de qualquer natureza. Haverá sempre momentos de dor e sofrimento que precisam ser aceitos, validados e acolhidos.

77


78 Goza de saúde mental aquele que é consciente de sua “loucura”, seja ela aquilo que se entende por transtornos ou enfermidades mentais. Usufrui de sanidade aquele que busca a melhor forma de se relacionar com o próprio desatino. Aquele que segue na direção do bem-estar físico, mental e social, nele incluindo e o conciliando com o bem-estar dos outros. A maneira como nos relacionamos com os sentimentos e emoções, como respondemos aos estímulos internos e externos, seja na busca de realizações, seja no enfrentamento de desafios e obstáculos, sinalizará como está nossa saúde mental. E o nível de consciência dessa condição determinará a capacidade de desenvolver o bem-estar tão desejado.

78


79

O direito de ser diferente Já foi dito que o sofrimento psíquico do adestramento social imposto pelas convenções e códigos de ética, traz, por consequência, distúrbios mentais de toda ordem e sintomas, os mais diversos, alguns rotulados de patologias psíquicas. Foi também focada a estrutura do indivíduo, composta por instintos e pulsões de desejo, e o sofrimento decorrente do refreamento deles em prol da harmonia e paz social e do respeito aos direitos dos outros. Alertei sobre o dano psicológico provocado pelo amortecimento dos sentimentos, que fazem pressão na psique em busca de expressão. Destaquei como a incapacidade de suportar o sofrimento enfraquece a aptidão em lidar com a frustração e com os acontecimentos desafiadores e adversos, decorrentes da impermanência da vida. Outra causa de sofrimento apontada foi o individualismo, por isolar a pessoa dos demais e de si próprio. Apontei como extremamente doentia a adaptação do indivíduo aos padrões impostos, porque importa em relegar a singularidade que lhe é inerente. Demonstrei as incoerências e contradições dos modelos idealizados e impostos em relação à realidade social e a de cada um. Chamei a atenção para como ignoramos as crenças adotadas que agem contra nossos próprios interesses e direitos. Nesse contexto, cada um reage à sua maneira, busca meios de sobrevivência, de manter-se saudável, de ter uma boa convivência, de sustentar seu lugar no mundo e de ser feliz. É individual a forma de ver o mundo e de afetar e ser afetado nos diversos níveis e tipos de interação. É preciso aprender a respeitar o jeito de ser de cada pessoa, renunciando à exigência de homogeneidade. Há que se evitar ver a genuinidade como um tipo de ameaça à sua própria maneira de ser. Convém não rotular o diferente como “anormal”, ou alguém que precisa ser alijado do convívio social. A singularidade é o que difere um indivíduo de outro. É a maior contribuição, na troca entre pessoas, porque enriquece o universo de conhecimento e amplia a percepção da realidade sobre novos enfoques. Quando todos lançarem esse olhar ao diferente, a humanidade estará curada da discriminação e do preconceito. E será possível uma coexistência espontânea, autêntica e engrandecedora para o crescimento pessoal e coletivo. A felicidade, então, passará a ser uma possibilidade real.

79


80

ESFERA DA ESPIRITUALIDADE

80


81

Espiritualidade Há quem tema ou tenha aversão à palavra espiritualidade, porque não conhece ou entende o conceito. Associa espiritualidade à bruxaria, ao ocultismo e às forças do mal. Confunde-a com termos e significados distintos, como o esotérico, o místico e o mítico. Muitos desses conceitos foram deturpados, por conta de a prática não estar de acordo com eles. A espiritualidade é um atributo humano, é a ânsia em encontrar respostas para questões existenciais e para dar sentido à vida e à morte, questões essas que vão além da compreensão da mente do ego. Para quem acredita que o ser humano é dotado de uma sabedoria que ultrapassa o entendimento racional, um saber que vem da consciência maior ou espírito, espiritualidade é conhecer-se, é superar as camadas densas do ser para alcançar esse nível maior de consciência. Sendo assim, cada um é dotado de espiritualidade, seja dela consciente ou não. O ser humano, para sentir-se seguro, precisa cercar-se de certezas. Causa aflição perceber que há coisas que desafiam a compreensão. Saber-se finito traz angústia, por isso, acredita-se na transcendência da morte e na ideia de que há uma dimensão do ser conhecida como espírito que sobrevive à aniquilação. Foi a tentativa de encontrar respostas a essas questões inquietantes que impulsionou a humanidade a desenvolver ideias, teorias e dogmas em forma de filosofias e religiões. Essas escolas de pensamento podem incluir ou não a ideia de Deus ou de uma força superior. Ocorre que mesmo essas instituições não trazem explicação para tudo, então foi preciso criar o conceito de fé, que é acreditar sem provas, confiar sem explicações. A espiritualidade é a pulsão que nos move na direção de aplacar as angústias existenciais, cada um encontra sua fórmula de bem-estar espiritual e todas são úteis, válidas e necessárias. Essa ânsia de transcendência é o que nos motiva a sermos pessoas melhores e a nos ligar a outros seres humanos que já têm consciência de sua condição. Esta é a primeira de uma série de reflexões que traremos sobre o tema.

81


82

Deus e o verbo No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. (João 1:1-4) Como já foi dito, as ideias são feitas de símbolos, de imagens, que perpassam a mente e são traduzidas pela linguagem. A ferramenta da linguagem é a palavra. A linguagem foi concebida entre outras coisas para explicar a vida, para nomear coisas e dar significado aos sentimentos e sensações. Um código universal que possibilita a comunicação. A linguagem traduz e dá contenção à angústia da finitude e ao desconforto gerado pela consciência dos limites do campo de visão humana, que não consegue abranger o todo. Através da linguagem foram criadas verdades pela necessidade humana de estabilidade e constância das coisas. A palavra elaborou conceitos que fixaram verdades e castraram a expressão do movimento, da transformação, do que não é possível ser explicado pela linguagem. Ela reduz a existência ao pensamento e exclui tudo que sobra e abunda, tudo que não cabe nela. Rejeita qualquer fenômeno considerado irracional. Dá contenção ao excesso, contenção daquilo que é insuportável para o homem. Através dos arranjos de palavras, troca-se a vida por sua representação. Por falta de vivência, as palavras se tornaram gastas, encardidas, desbotadas e perderam o sentido original. A linguagem é um filtro excludente do que não se adequa ao conceito, à definição, ao significado. Ela é estruturada pelo raciocínio lógico, que afasta a incoerência, a contradição e a ausência de sentido. É alicerçada na razão, que busca certezas concebidas pelo conceito de verdade. Não considera a experiência das sensações, dos sentimentos, dos instintos. A linguagem imagética dos afetos não cabe nos conceitos e significados. Ela é feita de símbolos e metáforas, e é expressada pela arte. É a forma de comunicação mais próxima da realidade vivida pela experiência. A linguagem se insere no mundo virtual das representações da realidade. A linguagem da arte é uma forma de expressão da própria realidade. Ela inclui a contradição, a incoerência, a falta de sentido. Ela provoca sensações e sentimentos, traduzidos por uma inteligência não lógica, não racional. Ela convida a pessoa à experiência e revela que não se existe só porque se pensa, existe também porque se sente. A existência pressupõe estar-se imerso no mundo material. A linguagem das palavras tenta dar forma e contorno à experiência que transborda, que é excesso, que se derrama, que vaza entre os dedos do significado. A experiência vai além da compreensão, do entendimento, da razão.

82


83 Ela é apreendida, percebida e sentida. Afeta cada fibra do ser, em todas as dimensões, da física à espiritual. Se Deus ultrapassa a linguagem das palavras, ele vai além da compreensão da mente. Deus só é conhecido pela experiência. E a experiência só é possível através do corpo físico, estando plenamente no presente. Se no princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus, o Verbo não pode ser contido, delimitado e restrito pelas palavras. A linguagem de Deus é a do sentir. O Verbo é ação, é movimento, é vida, e vida é permitir-se afetar e ser afetado. O Verbo foi mal compreendido.

