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Reluzente Visita aos Arcanos Vital Corrêa de Araújo Virgínia Leal é hoje uma consumada artista da palavra e uma escritora repleta da matéria-prima da criação literária, a imaginação. O quarto livro dela bordeja o abismo que é a obra visionária de Carl Jung, pela vertente da interpretação arquetípica das cartas do tarô. Virgínia seleciona um leque de cartas místicas e, com sua característica forma de penetração psicológica dos temas e abordagem existencial de assuntos voltados ao cotidiano problemático que vivemos, revolve, abeira, aprofunda os matizes psíquicos das cartas eleitas: A Lua, A Roda da Fortuna, o Louco, O Eremita e A Estrela. O conceito-mãe da psicologia junguiana é o do inconsciente coletivo, receptáculo de arquétipos, alicerces, substratos, matizes profundos do comportamento, matéria que desvelada revela o homem em si e desnuda as profundezas da criatividade. Como Jung teoriza, para Virgínia Leal a obra traz consigo sua própria forma e move-a mais o conceito de inconsciente coletivo e sua profundidade atemporal do que a freudiana 2
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libido, o que torna nossa escritora habitante do linde entre a razão e o místico, ou seja, perto do humano e distante do mero instinto de teor biológico puro. O grande dogma ou pedra angular da teoria de Jung é o reconhecimento de que o espírito inconsciente seja capaz de assumir uma inteligência e propósito superiores à própria compreensão consciente. E Virgínia embarca nessa fresta e abre o vasto mar das raízes elementares da vida, dos ímpetos primários, que ela confronta e bordeja, no leme da nau das cartas que ela maneja, e a bordo da qual afronta os problemas da existência humana, com segurança sagaz. Virgínia Leal sabe bem – ou intui misticamente – que rodar, perscrutar, dialogar com o tarô, buscar em seu abismal simbolismo dados ou elementos para a compreensão de nós mesmos, significa manipular problemas de fundo efeito catártico e trazer à tona, fazer aflorar energias inconscientes que, dominadas, são-nos essenciais ao desvendamento de nós mesmos. A autora se dispõe e vai haurir, nas profundezas mais abissais do ser humano, o mais intrincado das relações pessoais, luz, seiva, visão, fluxo, vida, ânima, matérias vitais que ela utiliza na abordagem do reino da experiência humana consciente, com uma 3
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postura tal que também transcende os limites aparentes da inteligibilidade psicológica. Eis aí a riqueza do método, do modo afinado, da estratégia analítica de Virgínia Leal, o que todo esse sumo, toda essa soma expressa em imagem literária mesclada por seu estilo singular e poderoso. Virgínia Leal com sua escrita encantada se insere hoje entre os melhores escritores do Nordeste – a Lia Luft de Pernambuco. Ao rodar o tarô – esse jogo de símbolos – e formar um naipe forte com as cartas de números 9- O Eremita, 10- A Roda da Fortuna, 17- A Estrela e 19- A Lua, além da magna carta sem número – O Louco, Virgínia Leal encarna uma aventura pelo cipoal esotérico intrincado, com a luz da poesia a guiar-lhe os passos, por essas terras mescladas de iconografia medieval e símbolos cristãos sobrepostos a pagãos. Dentre os vinte e dois arcanos maiores e o hors concurs – o Louco, este vindo logo após o Mundo, o que é bem sintomático, está representando o universo humano, suas intuições, emoções, belezas, horrores, medos, triunfos. De toda essa engrenagem, o louco é a perfeição, a animação, o ponto axial ou crucial. Com acurada percuciência e tirocínio bafejado da necessária dose mística, Virgínia Leal adentra a significação psicológica e cósmica das cartas eleitas do tarô; propõe-se a 4
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penetrar os ângulos escusos do seu simbolismo, sempre consciente do relacionamento íntimo das cartas: O Louco entre o Mago e o Mundo, o Enamorado simétrico à Estrela, o Eremita a movimentar a Roda da Fortuna, a Lua e o Carro. Com base nesse conglomerado simbólico, ela distila a energia psíquica necessária a abarcar e resolver, a purificar e abrir o campo de cada poema, a veia de cada mini-crônica, contos alegóricos, análises existenciais, o sumo selado de todo um apocalipse simbólico. É uma cartada decisiva – e acertada, dessas de ganhar o jogo – projeto novo e inovador de nossa já consagrada escritora, fruto de encontros semanais na UBE e do talento insofismável – e invejável – de uma moça que se dedica e se debruça metódica e coerentemente à escrita literária, com renovado sucesso, somando obras pragmáticas e artísticas.
Apresentação
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Muito se fala sobre a busca romântica da alma gêmea, todos querem ser compreendidos. Aqueles que acham isso impossível recolhem-se ao casulo e muitos procuram, como consolo, a companhia de bichos de estimação. Certo está quem já compreendeu a própria solidão. Não existe uma única pessoa que funcione da mesma forma que outra, que pense e sinta do mesmo jeito. Por isso, é até possível encontrar empatia; compreensão plena, não. O escritor traduz a angústia de ser singular. Ponte que liga as ilhas humanas, descreve, interpreta e simula o comportamento. Andarilho que percebe a permanente bruma da estrada, escreve o livro da vida com a tinta das experiências, sem se deixar seduzir por dias magníficos de sol, nem desanimar com o nublado do céu. Do homem comum extrai o barro em que esculpe personagens e protagonistas, cujas vozes são ouvidas no exílio íntimo e amenizam o desconforto que a limitação das palavras traz.
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A LUA
Lua vazante Lua da Vida Leal de lua Virginiana
Lúcio Ferreira
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Lua Lúcio Ferreira A espera é um gesto em minhas noites. Lento. Aparente. Uma valsa de luar. Um canto de cisne dentro da lua. Lua primordial, que antecedeu o chegar do sol e limpou seus espelhos. Agrimensora das nuvens. A que traz o céu para lavar as almas e os naufrágios. Há sempre um satélite, perambulando no grande revezo. Pedaços de neve nas pastagens meridionais. Chocalho no sono. Lince e espera nas gargantilhas da madrugada. Depois a voz do silêncio e seu azul genuflexo – que nunca se vê, senão ao pé do que fica e reza antigos esquecimentos. E logo em seguida, o que era espaço e se agasalhou no píer escuro do porvir. As eras se apagaram. Permaneceram o instante da criação e a imaginação prenhe de possibilidades. Abriram-se as tramelas do ser e jorraram-se trilhas incandescentes – uma procissão de noivas sem véu, descendo o altar, cabisbaixas. E agora tudo se perde entre o que seria eco e espera. E se faz lua sem nuvem, só para mim.
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Lua vazante Lua da vida Leal de lua Virginiana.
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Rotina Pessoas vêm e vão, num ritmo frenético. Ela não tem pressa. Multidão ansiosa aguarda o sinal abrir. O germe da dúvida a paralisa. Trânsito lento denuncia o avançado da hora. Ela é parte da paisagem. A claridade se despede. Fluxo lunar tinge de rubor o céu. Ela contempla as estrelas. Pessoas vêm e vão, num ritmo frenético. Ela retoma, consciente, seu curso.
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Equilíbrio Há um sol em meu ventre que não me deixa dormir. Alerta, com hálito quente, vigília para o porvir. Há uma lua em meu peito repleta de sensações, dores que não suspeito, gélidas conspirações. O repouso do crepúsculo, peço ao senhor do tempo, o esplendor da alvorada, plena em esperança e alento.
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Relicário do Medo O ouvido engana, o olho cega, a voz fere. Até que falha na segurança deixa a lágrima cair, e com ela todas as máscaras.
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Nimbo À escritora e amiga Lúcia Cardoso A lua é sombra alojada, eco de esperança, vigília que não fenece, exílio de intemperança. O mar vermelho agita a taça da iniqüidade, enamorado do vento, deleite de vaidade. Reduto de lembranças, de planos fracassados, lua devolva à Terra os sonhos abandonados.
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Cibernética Glacial Multidão de mascarados, no teatro virtual, são belos, ricos e jovens, numa farsa sem igual. No reino do hardware, invasores invisíveis abrem portas, cadeados, seu poder não tem limites. Internautas sonâmbulos afastam-se de casa e a cibernética esfinge devora feroz suas asas.
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Revelação Silhuetas difusas, envoltas em névoa refletem ameaça. Sons agudos ferem os ouvidos, conduzem a passado remoto. Ave de rapina arrebata a caça. A presa extenuada entrega-se ao sacrifício. A natureza ceifa e ceva em forma de amor. Fundem-se as imagens da caça e do caçador: Sou eu.
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Miragem Coloriu-me de pavão a sedução do espelho e o aço de suas penas espalhou farto vermelho. Fiz do espelho sepultura de sonhos esquecidos, amores fracassados, na amargura refletidos.
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A Tez Tinha a tez das romãs Porcelana colhida em pomar de marcela. Era o joelho do rumo, lamento de sereia sob a taça vazia. Tinha a tez de alfenins A romper a membrana no rancho de linho.
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Os Elementos Em mim, Perene é o rio de águas revoltas e dele não atino. Represa rompida, perco-me no asfalto, evaporo-me no tempo. E a chuva e o vento e a terra e o sol reciclam.
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Natimorto Choram as mães sobre a mortalha pelas crianças que em si morreram. Choram crianças órfãs de infância, mortas de medo de enfim nascerem.
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Limiar da Paixão Ao amigo e poeta Vital Corrêa de Araújo De onde vem profunda mágoa, essa ausência sem razão, de um vazio que tudo apaga, num desejo sem expressão? O que move a roda oscilante, que faz do hoje importante e o amanhã lugar comum? Escassa é a percepção da fartura que circunda que tudo preenche e inunda cada fibra, cada ser. E nessa crença estéril, o pleno vira mistério, no obstinado viver
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Agosto Errante Em tudo penetra e invade, a opaca luz de agosto, da bela vida o desgosto a dor revela e consome Em sua fria manhã, o vento forte de agosto, desata feito que é posto, move a ira de satã. Que o sopro de agosto mudo, da porteira ao calabouço poeira faça e levante, Sem espada, sem escudo no abismo de lama e lodo é agosto, guerreiro errante
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Tempo Tempo que passa, a vida em tormento. Horas escoam, já foi o presente. Semente em pó se tornou, ao vento. Dia que foge distante, ausente. Hoje tem horas, minutos, e agora? Saturno acorda aqueles que sonham. Enquanto nossos desejos galopam, de instantes lentos os dias somam-se.
