De Algum Anel Azul

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2 Virgínia Leal

Contadora De Estrelas

Olinda, 2020 Capa e Ilustrações: Erick Bruno Bastos Barros Revisão: Ícaro Distribuição Gratuita: Aceitamos doações de qualquer valor à Associação Pathwork Paraíba – CNPJ 05.536.484/0001-01 Banco do Brasil – Agência 1635-1 – conta corrente 24926-2

Sumário EM BUSCA DE APLAUSOS .................................................. 6 RENASCIMENTO ............................................................... 7 DE ALGUM ANEL AZUL .................................................... 10 INVOCAÇÃO ................................................................... 12


3 RENOVAÇÃO DE VOTOS .................................................. 14 ATO DE FÉ ...................................................................... 16 ENTRE OS PÉS E A CABEÇA .............................................. 17 VIDA-MORTE-RENASCIMENTO ........................................ 18 A VIAGEM ...................................................................... 20 SE .................................................................................. 22 PARA UMA BOA COLHEITA ............................................. 24 A VIDA EM PERSPECTIVA ................................................ 25 JORNADA XAMÂNICA ..................................................... 27 EM BUSCA DA ALMA ...................................................... 28 ENIGMA ......................................................................... 29 LAVA-PÉS ....................................................................... 29 MANTO AZUL ................................................................. 30 O BORDADO DA VIDA ..................................................... 31 O TEMPO ....................................................................... 32 O TEMPO DE CADA UM .................................................. 33 ERRANTES DO TEMPO .................................................... 35 SALGUEIRO .................................................................... 35 PRÉ-ACORDOS ................................................................ 37 UM NATAL DIFERENTE .................................................... 38 EU E O DUPLO ................................................................ 41 VONTADE VÃ ................................................................. 42 O ENSOLARADO FRIO ..................................................... 44 QUANDO EU CRESCER .................................................... 45 EU E A SOMBRA ............................................................. 46


4 SINTO, LOGO EXISTO ...................................................... 48 PRIMAVEROU ................................................................ 51 CÔNCAVO E CONVEXO.................................................... 51 GESTAÇÃO ..................................................................... 52 MATURIDADE................................................................. 53 CORNUCÓPIA ................................................................. 54 FEMININO SER ............................................................... 55 HUMORES DE TIGRE ....................................................... 57 MAR QUE ME LEVA, ME LEVA MAR ................................. 57 O DÉCIMO SIGNO ........................................................... 58 MEUS EUS ...................................................................... 59 INTOLERÂNCIA ............................................................... 62 O OUTRO LADO DO ESPELHO .......................................... 63 EU E A BRISA .................................................................. 65 NOSTALGIA .................................................................... 65 UM INSTANTE ................................................................ 66 INTERAÇÃO .................................................................... 67 TRÊS SENTIDOS .............................................................. 69 ENQUANTO O AMOR NÃO CHEGA................................... 71 A SINA DAS MARIONETES ............................................... 72 PAR A PAR ..................................................................... 74 POR QUE TE AMO? ......................................................... 74 QUANDO O AMOR É PERENE .......................................... 76 PARA VIVER EM AMOR ................................................... 77 À BEIRA DO ABISMO ....................................................... 79


5 APENAS UM OLHAR ........................................................ 80 O QUERER ...................................................................... 82 VAGAS ........................................................................... 83 O VERBO ........................................................................ 84 2020 EM RETROSPECTIVA ............................................... 85 AUTOAPRESENTAÇÃO .................................................... 88


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Em Busca de Aplausos Toda obra de arte é uma personalidade. O artista vive nela, depois de ela ter vivido longo tempo dentro dele. (Vargas Vila) Indubitavelmente, quem escreve quer ser lido e deseja visibilidade e valorização de seu trabalho. Esse é o pesar que muitos já sofreram, porque não desfrutaram em vida do sucesso de sua obra. É preciso não se abater pela indiferença de alguns ou porque seu estilo não é da predileção da maioria. Manter-se motivado requer acreditar no próprio talento, ainda que careça de ser burilado. Não se deve ignorar que o tempero de uma boa obra é o suor resultante da perseverança, em busca do aprimoramento. Tempo ativo, laborativo, recriador. E nesse


7 mister, o conteúdo é tão importante quanto a técnica. Há quem diga que o bom trabalho sobrevive ao tempo. Sem negar essa realidade, digo que qualquer obra tem o seu momento e é eterna aos olhos de quem com ela se identifica.

Renascimento Meu fazer literário desabrochou em 2004, quando publiquei o primeiro livro, “O Caleidoscópio da Vida”. Mantive viva a inspiração por cinco anos, que resultou na


8 edição de mais três livros: “Fênix”, “Para Quem Não Tem Colírio” e “Contadora de Estrelas”. Seguiu-se, então, um vazio criativo de doze anos, em que eu não acessava qualquer conteúdo a ser vertido. Esse ano, ao compor a Diretoria de uma Associação de Aposentados e Pensionistas, acessei um universo diferente que me trouxe um outro olhar sobre as pessoas e a vida. Não sei se é o momento delicado em que vive a humanidade, que a obriga a estar frente a frente com a morte, ou se o meu propósito de estar a serviço desses colegas, a quem me afeiçoei, ou tudo isso junto, que deume material para o labor e devolveu-me a sensibilidade e intuição. Destaque faço aos poetas do grupo, por me instigarem a criatividade, além do estreitamento da amizade com um deles, Carlos Bezerra, que favoreceu trocas temáticas e existenciais maravilhosas. A eles todos dedico estes escritos, certa de que esta partilha, além das postagens inspiradoras que cada um generosamente ofertou ao grupo, refletiu e influenciou toda a minha criação. Coloco mais uma criação no mundo, desejando que ela viaje no imaginário de cada leitor e que o deleite, e que de alguma forma


9 contribua para ampliar seus horizontes e sua percepção do mundo.


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E fortalecida atravesso a multidão de descrenças, hesitações e nãos que há em mim e enfim toco a Túnica Sagrada da Transcendência .

De algum Anel Azul Não estamos sós.


11 Um mundo invisível nos observa, à espera de um gesto, uma intenção, uma escolha. Não estamos sós. A terra oferece a base para cada passo, quando se sabe a direção e o sentido. Não estamos sós. O mineral revela arquivos de eras, o vegetal doa abundante seiva o animal atiça o poder do instinto. Não estamos sós. Forças estelares acompanham nosso progresso e ativam o vigor preciso para a evolução de cada um. Não estamos sós. O isolamento é escolha, a separação é ilusão. Mesmo que se negue, ainda que se ignore, estamos interconectados pela rede de interações.