83


84

As faces de Deus Desde que o mundo é mundo que os povos dotados do mínimo de raciocínio sentem-se tão impotentes diante das forças da natureza, que até hoje nem mesmo a ciência tem domínio completo sobre elas. Aplacar ou abrandar a fúria destrutiva dos eventos naturais foi o primeiro motivo que inspirou a ideia de Deus. Para isso, rituais e sacrifícios eram feitos em devoção e reverência. Deus surgiu do temor e da submissão do ser humano a algo maior que ele. Deus era a natureza. À medida que a humanidade evoluiu intelectualmente, desenvolveu-se também o conceito de Deus e sua representação. Na tentativa de encontrar respostas para questões existenciais e explicações para a criação do mundo, surgiram as primeiras concepções de Deus. O conceito de Deus se pluralizou e diversificou entre os povos, formando, assim, a diversidade de religiões existentes. Na maioria delas, Deus é um ser, ou conjunto de seres, sobrenatural, dotados de poderes supra-humanos. Ao criar explicações para o surgimento do universo, a mitologia precisou criar personagens com poderes ultra-humanos. Cada ser divino foi dotado de atributos específicos para criação, manutenção e controle da ordem universal. Conceberam-se, então, os deuses do céu, da terra, dos mares, do subsolo etc. Nas mitologias, os deuses têm características e aparências que se assemelham às dos humanos. Nos povos ocidentais, em que predomina o cristianismo, abstraindo o exame da complexidade da trindade, Deus é simbolizado pela figura paterna, tendo uma imagem semelhante ao profeta dos tempos antigos. Ao contrário do que escrituras dizem, Deus foi criado à imagem e semelhança do homem, e não o homem à semelhança de Deus. Se, de um lado, o Deus cristão possui poderes excepcionais, como onisciência, onipotência e onipresença, também tem virtudes humanas, como amor, misericórdia, sabedoria, justiça e paz. A forma que o homem encontrou para aproximar-se de Deus sem temê-lo foi identificando-se com Ele, dandoLhe faces humanas. Com o suposto domínio da natureza pelo conhecimento científico, o temor a Deus foi abrandado e o homem tentou substituí-lo pela ciência. O homem, então, passou a ser o centro do universo. Não tardou para ele perceber que a ciência não tem todas as respostas, e a ânsia de Deus voltou aos corações. Deus não se explica ou se define, Ele vai além da compreensão. Deus não pode ser representado nem confundido com características humanas. Deus não é conceito, é experiência. Ele é sentido, percebido, vivenciado. Quem já sentiu a presença divina não precisa crer porque sabe. O homem vive Deus enquanto pratica os valores e as virtudes universais e culturais que assimila. Deus habita o homem. Amar é a vivência mais próxima de Deus. Quem ama não O teme. Deus é.

84


85

Religião, temor e recompensa Sabemos que, em tempos remotos da história, os homens se agrupavam por necessidade de proteção, não só por conta dos ataques por animais selvagens, mas também devido às intempéries climáticas. O temor à fúria da natureza gerou a primeira forma de submissão a um poder maior. Os conhecidos sacerdotes ou pajés, que criaram formas e fórmulas de aplacar essa força desconhecida, com rituais, oferendas e sacrifícios, tinham poder sobre o grupo. Esse líder místico, em alguns casos e ao longo da história, era o mesmo que organizava o grupo, ditando regras de convivência. A separação entre o Estado e a religião é historicamente recente. Há, então, uma dupla motivação à submissão, o temor e a necessidade de proteção, que é prometida tanto pela religião quanto pelo Estado. A religião surgiu para ajudar a suportar o insuportável. Veio para dar consolo e ao encontro do anseio por respostas a questões existenciais. Para conseguir esse intento, criou a ideia de uma entidade ou poder superior, criador de todas as coisas. As religiões têm, em sua teoria, a ideia de gênese ou de cosmologia. O que há em comum entre muitas delas é ter em sua base o temor e submissão, também conhecida como servidão. Aprendemos a nos submeter em troca de alívio das angústias, por meio de certezas instituídas pelo conceito de verdade. A verdadeira servidão, aquela que se realiza ao estar a serviço de um propósito, ao plano de Deus, foi desvirtuada pela acomodação e pela renúncia da autonomia. Deixou-se a cargo de Deus a realização do que cabe ao indivíduo. Inverteram-se os papéis: Deus existe para atender aos desejos e expectativas de cada um. Há religiões que prometem prosperidade; outras, o paraíso; outras, a salvação. Toda religião tem dogmas, mistérios e milagres porque nem tudo pode ser explicado ou justificado pela razão. Tanto a religião como a ciência são baseadas na obediência a seus preceitos, havendo consequências em seu descumprimento. Se há desobediência à lei da gravidade, por exemplo, o resultado é se acidentar e até morrer. Isso remete à necessidade de conhecer e observar as regras ou leis naturais e “sobrenaturais” que regem a vida humana. Apesar da desconstrução de crendices, o temor do castigo à rebeldia continua a existir. Quando se tem alguma compreensão sobre as leis universais, a obediência se converte em ato voluntário e espontâneo. A aspiração pela autonomia decorre do anseio mais íntimo e profundo de aprimoramento e desenvolvimento pessoal, caminho que naturalmente leva a Deus. Esse anseio, no entanto, é abafado pelo condicionamento e hábito da dependência que a equivocada servidão traz. Ser livre importa em responsabilidade nas escolhas. O condicionamento de delegar as decisões ao Estado e à religião é um obstáculo. A submissão atrofia o discernimento, a análise, a compreensão, por aceitar sem questionar as respostas alheias. As religiões são recortes da verdade que se complementam, assim como as diversas correntes de pensamento. O budismo se baseia no conceito de inclusão, o cristianismo evangélico destaca a graça, o catolicismo dá ênfase aos

85


86 sacramentos, o espiritismo à caridade. Cada pessoa escolhe aquela que lhe faz mais sentido. A religião é uma experiência mais coletiva que pessoal, daí a necessidade de templos, igrejas e sinagogas. Seja qual for a religião adotada, o importante é ter a consciência de que a orientação a seguir é pessoal, a resposta está dentro de si, o norte é a sabedoria divina que habita em cada um. O homem ainda tem dificuldade de se ligar a Deus sem a assistência de uma religião, daí a importância dela, seja qual for o embasamento teórico, os dogmas, os rituais e as práticas que venha a ter. É importante estar consciente, entretanto, de que a religião como a concebemos, desvirtuada pela imperfeição humana, é um sistema de crença estruturado no medo e na recompensa. Temor a Deus e medo do diabo. Medo do juízo final. Medo de pecar e ser castigado. Um Deus que tudo pode, tudo vê e está em todo lugar inspira temor. A penitência, uma forma de castigo brando, oferece o perdão de Deus àquele que confessa e arrepende-se dos pecados. Recompensa pela obediência aos preceitos religiosos. Em face da imperfeição humana, que desvirtua o sagrado, a religião foi e é usada como mecanismo de domínio e controle das massas para aplacar a revolta dos desassistidos e desprivilegiados. Controle pelo medo e pela culpa. Oferece consolo e promete prosperidade, paraíso ou salvação em troca da resignação ou conformismo. Onde há medo, há tentativa de barganha com Deus e o amor não prospera. Onde há domínio e subjugação, não há verdadeira mudança, não florescem as virtudes. A ideia polarizada de bem e mal propagada pela religião não considera que o erro é inerente ao ser humano e que o indivíduo nem é 100% bom, nem é 100% mau. É um ser em aperfeiçoamento, a caminho do divino. O mal é a ignorância do bem, pelo distanciamento de Deus. A verdadeira religião é aquela que liga o homem a Deus através do amor. Se Deus é amor, não há por que temê-lo. Onde há amor, não há medo, e o próprio amor é a recompensa de quem ama. Mas para viver o amor, é preciso sacralizar o corpo físico, estar inteiro e presente nele, pois não é possível sentir e viver fora dele. A experiência do amor traz o consolo e alívio genuíno, porque tira o indivíduo da angústia existencial, do medo e do desejo egoico e o transporta para o Centro, o Eixo, a Bússola que nele habita, o Farol que ilumina todo seu ser.