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Beija-Flor De enxofre é a voz invisível. Eu, opaca, cedo E a reverência mostra escareados pés o espinho a alfazema. De enxofre é a voz invisível. O verão não tarda e o beija-flor proverá de sonhos os jardins.
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Marcas Eu Rostos falidos Esfinge de pedra Templo das Eras Só um reflexo Sou
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Hai-Kai I 1.
Areia Branca
Orvalho de sal banha a ruína de areia Verde gana à espreita.
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Esperança
Um raio de sol chega ao banquete de corvos e o pântano tinge.
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Mudança
A Terra sacode, busca acomodação para repousar.
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Fé
Nuvem de poeira leva uma oração que escapou dos escombros.
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Alienação
No embalo do eco, dormem os inquisidores. Não por muito tempo.
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Pandora
Chegou no corcel de tróia com punhos de Joana, a mando de Prometeu.
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Tarde de Domingo Em corpo letárgico, a mente sucumbe à caixa de imagem e de som.
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Resistência Eco de respostas fere de morte o silêncio. Ninguém para ouvir. 26
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7.
Paralisia
Sepultado no passado, embrulhado pra futuro, jaz o presente.
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A Selva A lontra estava feliz. Era seu primeiro dia na corte, iria juntar-se aos conselheiros reais. Idealista, pensava em como poderia servir a Rainha. Esperava sorver sábios conselhos dos mais antigos. Com tristeza, observou que o chefe era uma raposa. Para furtar-se da tarefa educadora, usou arma poderosa: a vaidade. Elogiava continuamente os neófitos, dando-lhes, de imediato, divisas de veterano. Muitos vestiram-se de pavões. Grande a disputa para provar quem era o mais belo. Alguns, percebendo o embuste, prepararam estrategicamente a retirada para outros reinos. Os que ficaram confundiram conhecimento com sabedoria. Nessa disputa, ninguém lembrava da Rainha. O chefe foi deposto. Um camaleão em seu lugar. Para os subordinados, rugia como leão, para os superiores, cordeiro. Ora se fazia de amigo para obter seus propósitos, e em seguida descartava quem o serviu; ora mostrava as garras. Recuava, sempre que o convinha. A lontra se viu envolvida em suas artimanhas, foi estimulada a também rugir e mostrar as garras, até perceber que não estava, com isso, servindo
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a Rainha. Despiu a roupa de pavão, resgatou a alegria. Dentre os conselheiros, a serpente gozava de amizade e prestígio com a conselheira pessoal da Rainha. Com discurso de amor à causa, conseguiu provocar um motim. Os insatisfeitos não sabiam do verdadeiro propósito: pretendia ser poupada do trabalho e se preparar para um cargo mais alto. O camaleão se fez cordeiro. Ficou aliviado quando finalmente ela se despediu. Não percebeu ele que outra serpente o rondava, desta feita ambicionando o posto de primeira dama. A serpente passou a ser os olhos, os ouvidos e a mente dele. Tinha por diversão disseminar discórdias e calúnias. A era negra parecia que não ia se acabar, até que um dia uma denúncia devolveu ao conselheirochefe a alma. Passaram-se os anos, outros conselheiros renovaram o ambiente. A esperança foi resgatada. A Rainha agora exige que os conselheiros cumpram seu papel. A lontra encontrou dentro dela a coruja que procurava nos veteranos. Despediu-se da Rainha, feliz por ter cumprido a tarefa sem vender a alma.
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Tributo a Pandora Quem te acusa, Pandora? Onde o fogo dos Deuses e o cavalo de Tróia?. Velam por ti Joana e Madalena. Abaixo a profecia que condena Safo, Dorotéia, Penélope Pompéia. Que constrói Andrômedras e Medusas. A benção, Deusa da ressurreição, da liberta caverna, da sã rebeldia. Por ti, Dom Quixote sonha, Ulisses navega, Sansão batalha. A ti o caldeirão, a espada, a tiara, a agulha e a linha. A árvore proibida oferta-te sombra. E a todas as Marias.
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No Vale das Sombras Lembro, quando criança, o quanto gostava de tatear no escuro, adivinhar no que estava topando, a adrenalina ao encontrar alguém no caminho. A diversão quando alguém se revelava por não conter o riso. Como era prazeroso não ser percebida. Tornava-me invisível, mesmo em dia claro. Tinha a sensação de que estava em outra dimensão, onde desfrutava do privilégio de ser espectadora, como se a vida fosse um grande teatro. Cresci, e a situação inverteu-se: estou sempre às voltas com situações de evidência, enquanto pessoas me observam, no vale das sombras. Ao me expor, passei a viver papéis que antes eram alvo de atenção. De tanto observar, hoje sou atriz. Assumo posturas, compro brigas, carrego dores alheias. Continuo espectadora de mim. As sombras agora me assustam. As vozes que ali se encontram confundem-se com as minhas. A ânsia em ver o que está oculto turva a percepção do que está além.
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Sinto saudade do tempo em que não tinha que me confrontar. Quem é essa que não se sente, não se ouve, não se vê?
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A Bailarina, a Atriz e a Canção Rodopiava a criança, deslizava pela sala. A música a protegia de sons que a perturbavam. Não era o canto de coruja ou o uivo de lobo. Vozes alteradas de adultos, palavras que não entendia. Bailava a menina, livre da insanidade que a cada insulto tirava um ano de pureza. Seguia a bailarina em suas evoluções, ao som do homem do braço de ouro. O braço paterno erguido, o olhar assustado da mãe pesaram em suas pernas. Restou-lhe o refúgio da canção. Não foi o gato que a curiosidade matou e sim a inocência. Ninguém para expulsá-la do ambiente, selecionar o que era dito. Sentia-se uma peça da mobília. Naquele ambiente confuso, o que foi reprovado ontem, hoje é motivo de premiação. Melhor não fazer nada, agir em segredo, a salvo das censuras, pensava a criança-gato. Do seu trono não levantava os olhos, fixos na máquina de escrever. O choro da criança confundia-se com o som alto da televisão. Ele só ouvia o ruído de seus pensamentos. Um dia, ao passar correndo, a menina derrubou seus escritos. Idiota! gritou o pai-fantasma. E voltou ao mundo das letras. Pedaços de louça, embalagens de cigarro, vidros vazios, nas mãos da criança-atriz
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viravam personagens, cenários, dinheiro. Roteiro e fala não lhe faltavam. Onde está seu marido? Morreu... Que história é essa, menina, quem já se viu matar o pai? Enquanto chorava, pelas palmadas que ardiam, pensava que, um dia, seria livre para pensar, sentir e falar. Lembra da mãe cantando enquanto costurava. Vez por outra, reunia parentes. Risos exagerados, bebidas em excesso. Terezinha de Jesus, de uma queda foi ao chão... não houve qualquer cavalheiro que lhe desse a mão. Todas as noites, ao pé do rádio, ouvia a novela. Suspiros, lamentos, perigos. Ambiente familiar o suspense da novela. Vieram as fotonovelas. Não mais precisava de cacos de louça, embalagens de cigarro ou vidros vazios. Na segurança do imaginário, suas histórias estavam a salvo. Menina-drama. Enquanto a criança crescia, o silêncio a acompanhava. Aprendeu que palavras trazem dor e castigo. Conheceu outra linguagem, o balanço dos quadris. Não sabia que ao sair da invisibilidade atrairia predadores. Julgada e condenada pelas pernas longas, pelo busto farto. Conheceu a cobiça dos homens e a inveja das mulheres. Na quase obesidade fez seu esconderijo, a menina-ameaça. Esperava, um dia, ser salva do mundo dos adultos. Seu sonho realizou-se, cortejou-lhe 34
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o príncipe tão esperado. Não veio montado em cavalo, nem trazia lança ou espada. Penetrou no mundo da criança com acordes de harpa. Suas vestes reais, bordadas em cores vibrantes, sua voz adocicada pelo sotaque latino. Esqueceu a menina-drama que roteiro de novela não tem final feliz. Antes de partir, o príncipe virou lobo, deixando uma boneca em seu ventre. Encolhida no canto do quarto, acuada pelos adultos. A tia não queria que casasse, a irmã mais velha preocupada com a reputação. Ninguém perguntou o que a criança queria. Ouviu, muitas vezes, a mãe aconselhando as irmãs menores: veja o exemplo de sua irmã! Não entendia que exemplo era esse, a ovelha negra. Não tinha mais o mundo da bailarina, a curiosidade do gato, a fantasia da atriz. Não fica bem criança que já teve marido brincar, dançar, ter amigo. Do nenê, deixe que eu cuido, dizia a severa mãe. É tempo de estudar, arranjar sustento. Assustada, a menina-trabalho cumpriu, resignada, a sentença. Embalava um sonho: não mais um príncipe e sim um pai bondoso. De tudo o marido-pai entendia: afazeres domésticos, mecânica, hidráulica, eletricidade. Fazia curativos, o mingau da criança, o lustrado do piso. Não esperava a menina que ele só
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dedicasse ao lar o dever e que bem longe procurasse diversão. Restou o vazio da cama. Quem pariu Mateus que balance. Dois filhos para criar. O que aprendeu da mãe foi a melancolia das canções, o trabalho, o castigo. Haveria de ser rigorosa, não tinha tempo para agrados. O tempo livre, a menina preenchia com a solidão. Cansou de ser indefesa, do silêncio. Por que não aprende um ofício? - aconselhou uma amiga. Plantou os olhos de gato em grossos compêndios de leis. Rápidos foram os anos de estudo até a formatura, e dela à prática do ofício. Tinha pressa de recuperar o tempo de silêncio. Precisava provar que ovelha negra podia ser exemplo de dedicação. O anel e o diploma a fizeram esquecer que a verdade dói, que mostrar emoção traz punição. Ninguém está interessado em ouvir suas verdades! Ouvia a menina-problema. Filha de ovelha, ovelha é. Nem príncipe, nem lobo, apenas desencontro. Um lindo rebento preencheu a solidão da menina. Criança que já teve marido pode brincar, dançar, ter amigo. Do nenê, deixe que eu cuido, dizia a menina-avó.