12 É chegada a hora de recordar que somos parte do todo. E ao nos sentirmos uno, o retumbar da vitória se ouvirá, vindo de algum Anel Azul.

Invocação Invoco xamãs e feiticeiros, alquimistas do reino vegetal, os gnomos, salamandras, sílfides e ondinas, e todos os seres elementais, guardiões da natureza. Se acerquem os aborígenes com sua medicina sagrada, e todas as remotas tradições da sabedoria ancestral. Conclamo os anjos, arcanjos, querubins e toda ordem angelical, mensageiros das preces humanas e recados divinos,


13 trazendo bênçãos e proteção. Apelo aos Arcturianos, Lemurianos, Pleiadianos e cada ser estelar incumbido de ajudar a evolução do planeta. Bem-vindas os deuses, deusas e orixás, espíritos dos pretos velhos, caboclos e ciganos, cada um com seu cadinho alquímico. Abanquem-se os heróis das histórias e fábulas humanas, contem seus sucessos, falem de seus fantásticos dons. Tragam suas lições de superação. Abençoados sejam todos os arquétipos, modelos idealizados de inspiração, que humanizam o divino e divinizam o humano. Venham, é tempo de assembleia, de congregação, do grande concílio. Ouçam o chamado de uníssona voz a evocar memórias oníricas,


14 daqueles que trabalham pela cura do Planeta e dos seres que nela habitam. Longe ecoa o som de tambor, vindo de locas espiraladas de algum Anel Azul.

Renovação De Votos Que eu não projete o olhar pela lente da rejeição. Pois além do que vejo, há uma singularidade a ser descoberta. Que eu não use o escudo entrincheirado da escuta, pronta para revidar. Por trás do que ouço,


15 há uma voz que anseia ser ouvida. Que o próximo não seja O barro que amoldo ou a tela que imprimo, já que a modelagem é indelegável. Que eu não me esconda na máscara da dissimulação, pois ao privar o mundo de quem sou, transparece a face deformada de quem se isola e se separa. Que eu seja os olhos que veem e os ouvidos que escutam. Que em amor me revele a quem cruzar meu caminho. E que sigamos lado a lado.


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Ato De Fé Oh! Fonte infinita de amor que me conheces nas fraquezas e na força. Ativas em mim a confiança em teus propósitos, e em meu potencial de superação e evolução. No sagrado altar da fé ofereço em sacrifício as crenças equivocadas, as dúvidas infundadas e o medo de me perder em Ti. Solenemente, queimo as mazelas na pira da imolação. Em labor de entrega, jogo-me no vácuo do inefável destino divino que me reservas. Solto a culpa paralisante,


17 assumo os erros e os converto em aprendizado. Separo o joio do trigo e ativo a cura que há em mim. Que Tua fonte jorre a fé que conquistei e que se afirma a cada experiência em que decido por Ti. Fortalecida atravesso a multidão de descrença, de hesitação e de nãos que há em mim. E enfim toco a Túnica Sagrada da transcendência. Que a escolha diária pelo divino seja a renovação de minha fé em movimento.

Entre os Pés e a Cabeça (Desafio aceito de Carlos Bezerra e Edmilton Torres) Todo passado é estruturado pelos tijolos da experiência e tirar dela o aprendizado é o que traz toda sapiência. Não basta ser sonhador, assim a sabedoria frisa,


18 o retrovisor tem seu valor, assim como o para-brisa. Mas o amor e a magia modelam o sonho sonhado É alimento, é melodia no orbe lírico maturado. No inviolável da mente é importante atinar: Fincar os pés qual semente e a cabeça nas nuvens voar.

Vida-Morte-Renascimento De mortes sucessivas é feita a vida. A rebeldia dá lugar à assertividade, a ingenuidade, à perspicácia, o egoísmo, à compaixão, a dependência à autonomia, a infantilidade, à maturidade, a ignorância, à sabedoria, o medo, ao amor. Morte e vida são faces da mesma moeda. É preciso estar atento ao curso das faces irmãs, e perceber quem aparece. Soltar o que pereceu e acolher a novidade. Dar um passo à frente é deixar algo para trás,


19 pois tralha pesada demais dificulta a caminhada. A vida não tem parada só há percurso e ensino, é um eterno contínuo sem começo nem fim. Crescer requer imolação do embrião, da criança, do adolescente, do jovem, para que surja o adulto. E quando vem o declínio, o retorno de onde se veio, regride-se ao feto que foi, nutrido pelo absoluto útero, até o despertar no infinito. A vida é fluxo, é movimento, morte, e renascimento. Viver é sucessão de provas que nos conduz à morte. É preciso ceifar o velho para nascer o novo. Morte e nascimento são portais que é preciso atravessar, para que não se sugue o viço de quem neles parar. Morrer é o fim, para quem não crer na mutação da vida, para quem desconfia do processo,


20 e do amor de Quem o criou. É um percurso que só o viajante pode fazer. Mas sempre haverá mestres no caminho e talismãs que o ajudam e o protegem . E depois do limiar, um campo de possibilidades sempre estará a seu dispor.

A Viagem Um ponto de luz hiberna em gruta úmida. Há um cordão que o conecta à nascente. O embrião cresce e se desenvolve. Ao se vestir de matéria, seu brilho diminui. Chega o momento em que a gruta se faz pequena. É iniciada a jornada, rumo ao desconhecido. A travessia é difícil, o portal é estreito. A nova vida é inédita.


21 Aos poucos se aparta da mãe, e começa o aprendizado humano de estar no mundo. Enfrenta as dificuldades da gravidade, que torna penoso o andar, tem um corpo que cresce, órgãos que se expandem, precisa respirar para viver. Prova sensações e sentimentos que o confundem, uma linguagem de difícil compreensão, vê-se inundado de informações. Precisa entender esse mundo de tempo e e de espaço e aprender como lidar com ele. Paradoxalmente, o maior desafio é a troca com outros pontos de luz, que pensam ser o corpo que lhe permitiu chegar ao mundo. Sem saber por que está aqui, a cada dia distancia-se da Origem. E perdido estaria, não fosse a necessidade de se agregar, o impulso em direção ao outro, o amor aflorando na convivência. Juntos, vão descobrindo sentido para a vida.