86


87

O sagrado e seus símbolos A linguagem imagética do inconsciente é estruturada por símbolos. O símbolo é a representação de uma ideia que antecede a palavra. Essa representação pode ser projetada num objeto, numa imagem e até numa pessoa. O significado do símbolo varia de pessoa para pessoa e pode adquirir um valor positivo ou negativo. Atribuir um valor que vai além de sua utilidade física, um valor metafísico e transcendental, torna sagrados o objeto, a imagem ou a pessoa. Costuma-se dizer que o lar é sagrado, que a amizade é sagrada, e o que significa isso? Sagrado é aquilo que inspira veneração, que nos remete ao divino, a Deus. É aquilo que tem por função dar sentido à vida e está inserido dentro do conceito de espiritualidade. Um sentido que vai além dos interesses e necessidades físicas e materiais. O sagrado fundou o mundo, o iluminou e lhe deu um sentido. O sagrado, nas diversas tradições espirituais, religiosas e filosóficas é o centro. O centro é o ponto de orientação, o ponto de referência que aponta o sentido. É o farol dos viajantes da vida que os afasta dos perigos e indica a direção a seguir. O ser humano orbita em torno desse centro com o propósito de se aproximar, cada vez, mais dele. O homem anda em círculos e precisa seguir em espiral para chegar ao centro. Pela dificuldade de o ser humano em se ligar e estar alinhado a esse centro, os símbolos contribuem para a necessária interiorização. São estímulos que ajudam na experiência transcendental. No cristianismo, são símbolos do sagrado o altar, o vinho e a hóstia, que representam o sangue e o corpo de Cristo. É também o templo, o culto e a Bíblia. São também os cantos de exaltação a Deus. Os símbolos podem ser usados também como amuletos ou talismãs sagrados. Aos talismãs, são atribuídos poderes mágicos ou sobrenaturais, e, aos amuletos, são conferidos atributos como sorte e proteção. O crucifixo é um amuleto usado como proteção contra o mal. Os oráculos são também símbolos sagrados presentes na cultura de vários povos e tradições, como em diversas religiões. No cristianismo, há a figura do profeta, oráculo que revela a palavra de Deus, como a própria Bíblia é um oráculo, por trazer ensinamentos inspirados. Todos esses símbolos são importantes como representação externa do sagrado, para facilitar a experiência interna com o divino. Eles, em si, não têm poder algum, o poder é dado por quem o sacraliza, ao transformá-los em artigos de fé. Cada pessoa tem o seu acervo de símbolos que, para ela, são sagrados. O sagrado é uma ânsia inerente ao ser humano, originado na necessidade de encontrar sentido para a vida e razão para viver, já que a consciência da inevitável morte o tira o chão. O sentido que é razão, explicação, mas também orientação de para onde ir. E quando se valoriza o sentido se prioriza o percurso, e não o destino, já que o ponto final é a morte. O sagrado projeta o homem além da degradação da matéria, além da morte física. Sacralizar a vida e

87


88 o caminho a seguir, através da autossuperação, da expansão de limites da consciência, pela transcendência que faz com que se abandone o homem velho para se tornar o homem novo. Até mesmo o ateu precisa criar o seu próprio sistema de crenças para dar sentido à vida, quem sabe, baseado no antropocentrismo, e não no teocentrismo. Há que se encontrar o próprio caminho sagrado.

88


89

A relação do ser humano com a vida O ser humano vê a vida separada de si mesmo, como algo que apenas confirma sua existência, que tem suas próprias leis, que atua a partir delas e que são alheias à vontade humana. No que se refere à vida pessoal, muitos acreditam que ela é regida pelo determinismo, pela fatalidade ou ainda pelo acaso. Na verdade, há uma estreita ligação entre a vida e o ser humano. A vida é uma substância maleável, plástica e moldável, a mesma substância da alma. É quem une a alma ao corpo. É ela que anima o corpo físico e manifesta a consciência. A vida responde àquilo que a consciência acredita que ela seja. Nós plasmamos nossa realidade interna e externa através de pensamentos, sentimentos e atitudes. Estes serão direcionados de acordo com os conceitos e crenças que interiorizamos. Se acreditarmos que a vida é nossa inimiga, assim ela será. O inconsciente está permeado de crenças e conceitos equivocados, muitas vezes contrários ao que acreditamos. Enquanto não os trazemos para o consciente, é através deles que modelamos nossa vida. Isso é percebido através de um clima emocional sutil de pessimismo, negatividade e ausência de sentido. Há um não interior à vida que é preciso descobrir. Estar vivo é ser capaz de responder a estímulos, de se permitir afetar e ser afetado pelas pessoas e pelos eventos. É a habilidade de sentir. Quando amortecemos os sentimentos por medo de viver, perdemos a vivacidade, o tônus, a pujança, perdemos vida. O desconforto gerado pelo entorpecimento, nos impele a criarmos falsos sentimentos para nos sentirmos vivos. Vivemos, então, uma vida falsa. Para ter uma vida autêntica é preciso tornar consciente as crenças e conceitos equivocados sobre ela, os falsos sentimentos, e permitir o livre fluir dos que são verdadeiros. Isso é possível pelo poder de observação e percepção, comum a todos; pela forma peculiar como respondemos à vida e como nos perguntamos o que está por trás dessa construção. É preciso tornar consciente o que criamos, assumir a responsabilidade pelo que manifestamos e criar realidades mais promissoras e prósperas. Há que ser arquiteto do próprio destino e criar novas formas de vida que correspondam aos anseios da alma. A nossa vida é a cartografia de quem somos. Que ela seja bela e feliz.

89


90

ESFERA DOS SENTIMENTOS

90


91

Emoções e como elas nos afetam Você parou para pensar por que uma pessoa inteligente, instruída e culta acredita em coisas que não resistem a qualquer avaliação crítica? Isso tem a ver com as emoções. O que são emoções? São pensamentos sentidos, pensamentos não pensados. São respostas neurológicas e biológicas aos estímulos recebidos pela mente. Como já foi dito, a ideia nasce de uma imagem. Ao tornar consciente a imagem, a mente precisa traduzi-la em palavras, e as palavras constroem pensamentos. O pensamento atribui um valor a ele próprio através de um conceito. A forma como o conceito é assimilado no âmbito individual depende do grau de consciência e amadurecimento emocional. A todo pensamento é atribuído um sentimento. As emoções são automáticas, involuntárias e inconscientes. Para que essa dinâmica mental de apreensão dos conceitos seja submetida ao crivo do raciocínio, é preciso que eles sejam trazidos ao consciente, quando, então, as emoções podem ser convertidas em sentimentos. Isso quer dizer que a forma como respondemos à vida está determinada pelo tipo de emoção que formam nossas crenças e pelo grau de consciência que temos dela. O ser humano precisa de certezas para enfrentar a inconstância da vida, certezas a que ele atribui verdade. As crenças são verdades fixas diante de realidades mutáveis. A verdade, para o ser humano, é sempre relativa e mutável. Quanto mais engessamos ideias, mais nos distanciamos da verdade. A verdade é relativa porque entendemos a vida através da percepção, e a percepção vê a vida a partir de um ângulo e não da totalidade. É relativa porque a mente não é capaz de compreender o todo. Verdade absoluta só Deus a tem. Por outro lado, a repressão das experiências vividas resulta no amortecimento das emoções. As emoções amortecidas dificultam que tomemos consciência delas e que as associemos com as crenças que nos limitam o entendimento. Emoção é movimento, e movimento é vida. As emoções embotadas decorrentes do pensamento fixo geram as crenças. As emoções reagem a algo do passado, associando-o ao que acontece no presente. Ao nos permitirmos entrar em contato com as emoções, poderemos ressignificar a experiência que as fixou e convertê-las em sentimentos. Sentir e reagir é da natureza humana contribuem para que a criatividade e a intuição aflorem. Enquanto não permitirmos que as emoções reprimidas emerjam, continuaremos atuando a partir da lógica da consciência infantil e seremos escravos dela.

91


92

Zona de conforto Criar hábitos traz conforto e segurança. É importante para facilitar a rotina do dia a dia e propicia um ambiente tranquilo para realização das atividades. É uma forma de organizar a vida. O hábito se torna nocivo quando fica rígido e não acompanha as mudanças necessárias e inevitáveis da vida. É ainda mais pernicioso quando é usado em situações que vão além da rotina e que exigem constante avaliação e reflexão criativa para manter o contentamento e alegria de viver. Esse é o risco de manter-se na zona de conforto. É um lugar aprazível para quem tem medo do desconhecido e acredita que a mudança pode ser pior. Muitos mantêm-se na zona de conforto porque já estão acostumados, adaptados e resignados com uma vida apática e sem prazer. Confundem acomodação com contentamento. Acreditam que irão apenas trocar um sofrimento conhecido por outro que pode ser pior. Não confiam nas mudanças da vida, que sempre nos convidam a ir além do conhecido. A estagnação está no contrafluxo da vida e manter-se nela exige esforço. Chega o momento em que o impulso para o movimento é tão forte que inconscientemente a pessoa cria um evento que a tira do marasmo, nem sempre da melhor forma possível. Sair conscientemente da zona de conforto é dar sim à vida. É não aceitar o sofrimento ou indiferença como destino. É entregar-se por inteiro ao fluxo, confiando em sua sabedoria e benignidade. É acreditar que merece ser feliz.

