1 Virgínia Leal
RELICÁRIO DOS HOMENS
Olinda, 2020 Contato: vblealster@gmail.com Outros livros da autora, disponíveis no blog www.poemasleal.blogspot.com • O Caleidoscópio da Vida • Fênix • Contadora de Estrelas • Para Quem Não tem Colírio Revisão: Ícaro Weimann Aguiar e Estela Carielli de Castro Capa e ilustrações: Erick Bruno Bastos Barros – erickbrunobb@gmail.com
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Quando escrevo, foco no outro, por ser mais fácil me ver em meu reflexo
3 1. Prefácio 2. Relicário Dos Homens – Resgatando A Sabedoria Ancestral 3. A Mitologia Africana e o Imaginário Brasileiro 4. ATRIBUTO HEROICO 5. A Jornada Heroica 6. A Maldição de Medusa 7. Individuação Ou Individualismo? 8. O Marco Natalício 9. Os Quatro Temperamentos 10. Equilíbrio 11. Liberdade Versus Limite 12. O Homem de Bem versus Homem do Bem 13. Pandemia – Por quê, Para quê e de Quem É a Culpa? 14. Minimalismo em Tempos de Pandemia 15. FORÇA COMBATIVA 16. Ativando a Energia Combativa 17. Agressividade – Coragem ou Covardia? 18. Impotência 19. Polêmica por Polêmica 20. Imaginação, Suposição e Fantasia 21. Paciência em Tempos Instantâneos 22. Política E Cidadania 23. A Era do “Achismo” 24. Sobre o Idoso Infantilizado 25. O SELF SELVAGEM 26. A Reconexão com o Self Selvagem 27. A Mulher Búfala 28. Ser Mulher, por Ela Mesma 29. A Mulher em Construção 30. O Chamado 31. A Emancipação Sexual Feminina 32. A Mulher Longeva, por Ela Mesma 33. O Ingresso no Ciclo da Anciã 34. A Busca do Masculino Sagrado 35. Justiça Ideal e Real 36. Separando O Que Você Faz Do Que Você É 37. O Eu e/ou o Outro 38. Autoestima Na Vida Madura 39. Morar Só: Prazeres E Agruras 40. O Que Você Vai Ser Quando Crescer? 41. Qualidade de Vida e Pulsação da Criança Interior 42. A Criança Ferida 43. Solidão e Convivência 44. Quem Tem Medo da Morte? 45. O Medo da Perda e o Apego 46. O Silêncio que Separa 47. POTÊNCIA DA MAGIA 48. Magia – Fantasia ou Realidade? 49. As Coisas Não São O Que Parecem Ser 50. Tempo de Falsos Profetas 51. Deus Customizado
4 52. Maya e O Barba Azul 53. A Louca Lucidez 54. Devaneio e Vida Concreta 55. As Mulheres Entendem os Homens? 56. Amor Romântico versus Intimidade 57. DIVINDADE 58. A Caminho da Sabedoria Feminina 59. Maturidade 60. Amor Fraterno 61. O Amor em seus Múltiplos Prismas 62. Afetos e Desafetos 63. O Que nos Transborda? 64. O Que nos Atrai? 65. Ansiedade e Desejo 66. Expectativa e Frustração 67. Melancolia 68. Esperança 69. O Choro Cura 70. Paz e Felicidade Possíveis 71. MUNDO EM CRISE 72. Em Nome da Liberdade e do Prazer 73. A Imprevisível Reação à Crise 74. O Mundo Caótico do Pacto Rompido 75. A Ameaça da Desigualdade Social 76. As Vias Tortuosas do Antipensamento 77. Mundo de Ilhas Humanas em Rede 78. A Derrocada do Sistema Patriarcal 79. Responsabilidade e Pertinência 80.MUNDO SENSÍVEL 81. Espaço Determinado em um Universo Infinito 82. Espaço e Memória Afetivos 83. Sombra e Luz 84. No Território Sensível 85. O Corpo Físico e suas Formas 86. O que o Corpo Emana 87. O Corpo como Expressão da Alma 88.O Eterno Continuum do Agora 89. No Tempo Fora do Tempo
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Prefácio Apresento este exercício mental, permeado de sentimentos, coletânea de temas, inserção do velho no novo. Costuro a reflexão com a linha da espiritualidade. Sigo o caminho do autoconhecimento em bases firmes do Pathwork. Trago a sabedoria ancestral das histórias, lendas e mitos como ponto de partida para alicerçar as ideias que tento inovar. Busco respostas viáveis para minha existência. Começo por um mito reinventado. Estamos vivendo a repetição do equivalente ao fenômeno mitológico conhecido como “queda dos anjos”. Em todo o planeta, alguns formadores de opinião escolheram se distanciar de Deus e suas ideias encontraram adesão nas mentes influenciáveis e de caráter fraco. Ao se formar a massa crítica, o mal emergiu e agora vive em plena luz do dia, onde pode ser visto e curado. Ao vir à superfície, liberou as correntes subterrâneas do inconsciente para a benfazeja atuação da potência da luz. A tarefa dos trabalhadores do bem é contribuir para a formação da egrégora exitosa na restauração da ordem divina, em colaboração com os seres celestes. Cabe a cada um descobrir e executar sua tarefa dentro do Plano de Salvação. A minha é colher do meu acervo interno reflexões que estimulem as pessoas a se questionarem em que ponto estão no caminho do resgate ou aperfeiçoamento das virtudes humanas e os valores divinos. Vejo-me como uma buscadora da verdade. Tenho por meta e prática o aprimoramento pessoal em todas as dimensões, da física à espiritual, do mental ao psicológico. Procuro viver em coerência com os princípios, valores e virtudes que adotei. Vivo o processo de autopurificação dos erros e defeitos de que tomo consciência. Ilumino o que em mim está oculto. Sou sensível e analítica. O que escrevo é resultado do que apreendi nos encontros e desencontros, afetos e desafetos que vivi. Sigo em experiências que me conduzem à trajetória da sabedoria. Faço da escrita meu propósito de vida, a forma de contribuir assertivamente com o todo. Não procuro seguidores, pretendo sacudir a inércia e a apatia com o estranhamento do que digo. Quero instigar, afetar e estimular a criação de ideias originais. Essa é minha tarefa, esse é meu papel. Como qualquer ser humano, a verdade que defendo é relativa, provisória e fruto de minhas observações e reflexões do momento, despretensiosa como deve ser um ponto de vista. Que o Relicário dos Homens que ofereço possa beneficiar quem escolher nele adentrar.
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Relicário dos Homens – Resgatando A Sabedoria Ancestral Os arquétipos, ou modelos de ideais humanos que foram sendo incorporados à psique ao longo de todas as gerações de nossa espécie, constituem o que Jung chamou de INCONSCIENTE COLETIVO e formam a base de como pensamos, sentimos e de nossas reações características. Desde que o mundo é mundo, as histórias dão significado e sentido à existência humana. Em tempos remotos, elas eram transmitidas oralmente, de geração a geração. Constituíam um acervo de aprendizado, uma tentativa de entender o mundo, o ser humano e sua trajetória na vida. O contador de histórias era o catalisador desses ensinamentos, ao conduzir os ouvintes à dimensão mitológica de imagens, cenários e personagens. Contribuía, assim, para a formação do caráter e a forma de estar no mundo. Era ele o arauto dos ensinamentos construídos ancestralmente. Essas figuras imaginárias eram o referencial de valores éticos e estéticos e virtudes humanas e inspiravam o aprimoramento pessoal. O hábito de contar e ouvir histórias por muito tempo foi esquecido, até ser resgatado pelos novos contadores que retomaram essa tradição. Por outro lado, as histórias passaram a ser transmitidas também através de outras mídias, como contos literários, peças teatrais, filmes e desenhos animados. Grande é investimento cinematográfico para recontar e ressignificar as histórias da tradição oral, as lendas e mitos, a exemplo de “Espelho, Espelho Meu”, “Enrolados”, “Branca de Neve e o Caçador”, “A Garota da Capa Vermelha”, “Harry Potter”, “Senhor dos Anéis” e tantos outros. Muitas são as animações de conteúdo reflexivo e existencial, dos quais destaco “Soul”, da Disney. Todo esse interesse, que resultou em muitos sucessos de bilheteria, não é sem razão. Os parâmetros foram deturpados, substituídos por estereótipos, clichês que falseiam a verdade. A verdadeira fonte de inspiração e motivação foi esquecida. Atualmente, as expectativas sociais são baseadas em conceitos distorcidos e contraditórios. A humanidade tem fome de histórias que tragam ao seu convívio os heróis e suas façanhas. A história contada de forma oral estimula a capacidade de imaginação inventiva e criativa das pessoas. A imersão na história desperta os potenciais inatos do ser humano e a atualização desses modelos norteadores da conduta. Vivenciar (na psique) o herói e o enredo da história, reconhecendo, identificando e ativando a força, a potência, a energia desses arquétipos, faz deles uma poderosa ferramenta de crescimento pessoal.
7 A história convida a uma escuta que não passa pela trava da mente, mas pelos escaninhos do sensorial, do sensitivo, do intuitivo. Convida à imersão na dimensão mitológica. Este relicário contém a magia sensível tanto a crianças quanto a adultos. É tempo de bebê-la para interiorizar as virtudes que conduzem o indivíduo a seu aprimoramento diário.
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A Mitologia Africana e o Imaginário Brasileiro Segundo Carl Gustav Jung (1875-1961), o Arquétipo Self é o princípio organizador da Personalidade, sendo o principal Arquétipo do Inconsciente Coletivo. Evandro Rodrigo Tropéia A composição étnica brasileira tem forte componente africano. Por muitas gerações, na origem da constituição do nosso povo, fomos criados na presença dessa cultura. Faz sentido supor que recebemos influência próxima através das histórias contadas em segredo por amas de leite. Dessa forma, a mitologia africana diz mais respeito à nossa cultura que a grega. Ela integra o imaginário, compõe o inconsciente coletivo e forma a visão de mundo do brasileiro, ainda que o racismo tente rejeitá-la. Isso explica o interesse, o fascínio e a atração que os orixás exercem, até mesmo nos cristãos que foram educados a rejeitarem religiões pagãs. A mitologia antecede o cristianismo e estrutura a psique. Por ser a cultura africana mais antiga que a grega, suas raízes ancestrais remontam a eras anteriores à civilização e, assim, seus arquétipos constituem o self mais primitivo. Aqui abstraio o componente religioso e foco no arquétipo como elemento determinante à constituição da personalidade, que é o que me interessa. Enquanto o panteão grego é formado por deuses e deusas civilizatoriamente condicionadas, a mitologia africana é regida pelos orixás, entidades que trazem todas as características humanas, de forma a uni-las com o divino. Tratam a sexualidade com naturalidade. A mitologia grega tem força por ter sido propagada mundialmente, enquanto a africana ficou circunscrita em sua região. Por representarem forças da natureza, os orixás são amorais, regendo-se pelos instintos necessários à sobrevivência. Essa base animal em conexão com a natureza, da qual nos distanciamos com o processo civilizatório, agora, mais do que nunca, é preciso resgatar, para a sobrevivência emocional e mental num mundo tão complexo, confuso e muitas vezes caótico. É hora de nos religarmos com esse self selvagem, arquétipo central organizador da personalidade, que irá nos revelar a linhagem de onde viemos e a força ancestral que nos sustenta.
O ATRIBUTO HEROICO Sem o atributo heroico, as invenções, o pioneirismo, o idealismo, as revoluções estariam órfãos. Precisamos da aparente insensatez para sair da mesmice. Precisamos da rebeldia para soltarmos as amarras que nos prendem ao pré-estabelecido, ao convencional, ao engessamento das ideias. Para libertarmo-nos das crenças equivocadas. Para Sermos.
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A Jornada Heroica O mundo em que vivemos, desnorteado pela inversão de valores que ganha espaço a cada dia, precisa resgatar as virtudes humanas, relegadas em alguma grota do inconsciente individual e coletivo. Hoje o indivíduo se move tendo por meta o dinheiro, que divide a humanidade em dois segmentos: os acumuladores de riqueza e os que a substituem pelo consumo. Onde há acúmulo e consumo não floresce a doação, a partilha e a solidariedade. É óbvio que uma organização estruturada pela deformação da ética e da justiça um dia iria desabar e é o que estamos vendo. Precisamos, com urgência, não apenas de um norte ou direção, mas de uma motivação capaz de nos tirar desse círculo vicioso. E isso só se dará ao se cumprir o propósito de aperfeiçoamento humano. Esse propósito naturalmente resultará numa sociedade mais pacífica e justa. O mito é o modelo de atitudes internas e externas estruturadas em virtudes e valores universalmente consagrados. É o ideal que inspira quem almeja ir além de suas aparentes limitações. Esses atributos são apreendidos pelas ações de personagens míticos, mais detidamente, pela figura heroica. O humano heroico não é detentor de nenhum poder sobrenatural; ele consegue seu objetivo pela potência de vencer os obstáculos. A jornada magnânima começa quando ele atende o chamado de seu propósito. Sua jornada é atravessada por adversidades e desafios. Ele os supera pelo exercício da resiliência. Resiliência que se ampara nos atributos que ele adquire ao longo do caminho. A lição principal da jornada do herói é a prática do altruísmo. O alcance de sua realização vai além de seus interesses pessoais. A jornada de bravura tem por desígnio compartilhar o aprendizado. A jornada heroica feminina na mitologia reveste-se de peculiaridades. Ela não enfrenta minotauros como a de Teseu, não empreende viagens inóspitas como a de Ulisses. As heroínas personificadas em Perséfone e Psique enfrentam desafios que aguçam a inteligência, a sensibilidade e a intuição na construção da sabedoria. Historicamente, a mulher foi despojada de seus atributos. A ela foi proibido o desenvolvimento do intelecto e o acesso profissional. O perfil da heroína concreta delineia-se pela busca de conhecimento em condições desafiadoras. A mulher lançou-se na vida lutando por seu lugar no mundo. A jornada da mulher foi e é a de despojar-se dos papeis impostos e lutar por ocupar lugares antes proibidos. Há relatos na história, no mundo inteiro, de mulheres que ousaram desafiar seus papeis. Dessa forma, além das qualidades atribuídas ao homem, a mulher desenvolveu outras para atender as exigências das ocupações e comportamentos definidos. Ao mesmo tempo, secretamente conquistou aquelas necessárias para sobreviver ao domínio e para encontrar saídas para emancipação.
11 A figura heroica mitológica é de um ser humano idealizado a instigar cada um na busca dessa potência, e isso só é possível ao resgatar, desenvolver ou adquirir virtudes humanas e assimilar os valores sagrados. Restabelecer a paz e a justiça social é premente. A tarefa de cada um é a de buscar os recursos internos disponíveis para facilitar a contribuição individual ao objetivo coletivo. Com Deus sempre no comando.
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A Maldição de Medusa Medusa é uma criatura mítica que transforma em pedra quem olha para ela. Representa o medo mais profundo do inconsciente. O mundo moderno petrificou o indivíduo. A toda hora Medusa mostra sua horrenda face, seja na forma de notícias trágicas e catastróficas, seja ameaçando de morte as pessoas. Imprevidentemente muitos a olharam de frente e endureceram seus sentimentos. Converteram o medo em vício da adrenalina. Tentam compensar a insensibilidade buscando estímulos artificiais das drogas. Para fugir da apatia da depressão ou da intensidade da ansiedade, aventuram-se na euforia artificial de encontros festivos efusivos. A exposição precoce da criança a situações e eventos que lhe causam impacto pode lhe causar o efeito Medusa. Esse tipo de medo coletivo gerado pela impotência traz sérias consequências psicológicas. Os pais dos jovens de hoje viveram por longo período sob a ameaça de o mundo se acabar com o acionamento de um botão, a chamada Guerra Fria. Certamente, esse medo real e impotente permeia o inconsciente coletivo e somou-se a outros vividos atualmente, como a violência doméstica e a falta de segurança pública. É um somatório de ameaças que se acumulam no inconsciente, entorpecendo os sentimentos como defesa para o medo. Assim, o medo vai cristalizando-se fisicamente, bloqueando o fluxo energético, convertendo-se em doença. Observa-se que as pessoas que conseguem preservar uma razoável saúde mental são aquelas que convivem com o medo. O medo precisa ser encarado aos poucos, de forma indireta, para não se sofrer o impacto paralisante. No mito, Perseu derrota Medusa olhando-a pelo reflexo do espelho, mas mesmo assim sua cabeça continuava petrificando quem olhava para ela. Isso quer dizer que é impossível destruir o medo, até porque ele é um forte aliado a nos sinalizar o perigo. O Mundo moderno é a Medusa a petrificar a sensibilidade humana; cabe a cada um soltar o medo retido. É preciso não olhar de frente para o medo, mas caminhar lado a lado com ele, para que não se vire zumbi.
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Individuação ou Individualismo? Não deixe que o ruído da opinião alheia impeça que você escute sua voz interior. Autor desconhecido Toda pessoa anseia por encontrar a própria voz, a expressão de quem é, aquilo que a distingue e a torna única. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar a necessidade de pertencer, de agregar-se, integrar-se, de fazer parte de uma comunidade ou de um grupo. Esses desejos caminham juntos e em geral surgem na adolescência. Nessa fase, tornam-se prementes tanto a necessidade de individuação quanto a de encontrar os pares. É difícil lidar com o conflito entre a autoafirmação e o impulso de interagir e inserir-se na coletividade. Nesse desafio, muitos sucumbem. Há aquelas pessoas cuja carência em destacar-se é tão forte que distorce o processo de individuação. Elas não chegam a encontrar a identidade, tornam-se pessoas exclusivamente voltadas para si e para a satisfação de seu querer egoístico. Abafam, assim, o elã de pertencimento. Esses indivíduos rejeitam a convivência, isolam-se de tudo que é coletivo, confundem individuação com individualismo. Por outro lado, os que sucumbem à urgência de pertencimento e de aprovação abrem mão do que lhe é singular. Eles perdem a noção de individualidade e acolhem a psicologia coletiva. São pálidas reproduções do pensamento e atitudes do grupo a que pertencem. Alguns defendem tão veementemente as ideias que adotam dos outros que creem que elas são suas. O caminho de individuação requer coragem e discernimento para separar o que é seu do que foi interiorizado dos pais, da escola, da sociedade. Separar sem rejeitar. Adotar de forma de forma consciente aquilo que lhe ressoa positivamente é um ato de sabedoria. Criar a partir dessas bases é necessário para atuar na comunidade. É preciso buscar as próprias tendências e inclinações que estão de acordo com sua forma de ser. É necessário buscar-se enquanto constrói a personalidade e o caráter. Reconhecer as semelhanças preenche a solidão da singularidade. Viver a autenticidade é um desafio porque, em geral, causa rejeição pelo temor dos outros do que é diferente. A individuação lembra a quem abriu mão dela que está vivendo uma vida falsa, uma reprodução do coletivo, e é por isso que assusta. Ser original requer persistência e determinação em ser fiel a quem se é, sustentar o passo na estrada solitária do original, qual o patinho feio, até, enfim, encontrar a sua turma.
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O Marco Natalício Enquanto alguns ciclos de vida são ansiosamente esperados, como o início da adolescência ou da maioridade, a proximidade de outros causa angústia, como o da fase adulta e da velhice. A data natalícia é um desses marcos, a lembrar o transcorrer do tempo e a situar onde cada pessoa se encontra dentro de suas próprias expectativas e metas. Esse tipo de pressão vive nos subterrâneos do inconsciente, causando reações várias, e intensifica-se quando o aniversário chega. Quem evita acessar o burburinho interno cerca-se de parentes e amigos e festeja. Outras pessoas sucumbem à tristeza, muitas vezes sem entender a causa. Na idade madura, essa sensação costuma apurar-se, porque muitas não veem perspectiva para futuro. A palavra aniversário vem do latim annus (ano) e vertere (voltar) e representa o retorno do indivíduo, a cada doze meses, ao dia em que nasceu. É a volta ao ponto onde começou sua trajetória, quando tem a oportunidade de renovar-se. É um momento que convida a desligar o piloto automático e avaliar as opções disponíveis. Nessa ocasião, tem-se a opção de revolver o passado e lamentar o que perdeu ou não conquistou. Também é possível escolher fazer desse marco um renascimento, o ensejo para reescrever a história que se quer viver, não importa que idade tenha. Para isso, convém refletir sobre o que deseja mudar e planejar nessa direção. Seguir em frente com otimismo, esperança e determinação. Estar pleno de gratidão por ter completado mais um ano de vida e por ter recebido uma nova chance. Esse, sim, é um bom motivo de celebração.
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Os Quatro Temperamentos Os quatro elementos da natureza também nos compõem, assim afirmam as tradições antigas. A filosofia nos categoriza em quatro temperamentos, a partir dos elementos terra, água, fogo e ar. Traço aqui algumas características fruto de minha observação. A pessoa em que predomina o elemento água, chamada de fleumática, experimenta muitas emoções, embora possa aparentar indiferença. Costuma mergulhar em águas profundas, imersa em turbilhões de sentimentos, cuja intensidade aumenta à medida que vai mais fundo no inconsciente. Sua sensibilidade é uma lente de aumento que a leva ao pior e ao melhor dos mundos. Na dualidade, vivencia alegria e tristeza, intolerância e compaixão, amor e medo, euforia e depressão. É capaz de apagar o fogo, enfraquecer raízes e, junto com o ar, provocar tempestades. Esse elemento em equilíbrio move os anseios mais profundos, desperta encantamento na contemplação. Precisa da terra para dar foco e norte; o fogo para evaporar-lhe e trazer a volatilidade do ar, em oferta ao discernimento. O colérico ou do elemento fogo não revela sentimentos, é otimista e extrovertido. Seu lado sombra torna a terra árida, causa a ebulição na água e torna o ar sufocante. É impaciente, não permite a maturação das ideias e do aprendizado. Em harmonia, tem impulso, entusiasmo e tesão. Convida à inspiração e à aspiração, transmuta a resistência, a estagnação, o apego, a teimosia. Favorece ao desapego do que se precisa deixar para trás e soltar. Sem ele não haveria alquimia. O telúrico ou melancólico é sensível, aprecia a arte e é bom amigo. Pode ser pessimista e crítico. Descompensado, não nutre o espírito, alicerça-se na rotina. Domina o fazer, o concreto. Por ser excessivamente focado, perde a beleza do convívio e do trajeto. Tem dificuldade de sentir ou de expressar o que sente. Transforma a água em lama, é barreira para o vento, transforma o fogo em lava. Tende ao não movimento, ao status quo, ao lugar comum. E quando é premido a se mover, vira terremoto. Seu prazer está na produtividade, na realização. Tende à aridez, ao materialismo. Precisa do etéreo ar para sonhar, das ondas da água para sentir, do calor do sol para ter clareza. Em seu eixo, é empreendedor, tem resiliência, tenacidade e perseverança. É o leito do rio, o eixo do fogo e a base do ar. É voltado para as necessidades materiais e para a sobrevivência. O sanguíneo ou do elemento ar é espontâneo, extrovertido e alegre. Hipervaloriza a mente; seu prazer está em idealizar e sonhar. É volúvel e resiste a concretizar o sonho. O mundo dos pensamentos o protege de sentir. Remove a terra sem dar-lhe destino, provoca tsunamis, apaga o fogo. Precisa da terra para lhe dar rumo, da água para sentir e do fogo para lhe transformar. Em sua natureza pura, é movimento, criação. Colhe no repositório universal as ideias que dão sentido à vida e impulsionam o desenvolvimento humano e do mundo em que vive.
16 O indivíduo é sugestionado por todos os elementos. Nenhum pode ser alijado, todos precisam interagir em harmonia para o desenvolvimento das potencialidades inerentes à estrutura humana como as de pensar, sentir, transmutar e realizar. É assim que penso, é assim que sinto.
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Equilíbrio O símbolo do equilíbrio é a balança. Ela está a eixo quando os pesos de cada prato são idênticos. O eixo é o centro, a referência da constância. A balança humana é mais complexa, com mais variáveis a se considerarem. O centro é o ponto de estabilidade para onde convergem todas as características que compõem o indivíduo. O ser humano é inacabado, sempre em formação. Assim, a balança oscila de acordo com o grau de desenvolvimento de cada aspecto e do tempo que é dedicado distintamente. Dessa forma, haverá apenas momentos em que a balança humana está a eixo. E isso se dará pelo empenho e dedicação para que esses elementos se equivalham. O pêndulo interno transita entre polos e o indivíduo identifica-se com cada fronteira onde se encontra. Dessa forma, ignora o outro polo ou o vê como oposto. A firmeza está no contrapeso entre pensar, sentir e agir; trabalhar, descansar e divertir-se. Ver os extremos como complementares, a alegria da tristeza, a excitação da calma, o amor do medo, a dor do prazer. Na dualidade, a percepção vem do contraste. Deve ser dada igual importância e dedicado tempo proporcional a cada setor da vida, a exemplo de trabalho, lazer, saúde, sexo, espiritualidade etc. Quando se fala de proporcionalidade, precisa ser considerado o nível de maturidade de cada estrutura interna e da relação delas com cada segmento da vida. O esforço no investimento e o tempo dispendido a cada um deve ter isso como referência. O centro é o ponto luminoso ou a essência do ser. Para acessá-lo, é preciso atravessar a sombra representada pelos aspectos defeituosos ou viciados, e o caminho para atingi-lo é tomando consciência deles e aprendendo como atuam no cotidiano. Necessário se faz integrar ao presente o passado e o futuro, trazer a consciência mental, psicológica e emocional para o instante e para o evento nele inserido. Ativar a qualidade observadora para trazer clareza do que acontece consigo próprio e com o entorno. Ao derramar luz sobre o que está oculto, é possível remover obstáculos para acessar a essência. É um exercício a ser praticado nos acontecimentos mais corriqueiros do dia a dia, basta tomar a decisão de assim proceder. Equilíbrio é o constante movimento rumo ao bemestar, à felicidade e à harmonia nas interações, tendo o amor por fio condutor.
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Liberdade Versus Limite A presença do mito na psicologia do homem dito “moderno” é fato fundamental ao qual Jung sempre retorna em seus trabalhos. Na obra “O homem arcaico” (obras completas, vol. X) Jung demonstra exaustivamente como o homem dito “primitivo” está presente no homem considerado “moderno”. As idéias míticas também estarão presentes em meio à sofistificação da sociedade complexa atual. “Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo” – Walter Boechat (organizador) Todos ansiamos pela liberdade sem restrições e regras. Queremos autonomia de expressão, da sexualidade, do que fazer e do que e como pensar. Como crianças, desejamos falar e agir sem consequências. Não queremos limites. Precisamos refletir sobre o que de fato é liberdade. Ao falar impensadamente, estamos aprisionados ao voluntarismo, às emoções descontroladas. Ao atuarmos imprevidentemente, somos cativos do egoísmo e da inconsequência. A liberdade de pensar requer manter a mente aberta, para não ficarmos encarcerados em ideias engessadas, em um mundo que não se expande. Então, afinal, o que é liberdade? Reflitamos. Podemos satisfazer a vontade desde que o discurso e a atitude tenham passado pelo crivo do bom senso e da compaixão. Há uma máxima jurídica que define bem liberdade: “O nosso direito termina quando começa o do outro”; parafraseando, eu digo: “nossa liberdade termina quando começa a do outro”. A supremacia do coletivo sobre o individual existe para que nós, seres gregários, possamos conviver em paz e em harmonia. No âmbito individual goza-se de liberdade relativa: escolhe-se a profissão, a moradia, as amizades, o cônjuge. Mas é forçoso respeitar os limites correspondentes. O da profissão é o código técnico e de ética; o da casa é observar os direitos de vizinhança e as normas de obras; existe uma regra de boa convivência que não se deve ultrapassar com as amizades e com a parceria de vida, sob pena de se empurrá-las para longe. Pode-se exercer a liberdade sexual, mas não se devem negligenciar os cuidados higiênicos e de saúde. O falar é livre, mas não se infringem impunemente os limites do respeito, do cuidado com os sentimentos do outro e da verdade. Convém entender que tudo que se pensa, se sente, se diz e se faz tem consequências. Há muita verdade no ditado que diz: “a semeadura é opcional, mas a colheita é obrigatória”. O individualismo nos priva do melhor que há no ser humano, que é a fraternidade. Somos seres sociais, não podemos prescindir do convívio e, se não quisermos viver isolados, precisamos transitar nesses universos coletivos respeitando o direito do outro, a diversidade de pensamentos e a maneira de ser. Limites, nada mais são do que a demarcação do que é permitido fazer ou dizer e o que não é. Impossível viver em comunidade sem eles.