22 Ao se permitir sentir o que chega, centelhas de luz abrem caminho e ajudam o despertar do Ser. O tempo flui, as experiências se sucedem, e com elas a compreensão, o amadurecimento. É chegada a hora de seguir viagem, se despir da roupa humana e voltar à Fonte. E de lembrar que é um ponto de luz que viveu uma experiência humana.

Se E se tudo que se vê, se ouve se pensa e se sente for só um esforço na direção contrária de aonde precisamos ir?


23 E se os conceitos, padrões e crenças forem apenas algo que se construiu para nos sentirmos seguros? E se tudo isso não for real, se estamos em transe, vagando como sonâmbulos? É possível despertar? Para que nos tornamos marionetes de nós mesmos? Quando foi que perdemos o dom de questionar? Quando foi que nos desviamos? Como entramos na matrix que construímos? Terá sido ao voltarmos o olhar para fora? Que faremos para retornar de onde nunca saímos? E se buscarmos em nós as respostas que já conhecemos, e escondemos com afinco? E se a existência for uma brincadeira divina para nos distrair do drama e nos despertar a leveza


24 e o humor?

Para Uma Boa Colheita Para uma boa colheita, o terreno precisa estar fertilizado na medida certa e com o tipo adequado ao plantio. O solo deve ser permeável e compatível com o que se quer plantar. Convém remover ervas daninhas, pedras e cascalhos, para facilitar a expansão das raízes. A boa colheita requer sementes sadias, livres de parasitas e fungos. Precisam ser adequadas ao ambiente e cooperativas entre si, para o crescimento recíproco. Cuidado se deve ter com a distância entre elas, evitando a disputa por espaço. A rega pede precisão, para que o solo não se torne árido nem fique encharcado.


25 O cultivo não dispensa o sol para que ocorra a fotossíntese. A boa colheita exige paciência para o desabrochar das flores e o amadurecer dos frutos. Precisa do cuidado diário, do constante olhar amoroso, acompanhar o curso das sementes, atento à hora do replante. Assim como se dá nas interações humanas.

A Vida Em Perspectiva A vida só se vê em perspectiva. Pelo ângulo do senso comum, A criança vê a vida como divertimento, o adolescente, como aventura, o jovem, como desafio, o adulto, como responsabilidade, o de meia-idade, como declínio, o idoso, como o fim. Espera-se que a vida se ajuste


26 aos desejos e vontades de cada um. A luta humana é incessante na tentativa de controlar o que é livre, assegurar o incerto, prever o inesperado, determinar o aleatório, reverter o passado. Desconfia-se da intuição, essa bússola interna que é guiada pela percepção interna. A perspectiva pessoal se faz pela soma das experiências, pelo conjunto de crenças, conceitos e preconceitos que formam a personalidade, e pelos valores que determinam o caráter. As defesas emocionais ajustam o olhar a uma lente que foca só que se quer ver. Incapaz de vizualizar o todo, a vida sempre se verá em perspectiva. Cabe a cada um ajustar a lente, caso queira ampliar o ângulo de visão da realidade.


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Jornada Xamânica Em minha busca de visão, atravessei o portal da Dimensão dos Sonhos, lancei a Flecha da Verdade, e ecoei o Grito de Guerra. Os seres-Trovão, anunciaram os Ritos de Passagem, nos ciclos da Roda de Cura. No Lugar de Poder, fui iniciada em Cerimônia de Doação e de Desapego, enquanto o vapor das Pedras Sagradas purificava-me o corpo, a mente e o espírito. Contemplei os animais de poder girando a Roda de Cura, mostrando o significado da direção e do sentido. Fé e Humildade ao Sul Iluminação e esclarecimento ao Leste. Introspecção e objetivos ao Oeste Sabedoria e Gratidão ao Norte. Ao chegar na Fogueira do Conselho, confessei o que sinto por dentro, ao exibir minha Cara Pintada


28 com as cores do Grande Mistério. A linguagem do céu levou-me ao Campo da Fartura, onde recebi o coral, o Vaso Mágico da Cura, e a sacola de talismãs. Piso na Terra Vermelha de que é feita a Inocência, e sinto o Poder da Alegria. Vejo o Salgueiro expandir as raízes da comunhão. Retorno, envolta pelo Grande Xale, plena do amor que me habita.

Em Busca da Alma Afinal, o que seria a alma? Seria a essência das coisas, a ideia primária, o princípio de tudo? A fonte das ideias e sentimentos? O lugar aonde se vai ao meditar? Ou a consciência, a sabedoria, o Divino? Por que se diz que a alma “é de outro mundo”? Seria a alma o assombro, o espanto? Um olhar pra dentro, um descanso? A maestria, a quintessência, o transe? Quem sabe o ruído de espectro errante? O bater de asas, um triste canto? Ou aquele que pergunta se alma existe?


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Enigma É a vida um mar profundo. Mar feito do sal dos segredos, mar feito de espuma. Mar sempre a caminho no seu ir e vir, que se distrai dos sonhos com coloridas conchas. Vida que se faz peixe e que se deixa fisgar, manso a se transportar pelo barco da ocasião. E quando o vento se adensa, torna-se revolto, recolhe dores, adentra nos escaninhos do Ser. É a vida um mar profundo.

Lava-Pés


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Largo o pisar Larva a pulsar Lavra o pensar Livra-me o pesar Lembre-me os pés Leva-me os pés Louva-me os pés Lava-pés

Manto azul O sol adormece sobre o cansaço do dia. Na penumbra das horas a vida repousa e as trevas cumprem seu destino. No encontro da noite com o dia, a lua entrega ao sol sinistros miasmas em cíclico ritual de cremação.


31 As últimas lágrimas de orvalho derramam-se sobre as folhas, umedecem a terra, acordam a semente. A aurora recolhe o véu que esconde a pálida manhã e agasalha o novo dia com seu manto azul

O Bordado Da Vida No tempo em que a voz não conhecia palavras, a Terra era um vasto jardim. Fácil era entender o bailado das árvores, o rumor das ondas, e a vibração das pedras. Os raios de sol permeavam as árvores e aqueciam o corpo. Os pássaros traziam imagens de lugares distantes. O vento era uma canção ancestral a lembrar quem somos. Nesses tempos idos, quando só havia o agora, a linguagem era do coração. Éramos todos Um,


32 um som na orquestra universal, um gesto na dança dos elementos, um olhar na construção das alegrias. Não se sabe em que encruzilhada nos desviamos. Sabe-se que a nostalgia criou o passado que congelado ficou no inverno da alma. Mas há aqueles que se demoram ao sentir o cheiro de terra que a chuva exala, ao ouvir o trovão em noites escuras, ao contemplar a lua no céu de estrelas. Eles continuam a colher o fio de voz que irá tecer as histórias, pois sabem que somos todos um ponto arrematado no bordado da vida.