92


93

De volta para casa Você já experimentou uma sensação de bem-estar, contentamento e clareza que lhe parece familiar? Você sabe por que e para que isso acontece? É provável que todos nós, mesmo que não lembremos, em algum momento, já tenhamos experimentado uma sensação de bem-estar, contentamento e clareza. É um estado de espírito que nos parece familiar, a sensação de estar em casa. Essa casa é o ambiente que abriga quem de verdade somos. Isso acontece para que tenhamos um lampejo do que nos espera e para nos encorajar a empreender a jornada de volta para onde nunca saímos, mas não lembramos disso. Para acessarmos momentaneamente esse espaço interno, de alguma forma neutralizamos o controle do ego. A trajetória começa ao focarmos a atenção em nós mesmos. Temos a tendência de nos voltarmos para o que acontece fora de nós. O foco nos tira da dispersão e das divagações da mente menor. Assim como na jornada do herói mitológico, acontecem distrações que tentam nos tirar do caminho. Precisamos olhar para elas porque são obstáculos que criamos para não seguir adiante. Esses obstáculos são mecanismos de defesa para o ego manter o domínio sobre nós. Por isso, ao foco deve ser acrescentada a visão periférica que revela o que está escondido da consciência. É preciso acessar o universo interno da palavra. Aquilo que primeiro foi uma imagem, depois converteu-se numa ideia ainda não pensada, para afinal converter-se num pensamento. A elaboração do pensamento pode resultar na dedução, conclusão ou crença. Esse pensamento de fundo é invisível à mente desatenta. Para quem tomou a decisão de seguir em direção a si mesmo, cada vez mais, a percepção será ampliada e mais clareza se terá de quem se é. Assim como o herói mitológico, recebemos o chamado da alma, que é a visão fugidia da casa interior. Quando sabemos para onde ir e há um propósito a seguir, somos tomados de coragem para enfrentar os percalços do caminho. Precisamos de humildade para nos despojarmos dos eus superficiais que criamos, para suportar o vazio momentâneo de quem somos, para aceitarmos nossa imperfeição e nos equipararmos aos demais. A aceitação da falibilidade revela nossas potencialidades que ajudam a nos apropriarmos dela num lugar de verdade, sem exageros nem diminuições. A autodescoberta equivale a lapidar um diamante bruto, a reformar a casa interior. Para se aplicar um novo revestimento sobre a parede, é preciso desbastá-la, remover o reboco solto e desprender o que reluta em sair. Esse processo só é doloroso se temermos o que vamos ver por debaixo dos escombros. O medo é um contrassenso, já que só poderemos encontrar a nós mesmos. Na verdade, nada é desconhecido. O que somos, tanto de bom quanto de ruim, transparece através dos pensamentos, sentimentos, reações e atitudes. À medida que desenvolvemos a capacidade de nos observarmos, mais vezes entraremos no estado de espírito que nos é inerente, mais acessaremos nossa casa interior, mais viveremos em coerência com nossa essência, mais

93


94 agiremos em acordo com nossas aptidões. A auto-observação é o caminho mais eficaz de expressar a autenticidade, de desenvolver a autoestima e o amorpróprio. E, ao aprendermos a nos amar, cumpriremos a vontade de Deus de “Amar ao próximo como a si mesmo”.

94


95

Sensação de vazio Você é capaz de se manter no vazio até que aconteça o preenchimento de forma natural? Há quem se culpe por ter uma vida aparentemente plena, em que nada lhe falta, não tem motivos para se queixar e, ainda assim, ser tomado pela sensação de vazio. É uma situação difícil de desconforto e conflito. Há muitas razões para o vazio nos dominar, todas com um denominador comum, que se verá adiante. Muitas vezes acontece do passado nos assombrar em forma de demanda interna ou até mesmo por cobrança da vítima. O vazio se instala quando a vítima é alguém que amamos e que não nos perdoa, nem aceita reparação. Sentimo-nos rejeitados, condenados e punidos, não vislumbramos saída. Outra vezes o vazio se dá quando o projeto ou propósito em que nos empenhamos sofre um revés ou não têm êxito, e sentimo-nos sem chão. Com frequência o vazio ocorre porque tentamos preencher a vida com objetivos fúteis, superficiais e efêmeros, que só aumentam o vazio ao serem atingidos. O vazio pelo luto é um bom exemplo de que a vida era preenchida por aquele que morreu e não sabemos nos completar ao sermos privados de sua presença. Quando isso ocorre, o vazio causado pela ausência precisa ser convertido em outro tipo de presença, aquela que acontece com a lembrança dos bons momentos e com a preservação do afeto livre de dependência. Há um vazio ainda quando os velhos caminhos que trilhávamos, os hábitos, a forma de ser, de agir, de pensar não nos servem mais e o novo ainda não chegou. É preciso determinação e paciência para não cedermos à tentação de nos completar com qualquer coisa só para nos livrar da angústia e do desconforto. Às vezes, confundimos vazio com tédio e indiferença. Enquanto o tédio é o prenúncio do vazio, a indiferença é a defesa para não o sentir. Quando não se procura a causa, o vazio pode ser o portal da depressão, que nada mais é que a não aceitação da vida como ela é. O vazio que não se afasta é aquele decorrente da falta que vai além das causas aparentes. É a falta de conexão com o eu mais profundo. É a falta de interiorização, de encontro conosco. O denominador comum de todos os tipos de vazio é a falta de sentido para a vida. Perdemos a razão de viver quando a buscamos no sucesso financeiro, profissional e na aquisição de bens. Quando fazemos do prazer o motivo para viver e quando não aprendemos a lidar com a dor e a frustração. Podemos até ter um propósito construtivo, mas, ao nos arrefecermos diante dos

95


96 obstáculos e dificuldades, o vazio pede que renovemos o ânimo e a determinação. O vazio só acaba quando se busca a plenitude em nós mesmos. Quando relações saudáveis são nossa prioridade. Quando vivemos em função do amor a nós mesmos e aos outros. Quando descobrimos um propósito para nossas vidas, o que viemos aprender e de que forma podemos contribuir para o todo. Sempre que nos desviamos do propósito de vida, o vazio se apresenta como alerta para que o retomemos. Ele é o farol que nos mostrará o caminho de uma vida plena, o porto seguro de nossas existências, desde que tenhamos a força e resiliência ao desconforto e a paciência para esperar a luz que indicará a direção a seguir.

96


97

Propósito versus vida vazia Você tem um propósito de vida ou se contenta com uma vida vazia? Tem uma vida vazia aquele que trabalha olhando para o relógio, querendo chegar em casa para deitar-se no sofá, em frente à televisão. Aquele que se casa para não viver só, para receber cuidados e ter segurança. Quem escolhe amigos pelo critério da utilidade. Quem se empenha na profissão para ganhar dinheiro. Aquele para quem o ter nunca é suficiente. Uma existência vazia é aquela que se passa sem viver. Porque a vida, para ser plena, requer que se cumpra o destino inerente a cada um, sua missão de alma, dispor do potencial próprio a serviço de algo maior. Por mais que se ignore o sentido da vida e se busque uma vida banal, fútil e despropositada, inundada de desejos egoístas e prazeres viciantes, automatizada pela rotina, uma hora o chamado da alma é ouvido. Não é uma voz, mas uma sensação de vazio. Uma vez instalada, nada mais faz sentido, nada mais tem prazer, um vácuo que puxa a pessoa para um estado de inutilidade de tudo que fazia. O chamado da alma é o que se conhece como crise existencial. Há quem ignore o chamado e tente preencher o vazio insistindo e intensificando o estilo de vida superficial. E assim pode levar a existência até o túmulo. Para essa pessoa, a morte é um processo difícil, pelo apego à vida material e o temor da aniquilação. O tormento chegará através do arrependimento, no leito de morte, por tudo que poderia ter feito e não fez, pelo amor e doação que não praticou, pela inutilidade de sua existência. Pessoas que têm uma razão para viver sabem por que levantam todo dia da cama, enfrentam as adversidades e obstáculos com resiliência. São preenchidas pela realização pessoal, por colocarem seu talento, habilidades, virtudes e competências a serviço do amor. Para se dar um sentido à vida não precisa praticar prodígios, não precisa ser Madre Teresa nem Einstein. Basta colocar amor em tudo que se faz, dar o seu melhor de forma altruística, ter em mente sua contribuição para um mundo melhor. Tem um propósito a pessoa que se doa à família, o profissional focado em servir, quem se dispõe a ouvir com compassividade. Viver com um intento é ir além das fronteiras do interesse pessoal, é expandir seus talentos em doação. A abundância é a consequência natural de uma vida plena em amor. O psiquiatra Victor E. Frankl viveu três anos no campo de concentração nazista e observou que algumas pessoas sucumbiam, e outras, não. Ele constatou que todos que como ele sobreviveram tinham uma razão para viver. Não é preciso descobrir qual é o seu propósito. Ter um propósito é o que dá sentido à vida. Encontrar um motivo maior para viver é viver em amor, por uma pessoa, pela família, pela humanidade, por uma causa. É fazer da sua vida um ideal em que acredita. Não importa o como, não importa a forma, não importa o que fazer, desde que o amor seja o guia e a doação o caminho.