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Anos de vaca gorda, comentava quem a conhecia. Sucesso na profissão, crescia o patrimônio da família. Sua expressão triste abafava a bailarina, a atriz, a canção. Foi quando lhe falaram do encontro com o Criador, o perdão dos pecados, a resignação. Por alguns anos a crença trouxe respostas e alento para a menina-esperança. Ficaram grandes os filhos, não mais precisavam da mãe. O ninho vazio revelou o vazio do coração. Recusou a menina a solidão a dois. Lembrou da promessa que fizera de um dia ser livre. Voltou a cantar e dançar, a menina-bailarina. A leveza e alegria resgatadas atraíram tristes olhos masculinos. O olhar de gato viu carinho, respeito e verdade. O artista esculpiu a sensibilidade da menina, antes enredada pela teia do drama, resgatou histórias perdidas. Agora havia interessados em suas verdades. Descobriu que é possível fazer do trabalho diversão. Sentiu-se de volta aos brinquedos infantis, enquanto o corpo febril descobriu outros prazeres. O conto de fadas tinha prazo de validade. O artista talhava o prazer em outros corpos. A menina juntou suas cinzas, e se refez em seu vôo solo. Menina-fênix.
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A bailarina, a atriz, a canção. A filha, a mãe, a avó. A esperança, o prazer, o amor. A mulher.
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A RODA DA FORTUNA
TUDO VAI, TUDO VOLTA: ETERNAMENTE GIRA A RODA DO SER... TORTUOSO É O CAMINHO DA ETERNIDADE NIETZSCHE
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O Retrocesso Por Luciene Freitas Olhos nos olhos, passo em revista os jogadores, enfileirados. Devo escolher o que trilhará comigo A Roda da Fortuna, muralha que isola a deusa dos mortais. Desejo um jogo limpo onde teremos as decisões partilhadas, o respeito às opiniões e finalmente aprendermos a difícil arte de dividir. O Dedo de Deus me aponta o caminho, parto confiante na busca dos laços que intensificam o elo dos corações. Essa deusa que promete milagres tem como trunfo uma charada que se entendida leva a vitória. Encaro o desafio, entro no jogo, entro na vida. Quando a trilha se tornou rotina, fui negligente com a força da parceria, deixei a margem do caminho quem acendeu a luz nas noites de trevas. A deusa sorriu dos desencontros. Ajoelho-me diante dela, arrependida, peço clemência para os dias futuros. Aos seus pés uma caixa florida me chama a atenção. Estava escrito – Possibilidades e Verdades. Curiosa, observei a
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chave do enigma que eu temia desvendar. Num momento de atitude, abri. Um retrocesso de dias, meses, anos aconteceu. Minha cabeça rodou entre estrelas cintilantes, rompi a cortina do tempo. Numa dança hipnótica revi a seguridade dos dias antigos; percebi as voltas perdidas no grande jogo; senti ter escolhido o jogador certo e o quanto errei pegando atalhos. O amor engloba tudo o que é plural, em singular. Reconheci que as fraquezas humanas podem levar ao fosso se não superadas. Deixei a ânsia de vaidade, fui buscar o que abandonei na trilha. Segurei firme a mão companheira, que já desmoronava no precipício. Juntos nos tornamos fortaleza. Caminhamos sem a pressa dos ansiosos. E quando avistamos a linha de chegada, lá estavam, em colunas de mármore, rodeando A Fortuna, A Justiça, O Respeito, A Confiança e O Amor. Fomos agraciados com troféus, coroas de louros e um ramalhete de mil flores. Éramos vencedores. Havíamos conquistado a maior riqueza. Naquele instante foi feita a fusão do entendimento maior.
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Estranho no Ninho Pensei ser capaz de identificar quem era quem, até o dia em que ele me convidou para jantar. Corria tudo bem, quando o anfitrião, que me acompanhava ao elevador, apertou-me contra a parede. Eram quase dois metros de altura e cerca de trezentos quilos segurando-me a barba e procurando a boca. Consciente da desvantagem física, dissimulei interesse e consegui fugir, deixando o Rei Momo enrolado com as calças arriadas.
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Retrato de um Encontro Assim como é natural, quando há interesse mútuo, trocar telefones, liguei para marcar encontro. Respondeu com evasivas, não tinha tempo. Meses depois, me procura. Ainda na porta, percorreu-me o corpo com o olhar. Sentime mercadoria exposta. Esquivou-se ao passar por mim, afundou no sofá. Recusou a bebida oferecida, retraiu-se com minha aproximação. Perguntei qual era o problema, ficou mudo. Percebi arrependimento em seu inquieto silêncio. Levantei-me, abri a porta e o convidei a sair. E por ser natural, apaguei o número do celular, o rosto da memória e fechei a porta da casa e da minha vida.
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O Dedo de Deus Chegou sem avisar, queria fazer surpresa. Trazia um jarro contendo Dedo de Deus. Notou a inquietação do namorado ao recebê-la. Apressou-se em levá-la ao quarto e saiu sem ser notado, deixando-a trancada. Após intermináveis minutos, o porteiro abriu a porta. Desolada, descobriu que ele a havia prendido para encontrar-se com outra. Por bastante tempo evitou sair de casa. Cada vez que o encontrava, revivia os momentos de angústia, intensificados pela insistência dele em ser sociável, como se nada tivesse acontecido. Tempos depois, encontrou, em sua porta, o dedo de Deus. Estava num jarro maior, havia crescido. Nenhum cartão ou bilhete. Pediu ao porteiro que desse fim àquela lembrança. Uma noite, ele telefonou. Confessava o erro, queria ser perdoado. Perturbada, não conciliou o sono. No dia seguinte, foi surpreendida com a foto do ex-namorado na manchete policial. Procurado pelo assassinato da companheira.
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Sentiu-se sufocada, abriu a janela e olhou para baixo. No jardim do prédio, o dedo de Deus, muito maior e mais bonito, apontava para ela. Pelo interfone, pediu ao porteiro que subisse com o jarro. Dele não mais se apartou.
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O Segredo da Caixa Florida Olhou a mulher dormindo. Não mais reconhecia aquela por quem se apaixonara. Sentia-se definhando em sua companhia. Mala no chão, selecionava uma muda de roupas quando algo no armário chamou a atenção. Não lembrava de ter visto antes aquela caixa de papel florido. Abriu. Estrelas cintilantes, numa dança hipnótica, conduziram-no frente a um grande espelho. Viu um homem jovem e alegre. Bela mulher lhe sorria, trocavam olhares de cumplicidade. A imagem foi ficando desfocada, até outra ser exibida. Concentrado no orçamento doméstico, o homem não percebeu o entusiasmo da mulher a trazer novidades. Mais tarde, sob os lençóis, ele a procura e ela finge dormir. Mais uma vez o cenário muda. É noite de vigília, ele está doente. A mulher recorda com mágoa o dia anterior. Jantou só no dia do aniversário. Estremeceu ao reconhecer a esposa. Do outro lado do espelho, outras cenas eram à mulher exibidas. Os dois sentados, de mãos dadas, contemplando o pôr do sol. Beijo ao acordar, pernas entrelaçadas na cama.
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Noutro momento, ela recusa carinho, ocupada com a pilha de roupas por lavar. Ele recolhe-se deprimido, perdeu a promoção porque faltou a reunião importante. Cuidava de socorrê-la em pequeno acidente de trânsito. Semblante preocupado, às voltas com a papelada de internação da sogra. Tristeza nos olhos do marido, ao ouvir queixas e cobranças de tarefas não cumpridas. Acordam emocionados. Ela sorriu, ele segurou-lhe as mãos. À cabeceira, vêem a caixa florida, dentro, fotos amareladas de viagens. Silêncio quebrado pela alegre lembrança de bons momentos, iluminados pelo acolhedor alvorecer.
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Sexta-Feira Ela dava os últimos retoques na fantasia. O batom vermelho-sangue não podia borrar. Confirmou o alinhamento das meias na cintaliga, conferiu o efeito do salto quinze no volumoso bumbum, adornado por finíssima renda. Ansiosa por ouvir o toque da campainha, por desnudar aquele corpo que lhe dava tanto prazer. Absoluta era a urgência em saciar o desejo. O tão caprichado visual desfeito em segundos, no trajeto da porta à cama. Acalmada a excitação, sentavam à mesa, degustavam vinho tinto, falavam de saudade e de paixão. O quebrar da barra anunciava a despedida, acompanhada de promessas de eterno amor. O ritual se repetia toda segunda sexta-feira do mês. Vermelhas eram as rosas que trouxera para surpreendê-la naquele dia. Ao ouvir o insistente toque da sineta, a vizinha deu a notícia. O quebrar da barra anunciava a despedida, acompanhada de saudade e de paixão. 48
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E eu que nunca acreditei que sexta-feira treze desse azar, dizia ele, enquanto depositava na lápide as perfumadas flores.
A Justiça é Cega?
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Não senhora, nunca fui patrão não. Trabalhei de pedreiro um tempo em São Paulo, e agora sou vigilante. Valter? Conheço sim, é meu tio. Nunca fui sócio dele não. Não sei do seu paradeiro, minha tia tem caçado ele, por causa da pensão que ele deixou de pagar. Pois é, seu Zelito. Na Justiça do Trabalho de São Paulo tem uma ação contra a empresa de seu tio, e consta que o senhor é sócio dele. O único bem que a justiça encontrou para pagar a dívida foi sua conta de poupança. Olhos marejados, Zelito agradeceu a informação, e seguiu em direção à rua, cabeça baixa, pensando em como dizer à mulher que teria que devolver as chaves da casa tão sonhada.
Perfume Francês Segunda-feira acordo atrasada engulo o café. Tento ficar apresentável, enquanto o 50
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ônibus se aproxima. Visto a roupa que está à mão, nenhuma maquiagem, o cabelo grudado na cabeça, sem tempo para banho. A checagem me mostra que não havia muito que fazer. Justo hoje aquela maravilha de exemplar masculino tinha que subir no mesmo ônibus. Há tempo o venho secando, esperando uma oportunidade de abordá-lo. Consciente da nula chance em me dar bem, deixo-o para trás e enfrento o empurra-empurra, até o ponto em que a massa não mais permitia acesso. Agora o cabelo era uma pasta, rodas amarelas emolduravam as axilas. Para completar, um engraçadinho cola em meu traseiro. A bolsa de um lado, pastas de trabalho do outro imobilizam qualquer reação. Quanto mais o ônibus sacode em curvas que pareciam ter triplicado de quantidade, mais o volume atrás de mim cresce. Pensei no constrangimento de atrair toda a atenção, e desisti de fazer escândalo. Uma hora o ônibus vai esvaziar e me livro dessa situação. Assim me enganava enquanto sentia espasmos que amoleciam as pernas, cedendo cada vez mais à aproximação daquele corpo. Em uma curva, sinto a barba me roçar, um arrepio só. O amasso bruscamente interrompido por alguém que força passagem 51
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me trás à lucidez. Enquanto me recompunha, vi aquele tesão ambulante a me sorrir da calçada. Segunda-feira, acordo atrasada engulo o café, sem tempo pra banho. Por garantia, capricho no perfume francês.
