11 minute read
NARRATIVA DE UMA MULHER NEGRA EM AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL NOS DIAS ATUAIS Aline da Silva, Carolina Barbosa dos Santos e Stella Barbara Serodio Prestes
NARRATIVA DE UMA MULHER NEGRA EM AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL NOS DIAS ATUAIS
Aline da Silva Carolina Barbosa dos Santos Stella Barbara Serodio Prestes
Advertisement
Introdução
A desigualdade social no Brasil parece ter uma discussão que não tem fim. Para amenizar a situação meritocrática capitalista da educação, sendo esta movida pelo poder financeiro e não pelas virtudes que o indivíduo possui, o governo criou políticas de ações afirmativas tornando-se pioneira a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em que a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), por meio da Lei Estadual nº 3524/2000, modificou os critérios de acesso às universidades públicas estaduais introduzindo modificações nos critérios de acesso às mesmas, reservando 50% das vagas para estudantes oriundos de escolas públicas. No ano seguinte, em 2001, a Alerj aprovou a Lei nº 3.708 em que se destinava 40% das vagas a candidatos autodeclarados negros e pardos.
É inegável que toda a população periférica sofre com diversos fatores sociais, sendo o que mais afeta o futuro, sem dúvida, é a educação. Primeiramente apresentamos um resumo sobre a política de cotas no Brasil e em seguida trazemos uma narrativa através de um relato de uma mulher negra, demonstrando que, assim como tantas outros, as mulheres lutam para que essas ações sejam bem sucedidas e cheguem a todo o público que busca uma educação de qualidade, visando não somente o ensino superior, mas todos os níveis da educação na comunidade escolar pública.
Política de cotas no Brasil
“O corpo negro é elemento central na reprodução de desigualdades. Está nos cárceres repletos, nas favelas e periferias designadas como moradias”. Marielle Franco
Vigente desde 2012 no Brasil, a Lei nº 12.711, conhecida como Lei de Cotas, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. As demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.
A Lei de Cotas foi regulamentada através do Decreto nº 7.824/2012 que define as condições gerais de reservas de vagas, estabelece a sistemática de acompanhamento das reservas de vagas e a regra de transição para as instituições federais de educação superior. Para a aplicação da lei, a Portaria Normativa nº 18/2012, do Ministério da Educação (MEC), estabelece os conceitos básicos para aplicação dela e prevê as modalidades das reservas de vagas e as fórmulas para cálculo, fixa as condições para concorrer às vagas reservadas e estabelece a sistemática de preenchimento das vagas reservadas.
A política de cotas para ingresso no ensino superior tem sido defendida e desqualificada por diversos setores da sociedade. Muito desse alarde surgiu pela falta de conhecimento de suas normas e condições de existência.
Alguns acreditam que o ingresso às universidades públicas deveria ser apenas pela meritocracia. Mas como utilizar o mérito acadêmico numa sociedade injusta impregnada de desigualdade social e racial, em que nas avaliações e classificações para ingresso às universidades não se tem oportunidades sociais em níveis iguais quando às vezes elas não existem por falta de oportunidade?
“Na cotidianidade, as pessoas são discriminadas pela sua cor, sua etnia, sua origem, seu sotaque, seu sexo e sua opção sexual. Quando se trata de fazer uma política pública de afirmação de direitos, nossa cor magicamente se desmancha. Mas, quando pretendemos obter um emprego, uma vaga na universidade ou, simplesmente, não ser constrangidos por arbitrariedades de todo tipo, nossa cor torna-se um fator crucial para a vantagem de alguns e desvantagens de outros. A população negra é discriminada porque grande parte dela é pobre, mas também pela cor da sua
pele. No Brasil, quase a metade da população é negra. E grande parte dela é pobre, discriminada e excluída. Isto não é uma mera coincidência” (UFMG, 2006?).
Quase a metade da população brasileira é negra. São descendentes de escravos que desde sempre vem são discriminados por sua cor e/ou pela sua classe social. Diversos artigos vêm sendo produzidos para discutir e mostrar que os alunos cotistas estão em posição igualitária, muito próximo e até mesmo superior, aos alunos não cotistas de classe média. Vide artigos da página eletrônica sobre inclusão social da UFMG67 e do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ68 .
Relato
“Não sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados.” Makota Valdina
Mulher, negra, pobre, da zona norte que estudou sempre em rede pública de ensino. Qual seria seu destino? Trabalhar no Mc Donald’s, ser caixa de supermercado, trabalhar em casa de família, ser babá, faxineira… Sim e com muito orgulho. Mas não, ela quis ser professora. Professora primária? Talvez!