97


98 Quando estamos no caminho, a vida flui. O destino da árvore é dar bons frutos, e o seu?

98


99

Resiliência e resignação Você sabe distinguir quando algo não pode mudar e é preciso aceitar essa condição? Você sabe diferenciar quando algo pode ser superado e é preciso desenvolver resiliência? Em tempos de crise, quando a vida ou a sobrevivência estão em constante ameaça, é comum as pessoas se abaterem e desanimarem. Algumas se entregam à apatia, prostração e descrença de que se possa fazer algo a respeito. Esse estado de desengano ou desespero só piora as coisas. Precisamos acreditar na benignidade da vida, cuja impermanência traz mudanças que nos favorecem. Se usarmos apenas a razão para analisar o contexto que nos oprime, podemos concluir que não há saída. Isso ocorre porque nossa mente não alcança a realidade em sua inteireza e, por essa razão, não é capaz de vislumbrar possibilidades de solução. É preciso ir além do que a mente pode oferecer. Há um caminho para lidarmos com a adversidade preservando a nossa saúde emocional e psicológico e, para isso, é preciso desenvolver resiliência e resignação. Resiliência para transformar o sofrimento em ação; resignação para não dar murro em ponta de faca, para aceitarmos aquilo que não podemos mudar, ainda que essa impossibilidade seja momentânea. A resiliência é a força que nos mantém de pé, mesmo quando a dificuldade é maior que nós. Ela equilibra o emocional para que possamos analisar a situação com clareza e buscar alternativas para combater a adversidade, o contexto, o cenário desfavorável, descobrindo o ponto fraco do revés. A resignação é indispensável ao se constatar a impossibilidade de mudança na forma como desejamos, para que não gastemos tempo e energia que poderiam ser usados naquilo que podemos alterar. É preciso não confundir o improvável com o impossível. O improvável pode acontecer; o impossível, não. Se há a mínima chance de mudança, é preciso lutar por ela. Outra coisa que é preciso desenvolver é a paciência para esperar o tempo das coisas. Desconhecemos como os eventos e seus desdobramentos se conduzem, e tentar controlá-los é inútil. Nossa responsabilidade é pôr em movimento uma iniciativa, uma atitude ou uma ação e aguardar o tempo necessário para que os resultados aconteçam. Precisamos nos desapegar do desejo como o concebemos porque muitas vezes o que o queremos não é a melhor alternativa e porque nem sempre compreendemos os desdobramentos e o desenrolar dos acontecimentos. Devemos confiar na sabedoria da vida, que sempre acerta.

99


100 Para enfrentar a crise é preciso desenvolver competências como resistência e capacidade de superação; transcender o sofrimento com uma postura positiva e proativa em busca de soluções; ter humildade para reconhecer a capacidade e os limites que lhe é inerente; manter-se com otimismo em movimento e focado no desafio do dia ou do instante; ser capaz de acreditar que tudo passa, que uma hora vai dar certo e de vislumbrar um futuro melhor; e ter a consciência de que há coisas que não dependem de nós e há coisas que é preciso fazer acontecer.

100


101

O humor como sobrevivência O humor é o jeito divertido de ver a realidade e amolecer a dureza da vida. O humor é coisa séria tratada de forma divertida. A matéria-prima do humor é o drama, o trágico, que são vistos de forma jocosa, diminuindo, assim, a intensidade e o impacto dos acontecimentos. Ele revela a desproporção que há muitas vezes nas reações a situações de menor importância. Mostra os equívocos de interpretação da realidade, da leitura das intenções do outro, muitas vezes tornando pessoal uma atitude que não foi dirigida à pessoa que se sentiu ofendida. O humor ensina a pessoa a rir de si mesma ao se envolver em situações ridículas e inadequadas. Arranca das pessoas risos dos próprios defeitos, falhas e erros. O riso é uma descarga de endorfina que alivia as tensões e tira momentaneamente a pessoa da tristeza ou da raiva. Após uma boa risada é possível rever a forma de lidar com os desafios. O humor nos tira do medo e escancara o despropósito do temor. A sedução tem uma dose de humor. O humor é o elo que une a vida ao amor. É uma generosa visão de mundo. O brasileiro é criativo em fazer humor em situações dramáticas. Graças aos humoristas anônimos que semeiam alegria nas mídias sociais, podemos respirar ar puro diante de tanta poluição. Oxigenamos nossa mente para lidarmos melhor com as adversidades que nos tomam a toda hora. Permitir que o humor transforme nossa forma de ver as coisas é questão de sobrevivência em momentos de crise. Então, convém tirar o siso e pôr o riso.

101


102

FELICIDADE E SOFRIMENTO

102


103

Felicidade – sentimento ou escolha? Felicidade é a palavra da moda, a ostentação do momento. Há uma obrigatoriedade em ser feliz para ser aceito. E não é qualquer felicidade, feliz é aquele que ostenta alegria e sucesso. Felicidade passou a ser uma máscara que esconde os dissabores. Nesse mundo de “vencedores”, a suposta solidariedade resulta da indulgência, ou seja, de uma atitude de superioridade do bem-sucedido para com o “fracassado”. Só acontece quando o fracasso é exposto por quem pede ajuda. A verdadeira felicidade não é um sentimento gratuito. É a escolha de enfrentar as adversidades com a intenção de superá-las e de entender a vitória como êxito e não como sucesso sobre os demais. É viver a alegria sem euforia e a tristeza sem drama, com a consciência de que tanto a alegria quanto a tristeza são só momentos que passam. Felicidade é um estado de ânimo, uma atitude positiva diante da vida, uma disposição baseada na aceitação de que as coisas são como são e no acolhimento de quem se é no momento. É não se entregar ao desânimo nem se inundar de entusiasmo. É viver com temperança na medida certa para cada um. Mas para esse empreendimento ser bem-sucedido, há outras decisões que precisam ser tomadas. A decisão de cultivar boas memórias e dissolver lembranças desagradáveis. De pensar no passado apenas para dar a ele um novo significado, para buscar a verdade dos fatos, das circunstâncias e a causa do erro. De desapegar-se da mágoa e exercitar o perdão. De redirecionar atitudes, pensamentos e sentimentos equivocados. De buscar em si a qualidade que se inveja. De transformar a crença na escassez na certeza da abundância. De enfrentar o medo, por ter sido capaz de sobreviver ao pior que já aconteceu. De ter fé na capacidade de reconstruir e de superar o que quer que seja. De usar agora a melhor roupa, o melhor vinho, a melhor louça, porque se valoriza o instante. De sair da zona de conforto e descobrir novos interesses e aptidões. De renunciar ao perfeccionismo, ao controle e à teimosia. De soltar a rigidez, a intransigência e as certezas. De esquecer o “e se” por acreditar na benignidade da vida. De observar os condicionamentos nocivos e adotar novos hábitos. De fazer da dificuldade desafio e oportunidade de aprendizado. Em suma, para ser feliz, é preciso descobrir e trabalhar os obstáculos para sua realização. Os exemplos de decisões acima não se esgotam e cada um pode criar sua própria lista. Essas decisões definirão a intenção e o propósito de estar no mundo e nortearão o caminho que conduzirá à felicidade. A felicidade aflora quando se tem um propósito na vida que traz razão para viver. É feliz quem usa sua força e atributos para superar-se e para deixar um legado, uma marca de sua passagem no mundo.