19 Limite é a configuração que determina a forma de estar em grupo. É o que dá contenção ao excesso, é o que delimita o território de manifestação de poder, que vai do âmbito pessoal ao comunitário. O limite potencializa o que está circunscrito e dá contornos para que não se transborde sobre o outro. O limite demarca e legitima as liberdades individuais. Assenta o espaço interno ou externo de exercício da liberdade. Não há liberdade sem limites. Ao contrário do que ordinariamente se pensa, o limite não separa, não isola, ele favorece a união. São fronteiras que desenham a liberdade e permite o livre trânsito dentro do próprio território. Só é livre quem faz escolhas conscientes, sabendo e aceitando as consequências. Liberdade importa em autorresponsabilidade, em dar, receber e dar-se limites. Em saber lidar com as restrições necessárias. Precisamos olhar as restrições como um bem necessário, não como uma privação. E entender que liberdade e limites não são valores incompatíveis, e sim complementares. Eles são expressões de maturidade e um exercício de compaixão e amor.
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Homem de Bem versus Homem do Bem Muitas vezes haverá confusão entre os arquétipos e os estereótipos ou papéis. Ambos são modelos. O primeiro, no entanto, é uma matriz original, uma forma ou um padrão, enquanto o segundo é um conhecimento simplório ou mascaramento, que pode ser ou não um reflexo do arquétipo. As imagens, os símbolos, apresentam-se em mutações, mas o dinamismo arquetípico permanece como centro e se expressa no corpo, nas emoções e nos comportamentos. “Mulher: Feminino Plural” – Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro O conceito de homem de bem, assim atribuído ao ser humano, varia de acordo com o pensamento filosófico, religioso e político e, ainda, com a época histórica e com a cultura em que se está inserido. Nos tempos de hoje, observase o uso deturpado dessa expressão, emprestada para agraciar pessoas afinadas com a conduta reprovável daquele que o qualifica. Assim, se vê a usurpação de valores universais, para justificar atitudes que lhes são contrárias, valores que não se encontram em ressonância com a conduta do usurpador. A defesa de valores desacompanhada da interiorização e da prática é hipocrisia. Para não haver confusão com essa expressão deturpada, é preferível a de homem do bem. Para se saber quem é homem do bem é preciso observar-lhe o caráter, a natureza, o jeito de ser, esse conjunto de características que determinam a individualidade e constitui a singularidade. O bom caráter que espelha o homem do bem é desenvolvido no seio familiar, a partir da assimilação de virtudes que ali são praticadas. Se o referencial for deturpado, é provável que o caráter será. Valor é o balizamento do pensar, sentir e fazer; é o referencial moral e espiritual na formação do indivíduo, a exemplo de justiça, fraternidade, liberdade e integridade. A introjeção ou não desses atributos, convertidos em virtudes determina a índole, inclinação e tendência individual. Delas destacamse fortaleza (resiliência), temperança (moderação), fé, esperança, caridade e amor. A formação do homem do bem independe de escolaridade, nível econômico ou cultural. Ele é dotado de qualidades e de disposição em praticá-las em seu favor e a serviço do próximo. O que se observa é que muitos seguem esses parâmetros como resultado da força repressora das regras de conduta social e por receio de punição, enquanto sua natureza toma outra direção. Agravando essa situação deletéria, quem não tem uma boa formação de caráter sofre influência do meio. O meio, por sua vez, reflete a soma das individualidades desestruturadas, formando um grande círculo vicioso. Mesmo diante desse quadro, não se pode falar de determinismo ou fatalidade; o ser humano é dotado de liberdade de escolha, e basta tomar consciência e a decisão de mudar o passo que encontrará o ponto de ruptura desse contexto viciado e começar uma nova jornada em busca de suas íntimas e ocultas aspirações. E trabalhar para ser verdadeiramente um homem do bem.
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Pandemia – Por quê, Para quê e De quem É a Culpa? Em momentos de crise dramática, como é a de uma pandemia, é natural a mente buscar respostas, tentar entender o que acontece. A pergunta mais comum seria “por quê?”. Essa pergunta remete ao que deu causa à contaminação e a como o vírus surgiu. Alguns trarão explicações ecológicas, como o desequilíbrio provocado pela intervenção perniciosa humana na natureza; outros dirão que decorreu de um acidente científico ao se estudar o vírus; há ainda quem evolua para razões morais, como excesso de egoísmo e ganância. Segue-se a próxima pergunta, que seria “para quê?” Há quem se alie a teorias da conspiração, a exemplo de uso de arma biológica com a intenção deliberada de controle populacional, com a extinção focada nos pobres e desterrados; muitos acreditam ser um ato divino para corrigir a conduta humana. Por último, a pergunta mais frequente é “de quem é a culpa?”. Aí começa a caça às bruxas, onde apontam-se dedos para uma determinada pessoa ou grupo, incitando o ódio. Na confusão de sentimentos que turva a lucidez e onde o medo predomina, cada um encontra uma forma de lidar com essa turbulência interna. Uns apostam na cura pela ciência, outros refugiam-se na fé e muitos alienam-se do perigo negando-o, ou entregando-se a ele, vivendo como se cada dia fosse o último. Muitas são as respostas e reações e cabe a cada um escolher a sua. Eu prefiro acreditar que essa é mais uma crise que se repete na história humana. Crise que precisa ser enfrentada valendo-se de todo conhecimento possível acumulado pela experiência do passado individual e coletivo. Que precisa valerse da ciência, não só da medicina e da pesquisa, mas principalmente daquelas que estudam o comportamento humano como a psicologia, a sociologia e a filosofia. Destaque faço à ciência política, que, em ação articulada com os sabedores já apontados, pode encontrar soluções duradouras lidar com eficiência e eficácia a situações como essas, pandemias que tendem a se repetir com mais frequência. Particularmente, penso que, enquanto as pessoas não investirem em seu aprimoramento humano, seremos inaptos a lidar com desastres cuja solução dependa de uma ação conjunta, que exija solidariedade, compaixão e empatia. Para quem está no caminho do crescimento pessoal, esse é um momento ímpar para fortalecer resiliência e testar a sedimentação dos valores que constituem o caráter de cada um.
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Minimalismo em Tempos de Pandemia Minimalismo é um conceito que primeiro foi adotado pela arte que consiste em usar de recursos e elementos mínimos na criação. Essa tendência expandiu-se para a composição de ambientes até ser acolhida como estilo de vida. A proposta voltou a ter recente destaque diante das restrições impostas pela pandemia. A dificuldade de consumo de coisas e serviços e da prática de alguns hábitos possibilitou perceber o que há em demasia na vida de cada um. O conceito de minimalismo popularmente é traduzido pela expressão “menos é mais”. Entretanto, vai além, é a valorização de uma vida simples voltada ao bem-estar e felicidade. E o que seria uma vida simples? Dentro desse critério reducionista, é eliminar os excessos, é viver moderadamente, é ser comedido. Tal maneira de viver abrange a eliminação de hábitos compulsivos de toda natureza, desde o de compras, trabalho e exercícios físicos até o de submissão a estímulos exagerados, seja no uso das redes sociais, seja no acompanhamento de notícias, por exemplo. Há excesso também nas posturas e pontos de vista radicais, no descontrole emocional, na intensidade de sentimentos; excesso de preocupação, de pensamentos recorrentes, de medo, de atitudes apaixonadas e impulsivas. Onde existe excesso, há falta. Vivemos na ilusão de preenchimento. Para vivermos uma vida simples é preciso lidar com o vazio. Expandir e contrair, preencher e esvaziar são movimentos naturais tal como o inspirar e expirar no processo de respiração. A falta é uma condição inerente do ser humano na qualidade de indivíduo desejante. Essa é a razão do sofrimento ao tentarmos reter. Além disso, temos necessidades não supridas, algumas inconscientes, a mais premente delas atualmente é a da convivência. Entretanto, ao invés de identificá-las e aceitar a falta, é comum tentarmos provê-las por meio de substitutos insuficientes. De que adianta reduzirmos o consumo, termos uma casa clean, não sermos perdulários, se vivemos em exagero mental e emocional? Livrarmo-nos do excesso não requer renunciarmos aos desejos, mas focarmos nas necessidades. Importa criar critérios razoáveis e equilibrados de uso dos recursos disponíveis, tanto internos quanto externos. Exige eleger prioridades baseadas nos valores essenciais à vida, à convivência, a ser em vez de ter, ao afeto às pessoas e não ao apego às coisas. É uma mudança interna. Viver minimamente é um desafio a quem está inserido numa sociedade que induz ao consumo e aos excessos de toda ordem. É preciso ter senso de realidade do que é possível e saber cada passo dar, no ritmo de cada um, para uma vida mais equilibrada e plena. É uma nova forma de vida baseada na temperança.
FORÇA COMBATIVA 23
“A energia do Guerreiro preocupase com a habilidade, o poder e a exatidão, e com o controle interno e externo, físico e psicológico.” Rei, Guerreiro, Mago, Amante: a redescoberta dos arquétipos do masculino, de Robert Moore e Douglas Gillette.
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Ativando A Energia Combativa Em nós, há uma energia que sustenta a perseverança frente às adversidades, mantém o foco, pesa e pondera, sabe quando avançar e quando mudar de estratégia. O vigor do arquétipo combativo é feito de força e potência. Também reconhece quando deve recuar. É aquele que sabe a hora de seguir e a hora de repousar. Que está a serviço de algo maior que ele, maior que seus propósitos pessoais e que os desejos do ego. Sem o poder combativo, seríamos barcos à deriva, vulneráveis a qualquer vento. O principal atributo combativo é a impecabilidade, que não recusa, não se desvia do foco e seu tiro é certeiro. Nos dias de hoje, essa referência segue oculta, reprimida pelas regras sociais que a rejeitam, porque sua imagem foi estereotipada. Ela passou a ser sinônimo de belicosidade. Entretanto, a agressividade surge justamente ao tentar reprimi-la. Essa fonte pura de fortaleza foi esquecida e desvalorizada, perdeu-se a conexão com ela. Como força psicológica e emocional, o feminino está relacionado ao arquétipo combativo por outro viés. Tem a capacidade estratégica e de planejar, extrema coragem e ferocidade e proteção da cria; sabe a hora de esperar e de agir, tem perseverança e constância, capacidade de regeneração, de adaptar-se às circunstâncias; tem resiliência, resistência, compaixão, compassividade, empatia, cresce com o sofrimento, confronta o que é preciso e desvia do desnecessário. É gregária. É preciso coragem e disciplina para acessar os escaninhos internos para provar do manancial da essência. Mas, para o regresso seguro, o trânsito livre, é preciso que o Fio de Ariadne, ou a sabedoria do amor, conduza a figura combativa na viagem de ida e de volta, pois, dessa forma, terá clareza do percurso e do que aproveitar na trajetória. O fio dourado do amor tece o caminho na busca de si mesmo. Veste de proteção cada passo, dá guiança a cada encruzilhada, dissolve as sombras do medo, a inquietação pelo desconhecido e pelo que foi esquecido. Cada ponto cirze as fendas da ilusão e borda as experiências na costura da vida. A personagem mitológica segue serena do porvir por tecê-lo no agora. Penetra os recônditos mais distantes e ermos com a certeza do retorno seguro. Ela refaz os passos ao ponto de origem, ao fio da meada de onde tudo começa e termina, ao eterno continuum. O fio dourado do amor tece sua renda luminosa, faz-se porto seguro, farol que dissipa dúvidas e incertezas. Não há o que temer e a pessoa guerreira sabe disso.
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Agressividade – Coragem ou Covardia? A agressividade é uma atitude em relação à vida que estimula, energiza e motiva. Força-nos a tomar a ofensiva e sair da posição de “defesa” ou “manutenção de posição” diante das tarefas e dos problemas que surgem na vida. [...] A agressividade adequada, na hora certa – nas circunstâncias estrategicamente vantajosas para o que se presente, já é meia batalha ganha.... significa mudar de tática. [A agressividade] Significa uma flexibilidade de estratégia que vem de uma avaliação aguçada. [...] Rei, Guerreiro, Mago, Amante: a redescoberta dos arquétipos do masculino – Robert Moore e Douglas Gillette. Vivemos um momento em que a violência está aguçada em variadas formas, desde a física à psicológica, do confronto à forma indireta “pseudopassiva”. Por estarmos imersos nessa realidade, não conseguimos vislumbrar a agressividade sadia e positiva. Todo animal é dotado de agressividade e é ela que lhe dá forças para perseguir e alcançar a caça e que o salva em situações de perigo. O ser humano também é dotado desse instinto, hoje totalmente descontrolado e sem freio. É essa energia vital que o impulsiona a superar obstáculos, enfrentar desafios, lidar com o medo real e orientador ou imaginário. O mal está no que se faz com ela. Quando a criança começa a brigar, a bater, os pais ajudam-na a lidar com a violência praticando uma atividade em que possa “gastar energia”. As artes marciais, por exemplo, ensinam o uso correto dela. Hoje, as atitudes descontroladas predominam na maioria das pessoas, desde a compulsão ou o vício, a falar e agir sem pensar. Não se desenvolveu maturidade para lidar com um não, com o fracasso e com a frustração. Essas situações muitas vezes levam a fortes reações agressivas. Por outro lado, aqueles que reprimem a agressividade estão à mercê dela. A contenção leva ao transbordamento, que pode acontecer a qualquer momento e causar estragos incalculáveis. Coragem não é reatividade e nem é ausência de medo. O medo saudável é um sinal de alerta, deixa-nos atentos e preparados para enfrentar o que quer que se apresente. Coragem é a audácia serena de quem se preparou para o enfrentamento, diferente da aventura, que é irrefletida e impulsiva e está fadada ao fracasso. A agressividade impulsiva é movida pela covardia e pela crueldade. A agressividade saudável é corajosa e está a serviço das ações virtuosas, dá-lhes potência para cumprir-lhes o propósito. É uma postura de vida que estimula, energiza e motiva; tira a pessoa da estagnação, da passividade, impulsiona a sair da defesa e partir para o enfrentamento.
26 Os antigos, através da mitologia, trouxeram parâmetros de coragem a inspirar a humanidade, como a figura do guerreiro. Ele aceita riscos, baseados na observação e na perspicácia. Sem enfrentamento, especialmente de si mesmo, nada se realiza. Para que ele seja bem-sucedido é preciso acionar a potência agressiva e aprender como canalizá-la. A agressividade existe em todos; cabe a cada um escolher entre reprimi-la, expressá-la impulsivamente ou canalizá-la para o bem.
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Impotência Impotência é o sentimento que oculta ou nega a potência de que todos são dotados. É a incapacidade para a ação, seja interna ou externa. Ela pode ser real ou fruto da insegurança. Quando é real, é preciso render-se às evidências, reconhecer que o que se pretende importa em dar um passo maior que as pernas, que não se está pronto, que não é o momento ou ainda não se tem a habilidade exigida para enfrentar um determinado desafio ou circunstância. Ao agir assim, a impotência resolve-se em aceitação do que é, compreensão dos limites, de até onde se pode ir. Em outros casos, ao se constatar a superioridade do oponente, é de se esperar o surgimento desse sentimento, que pode desencadear uma reação em cadeia. Há quem caia no desânimo e na descrença, o que leva à vitimização. A vitimização desvia o foco do real adversário, acusando outras pessoas, até mesmo quem o ajuda. Tem quem fique revoltado e com raiva, o que leva à agressão e hostilidade indiscriminadas. Os que ficam indignados se perdem em queixas e reclamações tomam atitudes impulsivas para, depois, esquecer da situação, até nova onda de exasperação. Discórdias, críticas e acusações descabidas entre os pares tornam o ambiente fértil para enfraquecimento das resistências e é tudo que o opositor deseja para aniquilar o alvo de sua contenda. É preciso clareza, lucidez e bom senso para enfrentar grandes desafios, e, quando o problema é comum e coletivo, é necessária a união de forças e cabeças pensantes, além de uma atitude proativa na direção da solução. Tomar pé da situação, estudar todos os ângulos, definir estratégias e partir para a ação. Validar as pequenas vitórias, sempre seguindo adiante com determinação, coragem e persistência. Antes de tudo, é preciso vencer o inimigo interno, aquele que esmorece a pessoa, que fomenta os maus pensamentos e sentimentos e tolhe o discernimento. É preciso ativar a potência combativa, destemida e hábil que há em todos. Isso vale contra uma conjuntura social, política e econômica desfavorável, contra a atual e maior adversária da humanidade, a pandemia e para toda sorte de ameaças ao patrimônio e renda do indivíduo ou qualquer outro desafio. Creio no ditado popular que diz que “água mole em pedra dura, tanto bate, até que fura”.
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Polêmica Por Polêmica As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras. Nietzsche Polêmicas ou debates objetivam promover opiniões diversas sobre um tema, trocar argumentos sobre algo controvertido e é necessário para o avanço do conhecimento. O questionamento de teses já alicerçadas em vários campos da filosofia, da religião, da ciência e de outros saberes gera novas abordagens ou amplia e desenvolve as já existentes. Essa é uma atitude sadia, construtiva e necessária. É a oportunidade de mudança do “status quo”. Alguns autores clássicos, como Cícero e Santo Agostinho, deixaram obras polêmicas notáveis no campo da política e da religião, que servem de reflexão até hoje. Mas a polêmica hoje predominante é aquela em que não se ouve nem se considera a ideia do outro. Ao invés de persuadir, tenta impor, ao defender um ponto de vista, invalida o do outro, não se respeita a diversidade de pensamentos, não há compostura. Então, essa polêmica torna-se infértil e hostil, palavra cujo significado está mais próximo da origem dessa palavra – “polémicos” – agressivo, beligerante, e “polemos”, que, por sua vez, significa guerra. Nesse ambiente de “opinião formada” rígida e intolerante em relação à do outro, não há espaço para uma discussão construtiva em que o pensamento de um enriquece a abordagem do outro. E, com isso, o mundo das ideias se empobrece.
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Imaginação, Suposição e Fantasia É comum a pessoa bem-sucedida em qualquer área da vida ser alvo de admiração e inveja. Bem-sucedida de acordo com os critérios de cada um. Parece ter sido tão fácil, porque não se sabe que pessoas com potencial de realização têm a imaginação aguçada. E o que tem a ver imaginação, algo supostamente irreal, com realização, pode-se perguntar? Imaginação é “imagem em ação”, ou seja, é visualizar algo e atuar para sua concretização. E quando se dá forma, quando se modela a imagem, cada ferramenta, cada circunstância, cada pessoa necessária ao projeto surge e contribui com a realização. A imagem cria, a ação materializa. As invenções tiveram origem na imaginação, o pensamento concebível, capturado no campo sutil das ideias. Quando se diz que “quando desejamos algo, o universo conspira a nosso favor”, falta acrescentar que é preciso que esse desejo transcenda, vá além do pequeno eu e esteja em harmonia com a natureza das coisas e da vontade divina. É o que se conhece por sincronicidade: tudo se encaixa e tudo flui, porque é assim que deve ser. Alguns poderão dizer: “eu imagino, e nada acontece”. Isso se dá quando a vontade não envolve a imagem, quando não há disposição em criar. Quando o deleite do que se visualiza já satisfaz, a isso se dá o nome de fantasia. A fantasia é uma ideia que não se concretiza, um devaneio, ou por falta desejo, ou por estar dissonante do plausível, ou pelas duas coisas. Ressalte-se que não estamos falando da fantasia infantil, aquela que estimula e forma a imaginação da criança. Quando suposições a respeito de algo ou alguém acontecem, está-se fantasiando, porque cria-se com falta de conhecimento, com ignorância dos fatos. E quando a suposição leva à vitimização, isso diz muito a respeito de prepotência, de alguém julgar-se tão importante que todos querem prejudicá-lo, de desejar ser o centro da atenção. Por outro lado, a criação não deixa de se materializar, contrariando a vontade de quem quer ficar apenas na idealização. Há quem acabe acreditando na fantasia criada e se envolva num círculo vicioso que se perpetua, até se querer sair dele. A suposição é o julgamento despropositado e sem embasamento que quer continuar assim. A fantasia é um tipo de hipocrisia ao reverso, porque não se pretende agir em coerência com o que se pensa. Não se usa a visualização criativa a favor das mudanças que a vida impõe. Tenta-se cristalizar a corrente da vida e seus eventos, sustentando um mundo virtual que o isola da realidade. Assim, criam-se bloqueios que geram contenção e acúmulo e isso acaba por se romper, por se precipitar em acontecimentos desastrosos na vida. É preciso, então, refletir que pensar é diferente de entender e apreender, e não é igual a assimilar pela prática. Quem fantasia estará sempre preso no cais, vendo o barco partir, sem nunca desfrutar da viagem.
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Paciência em Tempos Instantâneos Um momento de paciência pode evitar um grande desastre Um momento de impaciência pode arruinar toda uma vida. Pensamento Chinês A velocidade vertiginosa com que se move o mundo contemporâneo é incompatível com o exercício da paciência. Repete-se o click várias vezes se ele não obedece de imediato ao comando. É preciso atentar que o mundo dos eventos naturais não segue o mesmo ritmo do universo tecnológico e virtual. Na relação empregatícia, que exige atingimento de metas, não se considera o ritmo de produção possível a cada empregado e isso resulta em adoecimento por agressão ao tempo natural de cada um. Quem já nasceu nesse momento acelerado tem mais dificuldade em entender e cultivar paciência. Paciência é paz na ciência. É a serenidade na turbulência da pressa. É o esforço em se manter em quietude, em não ceder ao impulso. É a ciência da época das coisas. A paciência decorre da compreensão de que a natureza tem o seu próprio ciclo. Ela respeita o tempo inerente a cada coisa, a cada evento, interno e externo. Não força a natureza das coisas. Quem é paciente tem domínio sob pensamentos e sentimentos que forçam a ação intempestiva. Aceita a realidade para não ser arrebatado pelo impulso inconsequente. Não se deixa afetar pela impaciência alheia, tem indiferença saudável a eventos externos que empurrem à antecipação em agir. Não se move pela turbulência interna, pela pressa que exige o imediato. O impaciente quer soluções rápidas e triunfo apressado. Revela insegurança, falta de confiança na própria capacidade de realização. Demonstra falta de fé nos processos da vida e não aceitação do tempo da criação. O apressado come cru e quente. O paciente suporta o sofrimento da espera da cura. Enquanto aguarda, não se concentra no que não depende de si, procura se distrair da causa da ansiedade. Confia na solução do que pôs em movimento, por entender que só a natureza sabe das estações de realização. A pessoa combativa tem a virtude da paciência. Possui a sabedoria da espera pela oportunidade, pela chance, pelo momento estratégico para a ação. Ele observa, entende e se prepara antes de agir. Assim como o pescador que lança o anzol e espreita o momento de içar. Entende que a fruta tem a época certa para nascer. Que há o tempo de semear, tempo de cultivar e tempo de colher e entre eles a espera. Não se pode apressar o tempo da criação. Há algo de surpreendente na paciência. Quem espera vê muitos problemas se resolverem por si mesmos. Observa a exacerbação suavizar até o momento certo da conciliação. Percebe o avanço progressivo e gradual na direção do resultado. Paciência é maturar a compreensão das coisas e das etapas de realização. É respeitar a pulsação e a cadência que lhe é inerente, é autocontrole. É vigiar o instante em que a luz mostrará o caminho, que pode não ser o que foi traçado.
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Política e Cidadania Muita gente acha que política é uma coisa e cidadania é outra, como garfo e faca, e não é. Política e cidadania significam a mesma coisa. Mário Sergio Cortella A palavra “política” tem sido aplicada em vários sentidos e contextos, o mais das vezes pejorativos. Confesso que não sou estudiosa da ciência política e por muito tempo me alijei da política partidária por não acreditar que essa forma humana de atuar pudesse, de fato, cumprir a função de estar a serviço da comunidade. Mas isso mudou quando a política, no sentido mais deletério, vem trazendo, de forma clara e ostensiva, prejuízo ao cidadão e, particularmente, à minha vida. Foi então que busquei observar, de forma isenta, como os atores do cenário atual no nosso país e no mundo vêm agindo, as tendências nocivas à comunidade e como estou inserida nesse cenário e exercendo a cidadania. Tenho interagido com pessoas que pensam como eu, para compartilhar olhares desapaixonados e, portanto, em busca da verdade e realidade dos fatos, de forma objetiva e apoiada nas provas que se puder colher, num contexto mais amplo. Para mim, o mais eficaz instrumento de escolha de quem queremos que nos represente é o voto. Mas a política que quero focar é a praticada pelo cidadão. O exercício da cidadania tem um campo amplo, que vai da educação social e coletiva, cujo princípio é o de mover-se dentro da comunidade em respeito ao direito dos outros, a atuar politicamente, ou seja, exercer um papel para promover o bemestar da comunidade. Nesse sentido, pode-se exemplificar a reciclagem de lixo ou de objetos inservíveis, ser síndico de um condomínio, fazer trabalhos voluntários, inseridos ou não numa instituição, tudo isso é política. Ao aceitar o convite para compor a chapa eleita da Diretoria Executiva de uma Associação de Aposentados, meu foco era exatamente estar a serviço dos associados. E nesse sentido, sinto-me realizada de estar contribuindo para o bemestar dessa grande família, cujos integrantes são também meus pares. Isso não quer dizer que eu ignore o que está acontecendo fora “das paredes” da instituição em que estou inserida. Mas desagrada-me sobremaneira o exercício político na forma de troca de ofensas e acusações, a mais das vezes sem bases objetivas, e exclusivamente alicerçada no “achismo”. Essa é uma política que não contribui para a alcançar o objetivo em si dessa prática. É desagregadora, alimenta a insatisfação e desvia o foco, pois não traz qualquer contribuição para a solução dos problemas e desafios a serem enfrentados. A minha base profissional de bacharela em direito não permite que eu saia da objetividade e relegue os princípios profissionais que apliquei ao longo da vida profissional e pessoal e nos quais acredito. Sim, sou idealista, mas acima de tudo tenho espírito cristão e acredito no potencial humano de se superar e de se organizar politicamente para criar
32 projetos eficazes em prol da comunidade. E o sucesso da gestão participativa dessa Instituição que integro, no fomento da colaboração e criatividade dos associados, é um exemplo disso. Mas sou também realista, ao perceber quando o oponente é maior do que eu e que não conseguirei a vitória batendo de frente. É preciso usar de diplomacia e usar os instrumentos de reivindicação. Ser cidadão vai além de colocar o voto na urna, é preciso exercitar a cidadania como um ato político, na melhor acepção da palavra.