O Tempo O tempo é aquilo que se queira que seja.


33 Um marcador de segundos, a captura de um instante, o fechamento de um ciclo, ou o começo de outro. O arco do violino a extrair as notas das experiências. A memória de um aroma, de um sabor ou de um toque. O retrovisor das realizações. Algo que se quer passe logo ou que sempre dure. Pode ser uma nova chance ou o deixar-se fluir nos eventos. O certo é que sempre seremos seus senhores e do tempo dispor ao fazer dele um obstáculo ou uma oportunidade.

O Tempo de Cada Um O tempo é o barro que modela a ocasião. Ele arrefece a paixão, debela a ira, consola a tristeza. Lapida a paciência e a fé ou sustenta a intolerância e o medo. Forja o apego e a posse, constrói indiferença, ou consolida o amor. Muda a perspectiva e a expectativa, trabalha a frustração.


34 Pode ser brisa ou furacão, neblina ou tempestade, frio ou calor. Ele é feito de lembranças e esquecimentos. O tempo é movimento, e movimento é vida. Há o tempo para todas as coisas. Às vezes parece que o tempo acelera ou retém os minutos. Há o tempo de viver e o tempo de morrer. Ele faz o ritmo de cada um, o compasso das ações. É cíclico, linear ou espiralado. O tempo preserva o passado, projeta o futuro, e flui no presente. É feito dos momentos de cada um. É criação humana e dela está a serviço. A vida dura um instante e um instante dura uma vida. Na vida eterna, o tempo está fora do tempo. E só o amor é atemporal


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Errantes do Tempo Errantes do tempo nós somos, autômatos dos percursos conhecidos. Com pés descalços em pedras ásperas, ferimos a dor. A dor do mundo, a nos acenar o passado, os ancestrais a clamar por justiça. Espectros do tempo seguimos em frente (olhando para trás), rumo ao que já está escrito. Sagradas letras que profanamos, rogando por salvação. Brincamos de esconde-esconde enquanto Cronos nos espera, à sombra de uma frondosa macieira.

Salgueiro No recomeço de tudo, o sopro da vida pulsa no escuro útero. É a regressão do ser


36 a vestir-se de grão. O broto em mutação cava a passagem de ida ao desconhecido instante de orvalho e de sol, de vento e de lua. Fiel ao fio que o ancora, oferta à generosa chã altaneira fronde de flores e frutos. À tormenta e sua ceifa inclina-se em reverência e doa-lhe imoladas folhas, adubo de gérmen latente. Cada nó, cada gume urde a preciosa trama que forma a antiga morada de todas as eras. O sopro da vida pulsa e tudo é recomeço neste jeito humano de ser.


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Pré-Acordos Anjo da Morte, Você que ajuda a travessia dos escolhidos diga-me, por que eles e não os quem ficaram? Por que levou os amores daqueles a quem só restou o vazio das flores, que não perfumaram nem coloriram a despedida proibida? Auxilia-os a entender seus desígnios. Deixa-os adentrar em seus mistérios e conhecer a lógica dessa seleção, a roleta russa que leva doentes e sãos. Anjo da Morte,


38 Ampara-os no desespero, ajuda-os a seguir em frente pelos que precisam do seu amor e compaixão. Apoia-lhes a transformar o sofrimento em saudade. Socorre-os na compreensão de que os que seguiram a clara luz cumpriram pré-acordos feitos com o divino. Fortalece-os a fé na benignidade do universo. Que eles possam se juntar a outros enlutados e carentes de consolo. E que a dor coletiva seja transmutada e forme uma egrégora de luz a envolver este mundo dorido.

Um Natal Diferente A chuva se precipita purificando a atmosfera, para a chegada de um Convidado Especial. Aquele que a cada ano renova a esperança dos cansados e aflitos, ilumina corações com Seu amor incondicional,


39 e este ano em particular consola a todos com a certeza da eternidade da vida, e com Sua sempre Boa Nova. Que só por nascer, mudou o mundo e a vida das pessoas, e que se faz sempre presente com sua emanação, a nos lembrar a amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo.

É Natal, há 2000 anos nasceu uma Criança, e é como se fosse hoje. Celebremos, em nosso reduto íntimo, o nascimento de Jesus. E que a cada dia, a Estrela Guia nos conduza até Ele.


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Como é possível o mesmo ser duplicar tanta contradição? Tudo fica travado nesse cabo de guerra.


41 E não se encaixam o côncavo e o convexo.

Eu E O Duplo Confusão sempre se deu entre quem somos e quem acreditamos ser. Identificados com nosso duplo, ao seu comando pensamos, sentimos e agimos. É um poder inconsciente dado por nós, que se revigora cada vez que as escolhas a ele são delegadas. Esse outro está sempre vigilante ao menor sinal de rebeldia. Quando teme a aniquilação, nos envolve no véu da ignorância e da negação. A simbiose persiste, até se perceber a fraude e se esclarecer o engano. E aí pode se dar a amorosa negociação do eu com o ego e a lenta conscientização do mútuo equívoco. Afinal, revertem-se os papéis. O ego volta a mediar a expressão do ser, em manifestação na existência. E por seu intermédio


42 o indivíduo poderá se apropriar de quem realmente é.

Vontade Vã A vontade do ego seduz como o canto da sereia e o sibilar da serpente. Causa indolência, torpor e a obstinada força da resistência. Encontra aliados, cúmplices e devotos, em intrincadas teses e inteligentes defesas.


43 É perspicaz e persuasiva, indulgente e sedutora, na incessante luta para manter a presa. É um triste paradoxo. O seu sucesso é o fracasso, a sua felicidade, a ruína, a sua alegria, o controle. Para debelá-la, o ego precisa ser visto, Validado, aceito e amado. Só assim ele abre a guarda e permite que prevaleça a vontade do Divino em cada um.