103


104

Quando o medo atormenta a felicidade O medo é um instinto inerente ao ser humano, portanto, há em todos, ainda que se evite senti-lo. Quanto mais consciência se tiver dele, melhor ele será administrado. Há vários tipos de medo, desde aquele que ajuda a preservar a sobrevivência ao medo nocivo à própria vida. O medo primordial é um instinto, um mecanismo de defesa para se enfrentar situações de ameaça à integridade física e mental. Esse tipo de medo ativa todo o sistema orgânico e o prepara para responder com eficiência ao perigo real, aguça a percepção e prepara os sentidos para o combate ou para a fuga. Esse medo é necessário e indispensável à defesa da vida. Uma vez afastada a ameaça ou o perigo, o corpo retorna à sua condição natural. O medo instintivo, quando se converte em reação emocional, se não trabalhado, pode comprometer o sistema de defesa em vez de ativá-lo. Diante da ameaça, a pessoa pode ficar paralisada. Esse tipo de medo afeta o discernimento, a clareza da circunstância e o sentido de realidade. Muitas vezes confunde algo improvável com uma situação de real perigo. O medo reativo aciona inadequadamente o instinto de sobrevivência de tal forma que se torna um estado de ânimo, e essa condição leva à ansiedade, ao estresse ou ao pânico. O medo reativo, que leva a pessoa a desenvolver um clima emocional constante, traz, em sua esteira, a insegurança e a covardia diante de qualquer desafio da vida. Torna-se um defeito de caráter, porque o medroso, por acreditar que está em constante perigo, reage como tal e não é capaz de desenvolver empatia. O medo emocional afasta o amor porque atrai o egoísmo. O medo emocional decorre da consciência de ser mortal e de que há perigos reais rondando a pessoa, como a violência urbana, o aquecimento global, eventual guerra nuclear e agora a pandemia. A pessoa saudável tem a consciência dessas ameaças, mas sua mente passa por um processo de amortecimento relativo para não ativar inadequadamente o constante estado de alerta. A todo momento, todos são bombardeados pela mídia por notícias alarmantes, por isso, recomenda-se não se expor a esse tipo de estímulo. O medo reativo é originário do medo da morte, e este é inerente à condição da finitude da vida humana. Quem vive em estado constante de medo demonstra falta de fé na benignidade da vida e nos desígnios de Deus. A morte é uma realidade e não há como evitá-la. Alguém já disse que qualquer dia é um bom dia para morrer. Para quem acredita que a morte é o fim, o medo do nada torna difícil a travessia. Recusar-se a aceitar essa realidade é inútil e sofrido. Como lidar com o medo? Submetendo o medo ao pensamento lógico para trazer senso de realidade. Perguntas que podem ajudar: o perigo ou ameaça é real ou é uma suposição? É iminente? Se acontecer aquilo que tenho medo, eu sobrevivo, eu posso superar, posso me adaptar? Outra coisa que ajuda é a respiração profunda e lenta, porque distensiona os músculos, alivia a sensação de desconforto e traz clareza à mente. A meditação também ajuda.

104


105

O medo não pode ser eliminado, porque é um instinto de sobrevivência. É preciso, então, saber como conviver com ele de forma a torná-lo um aliado ao invés de um inimigo.

105


106

Superar-se para ser feliz Como você reage diante das adversidades da vida? Você desiste ou segue em frente? A toda hora somos confrontados com adversidades que desafiam a nossa capacidade de resiliência e superação. Nem todos desenvolveram a habilidade de se recuperar de situações difíceis e seguir adiante. Não é fácil manter-se firme e otimista frente a situações extremas, como perder tudo numa enchente, sofrer desemprego, enfrentar separação ou o falecimento de alguém querido. Aqueles capazes de se autossuperarem fazem da perda uma oportunidade de encontrar uma nova razão de viver e de dar um novo rumo à vida. Nos exemplos citados, aquele que mora em uma área afetada por enchentes pode avaliar outras possibilidades de moradia ou se preparar para uma nova ocorrência. O desemprego pode ser a chance para se preparar para ser aprovado num concurso público; ou a oportunidade de descobrir ou desenvolver um talento de uma atividade autônoma. O divórcio traz a perspectiva de uma nova relação. Quando o ensinamento cristão fala de “deixar os mortos com os mortos”, está dizendo que aqueles apegados ao que perdeu são mortos-vivos, e isso vale para qualquer tipo de perda. Mesmo situações menos drásticas causam desânimo e cansaço da vida. É preciso recuperar o ânimo e encontrar um motivo para seguir em frente. Às vezes, a motivação é ter alguém que depende de nós; outras vezes é o medo de não sobreviver se não fizer nada, ou pode ser que a apatia se tornou insuportável; a melhor das motivações é a fé e esperança no que está além daquele quadro sofrido. Em qualquer situação, seguir em frente é a única alternativa saudável. É preciso ser criativo para se reinventar. Recomeçar, reconstruir, reavaliar, dar um novo rumo à vida é a medida acertada. A autossuperação é possível mesmo para aqueles que, por um momento, desistiram da vida e abandonaram-se; ainda que tenham sucumbido ao desânimo e perdido a esperança. Os exemplos de sucesso conhecidos são de pessoas que não desistiram ao receberem vários nãos e tiveram várias portas fechadas à sua frente. Elas seguiram determinadas e confiantes no sim. Somos destinados à felicidade e, para conquistá-la ou mantê-la, há que se recuperar a força de viver, “levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.” Há que ser como a fênix, a ave mitológica que se incendia pelo fogo transformador e ressurge das cinzas. Há que ser como a águia, que percebe a diminuição da potência, arranca todas as garras e penas e aguarda as novas nascerem para prosseguir em seus voos perfeitos.

106


107

Tenha amigos e seja feliz Hoje a palavra amigo vem sendo usada indiscriminadamente, em especial, nas redes sociais, onde as relações são tão superficiais. Confundimos o conhecido, alguém que nos diverte ou com quem desfrutamos de algum interesse em comum, com o verdadeiro amigo. O amigo não se vale da intimidade para invadir a privacidade alheia nem é inconsequente naquilo que fala, ou no quando, como e onde falar, atitude conhecida como “excesso de sinceridade”. A amizade é forjada e testada, tanto nos momentos difíceis quanto nos momentos bons. O requisito essencial da amizade é a lealdade, o compromisso com o vínculo em qualquer situação. A falta de lealdade pode dissolver os laços de confiança e de entrega que compõem a amizade. Amigo é o irmão de alma e, por isso, vai além dos laços sanguíneos. É aquele que tem um interesse genuíno pela nossa felicidade, que se importa, que cuida, que está próximo mesmo estando fisicamente longe. Podemos passar anos sem ver o amigo e no reencontro parece que nunca nos separamos. O amigo tem escuta atenta e fala movido pelo amor. É sensível à necessidade, respeita o momento de vulnerabilidade e acolhe a fragilidade. Tem amigos que são telepáticos e chegam na hora precisa da dificuldade. É aquele com quem se pode contar nos momentos mais difíceis e que fica feliz com a alegria e êxito do amigo. Ele perdoa com facilidade porque conhece o amigo profundamente. Na amizade, há aceitação e acolhimento, a pessoa pode ser o que é, ser autêntica, sem receio de julgamento. A crítica, quando necessária, é feita com cuidado e respeito e apenas com a intenção de ajudar. Quando há desentendimento, predomina o diálogo amoroso na reconciliação. A pessoa se sente bem junto ao amigo até no silêncio. Amizade é uma das formas de relacionamento mais raras e preciosas. É o melhor aprendizado sobre o amor sem posse e domínio, amor que se expande sem infidelidade, amor sem cobrança, sem exclusividade, amor universal. O amigo não precisa concordar com tudo, ter os mesmos hábitos e gostos nem o mesmo ponto de vista. A riqueza da amizade está em apreciar o outro como ele é. Quanto mais velho se fica, mais se valoriza a amizade perene, aquela que sobrevive às provas que a vida impõe e que a fortalece. Na velhice, os colegas já não existem, o conhecido se esquiva, o convívio social rareia. Só o amigo nos tira do isolamento e da solidão. Que possamos ter a felicidade de sermos chamados de amigo e de termos alguém por quem tenhamos amizade sincera.

107


108

A manipulação impede a felicidade Você já foi manipulado? Você sabe por que o manipulador é infeliz? A manipulação é um distúrbio de personalidade. É um mecanismo egocêntrico para proteger-se de ser contrariado. É o uso nocivo do poder de convencimento. O manipulador acredita que, para ser feliz, precisa assegurar a existência de um mundo idealizado, em que ele é o centro das atenções, e as coisas acontecem do seu jeito. Esconde, às vezes de si mesmo, a insegurança e a menos-valia. E para que seu desejo aconteça, ele usa de artifícios, artimanhas e dissimulação e, assim, induz as pessoas a fazerem sua vontade. Conhecedor profundo da mente humana, detém a perspicácia de descobrir o ponto fraco do outro e o usa de uma forma que a pessoa se convence de ser dela a ideia por ele plantada. O manipulador trabalha no subterrâneo emocional do seu alvo e precisa de aliados para ter força. Inverte a situação tão habilmente, que passa facilmente de malfeitor à vítima e até a herói. Quando fala, omite intencionalmente aspectos prejudiciais importantes da questão. Envolve emocionalmente a vítima, tirando dela a capacidade crítica e o discernimento. Sempre age para benefício próprio. Esconde sua verdadeira intenção, distorce os fatos, desqualifica quem pensa diferente dele e usa a máscara de benfeitor e altruísta. Joga sujo e trabalha por debaixo dos panos, quando não consegue vencer o argumento do oponente. Essas características estão presentes nas relações abusivas de controle e domínio do outro. Por ser exímio em sua atuação, a pessoa desavisada demora a perceber que está sendo enganada e lesada. A manipulação constante e pertinaz causa danos emocionais graves à vítima. Lamentavelmente, essa prática é usada para convencimento em massa. Vendedores e políticos a usam, agora valendo-se de algoritmos, um recurso tecnológico capaz de obter informações pessoais, disponíveis nas redes sociais, como gostos, hábitos, interesses e formas de pensar do indivíduo. Isso aumenta a chance de êxito de quem quer vender o produto, de se vender ou de vender a ideia. E por que o manipulador é infeliz? Porque ele não relaxa, está sempre em estado de alerta e atento para neutralizar qualquer movimento de conscientização de seu alvo. O egoísmo e a atitude abusiva o afastam das pessoas, em especial quando elas percebem o engodo. Ele sofre com sua atitude desonesta, porque, em algum nível, é atormentado pela sua consciência. Não interage no mundo real, e isso o isola. E, porque é voltado para si e não consegue desenvolver empatia, amarga a solidão e a separação de si próprio. Por ser uma atitude para preservar o voluntarismo, a manipulação é apenas um traço na maioria das pessoas, que muitas vezes nem percebem que estão agindo a partir dela. É diferente do manipulador, que é consciente do seu intento.