Fogos de Artifício Era noite de espuma e eu, desejo dissimulado, festejava. Na desarticulada euforia, meu peito roçou-lhe o braço. O frenesi confundiu-se com a urgência do champanhe, a pedir passagem.
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Numa rua deserta, ele me guarda o alívio. Recomposta, ensaiei o retorno ao grupo, interrompido por desejado puxão. Ele em mim tatuado, eu estopim aceso. Ávida, atravessei o portal de língua e saliva, entregue à correnteza de inflamáveis líquidos. O céu em chamas é testemunha.
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O LOUCO
SE O HOMEM PERSISTISSE EM SUA LOUCURA, TORNAR-SE-IA SÁBIO WILLIAM BLAKE
O Doido Por Djanira Silva É isto mesmo, você goste ou não, moro onde bem quero, nas nuvens ou nos abismos, nas paredes ou nos telhados. Víbora ou lagartixa, subo e me escondo na cumeeira das casas, nos jardins, nas árvores. Mudo de aparência
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quando quero. Não me chame de mentiroso, não devo nada a você e pronto. Bom mesmo é ser mariposa. Vôo para a luz e com o calor das lâmpadas fico tonto e caio. Ninguém manda em mim. Já morri nem sei quantas vezes. Vida boa é de borboleta, boa e arriscada. Sei que você tem mania de espetar as mais bonitas e transformá-las em troféus. Detesto troféus e pronto. Zás, virei menina, e, na mesma hora, desvirei. Tá pensando que é mentira, tá? Não podia correr pela casa, nem pelo jardim, nem subir no telhado e nem nada. Chorei, chorei tanto que fiquei desidratado e me transformei numa teia de aranha, aí, prendi o primeiro sujeito que apareceu dando bobeira. Aliás, não sei se era sujeito ou sujeita. Conheci sujeitos metidos entre as palavras, feito gente. As sujeitas, viviam entre os homens, meu pai tinha uma que minha mãe chamava de mulher da vida, rapariga, quenga, sei lá, parece que não sabia o nome e ficava inventando. E você, de que ta rindo? Não acho graça nenhuma e pronto. Bem que eu queria ser uma estrada, uma vicinal, por exemplo. Nem sei onde fui buscar este nome. Aliás tem muita coisa que não sei e não quero saber você também não sabe e pronto. Ainda não pensei se posso ou não posso querer e na verdade é bom poder ou se pensar que pode. Eita que doidice, isto acontece quando penso que quero escrever bem triste 55
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e viro um lobo em noite de lua no meio do mato ou, então, uma coruja piando rasgando mortalha assustando quem acredita no azar. Queria mesmo era ser um grilo para aporrinhar seu juízo e passar a noite inteira fazendo cri, cri, cri, para torrar sua paciência. Acha que me esqueci, acha? Aliás, nem sei como é que se chama a voz desse bicho também se soubesse não iria lhe dizer nunca, nunca mesmo e pronto. Como é que posso escrever triste se você não me deixa em paz e fica me distraindo com estas coisas? Agora, não vou mais escrever nem nada. Nem sei se vim de trem, se vim a pé, sei lá, sei não. Será que vim? Se você sabe me diga. Quer que eu enlouqueça, quer? Gosto de estação de trem, um empurra o outro, o outro empurra o um, se engancham nas portas, descem antes do tempo elas abrem e fecham, todo mundo fala e ninguém se entende parece um bando de doido, aí, chega o bicho fumaçento pega um bocado de gente leva outro bocado e eu que não sou doido vou largar você aqui mesmo e pronto. A cigarra e o irmão grilo, cantam feito doidos. Não venha me dizer que não está ouvindo. O vento derrubou o muro onde eu subia para pescar estrelas. Foi dali que vi a mulher, afogada no capim, ela viveu e morreu no silêncio, nasceu num lugar e foi plantada noutro, em cama de madeira, travesseiro de tijolo, lençol de cal, aí, entrou por uma perna 56
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de pinto, saiu por outra de pato e a história acabou e pronto. E o que é que faço com este silêncio cheio de grilos e de cigarras? Vê se me ajuda, traste. Ah! Isto não, querem que eu divida tudo quanto herdei. Vou cantar parabéns e cortar uma fatia. De quê? Sei lá. Só sei que vou. Também, criatura, você reclama de tudo. E eu lá falei de estrelas, nem de estradas é melhor mudar de assunto e pronto. Arranco o ferrão do marimbondo. As abelhas preferem as flores. Minhas lágrimas são coloridas. Gosto mais das roxas, trouxas e frouxas. Perpétuas e saudades transam no chão e no coração. Acabo de inventar a rima em ão. Plantei hortênsias e margaridas onde só nasceu bem-me-quer e mal-me-quer. Tenho fé em Deus que vou voltar semente, só não quero ser gente de carne e dente com o nariz pra frente parecido com você e pronto. Como é que a gente sabe que sabe? O que estou fazendo aqui nesta ladeira? Estou indo ou voltando? E eu vou descer de que jeito, em pé, sentado de joelhos ou escorregando no tobogã? Sei lá. É melhor dormir por aqui mesmo. E você, seu doido, me deixe em paz.
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Mico & Cia. Quando era jovem, receava ficar igual a meus pais. Ele, único nas distrações. Já chegou ao trabalho encharcado, com o guardachuva pendurado no braço; passou o dia com uma barata viva dentro do sapato; saiu do trabalho com o paletó tamanho 46, quando seu manequim era 38; deixava minhas amigas envergonhadas ao transitar pela sala de cuecas;
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quando não entrava na casa vizinha e só se dava conta do engano ao avistar algum estranho. Minha mãe tem outras características. Pega a conversa no meio e emite opiniões descabidas, o bisneto diz que ela “desenvolve o assunto”. Um dia, numa excursão escolar, exigiu de um adolescente que entregasse a faca de que achou ser portador porque ouviu o colega comentar que ele estava “armado”. Seja por genética, convivência ou praga, não pude me furtar à herança. Já deixei o carro no estacionamento e voltei para casa de ônibus; fiz o percurso da faculdade, quando já estava formada; esqueci de apanhar meu filho na escola; deixei minha mãe sem carona; troquei de pasta com advogado em audiência; subi escada, quando deveria descer; trombei com cego caminhando na calçada. Certa vez, peguei de volta o presente ao despedir-me da mãe da noiva que, então, perguntou se eu só ia entregá-lo se fosse à noiva. De outra feita, tomei o telefone de minha filha, que se desmanchava em dengos, pensando que falava com meu neto. Continuei a conversa com os mesmos mimos, até o namorado dela se identificar.
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Noutra ocasião, cheguei atrasada para almoço de domingo. Encontrei todos à mesa. Minha mãe veio logo dizendo: A feijoada está na cozinha. Uma irmã completou: Quero que experimente minha torta de camarão. Fui à cozinha e preparei meu prato. Ao sentar à mesa, todos me olharam. Alguém falou: ah, você já está almoçando? Esperavam por mim. De imediato, voltei à cozinha para buscar a feijoada. Dissimulei o constrangimento, brinquei com a cunhada: Onde você comprou esse chapéu, não tinha um mais feio? Entre dentes, ela respondeu: Foi sua mãe que deu. Fiz-me de desentendida e para despistar atendi ao telefone. Quase não consegui dizer alô, com o riso contido. Alguém falou: Ela ri. Desculpome: Por favor, não estou rindo de você. A pessoa responde: meu nome é Larry. Largo o telefone no chão e saio correndo em direção ao banheiro, para não me mijar de tanto rir.
Vingança Ocasional Queria saber o que se passou na cabeça do meu avô ao escolher o nome do filho: Cornélio. Faço idéia das chacotas de que meu pai fora vítima, em tempo escolar. Ele conta que havia um colega de trabalho que sempre tirava sarro dele, embora não tenha sido agraciado com alcunha comum: Aglaê, Blaê, Guabiru. Certa feita, meu pai recebeu um telefonema. Era sucesso o filme Planeta dos Macacos, com
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os protagonistas Cornélio e Zira. A conversa foi assim: - alô? - Quero falar com Cornélio - É ele. Pausa. - Chame, então, Zira. - Não está, não. (referia-se à Alzira, sua tia) Silêncio do outro lado, antes de ouvir o sinal de ocupado. Divertiu-se minha mãe, ao entender o relato: você foi vítima de um trote! Com riso vitorioso, respondeu: Pelo jeito, o feitiço virou contra o feiticeiro.
O Velho Barrero A esposa ficou radiante quando o marido fez reservas numa pousada. Pensava numa segunda lua de mel. Durante a viagem, o marido comentou: vou procurar o velho Barrero. Ela manteve-se emburrada o resto do caminho. Ao entrar na cidade, pararam num supermercado, ela não saiu do carro. Ao retornar, o marido ouviu montanhas de impropérios. Divertido com a situação, tirou do
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pacote o aguardente Velho Barrero e a paz voltou a reinar.
A Caminhoneira Joana não tinha papas na língua. Despejava o que lhe vinha à cabeça, nem se dava conta do estrago. Suas mancadas eram contadas em rodas de amigos, em encontros familiares, ela não tinha jeito. Numa ocasião, o marido viajou, foi com o amigo buscar um trailer que comprara. Ficaram hospedados em casa de amiga comum do casal. Ao retornarem,
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trouxeram uma foto de uma mulher de biquine, o rosto escondido por grandes óculos escuros, em frente ao trailer. Joana!, olha a caminhoneira que seu marido arranjou! Fazendo-se de indiferente, respondeu: eu sou mais eu! Vou lá ter ciúme de uma mulher derrubada, com os peitos caídos! Passado um tempo, a amiga lhe visitou. Conversa vai, conversa vem, o marido de Joana mostra a mesma foto: conhece a caminhoneira que Lucas arranjou? Joana arrebata a foto e exibe à amiga: Vê só se vou ter ciúme de uma mulher derrubada, com os peitos caídos, como essa! A amiga olha para ela com incredulidade: Joana, sou eu! O ar pesou no ambiente, até o marido desatar no riso, quebrando o gelo. Um mês depois, Joana foi visitar a amiga no hospital, submetida a uma cirurgia plástica.