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O Ensolarado Frio O dia ensolarado contrastou com o frio vazio que me tomou em golfadas vorazes. Foi um vago turvo sem significado, ausência, nostalgia, não sei de quê. Um cansaço antigo de lutas inglórias. Estou a invernar, em meio ao claro dia. Percebi o congelamento, o embotamento e a anestesia na forma de deliberada catatonia. Fuji, me escondi, me acovardei, ausentei-me de mim. A consciência me trouxe a escolha, a decisão, a intenção de sair da apatia, e sentir o que for preciso. De perceber e validar tudo que o corpo registrar. De acolher e de soltar, qual uma taça que se


45 deixa preencher e esvaziar. De sacudir a poeira do tempo, de iniciar a reconstrução. De preencher lacunas, tecer mudanças, trocar de pele. Revigorei as asas que me conduziram ao desconhecido despertar do meu Ser. Renasci.

Quando Eu Crescer Quando eu crescer, trarei no olhar o viço da pura seiva que de mim emana, a expressão cristalina da essência que sou. O corpo contará histórias do tempo, moldado pelas experiências e forjado pelo aprendizado, abençoado mapa do que vivi. Quando crescer terei ouvidos compassivos, radares a escrutinar a verdade. As mãos construirão sonhos


46 e doarão alívio e cura. Da boca exalará o hálito divino. O andar será leve, lento e destemido do rumo. O colo, reduto dos cansados e aflitos. O ventre, farol a guiar os perdidos. A mente, usina consciente da criação. O coração, exultante, bombeará amor em abundância. Todos os sentidos vívidos e vibrantes, aptos a dar e receber. Sentimentos maduros, prontos para a troca com a vida, com as pessoas, comigo mesma, como há que ser. Quando crescer Preservarei a curiosidade e o entusiasmo infantil, a inocência da criança, autêntica e espontânea, plena de alegria e prazer. Até lá, vivo a aceitação do possível, valorizo cada passo que dou em direção a mim. E preservo a inspiradora memória desse breve vislumbre de paraíso.

Eu E A Sombra Há algo insidioso, perverso e mordaz


47 que se esconde e espera. Um vigia que não dorme, que sonda as fraquezas humanas, que insinua, sugere e induz, à espreita de uma falha, um deslize. Ninguém foge de suas garras, nem escapa de sua teia de intrigas, maledicências infâmias e blasfêmias. Há uma presença sutil, sofisticada nas estratégias. tenaz nas artimanhas, o lobo em pele de cordeiro, o falso profeta, o impostor, o sepulcro caiado. Até quem o conhece, ao descuidar da vigília, desliza nos fluidos deletérios, mergulha no caldeirão da insensatez. Sim, seu poder é grande e de longo alcance, assim como sua arrogância descuidada, que não vê o quanto sua vida é efêmera. Não atina que eterno só o bem, a fonte de amor de onde ele veio e para onde vai voltar.


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Sinto, Logo Existo Sinto vibrar cada fibra de meu ser. A cada nota tocada, sensações e sentimentos ressoam e se expandem. Percebo me perpassar os acordes de raiva, medo, alegria, tristeza e amor. Sensível a toda a intensidade que meu corpo assinala, deixo o som me inundar e seguir livre o seu curso. Exploro cada célula, cada membrana onde ele ficou retido, isolado, cristalizado, grito preso, contido. Basta um toque suave,


49 um sussurro, para ele se liberar. Eu sou artérias que levam o sangue sensível ao coração, a bombear cada gota de dor e prazer. Sou o oxigênio que dá vida. Expiro raiva e inspiro perdão, inspiro amor e expiro medo, expiro dúvida e inspiro fé. Respiro, deixo que me percorram, que façam o seu trajeto, com a fluidez que lhes é natural. Digiro a frustração, filtro as toxinas do rancor, metabolizo os erros, e extraio o aprendizado. Eu sinto por inteiro, começo, meio e fim, presente em meu corpo, que acolhe, vibra e solta tanto o que é bom quanto o que é ruim. Sou o leito do rio que acolhe o curso das águas do que sinto, e conduz o seu desembocar


50 no mar da vida. Sou o moinho que cede à força dos ventos nervosos. Ventos que criam vida no girar das hélices. Ventos que geram resiliência a cada movimento. Abro a caixa de Pandora e libero toda dor e prazer não sentidos, e com eles sonhos e desejos não vividos, projetos abandonados, amores esquecidos. Sou um receptáculo que se deixa preencher e se esvaziar para a chegada de novas sensações e sentimentos. E porque existo, sinto.


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Primaverou A paz primaverou em flores delicadas e ternas em meu Ser. Honro a guerreira que sou, cuja arma é a força em firmar cada passo. O feminino desponta com as bênçãos do masculino em mim, pois encontrou, enfim, o seu lugar. Confiante, entrego-me ao fluxo das experiências. Acolho e reverencio a vida. Tudo em mim é leveza e amor Sorvo lentamente o instante

Côncavo E Convexo Em mim, há um outro eu, o meu oposto.


52 Enquanto idealizo, ele é realiza. Tenho os pés no chão, ele é só fantasia. Quando ele teoriza, eu já estou na prática. Sou intensa, e ele é suave. Quero aventura, ele segurança. Sou feita de sol, ele de lua. Sou amor, ele é medo. Eu tento fluir e ele retém. Sou movimento e ele é estático. Ele é laboratório e eu, experimento. Se sigo o próximo passo, ele se senta. Como é possível o mesmo ser duplicar tanta contradição? Tudo fica travado nesse cabo de guerra. E não se encaixam o côncavo e o convexo.

Gestação Ah, o transitório... Tu que moves o estático, que giras a roda da vida, que impulsionas o fluxo, mostras-me que nada é perene. Conduz-me ao hiato, ao vazio, ao vácuo, tão prenhe e obscuro, tão ancestral e tão novo.


53 Em meu casulo te espero. Consagro-me ao que sou, feita de diversos prismas, singular e plural, em mim. Paciente, maturo o próximo ciclo.

Maturidade O tempo povoa-me de sonhos, sonda-me os mistérios, recolhe significados. Permeia lacunas com o dom da espera. Confiante, prenhe de esperanças. Dá-me asas e guelras, o olhar da coruja, o uivado do lobo. Anuncia histórias, encantadas no porvir, à espera de ser contada. Toca-me os sentidos com o sopro das horas e cheiro de prazer.


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De mãos postas, acolhe sombra e luz em coloridos prismas. Joga-me no vácuo de infinitas possibilidades, com o riso infantil, ávido de aventuras. Embala a criança dentro de mim, feita de pura magia plena de novidades. E a cada instante dá-me, generoso e sábio, a dádiva do presente.

Cornucópia Antes de me encantar tinha asas. Sei de um vulto a abeirar-se e puxar-me os pés. O Minotauro à espreita de quem no labirinto adentra. A imperatriz destronada a caminhar em círculos.