108


109 Aquele que decide renunciar à manipulação pode converter esse defeito na virtude da persuasão. A persuasão é a capacidade de argumentação assertiva, onde o ponto de vista é apresentado com clareza, incluindo os prós e os contras. A pessoa persuasiva usa de transparência, inclui o outro, é aberta a novas ideias e opiniões e respeita quem pensa diferente dela. O manipulador precisa abdicar do mundo fictício que criou e educar a vontade, de forma a considerar a necessidades dos outros. Afastar a manipulação de suas atitudes é o caminho seguro para uma vida tranquila e feliz.

109


110

A experiência do luto Para falar de morte, é preciso incluir a vida. Não nos damos conta de que vivemos mortes diárias. Quando a madrugada chega é porque a noite morreu. Todas as células do corpo se renovam diariamente. O hoje deixou o ontem para trás. Vida é movimento, é constante transformação, é sempre seguir em frente. A vida é cíclica e ao mesmo tempo tem começo meio e fim. Vivemos o ciclo da infância, da juventude, da velhice. Vivemos o ciclo da existência. Há uma linha do tempo entre o nascimento e a morte. Vida é o que fazemos entre essas duas polaridades. Viver é aceitar a impermanência, o imprevisível e a constante mutação. A morte é o fechamento do ciclo da vida corporal. Nem mesmo o corpo morre, ele se converte em outra forma de matéria. Aqueles que seguiram em frente, cruzando o portal da morte, sempre estarão vivos na dimensão da memória e do afeto. Essa dimensão é imortal, existia antes de nascermos e permanecerá após morrermos. Não existe perda porque nada nem ninguém nos pertence. A ausência é ilusão, pois a presença permanece de outro jeito. A memória e as boas lembranças mantêm vivo quem se foi. O que chamamos de perda é transformação do que era antes para o que é agora, mudança que faz parte da vida. Nossa vida se altera com a morte de quem amamos. É preciso adaptar-se emocionalmente à nova realidade. O luto é o sentimento gerado pelo que entendemos por perda. Ao entendermos que para vir o novo é preciso liberar o velho, novo significado daremos ao luto. Pessoas entram e saem em nossas vidas, outras se distanciam, cada um cumpre o tempo de convivência necessário e segue adiante. Podemos acompanhá-las, quando é possível, ou podemos escolher ir em outra direção. Não há perda, só renovação. O sofrimento do luto está no apego. Apego daquilo que existia e deixa de existir naquele formato. Apego que não permite a mudança necessária para que cada um siga seu destino. A morte é o exercício mais difícil de desapego. A dependência afetiva é dissolvida com o cultivo da gratidão. Há que se mudar o foco do que se acha que perdeu para a gratidão do que desfrutamos, da convivência e do aprendizado da caminhada juntos. Gratidão pela troca de afeto, pelas alegrias e pelas tristezas divididas. O luto é o sentimento de desamparo. Pode trazer a culpa ilusória de que não demos o melhor e de que não aproveitamos o máximo do tempo com aquela pessoa. Causa estranheza ver quem amamos reduzido a um corpo inerte. É a crença do nunca mais. O nunca mais não existe porque não houve partida e porque o reencontro é possível. Podemos preservar a pessoa em nossas mentes, memórias e corações. O sentido da vida é aprender a sentir, educar os sentimentos, deixá-los fluir, permitir que cumpram seu percurso e se dissolvam, que voltem ao todo, à energia cósmica que tudo cria. 110


111

O sofrimento decorre da retenção da tristeza, pela crença de que, se soltarmos a dor, estaremos abandonando aquele que partiu. Acontece, também, por acreditar que não há lugar para alegria e bem-estar no luto. Quanto mais retemos o que sentimos, mais nos distanciamos daquele que fez a travessia. O luto saudável é aquele em que passamos por todas as suas fases, desde a tristeza, a raiva e a negação até a aceitação. É aquele em que rememoramos e falamos dos bons momentos, vemos fotos. Em que transformamos a dor em alegre saudade, grata e amorosa. É preciso dar passagem aos sentimentos pela respiração. Respiração é vida, e um dos sintomas do Covid-19 nos lembra bem disso. Desaprendemos a respirar. Seguramos a respiração para não sentir. Equivocadamente mantemos a respiração curta quando sentimos dor, estresse, ansiedade e depressão. A respiração plena distensiona, relaxa e libera sentimentos. Ela traz clareza à mente e à consciência e permite. Ao entrarmos na inevitável experiência do luto, tenhamos em mente que ela é necessária para dar vazão aos sentimentos que emergem diante da morte, conscientes de que é um processo a ser atravessado, pois viver é um eterno seguir em frente.

111


112

Felicidade na abundância Quando você ouve a palavra abundância, que efeito lhe causa? Abundância, prosperidade, fartura, plenitude. Para muitos é algo concreto e desfrutável, para outros, alguma coisa distante e inatingível. O que diferencia uns dos outros? Atitudes e posturas que favorecem ou afastam a abundância em suas vidas. Há alguns fatores que precisam ser considerados e que constroem a realidade de fartura ou escassez. Um deles é o desejo de fartura para evitar a escassez. A escassez é resultado da crença de que os recursos são finitos. Isso leva a crer que, para se ter algo, precisa tirar do outro. Outro fator é a atitude de não querer fartura por achar que faltará para alguém. Sem ignorar a ganância de quem nunca se sacia em acumular, a abundância está destinada a todos que nela acreditam e a buscam. É uma fonte inesgotável e está à disposição de todos. A vida é abundante, o universo é abundante, a criação é abundante e infinita. A mente pode ser um grande obstáculo para acessar a abundância. A crença de não ser merecedor da abundância por não ser perfeito. O perfeccionismo impede ou dificulta uma vida próspera, porque a exigência de perfeição está no contrafluxo da energia criadora. Cada um cria sua realidade por pensamentos, sentimentos e atos. Ainda que se queira uma vida rica, é preciso considerar que há um não interno que bloqueia a concretização do desejo. O caminho da abundância passa pela generosidade e pelo desejo de partilhar a fartura. É o mesmo caminho do propósito de vida. Quando estamos alinhados a ele, as oportunidades surgem, a ajuda chega, as ideias, a intuição, a vontade, tudo conjuga para a realização. A máxima cristã “Pedis e obtereis” precisa ser entendida como o canal de acesso à abundância e à responsabilidade pelo que se pede. Nem sempre temos consciência do que pedimos, do que é melhor para nós, do que vamos deixar para trás ao fazer uma escolha e do preço a pagar para sua a realização. Ao fazer o pedido fervoroso, ativamos a vontade e a força para perseguir o que se quer. Não basta pedir, é preciso empenhar-se, dedicar-se e perseverar no propósito. É preciso paciência, acolher o tempo de Deus. A abundância é a condição inerente e disponível a todos. Uma vida abundante é uma vida plena, não apenas financeiramente, mas em todos os aspectos da existência. É preciso intencionar e escolher uma vida próspera e feliz. Só depende de nós.