Carta à Maria (Depois do Ovo e da Galinha ) Olinda, 02.06.2006 Antiga e adorável Maria Lembras quando expressei minha indignada raiva pela ousadia de Clarisse em falar do ovo? Do desperdício de palavras, tão bem elaboradas, para nada dizer? O que não
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sabes é que minha despropositada reação reverberou no teu olhar. Qual galinha que, diante de qualquer ameaça, grita em escândalo feito uma doida, não queria ver a própria loucura. Aquela que escondo dizendo coisas que fazem sentido. Que me fazem esquecer de fazer o que não devo. Que me trazem alívio por não ter esquecido a criança no carro. Quando finjo que tenho respostas. Quando não é o mais covarde sim. Obstinado sim. Aí a minha raiva virou espanto e silêncio. Silêncio feito de desconexas perguntas. E a galinha voltou a cacarejar. Mas é preciso estar ocupada e distraída para que o ovo não quebre dentro de mim , não é? O que ias mesmo dizer sobre os leitores de Clarisse?
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O ERMITÃO
Sabe quem enfrenta o labor que a fraqueza esconde a força, o medo encobre o amor e a dor oculta a alegria São máscaras da criança interior.
Boca do Lixo Zuyla Cartaxo Isabel da Silva, mulata, 31 anos, analfabeta, barraco No 20, no Coque. Profissão: Catadora de lixo. Saía antes do sol nascer para se antecipar ao caminhão da Prefeitura. A carroça, comprada à prestações na bodega de Galego, era paga com noites de sexo e cachaça. Galego facilitava também o prato, em troca de roupa lavada. Engravidara várias vezes.
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Abortara todas. O bodegueiro chamava o táxi quando as contrações chegavam. Sempre o mesmo taxista, amigo do merceeiro. - Então Isabel, quantos meses? - Três ou quatro. - Está se arriscando... - É. O comprimido não fez efeito. Fui na injeção, bateu hemorragia. - Cuidado para não sujar o carro. Coloquei jornais no assento. - Deixe de conversa. Toque rápido. A maternidade é a mesma. Cantando os pneus o táxi corta sinais no viaduto Joana Bezerra. Isabel sente frio. Encolhe-se cruzando os braços. Pensa na carroça que esqueceu de guardar. Talvez não a encontre mais. A doutora da triagem, prancheta à mão, oferece-lhe a cama ginecológica. Mãos enluvadas examinam a mulher. Aplica-lhe injeção. - Quantos meses? - Três ou mais. - Qual o abortivo? - Não sei o nome. Nunca pergunto. O farmacêutico só aplica a injeção. - Já fez muitas vezes? - Muitas. - É por isso que a hemorragia não cede. Isabel sentiu o raspa-raspa no útero. As pernas tremiam. Suor pegajoso brotava. Outra injeção no braço. A médica afastou-se. Outra paciente chegara. Colocaram-lhe na maca 66
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levando-a para enfermaria. Mulheres gemiam. Isabel olhava o teto empoeirado, lembrando-se quando adolescente sendo estuprada pelo padrasto com aquiescência da mãe. Sentiu o corpo adormecido. A quentura líquida começou a escorrer perna abaixo. Invadiu a nádega empapando a roupa. Isabel quis gritar, não encontrou a própria voz... Na televisão da maternidade as enfermeiras vibravam com o gol de Ronaldo na Copa do Mundo. O país ganhava um ídolo, enquanto a estatística da miséria ganhava o óbito de: Isabel da Silva, 31 anos, mulata, analfabeta, catadora de lixo. Cidadã brasileira do SÉCULO VINTE E UM.
O Ópio do Mundo Globalizado Compaixão é a capacidade de solidarizarmo-nos com a falha humana, por não estarmos imunes a ela. A busca de prazer, na tentativa desesperada de entorpecer a dor, confundiu efeito com causa, meio com fim, caminho com destino. Sucesso profissional tem por meta prestígio e poder econômico. Aceitação social é ditada pela indumentária ou modelo de carro da moda. A mídia cria necessidades falsas,
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prazeres destrutivos, modelos de convivência distorcidos. Na massificação de estímulos, foi esquecida a fonte de real contentamento. Alienado do propósito de vida, o homem distancia-se da felicidade e cai nas armadilhas do sistema econômico de consumo, que estimula o comportamento compulsivo. Exército de viciados: em trabalho, ginástica, vídeo game, sexo, jogo, em controlar pessoas, em relacionamentos; em drogas, barbitúricos, álcool, cigarro; crescente o número de consumidores, de todos os níveis sociais, que estouram o limite de cartões de crédito; proliferam grupos anônimos de auto-ajuda: dos alcoólicos, neuróticos, narcóticos, comilões. Estes últimos vitimados por diabetes, obesidade, anorexia – incapacidade de gerir alimentos e bulimia – incapacidade de manter alimentos no estômago. Especialistas dedicamse em pesquisar a causa desses males: -
autoritarismo ou permissividade dos pais, na infância; abuso físico, psicológico ou sexual; predisposição genética; dificuldade em encaixar-se no modelo social; violência urbana; ausência de expectativas de vida; baixa auto-estima ansiedade, sentimentos reprimidos; 68
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Por trás da aceitação das drogas consideradas legais – bebida e cigarro – está o interesse econômico, por serem fontes lucrativas de renda e deixarem uma grande fatia para o fisco; a reprovação do consumo das chamadas drogas proscritas é decorrente da incapacitação para o trabalho e da motivação para a criminalidade daqueles que não têm meios de obtê-la. Em menor ou maior escala, a maioria de nós é ou já foi vítima dessa epidemia. Não nos cabe, portanto, julgar aqueles cujo comportamento compulsivo levou ao consumo de drogas. Precisamos resistir ao desejo de escapar da realidade e amortecer a dor. O propósito do homem é ser feliz. E isso só é possível se formos capazes de enfrentar o sofrimento, conscientes da necessidade do trabalho libertador de aceitação, tolerância e indulgência de si e do outro.
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A Tirania da Vítima O verdadeiro poder é a sabedoria e esta somente é obtida quando se mantém viva a lembrança de tudo o que ocorreu com você ao longo de sua jornada aqui na Terra. Compaixão, bondade, amor e disposição para ensinar e compartilhar os dons e os talentos que lhe foram concedidos constituem as verdadeiras sendas para o poder. Cartas Xamânicas – Jamie & David Carson.
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Enquanto aguardava, no estúdio de TV, o início do programa, fui surpreendida por comentário de Samir Abou Hana, a reprovar a atitude de algumas mulheres que insultam seus maridos. Fiquei reflexiva, pois nunca havia pensado na violência doméstica sob esse ângulo. Lembrei da sabedoria masculina que fala que mulher gosta de apanhar, então pude perceber o poder da vítima. Muitas são as formas distorcidas de exercer o poder. O motorista de caminhão e de ônibus, impondo-se sob os veículos menores. O mecânico, eletricista e encanador, ao aproveitar-se da inexperiência dos usuários, notadamente mulheres. A recepcionista de médico, na preferência do atendimento. Quanto mais se sentirem desvalorizados, mais exercerão sua tirania. A da vítima, entretanto, é invisível e devastadora. Só o agressor a percebe. Essas pessoas – e não são poucas – estimulam no outro o que ele tem de pior, para mantê-lo como refém. Ouvi um homem dizer que não bate na mulher, mas em seu atrevimento. Longe de defender tal pensamento, percebo que a vítima tem um ganho significativo em estar nesse lugar: solidariedade, compaixão, indulgência e atenção. Ainda que na maioria das vezes inconsciente, usa a inteligência para manipular. Conhece bem a natureza humana e acessa com facilidade a chave do impulso agressivo do seu 71
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alvo. Crianças fazem isso muito bem, em especial com mães que trabalham fora e sentem-se culpadas pela ausência. Aquelas bem sucedidas vão requintando seu talento para a tirania, até atingir a maestria na idade adulta. Empregados processam patrões, esposas processam maridos, filhos processam pais. Tirania muito mais sutil e eficiente é a do caridoso. A mãe abnegada que não deixa os filhos compensá-la pelos cuidados, por mais que se esforcem. O amigo disponível, que não aceita ajuda. Esses são tiranos de sua falsa bondade, em busca de poder. A vítima é responsável, não apenas por ter provocado a agressão, mas por tirar proveito do remorso do agressor. Ao exercer essa forma distorcida de poder, distancia-se do seu desejo mais profundo e genuíno, embora quase sempre inconsciente, de receber amor. O verdadeiro poder é a capacidade que temos para nos conectar com a Sabedoria Divina, a revelar-nos que no caminho da tolerância das falhas humanas não existem vítimas ou agressores, mas aprendizes sujeitos a erros de julgamento.
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O Mal de Todos os Tempos O mal de quase todos nós é que preferimos ser arruinados pelo elogio a sermos salvos pela crítica. Norman Vincent Muito se tem pesquisado sobre os sintomas do medo, entre eles agressividade, depressão, ansiedade, síndrome do pânico. Pouco se fala das conseqüências do medo de errar. Orgulho e vaidade mascaram a imperfeição, recusam o erro. Diante de situação desfavorável, atribuímos à acusação hostilidade gratuita ou distorcemos os fatos de forma a afastar qualquer fundamento. Podemos, ainda, assumir erro diverso do apontado, para não termos que corrigir a falha. Enquanto nos
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debatermos nesse conflito, não teremos serenidade para entender o desacerto, reparar o dano e seguir em frente. A culpa é o maior signo de arrogância. Queremos ser vistos como perfeitos. Por não aceitarmos nossa humanidade, atraímos julgamento, condenação e punição. Queremos criar asas antes de saber caminhar. Quem se faz refém do medo de errar estará sempre se alternando nos papéis de vítima e agressor, acusado e delator. Contemplará, do alto de seu ego, as experiências não aprendidas, o tempo de ser feliz se escoar.