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A Era Do “Achismo” Compreender que há outros pontos de vista é o início da sabedoria. Campbell Tempos estranhos vivemos. Momento em que muitos têm “opinião formada” sobre tudo. Os críticos de plantão não se demoram em trazer sua “palavra abalizada” assim que alguém se aventura a colocar-se sobre algum assunto ou tema. É a era do “achismo infundado”, do “não li e não gostei”. Sim, porque literalmente muitas vezes o comentário é lançado com base exclusivamente no título ou na resenha do que se contesta. Tivera lido o conteúdo, perceberia o despropósito da avaliação. O número de pessoas com déficit cognitivo só aumenta. São aqueles que não querem se dar ao trabalho, ou não desenvolveram a habilidade de interpretar apropriadamente um texto ou de entender o discurso e, ainda assim, despudoradamente, aventuram-se a dar sua nota, muitas vezes desqualificando o que foi dito ou escrito. Estão tão impregnados por essa atitude maléfica que muitas vezes nem percebem o que fazem. É um flagelo que atinge até as pessoas imbuídas dos melhores propósitos. É preciso muita vigilância para não se contaminar. Esse comportamento saiu do meio das ideias e invadiu a intimidade das pessoas. Agora não se reprova só o pensamento, rejeita-se igualmente o autor. E quando o “parecer” se torna público, rapidamente outros a ele aderem, igualmente precipitados em sua ação. Estamos na era da preguiça: preguiça de ler, de pensar, de se informar. Preguiça de pesquisar antes de postar uma fake news ou uma “análise” mordaz. Desleixo em se inteirar dos fatos, das circunstâncias, da autoria; indolência em procurar o embasamento científico, técnico ou legal. Negligência até de acompanhar as informações que ajudariam a tomar decisões conscientes na vida. Levianamente é derramado o veneno sobre os outros. Ninguém é poupado: o político, o artista, o religioso, o líder, qualquer autoridade, além de colegas, amigos e a própria família. Voltamos à Era das Trevas, do escarnecimento público e apedrejamento coletivo, do julgamento sem provas e da condenação sem critério. São juízes sem toga nem diploma, a detonar a honra, o caráter e a vida de muitos. Juízes que não consideram os antecedentes nem precedentes, nem o vínculo afetivo que têm com quem eles julgam. O rolo compressor passa por cima de todos, sem critério. Há um clima de insatisfação generalizada, um prazer mórbido, muitas vezes inconsciente, em reclamar, em depreciar o outro, não importa por quê, nem do quê, nem se tem razão. Essa atitude é a válvula de escape, a forma de esconder o sentimento de impotência e inapetência em lidar com as adversidades. Tão imersos estão nessa polarização, que não percebem que esse caminho foi
34 induzido de forma inteligente, planejada e premeditada por poderosos, para instalar o caos nas relações, disseminar discórdia e dividir as pessoas. Nesse ambiente, a capacidade de apreciar, contemplar, desfrutar, acolher é irremediavelmente contaminada. A atmosfera é permanentemente cinza, o ambiente é de desconfiança e calúnia, o meio, de descabida defesa. É “eu ou o outro”, e não “eu e o outro”. E é dessa forma que se caminha para fazer escolhas na vida, escolhas pessoais e escolhas que envolvem toda a coletividade, como é a do voto. Quem são essas pessoas que se dizem cidadãs e que não são capazes de separar o joio do trigo? Onde está a responsabilidade de um voto consciente? Agindo assim, esse instrumento de cidadania será mais um motivo de insatisfação futura. Insatisfação pelos julgamentos precipitados e sem embasamento. Reclamações que deveriam ser dirigidas a si próprias por sua escolha. Convém, então, refletir: Será que estão perdidos e enterrados o bom senso, o discernimento, a perspicácia, a ponderação? A humanidade está se tornando uma turba de autômatos e zumbis, hipnotizados por sua própria incapacidade de se ver, de ver o outro, de ver o mundo como realmente é? Perdeu-se o talento em acreditar, em sonhar, em ter fé na vida, na humanidade e até em si próprio? Há que sair desse lugar aquele que voluntariamente ali se colocou. A chegada pode ter sido inconsciente, mas a saída precisa ser uma decisão. Imprescindível ter força e determinação para superar a auto ilusão e persistência para sustentar o passo. É preciso invocar a energia combativa para trazer clareza de pensamento. Tenho esperanças de que chegará o momento em que a autoalienação dará lugar à sabedoria, que aqueles que hoje estão perdidos de si voltem à condição de seres pensantes, capazes de raciocinar. E que todos sejam dignos de se qualificar como Seres Humanos. Com Deus sempre no Comando.
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Sobre o Idoso Infantilizado Alguns estudiosos do assunto têm observado o comportamento infantilizado daquele que não acompanhou o desenvolvimento natural para cada idade e etapa e quando se tornou adulto não responde adequadamente aos desafios próprios dessa fase. Estamos falando de falta de amadurecimento emocional, em geral, decorrente da incapacidade dos pais em dar limites, em dizer não, por não saberem lidar com o “ódio” (leia-se rejeição) dos filhos ou por receio de perder seu amor. Pela falta de fé na capacidade dos filhos, não lhes incentivam a independência, fazendo tudo no lugar deles. Isso se constata em atitudes simples do cotidiano, a exemplo das reações desproporcionais ao ser contrariado, à paralisação num momento que exigia reflexo rápido, ao não se identificarem as reais situações de perigo. Essa pessoa ingressa na vida laborativa sem ter os recursos apropriados para convivência, para obedecer aos comandos e para se integrar a uma equipe. Vive todo o tempo contendo seus impulsos destrutivos por receio das consequências nefastas que poderiam levar ao desemprego. E, assim, infantilizado, continua agindo até à aposentadoria, símbolo para ele de libertação, de fazer “tudo que quiser” ou “não fazer nada”. Como não assumiu a responsabilidade por sua vida, delegada aos pais e, depois, ao empregador, agora procura um tutor na velhice e ingressa em associações e entidades de classe com esse espírito. A falta de limite entorpece o senso de realidade e agora exige dos representantes que façam tudo por ele, não importa se está ou não nos parâmetros do possível e do razoável. É a cultura do “faça por mim”, que vai desde não querer se atualizar tecnologicamente na forma mínima para interagir no mundo moderno a não contribuir com a parte que lhe cabe na defesa de seus interesses. Não se trata da decrepitude mental que se impõe de forma inarredável, mas da decadência decorrente da renúncia da vontade e do entusiasmo em estar vivo, da inatividade que pode levar à falência física. A infantilização leva o idoso a ter condutas próprias da criança, que quer do seu jeito sem considerar a necessidade dos outros; que quer agora aquilo que só se consegue a longo prazo; que quer sem medir consequências; que quer sem considerar nem respeitar a vontade dos outros; que quer sem ponderar a viabilidade do que pretende. Não alcança a maturidade porque viveu e vive regredido à infância ou à adolescência. Não atina que quem os representa também são idosos, com as mesmas dificuldades e limites da idade que ele e que só se diferencia por não ter aberto mão da autonomia. Essas pessoas se colocaram a serviço de toda a categoria, obviamente, dentro dos limites do que é razoável e possível. Dificuldades próprias da idade existem, a exigir ânimo de superação. Da vida ninguém se aposenta, viver é um trabalho contínuo que estará a cobrar de cada um enquanto houver vida. É hora de usar os recursos adquiridos ao longo da vida, ativar em si a energia combativa, da magia e da sabedoria para sair da
36 acomodação e se tornar a melhor versão de si mesmo, afastando, assim, o sentimento de inutilidade. Sempre é hora de se reinventar e de adotar atitude construtiva, contribuindo para o sucesso da atuação de quem o assiste, preservando a autonomia, levando sempre em consideração que o que é bom para um precisa ser bom para todos.
O SELF SELVAGEM Os Lobos saudáveis e as mulheres saudáveis têm certas características psíquicas37em comum: percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para devoção. Os lobos e as mulheres são gregários por natureza, curiosos, dotados de grande resistência e força. São profundamente intuitivos e têm grande preocupação para com seus filhotes, seu parceiro e sua matilha. Têm experiência em se adaptar a circunstâncias em constantes mutação. Têm uma determinação feroz e extrema coragem. Mulheres que correm com os Lobos – Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem, de Clarissa Pinkola Estés.
A Reconexão com o Self Selvagem
38 Muitas lendas antigas de diversas partes do mundo falam de uma Mulher Selvagem, cuja natureza é animal, que transita no mundo humano, mas sempre retorna a seu habitat telúrico ou aquático. Entre elas, há a mulher lobo, a mulher foca e a mulher búfala. Esse arquétipo da psique instintiva feminina equivocadamente foi associado à crueldade, à voracidade e ao perigo. A palavra selvagem representa o que não foi adestrado, domesticado, que não se submeteu ao poder civilizatório. É o que há de genuíno e primitivo na estrutura psicológica e que habita o inconsciente de toda mulher. É ela que guarda a sabedoria dos registros da vida na Terra, dos saberes da recepção da vida e do encaminhamento à morte, da maternidade e cuidados com a cria, da medicina das plantas. Conhece o manejo das energias da natureza, é guardiã dos segredos que ditam as fases lunares e sua influência sobre as marés e sobre os ciclos da fertilidade feminina e sobre os ciclos da vida. É aquela que penetra nos mistérios dos ciclos de vida, morte e renascimento. Ela é a força da natureza. A Mulher Selvagem é o poder do movimento natural, comparado ao precipitar das águas, ao rompante do raio, ao ímpeto das tempestades, ao giro dos furacões. Ela se revela no estalo dos trovões, no sussurro do vento, no farfalhar das folhas, no crepitar do fogo. Seu sopro, canto e dança restauram o que foi desfeito, desintegrado, desestruturado, volta a lhe dar estrutura e organização. Ela recolhe os ossos, os purifica, e pacientemente os vai montando, envolvend0-os de cartilagens e músculos, e lhes dá vida. Tem o poder de criar e destruir, faz a alquimia necessária à preservação da existência. A Mulher Selvagem é o self feminino, a natureza intrínseca às mulheres, o seu âmago. É aquela que sabe. Clarissa Pinkola Estés afirma que a compreensão dessa natureza é uma prática, uma psicologia no sentido mais verdadeiro: “Sem ela, as mulheres não têm ouvidos para ouvir o discurso da sua alma ou para registrar a melodia dos próprios ritmos interiores. Sem ela, a visão íntima das mulheres é impedida pela sombra de uma mão, e grande parte dos seus dias é passada num tédio paralisante ou então em pensamentos ilusórios. [...] A Mulher Selvagem é seu instrumento regulador, seu coração, da mesma forma que o coração humano regula o corpo físico.” A linguagem dessa dimensão remota é simbólica, apreendida pela percepção intuitiva, que se revela em forma de sonhos, pressentimentos, impressões, sensações, avisos, sincronicidades. Quando esses sinais são corretamente interpretados há uma convicção que reverbera internamente do que fazer, de como seguir, decorrente de um saber profundo. Nós, mulheres, precisamos resgatar o contato com nossa psique instintiva. Dedicar tempo em nossa vida para o recolhimento, distanciadas das demandas das pessoas e do mundo, restaurando a energia e a potência que nos é inerente. Ativar o potencial de desvendar o imagético, acessando a capacidade imaginativa e criativa. Nesse processo é indispensável voltarmos a entrar em contato e dar
39 vazão às fases de todos os ciclos de morte, vida e renascimento internos e externos da vida. Ao fazer desse ritual um hábito, há que ouvirmos o chamado dessa voz interior que nos é familiar e que nos convida a correr nas pradarias floridas e perfumadas de nosso ser, despidas de tudo que acumulamos, leves, livres, autênticas, espontâneas e genuínas, como é a natureza selvagem.
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A Mulher Búfala É vista quando há vento e grande vaga Ela faz um ninho no rolar da fúria e voa firme e certa como bala As suas asas empresta à tempestade Quando os leões do mar rugem nas grutas, sobre os abismos, passa e vai em frente Ela não busca a rocha, o cabo, o cais, mas faz da insegurança a sua força e do risco de morrer seu alimento Por isso me parece imagem justa para quem vive e canta no mau tempo Maria Bethânia Houve um tempo em que eu sonhava com frequência com búfalos em rituais de oferenda, o que me motivou a pesquisar sobre simbologia, que acabou me levando ao mundo dos orixás e até a Mulher Búfala, arquétipo com o qual me identifiquei. Essa é a natureza do meu self selvagem. Como deusa pagã, Iansã é um dos orixás cultuados em terreiros de Candomblé e templos de Umbanda em todo o país. A Mulher Búfala é a rainha dos raios, dos ventos e tempestades. De origem africana, ela representa o movimento, a força da natureza mais primitiva, que é brutal e violenta, mas também é dócil e singela. Sua personificação reúne um leque de atributos que, no panteão grego, são representados por deuses distintos. É guerreira dotada de grande beleza, amante, mãe, patrona do parto e rainha do mundo dos mortos. É, portanto, guardiã dos mistérios da vida-morte-vida e ajuda a lidar com a morte com naturalidade. Ela protege e destrói, concebe e mata. É a potência do instinto que o humano precisa liberar para adestrar. Ela representa força e audácia, liberdade e autonomia. As lendas de que é protagonista a retratam como amante e mãe de natureza instintiva, de sorte que não é afeita a vínculos. O búfalo é sua origem animal, considerado sagrado em muitas culturas nativas por representar abundância, pois quase tudo do seu corpo é aproveitado. Em tempos remotos e inóspitos, o búfalo se doava em sacrifício e oferecia a gordura para o aquecimento, a carne para nutrição, o couro para agasalho. Seu chifre a jorrar alimento é símbolo de fartura. É um animal pesado que tem a ponta dos chifres voltada para o céu. Carrega a força da oração e faz a ponte entre a terra e o céu. Esse aspecto animal feminino desenvolve no humano o senso de proteção coletiva. É o self telúrico associado à sobrevivência, que acolhe, alimenta e se doa, que oferece chão e sustentação e que ensina a sobreviver às intempéries. Ainda que seja um arquétipo feminino, permeia o inconsciente tanto do homem quanto da mulher. É um elemento da psique profunda cujos recursos são tesouros em tempos difíceis, pois fortalece a estrutura mental e emocional para responder às adversidades com maestria.
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Ser Mulher, por Ela Mesma Ao despir a mulher da formação familiar, cultural e social, ao despojá-la da estrutura biológica que lhe é própria, revela-se o ser espiritual que escolheu a existência feminina. Esse ser que recebeu camadas que escondem sua essência, precisou adquirir habilidades e criou estratégias para resistir ao julgo, preservando-se assim do olhar invasivo. Compensou a desvantagem física que não lhe favorece o confronto, com a astúcia, persuasão, acuidade, engenhosidade, perspicácia e sagacidade. Com tais habilidades travou batalhas secretas e obteve ganhos ocultos. Ao driblar a vigilância opressora, abriu caminhos para a emancipação e para a autoafirmação. Mesmo que ainda seja prisioneira de papeis sociais, seu espírito é e sempre foi livre. Em seu habitat, ela é uma força da natureza. A mulher pode agora acessar o seu âmago e recordar quem ela é. A duras penas conquistou o direito de definir-se, de descrever-se e de assumir seu lugar no mundo. E você, mulher, como se descreve?
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A Mulher em Construção [...] Como possibilitar a reconexão da mulher da contemporaneidade com seu self selvagem? [...] Primeiro passo nesse caminho é a conscientização da mulher acerca de sua condição no contexto do patriarcado, ou seja, a conscientização da aludida desconexão com o seu self selvagem. Patrícia Leal Solis – Corpos em Narrativas – Nos Caminhos da Análise Bioenergética – Organizadores: Izabel Medeiros, Michell Limeira e Vanessa Almeida Não creio que a mulher de hoje já está bem resolvida, já se delineou, tem uma identidade clara e sabe o que quer. Depois de ser submetida por séculos à ideologia masculina que a definia e que ainda permeia o inconsciente coletivo e individual de cada uma, não é um século de emancipação que reverterá em seu psicológico o massacre de crenças impostas, ideias preconcebidas e tabus que passaram de geração a geração até os dias atuais, pela educação de mães aprisionadas nesse contexto. A linha do tempo da sua história e de seu lugar no mundo vai desde ela ser considerada um apêndice do homem e, portanto, acéfala, sem ideia, vontade ou opinião próprias, que precisava ser protegida, orientada e conduzida pelo pai e, depois, pelo marido à elaboração de uma identidade que não a recepcionava enquanto mulher, mas como incubadora, reprodutora e educadora de filhos. O mito da mãe e rainha do lar nos assombra até hoje, a ponto de sentirmos culpa ao ocuparmos uma atividade profissional. Ainda que o anticoncepcional tenha provocado uma revolução na atividade sexual feminina, onde a procriação passou a ser uma escolha e ela pode explorar seu prazer, isso não afastou a crença de que a mulher só seria plena na maternidade. Hoje se veem mulheres confusas entre encontrar sua própria identidade e querer a manutenção de padrões antigos, incompatíveis com a atual realidade, como esperar do par atitudes românticas. O homem, no passado, usava recursos de sedução pela dificuldade que não mais existe agora de acesso à mulher para copular. Se a geração do feminismo incorporou o modelo masculino para se impor profissionalmente no mundo corporativo, a mulher no pós-feminismo já busca voz própria, embora algumas tratem de neutralizar a imposição masculina demonstrando desprezo à sua virilidade. São etapas naturais no processo de transição para a emancipação em todos os níveis. O que destaco de positivo é que a mulher atual já não se sente ameaçada pela suposta superioridade fálica, porque agora trabalha na apropriação de sua própria condição e de tudo que isso representa. Ela já consegue acessar a potência que lhe é própria e é capaz de dissolver o ranço que as máscaras e mordaças forçosas ainda lhe causam. É um processo de libertação que só é possível honrando as antepassadas que lhe abriram caminho enquanto se renuncia a viver-lhes os papéis.
43 Precisamos saber mais daquela mulher que existiu em uma sociedade igualitária, em que não se priorizava o bélico, mas o belo, a pilhagem não era cobiçada, mas os meios de sobrevivência pacífica. Era que foi suplantada pela erigida sobre valores patriarcais, mas que durou muito mais. É um sopro de esperança de que é possível uma convivência equilibrada entre homem e mulher, que agora pode se dar em novos parâmetros mais maleáveis e considerando as mesmas bases. Que cada vez mais favoreça o encontro entre o feminino e o masculino em suas variedades de estilo, não importa em que corpos estejam. A lapidação da identidade da mulher importa na sua elaboração como agente atuante nos vários setores da vida, do privado ao público. Requer em especial um trabalho arqueológico para encontrar a essência que lhe é própria.
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O Chamado Os apaixonados o definem como o roubo da alma, uma apropriação do espírito da pessoa, um enfraquecimento do sentido de identidade. Outros descrevem o fato como uma distração, uma ruptura, uma interferência ou interrupção de algo que lhes era vital: sua arte, seu amor, seu sonho, sua esperança, sua crença na bondade, seu desenvolvimento, sua honra, seus esforços. “Mulheres que Correm com os Lobos” – Clarissa Pinkola Estés A mulher quando está em seu estado natural observa os sinais internos a convidá-la a ora estar no mundo, ora voltar ao aconchego de sua alma. Percebe quando em si um ciclo termina e outro começa, quando algo deixa de fazer sentido, quando é hora de recomeçar. Sabe o tempo de agir e o de repousar. Muitas de nós já viveram a experiência de estar nesse lugar, ainda que por breves momentos. Por isso, preservamos a memória do que somos feitas e podemos a ela recorrer ao se fazer necessário. Quando a mulher se expressa a partir do self, quando ela está em harmonia com sua natureza mais profunda, sua energia é vibrante, o seu corpo pulsa vigor e pujança e isso encanta e afeta de várias formas os outros em seu entorno. Tão absorta fica em seus movimentos internos que muitas vezes se torna alvo de predadores. Isso se dá porque ela é seduzida por um desejo fantasioso que a distancia do anseio de sua alma. Pode ficar por muito tempo nessa ilusão autohipnótica, até começar a perder o viço, a alegria, o entusiasmo. Há um momento em que ouve o chamado de reconexão com sua essência. Algumas, de tão desmotivadas, não darão atenção a essa voz e só se moverão em direção a ela quando sua condição se tornar insuportável. Outras podem ainda não estar prontas para sair da inércia que de alguma forma lhes traz falsos ganhos. Aquela que atende à convocação começa a refazer o percurso de volta ao lar, não sem ajuda do divino que há em si e dos seres de luz visíveis e invisíveis disponíveis e à espera do seu pedido. Quantas de nós já refizeram essa trajetória na vida. Por mais vigilantes que sejamos, sempre há um momento de distração em que nos descuidamos de nós mesmos, nas formas de excesso de trabalho, ou quando permitimos demandas exageradas dos outros, ou nos envolvemos numa relação que nos suga a energia, entre outras, e assim vamos embotando nossos instintos mais aguçados de autopreservação. Às vezes isso se dá só porque não reservamos tempo nem delimitamos espaço para o autocuidado. Nesse processo de deixarmo-nos roubar nosso tesouro, demoramos a perceber o que ocorreu. À medida que vamos aprendendo com os erros, apuramos a percepção e aguçamos a visão. Haverá o dia em que, ao menor sinal de autossabotagem, essa voz interior será ouvida de forma tão intensa que nos perceberemos, entenderemos e confiantes permaneceremos no caminho de integração com o self selvagem.
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A Emancipação Sexual Feminina Ao abordar a questão da emancipação sexual feminina, tomo como referência a mulher que sou hoje, a partir da formação de minha identidade contextualizada. Nascida nos anos sessenta e adolescente alienada nos anos setenta, autodidata na elaboração crítica de ver o mundo. Isto porque estava inserida socialmente no tempo em que não havia internet e em que as notícias chegavam com anos, e até uma década de atraso. Não se tinha acesso ao que acontecia no mundo, entre outros motivos, por conta da censura imposta pela força repressora da ditadura. Meus pais, por amor e cuidado, mantiveram os filhos alheios ao que acontecia no próprio país. Assim, cresci inserida num lar pobre, educada por pais de formação secundária. Importante destacar que os níveis econômicos e culturais naqueles tempos tinham parâmetros diferentes dos de hoje. O pobre de formação secundária, pelo menos em minha casa, tinha acesso à alimentação suficiente e nutridora, e o ensino era levado a sério. Se de um lado me mantive alienada em questões políticas e sociais, de outro fui introduzida no universo literário que transporta o indivíduo para outras realidades e possibilita, não apenas o desenvolvimento da linguagem, mas principalmente a capacidade reflexiva. E é desse lugar que me aventuro a discorrer sobre o tema, deixando claro que é apenas um ponto de vista. Nesse contexto histórico, social, cultural e familiar, nós adolescentes não recebíamos educação escolar para desenvolver capacidade crítica, de sorte que quando o filme Hair chegou ao Brasil, e foi um sucesso de bilheteria, provocou uma revolução na moda, pelo modo inusitado de se vestir dos hippies, suas músicas eram o hit do momento, além da introdução de drogas entre nós. O movimento feminista era algo de que se tinha notícias esparsas, e o jornalismo censurado não dava destaque a ele. No meio de jovens em que vivi, a ideologia da liberdade sexual não causou o impacto esperado. Em geral, continuava a mesma forma homogênea de educar. Não havia educação sexual escolar, e as mães tinham pudor de falar sobre isso com as filhas adolescentes. A imprensa não divulgava meios contraceptivos e, apesar de já existir a pílula, muitas engravidavam precocemente. Enquanto os adolescentes eram iniciados por prostitutas, a sexualidade feminina, por ainda ser tabu, abria caminhos para que as mais ousadas dessem vazão em segredo à efervescência de sensações que emergiam através da exploração de seu próprio corpo. Todavia, havia meninas tão afetadas pela formação familiar e religiosa que não conheciam o próprio corpo, sequer sabiam da existência dessa fonte inesgotável de prazer que é o clitóris. Os meninos tinham acesso a revistas masculinas, e nós nos excitávamos com as revistas de fotonovelas. Hoje se sabe que tanto a mulher quanto os homens são providos de pontos erógenos ou zonas de prazer além da genitália. Há estudos que revelam que o útero não é apenas um órgão reprodutor, mas principalmente a fonte primeira de prazer feminina. E a mulher foi pioneira nessas descobertas. Até hoje, muitos homens focam o prazer sexual apenas no pênis. Ainda há uma crença de que as “preliminares” beneficiam apenas as mulheres. Como elas se demoraram mais na vivência erótica solitária, talvez isso explique a dificuldade de muitas terem
46 orgasmo na penetração. Ou pode ser que lhes seja natural o clímax clitoriano. Não se pode negar que há também incompetência ou falta de disposição masculina em desbravar o corpo feminino para o prazer, habilidade que ajudaria muito os homens na prática, quando sua potência começasse a declinar. Isso contribui para que, até hoje, muitas mulheres continuem com aventuras sexuais solitárias mesmo depois de dispor de um parceiro sexual. Há teorias consagradas no campo da psicologia de que a mulher tem uma inveja inconsciente do homem pelo que lhe falta, que é o pênis. Sem negar as conclusões chegadas por cientistas masculinos, decorrentes da observação masculina, penso que o homem também tem inveja da mulher, ainda que inconsciente, pelo que nela transborda. Há estudos que comprovam que a excitação feminina perdura após o coito, enquanto a de um homem precisa de um tempo para se recompor. Sem negar a importância da troca no sexo, a mulher pode ter mais prazer ao se tocar ou ser tocada do que com a penetração. Se havia uma ideia de que ela perde a libido a partir do climatério, hoje esse pensamento não mais se sustenta. Ainda que muitas delas não dispensem a penetração, a sexualidade da mulher madura não depende da virilidade peniana masculina. Já o homem é afetado psicologicamente no declínio de sua potência e muitas vezes perde o interesse pela troca sexual. É uma triste constatação. Trago agora o meu olhar para a conjuntura atual. Observo que muitas mulheres perderam o contato com seu próprio corpo e “sublimam” sua sexualidade desviando essa energia para conquista de poder secular de todos os tipos. Essa desconexão as afasta de seus instintos primários e intrínsecos, o que a desnatura. A realização profissional e a independência econômica feminina atingiram danosamente a relação sexual, especialmente entre aqueles em aliança convencional. A mulher tornou-se agressiva na sedução, e isso inibe muitos homens. O homem, desnorteado em saber qual o seu lugar no mundo público que antes lhe era privativo, e no particular, que lhe cobra corresponsabilidade de uma parceira que às vezes ganha mais do que ele, busca igualmente sua posição na cama. A liberdade sexual e seus desdobramentos, ao proporcionarem a expressão plural, desnortearam e desorientaram tanto a mulher quanto o homem, que agora criam seus próprios parâmetros a partir de referenciais externos que mudam a toda hora. Dissociou-se o sexo biológico do gênero cultural, na tentativa de adaptar o corpo ao psicológico, através de intervenções hormonais e cirúrgicas que, por sua vez, trazem repercussões psicológicas e emocionais. Enquanto os lugares e papéis sexuais convencionais se dissolvem, a identidade de gênero sofre convulsões na busca de novas formas, muitas vezes sem honrar aquelas das quais se despem e sem preservar a estrutura essencial e natural de cada sexo e de cada um enquanto indivíduo. E o que se vê são comportamentos mesclados do convencional com o novo, muitas vezes em atitudes incoerentes, incompatíveis e conflitantes entre si. Nessa conjuntura confusa até mesmo para os próprios atores, eles reivindicam normalidade,
47 quando na verdade o anseio é de inclusão e aceitação de suas mutações. A prática sexual está em declínio entre os mais jovens, talvez porque diante desse caos não encontram estímulos que lhe causem interesse e excitação. O desejo sexual não encontra objeto. É um momento difícil e necessário de transição. A busca de formas externas de identidade naturalmente exigirá que em algum momento se volte para dentro e que se vá mais fundo, para se chegar ao que é essencial para cada um e cada uma. A diversidade é própria da singularidade humana. Para que seja respeitada, há que se preservarem as reais diferenças de sexo, por mais que elas se cruzem e se aproximem entre si nessas múltiplas expressões. Não creio que a curto prazo os aspectos biológicos, sociais, culturais e psicológicos mudem a ponto de se encontrar alternativas em conciliar a diversidade de gêneros, ou de uma aproximação biológica amorfa. Na complexidade desse contexto, enquanto o homem e a mulher não encontrarem a identidade sexual e de gênero que procuram, apta a lhes trazer plenitude íntima e na troca, a preservação das diferenças se impõe para que as potências gestadas na infância da humanidade e desenvolvidas na história humana não se percam. A não ser que a ciência, o psicológico e a espiritualidade humana evoluam a ponto de nos tornarmos seres equilibrados em seus conteúdos feminino e masculino, vestidos num corpo hermafrodita. Aí, então, a prática da sexualidade será uma incógnita. A mulher, pioneira que foi, é e sempre será pioneira em refletir, questionar e explorar questões existenciais, pode ser o farol que conduzirá a todos a um porto seguro e feliz. Quem sabe, agora, de mãos dadas com o homem.