55 E as crianças a me distrair, o tino a oscilar ao som de risos infantis. Regredida a bordo do berço, o vento me arrasta cada vez mais alto e mais longe. Afasto-me do destino que pensava ser meu. Montanhas, árvores, mar, perco-me da civilização. Aflita fico aos primeiros sinais de escuridão. Prostrada pelo debate, rendo-me ao curso e levito. Envolta por um jovem Deus, deslizo. No solo me espera a cornucópia, plena de fartura, rica em abundância. O silêncio refaz o percurso. Ao acordar, nada será como antes.

Feminino Ser No singular é pujança que vaza e bebe e mergulha, para em seguida emergir e se deixar derramar. Na alteridade oscila o pendular desejo, a insinuar sem dizer, no seu falar de viés de sinuosas vias.


56 Na plenitude é presença de grota a colher vida, contraste de sombra e de luz, a permear lacunas como o pulsar de onda lunar. É singular e plural o sensual divino do feminino ser. Feito cordas que vibram antigas canções de ninar.


57

Humores de Tigre O espelho antigo das águas esconde o segredo das pedras. Fragmentos de sonho, lembranças diáfanas do fio perdido. Humores de tigre, represa a sangrar, murmúrio que ecoa à beira do precipício, em queda livre. Depois essa pressa, cotejo do enterro do dia no azul das horas. A chama frágil em declínio molda a crosta sobre o tempo.

Mar que me leva, me leva mar Imersão, fluidez, textura, ondulação, espuma, corrente, som, sabor, forma, cor, vida em movimento, amor. Mar que me leva, me leva mar Frescor, lúdico encanto,


58 promessa, dom e dádiva, sal, horizonte, espanto. Desafio, aventura, destino, regresso, âncora, porto, farol, desatino, solidão. Mar que me leva, me leva mar Lendas, mitos, simulação, silêncio, segredos, mistérios, bússola, mapa, leme, pujantes vagas, rebentação. Mar que me leva, me leva mar

O Décimo Signo Regido por Capricórnio é o leito e o curso do rio, da nau é o cais e o farol, da taipa, o esteio e o barro, do gérmen, o sal e o abrigo. Nativo do Décimo Signo labuta de sol a sol. É o último dos retirantes da terra seca rachada que o vento eleva e dilui. É pedra bruta à espera que as águas mornas de março penetrem o solo sagrado e em massapé transformado


59 revele os registros das Eras.

Meus Eus No reflexo do espelho Vejo-me em mil facetas. Sou a multidão sedenta de sabedoria e ávida por paz. A que aprende enquanto ensina, na vibração de quem fala, e no silêncio de quem escuta, no observar e no sentir, no que vivo e no que vem a seguir. O fio que tece o destino, o ponto que faz sentido, o nó a ser desatado, a teia das experiências. O subjetivo no objetivo, o círculo no quadrado. Sinuoso fio em busca do reto, a figura seguindo a espiral, o paradoxo dual imerso no universo do UM. Sou simples e tão complexa, analista e metafórica. Charada em livro aberto, inacabado quebra-cabeça


60 o espelho do que vejo fora e também dentro de mim. Sou o impulso do encontro e o freio da hesitação. A que dá e sonega, a que acolhe e rejeita. Quem segue ao desconhecido e quem também o teme. Eu sou a sombra da árvore, a raiz que me sustenta, o fruto que me alimenta, e nutre quem vem a mim. Quem me clareia e me confunde, tão íntima e tão forasteira de mim. Eu não sou para amadores que queiram respostas fáceis, ainda que seja simples me decifrar: coração aberto e leve descobre toda charada de mim. Sou muitas e singular, diversa e tão comum, igual a todos e tão eu mesma. Essa sou eu, em várias versões de mim. Essa somos todas nós, em nossos nós, em nós.


61


62 Enquanto me preparo para a chegada do amor, costuro a hora do encontro, o instante de revelar quem sou e de descobrir quem ele é. E sigo cuidando do amor em mim.

Intolerância Para quem não me tolera, sou o espelho daquele que não se vê. A miragem do outro em mim refletida. Sou o pronome na terceira pessoa, o oráculo sem serventia. Em mim vês discriminação, preconceito e tudo que causa indignação. Sou a divergência, a diferente, o alvo das críticas, as frustrações em mira, o espectro com seus ruídos, o gatilho, a lente de aumento, o descuido da vigilância, o ato falho, assim me vês. Eu, o retrato escondido no porão da rejeição, o filme em mim projetado, o inverso que se pensa ser, o sempre, o nunca e o jamais. Essa sou eu, em teus delírios,


63 o tabu da nudez, proscrita que sou. Essa é a verdade pelo mirado desconhecida, a imagem fosca e distorcida daquele que ignora quem está por trás do espelho. Eu sou você, e você sou eu. Eis a imagem reversa de quem não se atura.

O Outro Lado Do Espelho Sim, eu sou tudo o que criticas em mim, mas o que vês em mim não é meu. Carece atravessar o reflexo das projeções para me conhecer. Lá me encontrarás por inteiro, e não apenas o que em mim espelhas. O que me criticas e o que sou também está em ti e em toda a humanidade. Vive em nós latente, embrião ou maduro.


64 E por mais que se tente ocultá-lo, é revelado nas semelhanças. Sim, eu sou tudo o que criticas em mim, mas não é isso que me define. Também sou o que não percebes porque és desatento ao divino em ti. Conheço aquilo que em mim condenas, e escolho não lhe dar munição. Percebo quando o expresso, e ao ser visto perde a força e aos poucos se dissipa. Quiçá um dia me projetarás o que há de belo em ti e que por certo também o tenho. E a intolerância se dissolverá ...


65

Eu E A Brisa Eis que é primavera, e uma brisa acordou-me o pulsar da vida. Chegou de mansinho, colorindo-me os sonhos, exalando amor. Convidou-me a voar em suas asas flamejantes. Arrepiou-me o corpo com suaves carícias. Fez-me plena, viva, ardente. E assim como veio, seguiu, deixando saudades... Que nome terá essa brisa?

Nostalgia Lembras do tempo de acolhimento e cumplicidade?


66 Dos risos sem motivo, do aconchego no abraço, da presença no olhar do carinho no afago, do beijo banhado de amor? Não há que se lembrar, quiçá o sonho é só meu. Ah! saudade doída daquilo que não se deu.