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Onde Está a Velha Sabedoria? Para o ignorante, a velhice é o inverno da vida; para o sábio, é a época da colheita. Talmude Às vésperas de aposentar-me, tenho concentrado a atenção no universo de idosos, em busca de motivação. Constatei, com tristeza, que grande parte ainda quer viver de saudade. Engessados no fantasioso tempo em que tudo era melhor, não assimilam atividades, culturas e hábitos novos. Isso explica porque tantos não sobrevivam por muito tempo, após a aposentadoria. Para eles, o estatuto do idoso é o brinquedo que ostentam, instrumento de rebeldia contra os jovens. Sempre ouvi dizer que velhice é símbolo de sabedoria. Com o elixir da juventude, que faz
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da idade da temperança o retorno à adolescência, parece que foram às favas o bom senso, o comedimento, a paciência. São comuns queixas despropositadas promovidas por idosos em ambientes de atendimento bancário. Ouvi um ameaçar: quando chegar minha idade não tem essa de caixa preferencial! Quero ser atendido em qualquer fila! E nas clínicas e laboratórios? Qual escravo do ponto não se viu frustrado por ter sido preterido por idosos que podem escolher qualquer hora do dia para o atendimento? Perplexa fiquei ao presenciar cena que acontecia num supermercado. Uma senhora discutia com um homem aparentando mais idade que ela. Ao retornar com itens de compras que havia esquecido, encontrou o caixa atendendo-o. Dois outros observavam divertidos, enquanto, confortavelmente sentados, aguardavam sua vez. Nunca vi tantos reivindicando direitos. E quantas contas têm a pagar... Não me admira que a exemplo de aluguel de crianças para pedir esmolas, idosos estejam beneficiando pessoas no atendimento preferencial. O estatuto do idoso, entretanto, não impediu que filho adulto, nora e netos dividam com ele a moradia e não as despesas; ou que a avó se torne empregada dos netos. Privilégio que não tem o velho miserável, condenado à 76
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indigência ou abandonado em instituição insalubre. No engessamento cultural, o aposentado é visto como inativo, sinônimo de descartável, obsoleto; sem ignorar o destempero provocado por doenças da senilidade, esse estereótipo é reforçado pelo exemplo de alguns que, ao assumirem atitudes inconseqüentes, próprias dos jovens, insistem em não ocupar seu lugar de baluarte. Tem o idoso direito ao merecido descanso, ao respeito aos limites da idade, às regalias de quem muito fez pela família e pela sociedade. O que se observa, entretanto, é que para muitos o tempo não amadureceu as experiências vividas e o que restou foi desprezo ao sistema produtivo, o desengano pela ausência de reconhecimento da família, o sentimento de inutilidade por tudo que realizou. E aos jovens e adultos de hoje, o retrato de um futuro sem glória. Nem tudo, entretanto, está perdido. Grupo crescente vem fazendo revolução. Eles estão em toda parte: nos parques, academias de ginástica, casas de dança. Impossível decifrar a idade. Performance de fazer inveja aos quarentões de outrora. Adeus aos bondosos velhinhos sentados ao terraço, em cadeira na calçada, esperando a banda passar. Não querem mais sombra e água fresca. Presença maciça em 77
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grupos literários, de teatro, de todas as artes, em atividades assistenciais. Para eles, a aposentadoria não foi o fim da etapa produtiva mas a jubilosa transição para uma fase fértil e criativa de descobrir-se e reinventar-se. Esse rico laboratório ensinou-me que não é preciso aposentar-se para construir sonhos. Enquanto houver saúde e determinação sempre é possível tentar a conciliação de qualidade de vida, realização pessoal e bom desempenho profissional. Sem deixar de buscar o velho sábio, dentro de cada um.
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A Crise Ela manifesta-se de várias formas. São sintomas diversos, muitos sem diagnóstico. Prejuízos financeiros decorrentes de sucessivos assaltos ou acidentes de trânsito. Perda de emprego, desentendimentos familiares, divórcios. O conflito provocado pelo antagonismo entre a força da mudança e a estagnação gera a crise. Ela adverte para que olhemos o que precisa ser mudado. A negação do sentimento gerado pelo conflito é encoberto por outros sentimentos e sensações, dificultando, cada vez mais, a identificação do problema. Em última análise, a crise é o resultado de nossa rebeldia à lei do progresso. Por negarmos nossa face divina, o sentimento de culpa decorrente atrai autopunição. Alguns aproveitam a crise como impulso para sair da estagnação, outros sentem-se confortáveis no lugar de vítima. Permanecer na crise, contudo, pode trazer colapso físico e emocional, podendo mesmo levar à morte.
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Somos responsáveis pelo que criamos, como é nossa responsabilidade transformarmos o caos em harmonia. É preciso compromisso com o propósito de crescimento pessoal para superar os obstáculos que criamos, determinação para dar mais um passo em direção à luz e perseverança para manter-se nesse lugar. Quem caminha com a verdade pode evitar os efeitos negativos da crise, ao permitir o contato com a emoção gerada pela resistência ao processo de mudança. Ao permanecer no Caminho Sagrado, poderá então apreciar a bela paisagem por ele criada.
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Discernimento Quanto mais desejamos algo, mais dele nos distanciamos. Num primeiro momento, pode parecer absurda a afirmação acima. Afinal, o desejo faz com que a vontade se manifeste na ação. Se a meta é passar no vestibular, planejase o estudo de forma a cobrir todo o programa. Para comprar casa, elabora-se orçamento, redução de gastos, avalia-se possibilidade de empréstimo. Se a pretensão é reduzir peso, busca-se ajuda médica, adota-se dieta alimentar, exercícios físicos. Parece tudo muito simples. E por que, muitas vezes, morre-se na praia? Quando a vitória parecia assegurada, algo acontece e arruína os planos? Não é uma pergunta fácil de responder. O que se percebe é que a mesma força que nos tira da inércia pode destruir sonhos, ou fazer com que virem pesadelos.
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O estado de confusão gerado pela obstinada busca do que queremos, a qualquer preço, impede que se veja, com clareza, a realidade. Quando se aproxima a hora de concretizar os planos, somos dominados pelo medo de abrir mão, ainda que momentaneamente, do que queremos, dificultando a análise criteriosa dos fatos. O estado de paixão se transforma em destrutividade sempre que adotamos atitude ingênua diante dos desafios da vida, enquanto seguimos regras de forma mecânica, e o desejo transforma-se em apego obstinado. Diante do fracasso, é preciso analisar se não estamos superdimensionando as expectativas, se não precisamos mudar o foco, ou se desprezamos alternativas viáveis e até mais satisfatórias. Agir com discernimento é confiar no trabalho necessário à realização, permitindo que o tempo seja o instrumento eficaz para construir a felicidade.
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Vida e Morte – Desesperada da Dor
a
Fuga
O homem sempre quis poder sobre a vida e a morte. Os místicos e magos, desde tempos remotos, estudaram e fizeram experimentos para prolongar a juventude, perpetuar a vida ou reanimar os mortos, a exemplo da mumificação dos egípcios. A arte cinematográfica provoca exame com ficções futuristas sobre o reparo de corpos mutilados, máquinas do tempo, ou reconstrói lendas e mitos de vampiros, Frankensteins, fontes da juventude e almas que retornam em outros corpos. A ciência vem confirmando a ficção com transplante de órgãos, aparelhos que mantêm os sinais vitais, e, mais recentemente, a clonagem de seres vivos. A verdade é que o homem sentese impotente diante da força da natureza, e constata que nem toda tecnologia existente pode conter os efeitos das tissunames e furacões, que recentemente devastaram, em pouco tempo, a realização humana. A medicina moderna admite sua limitação diante da doença e da morte, transfere para o paciente a responsabilidade da cura.
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O homem oscila entre o pavor do desconhecido pós-morte e a fuga da vida quando eivada de dor e sofrimento. Na contramão da busca incessante da imortalidade, não crê na sobrevivência da alma. Quer vida prazerosa e morte serena. O conceito de prazer, entretanto, varia de cultura, de época, e do acervo de experiências vividas. Assim, é incompreensível para muitos que pessoas em estado de pobreza possam ser felizes, assim como aqueles que nasceram com deficiência física ou mental. O sofrimento, por sua vez, é percebido em forma e intensidade pessoais. O intolerável para alguns, não é significativo para outros. O contraste pode ser percebido pelas estatísticas de suicídio em países ricos, a indicar que a adversidade prepara melhor o homem para o sofrimento, fazendo com que encontre satisfação em fontes alternativas de prazer. Quando falamos do poder sobre a vida de outrem, a coisa muda. Por receio de carência ou limites na liberdade, ceifamos vidas em formação ou as abandonamos em asilos e sanatórios. Somos capazes de cuidar de alguém temporariamente, da criança, que tornar-se-á um dia adulto, do doente em 84
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convalescença. Difícil é enfrentar a dependência permanente, ainda mais quando acompanhada de dor e sofrimento. Equivocadamente pensamos que não temos o direito à alegria e prazer quando alguém que amamos encontra-se em estado desesperador. Como saber se o paciente que se encontra inconsciente de fato sofre, ou somos nós que sofremos ao vê-lo definhando? A mistura de ressentimento e culpa permite a proliferação de idéias de fuga, que chamamos de aborto, suicido assistido ou eutanásia. Idéias tão duvidosas que precisamos da aprovação da sociedade e da lei para aliviarmos a consciência. A aceitação da morte é um desafio. Diante de sua proximidade, buscamos todos os meios possíveis e acessíveis para evitála ou retardá-la. De um lado, o apego permite o prolongar do sofrimento através de métodos artificiais de manutenção da vida, do outro, busca-se abreviá-la, quando intensa a dor, pensando agir com misericórdia. Muitos familiares vivem o dilema de ter que decidir sobre a terapia adequada, diante da incapacidade do doente em expressar seu desejo, baseados em meios falhos de diagnóstico, tendo, muitas vezes, que conviver com a dúvida de ter feito a escolha errada.
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Confunde a consciência a valoração do ato de retirar a vida do semelhante, ora consistindo em crime, ora em ato legal e até mesmo heróico. Seja em cumprimento de pena de morte, em campo de batalha, em legítima defesa, ou para evitar dor e sofrimento, quem contribui com a morte de outrem sentirá o reflexo da escolha feita, na forma de neurose ou outros males da mente. E viverá a dor de, um dia, ter substituído Deus.