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A Mulher Longeva, por Ela Mesma Como começar do início se as coisas acontecem antes de acontecer? Clarice Lispector De tudo que tenho lido e das palestras de estudiosos de várias áreas, disponíveis na mídia social, não encontrei nenhum conteúdo embasado nos depoimentos de mulheres longevas de hoje. Não é de se estranhar, pois as pesquisas demoram a serem levantadas e quando o resultado sai pode destoar da realidade, que tem mudado vertiginosamente. Por isso, parto de meu ponto de vista e me tendo por modelo. O fechamento do ciclo fértil e a iniciação da fase anciã me surpreenderam no momento da despedida da vida laborativa, acometida que fui por ondas de calor mescladas com a emoção desencadeada pelo início de um enlace permeado de paixão. Surpreendeu porque não fazia um mês que o ginecologista havia me dito que eu ainda era uma usina de hormônios. Estava na plenitude de minha forma física, irradiando sensualidade e pujança. O climatério foi silencioso e trouxe sintomas tardios, quando não mais menstruava. Não posso dizer que a depressão que se seguiu foi resultado exclusivo dessa transição biológica, com a redução drástica de hormônios, porque havia pendências afetivas não resolvidas do vínculo profissional, em que pese tenha dedicado um ano de preparação para isso. Talvez iniciar um relacionamento nessas circunstâncias possa ter contribuído. Foi um período fértil em delinear uma nova identidade na qual o profissional não era mais o destaque. Ultrapassada essa fase, voltei a estar motivada, vigorosa, com libido, fazendo e executando planos, como até hoje, nos meus sessenta e quatro anos. Não senti declínio mental, me ajustei à nova realidade hormonal e à minha condição etária de forma realista. Hoje vivo só e perfeitamente adaptada a isso. É claro que há oscilações comuns da natureza humana em que há desarrumações mentais, psicológicas e emocionais, até porque há ciclos dentro desse ciclo longevo, muito mais percebidos e sentidos na mulher, e considero isso um privilégio. Em trocas feitas com mulheres na faixa de minha idade, percebo que a falta de libido pode ter várias razões, entre elas a falta de autoestima pela perda do viço físico, o que leva a crer não ser mais atraente. O desejo pode ser tolhido por pudor, talvez decorrente de questões morais e religiosas e de uma imagem cultural estereotipada do idoso. As mais recém-chegadas nesse ciclo podem ainda estar comprometidas com a valorização da juventude que foi inserida na formação da própria identidade e, por isso, se frustrarem por quererem perpetuá-la sem sucesso. Observo que cada vez mais as mulheres vivem só. As com idade mais avançada, na maioria das vezes por viuvez, além dos motivos já expostos, também podem querer descansar das obrigações maritais e ter uma vida sossegada. As
49 mais jovens podem ter saído de um casamento por escolha, e o ressentimento e traumas acumulados podem se sobrepor ao desejo de uma nova companhia. E muitas delas estão só por opção ao avaliar os prós e os contras. Algumas entre elas mantém formas alternativas de convivência diversas do padrão convencional. De tudo que observo, inclusive em mim, é que a velocidade dos eventos do mundo contemporâneo não permitiu que se vivesse de forma atenta e profunda aos ciclos naturais que poderiam se converter em aprendizado no processo de amadurecimento. Muitas de nós chegam ao momento que se espera o apogeu da sabedoria e não seguiram os passos para isso. Cabe a cada uma escolher o que quer dessa nova fase em que dispõe de tempo para juntar as peças do quebra cabeça que foi sua vida e dar um sentido a ela. Ajuda para isso não falta.
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O Ingresso no Ciclo da Anciã Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Simone de Beauvoir Quando a mulher entra no ciclo da anciã, a ampulheta é esvaziada, outro tempo a aguarda. Essa é a fase do agora, o passado precisa ser honrado e liberado e o futuro não deve ter mais importância. Os dias revestem-se de um diferente ritmo e mudam de acordo com os ciclos naturais da vida interna e externa. Para fazer essa travessia, é preciso esvaziar-se das camadas e couraças de que se revestiu e que não tem mais utilidade. Um outro processo de individuação inicia-se. É hora de renascer, de liberar a jovem e a mãe que foi e de despojar-se dos papeis que ocupou. É o momento de apropriar-se da sua real potência, de reconhecer-se na singularidade, de religar-se ao self mais profundo. Mais importante que afirmar-se como mulher é apoderar-se enquanto sujeito de sua própria existência, desapegado dos aspectos biológicos e culturais que outrora lhe foram determinantes. É tempo de assumir o lugar que lhe é original, onde é o epicentro de sua própria vida. A anciã, aquela que tudo viu e viveu, pode agora reunir as contas de suas experiências no fio da vida que a trouxe até aqui. E doar seu legado de sabedoria às novas gerações. É com essa perspectiva que toda mulher deveria cruzar o portal que a levará a essa dimensão sutil entre dois mundos. Lá, recebida em ritual sagrado, sua linhagem ancestral a coroaria como aquela que cumpriu todos os estágios da existência com êxito e que agora merece escolher como quer viver, rodeada de amigos e desfrutando de paz, sossego, alegria e prazer. O ingresso ao último ciclo da vida, da forma como foi aqui proposto, não é exclusivo da mulher, mas de qualquer indivíduo, até mesmo para quem já esteja inserido nele. Basta querer desconstruir estereótipos, ideias engessadas e a visão derrotista da velhice. O declínio físico é inevitável, mas nem só de matéria vive o humano. Aquele que anima o corpo não tem idade.
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A Busca Do Masculino Sagrado Os homens estão agora livres para tornar conhecido seu primeiro segredo – o de que sua vida está tão tolhida pela definição de papéis quanto a das mulheres – graças à coragem das mulheres que protestaram diante dos papéis e das instituições tradicionais que negam a individualidade e a igualdade. “Sob a Sombra de Saturno” – James Hollis Há muito a mulher insurgiu-se contra os papéis pré-estabelecidos impostos a ela pela sociedade patriarcal. O próprio mundo e suas exigências acabaram por oferecer-lhes oportunidades. Hoje elas realizam atividades que antes eram tabus, ainda que a igualdade com os homens esteja distante. Uma dúvida paira quanto à realização pessoal dela ao ocupar esse espaço da forma como tem acontecido. Não há pretensão nem se crê na possibilidade de regressão até onde os papéis do homem e da mulher eram distintos e bem definidos. O que se pergunta é se há sintonia do modelo incorporado com a natureza feminina. Alheia às necessidades típicas do sexo, ela desbrava o mundo dos homens com a espada da competição, esquecendo que a sua essência é de agregação, conciliação e cooperação. A mulher não se dá conta de que está cada vez mais só, ao se alijar da sua própria essência. O aspecto masculino que compõe a psique da mulher tem suas peculiaridades e não pode ser confundido com um padrão estereotipado. Mas é isso que se observa, a mulher veste a farda masculina, seja que atividade ou profissão venha a escolher. Essa roupa sequer se assemelha à masculinidade genuína. Dessa forma, ela deixa de ser quem é para representar um modelo falso que acredita ser o esperado pelo mundo corporativo. A prisão em que ela voluntariamente se acorrentou não impede que a natureza reclame seu espaço na psique e cobre seu tributo, à maneira de doença, depressão, ou da tão conhecida crise existencial. Urge a reformulação da atuação profissional feminina na modernidade. É preciso que a mulher desenvolva os atributos masculinos peculiares à sua condição, sem prejuízo da essência. E não é com a introjeção dos tipos estereotipados masculinos que se conseguirá essa unificação. No dizer de Clarissa Pinkola, o papel do animus, ou masculino na mulher, é ajudá-la a manifestar no mundo o seu potencial criativo: “A Mulher Selvagem é o motorista; o animus acelera o veículo. Ela compõe a canção; ele escreve a partitura. Ela imagina; ele dá conselhos. Sem ele, a peça fica escrita na nossa imaginação, mas nunca é escrita e nunca é representada. Sem ele, o palco
52 pode estar repleto, mas as cortinas nunca se abrem e a portaria permanece sem iluminação.” Atente-se que, quando esse arquétipo está doente, tolhe a criatividade ou faz da mulher uma máquina de cumprir tarefas insípidas e medíocres. É esse lado de sombra que tolhe a expressão do feminino e a torna caricatura de homens. Nós, seres humanos, precisamos identificar, reconhecer e validar a hora da criação (aspecto masculino), e a hora da manifestação (aspecto feminino). É o processo de individuação, das potencialidades, venham elas de qualquer faceta. A harmonia entre esses aspectos internos é o único caminho para a existência de pessoas felizes.
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Justiça Ideal e Real Estamos imersos em um mundo complexo, permeado de interesses de toda ordem, movido por um sistema anônimo que dita as regras de vida de todos e de cada um, onde há privilegiados e desfavorecidos. Nesse ambiente, é de se esperar um clima de insatisfação e de impotência de quem não detém o poder. É nesse contexto que a palavra justiça perde o brilho de um ideal a ser buscado. Etimologicamente falando, a justiça vem do latim justitia, que significa direito, administração legal. Justitia é originária de justus, que vem de jus, correto, lei. A ideia de justiça, então, traz em seu bojo tanto o conceito de virtude do cidadão que tem conduta reta quanto o do equilíbrio esperado na tomada de decisões do julgador e ainda inclui o sistema legal. Dessa forma, ela pode ser aplicada à conduta do cidadão, do empresário, do Estado e do juiz. Daí podemos apreender que direito - coletânea de leis e sua aplicação - e justiça enquanto valor estão imbricados, de modo que o primeiro visa propiciar o segundo e vice-versa. A justiça nas relações pessoais seria a comutativa; a justiça entre o indivíduo e a sociedade, a legal; a justiça entre o Estado e o indivíduo, a distributiva. O conceito de justiça é ambicioso e utópico, pois “refere-se a um estado ideal de interação social em que há um equilíbrio que, por si só, deve ser razoável e imparcial entre os interesses, riquezas e oportunidades entre as pessoas envolvidas em determinado grupo social” (autor desconhecido). Para que o direito cumpra a função de distribuir justiça, foram criados princípios que deveriam nortear a conduta tanto das partes em uma contenda quanto do juiz, dos quais destacamos isonomia - tratar os iguais de forma igual e os diferentes de forma diferente -, equidade - imparcialidade e igualdade de direitos, supremacia do coletivo sobre o individual, direito à ampla defesa e o devido processo legal. Observa-se que tudo no fazer humano é passível de desvios da forma como foi concebido e isso acontece no direito desde a promulgação de uma lei com brechas para várias interpretações ou, de forma explicitamente tendenciosa a uma determinada casta ou categoria, a aplicação dela com essa mesma intenção. Assim, o princípio do coletivo sobre o individual, criado para proteger o mais fraco, favorece os detentores de poder. É o exemplo das decisões judiciais que protegem os empregadores e prestadores de serviço, com o entendimento distorcido de que eles não podem ser onerados sem prejuízo à própria coletividade, que ficará sem emprego ou serviço. Criou-se o paradoxo de que nem sempre o que é direito é justo. O direito à ampla defesa e o devido processo legal viraram um emaranhado de procedimentos que contribuem para postergar indefinidamente a entrega do direito, a ponto de só os herdeiros se beneficiarem, isto se ainda houver bens visíveis do vencido a ser executado.
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Os princípios da isonomia e equidade, na prática, converteram-se em letra morta, pois a igualdade não é protegida onde o poder econômico favorece meios de sucesso da demanda superiores a quem detém recursos escassos. E não se exige do julgador uma avaliação do caráter, e há muitos que renunciaram à imparcialidade. Em relação ao cidadão, injustiça é uma palavra aplicada indiscriminadamente, sempre que sua vontade for contrariada, mesmo que não constitua um direito legal ou ainda que sua pretensão não seja justa. A conduta reta de não avançar sobre o direito do outro e fazer ao outro o que gostaria que lhe fosse feito caiu no esquecimento e hoje é cada um por si. A justiça real como um sistema de uma comunidade é o reflexo da soma da conduta de cada cidadão, é o clima que permeia os valores ou a ausência deles. A justiça surgiu para sanar conflitos de interesses, pela inabilidade dos indivíduos em conciliar suas vontades a partir de mútuas concessões. E, por consequência, para alguém ganhar, o outro tem que perder. Mesmo nas conciliações judiciais, é comum o hipossuficiente ceder por temer ser esmagado pelo poder do oponente. Uma coisa que devemos ter em mente é que há uma diferença abismal entre a justiça como ideal a ser buscado, e a justiça real e concreta praticada pelos seres humanos. Enquanto houver polarização de interesses movidos pelo individualismo; enquanto não houver união e atuação pertinaz, consistente e coerente entre os pares injustiçados; enquanto o cidadão for descuidado na eleição dos representantes, a justiça será uma vaga ideia de um valor cada vez mais distante da realidade.
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Separando O Que Você Faz Do Que Você É Após trinta anos a serviço da mesma empresa, veio a conhecida crise de identidade. De um lado, o sonho da aposentadoria, o prêmio por tantos anos de contribuição laborativa; de outro, o medo do alijamento. Lembrou dos seus dezenove anos, cheios de motivação e esperança. O primeiro chefe, os colegas de trabalho, os projetos. Os desafios enfrentados, o aprendizado, as experiências – alegres e tristes. As realizações compensando as insatisfações afetivas. As preocupações profissionais refletidas na família. As mudanças de direção, de estratégias, de metas. Cresciam ela e a empresa, aprendendo com os erros, motivando-se com os acertos. Quando se é jovem deseja-se expandir, o céu é o limite. Com o tempo, deixa-se encantar pela gaiola de ouro, nela faz o ninho, sente-se protegido. Depois de anos de confinamento voluntário, constata que perdeu o prazer pela liberdade, é o preço que se paga quem se deixa adestrar. Aos poucos, percepção ampliada, pôde ver o quanto das experiências vividas no trabalho aguçaram a perspicácia, modelaram o caráter. Entendeu a riqueza que foi acompanhar, ao longo de três décadas, as mudanças de uma grande empresa. Dever cumprido, chegou a hora de fechar o ciclo. Sentirá falta de todos os momentos divididos com colegas, chefes e clientes. Despediu-se com gratidão pela oportunidade continuada de aprendizado. Sentiu-se adolescente, às vésperas de ingressar nos mistérios da vida, a desbravar outros territórios, em busca da identidade perdida.
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Eu e/ou o Outro Escutar o outro importa em silenciar o eu. A ideologia do ódio ao diferente, tão presente na vida das pessoas e difundida amplamente nas redes sociais, levou-me a pensar sobre subjetividade e alteridade, necessidade de agregação e de individuação. A primeira coisa que questiono nessa ideologia é se há mesmo influência exterior sobre o indivíduo, ou é o inverso. Penso que esse tipo de pertencimento seletivo é usado para dar vazão às tendências e inclinações pessoais que antes eram reprimidas e secretas e agora tiveram adesão pública. Ao encontrar ressonância, a autocensura deu lugar à validação do grupo. Penso que não se trata de senso de agregação, mas sim de usar o grupo para ostentar sua maneira de ser. Dessa forma, o gueto é apenas um conjunto de individualistas que ali preservam essa condição, pois o outro continua a não existir. Se antes o narcisista era indiferente a tudo que destoasse dele, julgando-se superior a qualquer pessoa, hoje o diferente o afeta a ponto de querer e até agir para que ele não exista. É através dele que a exclusão social encontra ambiente favorável. A relação que se perfaz é de “eu ou o outro”. Essas pessoas têm o ego excessivamente forte. Em contraponto a esse perfil individualista, há aqueles cuja identidade é determinada pela avaliação do outro. O que o outro vê nele e o que ele pode suscitar no outro define quem ele é. São pessoas que não sabem olhar para si e descobrir do que é feito. Tudo que ele é está fora, está na imagem que tem moldada pelo outro. Esse outro é detentor da verdade do que ele é e do que credita ser. São pessoas portadoras de ego excessivamente fraco. É verdade que o olhar do outro sobre o indivíduo reveste-se de importância por várias razões, a primeira delas é afirmar a existência de quem é visto. “Você me vê, logo eu existo”. Ao apontar algo sobre si, o outro também ajuda quem quer se conhecer. Nesse aspecto, é preciso ter maturidade para lidar com os julgamentos alheios. De um lado requer abstrair as projeções de que pode ser vítima, devolvendo o que não é seu. De outro precisa avaliar a possibilidade de haver aspectos de si ainda não conhecidos. De forma inversa, o que se vê no outro é espelho do que em si está oculto. Para se estabelecer vínculo verdadeiro é preciso ter um olhar isento, distanciado de si, de forma que se possa ver o que há de genuíno do outro. Sobre esse enfoque, é preciso estar atento a não desenvolver dependência por obter validação, reconhecimento e admiração alheias. Isso denota autocentrismo, estruturado na insegurança e no excessivo desejo de ser amado. Quando isso ocorre, há risco de se fazer concessões que agridam os anseios mais profundos e a própria individualidade. O outro é importante, na medida em que se é afetado, seja de forma agradável ou não. É através dele que se aprende sobre sentimentos e descobre a forma como se lida com eles. É a partir da troca com o outro que se exercita o amor, a amizade, a tolerância e que se aprende sobre raiva, medo e discriminação.
57 Para o crescimento humano nos vários aspectos, a convivência é mestra em revelar o oculto que não se quer ver. O humano é gregário e singular, para se sentir íntegro precisa atender à necessidade tanto de pertencimento, quanto de individuação. Necessário colocarse no lugar do outro preservando seu próprio espaço. Estruturar sua personalidade incluindo o senso de bem comum. Interiorizar o conceito de “eu e o outro”. Ter consciência de que faz parte do todo e que todos são um.
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Autoestima Na Vida Madura Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho... o de mais nada fazer. Clarice Lispector Falar de autoestima, com foco na mulher madura, requer conhecer a diversidade de realidades que a desafia, muitas vezes, alheias à vontade. Para quem ainda desfruta da continuidade de uma vida a dois feliz, adaptada às mudanças do tempo na convivência, a autoestima não é uma dificuldade. Mas há quem amargue um casamento já há muito fracassado. E aquela que está só, por opção ou por falta dela, muitas vezes, sofre o revés do destino, que lhe dá a tarefa de substituir a mãe com os cuidados dos netos, ou de ser cuidadora do companheiro e de pais idosos. Ainda que dotada de paciência, abnegação e amor, essa missão pode ser extenuante física e emocionalmente. Para ela, urge encontrar uma fonte de prazer que a revigore e suavize o seu mister. Há, no entanto, aquelas livres de encargos, atônitas com a solidão que se seguiu depois de uma vida de casa cheia. E que, mesmo encontrando prazer em sua própria companhia, ainda sonham com alguém para usufruir de momentos agradáveis, ou até mesmo com um novo casamento. Para elas o desafio é maior, é grande a concorrência de mulheres no auge de sua exuberância. Não existe idade para entrar na curva do declínio emocional, mas na idade madura ela se acelera pela decadência física, que interfere sobremaneira na autoestima feminina. Muitos homens destacam nas mulheres os atrativos físicos, o vigor e o viço. São pouco interessados no rico universo interior feminino, muitos sequer o entendem, sentem-se perturbados e confusos com seu contato. E é nessa fase que a mulher o vive em sua plenitude. É um lamentável desencontro. Enquanto alguns homens não sabem lidar com a transformação do corpo feminino, a mulher, por motivos vários, é indulgente com os parcos atributos estéticos ou com a degradação deles. Pode ser por uma questão cultural, equivocado instinto materno, a busca de um pai e outros. Nessa questão, a mulher está em vantagem, porque desenvolveu a capacidade de apreciar outras virtudes masculinas como a inteligência, a sensibilidade (de poucos), os talentos artísticos, a habilidade de agregar, entre outros.
59 Há também aqueles que na fase madura sofrem com o declínio da virilidade sexual, porque durante a vida toda esse foi o único ponto de identificação de virilidade, frente a outro homem ou a uma mulher. Nessas condições, não sabem interagir com a mulher, sentem-se inseguros. Paradoxalmente, a mais das vezes, é intolerante ao declínio físico feminino. Mas há uma característica que se destaca, e que seduz a mulher, que é a genuína autoconfiança de alguns. Autoconfiança que elas se despojaram, por não crerem na sua capacidade de sedução. A sedução é a arte de atrair, cativar, convencer, instigar, e para isso não é preciso beleza, juventude ou virilidade sexual. É necessário vigor e viço, sim, não do corpo perfeito, mas da energia que emana, da vitalidade que expressa, do entusiasmo de viver. É aí que entra a autoestima, que não exige a aprovação do outro, decorrente da autoadmiração, do autorrespeito, da autoaceitação plena de quem se é, com suas qualidades e defeitos. É se amar porque se conhece, por apreciar o que já conquistou no apuro de suas aptidões e porque confia em seu potencial. Autoapreciação baseada no autoperdão, porque aprendeu com os erros e redirecionou a vida. Aquela sustentada pela constante atenção a si mesmo, pela auto-observação de cada passo, pelo compromisso de a cada dia dar o seu melhor. Quem se ama seduz criança, adulto, idoso, gato, cachorro, a vida, não importa em que fase do tempo se encontre. Afasta a dependência emocional, a tentação de concessões degradantes, a necessidade de admiração do outro. A natureza é sábia, e, se no inverno da vida, tanto o homem quanto a mulher carecem de hormônios que na juventude os impulsionaram para o sexo, é preciso reinventar a sexualidade e também encontrar outras fontes de prazer que conciliem as necessidades do corpo com as do espírito. Nessa fase eles estão mais próximos do mundo espiritual, para onde irão ao fazerem a travessia. Para uma vida feliz a dois na maturidade é preciso o encontro de almas. Almas enamoradas de si.
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Morar Só: Prazeres e Agruras Longe de mim defender o individualismo, a atitude autocentrada de quem escolhe não dividir a vida com ninguém. Somos sujeitos gregários, vivemos em comunidades, desde a família à escola, o trabalho à rua e o bairro que moramos. O que trago aqui é um novo olhar para o que muitos sentem como um castigo do destino, em especial, na fase madura, que é morar só. Há aqueles que estão sós porque nunca se casaram, porque se divorciaram, porque ficaram viúvos. Quem mora só por opção, a cada dia, descobre pequenos prazeres nessa condição. Quando volta do trabalho, a caneta de notas continua junto ao telefone, se há bagunça é apenas a dele, se estiver cansado pode ir direto para a cama, sem nem tomar banho. Há menos trabalhos domésticos, mais economia nas compras, que agora são personalizadas. Pode deixar a cama desarrumada, limpar a casa quando quer, não prestar contas a ninguém, sair e chegar quando lhe convém. Quem mora só não precisa negociar o uso do controle remoto ou a seleção do cardápio, escolhe quando e o que cozinhar e o tempero é o da sua preferência. Não encontra brinquedos ou roupas sujas alheias para recolher, não é interrompido quando está estudando, lendo ou vendo um filme. Pode se esparramar, sem limitar-se a um lado da cama e roncar livremente. Não acorda com porta abrindo e fechando, com movimento no quarto. A temperatura do ambiente é a de seu gosto, escolhe a hora de dormir e de acordar. Acende o incenso preferido, sem receio de causar alergia a outrem. Não ouve queixas e reclamações do dia a dia. Faz a sua rotina sem interferências ou até mesmo não a tem. Quem mora só não presta conta do que faz, é poupado dos desagastes da convivência que favorecem desentendimentos e desamor. Morar só é uma oportunidade de se conhecer, de descobrir do que gosta e o que quer fazer. De separar o que lhe é próprio do que é do outro, assumir a autorresponsabilidade pelo que se é e faz, posto que já não há mais a quem culpar. Não é irremediável reclusão ou isolamento, pois, uma vez saciada a necessidade de interiorização, privacidade e silêncio, mover-se inteiro em direção ao outro é mais fácil. E ainda se tem o privilégio de escolher quando e como. O convívio sob o mesmo teto é importante quando se está formando uma família, trazendo filhos ao mundo. É um belo aprendizado de fazer concessões, de conciliar interesses, de cuidar, de dar e receber. Essa etapa a pessoa madura já cumpriu com honrarias. Para quem se adapta sem esforço à mudança de ambiente e de rotina, morar com filhos ou parentes pode ser a solução. Para quem gosta de ter o seu cantinho, moldado a seus hábitos e manias, não há por que, nesse estágio de vida, adaptar-se ao regime de uma casa que não é sua, mesmo que seja de um filho ou de uma filha. Mas, nesse estilo de vida, nem tudo são flores. Há momentos de solidão, de desejar e não ter alguém para conversar, para dividir momentos de lazer ou para apenas ficarem abraçados e deixarem o tempo passar. Entretanto, é possível usufruir de tudo isso com um convite, uma visita, ainda que não ocorra na hora
61 que se quer. O convívio a dois é possível mesmo sem morar juntos. E muitos desses desejos podem ser supridos por amigos, indispensáveis nessa fase de vida. Estar só importa em não ter com quem dividir as tarefas do cotidiano, como fazer pagamentos, compras, contratar serviços ou reclamar deles etc. Mas também fortalece a autonomia. E é sempre possível recorrer à família ou a um amigo para trocar uma lâmpada, colocar um quadro na parede ou instalar um novo equipamento. Como não se tem quem assista na doença, é preciso redobrar o autocuidado em todos os níveis. Precisa aprender a lidar com a auto assistência enquanto for possível e pedir ajuda quando for necessário. E quando sentir que se está perdendo a autonomia, decorrente dos limites do corpo e da mente, pode-se escolher residir numa casa geriátrica e preservar a privacidade, se não se puder pagar uma cuidadora. Para quem tem uma vida a dois saudável e sustentável, só elogios. Mas para aqueles que não desfrutam mais de um par, cujos filhos já seguiram seu rumo, é hora de se reinventar. Todos merecem escolher como se quer viver nessa premiada etapa da vida.
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O Que Você Vai Ser Quando Você Crescer? O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte do desenvolvimento superior dela - em segui-la pois mimeticamente com uma insubordinação inconsciente e feliz. Fernando Pessoa Comumente, essa pergunta é feita a crianças, mas qual o critério para se determinar que uma pessoa se tornou adulta? Ela precisa assumir responsabilidades, ser independente financeiramente, ter um relacionamento sério, uma profissão? Certamente, todos esses atributos indicam crescimento pessoal, mas não definem o nível de crescimento do indivíduo. O convite é para analisar mais a fundo. Quando a pessoa já passou por fases de desenvolvimento físico, mental e emocional. Viveu as alegrias e dores da infância, a luta pela autoafirmação na adolescência, o aprendizado pelas experiências. Isso vai moldando e construindo o caráter e a personalidade e assinala que se chegou à fase adulta. Entretanto, esses eventos não se sucedem de forma linear, eles interagem e se entrelaçam formando uma teia de construção da maturidade, em tempo e ritmo individuais. Dessa forma, é comum observar no indivíduo cronologicamente adulto atitudes imaturas, porque ele não conseguiu o fortalecimento emocional que se esperava para seguir à próxima fase. Mesmo que uma pessoa seja madura e sábia em alguns aspectos e setores da vida, em outros, sofre a influência das emoções cristalizadas em algum momento na infância. Quando se vê um empresário voluntarioso, um chefe tirano, alguém que quer que a vida lhe dê tudo que deseja do seu jeito e de imediato, isso é sintoma de que ele está dominado por seu lado infantilizado. E isso acontece porque não se deixa que ele se expresse e interaja com o eu. Ao conter e reprimir a consciência infantil, distancia-se também do seu aspecto sadio, que propicia o encantamento pela vida, o lúdico, o espírito de aventura, abafa a espontaneidade e autenticidade próprias dessa fase de vida. Necessário se faz que se olhe para esse aspecto pueril da psique, que se valide e acolha toda dor, medo e raiva que possa dela emergir. Importante destacar que ouvir-lhe não é o mesmo que identificar-se com ela, permitir que ela o domine. Ao dar-lhe limite amoroso, ela vai agradecer e mostrar toda sua beleza. Sejamos maduros, sábios, responsáveis, mas não esqueçamos da alegria e espontaneidade para tornar a vida suave e bela, para sabermos o que vamos ser quando crescermos.