112


113

Felicidade versus inveja Você é capaz de admitir que já sentiu inveja? Será que o invejoso é feliz? Na primeira reflexão sobre o tema, dissemos que felicidade é uma decisão consciente sobre adotar uma atitude positiva diante da vida. Dissemos, ainda, que é preciso trabalhar os obstáculos para isso. A inveja é um deles. Quem é invejoso não é feliz porque sofre com a felicidade alheia. A inveja é uma emoção negativa que pode desdobrar-se em outras, ampliando o sofrimento. Ela deriva do orgulho, esse sentimento de superioridade que esconde a menos-valia. O invejoso se compara e se ressente por alguém ter aquilo que ele supõe não ser capaz de obter. Ele não apenas quer o que o outro tem, mas acredita que o outro não é merecedor e, por isso, deseja que ele não o tenha. O invejoso não quer pagar o preço para ter o que quer. Ele padece pelo êxito do outro, porque é cego de sua própria capacidade de realização. Aflige-se diante da luz do outro por não enxergar a sua própria. O invejoso não quer assumir as próprias qualidades e força para não se responsabilizar por elas. A inveja pode acarretar uma reação em cadeia de outras emoções negativas como o ciúme, a raiva, o desejo de vingar-se e de trair. O invejoso sente vergonha e, para ocultá-la, ostenta uma admiração hipócrita. Há quem se queixe de ser alvo de inveja para justificar o fracasso ou o mal-estar provocado por seus próprios sentimentos não trabalhados. Aquele que tem uma postura digna, humilde e amorosa não desperta inveja e sim admiração. Quem nunca teve inveja que atire a primeira pedra. É uma emoção inerente ao ser humano. O importante é estar atento quando essa emoção chega para não agir a partir dela e para permitir-se senti-la e soltá-la. Quando se entender que só se vê no outro aquilo que se é conhecido, que faz parte do universo interno de cada um, a inveja se dissipará. Esse atributo pode existir ainda em potencial, de forma latente ou pode já ter se manifestado, mas ainda não identificado e validado. A inveja causa sofrimento, porque o olhar é deslocado de si próprio para se comparar com o outro. A comparação nunca é real, porque as referências utilizadas são superficiais e subjetivas, tendo por base a menos-valia. A comparação é a medida de si mesmo a partir do outro, na pretensão de ser superior a todos. A pessoa sente inveja porque está desligada da própria potência, e isso causa dor. A atitude positiva diante da inveja é convertê-la em admiração. A admiração é um sentimento inspirador que motiva buscar em si o que se vê no outro. Quando a inveja se torna admiração, o indivíduo é afetado de forma positiva por aquele que o admira e se estabelece um vínculo saudável em que o admirado passa a ser referência de realização, seja de conquista material, profissional, de prestígio, de bons relacionamentos, seja de virtudes.

113


114

Memórias que afetam a felicidade Você já descobriu qual é o gatilho que dispara em você a lembrança de momentos ruins? Dissemos antes que, para ser feliz, é preciso ter uma atitude positiva diante da vida e, para adotarmos essa postura, precisamos dissolver os entraves. A memória pode ser um deles. A memória não é um simples repositório de informações e fatos objetivos e neutros. É uma importante parte da mente indispensável para o aprendizado. Guardamos na memória aquilo que assimilamos e apreendemos com a experiência. Isso vale tanto para o conhecimento intelectual quanto para o afetivo. A lembrança afetiva repercute de forma negativa ou positiva no presente. É a imagem de um evento impresso na memória, ou seja, é a leitura, interpretação ou significado que fazemos dela. A imagem afetiva não é real, porque está impregnada de forte componente reativo. Ela pode estar associada a uma conclusão equivocada. Dentre as lembranças afetivas, destacamos a ressentida, decorrente da postura de vitimização. É o apego à dor causada pelo acontecimento e pela mágoa daquele que supostamente a provocou. É a memória traumática, que se formou porque não se liberou o impacto traumático. São lembranças ruins sedimentadas pela não aceitação de que coisas ruis podem acontecer. Aquelas vinculadas a algo ou alguém que se perdeu, por não aceitação da mutabilidade da vida. Todas se constituem pela fixação de uma reação negativa a uma situação. Há um apego mórbido à dor, que se converte em prazer negativo. Aqui não se incluem situações de abuso e de perigo à sobrevivência, que, muitas vezes, é preciso ajuda profissional para sanar. Essas lembranças são trazidas ao presente por um gatilho, algo que provoca uma reação emocional semelhante à vivida, mesmo que o evento não seja igual. O gatilho pode ser uma palavra, uma ocorrência, um cheiro, uma música que ativa uma memória. É preciso atenção a esse gatilho, porque ele dará dicas de como interpretamos a lembrança ruim. Para se livrar das memórias afetivas negativas, é preciso que a pessoa busque a verdade dos fatos e a sua contribuição na geração de efeitos negativos relacionados a essas lembranças. Há que sondar a intenção que mobilizou a pessoa, seja em forma de pensamento, atitude ou palavra. É preciso revisitar o ocorrido com olhar distanciado emocionalmente; ressignificar a lembrança e, assim, amenizar a carga emocional que a compõe. Alguns não conseguem fazer isso sozinho e precisam de ajuda profissional. Enquanto sondamos e damos novo significado ao passado, é preciso cultivar boas lembranças. A saudade nutridora é desapegada e gera gratidão. É aquela que revive sentimentos e sensações agradáveis de uma determinada experiência ou de um convívio. É saudade sem sofrimento. Ela preenche e

114


115 encoraja, por se saber que é possível voltar a ter experiências significativas e positivas. Em relação à memória, é preciso ter em mente duas coisas: o passado não volta nem se repete. Assim como estamos sempre mudando, os eventos que atraímos também não são iguais. Por essa razão, precisamos voltar a atenção para o presente, para construir novas lembranças e para nos abrir a novas chances de momentos felizes.

115


116

Perdoar para ser feliz Você já pensou que o perdão diz respeito a você e não ao outro? Um dos maiores desafios ao ser humano é exercitar o perdão. Quando o coração é ferido, outras emoções são atraídas pela mágoa e ressentimento, quase que blindando o acesso à cura. Há, ainda, a crença, alimentada pelo orgulho, de que perdoar é sinal de fraqueza, e há o receio de que o outro volte a ferir. As afirmações a seguir ajudam a mente a se abrir para o perdão. A primeira delas é a de que Deus não perdoa, porque Deus não se ofende. Deus conhece cada um de seus filhos e os sonda a toda hora, em sua caminhada para a evolução; sabe que o destino humano é se voltar para Ele; sabe que a essência do indivíduo o convoca a sair do erro, mesmo que ele não escute; sabe ainda que quanto mais se distancia Dele, mais torna-se insuportável Sua ausência e mais perto se está do retorno. Para perdoar não é preciso arrependimento do ofensor, assim como libertar-se do erro não depende do perdão da vítima. Não perdoar importa em manter-se atrelado negativamente ao infrator, perpetuando o sofrimento. A maior vítima do ressentimento é aquela que o alimenta. O julgamento do ofendido está comprometido pela mágoa, por essa razão não considera se o ato nocivo foi intencional e consciente; também não avalia a sua própria contribuição para o resultado prejudicial. O perdão diz respeito a quem perdoa e não à atitude de quem é perdoado. Perdoar é um ato de libertação. Admitir e arrepender-se do erro, também. Por que é preciso perdoar para ser perdoado? Porque qualquer um é passível de erro e muitas vezes a vítima já praticou o ato que condena. Perdoar é o reconhecimento de igualdade na falibilidade. Por outro lado, pedir perdão é um exercício de humildade e de autorresponsabilidade. O erro é uma violação às leis universais divinas; alimentar a mágoa e ressentimento, também. Errar é uma condição inevitável do aprendizado. Para que a ordem se restabeleça, é preciso o reconhecimento do erro e o arrependimento sincero. Vai mais além, é preciso se mobilizar em direção à reparação, que pode ser feita junto à vítima, se ela o permitir, ou praticando boas ações. O verdadeiro arrependimento é aquele em que se toma a decisão sobre mudar de atitude e seguir nessa direção. Reconhecer o erro não acarreta mudança imediata. A mudança é um processo de renovação de pensamentos e crenças e de rever hábitos e condicionamentos que requer tempo. O perdão não resulta em esquecimento, porque não se pode apagar da memória eventos afetivos significativos. Não é reconciliação, porque não importa em restabelecimento da confiança e do convívio. Não é dar nova chance, é apenas libertar-se da mágoa e ressentimento. Para que haja a reconciliação e que seja dada uma chance para o relacionamento, é necessário que as duas partes admitam sua contribuição no erro e que se disponham a

116


117 mudar de atitude. Quem perdoa pode e deve autopreservar-se daqueles que perseveram no erro. O perdão é a condição indispensável para ser feliz, porque liberta o peso do coração. Autoperdoar-se não é o mesmo que ser indulgente com seus próprios erros. É liberar-se da culpa paralisante, aceitar a falibilidade e ativar a força para a reparação do mal e a correção da conduta. Assim como a mudança, o perdão também não é instantâneo. É um processo que começa com a escolha e intenção em dissolver a mágoa e o pedido de ajuda às forças superiores para a superação das resistências autoimpostas.

117


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook

Articles inside

Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.