Um Instante Por um instante, efêmero instante, tu te mostras e eu te vejo. E fiz desse momento esperança de acontecer. O lance tornou-se dias, meses e anos, e o encanto virou tristeza. Esqueci, ao eternizar o instante, que a semente precisa crer-se


67 broto para nascer. É pena que te bastes a idealização, sem nunca provar o que poderia ter sido. Em um instante tudo poderia ter sido diferente.

Interação


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A palavra é bênção que cura, é faca que fere, amargura, é dúvida e confusão, é encantamento e doçura, mistério, disfarce, ocultação. Essa linguagem cifrada, de várias interpretações, sabe o efeito que causa no leque das opções. A palavra é vibração e ressoa singularmente, frustra quem a lançou ao supor que é entendida em sua mente. E nem se pense que o silêncio é a melhor solução, em vão querer decifrá-lo só causa angústia e aflição. Mas há um ponto na costura que arremata quem ouve e quem fala, é o cheiro do sentimento que todo pensamento exala.


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Três Sentidos Tempo houve em que tocar era proibido. O olhar alcançava distâncias ilimitadas, mas não podíamos sentir o cheiro uns dos outros. A voz ecoava por todo o planeta, mas carecíamos de proximidade, de presença. Os ouvidos eram antenas que tudo captavam, mas o contato físico era uma vaga lembrança. Só tínhamos três sentidos, e através deles construímos um elo, um motivo. Voltamos o olhar para o belo, para o que encanta. Sintonizamos a escuta com a compaixão e o amor.


70 Adestramos a fala na leveza, suavidade, doçura. Os sentidos adormecidos nos lembravam outros sentidos esquecidos: O sentido de Ser Humano O sentido de estarmos aqui O sentido das experiências O sentido das relações O sentido da convivência O sentido da vida Dois sentidos banidos nos mostravam o valor da inteireza, a razão de sentirmos. E que só o amor faz sentido


71

Enquanto O Amor Não Chega Enquanto o amor não chega, arrumo a casa e a lida, arejo o quarto e as ideias, cultivo as plantas e a oração. Tiro poeira dos móveis, dos projetos e planos, apuro o ouvido e o humor, e me deixo reflorescer. Enquanto o amor não vem, revigoro as forças e refaço o caminho. Teço respeito e cuidado, bordo carinho e afago, alinhavo ternura e prazer, visto-me de alegria. Enquanto o amor me procura, pinto imagens do porvir, cenários de união feliz. Desfaço os laços do equívoco, enquanto novos elos lapido,


72 talhados no afeto e perdão. E enquanto me preparo para a chegada do amor, costuro a hora do encontro, o instante de revelar quem eu sou e de descobrir quem ele é. Enquanto espero, sigo cuidando do amor em mim.

A Sina Das Marionetes Não há quem não se encante com a atuação da marionete. É interessante ver algo inerte ganhar vida, causa alegria e entretenimento. Enquanto vimos o espetáculo, não queremos perceber que o movimenta dela é dado por cordões


73 e que alguém lhe empresta a fala e a expressão. Marionete não tem voz e nem pensa. não decide nem planeja, não tem vontade nem sonha, Não tem liberdade de ação. Ela segue obediente o script. E quando o show termina e o público se dispersa, é exilada no escuro de uma gaveta. Ali, esquecida de quem é, não tem voz para gritar nem pernas para fugir ou mãos para se desvencilhar. Não sabe que tem vida própria. Lá permanece, descansando até ser arrastada a mais uma performance. Um dia, quando corroída a madeira e os traços do rosto, será descartada para sempre, sem vida. Os cordões retirados, para prender outra marionete mais leve e nova, mais fácil de manipular. As marionetes não sabem que sofrem de letargia, pelo controle e tirania


74 de um amor doente ...

Par a Par O equilíbrio entre dois na gangorra é não ficar do mesmo lado. Não haveria diversão não fosse o impulso sincronizado, às vezes desajeitado, a mover a gangorra. Sem a alternância, um estaria isolado no topo e o outro preso no chão. E não desfrutariam do prazer de estar par a par na gangorra, a eixo de cada oscilação.

Por que te Amo?


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Pergunto-me, por que te amo? Quem me traz de volta do labirinto onde me perco? Não desiste de mim quando, intragável, sou dedo em riste? E me faz rir com a voz de tenor desafinado? Quem me dá lambuzados beijos, em minhas preocupações? Quem me leva enlaçada para cama? E que me faz humana em teus destemperos? Com quem contracenaria a farsa de saber respostas e para tudo ter opinião? Com que me ocuparia, não fosse teu jeito desorganizado, a ensinar-me a ser verdadeiramente eu? Por que te Amo?

Por não desistires de ser tu, quando quero que sejas eu. Porque o amor é meu, resolvi te dar, e tu decidistes querer.


76

Quando O Amor É Perene Eu te percebo muito além dos gestos, do que fazes e falas, e nada me é estranho. Eu te vejo no sinestésico pulsar do que não foi dito e vibra na garganta. Além do olhar absorto, do vinco na testa, e da barba grisalha onde te escondes. Como cortina ao vento, tu a mim te mostras e vejo mais do que exibes.


77 Adentro em teus mistérios, curiosa peregrina a desbravar em ti os segredos de mim. Muito além da íris eu te pressinto e nada me é estranho.

Para Viver Em Amor Para viver em amor, precisa do amor se afeiçoar, abrigá-lo dentro de si, envolvê-lo com carinho.


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Para viver o amor em par buscar o outro é vital, atravessar o limiar do do eu com coragem e sustentação. Lançar-se por inteiro perder-se, e no outro se encontrar. Para o amor florescer é essencial olhar curioso que atravessa o aparente em busca do estranho e novo. Para o amor sobreviver é básico cultivá-lo a dois partilhar dos desejos e sonhos e torná-los realidade Numa história de amor, perenidade é fundamental, no cuidar e no acolher, no coração compassivo, no compreender e perdoar. Para viver em amor, mister manter a tesão por si, pelo mundo, pela vida, sozinha ou em par.


79

À Beira Do Abismo Quem nessa vida já sofreu a dor do amor que perdeu, ou que nunca foi seu, por certo há de hesitar quando novo amor apontar. Enquanto em aflição hesita o amor se perde, se dissipa, torna-se medo e confusão. Amar, por certo, precisa de entrega e enlevação. A vida vivida que se fez por certo é incerta e convida a se arriscar mais uma vez. Pior que a dor que sofreu


80 é ter que emudecer o anseio, lamentar o que não viveu.