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A Ética do Suicídio Face às alarmantes estatísticas de suicídio, órgãos internacionais de valorização da vida buscam minimizar os efeitos do desespero anônimo. Contrariando a lógica do senso comum, registros informam número significativo em países de Primeiro Mundo, talvez pela ausência de sentido para a vida do materialista que tudo tem. A violação do instinto de sobrevivência e auto-preservação leva-nos à eterna dialética vida e morte, prazer e sofrimento. Em passado remoto, Reis e Rainhas, na iminência de serem depostos, matavam-se em defesa da honra. Mesma motivação dos samurais, ao praticar o conhecido ara-kiri. Ato de heroísmo crêem praticarem aqueles que, no Oriente Médio, aceitam ser bomba humana, e os kamikazes, no Japão. Para muitos, demonstração de amor, enaltecida pelo romantismo, eternizada em Romeu e Julieta. Hoje, a banalização da morte a cada esquina, provocada pela criminalidade e violência urbana, em constante exposição na mídia, seja por noticiários policiais ou pela ficção, é ambiente favorável para pensamentos
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suicidas, por motivos fúteis. Exemplo que vem crescendo, a cada dia, são os pactos feitos na Internet, fazendo da morte brinquedo e diversão. Para aqueles que deixam a vida para não enfrentarem situação humilhante, seja de natureza moral ou financeira, o suicídio é ato de coragem, assim como para os inconseqüentes que arriscam a vida em pegas automobilísticos. A roleta russa, no pós-guerra, jogo onde era aleatoriamente acionado o gatilho de arma com única bala, enchia os bolsos de mercenários. Nesta estranha ética, que busca escolha sem conseqüência e felicidade utópica, não há sentido em viver sem prazer. E faz do covarde, herói.
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O Sonho da Maternidade Versus Gravidez Indesejada Muitas mulheres entram em desespero quando a idade limite favorável à concepção se aproxima. Na corrida contra o tempo, precipitam-se na escolha do parceiro, desprezando etapas necessárias ao amadurecimento da convivência. Aquelas desacompanhadas chegam a pensar em inseminação artificial. Não é incomum a mídia veicular o roubo de bebês em hospitais, por mulheres impossibilitadas de engravidar. A maternidade, para muitas mulheres, simboliza um ideal de plenitude feminina. Em tempos remotos, a gravidez chegou a ser endeusada, por desconhecer o homem sua parte na concepção. Para rainhas, consistia angustiada expectativa, não apenas ter a fertilidade confirmada, mas gerar um filho varão. Vítimas, muitas vezes, de sucessivos abortos espontâneos, provocados, quem sabe, por insuportável pressão, eram punidas com morte ou exílio . Enquanto muitas mulheres submetemse a todo tipo de tratamento para ter um filho, chegando ao extremo de aceitar a conhecida “barriga de aluguel”, outras interrompem 89
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gravidez indesejada. Condições desfavoráveis, tais como falta de assistência do futuro pai, desemprego, separação, viuvez, deixam a mulher vulnerável a atitudes drásticas. Muitas delas, mães endurecidas pela miséria e solidão, permitem a ação de padrastos predadores, abandonam a prole à própria sorte. A magia do mistério que envolve a gravidez e a crença de que maternidade só é legítima quando o filho é uterino causam indiferença de mulheres inférteis ao desamparo de crianças que esperam adoção. É comum a maternidade transformar-se em instrumento de manipulação feminina, ora para provocar um casamento, ora para segurar o marido. Em muitos casos, quando desfeito o casamento, vira instrumento mesquinho de vingança, onde o instinto maternal é anulado diante do sentimento de rejeição e perda. À exceção do estupro e das raras hipóteses de desconhecimento, falta de acesso ou falha no método contraceptivo, engravidar é uma escolha. Seja por arrependimento ou superveniência de condições desfavoráveis, seja pelo risco de vida que a mãe se expõe, interromper a vida de um ser humano em formação é um ato brutal de violência contra alguém indefeso e que não pediu para ser concebido. É fazer de uma benção infortúnio.
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Vivendo no Terceiro Milênio Se a escada não estiver apoiada na parede correta, cada degrau que subir é um passo a mais para um lugar equivocado. Stephen Covery Falharam as previsões para o Terceiro Milênio. Nem o mundo dos Jetsons, ou a tecnologia da Odisséia no Espaço. Nenhuma perspectiva de solução para problemas básicos de sobrevivência como habitação, alimentação e saúde. O progresso isolou o ser humano em edificações com luz e temperatura artificiais. O conforto gerou o sedentarismo, ao encurtar o tempo de deslocamento, ou até o dispensando. Roupa que deveria servir de proteção ao corpo tornou-se símbolo de status, atividade econômica ou grupo social, muitas delas inadequadas ao ambiente e ao clima. O alimento que deveria nutrir é fonte de doenças. A humanidade criou tantas necessidades, que não sabe mais o que é indispensável. Continuamos depredando a natureza, poluindo o meio ambiente, fabricando doença. Novas bactérias e vírus
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fazem da medicina jogo de tentativas, erros e acertos. Vêem-se mentes sadias prisioneiras de corpos deteriorados e a inutilidade de corpos ainda vigorosos sem comando. Inacessíveis os remédios e tratamentos de última geração. Fracassamos na tentativa de atingir a plenitude física, intelectual e emocional. A ciência não consegue prever ou controlar a fúria da natureza. A maioria de nós é incapaz de sobreviver a uma catástrofe, não sabe construir abrigo, tecer a roupa, plantar e preparar o alimento. Em plena era cibernética, o ser humano é fragmentado, vive exilado de si e do outro. Quem sabe tenha-se cumprido a profecia do final do mundo e ainda não acordamos do pesadelo em que ele se transformou?
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A ESTRELA
Se seguires a tua estrela, não deixarás de atingir teu glorioso porto. Dante Alighieri
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Abro a Cancela de Tua Alma Olimpio Bonald Neto Abro a cancela de tua alma e vejo Teus virginais segredos estelares Repleto de emoções onde revejo O âmago da vida sob os mares. É a natureza ardente, feminina A fecundar, em transe, colibris, Gerando fantasias de menina Em míticos castelos juvenis. É a síntese infinita dos amores Na madrugada que te fez mais bela À luz que vem de um vale aberto em flores. É tudo, enfim, quanto quiseste-te lá No sortilégio exótico das cores A refletir na mais fulgente Estrela! Olinda, 07-06-006
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Revelação Noite profunda Emudecida a alma As estrelas me falam da despreocupada infância do irreverente jovem da nutrição materna da arrogância vivida; da dignidade resgatada; da sabedoria de quem tudo viveu. Sinto-me acolhida.
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Profecia I Enquanto o Velho Mundo se agita, em sortilégios de medo e horror, a Deusa Mãe se contorce. Surge a Nova Era, plena de compaixão e amor.
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Profecia II Chegará o dia em que o dragão será domado, Dom Quixote empunhará bandeira branca e descobrirá que Dorotéa é bruxa. Cada um será rei e rainha de seu castelo interior.
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Essência Sou árvore e vento, pedra e chuva, raposa e pasto, carrasco e vidente, estrela cadente, sou apenas amor.
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Hai-Kai II
1. Perdão Veste a natureza sereno manto de orvalho, purgatório da manhã.
2. Imprevidência Pronta expulsou-me da cama uma fome azul. Zomba a dispensa vazia.
3. Equilíbrio Oscila segura a libra no eixo aprumado. Abençoada é a base.
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4. Força Pêndulo que vai, curva a haste e não quebra, pêndulo, amém.
5. Leveza A pena tocou a liberdade da pedra, que alegre rolou.
6. Fênix E porque veio o sereno, de fogo e de cinzas, a semente fez-se orvalho.
7. Primavera Quero a chuva sob a relva refletindo o azul que desperta os colibris.
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8. Sabedoria A noite caminha pelos olhos da coruja no transe da chama.
9. Quimera Dança a brisa sob as copas que sonham ser asas no luar que reverbera.
10. Fuga Do rochedo fiz reduto, da palavra escudo do isolamento manto.
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A Alegoria do Sol A luz intensa do vazio encandeia, traz torpor, enrijece. Quem percebe o deserto, sente-se mais confortável na penumbra da própria sombra. Na caverna, outrora abandonada, descobre a verdade que os refletores escondem. Tomado de compaixão, sai em busca das vítimas e proclama o esplendor da divina constelação.
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Essencial Trago mensagem do vento. Fala do colorido das flores, do frescor da fonte, do perfume da fruta, do sabor da manhã. Levo à lua o lamento das árvores. Ouço a memória das pedras, o trançado do tempo. Sinto cheiro de estrelas. Na quietude do silêncio, repouso.
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Aptidões Queres saber meu ofício? Pedreiro, vigia, vidente, costureira, cortesã, pau que dá em doido, sou o dia de amanhã. Cozinheira, escultor, encanador, enfermeira, cantor, mãe, compositor, sou uma nuvem passageira Mascate, marido, santo, açúcar no formigueiro, político, flor do campo, sou agulha no palheiro.
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Trajeto E, neste dia verde, percorro campo de girassóis e trigo. Visto-me de alegria, chuto água das poças, pulo amarelinha, rodopio bambolê; levanto vôo, empino o arco íris; salto sobre estrelas, pulverizo coro de pássaros. Deslizo no túnel dos sonhos e acordo entre nuvens de algodão.
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Renovação de Votos Olhos e ouvidos perenes, Dedicados às facetas do ser, à revelação mútua, ao eterno encontro. No altar sagrado da alma, na comunhão de propósitos, no acolhimento dos erros, na conciliação de interesses, coração ausente de mágoas, pleno de respeito e carinho, cultivemos o amor. A meu amado Gilmar
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Sem Despedida Corcel envolto em almofadas de linho te conduz. A travessia é suave, embalada pelo movimento de asas. És agora o feto que te trouxe ao mundo, o embrião em letargia, à espera do anjo que te receberá. Nos muitos amigos que te acenam, conquistastes a paz perene e merecida. (Homenagem póstuma ao amigo Haroldo Varella)
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Bumerangue Ao amigo e poeta Lúcio Ferreira Quando prendo, perco Ao perder, procuro E, buscando, encontro No encontro, solto E, soltando, volta No retorno, vejo O que vejo, escapa Observo e integro O que integro, amo E o amor liberta
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Veludo Vermelho Veludo vermelho Reveste a parede, O armário, a cortina A cor do tapete Veludo vermelho, No sapato alto, Vestido de festa, Pregão do arauto O rubi no dedo Vermelho é a justiça Colore e atiça O vivo vermelho O que faz o espelho Ser tão sedutor? Será o veludo, Veludo vermelho? Não é um bordel Nem mesmo o início de lua de mel: São bodas de ofício Homenagem à mulher advogada
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Acordes Na magia das estrelas A teia do tempo trama O cruzar de olhares rentes Envoltos em anel de âmbar Rostos colados, na bruma A imaginação flutua Os olhos fechados sondam Sonoro o pulsar da lua As bocas, de vinho ávidas Hálito quente seduz Fibras dilatam, pressentem Deleites ao som de blues Soam sonoros acordes Asas de águia ao luar Nudez penetra, navega Rio de néctar que há A magia das estrelas Corpos suados reflete A noite conduz a trama Os amantes adormecem.