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Qualidade de Vida e Pulsação da Criança Interior A ideia de qualidade de vida alardeada é utópica, ninguém é contemplado por todas as condições ideais segundo o critério de cada um. Qualidade de vida tem a ver com a forma como se lida com adversidades, que é determinada a partir de eventos traumáticos da infância que ainda persistem na psique. As conclusões equivocadas, extraídas deles pela mente imatura da criança, continuam a interferir nas atitudes, pensamentos e sentimentos. A mente rudimentar infantil só é capaz de registrar sensações de dor e de prazer. Para a criança, dor é tudo que lhe afasta do prazer e sem prazer não sobrevive emocionalmente. Em algum momento, em geral na primeira infância, a criança sentiu uma dor profunda de abandono, rejeição ou desproteção projetada na figura materna ou paterna, ou em ambas. Mesmo que não tenha sido dessa forma, foi assim que a compreensão imatura da criança registrou, a experiência, para ela, foi real. Quando a criança se sente ferida, ela constrói mecanismo de defesa para não entrar em contato com a dor. Esse mecanismo não pensa, só reage. Ele é feito de instintos e emoções e mantém-se na fase adulta. Quem quiser conhecer esse lado inexperiente em seu âmago não deve criticá-lo ou julgá-lo. É preciso entender que a criança que se foi precisou desse abrigo de proteção, contudo, já é possível para o adulto abrir mão dele. É preciso dar segurança a ela, relegada que foi quando se chegou à fase adulta, pois o indivíduo aderiu à crença de que não há lugar para ela nessa etapa da vida. Ainda que a ignore, ela ainda vive em nós, cristalizada no momento em que se sentiu impotente. E por não ser vista e validada, amiúde toma a voz e domina as atitudes da pessoa. Toda vez que alguém se depara com uma situação que se assemelhe à do passado, é essa consciência imatura quem o comanda. Nessas circunstâncias, não há interação com o presente, reage-se ao passado. Em geral não há consciência disso, e tudo que vive no inconsciente cresce e o domina. Para evitar ser tomado por essa energia pueril, é preciso conhecê-la. Esse aspecto quer ser visto, validado, acolhido, cuidado e amado. Isso se dará ao observar as reações e atitudes que causam mal-estar, desconforto, constrangimento; quando se sentir inadequado, vítima das pessoas e das circunstâncias; quando se defender culpando o mundo ou as pessoas por infelicidade; quando se projetar no outro o que não quer ver em si. Em todos esses casos, é essa característica emocional que fala mais alto e tolhe o discernimento. É preciso ajudar essa consciência não desenvolvida a crescer. Como qualquer criança, ela precisa de limites amorosos. Converse com ela, dê-lhe colo. Sempre que ela se sentir ameaçada, mostre que está presente, que vai protegê-la. É preciso agora ser pai e mãe dela. Permita-lhe expressar alegria e espontaneidade. Dê-lhe momentos de prazer. Pergunte com frequência o que ela
64 gostaria de fazer, divirta-se a seu lado. Integre-se com ela. Dê-lhe boas-vindas, viva a aventura que é a bela jornada à procura de partes de si. Qualidade de vida não é usufruir de família perfeita, saúde plena, a casa e o carro ideais, a remuneração que se gostaria de ter. Isso é utopia, pois a imperfeição é inerente à condição humana em evolução. Ademais, muita gente que vive essa ilusão não é feliz. Qualidade de vida consiste em se aceitar do jeito que é, tanto na sabedoria quanto na imaturidade. Ainda se vive o doloroso estado de opostos e é preciso acertar o passo para seguir em equilíbrio entre sombra e luz, amor e medo, alegria e tristeza. Só dessa forma é possível a integração de tudo que se é e o desenvolvimento da consciência infantil. Ela precisa aprender sem perder a inocência, o entusiasmo e a espontaneidade, virtudes que a caracterizam e essenciais à vida adulta. Qualidade de vida é o resultado da construção diária em oportunizar prazer, em tirar o melhor proveito do que a vida pode oferecer agora, sejam coisas boas ou ruins. É ter coragem e potência para desenvolver a capacidade de perder. É ter consciência de que o que temos hoje é resultado de nossas ações passadas. É preciso ser realista sem deixar de sonhar, porque o sonho é o primeiro passo em direção à mudança da realidade indesejada. Sonhar é o momento mágico de criação. Sem a ajuda da natureza infantil não se sentirá prazer, alegria, espontaneidade, não se terá espírito de aventura e a capacidade de brincar. Ela precisa voltar a pulsar com vigor e candura no âmago de cada um. O ser humano está aqui para ser feliz, e felicidade propicia qualidade de vida, mesmo diante das dificuldades e desafios de toda ordem que possam vir a acontecer. Para atrair felicidade é preciso ajudar na cura da consciência imatura e favorecer que ela siga em direção à maturidade emocional. Assim, assumir-seá o controle da vida e construir-se-á uma realidade melhor.
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A Criança Ferida Quando não acessamos a dor oculta, gerada lá atrás e que ainda persiste, atraímos eventos que reproduzem e confirmam a conclusão equivocada infantil. Sem termos consciência, passamos a vida moldando essa “realidade”, na ilusão de que conseguiremos mudar o passado. Essa é a lógica da consciência imatura que seguiu até a fase adulta. A base dessa construção é a família. A primeira experiência ocorreu com os pais e pode se perpetuar com os irmãos, expandindo para as relações no mundo, concentrando-se no relacionamento afetivo. Quando percebemos que vários eventos se repetem, constituindo um padrão, é possível descobrir como e para que esse padrão se forma. Ao tentarmos isso, pode acontecer de sermos sugados pelo campo familiar, de volta ao padrão antigo. Enquanto a mudança não se consolidar, essa parte infantilizada continuará atuando e modelando os mesmos eventos de abandono, rejeição ou desnutrição. Se um dia nos dermos conta dessa estrutura, seremos capazes de escolher sair desse círculo vicioso. Não será uma tarefa fácil, já que habituamos e acostumamos as pessoas a uma conduta previsível. Por outro lado, a carência afetiva nos tira o amor-próprio e por isso não inspiramos respeito aos outros. Assim, teremos vendido a alma ao diabo ao mendigar atenção, nem que essa atenção seja de escárnio. O convite para voltar ao padrão é constante, porque as pessoas não estão dispostas a nos soltar. Nossa permanência assegura a preservação da zona de conforto delas. Também não querem assumir os erros e a responsabilidade por suas construções. É preciso muita vigilância para não sucumbir nem ceder às acusações, à falsa culpa e à autopunição. Quem quer abrir mão do prazer que há na crueldade pueril em agir sem consequências porque demos consentimento? De ter alguém a quem apontar, culpar, rejeitar ou excluir? Por outro lado, não convém eximirmo-nos de responsabilidade porque favorecemos, com tais atitudes, a estagnação do desenvolvimento dessas pessoas. É preciso nos perdoar, aceitar a falibilidade, mesmo diante da intolerância alheia, que está em ressonância com a auto reprovação. É difícil viver essa realidade, chega a ser desanimadora. Dói soltar o padrão. É preciso muita ajuda divina para perseverar, seguir em frente, com a consciência de que essa dor é construtiva e curativa e que não existe outro caminho para paz, harmonia e felicidade senão pela libertação das amarras auto impostas. É preciso lamber as feridas, nutrirmo-nos de amor, cuidados, proteção e prazer. Um dia de cada vez, como fazem os alcoólatras.
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Solidão e Convivência A solidão é mal compreendida. É confundida com o isolamento decorrente do individualismo, do autocentrismo no ego. É atribuída à ausência de si mesmo, que resulta na dificuldade em interagir. Esse exílio de si e por si mesmo não se resolve com a coexistência, porque decorre da falta de apreço à própria companhia. Busca-se o outro para preencher o vazio do auto já que nos habituamos e acostumamos as pessoas a uma conduta previsível autoabandono. Essa solidão conferida à falta do outro é o alijamento de si próprio e ela enfraquece. Muitos não se dão conta de que não há ninguém que sinta, pense, aja e viva do mesmo jeito que outro. O ego alienado do self move-se em busca do outro, na ilusão de encontrar um igual para nele projetar-se, esvaziando-se de quem é. Essa solidão artificial é sobreposta à genuína. A solidão é inerente à singularidade de ser. Tornar-se indivíduo traz em si a solidão. No processo de individuação é preciso apartar-se do outro para criar os contornos da personalidade e determinar as fronteiras do caráter. Quem não se delimita mistura-se no outro, perde-se de quem é. Essa dor da impossibilidade de continuidade no outro encontra alívio ao pertencer a um grupo ou comunidade que reúna semelhanças. Essa é uma pretensão legítima e necessária à agregação. A solidão intrínseca ainda que sofrida é afirmativa e vigorosa porque distingue o indivíduo dos demais. A pessoa inteira e íntegra acolhe a solidão de saber-se único ao tempo em que se sente em união com os outros. Transita com equilíbrio entre estar consigo e conviver com o outro sem se dispersar de si. Aprendeu a respeitar as diferenças e apreciar as semelhanças. Essa é a forma sadia de autenticidade e autonomia dentro do todo.
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Quem Tem Medo Da Morte? Aquilo que concebemos como tempo traz, em si, a morte. A toda hora passamos por pequenas mortes. Ao fazermos escolhas, abrimos mão de outras disponíveis. A morte que traz mais sofrimento é a da estagnação, aquela em que tentamos seguir em frente sem soltar o que precisa deixar para trás. Por mais que resistamos à mudança, ela se faz independente da vontade. A morte física é a prova incontestável disso. Somos como crianças que pedem freneticamente para repetir aquilo que lhes dá prazer: “De novo! De novo”. Tentamos reter o tempo recorrendo à memória. Reviver instantes de alegria, de prazer, de realização. Ou, então, sonhamos acordados com o que desejamos, em especial, quando não se quer enfrentar a realidade. Mesmo sem termos consciência, morremos e renascemos a cada momento, a cada experiência vivida, a cada pessoa que entra e cada uma que sai de nossa vida. Até mesmo aqueles com quem convivemos não são nem podem ser os mesmos de tempos atrás. É possível que a sensação de segurança, de estabilidade que sentimos nas relações esteja no fato de cristalizarmos uma imagem da pessoa, para não olharmos as transformações acontecendo nela, para não enfrentarmos o desconhecido. Não queremos correr riscos. Muitas vezes fazemos dos afazeres e das instituições muletas, saltando de um lugar a outro, de uma atividade a outra, para não lidar com a impermanência. Se olharmos para trás, podemos fazer o inventário das coisas, situações, pessoas e relacionamentos que transitaram por nós. Temos a ilusão de que não fazem mais parte da nossa vida pela falta de convivência, talvez por isso o apego, a obstinação em não os soltar. Nem sempre temos consciência de que fios invisíveis continuam a nos conectar, em especial àqueles que amamos. A vida é dinâmica, está em constante mutação. Vida e morte são faces da mesma moeda, uma não existe sem a outra. É essa moeda que o barqueiro precisa para fazer a travessia, de volta para nós mesmos, de volta ao lar, a uma nova aventura, a um novo desafio, a uma nova perspectiva dessa grande interação e integração cósmica do Ser.
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O Medo da Perda e o Apego Há uma grande diferença entre o entendimento mental e a compreensão vinda da vivência. É possível entender a impermanência da vida, a fluidez dos eventos, que nada é fixo ou permanente, que vivemos num mundo finito. Mas isso não impede o desejo de permanência e da infinitude. Só quando a perda acontece é que se pode entender como o apego é destrutivo. O desejo de que nada mude, que é o apego, causa sofrimento porque a mente sabe que isso é impossível. Esse conflito causa medo da perda e esse medo provoca uma reação em cadeia. Os momentos felizes, os enamoramentos, a conjugalidade, os sucessos, os êxitos de qualquer natureza são sabotados de forma inconsciente, por não se suportar “a espera da privação”. Há uma crença popular que diz “Deus dá, Deus tira”, e outra que afirma “muito riso, pouco siso”. Assim, há no inconsciente coletivo uma espada sobre a cabeça humana que pode tirar o que se tem a qualquer momento. Por isso, nos relacionamentos, evita-se compromisso ou intimidade para se evitar sofrimento quando houver a separação. Há quem inconscientemente busque parceiro que traga essa impossibilidade para que a perda se confirme e assim se perpetue o círculo vicioso da aniquilação. Paradoxalmente, é o apego que provoca o medo e que, por sua vez, cria situações que terminam por causar sofrimento. Há que se entender que a impermanência não importa em perda, e sim em mudança. Essa, sim, importa em morte. Morte que causa dor, mas necessária para que a vida mantenha seu fluxo. Dor que tem o seu tempo se não se apegar a ela, se a soltar, se deixar que siga o seu curso. Morte como instrumento de transformação. Já foi dito que “na natureza nada se perde, tudo se transforma”. Vida e morte são faces da mesma moeda, expressões do amor divino. Então, não há por que temer a perda, e sim o apego, esse, sim, causa de sofrimento.
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O Silêncio que Separa Quando se está enamorado, o cruzamento de olhares e de carícias bastam. O casal pode ficar horas abraçado, sem esboçar uma única palavra. No próximo estágio, começam as confidências. Nesse momento, há ainda critério e prudência no que partilhar. Quando chega a intimidade na conjugalidade, isso importa troca de angústias. O companheiro precisa do amparo e do acolhimento do outro em suas aflições e preocupações. Não se trata de concordar ou de aconselhar, mas de escutar compassivamente. É dar apoio psicológico, dar colo recíproco. A grande problemática é que a angústia é inerente ao ser humano e é comum um par procurar acolhimento no outro, que também tem suas angústias. Quando um ou os dois não são suficientes para suportar a angústia recíproca, não há disposição para ouvir, e o silêncio se instala, e é comum se buscar o desabafo fora dos limites conjugais. Nesse momento, o vínculo afetivo começa a se dissolver. Não é fácil conter a própria angústia para acolher a do outro. É um duro esforço de amor. Se a presença da escuta for genuína, acolherá a angústia do outro e a sua própria também será contemplada. Por um tempo.
POTÊNCIA DA MAGIA [O Mago] é o “ancião do ritual” que orienta os processos de transformação interna e externa. [...] E que pode perceber o que existe nas questões e que não é óbvio para as outras pessoas. É vidente e profeta no sentido não apenas de prever o futuro mas de ver em profundidade [...] tem o conhecimento aplicado de como conter e canalizar poder [...] É o arquétipo da consciência e da percepção [...] do conhecimento de tudo que não é imediatamente visível [...] [É] o “Ego Observador”.
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“Rei, Guerreiro, Mago, Amante: a redescoberta dos arquétipos do masculino” – Robert Moore e Douglas Gillette.
(O Mago) é o “ancião do ritual” que orienta os processos de de transformação interna e externa......... E que pode perceber o que existe nas questões e que não é óbvio para as outras pessoas. É vidente e profeta no sentido não apenas de prever o futuro mas de ver em profundidade ......... (tem) o conhecimento aplicado de como conter e canalizar poder......... É o arquétipo da consciência
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Magia - Fantasia ou Realidade? Os contos de fadas são escritos para que as crianças durmam, mas também para que os adultos despertem. Hans Christian Andersem Quando se ouve a palavra magia, salta à mente a ideia de algo irreal e fantasioso. Sendo assim, poder-se-ia incluir tudo que não pode ser observado e estudado em laboratório, aferido e atestado pela ciência. Magia seria os efeitos provocados pelos ilusionistas e os chamados fenômenos sobrenaturais. Mas há outros conceitos pouco conhecidos. A filosofia vê a magia como a ciência da alquimia e das transformações. A magia seria a arte de colher as ideias no repositório universal e trazer ao mundo material. Seria a combinação da imaginação com a vontade. Sobre esse enfoque, são magos os inventores, os inspirados, os sensitivos, os pesquisadores, os artistas. A filosofia vai mais além e diz que todos podem ser magos na construção de si mesmos, no planejamento de si próprios, ao estabelecer metas de crescimento e colocar a vontade a serviço da evolução a novos patamares. Já a mitologia diz que as figuras mágicas são xamãs, curandeiras, feiticeiras, pajés, bruxas. São também inventoras, cientistas, médicas, advogadas, técnicas, terapeutas e todas as pessoas iniciadas em uma ciência, um ofício, uma técnica, aquelas que se especializaram e adquiriram maestria numa área do saber. Na condição de modelo, é também o ancião ou a anciã, o sábio ou a sábia que conduz processos de iniciação, do conhecimento oculto, do aprendizado que exige um trabalho, uma arte a ser expressa. É quem se aperfeiçoou em algo que ninguém sabe. É quem é mestre em conter e canalizar poder. Quem é dotado de perspicácia, discernimento, mestre da percepção, e em aconselhar. Como qualquer arquétipo, inspira o indivíduo a ativar e desenvolver suas próprias potências. A magia está associada à mulher selvagem por ser uma força da natureza, sua natureza básica e inata. Aquela que pressente o perigo, que sabe quando a cria está doente, que se recolhe para lamber as feridas enquanto cuida da cria. Que conhece e sabe manipular as plantas de cura. No campo sutil, é capaz de pressentir, de intuir, de elevar a consciência e de sondar a natureza e a índole de alguém. A magia está entre nós, surpreendendo e causando perplexidade a toda hora. Podemos chamá-la de milagre, mediunidade, sensibilidade, sensitividade, inventividade ou criatividade. Ela é vista no recém-nascido que sobrevive após ser jogado no lixo; nas curas espontâneas de pessoas com diagnóstico fatal; no gari que consegue ser médico; naquele único sobrevivente em um acidente de avião; nas tantas conversões humanas tidas como impossíveis; na criação de uma vacina em tempo recorde. Um dia se constará que a magia não viola qualquer lei
72 natural, é apenas uma lei natural não descoberta. Por ora, é algo que a humanidade não pode entender ou aceitar porque a ciência ainda não lhe dá o carimbo de veracidade. O certo é que a pessoa, mesmo sem saber, está fazendo magia a cada dia, para se reinventar e sobreviver física, mental e psicologicamente num mundo que desafia, instiga e estimula a reflexão, o aprendizado e a autossuperação. Qualquer um pode escolher e decidir usar esse recurso de forma voluntária e consciente, em seu proveito e a serviço dos outros.
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As Coisas Não São O Que Parecem Ser É limitada a capacidade humana de interpretar o mundo, tanto o mundo interno quanto o externo. A realidade nos chega através dos sentidos, que são, por sua vez, comprometidos pela memória equivocada das experiências vividas. Um cheiro, um sabor, uma música resgatam a lembrança de momentos alegres ou tristes. Um olhar, uma expressão facial, um gesto projetam a pessoa a situações que lhe deixaram marcas, afastando-lhe do presente. Relaciona-se com o passado e com expectativas e não o agora. Julgam-se as circunstâncias com base nas crenças que se herdam e são assimiladas ao longo da vida. O contato com o mundo se dá por meio de máscaras onde nos escondemos e pensamos nos proteger de críticas e sofrimento, máscaras que de tão usadas pensamos ser o rosto. É nesse emaranhado de ilusões, fantasias, desejos e pretensões que nos movemos, carentes de realidade. Sequer se sabe quem é, não se tem uma percepção nítida de si, da vida, das pessoas e do instante. É preciso desenvolver o poder de observação, que chega através da reflexão, da perspicácia, do discernimento e da consciência. É preciso disposição para soltar as ilusões. Clareza para ver as coisas, situações e pessoas como elas são. Ela trará encontros verdadeiros, relacionamentos íntegros, e isso só acontece estando no presente. Invoque-se o Mago, o Mestre, a Deusa anciã, o Conselheiro, o Eu Observador para iniciação nessas habilidades. Para ter clareza e se tornar terapeuta de si mesmo. Para ter um ângulo de visão mais abrangente da realidade. Essa energia instintiva vem através do empenho e da dedicação no aprendizado daquilo que não está visível, do conhecimento secreto que é dado àqueles que buscam a maestria no autoconhecimento e a perícia de um ofício em favor não apenas de si, mas principalmente do coletivo. Isso é sabedoria. Que ela nos guie.
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Tempo De Falsos Profetas Sempre que nos afastamos, que não nos relacionamos, que retemos algo que sabemos que poderia ajudar outras pessoas, sempre que usamos o nosso conhecimento como uma arma para humilhar e controlar os outros, ou para nos gabarmos às custas do nosso “status” ou riqueza, estamos identificados com o Mago da Sombra, com o Manipulador. Estamos fazendo magia negra, prejudicando-nos da mesma forma que às pessoas que poderiam beneficiar-se da nossa sabedoria. “Rei, Guerreiro, Mago, Amante: a redescoberta dos arquétipos do masculino” – Robert Moore e Douglas Gillette. Desde os tempos bíblicos, Jesus já alertava para a existência de falsos profetas, referindo-se àqueles que usavam a palavra do Senhor em favor de seus interesses, usando de engano, engodo e fraude. E hoje, como eles se apresentam? Assim como no passado, conhecem profundamente as mazelas humanas e as manipulam, com promessas vãs do que as pessoas querem. O dinheiro hoje é o Deus de muitos e para obtê-lo fica-se cego. Se o sujeito estivesse isento de ganância, veria o quanto é irreal a oferta. Os poderosos sempre manipularam a massa através do que a mitologia chama de magia negra. Seduzem as pessoas valendo-se de duas emoções humanas: medo e desejo. Desejo de conseguir algo e medo de não a obter ou de perdê-la ao alcançá-la. O medo turva a mente, alijando o senso crítico. Muitas das decisões humanas são tomadas a partir do medo. Não são precedidas de um exame crítico da situação, do contexto, das variáveis da questão. E o desejo obstinado traz em sua esteira o egoísmo e a inconsequência. Hoje a mentira institucionalizou-se e a maioria não quer saber a verdade. Vi uma charge interessante, que retratava muito bem essa situação, e dizia: “como pode ser fake News se é exatamente nisso que eu acredito?” Então, não importa se é real, desde que atenda aos interesses, muitas vezes egoísticos, ainda que motivados por más inclinações, desde que a voz tenha coro. Alivia-se a consciência com a validação pública pelos seus pares. E ao validar a opinião alheia, a pessoa torna-se multiplicador e responsável pelo que se divulga. Passa ser um falso profeta. Não importa se é verdade. Se é o que se quer, o que basta é haver quem defenda isso, mesmo que os argumentos não sejam consistentes. Não se olha para as falhas, nem para as lacunas do discurso. Se é verdade que a ciência não sabe tudo, que ela mesma reconhece que a cada dia se aprende com novas descobertas, isso não é aval para defender a crendice, o achismo. Os falsos profetas só querem manipular a multidão em benefício próprio. Então, eu me pergunto: onde se vai parar ao se guiar pelo medo de perder e pelo desejo de obter a qualquer custo?
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Não se pode renunciar à capacidade de pensar, de analisar, de ponderar, qualidades que diferenciam o ser humano dos irracionais. Delegar aos outros esse atributo é se desumanizar e não assumir a responsabilidade por sua vida. Não é fácil ser isento, nem atuar com discernimento e senso crítico. Invoque-se a energia do Mago Interior, o mestre em conter e canalizar o poder da perspicácia, percepção e discernimento. Aquele que revela quando se está sendo controlado pelo lado sombrio da magia. Para os cristãos, o melhor é sempre aquilo que beneficia a todos e não o que atende exclusivamente aos interesses pessoais. Esse é o norte e o portal para acessar nossos recursos internos.
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Deus Customizado Falsos profetas são o juízo de Deus para as pessoas que não querem Deus, que em nome da religião planejam ter tudo que seus corações carnais desejam... Aquelas pessoas que o seguem, não são suas vítimas. É o juízo de Deus porque querem exatamente o que querem e não é Deus. Paul Washer Falhou quem decretou a morte de Deus. Ele não está morto, e sim personalizado. Deus ganhou novos nomes, como dinheiro, sucesso, corpo perfeito. O Deus inalcançável hoje está entre nós nas redes sociais, na figura de influencer. Deus agora é um produto vendido nos templos, barganhado pelo consumo do desejado. Nada mais é sagrado, tudo é fruto da euforia do momento e substituível pelo novo ídolo da moda. Sim, a idolatria voltou, a deuses humanos criados à imagem e semelhança das vontades pessoais. Elegem-se falsos profetas sabendo sê-los. O contágio pela sedução dos apetites converte os seguidores em massa que querem a manobra. Nessa idolatria não há fé, pois não há compromisso com a verdade, nem convicção profunda. Os adeptos são conscientes da ilusão que escolheram. Não há devoção ao ídolo, mas aos desejos. A revência é impossibilidade onde habita o cinismo, onde não há profundo respeito. Tampouco existe veneração onde a relação é desprovida de admiração. Adoração não tem lugar onde não há culto ou ritual sagrados. Esse frágil e inconsistente vínculo sobrevive pela cegueira à dissolução dos castelos de areia levados pelo vento, pela auto alienação, pelo culto ao falseamento e é modelável aos interesses do séquito. Idolatra-se a ideia perversa projetada no ídolo. O que salva esse cotejo é o profundo e genuíno anseio de Deus presente em cada um, que um dia forçará passagem. O Deus que os habita e que dialoga com a Fonte. O Deus Vivo que não desiste de Sua criação e que chama, a toda hora, de volta à Casa.
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Maya E O Barba Azul Nada é mais sedutor do que a ilusão. É a ilusão que nos move, e não a verdade. Rainha da utopia, Maya nos envolve com promessas de paraíso. É a patrona dos amores impossíveis, mestra em ativar o prazer sensorial, as forças eróticas e a paixão. Ela nos arrebata e nos cega a realidade e se diverte com a ingenuidade que nos acomete. Assim como o Barba Azul, Maya brinca com os sentimentos humanos, e nos joga no abismo da confusão e angústia dos desejos não realizados. Essa fantasia nos prende ao calabouço das frustrações e vai minando, pouco a pouco, nossa força, poder e identidade, até nos transformar em algo amorfo e sem vida. Barba Azul e Maya oferecem o néctar dos Deuses, hipnotizam, enquanto sugam a essência. Esses predadores se complementam num encontro simbiótico. É difícil percebê-los porque usam as correntes do amor de forma perversa e assim as deformam. E quando a pessoa se dá conta, parece não ter mais volta. O que salva a todos é a arrogância e prepotência que ignoram as forças da luz, sempre disponíveis, para resgatar, recompor, reconstruir, revitalizar quem as procura. Elas nos tocam como uma melodia divina que remonta os ossos, recompõe as cartilagens e músculos e devolvem a humanidade. Só basta invocálas. Muitos ignoram que ilusão e verdade compõem o campo de visão. Um olhar que se elege de acordo com o apego a uma ou disposição em encontrar a outra. É preciso se apropriar dessa magia numinosa. E estar atento às investidas do mágico fracassado e sua rainha.
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A Louca Lucidez Cheguei à conclusão de que a loucura é contagiosa. Assim como o cupim que fica à espreita de uma madeira mais mole para roer (e sempre encontra), o gérmen da insanidade cresce rápido ao identificar uma oportunidade para se multiplicar. Fixa-se a máscara da lucidez e parte-se para as mais desarvoradas sandices, acreditando na própria farsa. Ora é Dom Quixote, ora Pastor, ora Inquisidor, ora Mártir. Obstinado em moldar o mundo a seu jeito, o indivíduo empunha a lança disfarçada de bandeira. Quem é sadio deveria agir em coerência com o que sente e pensa, não culparia o outro por seus erros, não se estressaria por tolice nem faria uma tempestade num copo d’água. Ele não daria mais valor às coisas do que às pessoas, não faria escolhas nem tomaria decisões contrárias ao seu próprio interesse. Ainda assim, se considera essas atitudes normais, talvez porque em geral não se tem outro parâmetro, é assim que a maioria age. Não se percebe quando se assanham os micróbios da intemperança. Óbvia fica essa louca lucidez na convivência, pois “de perto, ninguém é normal”. Para se ver o desajuste, é preciso invocar a magia do Mago, aquietar as vozes mentais que falam caoticamente e ouvir a verdade sobre o que nos acomete. Firme, experiente e acolhedor silêncio, à espera da benfazeja luz. E escolher novos parâmetros.
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Devaneio e Vida Concreta O devaneio é uma instância psíquica do imaginário. É onde se opera a inspiração, a intuição e a criatividade. Os artistas transportam-se para lá em seu processo criativo. Até mesmo os cientistas, cuja ferramenta mental é o racional, muitas vezes fazem descobertas num momento de revelação ou insight, que só acontece quando há deslocamento da psique para a dimensão do inconsciente. O devaneio é a liberdade da mente, da fantasia, das ideias aparentemente utópicas, do sonho, da quimera. É o resultado da divagação. É a esfera onírica que se manifesta em estado de vigília. O devaneio pode ser ativado ao ler um livro, ao assistir um filme, ao ouvir uma música. Ele pode transportar a pessoa a uma memória ou a algo imaginário. O inconsciente coletivo influencia a mente no devaneio, pelo forte conteúdo mitológico que inspira o sonho. Ele também se percebe na divagação da narrativa, onde a mente transita sem se deter nos escaninhos da mente, chegando a perder o foco. Todos esses exemplos são processos naturais e saudáveis de “sonhar acordado”. Abstraindo os níveis patológicos que levam ao delírio e à perda da noção de realidade, a divagação em excesso é nociva. Enquanto discurso, é um reflexo de incongruência mental e da incapacidade de articular pensamentos. É prejudicial porque afasta a objetividade, o que leva a pessoa a perder-se em suas ideias. Enquanto manifestação restrita ao ambiente psíquico, pode dificultar a atuação na vida concreta. Isso se dá por ser uma tendência da personalidade, que tem melhor desempenho nessa esfera mental, mas pode ser também escapismo, uma forma de fugir da realidade. As mulheres, antes da emancipação, usavam o devaneio como refúgio, para munir-se de prazer e esperança diante do inóspito da vida que eram forçadas a levar. A liberdade de sonhar era a única de que dispunham. Mas a demanda autoritária e repressora que as obrigava a lidar com o palpável lhes favoreceu, ao não permitir que elas lá ficassem e, assim, elas foram capazes de fazer a distinção entre os dois domínios. Já o homem era estimulado ao devaneio como forma de inspirá-lo e conduzi-lo a atos de heroísmo. Até hoje esse devaneio existe no sonho de poder que é representado pelo sucesso profissional e financeiro. A esse, outros níveis foram assimilados, que vai desde fantasias eróticas e de virilidade sexual, a ganhar na loteria ou a obter a vitória de seu time. A jornada do homem ao longo da história sempre o tirou do ambiente doméstico. Seja pelas viagens de conquistas e desbravamentos, seja pela guerra, entre outros motivos. Em tempos atuais, o deslocamento se dá simbolicamente pela luta em busca do sucesso nas atividades laborativas, ou pela aventura representada pelos encontros amorosos furtivos ou com seus pares em atividades de lazer. Assim, em geral o homem não desenvolveu vocação para atividades do cotidiano, quais sejam tarefas do lar, contratações relacionadas à manutenção patrimonial, pagamento de contas, trato com os filhos e a relação deles com a escola. A rotina não está inserida no repertório dos hábitos masculinos, cuja
80 tendência é o da aventura. Nesse contexto, o devaneio masculino é mais uma forma de estado psíquico do que um ato consciente, usado para fuga da realidade que o desagrada e da qual não tem familiaridade. Quando se rejeita aquilo que não satisfaz, afasta-se também a possibilidade de usufruir do que dá prazer. Enfrentar a vida como ela é importa em se lançar à procura da realização de desejos possíveis, desde que se esteja disposto a pagar o preço. Por mais que o devaneio seja prazeroso e sedutor, é na vida concreta que a existência acontece e o indivíduo se realiza. Para que o devaneio cumpra sua função, o sonho precisa ser concretizado. Para isso, é preciso identificar e dissolver as crenças e superstições derrotistas que impedem que ele aconteça. O imaginário e o concreto são duas instâncias do psiquismo que não se pode dissociar, nem prescindir de qualquer uma. O equilíbrio está em transitar entre elas de forma consciente e madura, para proveito de uma vida verdadeiramente saudável e feliz.