Nesse dilema convém perguntar: quem tem coragem de se lançar?

Apenas Um Olhar O caleidoscópio da vida


81 é uma dança contínua de cores e formas pulsantes. Contemplo, encantada, tantas combinações de vibrantes prismas e ângulos. Por um momento, o entrecruzar de olhares apreende a razão e o sentido. Eu sensibilizo o olhar ao seguir os eventos em suas mutações, e aguço a percepção do que me é estranho, redefinindo, a cada instante, o que vejo.

No caleidoscópio da vida somos pedaços de vidro do mosaico do mundo.


82

O Querer O querer é uma frágil flor que nasce sol e morre lua. É efêmero, delicado e sem prumo. Supõe querer, quiçá o quê. É um anseio fugaz que vem e que vai que surge e se esvai nuvem que se dissipa. É um estado, uma sensação que arde, queima e tonifica. É uma busca às cegas olhar sem visão, é sonho, desejo que maltrata sem perdão. O querer...


83 Ah bruta flor, bruta flor

Vagas No menear das águas, o que me leva ao transe é a alternância das vagas, e entre uma e outra o repouso. Pressinto o momento certo de ascensão e declínio, a força, a direção, o sentido. O que em ti me encanta é esse mar agitado, às vezes contido, ondas que em mim ressoam e em mim têm nascido, a alteridade da dança e o intervalo que ancora a investida e o recuo, a redução e o cimo. O que me leva ao transe, no fluxo das águas que há em mim, é saber-me perene e farta nas águas que há em ti. E que por certo adivinhas de onde virá a próxima onda.


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O Verbo A palavra é ponte a unir ilhas humanas. É também signo dúbio com mensagem cifrada, que tanto concilia como beligera. Ao se juntar a outras, gera múltiplos sentidos e interpretações. Quando pronunciada, a palavra é sentimento, atitude e intenção, a força energizante,


85 o desígnio. Sua sonoridade vibrante cria significados vários, conforme a entonação, intensidade e ritmo. É lenitivo e confidente, afiada ferramenta. Também inspira e intui no escrever catártico. Ao se fazer verbo, é ação e movimento, é criação. Em linguagem simbólica não se traduz, se percebe, não se explica, é sentida. É um elemento vivo, livre e mutável que se amolda à mente e à versão de cada um. É aquela a se deslocar e transitar no universo da comunicação.

2020 Em Retrospectiva


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Requer olhar atento o ano em retrospectiva Tempos difíceis, dirão. Tempos de ouro, direi. Nunca houve tanta comoção nem tanta criatividade. O medo exigiu auto cuidado, o sofrimento inspirou compaixão, a tristeza nunca foi tão consolada. A ameaça despertou cautela, a adversidade criou resiliência, a morte amiúde lembrou a brevidade da vida o valor da existência da família e amigos. Frente à liberdade tolhida, precisou-se inovar. Comunidades virtuais trocaram a frivolidade por solidariedade e afeto. O aparte físico aproximou pessoas, até aquelas distanciadas pelo tempo. O confinamento a dois fez emergir divergências e ressentimentos, e a possibilidade de conciliação.


87

O tempo disponível mostrou a falta de prazer e não se saber o que fazer com o ócio diante da compulsão laborativa. Revelou a dificuldade em estar só, o vazio interior e a urgência em se reinventar. Com a reclusão forçada o consumismo diminuiu, as prioridades mudaram, apreciou-se a vida simples, surgiram novos hábitos, novas formas de interações, novo jeito de trabalhar, novos ofícios. Tempos difíceis, dirão Tempo de orar e agradecer, direi.


88

Autoapresentação Eu sou uma andarilha nas veredas de meu Ser, a buscar-me no aprendizado das experiências. Aquela que partilha o que integrou pela senda espiritual de purificação e autotransformação do Pathwork, da qual sou facilitadora e helper. Também sou contadora de histórias e advogada e estou Vice-Presidente da AEAP/PE (Associação de Economiários Aposentados e Pensionistas de Pernambuco). Moro em Olinda, PE. Sigo a vocação de escrever de meu pai, Valença Leal, e assim o faço enquanto Mercúrio me inspirar. Eu sou Virgínia Leal, eu falei. Outros livros de minha autoria disponíveis www.poemasleal.blogspot.com: • O Caleidoscópio da Vida; • Fênix; • Para quem não tem Colírio; • Contadora de Estrelas.

Contato: vblealster@gmail.com

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89 Capa, logo e ilustrações de Erick Bruno Bastos Barros; erickbrunobb@gmail.com


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AUTOAPRESENTAÇÃO

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pages 88-89

2020 EM RETROSPECTIVA

1min
pages 85-87

O VERBO

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page 84

VAGAS

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page 83

O QUERER

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page 82

APENAS UM OLHAR

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pages 80-81

À BEIRA DO ABISMO

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page 79

PARA VIVER EM AMOR

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pages 77-78

A SINA DAS MARIONETES

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pages 72-73

ENQUANTO O AMOR NÃO CHEGA

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TRÊS SENTIDOS

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pages 69-70

INTERAÇÃO

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pages 67-68

UM INSTANTE

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O OUTRO LADO DO ESPELHO

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pages 63-64

INTOLERÂNCIA

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FEMININO SER

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pages 55-56

MEUS EUS

1min
pages 59-61

CORNUCÓPIA

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GESTAÇÃO

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SINTO, LOGO EXISTO

1min
pages 48-50

EU E A SOMBRA

1min
pages 46-47

QUANDO EU CRESCER

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page 45

EU E O DUPLO

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page 41

VONTADE VÃ

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pages 42-43

O ENSOLARADO FRIO

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UM NATAL DIFERENTE

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pages 38-40

PRÉ-ACORDOS

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page 37

O TEMPO DE CADA UM

1min
pages 33-34

O TEMPO

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O BORDADO DA VIDA

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A VIDA EM PERSPECTIVA

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pages 25-26

JORNADA XAMÂNICA

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EM BUSCA DA ALMA

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MANTO AZUL

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PARA UMA BOA COLHEITA

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A VIAGEM

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pages 20-23

INVOCAÇÃO

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pages 12-13

DE ALGUM ANEL AZUL

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pages 10-11

ENTRE OS PÉS E A CABEÇA

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RENASCIMENTO

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pages 7-9

VIDA-MORTE-RENASCIMENTO

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pages 18-19

EM BUSCA DE APLAUSOS

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RENOVAÇÃO DE VOTOS

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pages 14-15

ATO DE FÉ

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