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Ato de Fé Conduz o compasso Invisível mão E faz ágil o traço Bela é a evolução Que envolve meu passo Girando no ar De um salto refaço O leve dançar Se vem o cansaço um anjo eu vejo guiando meus pés Entrego num laço A alma em enlevo Num ato de fé
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Primavera Nos encantos da beleza vejo flor na primavera. (Mote de Carlos Cavalcanti) A correr por entre as flores eu criança quis viver embalada vou crescer entre formas, entre cores em tamanhos, em odores Na cadência a brisa era o dançar de uma pantera tudo canta a natureza Nos encantos da beleza vejo flor na primavera Ave nobre a me ensinar a magia a me invadir Bela flor que ali colhi o seu pólen se espalhar Um portal a atravessar entre nuvens me dissera deslumbrante tal esfera sua imagem realeza Nos encantos da beleza vejo flor na primavera
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Espumavam em golfadas a brilhar idéias tantas em cascatas sãs tão santas deslizavam belas fadas Todo amor feito em camadas veste o sol de toda era florescer a atmosfera é soltar feliz represa Nos encantos da beleza vejo flor na primavera. Ao retê-las evaporam Não se pode aprisionar pensamento a se formar Nas encostas livres moram as sementes tudo exploram o cultivo o broto espera o labor que o homem dera tece um manto de surpresa Nos encantos da beleza vejo flor na primavera Movimento que seduz o cenário é intrigante O trabalho itinerante faz a noite contra a luz O pequeno grão reluz combater sombra severa no luar que reverbera a esperança alva certeza Nos encantos da beleza vejo flor na primavera
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Bom destino é dado ao grão que nutrido aprende e cresce bem regado então floresce procurando comunhão Esta sorte esta canção novo emblema a Mãe fizera cada lágrima coopera girassol busca pureza Nos encantos da beleza vejo flor na primavera
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Carta ao Buscador Guarde os passos da caminhada. Olhe para trás, veja seus rastros. Aqueles ainda firmes é sua essência. O que não é seu, o vento apaga. Olhe o horizonte, fixe uma nuvem, veja como ela se desloca, sem resistência. Sempre haverá um amanhã, mas, o hoje é mais importante. Sinta o cheiro do orvalho, cada manhã, um significado, um destino. Escute os sons do mundo, perceba o tempo construindo desafios. Peça ajuda a quem confia, seu guia, seu anjo da guarda. Eles estarão sempre disponíveis, apesar do seu isolamento. Cuide-se, aceite-se, ame-se, pois nada pode ser concebido, transformado ou criado enquanto não se dissolve o caos.
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Virgínia Leal, a Contadora de Estrelas. O título sugere reminiscências, a saudade de eras entrelaçadas no tear do mistério, a vida se fazendo nas indagações, a alma em festa, a descoberta das coisas não-ditas, apenas inaladas, pressentidas, arrepiando a pele, algo no ar prestes a explodir: um pulo da infância à maturidade. O entremeio do amor, das rosas vicejando no campo fértil das emoções, assim é este novo livro de Virgínia Leal. Contar estrelas sempre foi um momento mágico na vida das crianças, acompanhado do medo de verrugas aparecerem na ponta dos dedos. Entre mistério e temor passava-se o primeiro estágio da vida, mais alegrias que tristezas povoando o mundo possível. A contadora de estrelas não interrompeu a caminhada. Continuou sonhando-a em pinceladas amenas, a força da crença no direito de ser única, a própria história de aceitar a solitude como condição inerente ao ser, mas sem abdicar do direito de mudar o caminho. Assim é a poetisa Virgínia Leal. Em versos polimétricos, ela rompe com a estrutura estética e voa, sem amarras, pelo imaginário.
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Dilui-se em momentos de criação, momentos de luz iluminando veredas e encruzilhadas. Descobre-se. Evade-se do clamor do cotidiano contemplando o infinito. Ela é parte da paisagem /A claridade se despede/ Fluxo lunar tinge de rubor o céu/ Ela contempla as estrelas. O poeta traz na alma as marcas da herança divina. A natureza se concentra no simbolismo da construção do corpo e Virgínia se perde em divagações: Em mim/ perene é o rio/ de águas revoltas// e dele não atino. Represa rompida/ perco-me no asfalto/ evaporo-me no tempo. De uma sensibilidade incomum, extrapola a dor em Natimorto Choram as mães/ sobre as mortalhas/ pelas crianças/ que em si morreram. Todas nós trazemos pedaços dessas mortalhas, iniciando o processo da diluição lenta, insidiosa, que um dia nos levará aos campos fortuitos, a adubar cravos e rosas.
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Virgínia indaga-se, num desses momentos de angústia: De onde vem profunda mágoa/ essa ausência sem razão/ de um vazio que tudo apaga/ num desejo sem expressão? Mas faz um balanço de tudo que viveu e o resume no poema Essencial. Sacode a poeira do desencanto, vê-se parte da natureza, sente-se essência do mundo: Trago mensagem do vento./ Falo do colorido das flores/ do frescor da fonte do perfume da fruta/ do sabor da manhã. Levo á lua o lamento das árvores./ Ouço a memória das pedras, o trançado do tempo./ Sinto cheiro de estrelas. Na quietude do silêncio/ repouso. Enfim, revelou-se a mulher-poetisa. As folhas soltas de papéis em branco encheram-se de grafismos, jorraram palavras. Frases buriladas no sofrimento sublimaram-se, a arte de escrever tornou-se, então, a meta, o desejo. Assim é a cronista Virgínia leal. Eclética, escreve textos carregados sentimento poético, de reflexão,
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experiências vividas que se buscam e em simbiose se unem, num abraço espontâneo, fraterno. Transmuda-se, joga o jogo da amarelinha, escolhe o lúdico para mascarar um pouco a dor de existir. Cria parábolas, metáforas. O discurso denotativo se faz presente quando quer enfatizar os alertas sobre a condição do homem na terra, sua responsabilidade perante o planeta que habita, a incoerência diante dos flagelos do mundo, a omissão e o egoísmo vedando-lhe os olhos, endurecendo o coração. Diversas meninas moram em sua imaginação, diversas fases da vida. Passou pela meninadrama, menina-trabalho, menina-esperança, menina-bailarina, menina-atriz, meninacanção. Todas essas meninas resultaram na menina-mulher no mundo dos anseios, ora perdidos, ora resgatados tempos depois, o onírico relutando em viver momentos catárticos de compensação. Passos contínuos de mulher combativa, de mulher que fez da fraqueza, força para viver o sonho. No entanto, as diversas meninas marcadas na alma a sol e chuva não fizeram Virgínia perder o encanto, a esperança, a crença no amor. Assim é a amiga Virgínia Leal. Celebra com os amigos um vinho maturado na amizade, no carinho. Rende-lhes homenagens, fazendo-os partilhar dessa grande aventura que 119
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é compor um livro, da alegria de vê-lo caminhar. Telma de Figueiredo Brilhante. Escritora. É membro da União Brasileira de Escritores - UBE/ PE e da Academia de Letras e Artes do Nordeste – ALANE.
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Índice Reluzente Visita aos Arcanos – Vital Corrêa de Araújo .......................... pág. Apresentação................................. pag. Virgínia Leal, a Contadora de Estrelas......... pág.
I– A Lua A Lua – Lúcio Ferreira.................. pág. Rotina........................................... Equilíbrio...................................... Relicário do Medo........................ Nimbo........................................... Cibernética Glacial....................... Revelação...................................... Miragem........................................ A Tez.............................................. Os Elementos................................ Natimorto...................................... Limiar da Paixão........................... Agosto Errante.............................. Tempo........................................... Roda dos Ângulos......................... Beija-Flor...................................... Marcas.......................................... Hai-Kai I....................................... A Selva..........................................
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Tributo a Pandora........................ No Vale das Sombras................... A Bailarina, a Atriz e a Canção....
II – A Roda da Fortuna O Retrocesso – Luciene Freitas..... pág. Estranho no Ninho........................ Retrato de um Encontro................ Dedo de Deus................................. O Segredo da Caixa Florida........... Sexta-feira...................................... A Justiça é cega?............................ Perfume Francês............................ Fogos de Artifício...........................
III - O Louco O Doido – Djanira Silva ................. pág. Mico & Cia...................................... Vingança Ocasional........................ O Velho Barrero............................. A Caminhoneira.............................. Carta à Maria ..................................
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IV – O Ermitão Boca do Lixo – Zuyla Cartaxo..........pág. O Ópio do Mundo Globalizado ....... A Tirania da Vítima......................... O Mal de Todos os Tempos .......... Onde Está a Velha Sabedoria?...... A Crise........................................... Discernimento.............................. Vida e Morte – A Fuga Desesperada da Dor................................................ A Ética do Suicídio........................ O Sonho da Maternidade Versus Gravidez Indesejada..................... Vivendo no Terceiro Milênio.......
V – A Estrela Abro a Cancela de Tua Alma - Olímpio Bonald Neto ................................... pag. Revelação....................................... Profecia I........................................ Profecia II....................................... Essência.......................................... Hai-Kai II........................................ A Alegoria do Sol............................ Essencial......................................... Aptidões.......................................... Trajeto............................................ Renovação de Votos....................... 123
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Sem Despedida.............................. Bumerangue................................... Veludo Vermelho........................... Acordes.......................................... Ato de Fé........................................ Primavera...................................... Carta ao Buscador...............................
Virgínia Leal, a Contadora de Estrelas. Telma Brilhante
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Virgínia Leal é recifense de nascimento e olindense de coração. Filha de escritor e de historiadora e mãe de um casal de filhos, por trinta anos foi advogada da Caixa Econômica Federal em Pernambuco. Iniciou seu percurso literário em 2003, com o livro “O Caleidoscópio da Vida”. Em 2005 editou “Para quem não tem colírio – Desnudando o comportamento compulsivo”, e “Fênix”. Participou de algumas antologias, entre elas “Pimenta Rosa”, “O Fim da Velhice – A superação bem humorada de um conceito” e “Vozes – A Crônica Feminina Contemporânea em Pernambuco. É sócia da União Brasileira de Escritores e integrante do Grupo Literário Celina de Holanda. vbleal@terra.com.br
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