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As Mulheres Entendem os Homens? Entender totalmente o parceiro é utopia. Mas para se manter o vínculo é fundamental a constante curiosidade por ele. O homem diz que não entende e nunca vai entender uma mulher, mas será que a mulher o entende? Trago minha contribuição para reflexão, a partir de minhas experiências maritais, que se iniciaram bem jovem e com poucos intervalos entre uma e outra. Foram vivências ricas que ajudaram a me conhecer e entender como me movimento dentro da relação. Entretanto, só agora, na fase madura e em retrospectiva, pude reunir algumas pistas sobre o que deu certo e o que inviabilizou a convivência. Tal comportamento na vida em comum também ouvi de mulheres do meu convívio. O erro de raciocínio mais comum da mulher é o de deduzir que o homem pensa e sente da mesma forma que ela. Ela transforma esse desejo em algo concreto a ponto de, para algumas, ser inconcebível que haja outra maneira de ser. Assim, o comportamento masculino dentro da relação é causa de estranhamento e frustração. Aquele que não corresponder ao esperado é visto como alguém de má vontade, com falta de interesse e até mesmo falta de cuidado e de amor. Resumidamente, ela não vê o parceiro, mas uma projeção do homem ideal, aquele modelado por sua mente. O modelo geral de parceiro conjugal é aquele que seja um bom ouvinte, que esteja disponível para discutir a relação, que tome a iniciativa em dividir as obrigações práticas do cotidiano sem que ela precise pedir, que atue na educação dos filhos, que a apoie em sua vida profissional, que esteja atento à aparência dela e lhe faça elogios, entre outras coisas. Pretensões possíveis, mas incompatíveis com o que ele culturalmente aprendeu a ofertar. Outro erro é supor que os dois querem a mesma coisa do casamento. A mulher quer ter a própria família, o próprio lar e um parceiro de vida. O homem se casa para “sossegar”, para ter um porto seguro, para ser cuidado. Ambos se iludem nas expectativas de um em relação ao outro. Há uma diferença entre entender os hábitos e saber como o homem de verdade funciona. A mulher aprendeu a observar nele as atitudes e reações a determinados estímulos, mas não vai além disso. Como agravante, há nela a crença que generaliza a infidelidade e a mentira masculina como algo previsível e esperado. Então ela desconfia que sua fala, omissões e atitudes nas mínimas coisas podem ser dissimuladas, como quando ele diz que não está pensando em nada, que não ouviu, que esqueceu, que estava onde disse estar. Evidente que essa tendência interfere negativamente nos laços de confiança do casal. Há ainda autoengano ao ignorar que enquanto a intenção dela é de criar vínculo, o dele é de fazer sexo. O vínculo, na forma como ela sonha, é algo que ele evita. Para ter uma boa convivência, a mulher precisa aceitar que há diferenças entre eles. Que esperar a continuidade da atitude romântica natural do jogo de sedução é uma ilusão. Por outro lado, o homem sabe e é capaz de realizar a
82 vontade da mulher, porque assim procede no momento da conquista. O que não existe é disposição de continuidade, seja porque não desenvolveu essa qualidade, seja por questões culturais, ou porque não quer mesmo. A grande dificuldade para a mulher entender o homem é que ele não se conhece e mesmo aqueles que que têm alguma noção de quem é não gostam de falar de si. Por esse motivo, essa empreitada converte-se num jogo de adivinhação, de tentativas de erros e acertos. E como o casamento não vem com manual de instrução, essa característica masculina acaba por virar um problema. A verdade é que a maioria dos homens, mesmo os casados, não quer compromisso, por tudo que essa palavra acarreta. Mesmo quando se mantém numa relação duradoura, não quer pagar o preço da escolha que fez, quer o melhor dos dois mundos, do casado e do solteiro e nenhuma obrigação que vá além da de pagar as contas. A dificuldade da mulher no compromisso, por sua vez, está no medo de intimidade, o que é um contrassenso, já que cobra tanto isso do marido. A falta de compromisso inviabiliza a conjugalidade consistente e saudável, a exigir de ambos mudança de atitude. A natureza masculina é de liberdade, de aventura, de voltar-se para fora. Por ser o casamento um projeto de vida feminina, o homem não é capaz de entender que ela teve que renunciar a muita coisa para sua realização e que os encargos conjugais lhe pesam, por serem culturalmente maiores que o dos homens. À vista desse panorama, cada vez mais o casamento deixou de ser atrativo para ela, por achar que o homem dá muito trabalho e traz muita demanda no convívio. Para um encontro feliz, a mulher precisa desenvolver a curiosidade em conhecer o homem com quem vive, criando ambiente favorável para que ele se sinta seguro em se mostrar como é, sem medo de ser reprovado ou rejeitado. O homem, a seu tempo, precisa sair da acomodação e assumir a responsabilidade que lhe cabe para o sucesso conjugal. Quem sabe se, dessa forma, se estabeleça a cumplicidade para se revelarem mutuamente em sua inteireza e dessa forma se pratique o aprendizado de apreciar a pessoa que está diante de si e de abrir mão de projetar no outro a realização de sonhos utópicos.
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Amor Romântico Versus Intimidade As históricas épicas falam da bravura em viver um amor. Amor que rompe com convenções sociais e com moralismo. Amor que não se realiza e eterniza-se na morte dos amantes. Elas surgiram num tempo em que os casamentos eram arranjados em função do interesse patrimonial e que sentimentos não eram considerados. O mito traz um paradoxo, enaltece e sublima o amor que resiste a todas as dificuldades, um amor de superação, enquanto lhe destina o impasse, cuja única solução é perecer. Na era do Romantismo, esse tipo de amor volta à cena, e preenche o imaginário dos artistas, em especial dos poetas, que o retratavam como inalcançável e a amada era venerada. No Brasil, artistas românticos cultivavam o pessimismo, a fatalidade e o derrotismo, a ponto de muitos morrerem precocemente. Era romântico “morrer de amor”. O amor romântico permeia o inconsciente coletivo ocidental e traz vários reflexos nas relações. A atitude dos pares sofreu várias mudanças no decorrer da história recente, passando do machismo ao feminismo, aos encontros efêmeros, ao anseio genuíno de companhia por quem vive em isolamento afetivo. Mas o medo de aniquilamento pelo amor vive à espreita. Padrões impostos foram desconstruídos e em seu lugar surgiram vínculos onde a mulher tem posturas masculinas e o homem, atitude passiva. Esse modelo, entretanto, não prosperou. Crescente é o sentimento de inadequação masculina diante da assertividade feminina e sua independência financeira, ao passo que, cada vez mais, a aspiração feminina é por um parceiro mais viril e participativo. O Romantismo inspirou tantas histórias e lendas como a de Lancelot e Guinevere, Romeu e Julieta e Tristão e Isolda, que louvam impulsividade e inconsequência dos apaixonados, em detrimento de um amor construído dia a dia, tijolo por tijolo, na argamassa da paciência, tolerância e cumplicidade. Se antes foi preciso lutar contra fortes obstáculos sociais, hoje eles não mais existem, pois, com o afrouxamento ou flexibilização das regras tidas como morais social, quase nada mais é proibido ou reprimido, e, por isso mesmo, muitos acham desestimulante um amor “fácil”. Por outro lado, agora os impedimentos são criados pelo individualismo e por medo de intimidade. O mito sinaliza que amar é morrer, e esse sentimento domina o inconsciente do indivíduo de tal forma que os encontros costumam ser interrompidos por medo de apaixonar-se e “perder-se” no outro. Alguns homens, e até mulheres, transitam de um relacionamento a outro, e, quando se chega à etapa em que o compromisso é uma consequência natural, afastam-se e “pedem um tempo”.
84 Outras pessoas casam buscando apenas as vantagens que o casamento traz, mas não se envolvem e amiúde buscam relacionamentos extraconjugais para não se aproximar “demais” de seus pares. Há mulheres que priorizam a carreira profissional para não viver o amor. Ou cultivam relações baseadas no sexo, ou, ainda, desviam a energia sexual e afetiva para a administração da casa, o trabalho e os cuidados com os filhos. Participam ainda de sutis jogos de sedução fora do casamento para se sentirem desejadas. O que ficou do amor romântico foi a obstinação de quem prefere a morte a perder o ser amado, a não aceitação do fim dos afetos, resultando em pequenas vinganças, tendo por alvo o patrimônio do casal e o amor dos filhos, chegando, em sua versão extrema, ao crime passional. Ao dedicar um olhar atento ao simbolismo de Tristão e Isolda, pode-se extrair a mensagem real que o mito transmite. Os obstáculos parecem instransponíveis para o amor porque amar assusta, exige dedicação, interesse, curiosidade no outro, cumplicidade, compromisso. Não se morrerá ao se vivenciar o amor, mas a busca da intimidade importa em eliminar defesas que impedem a entrega. Exige vencer a insegurança, a acomodação, a resistência, a obstinação, o isolamento, o medo, sair da zona de conforto e do lugar comum. Ao não permitir as mortes cíclicas em uma convivência, não florescerão novas experiências e oportunidades que mantém a chama viva. Ao se ficar agarrado à borda do precipício, ou se fugir dele, estar-se-á inutilmente tentando reter algo que foi importante, necessário e revigorante, mas que agora não mais existe e tornou-se entrave para o crescimento a dois a mais um nível. As mudanças periódicas fazem parte de um relacionamento duradouro, para que o amor se renove. A imortalidade do amor celebrada nas histórias mitológicas só é possível se aceitarmos a morte do que se tornou obsoleto, que não serve mais e que se mantém pela inércia. Amar dá trabalho, ninguém disse que seria fácil, mas a dificuldade decorre das limitações autoimpostas e decorrentes do medo de amar e de ser feliz. Não há modelos a serem seguidos ou obedecidos quando se fala de amor. Não existem papéis pré-estabelecidos. Indispensável é que cada parceiro esteja inteiro em si mesmo e atento ao outro. A palavra-chave é equilíbrio e harmonia das singularidades e diferenças de cada um. Saber o tempo de ser ativo e de ser receptivo; de estar em comunhão e de preservar a individualidade. O tempo de encantamento e de superação. De ver o belo e de aceitar o feio em si e no parceiro de vida. Tempo de compaixão.
DIVINDADE 85
A presença ou ausência de deusas com qualidades particulares na mitologia de uma cultura são reflexões da gama de poder e perplexidade, ou sua falta, em relação ao feminino sagrado.... Era subjetivamente importante notar que as mulheres sentiam que o que estavam fazendo tinha uma dimensão sagrada quando o papel particular de suas vidas era também um arquétipo ativo nelas. “As Deusas e a Mulher Madura – Arquétipos nas mulheres com mais de 50” – Jean Shinoda Bolen, M. D.
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A Caminho da Sabedoria Feminina Quando a mulher se distancia de sua essência, a vida se empobrece. É premente resgatar nas pessoas as virtudes femininas, reintegrar ao caráter a sabedoria como bem maior a ser almejado, para um mundo humanizado. Como potência mental, o feminino está associado à sabedoria, por ter agudeza na perspicácia, na percepção dos detalhes, na curiosidade e observação do entorno, na capacidade de discriminação, na compreensão do contexto. Questiona, reflete, pondera, conclui. Está em constante mutação. Tem bom humor e espírito brincalhão. Fala-se da idade madura como se maturidade tivesse idade. Maturidade é a tendência de quem está aberto para o saber. É a maestria em viver em coerência com quem se é e para ser é preciso conhecer-se por inteiro, as potências e as fraquezas, as possibilidades e os impedimentos. É o estado de plena ascensão em sorver aprendizado de qualquer situação. Não é algo finalizado, processo que é, sempre em aprimoramento. É a fruta madura a ser saboreada que traz em si a semente do novo início. A sabedoria vai mais além, envolve um cotejo de habilidades e virtudes e a maturidade é uma delas. A sabedoria feminina reveste-se de peculiaridades que a diferenciam. Tanto a sabedoria quanto a maturidade valem-se do tempo e dos eventos para adquirirem experiência e, com ela, as virtudes, por isso, o curso natural é que elas sejam significantes na mulher mais velha. A mulher madura, aquela que não deixou a vida lhe escapar, tudo viu, sentiu e viveu. Já não tem ambições materiais e de títulos, ainda que seja movida a realizações e aprecie conforto e beleza. Já entregou os filhos ao mundo, usa suas aptidões para a conquista de si mesma. Busca a sabedoria ao combinar experiência, intelecto e intuição. É conselheira respeitada. Pressente a dimensão sagrada do que faz na vida e do significado que ela contém. Vê além das aparências. Vive experiências filosóficas e espirituais inefáveis. Navega no mundo das metáforas em busca de significado que a transcenda. Tem percepção apurada pela observação. É dotada de sabedoria contemplativa, serenidade interior que se traduz pela harmonia que a circunda, seja no lar, no ofício ou nas relações. Por ser focada em seu universo interno, atua de forma efetiva no mundo externo. Esse feixe de virtudes compõem o arcabouço de várias deusas sábias da antiguidade, cada uma com suas especificidades e que habitam o inconsciente coletivo e a psique da mulher, que na idade madura, tem a oportunidade de aflorar. São energias arquetípicas dotadas de compaixão, humor restaurador e capacidade para agir com decisão. O universo feminino é rico em possibilidades que lhe são naturais. Esses modelos de perfeição incentivam o perfectível, desde que se saiba quem é, onde se está e para onde se quer ir. São factíveis e realizáveis a partir do potencial de que se detém e da disposição em ativá-lo e desenvolvê-lo. A mulher madura é a idosa maturada, a anciã que sabe, dotada de vivacidade e vigor, dissociada da decrepitude. A decisão do rumo a tomar é pessoal. O mestre e guia do curso é o amor.
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Maturidade Quem viveu plenamente cada etapa da vida, sem se deter em nenhuma e aprendendo com todas, chegou ao último patamar acumulando o saber de todas as experiências, o apogeu da maturidade. Ao realizar a trajetória com bravura e honradez, está pronto para partilhar sua maestria. A prática leva ao aprimoramento. Quem ultrapassou os arroubos da juventude busca a moderação na forma de pensar, sentir e agir. Ao sofrer destemperos e frustações, conquistou a indiferença às pequenas contrariedades e a expectativas irreais. Quem já provou a imprudência, a impulsividade inconsequente e a instabilidade de humores, apurou e refinou o temperamento e o comportamento. Quando entendeu que há um tempo certo para todas as coisas, passou a praticar a paciência. Trouxe sentimento fraterno às relações, essenciais nesta fase da vida. Desenvolveu tolerância e compaixão por si próprio e pelos outros. Passou a apreciar a simplicidade da vida despojada de supérfluos. Depois de muitas vezes dar murro em ponto de faca, aprendeu a respeitar as ideias e pensamentos dos outros, mesmo que fossem contra ao que acredita. Após empunhar muitas bandeiras de forma agressiva e hostil, hoje expressa uma assertividade firme, mas branda, amorosa, cordata e amistosa. Esse é o modelo ideal, o farol a guiar o caminho de quem deseja boa qualidade de vida nesse nível final de consolidação de aprendizado, daquele que busca uma vida próspera e feliz, que só se alcança pelo exercício da temperança e da sabedoria.
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Amor Fraterno Muitas pessoas acham erradamente que ouvir é um processo passivo que consiste em ficar em silêncio enquanto outra pessoa fala. Podemos até nos considerar bons ouvintes, mas o que fazemos na maior parte das vezes é ouvir seletivamente, fazendo julgamentos sobre o que está sendo dito e pensando em maneiras de terminar a conversa ou direcioná-la de modo mais prazeroso para nós. A tarefa de ouvir exige sacrifício, uma doação de nós mesmos para bloquear o mais possível o ruído interno e de fato entrar no mundo da outra pessoa – mesmo que em poucos minutos. Essa identificação com quem fala se chama empatia e requer muito esforço. Há um efeito catártico em fazer-se ouvir atentamente por outra pessoa e poder expressar-lhe nossos sentimentos. “O Monge e o Executivo – uma História sobre a Essência da Liderança” – James C. Hunter Quando penso em amor fraterno, lembro-me de meus nove irmãos e de como existe entre nós uma agregação espontânea, um compromisso de nos mantermos unidos, algo que supera as diferenças no jeito de ser, de opiniões, de gostos e hábitos. Mesmo no atrito e ainda que nos afastemos uns dos outros, temos a certeza de que virá o momento do retorno e da conciliação. Com o amadurecimento, amenizamos os rompantes, quebramos as teimosias e valorizamos o que é importante, o amor. A família é a raiz de todo indivíduo, é a base de quem somos, não podendo ser relegada sem prejuízo. É nela que nos afirmamos e é dela que extraímos a força para as adversidades. Sabemos que existem famílias disfuncionais e desajustadas, que não conseguem um ponto de equilíbrio. A elas o meu respeito e pesar. Ainda assim, é possível encontrar uma forma de nelas estar, preservandose no que for possível. Mas há uma outra família necessária e indispensável, que é a família fraterna. Ela é formada por aqueles que encontramos na estrada da vida e com quem criamos vínculos afetivos. Esses irmãos forjados pela empatia não precisam pensar como nós, viver como nós, ter os mesmos gostos ou hábitos. Assim como aqueles de sangue, buscam a superação dos obstáculos, priorizando o afeto. A fraternidade se dá também de forma grupal. Nesse ambiente há um ponto de intersecção, um elo que mantém a união. Com o passar do tempo, aquilo que os conectou pode até se dissolver e, ainda assim, a amizade permanecer. A amizade é algo singelo, cordial, afetuoso, onde há carinho, dedicação, interesse mútuo, abnegação, despojamento, doçura, cumplicidade, compaixão. São atributos que podemos encontrar nas relações fraternas, embora nem todos numa só. O importante é não criar expectativas; o amor fraterno é despido de cobranças, é aceitação, é se importar, é ouvir, é simplesmente estar para o outro. Mesmo que não nos vejamos, mesmo que ele more longe, sabemos que o amigo está ali para nós, é uma presença virtual.
89 Conheço alguém que classifica os amigos de acordo com a afinidade: amigo para ir ao cinema ou fazer um lanche, amigo para atividades físicas, amigo para discutir um livro, amigo para desabafar, amigo para rir e assim por diante. Essa pessoa sabe incluir todos com quem se conecta sem exigir o que eles não podem dar. O importante é saber que temos alguém além da família sanguínea que se importa conosco, com quem podemos contar, com quem podemos ser nós mesmos sem sermos julgados. Essa é a essência do amor fraternal. Façamos a nossa alquimia.
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O Amor Em Seus Múltiplos Prismas O amor é fonte de vida, é poder supremo, a expressão do divino no humano. Essa força motriz mantém a existência e dá-lhe sentido. É a constante busca do ser humano e nessa empreitada ele expressa-se de várias formas. Ao longo da vida, ainda que não se perceba, segue-se em direção a essa Usina que tudo transforma e que sustenta toda a criação. O amor incondicional, corolário almejado, é um referencial ainda inconcebível, mas a ânsia de vive-lo possibilita o seu contato em pequenos instantes e motiva a caminhada. Por mais rudimentares e inacessíveis que sejam os sentimentos de uma pessoa, o amor sobrevive na forma latente ou embrionária. O amor tem uma gama de alvos: amor a objetos; amor a pensamentos e ideias, a valores, a ideais; amor à estética, à arte, à beleza; amor à profissão, ao lazer; amor à natureza, aos seres vivos, como plantas e animais. Nessas versões, o amor revela-se através da contemplação, do cuidar, do servir e do prazer. Entre pessoas, ele é categorizado de acordo com o grau de parentesco ou de vínculo afetivo. Na afeição aos colegas de trabalho aprendemos sobre coleguismo e espírito de equipe. Pelos conhecidos, nutrimos o bem querer; pelos amigos, o sentimento fraternal. Pelos filhos o amor se expressa pela capacidade de colocar o outro em primeiro lugar, pela dedicação, abnegação e indulgência; no amor pelos pais, afloram respeito, confiança e gratidão; no afeto pelo irmão, cultivamos companheirismo e respeito ao igual. Na devoção pelo divino, há entrega e veneração. Sabemos que a imperfeição é condição humana, logo, estaremos a cada instante trazendo ao amor sombra e luz em gradações diversas, de acordo com a aplicação do aluno na prática de amar. Em geral, tentamos exercitar a boa convivência, respeitar as diferenças e praticar o desapego. E em cada forma de expressão é possível fusionar sentimento e atitude, única maneira de viver o amor em sua plenitude, pois amar é amor em ação. O amor que requer e reúne mais virtudes é o que se dá em relações afetivas. Esse tipo requer, além de todos os atributos já mencionados, o interesse no outro, a curiosidade em conhecê-lo, a disposição em revelar-se, a cumplicidade, o esforço em conciliar as diferenças, a tolerância e muito mais. A união das singularidades tanto é atraente quanto desafiadora, a dispender esforços no respeito à forma de ser do outro enquanto se sustenta a autoafirmação. É o amor mais exigente, porque muito oferece a quem o busca. É a forma mais eficiente do crescimento recíproco pelo atrito das individualidades seguido de conciliação das divergências. Na vida, a todo momento transitamos entre as várias expressões desse sentimento maior. Seja qual for a modalidade praticada, é sempre uma forma de revelar o divino em cada um, desde que se considere “justa toda forma de amor”. Que possamos viver para o amor, pelo amor e através dele.
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Afetos e Desafetos Por mais que se queira, não há como o indivíduo ser uma ilha. Ainda que tente se isolar, ele não pode evitar a interação com pessoas e com o mundo. Estamos constantemente tocando e sendo tocados e trocando com a vida com nossa singularidade. A ilusão da indiferença decorre do amortecimento dos sentidos para não entrar em contato com a experiência, embora não a evite. A todo tempo estamos sendo instigados: a claridade do dia nos acorda, o alimento nos energiza, os hábitos de higiene nos dão bem-estar, o grito ou a buzinada nos assusta ou causa irritação, notícias ruins nos entristecem, o mau odor nos repele. O indivíduo liga-se à vida pelos sentidos, pela memória, pelas emoções, pela razão. A letargia, o torpor, o congelamento são formas defensivas aos estímulos. Adormece as sensações e sentimentos, no afã de evitar sofrimento e com isso se alija da alegria e do prazer. A absoluta falta de comunicação leva à morte. Não nos damos conta das interações que fazemos a toda hora com as pessoas e com as coisas. Afetamos os outros pelo que pensamos, sentimos e fazemos e pelo que somos. Mesmo que o vínculo seja passageiro e aparentemente sem importância, a exemplo da estranheza ao que se vê, a inocência no riso infantil, a repulsa a um odor, a raiva ao ser fechado no trânsito. A conexão pode ser intensa e efêmera, como paixão, ou profunda, duradoura e suave, como o amor e o ódio, ou mesmo decorrente da atração pela neurose em comum. Todos estamos imersos numa teia nervosa de variadas sinapses. Conscientes ou inconscientes são as relações que criamos em forma de afetos e desafetos. Quanto mais estivermos atentos a elas, mais delas poderemos desfrutar, delas desembaraçarmo-nos ou delas tirarmos proveito para nos conhecer, desde que saiamos do piloto automático e conduzamos a vida a partir de escolhas conscientes.
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O Que nos Transborda? Vivemos num mundo restrito que sofre limitações necessárias ao bom convívio. A delimitação de espaços de convivência com regras bem definidas é necessária. Mas há algo que ultrapassa essas fronteiras. São os afetos. Eles são capazes de nos atingir a quilômetros de distância. Estamos imersos em estímulos que nos afetam. Nas interações pessoais afetamos e somos afetados. Além dos afetos há uma ânsia do arrebatamento provocado pela transcendência. Existe uma memória remota de algo avassalador que lembra o transe, a paixão, ou o clímax do orgasmo. Alguns buscam essa experiência em momentos de expansão ou estado alterado da consciência, de forma espontânea ou por estímulos de plantas de poder. Outros recorrem às drogas. Outros a procuram em sucessivas aventuras amorosas. Nenhuma delas preenche esse vazio. O êxtase é a experiência de transcendência do ego, em que ele, por um instante, é arrebatado para fusão com o eu divino. É um momento de consciência cósmica. O êxtase pode acontecer pela unificação com as pessoas, com a natureza, com o universo. Ao nutrir o sentimento de inclusão por tudo e por todos. Esse transbordamento energético encontra outras abundâncias similares aumentando a potência divina. A grande unidade decorrente da rede de afetos sempre existiu. O que falta é convertê-la em um consciente encontro amoroso de almas. Almas que sigam arrebatadas pelo amor divino.
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O Que nos Atrai? Há uma força magnética que nos impulsiona para algo ou para alguém. E o que ativa essa força? Muitos dirão que é a curiosidade. A criança vai mexer na tomada por curiosidade. Mas qual o critério para despertar a curiosidade? Seria a novidade? Mas não é qualquer novo, mesmo que não nos demos conta, selecionamos o objeto de atenção. É uma seleção instintiva, intuitiva ou sensorial? A atração é um fenômeno que acontece no corpo. Em geral, começa com o olhar. Há um efeito criado pelo olhar sobre o objeto de interesse. Acontece uma descarga energética ou ondas vibracionais que nos percorrem. Então, esse campo de tensão prazeroso pede continuidade e nos movemos ao encontro, para perpetuar o prazer. Mas o fascínio também acontece a partir da voz, do cheiro, da expressão mental, das atitudes, do tato, de algo que nos inspira, do afeto em forma de variados sentimentos. É possível que essa condição também se instale no campo mental inicialmente. A curiosidade se torna desejo de conhecer. É essa força que impulsiona o aprendizado pelo prazer em ampliar os horizontes do saber. Outra forma de magnetismo se dá por algo mais sutil, pelo encantamento, pelo deslumbramento, por algo que surpreende, pelo susto. A natureza provoca isso, pela beleza, pela força, pela exuberância, pela capacidade devastadora. O que ativa a força erótica são os encontros significativos, que trazem o impulso imanente de conexão, que despertam a curiosidade e o interesse por algo ou alguém diferente do eu por um outro em sua singularidade. Seja como for, essa força excitante nos preenche e nos impulsiona a criar elos conscientes com tudo. A força erótica é a energia que nos vitaliza, que impele o encontro, que mantém a chama do prazer em estar no corpo, por todas as formas de troca, não apenas a sexual. É o ímpeto de vida que se opõe às forças da aniquilação. É o gerador da vida, o seu mantenedor e sua expansão. É a mais bela experiência de união com o todo, de sermos únicos dentro do uno, dessa grande rede da criação.
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Ansiedade e Desejo Todas as noites, a Senhora Lua reúne todas as lembranças jogadas foras e todos os sonhos esquecidos da humanidade, guardando-os em sua taça de prata até o despontar da aurora. A seguir, aos primeiros albores, todos os sonhos esquecidos e todas as lembranças desprezadas são devolvidos à terra como seiva da Lua, ou orvalho. Misturado às "lacrimas lunae", o orvalho nutre e retempera toda a vida sobre a Terra. Graças ao desvelo compassivo da Deusa Lua, nada de valor se perde para o homem. “Jung e o Tarô - Uma jornada arquetípica” - Sallie Nichols Todos que sofrem ou já sofreram ansiedade conhecem os sintomas físicos que se instalam, seja na forma de desconforto difuso ou concentrado no estômago, seja na falta de ar, respiração curta e ofegante, pressão no peito e suor frio, entre outros. No nível emocional percebe-se um clima de preocupação excessiva e irrealista, mal pressentimento, pensamentos negativos de fundo, estado de alerta, desejo intenso e obstinado. A ansiedade é um estado de aflição e angústia e sinaliza repressão de algo que se evita ver e que precisa vir à tona para ser curado. Por trás da ansiedade, de forma inconsciente, há medo e desejo, sentimentos conflitantes entre si. Medo e desejo de alcançar o objetivo ou que aconteça o indesejado. Medo e desejo do fracasso e do sucesso. Não existe ameaça real, e sim a não aceitação das coisas como são. A não aceitação do que é leva ao medo de se arriscar diante do desconhecido. O medo de se arriscar cria resistência a viver a experiência, seja boa ou desagradável. A ansiedade nos tira do presente, é a ânsia pelo porvir. O desejo é a mola que nos impulsiona a seguir em direção à meta, seja material ou espiritual. De qualquer forma é preciso ativar a vontade, que é movida pelo desejo de realizá-lo. A ansiedade se instala quando se desconfia não ser possível a realização do desejo. Não cremos, ou porque julgamo-nos incapazes de conquistá-lo, ou porque achamos que não o merecemos. Esse estado de ânimo inconsciente interfere e bloqueia a corrente que modela a realidade e materializa o querer. A ansiedade é ativada quando o querer é cego, obstinado e egoísta e tenta forçar e apressar os eventos. A pressão imposta bloqueia o curso natural das coisas, afrontando a sabedoria da vida. A vida caminha sempre em direção ao bem maior que nossa pequena vontade. A ansiedade é permeada por apego e desejo de controle. Quanto mais premente for a ansiedade mais medo e desejo do sucesso e do fracasso. É um cabo de guerra que nos destroça. Nessa esteira de pensamento, expectativa e esperança são condições inerentes à ansiedade. A expectativa é pragmática, inspira o planejamento e ação no sentido do que se almeja. A esperança é entrega e rendição, baseadas na fé e na confiança na Providência Divina. São ânimos que se complementam.
95 Enquanto a primeira atua na construção do sonho, a outra se move depois que tudo já foi feito e só resta confiar e esperar. Na forma distorcida, elas nos deslocam para o futuro e deixamos de viver o presente. Ambas têm metas rígidas e específicas, delineadas em seus mínimos detalhes. Não há margens para negociação ou alteração do que foi concebido. Não aceitam qualquer desvio de rota, muito menos para substituição, ainda que por algo melhor. É essa predisposição impositiva a causa de sofrimento, razão por que muitos se insensibilizam ou entram em atividade frenética para não sentir. Para sair desse lugar, a solução eficaz é esvaziar-se dos desejos infrutíferos e trazer à consciência o real desejo em sua profundidade. Desejo esse inspirado por valores e virtudes pessoais. Descobrir motivações pessoais e escolher as que beneficiam o todo. Mobilizar a vontade para sua concretização e entregar o desejo à sabedoria divina. Ela sabe de que forma, quando, com quem e onde ele pode se materializar. Aceitar até a possibilidade de não acontecer por não ser o melhor para o todo. Podemos invocar a potência do guerreiro interior para sustentar o foco no alvo. A nossa capacidade de prosperar resulta de uma atuação positiva com foco na pretensão, seja material, seja espiritual. Quando chegar o ponto em que a vontade se torna inócua, é preciso soltá-la, confiá-la aos movimentos involuntários da vida e à Vontade de Deus. Dessa forma, a ansiedade se tornará um estado de espera confiante, na certeza de que Deus sabe o que é melhor. Nada na vida é bom ou ruim, tudo está disponível para ser usado de acordo com as escolhas feitas, estas sim, boas ou más ao propósito de se estar aqui a serviço do plano de Deus.
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Expectativa e Frustração Desejo, sonho, ambição, expectativa, possibilidade, probabilidade são palavras irmãs, mas não gêmeas, há significativos nuances entre elas. O desejo é um sentimento movido pela vontade e inspirado por um sonho. A expectativa é a espera ativa da realização desse desejo. Essa espera pode ser impaciente, tensa e obstinada ou pode ser serena e desapegada. Depende do tipo de motivação. Quando o que se almeja vem de um desejo profundo da alma, tudo flui e converge para sua concretização. No entanto, a obstinação do ego voluntarioso e autocentrado cria obstáculos, porque é movida pela cobiça. Essa ânsia de uma ambição egoísta é cega quanto ao que seja possível e provável. Por essa razão, criam-se expectativas falsas que geram frustração. A frustração nada mais é do que a não aceitação do que é, da crueza do real, decorrente do desejo apaixonado que afasta o discernimento. Se houver disposição, ela pode nos ensinar a lidarmos com o fracasso, com o não, a sermos flexíveis e adaptáveis ao que se apresenta e a confiar na sabedoria da vida e no amor Divino. Há uma diferença entre desejo intenso e desejo profundo. Quando o desejo está permeado de intensidade e premência, não se acredita no sucesso ou não se julga merecedor dele. O desejo profundo tem uma motivação desprendida e altruísta, que inclui o bem-estar do todo. Mas nem tudo é preto no branco, nem sempre as coisas são o que parecem. O desejo é dual, com motivações ambíguas e contraditórias. Paradoxalmente, o desejo ardente encontra resistência de uma parte obscura que quer o contrário. Simultaneamente pode-se estar imbuído dos mais belos propósitos e haver uma motivação egoísta escondida. Essa motivação cria uma corrente de pressão, a bloquear o êxito, ao invés de abreviá-lo. A ansiedade é um bom indicativo dessas correntes subterrâneas, a pedir investigação. O desejo premente, o que precisa acontecer a todo custo se origina do voluntarismo da parte imatura que quer, porque quer. A frustração é o efeito de uma expectativa irreal. Nem sempre o que se deseja é o melhor nem o que se precisa, por isso que é “preciso cuidado com o que se deseja, porque pode conseguir”. Pode-se até ter a satisfação de um sonho realizado, mas felicidade real só quando o desejo for inclusivo.
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Melancolia Melancolia é a felicidade de estar triste. Victor Hugo O atento observador da vida pode reparar o quanto os sentimentos têm sido indesejados nesses tempos de prazeres dos sentidos e valores utilitários. Ao menor sinal de tristeza, recorre-se à anestesia alienante na forma de um fazer frenético, ou de dopagem dos sentidos. É certo que há estados patológicos de sofrimento que se exacerba de forma intolerável. É uma lástima, no entanto, a perda da capacidade de conviver com a tristeza, a angústia ou a melancolia. As alternâncias de humor em reflexo às experiências são saudáveis e necessárias a uma estrutura psicológica madura. Quem pretende um estado permanente de paz, alegria e bem-estar oculta tudo que lhe desagrada e torna-se um autômato de si. Sentir é tornar-se consciente das respostas aos estímulos, às provocações dos encontros e circunstâncias da vida. Fica-se triste pela perda, por algo que falta, pela empatia e compaixão. Já a melancolia é um estado de ânimo característico a um tipo de temperamento. É uma sensação provocada pela lembrança fugidia do que já desfrutou e o anseio de retorno. O melancólico é o indivíduo cuja consciência e sensibilidade amplia o campo de visão da existência. Não há filtro em sua percepção, o que o deixa vulnerável a fortes impressões. A ânsia por respostas que deem sentido à vida lhe é imanente. Não há lugar para esse tipo de temperamento num mundo que cultua a exteriorização. O melancólico afeta pela profundidade que alcança e que convida à reflexão. Para sobreviver nesse ambiente de agitações e para não entrar em contato com esse estado d’alma, é comum ele se polarizar na voracidade do fazer, na tenacidade em manter-se ocupado. A melancolia é confundida com debilidade de vontade, com apatia, com tédio. Contrário ao que se pensa, ela é intenso movimento interior em contraste com aparente inatividade. É preciso abrandar a agitação externa para dar espaço à atividade interna. O melancólico sente potentemente, por isso precisa dar contornos às excitações para caberem em si e não transbordar no outro. Esses contornos desaceleram a pulsação frenética, amenizando o impacto dos estímulos. A forma de expressar melancolia aparenta tristeza. A pobreza nas definições reduz a melancolia a um tipo de tristeza. O melancólico apropriado de sua condição é feliz em seu temperamento, pleno de vida que lhe pulsa em abundância. Esse sentir reflexivo orienta a forma de estar no mundo. A falta de interiorização do melancólico lhe traz um sentimento esmagador de vazio. Enquanto ele não validar as necessidades de introversão, falseará a espontaneidade. O temperamento é inerente à natureza do ser e cada um precisa legitimar o seu, para equilíbrio mental e emocional
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Esperança O pessimista queixa-se do vento, o otimista espera que ele mude, e o realista ajusta as velas. Willian George Word Para sobreviver psicologicamente e manter o bom ânimo diante da crise de toda ordem que permeia o momento atual, a esperança precisa ser cultivada. Ocorre que ela vem sendo desvirtuada, tornou-se uma palavra rasa, perdeu o real significado. A esperança é associada a um estado de passividade, que se bifurca em duas vertentes. Ou fica-se inerte à espera de um milagre, ou envereda-se pela fantasia que se basta e que substitui a realidade. A vida fica em suspenso, aguardando o que ela aconteça no futuro. Em seu significado genuíno, esperança é o ato de projetar o olhar no futuro, sem sair do presente. É a resiliência às turbulências da vida porque se consegue ver o que há no horizonte. É a condição de prever a realização. A esperança acontece no agora. Expande-se o presente para alcançar o futuro, sem ficar lá. Mas há que se adaptar à realidade presente para seguir com o intento vislumbrado. A esperança é inerente à identidade, aquilo que impulsiona o indivíduo em busca de aprimoramento. Ela é alicerce para acessar e fortalecer os conteúdos internos. É diferente de expectativa, que é atirada a coisas e acontecimentos externos. A esperança contém a paciência para a maturação de cada passo dado e para viabilizar as condições da manifestação. É também a bússola interna que sustenta o foco. Ela é a combinação de espera e movimento. Mostra o que há no horizonte e instiga à ação direcionada. Ela só é útil para quem tem uma meta e que se muniu das ferramentas necessárias para alcançá-la. A esperança tem a ver com a fé, é convicção e certeza da aptidão para satisfazer o que se quer. Fé ativa, pois fé sem obras é morta. Ela é alicerçada pelas virtudes e organização, objetividade, disciplina, perseverança e constância. Mas é também a confiante entrega do esforço ao fluxo da vida, aos movimentos internos involuntários, à sabedoria divina que inspira os processos criativos e de transformação. É ainda a ponte que une o humano a seu propósito. A esperança é a expectativa em si próprio, é investir na capacidade de não se abater, por acreditar na benignidade da vida. A expectativa é diferente, ela é lançada às coisas e eventos externos, requer comprometimento, mas também depende de fatores indiferentes à vontade. Nesse caso, a fé na Providência Divina e em seus caminhos possibilita a aceitação do resultado. A mobilização da esperança requer objetivo, vontade e ação focada. Plantase a semente do aprimoramento, cultiva-se o desenvolvimento e observa-se o curso que a vida dá. O importante é não perder a visão de futuro e a confiança em si diante da adversidade. A esperança instiga o movimento, gera o impulso. Ela
99 traz a compreensão de que só nos cabe pôr em movimento a intenção, que precisa ser entregue ao influxo da vida, e este seguirá o curso que foge ao controle. Ação direcionada e entrega desapegada de resultado. É preciso esperança para suportar o vazio enquanto se aguarda o preenchimento do que lhe é inerente. O resto será dado por acréscimo. A esperança de um mundo melhor começa com a do aprimoramento interno. Prosperar é seguir com os ventos da esperança, ajustemos as velas.
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O Choro Cura Lembro de dois choros significativos em minha vida. Quando criança, ele me aliviou do conflito entre o medo de arrancar o dente e o desejo de ter o vidrinho vazio da anestesia que me ofereceram como prêmio. Por não conseguir decidir, chorei até adormecer. O segundo, já adulta, foi provocado ao ouvir uma música que pedia por ajuda, num momento meu de desengano. Chorei sem pensar, sem querer entender, simplesmente dando vazão à avalanche de emoções que vertiam em propulsão. Nos dois momentos, quando as lágrimas acabaram, uma sensação de bem-estar e de prazeroso vazio me tomou, vivi um processo de cura. Há também o choro que vem quando algo nos afeta. A cena de um filme com a qual nos identificamos, uma melodia cujos acordes tocam as fibras do ser, a ingenuidade de uma criança, a compaixão, a empatia, a alegria de uma notícia. Essas lágrimas são o transbordar da sensibilidade que pode vir de uma experiência com o self ou com a alteridade. Algo que nos toca, que causa comoção. As lágrimas vertidas pela perda soltam a tensão corporal que a dor provoca. São aliadas importantes para a travessia do luto, para desapegar-se e seguir em frente. O choro só não é benéfico quando está a serviço da intensidade e da dramatização, para evitar o contato com a dor verdadeira. Ou quando é usado como forma de manipular o outro através da vitimização. O choro restaurador é aquele que vem das entranhas, que corre sem esforço, que traz o soluço e sacode todo o corpo e que naturalmente segue seu curso, até se abrandar e se dissipar. Ele ajuda a dissolver os nódulos e a liberar a descarga emocional retida no corpo. Quem permite o curso das águas em si, flui nos sentimentos e mantém-se pulsante de energia. Acolhe a resposta aos estímulos que recebe e permite, a cada segundo, a expressão plena que pede o seu ser. Tem a compreensão de que viver é sentir e que o choro é o esvaziar que permite de novo ser preenchido por outras vivências emocionais.
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Paz e Felicidade Possíveis Somente o justo desfruta de paz de espírito. Epicuro Paz e felicidade são estados da alma que se complementam. Tem-se a visão romântica desses dois conceitos, a exemplo dos finais felizes de romances, novelas e contos de fadas de “foram felizes para sempre”; e da paz dos monges, alicerçada num estado meditativo e contemplativo, em ambiente propício de convívio quase que exclusivo com seus pares. O certo é que vivemos num mundo turbulento que se soma à nossa agitação íntima, a pedir uma perspectiva diferente. Penso que felicidade e paz vão além de desfrutar de alegria e prazer permanentes, utopia que é, no ambiente e circunstâncias em que se vive. Felicidade é a condição intrínseca em sustentar o equilíbrio diante dos desafios desestruturantes. Isso requer força, coragem e determinação em se manter bem face às adversidades e alimentar a fé inabalável na existência de um Universo Benigno, criado por um Deus de Amor. Já a paz envolve aceitar os desajustes dos sentimentos, inerentes à natureza humana. Não se tem paz a partir da contenção de emoções indesejáveis, pois elas exercerão pressão para vir à tona e isso causará aflição. A paz se conquista pelo exercício constante de verter e deixar que se dissipe o que quer que se vivencie. Paz e felicidade acontecem ao se validar e valorizar momentos de alegria, prazer e quietude sem tentar retê-los, atento aos começos e fechamentos cíclicos. Ao aprender com os erros sem se paralisar pela culpa, ao buscar significado próximo do real a eventos passados, a partir de um olhar mais experiente e maduro. Ao soltar o que precisa seguir e ao estar aberto para o que quer que se apresente. Felicidade inclui tristeza, e paz acolhe a inquietação necessária para descobrir os seus impedimentos. Não se vive o amor sem enfrentar os medos. Nem se chega à luz sem atravessar as trevas. É nessa paz e felicidade que acredito e que, a cada dia, tento vivê-la.
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No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise. Autor desconhecido
MUNDO EM CRISE No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise. Autor desconhecido
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Em Nome da Liberdade e do Prazer Uma das consequências piores da pandemia, além as da doença em si, é a privação prolongada de liberdade. Liberdade é um direito universalmente defendido e protegido, não há dúvida disso. O que não se admite é que em nome dela possamos suplantar princípios que amparam valores como o da proteção à vida. Algumas pessoas parecem não entender ou não se importar com as consequências de suas atitudes temerárias que põem em risco sua própria existência e a dos outros, a ponto de anular o próprio instinto de autopreservação. Esse comportamento pode ser explicado por uma série de equívocos oriundos da educação, que dá ênfase à instrução escolar/acadêmica para aquisição de habilidades profissionais e não prepara o indivíduo para a vida, seja no âmbito pessoal ou no coletivo. A família perdeu a referência de valores e virtudes que orientam a formação do caráter dos filhos, que crescem num ambiente de permissividade e falta de limites. Isso inclui a deturpação do conceito de liberdade, que passou a ser o de fazer o que quiser, sem consequências, na contramão do verdadeiro sentido de liberdade, em especial a social, que sempre estará de braços dados com limites necessários à paz e segurança da coletividade. Outro fenômeno que se observa é a busca frenética por prazer, a qualquer preço. Muitas pessoas apresentam comportamento infantilizado, respondendo basicamente aos estímulos de dor e prazer, sendo que tudo que as afastam do prazer são sentidos como dor insuportável. Não desenvolveram resiliência para lidar com a menor contrariedade ao seu querer, muito menos para responder de forma eficiente a adversidades reais, como a que estão vivendo. O prazer, assim como alegria e bem-estar, são elementos necessários para uma boa qualidade de vida. Há várias formas de sentir prazer, desde o prazer sexual, o degustar de uma boa refeição, o deleite da companhia de amigos, a aventura de uma viagem, entre outros. Prazer também há numa ação altruísta, numa vivência espiritual, no cultivar bons sentimentos e valores. O que se percebe, entretanto, é a procura indiscriminada dele, na tentativa de preencher uma vida vazia, sem sentido ou direção, ou de abafar emoções desarticuladas que tentam emergir. Essa tendência de liberdade e prazer ilimitados, além de utópica, pode desencadear a própria extinção da espécie humana, se não se despertar a tempo de corrigir o passo e mudar de atitude e prioridades, num momento de vida ou morte como o que se enfrenta mundialmente.
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A Imprevisível Reação à Crise Nenhum filme de ficção futurista de tema catastrófico, nenhum estudo do comportamento humano foi capaz de prever a reação das pessoas diante da pandemia de dimensão global. A arte não conseguiu imitar a vida porque não é possível estimar a resposta do indivíduo despreparado para a instabilidade em todos os níveis. Quem poderia imaginar que as pessoas se rebelassem contra as medidas em favor de sua própria segurança vital? Ou que o impacto dessa situação pudesse provocar a negação da realidade de forma tão intensa a ponto de neutralizar o instinto de sobrevivência? Quem poderia supor que o medo da morte e a incapacidade de enfrentar a adversidade e a frustração do querer voluntarioso impulsionasse as pessoas à busca do gozo suicida? Essa ameaça que paira sobre as cabeças revelou o absoluto despreparo da humanidade para tempos de crise, a imaturidade moral e emocional e a má formação de caráter que abarca todas as culturas órfãs de valores e virtudes, desprovidas de fortaleza para preservar a sanidade física, emocional e mental. Muitas pessoas de todas as classes sociais e níveis culturais banalizaram a morte e entorpeceram-se para não sentir medo da aniquilação. Paradoxalmente, quanto mais rápido cresce o número de óbitos mais aumenta as atitudes inconsequentes. A grande maioria desprovida de poder econômico enfrenta o impasse de decidir entre preservar a vida e buscar os meios de sobrevivência em ambiente contaminado. O mundo tecnológico e a comunicação virtual aumentaram o abismo das diferenças, fomentado por muita informação inútil para ativar a consciência do perigo e formar e habilitar a pessoa a estar, interagir e contribuir de forma significativa para amenizar a dor alheia e para afirmar-se na vida com honra e dignidade. O isolamento social, por sua vez, evidenciou a inapetência ao exercício de interioridade por conta do distanciamento de si mesmo, pela falta de amorpróprio e, em consequência, falta de amor pelo próximo. As polarizações, o radicalismo, a intolerância, a ignorância e alienação, que já existiam, tomaram novos contornos e contribuíram para o recrudescimento do contágio. Como a vida é equilíbrio, o contraponto de tudo isso se demonstrou pela abnegação de profissionais de saúde, pelos voluntários anônimos que arriscam diariamente a vida para levar conforto a quem perdeu o pouco que tinha, por aqueles que se importam com o outro e observam as regras e protocolos de sobrevivência, pelos que fizeram da agrura oportunidade de tornar-se mais humano, compassivo, solidário, para superar-se. O mundo se move e se altera a cada instante, na tentativa de adaptar-se à atual realidade mutante, implementando ações que se demonstram inócuas de segurança, diante da impermanência intensificada. E a humanidade segue nos destemperos agora previsíveis, contribuindo para aumentar a instabilidade. O que nos salva é a atuação dos trabalhadores do bem visíveis e invisíveis e a confiança de que o livre arbítrio tem limites e uma hora a intervenção divina restaurará a ordem.
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O Mundo Caótico do Pacto Rompido Vivemos num mundo aparentemente caótico, onde a desobediência civil praticada pela maioria suplanta a ordem e a paz social. Isso acontece no momento grave em que a população mais precisa de segurança em todos os níveis. Estamos diante da ameaça iminente de extinção da espécie humana pela pandemia que segue a nível global. Para se ter ideia da causa desse tumulto, é preciso voltar à origem do tão aclamado pacto social. Um dos pensadores antigos, Rodes, afirmou que ele se deu no momento que o homem entendeu que andar em grupo trazia mais chance de escapar de uma morte violenta. O grande desafio foi articular interesses conflitantes e que se excluem. Surgiram, então, os rudimentos do que hoje conhecemos como justiça. De um lado, o indivíduo abre mão das prerrogativas de fazer tudo que quer, de ceder aos seus apetites instintivos, e do outro o coletivo oferece proteção. No mundo moderno, a ameaça fora das divisas do Estado foi ultrapassada pelos inimigos internos. São indivíduos desajustados que atuam na forma de assaltos, violência doméstica, preconceito e ódio às minorias, a exemplo de feminicídio, homofobia, negrofobia e tantos outros. Esse contexto há muito faz parte do cotidiano social, primeiros sinais da ruptura desse contrato. À medida que a convivência social se tornou mais complexa, a exigir soluções mais eficazes, o Estado negligenciou o compromisso firmado de distribuir justiça e promover a paz social. O povo, em presumida concordância, não se articula para reagir e exigir o cumprimento do dever acordado. Os mais abastados, por sua vez, não cumprem a responsabilidade social. No coletivo, o que se vê é o fracionamento da unidade necessária para a reivindicação vitoriosa. Isso decorre da divisão de classe econômica, cultural e de interesses. A cisão, combinada com processos eficientes de manipulação de massa, gerou a ilusão daqueles mais privilegiados em acreditarem que fazem parte da classe dominante. O resultado foi eles virarem as costas aos desassistidos, por não mais se identificarem com a categoria a qual pertencem. O individualismo é o grande vilão da segregação coletiva. A separação enfraqueceu a comunidade e o clima de insatisfação generalizada, combinado com a sensação de impotência e descrença nas instituições resultou na indiscriminada desobediência civil. Essa, por sua vez, totalmente alheia às consequências do caos instalado, trouxe o afrouxamento dos valores morais e abafou as virtudes. Essa situação levou ao clímax do egoísmo desarvorado, revelado em atos suicidas, vivamente perceptíveis na desobediência das regras de segurança para evitar a contaminação, fatal para muitos. Esse é o momento ideal para exercitar as virtudes interiorizadas ou de adquiri-las e de resgatar os valores que elegemos como referencial. O primeiro atributo é a fé. Fé é acreditar em algo sem poder confirmar sua existência. É confiar, mesmo diante de evidências que levam a pensar no caos e destruição. E o valor atribuído é a justiça, assim entendida aquela que transcende os limites mentais e morais humanos. A justiça como uma ação que ajusta, que acerta, que
106 corrige, que restaura. Vivemos o momento limite em que é preciso fazer nossa parte e nos render diante da impotência para superar obstáculos. Necessário é confiar a vida a um Poder Maior, capaz de restaurar a ordem e a justiça. Fazer nossa parte importa em manter o equilíbrio interno e em agir diligentemente. É ter a consciência de que uma atitude singular somada a outras, ainda que em pequeno número, é capaz de moldar a realidade. Caminhar na direção da ação interna capaz de promover a conduta externa adequada. A segunda qualidade é a esperança, a paciência de esperar o cumprimento do tempo das coisas, do tempo de Deus, ainda que não aconteça enquanto estamos aqui. O valor de referência é a fraternidade, assim entendida a escolha consciente de honrar e respeitar a igualdade devida a nossos pares, de agir com os outros da mesma forma como gostaríamos de ser tratados. Tudo se resume em não alimentar a fogueira do caos, agir como a simples vela que ilumina despreocupada da propagação e qual o pássaro que cumpre a tarefa de apagar o incêndio com a água do papo sem duvidar do seu desígnio. Uma andorinha só não faz verão, mas é exemplo a inspirar outras à adesão. Afinal, o pacto sempre foi, é e sempre será com o Divino.
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A Ameaça da Desigualdade Social O mundo vive uma crise social e econômica sem precedentes. O método de acumulação e concentração de riqueza avolumou a classe de miseráveis que não têm poder aquisitivo para consumir e assim retroalimentá-lo, e isso obriga o Estado a criar benefícios em valores insustentáveis. Se o controle de natalidade ajuda a não aumentar a população, também diminui o número de jovens que possam prover a população de idosos que só cresce. Isso traz reflexos danosos ao sistema de previdência social, onerando as expectativas de aposentadoria e criando condições precárias para o aposentado. Cada vez mais o direito à cidadania é letra morta, pois o Estado não garante uma vida digna e segura. A educação sucateada impossibilita a formação de profissionais competentes, a ponto de não se conseguir preencher as vagas de trabalho. A sofisticação da tecnologia que substitui a mão de obra humana aumenta a fila de desemprego. A insatisfação com as condições precárias e humilhantes de vida é ambiente favorável ao despojamento de valores morais e éticos indispensáveis à formação de bom caráter e isto propicia um estado de ânimo de banalização da vida e de atitudes individualistas. É essa massa de manobra que determina o destino político de uma nação, elegendo representantes que perpetuam condições desfavoráveis ao ambiente do próprio eleitor. A miséria na forma de desterro já chegou à porta dos privilegiados, que não sabem como conter essa onda que aumenta a cada dia. Os direitos e garantias individuais consagrados universalmente perdem a potência com a falência do processo civilizatório e em seu lugar reina a barbárie e a selvageria. O fechamento de fronteiras não foi apenas aos desprovidos de cidadania, encerrou-se também a troca de produção entre países, a forçar a venda inviável no mercado interno desprovido de consumidores com potencial de compra. A desigualdade socioeconômica gerada pela ganância e pelo egoísmo ameaça o colapso do sistema pela falta de sustentabilidade, e chegará o dia em que o impasse criado por ele mesmo o implodirá se não se resgatar e assegurar a igualdade social.
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As Vias Tortuosas do Antipensamento Essa onda de retrocesso ao tempo das trevas da ignorância que ameaça inundar a humanidade está imbricada com o risco de desabamento dos pilares civilizatórios que sustentam as garantias individuais. Atribui-se essa circunstância ao rompimento do pacto social de proteção ao cidadão, seja para coibir a violência e violação física e patrimonial, seja a ameaça de direitos, em especial, à vida digna, seja pela ausência de proteção da saúde e da vida. O antipensamento é a paixão pela ignorância, é a rejeição do acervo cultural, intelectual e científico acumulado no decorrer de todas as eras, paixão que não contribui em trazer novas ideias viáveis e eficazes para solucionar os problemas de toda ordem que se avolumam na complexidade do ambiente social. O antipensamento é a renuncia ao raciocínio crítico, ao questionamento alicerçado em bases sólidas do saber. É abrir mão do pensamento criativo e reflexivo, que contesta ideias herdadas e traz luz ao que está oculto e obscuro. Os adeptos dessa tendência, ao pretenderem autonomia mental, adotam velhas ideias descartadas pelo conhecimento intelectual e científico. Desistem do raciocínio e do argumento para adotarem teorias há muito superadas por outras dotadas de comprovação e lógica. Não existe pensamento puro. Todo ele é influenciado por valores e virtudes interiorizados ou pela sua falta; pelas crenças equivocadas e ideias preconcebidas ocultas no inconsciente; pela ideologia assimilada, mesmo que invisíveis à mente; pelas conclusões enganosas desconhecidas do intelecto, tiradas de experiências significativas ao longo da vida; pela estrutura do caráter e da personalidade O pensamento também é persuadido pelas emoções e vice-versa. Ele pode dominar as emoções ou ser dominado por elas e os dois podem conviver em equilíbrio, que é o almejado, embora incomum. Não existe pensamento original. A inovação decorre da interpretação e aplicação pessoal. Nesse sentido, o raciocínio reveste-se da subjetividade que o torna único enquanto experiência. Pensamento sem prática é um simples exercício mental sem valor. Pode-se adotar uma opinião alheia como sua quando ela é fruto da reflexão plena de sentido e apreendida de forma orgânica. Assim, o conhecimento encontra o saber. Saber que já existe dentro de cada um, à espera de um estímulo para vir à tona. Saber que leva à convicção do que parece coerente, do que faz sentido e ressoa como verdade. Convicção que precisa ser maleável e permeável a novos raciocínios e, dessa forma, permitir o fluxo do entendimento. No exercício do antipensamento não há clareza sobre todos os elementos que determinam esse pensar rebelde. Isso deixa o pensador à mercê de ideias alheias, aleatórias e incongruentes, cuja reflexão e discernimento estão inarredavelmente comprometidos pelo ressentimento, principal motivador dessa atitude. Aquele que pratica essa forma de ideologia faz do pensamento uma prática mecânica e automática de reprodução do que adotou sem contestar.
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Ag0ra é o momento em que se experimenta a transformação profunda do mundo, em que o pensamento linear cartesiano dá lugar ao pensamento sistêmico ou em rede. Esse novo pensar alarga o entendimento através da multidisciplinariedade ou conexão de saberes. Nesse tempo em que o retrógrado convive com o novo, é preciso resgatar o processo de aprendizagem do livre pensar. A autonomia mental só se adquire com a aquisição de discernimento, perspicácia, capacidade cognitiva, disposição em trazer clareza e coragem para confrontar verdades congeladas.
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Mundo de Ilhas Humanas em Rede A natureza é integrada, a ciência já comprovou isso e a experiência demonstrou que quando uma parte dela é atingida, afeta todo o ecossistema. As relações produtivas também adotam o mesmo modelo, a ação de cada seguimento interfere no todo. Já o conhecimento ainda é compartimentado em especializações que nem sempre se articulam. Essa forma de saber fragmentado avançou sobre o raciocínio ordinário, onde as ideias não se concatenam, distanciando o indivíduo cada vez mais da realidade. Além da percepção se dar em perspectiva, a ação focada não permite um olhar abrangente e inclusivo. O âmbito das relações laborativas segue o padrão vertical, de sorte que quem está na base não é capaz de visualizar todos os elos produtivos. As relações sociais são estanques e categorizadas, desde o tipo de contato entre os atores, ao status. O isolamento social e afetivo já era uma tendência antes mesmo da pandemia. É nesse contexto que o ser humano é inserido na comunicação em rede, que horizontalizou as relações de poder sem qualquer gestão e gerou influenciadores provisórios e efêmeros, destituídos de sabedoria. Interações superficiais e instáveis refletem o perfil dos internautas, que não desenvolveram a capacidade de criar vínculos no mundo real. Gerou-se um circuito informativo destituído de conteúdo, que não produz conhecimento, nem estimula a capacidade de cognição. Os acontecimentos chegam de forma instantânea para quem não aprendeu a ler o mundo. A informação é um produto fechado em si, pronto para ser consumido sem qualquer questionamento. A falta de discernimento permite a adesão de um exército de seguidores a teorias que escapam ao bom senso e à lógica, ideias que não fazem sentido e sem utilidade prática. Nesse mesmo ambiente virtual também está disponível um universo cultural sem precedentes, que é usado apenas como uma enciclopédia ou dicionário em consultas pontuais. Enquanto o conhecimento nunca esteve tão acessível, as mentes nunca estiveram tão inaptas a apreendê-lo. No campo das relações pessoais, esse ambiente virtual reproduz a incapacidade das pessoas de terem uma interação verdadeira e profunda. Ao esconder-se que por trás de uma máquina, acrescentaram mais uma camada à máscara social. A aproximação em rede aumentou o distanciamento afetivo e aumentou a falta de disposição para o contato físico. A humanidade não está pronta para uma vida em rede, sem prejuízo das necessidades básicas de interiorização, privacidade e convivência. Enquanto não se desenvolver o pensamento sistêmico que amplia a visão do todo, enquanto as conexões se fizerem em bases frágeis e irreais, as ilhas humanas em rede sustentarão um mundo virtual, ilusório, sem sustentabilidade enquanto comunidade viva com necessidades afetivas e de agregação.
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A Derrocada do Sistema Patriarcal Quero fazer uma distinção entre patriarcado enquanto sistema social e a forma como ele afeta tanto homens quanto mulheres. E a misoginia enquanto um fenômeno psicológico, talvez reflexo do patriarcado. Creio ser unânime o entendimento de que o patriarcado é um sistema injusto e excludente, porque centraliza o poder, em todos os seus aspectos, no homem. Mas não é só isso. Ele opera no sentido de dificultar ou impedir qualquer avanço da mulher na inserção social e a até mesmo no contexto privado. Entendo que hoje a resistência maior em dividir o poder com a mulher focaliza-se na ameaça que o homem supostamente sente de desmoronar toda a estrutura econômica baseada na competição e na concentração de riqueza que tanto o favorece. Penso que o patriarcado se sustenta até os dias de hoje por ser uma ideologia enraizada há milênios, introduzida de forma dominante nas mitologias que remontam à infância da humanidade. Esse pensamento é a base do inconsciente coletivo ocidental e está tão enraizado no da mulher que ela acaba por transmiti-lo de geração a geração na educação dos filhos. Até mesmo as feministas mais radicais precisam de vigilância constante para não cometerem os chamados atos falhos. No âmbito individual, ele converte-se no que conhecemos como machismo e sexismo. Nesse cenário, acredito que todos somos vítimas dessa herança maldita. Quando essa influência sai do coletivo para o individual, sustento que a singularidade do indivíduo se sobrepõe ao suposto determinismo cultural e social. Ainda que a base de seu caráter e personalidade seja fortemente afetada pelo exemplo, mais do que pela educação familiar, há sempre uma escolha em submeter-se ou não a esses fatores. Há muito já foi descartada a teoria de que o homem é produto exclusivo do meio. E tenho a experiência de que qualquer condicionamento pode ser revertido a partir da consciência e da vontade. O grande desafio para o crescimento pessoal masculino está em admitir a falta de disposição em tornar-se consciente dessa realidade e desejar mudá-la. Para ele pode não haver incômodo suficiente para sair desse lugar. Os ganhos, mesmo ilusórios, o acomodam e o desmotivam a correr riscos. Ou então o orgulho ainda seja mais forte que a vontade de ser feliz. Quem sabe esse seja o motivo de não procurar ajuda profissional para descobrir as crenças distorcidas e preconceitos que sustentam a deformação da personalidade e caráter? Quanto à misoginia, hoje entendida por ódio às mulheres pelos homens, penso ser uma perversão psicológica, podendo ser consequência do patriarcado ou não. Homens mal resolvidos com sua própria sexualidade, que não lidam bem com seus desejos e principalmente com o desejo feminino podem desenvolver essa patologia. Hoje ela está mais arraigada diante da liberdade da mulher para viver sua sexualidade e ostentar sua sensualidade e desejo. O que se vê, nos dias de hoje, é que o poder feminino ganha espaço enquanto o homem comum perde sua potência, por desestruturar a psicologia
112 daquele que possui ego fraco. A luta pela igualdade de poder entre os sexos desarrumou bases sólidas de convivência, com reflexos na vida pública e privada. Enquanto o homem comum tornou-se sensível e inseguro, a mulher não vislumbra uma conjugalidade feliz e cada vez mais escolhe ficar só. Isso é um sintoma de que algo está errado e que precisa de ajuste. Vivemos um período de transição com pretensões de uma mudança profunda e significativa para uma convivência saudável. É natural que erros e desacertos aconteçam. Tenho fé que chegará o dia em que essas questões de poder estarão pacificadas e as pessoas, independente de sexo e gênero, possam se encontrar a partir de um lugar de igualdade, respeito e amor.
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Responsabilidade e Pertinência Responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe, e que humanamente não posso recusar. Emmanuel Lévinas Na convivência humana, observa-se um aumento crescente e assustador de pessoas que não apresentam compaixão, empatia e cuidado com o outro. Esse fenômeno pode ser explicado pelo entorpecimento do sentimento de pertinência, que leva a seu oposto, o individualismo. Essa má-formação do caráter de alguns indivíduos contribui para a prática de toda forma de excesso, na tentativa de substituir o que lhes falta, porque não desenvolveu o senso de coletividade. Em sua educação, essas pessoas podem não ter recebido limites necessários para sua individuação e para poder criar resiliência à frustração de seus desejos. Podem também não terem construído o sentido de pertencimento familiar e, dessa forma, não conseguiram se inserir no coletivo. Em consequência, não têm habilidade de fazer escolha consciente, aquela que exige entender tudo que a envolve, qual seja pagar o preço por ela, que vai desde renunciar a outras alternativas a assumir a responsabilidade de cuidar do objeto eleito. Responsabilidade é uma virtude, é senso de dever decorrente da assimilação da ética, é abrir mão, ainda que momentaneamente, do prazer para cumprir algo que se sabe ser necessário, ainda que essa atitude vá contra o que se deseja. O binômio dever versus prazer precisa ser compreendido tanto quando o direito versus dever. A incapacidade de lidar com os sentimentos primários de medo, raiva e angústia leva às compulsões e diminui a força para lidar com as adversidades. A falta de noção de gregariedade resulta na dificuldade de adaptação às condições necessárias para se movimentar dentro do grupo, isola o indivíduo e o torna insensível e indiferente ao que acontece em seu entorno. Para conquistar a cidadania e viver bem em sociedade, é necessária a aquisição da responsabilidade por si e pelas atitudes que afetam os outros. Isso se dá através da disposição de integração. Isso requer um aprendizado emocional que consiste em ser paciente e amoroso com as emoções que emerjam e validar as insatisfações de toda ordem. A frustração faz parte da existência humana, diante da sua condição de ser desejante. É preciso manter viva a consciência de que a vida nem sempre vai realizar o que se quer.
MUNDO SENSÍVEL
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Cultive a sutileza e a inocência dos sentimentos sem cobranças e malícias. Do carinho espontâneo, de uma vida sem exuberância. A simplicidade está no saber amar e não no ter amor. Aline Lopes
"Cultive a sutileza e a inocência dos sentimentos sem cobranças e
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Espaço Determinado em um Universo Infinito A gestação é numa bolha. Concluída a forma, o humano é lançado ao espaço limitado onde nasceu. Cresce nos limites familiares, sobre o abrigo de um teto e um chão. Transita em espaços com contornos de deslocamento, de laser, educativos, de trabalho de criação. O corpo físico é a primeira restrição humana, para caber num mundo delimitado. Mas a forma não impede a interação com seu entorno. A determinação física não é obstáculo para ocupar espaços internos e externos. A estrutura humana vai além da biológica e alcança o outro. Até mesmo ela aumenta e sofre mutações no decorrer da existência. Até mesmo ela, quando em formação, estava interligada com a da mãe. A troca acontece independente da vontade. A crença de isolamento decorre da impossibilidade em perceber os movimentos internos que seguem em todas as direções. Somos seres de dimensões infinitas vivendo em espaços delimitados, espaços que se ligam a outros numa grande manta. Somos maiores que nossa configuração, É possível ultrapassá-la ao criar formas mais maleáveis, flexíveis e inclusivas. Formas que favoreçam o afeto e que se expandam ao infinito.
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Espaço e Memória Afetiva A memória afetiva é seletiva. Dessa forma, os espaços ganham importância por serem cenários de eventos significativos de nossa vida. Posso lembrar com detalhes de uma calçada onde namorei com o primeiro namorado e não lembrar da casa em que morava à época. O jardim de minha infância pode ser mais florido que o da minha irmã, se o registro afetivo nosso for diferente. A recordação do tempo estudantil na mesma escola pode ser diferente entre dois estudantes. O mesmo ocorre entre dois cidadãos, principalmente se ocupavam espaços diferentes na mesma cidade, ou se eram de classes econômicas e culturais diversas. A forma como o entorno nos afeta é única porque reagimos de forma singular. Assim, nossas lembranças espaciais nem sempre retratam a realidade. Não é incomum alguém voltar depois de muitos anos ao lugar de infância e estranhar como é bem diferente do que sua memória guardou. Espaço e tempo viabilizam a experiência e ela produz uma reação que é fixada na memória. Para se ter uma lembrança saudável é preciso que essa reação seja trabalhada pela compreensão desapaixonada dos fatos. Aí, então, o espaço trará uma memória afetiva real de preenchimento e nutrição.
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Sombra e Luz Vivemos num mundo de dualidade: preto e branco, frio e calor, rápido e lento, sombra e luz. Temos a ilusão de que são opostos inconciliáveis. Esquecemos da gradação que existe entre os polos: para chegar ao branco, o preto se desfaz em tons de cinza e o branco o encontra nos matizes de gelo; o frio busca o calor na escalada das temperaturas e o calor se deixa envolver nessa modulação; o rápido diminui o ritmo para que o lento o alcance, enquanto o lento apressa o passo, na construção do ritmo ideal; a sombra encontra-se com a luz no amanhecer e no crepúsculo. Como seriam nossas vidas se precisássemos escolher uma polaridade? O que seria do artista que trabalha nuances de sombra e luz? Como apreciar o frio sem conhecer o calor? E o que seria do arco-íris se só focássemos “preto no branco?” Na natureza não há incompatibilidade, os polos se complementam. E como dela fazemos parte, conviver com quem aparenta estar no outro extremo é uma questão de escolha e dedicação para achar o ponto de equilíbrio, onde é possível o encontro. Olhar o outro como um caleidoscópio e ver a beleza da diversidade. Seguir em direção ao encontro e articular as várias gradações de que somos feitos. O mundo seria mais colorido e estaríamos integrados com a natureza em sua unidade.
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No Território Sensível A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensibilidade como o obstáculo para a energia. Fernando Pessoa No território sensível, as emoções, sensações e sentimentos encontram expressão. E ao senti-los nos é dada a escolha de retê-los ou permitir que nos atravessem e sigam o fluxo natural. A sensibilidade está em ouvir o corpo, as respostas que ele dá face ao engendramento dos eventos. Para isso, é preciso olhar profundo, além das aparências, do que nos é exposto. Apurar os sentidos para a coreografia das vibrações, pulsações, emanações e ondas que nos perpassam e se diluem. Capturar o fugaz instante do espanto, da perplexidade, do encanto diante da criação. Perceber as variações de ânimo que percorrem o corpo. Espectadores de nós mesmos, observamos o que sentimos no solo sagrado, na forma de um aperto no coração, um frio na barriga, uma trava na garganta, um redemoinho no estômago; as pernas tremem, o pelo eriça, o peito vibra, cabeça esquenta; um frenesi, ondas de prazer que percorrem o corpo, o coração acelerado. Nomeamos cada sensação de tristeza, raiva, alegria, paixão, amor, compaixão, inveja, tesão. Há ocasiões em que somos tocados por algo inefável, uma voz interior que sussurra, evolve-nos e nos toma de tal forma que urge expressar. É quando a intuição se apresenta, quando capturamos um ramo no feixe da criação e damoslhe forma. Nesse instante, estamos em contato com a Grande Mente, acessamos o campo de infinitas possibilidades e navegamos no mar das ideias ainda sementes, aguardando serem semeadas. Momentos outros há em que o sensível se expressa ao contemplar a beleza da criação em suas infinitas formas. O pôr do sol, o quebrar das ondas, a magnífica copa de uma árvore, a inocência da criança, a entrega dos namorados, uma ninhada de filhotes, a beleza de uma edificação. O território de sensível está nas mãos que acaricia, no olhar terno, no ouvido acolhedor, na voz que acalenta. Sentir é perceber o reverberar de cada célula do corpo, como a espiral formada por uma pedra lançada no lago. A cada inalação, uma contração, a cada exalação, uma expansão. Pode ser intenso e prolongado ou manso, brando e breve. Sentir é estar presente no corpo, esse templo abençoado de emanação da vida. Ser sensível é ouvir com o corpo inteiro. Os sons, as palavras, o não dito, a expressão corporal, as reações, os sentimentos. É relacionar-se com tudo que é. É estar atento à correnteza, à procura de leito para verter. Ao ser represado, o
119 sensível rompe-se em sentimentos e sensações confusas. A dor que mais dói é a dor de não sentir. Dói a dor se apegar. Sentir é viver e vida é amor. O território do sensível importa em movimento, embora muitas vezes seja necessária a pausa, para recolhimento, para recuperar as forças. A direção da trajetória quem dá é o sentimento. Ainda que se perca o fio da meada, sentir é recomeçar, sempre. Nesse território, ser sensível é, acima de tudo, entregar-se à grande aventura de estar vivo.
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O Corpo Físico e suas Formas Historicamente o corpo tem sido regulado para caber em caixas e compactações. Há regras de normalidade que podem e precisam ser questionadas. Para aceitar a si mesmo (a) é preciso abrir -se, conhecer, querer olhar e acolher o que suas sensações, emoções e sentimentos estão tentando lhe dizer. Adriana Santana Na modernidade, há um interesse e uma preocupação visíveis com a aparência física que leva as pessoas a tentarem se encaixar num padrão aprovado pela sociedade e aqueles que não atendem esse modelo sofrem. Hoje, a indústria da beleza dita as regras do que é belo e prometem em suas clínicas estéticas resultados improváveis. A necessidade de ser aceito ou aceita esteticamente é dramática, a ponto de corpos jovens e belos se submeterem a intervenções cirúrgicas desnecessárias e de resultados duvidosos. Afinal, quem determina o que é belo? Várias são as escolas filosóficas, desde a época de Platão, que cuidam de definir beleza e arte. Estética, cuja etimologia vem de aisthetiké (apreensão pelos sentidos) é a filosofia da arte que estuda o que é belo nas manifestações artísticas e naturais. Logo, beleza e estética são coisas distintas. No passado, o que era belo variava de acordo com a cultura. Atualmente a beleza foi globalizada e é uma forma de poder pérfida e perversa, determinada por interesses econômicos, que impõem um certo padrão de beleza a partir de uma ideologia escravizante. Todos somos vítimas desse processo de dominação civilizatório que discrimina e exclui. Em geral o padrão de beleza é o grego: peles claras, corpo geometricamente perfeito, cabelos lisos, olhos claros, totalmente incompatível com a maioria dos corpos brasileiros. Recentemente, o corpo negro foi aceito devido ao poder de consumo dessa grande proporção da população. A beleza não pode estar restrita a um padrão que não encontra correspondência com a variedade de raças e formas, de volumes e alturas e de idades dos corpos. A máquina de criar necessidades e estimular consumo já entendeu isso e os produtos estéticos se diversificaram para atender essa demanda. Mas o estereótipo do corpo perfeito está imanado em nossas mentes de forma a rejeitar tudo que é estranho a ele. Belo é o corpo enrugado de um bebê ao nascer, são as pernas longas da criança em crescimento; belo é o rosto assimétrico, a pele de todas as raças, a textura de todos os cabelos, o corpo volumoso e o esbelto, o alto e o baixo; belas são as rugas e a flacidez da pele, os cabelos brancos. Essa verdade se evidencia na aceitação ao que não corresponde ao parâmetro, quando eles são representados pela arte. A beleza é uma experiência ocular que nos afeta, impacta e sensibiliza. Belo é o céu azul e a ferocidade da tempestade; as águas pacíficas do lago e a
121 exuberância de uma cachoeira. Belo é o que nos agrada e o que nos é estranho. É o que move a apatia e provoca reação. Belos são todos os corpos em sua singularidade. A beleza é subjetiva e carregada de afeto e o afeto rompe as barreiras preconceituosas do padrão. O corpo não é apenas um corpo, ele é habitado pela alma, permeado pela personalidade e pelo caráter e essa potência irradia afetando os outros, atraindo ou repelindo. Nessa dinâmica a aparência física é irrelevante. A sabedoria popular já afirmava que “a beleza está nos olhos de quem vê” ou “quem ama o feio, belo lhe parece”. São belas as mudanças do corpo trazidas pelo tempo. Uma das razões que impedem esse olhar inclusivo é a necessidade doentia de apreciação e o desejo que a estética pessoal seja também universal. Quem aprender a ver beleza na diversidade dos corpos e a apreciar o próprio corpo consegue ver e transmitir a beleza que ele irradia e que será percebida pelos outros. Na Criação Divina tudo é belo, o feio é uma criação humana. Ainda que cuidar da aparência seja algo a ser incentivado, cultivemos o amor a nossos corpos da forma como foram concebidos e o honremos como um mapa a sinalizar cada ponto na linha do tempo da trajetória na existência.
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O Que o Corpo Emana O corpo é um símbolo repleto de significados. Nele é registrado o trajeto de vida percorrido e os incidentes ocorridos no caminho. Cada experiência vivida deixa sua marca. A forma como ele se locomove revela esse caminhar. A memória traumática é nele arquivada e forma nódulos energéticos que enrijecem os músculos e dificultam a mobilidade. Um corpo com dores é um corpo sofrido. Um corpo endurecido, um corpo rígido, é um corpo defensivo que precisa voltar a confiar. Para resgatar os movimentos naturais e dissolver essas memórias é necessário soltá-las. Voltar a dar prazer ao corpo através do toque, através da dança. Soltar o grito contido, encontrar a própria voz, falar sem censura, cantar sem acanhamento. Fazer o movimento que seu corpo pedir, num espaço só seu, onde você possa se explorar, brincar, experimentar, olhar-se no espelho, ver-se, ouvir-se, validar-se, acariciar-se, dar-se colo. Se os olhos são o espelho da alma, a voz é o arauto dos sentimentos e o corpo é o cálice de vida que integra a expressão humana na existência. Cuidemos dele.
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O Corpo como Expressão da Alma Uma das coisas que me marcou a infância foi minha relação com o pastoril. Eu não era uma mera espectadora, o pastoril foi para mim uma vivência. Eu me via ali no palco, investida num dos cordões, ora o vermelho, ora o azul. Aquela manifestação cultural me seduzia, envolvida pelas músicas, falas e movimentos. Mais do que a beleza das meninas, encantava-me a expressão corporal, a forma como se movimentavam, a graça, o jeito faceiro que emanava e a singularidade traduzida em cada corpo. Era uma experiência mística corporal. Esse é um bom exemplo da possibilidade de tornar consciente a condição humana de existir. O humano é um ser virtual vivendo uma existência corporal. É uma singularidade corporificada. O corpo é energia condensada e como tal se expande e se transmuta em um nível sutil que se chama mente. Nessa esfera de energia, a mente traduz o pensamento em palavras e as palavras são carregadas de sentimento. Pensamentos e sentimentos só se realizam através do corpo, que responde em forma de sensações. O ser humano, enquanto virtualidade, é potência, é algo que pode vir a ser, e que só se perfaz no corpo. Ele é o meio que viabiliza a existência, nada acontece fora dele. Temos a fantasia de que a dimensão rarefeita, como a mística, a transcendência, a intuição, a inspiração e os estados alterados de consciência que levam ao êxtase se dá fora do corpo. Entretanto, o enlevo só é possível quando se está totalmente apropriado do corpo. O amor é uma experiência corporal, é a expressão divina na matéria. O universo volátil da escuta, do olhar, da palavra, do simbólico só é apreendido estando no corpo. Os problemas psíquicos e emocionais que abundam atualmente podem ser vistos como resultado de falta de corpo. Se antes a dissociação de mente e corpo era decorrente da ignorância, hoje é uma escolha, porque se perdeu a capacidade de suportar as reações naturais que acontecem quando se é afetado por o que ou quem está no entorno de cada um. Então hoje a tendência é de pessoas que usam de todos os recursos disponíveis, desde a defesa psíquica de congelamento das sensações e emoções à medicação para nada sentir. A consequência é a existência de um exército de pessoas robotizadas, que se escondem por traz da representação teatral de normalidade. Uma das causas que se pode atribuir a esse fenômeno é o medo indiscriminado que leva à necessidade exacerbada de controle. O controle aprisiona as reações provocadas pelos afetos que inevitavelmente nos tomam. Essa retenção impede a fruição de energia e provoca uma acumulação insuportável em forma de pressão. Há uma sobrecarga estrutural de forças que precisam de ordenação e direção, e não se sabe fazer isso. Ao desaprender a leitura corporal e mover-se de acordo com aquilo de que ele precisa, optou-se por insensibilizá-lo. Essa falta de movimento significativo de energia, transformador do corpo através da transpiração, impossibilita o acesso a níveis de interiorização, ao encontro de si e do divino. Desde o início das
124 eras, que a dança tem essa função. Hoje a dança é performática, totalmente dissociada da expressão subjetiva. As relações virtuais vieram ao encontro desse distanciamento da experiência viva e da troca corporal. O sedentarismo colabora com a imobilização. A vida exteriorizada e artificial cumpre a função dessa dicotomia. A forma como cada um se movimenta expressa sua singularidade que, enquanto interiorizada, pode trazer uma experiência catártica. É preciso encontrar caminhos de volta à apropriação corporal e uma maneira de estar confortável nele. A vida é um fenômeno que se dá pelo processo de troca corporal. É preciso interiorizar o entendimento de que a existência só acontece no corpo e viver plenamente essa aventura humana.
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O Eterno Continuum do Agora A vida se move no presente. O passado é só repositório de experiências, acervo seletivo da memória que se presentifica pelo apego ao prazer ou à dor. O futuro é projeto que só se realiza no presente. Praticar uma tarefa aparentemente simples e banal indicará se a pessoa está no presente quando a mente estiver focada na ação, ao tempo em que observa os sentimentos que emergem e as sensações que afloram. Se o que se percebe é tensão corporal, provocada por impaciência e irritação, isso sinaliza que há uma fala interna depreciativa desse fazer forçado. Quando a ocupação traz prazer, alegria e bem estar é porque sacralizou-se o ato como nobre, digno e edificante. Esse estado meditativo traz ao presente a consciência de tudo que acontece em nós, através de nós e no entorno. Passado e futuro convergem para o agora, formando uma unidade visível àquele em atitude de atenção. O instante é um eterno continuum, é a ideia mais próxima que se pode ter da eternidade. Ao mergulhar nesse fluxo vital ordenado, que segue em todas as direções e sentidos, tempo e espaço se fundem e atuam sobre o homem fora dos limites geográficos, do calendário e da sequência das horas. Para isso, é preciso liberar o passado e permitir a condução dos projetos pela força motora da vida. E se deixar levar pelo mar amoroso e sábio da vida, exercitando aceitação, fé e rendição à Vontade Maior.
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No Tempo Fora Do Tempo O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente... Mário Quintana O tempo é redondo. É a imagem do deslocamento da Terra sobre seu eixo e sobre o do sol. É cíclico como as estações do ano. É o giro dos dias da semana, dos meses, do círculo zodiacal. Redondo como a gestação e o redemoinho. É a vibração celular, o pulsar da vida, as ondulações sensoriais, o ritmo cardíaco. As piruetas da criança, a cadência no andar lento ou apressado. Permeia o chegar, o sair e voltar, o ir e vir, o ficar. É o ciclo de sonho e vigília, da manhã ao encontro da noite. Quanto tempo dura uma lembrança, um desejo, uma espera? Qual é o tempo da dor, da alegria? É real o tempo aferido na matemática das horas? O ritmo imposto pelo empregador é o mesmo interno do empregado? O tempo cronológico é objetivo e artificial Enquanto o tempo dos afetos é subjetivo e real. A argamassa da vida é o tempo. É o barro que molda o agora. É a liga versátil e flexível que tudo cria. O tempo é a autoperpetuação do movimento a semear vida. Ele contém infinitas possibilidades e a impermanência do instante. É fluido, volátil, efêmero, memória e criação, o novo no velho renovado. Permeia do feitio do ser à tessitura da existência. O lance tomado de espanto, encantamento, perplexidade. O eclipse de sombra e luz. O entrelaçar da razão com a emoção. A renda urdida da imaginação na realidade. É o todo e cada um. O tempo alimenta o manancial de ideias e do sentir, o que foi, o que é, o que vem a ser e o que se tornará, o elo que une o ser à experiência. Nesse repositório inesgotável,
127 possibilidades do existir aguardam expressão. A trajetória é individual, na busca do que está disponível. Cada um contribui com a singularidade em estar no mundo. Voltamos sempre ao ponto de origem, na roda do eterno retorno, onde é possível a renovação dos eventos e de experiências que nunca se repetem, senão a oportunidade do aprendizado. O tempo é o fio que tece a história humana. Ele lapida o homem através da prática que segue um padrão antigo que reverbera no agora. Construímos o tempo e o tempo nos constrói. O tempo revela o gênio humano e a humanidade nos individualiza. O tempo interno é circular, assim como a vida. Só é real quando se segue na direção do próprio esmero e só quem caminha em amor cumpre o destino de um dia viver na dimensão do tempo fora do tempo.