Seu ensino médio foi debilitado e não poderia pagar uma faculdade particular, lembrou-se que há políticas educacionais que auxiliam quem estudou em escola pública a ingressar em uma universidade.
Então, ela estudou em um cursinho pré-vestibular do governo através do Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (CEDERJ) e intensificou seus estudos, pois havia terminado o ensino médio há 11 anos e não se lembrava de muita coisa daquela época. A sua intenção era conseguir uma bolsa integral, de 100%, no famoso Programa Universidade Para Todos (PROUNI).
67 Site sobre inclusão social da UFMG: https://www.ufmg.br/inclusaosocial/ 68 Site do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ: https://lpp-uerj.org/
Estudou e estudou… durante seis meses não viu a “cor da rua”, a não ser para ir trabalhar. Seus finais de semana eram enterrados nos livros, pois teria que recuperar o tempo perdido. Ao cursar formação de professores no ensino médio não teve, como esperado e descrito na ementa curricular, as matérias básicas como matemática, química, biologia e física. Então procurou aprender em tempo recorde para realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Estudando muito passou para Química no o cotista e o segundo lugar geral no Mestrado Acadêmico de Ensino de Ciências no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Biologia no CEDERJ e ganhou 100% de bolsa para cursar Biologia na Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO). Com isso acreditou no seu potencial e passou a crer que as políticas públicas eram ações que ajudaram essa mulher a ingressar no ensino superior.
Sendo assim, com essas possibilidades, ela escolheu cursar Licenciatura em Biologia no CEDERJ para poder conciliar os horários da faculdade com os do trabalho. Quando estava no segundo período da graduação, conquistou uma vaga de cotista de escola pública na UFRJ para cursar Biologia com bolsa auxílio. Largou tudo, trabalho e CEDERJ, e apostou na universidade federal que tanto sonhou em cursar.
Mas ter bolsa não quer dizer que pode-se ficar tranquilo para cursar a faculdade. Com o seu déficit escolar anterior, necessitou recuperar do atraso para se manter com notas equilibradas e buscar estágio para complementar a renda, pois a bolsa é uma ajuda e não custeia todas as necessidades de um aluno. Essa mulher também foi estagiária de Iniciação Científica no laboratório de microbiologia, fez extensão acadêmica no aquário marinho do Rio de Janeiro (AquaRio) e foi estagiária de Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) durante três anos e meio, aumentando seu encanto pelo magistério.
Passados os cinco anos de graduação formou-se em Licenciatura em Ciências Biológicas e com os mesmos dilemas de recém formados fora do mercado de trabalho, como conseguir um emprego? Fazer concursos, distribuir currículos em instituições de ensino e não parar de estudar foram as opções imediatas.
Mulher, negra, pobre, da zona norte, conquistou o primeiro lugar como cotista e o segundo lugar geral no Mestrado Acadêmico de Ensino de Ciências no IFRJ em 2018. Mas como funcionam as regras para se inscrever como cotista em um mestrado? Existe alguma vantagem? Tem direito a bolsa? Ainda há 200
muitas dúvidas das vantagens e desvantagens de ser um cotista. Esta mulher relatada, por exemplo, sofreu com algumas palavras mencionadas por professores, colegas de curso e na sociedade em geral.
Mesmo sabendo e vivenciando todos os desafios, essa mulher fica de exemplo para muitos da capacidade do ser humano em sonhar, lutar, crer e comprovar que todos são capazes e merecedores de oportunidades, principalmente numa sociedade dividida em muitas classes sociais onde o negro, independente de sexo, morador de comunidade pobre, é discriminado por falta de oportunidade.
Algumas outras conquistas
Os negros, homens e mulheres, vem nos últimos anos conquistando seu espaço e direitos. A mulher negra tem o seu dia a ser comemorado. Sim, ela também é reconhecida! A lei nº 12.987/2014, que dispõe sobre a criação do Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, em seu artigo 1º diz que “É instituído o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, a ser comemorado, anualmente, em 25 de julho”.
Outra conquista foi a lei nº 10.639/2003 que torna-se obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, que inclui o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional; como também institui o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra.
Em consonância à continuidade da conquista dos negros foi a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para negros (pretos e pardos) através da lei nº 12.990/2014.
Considerações
Em resumo, ao refletir sobre o tema de ações afirmativas no Brasil e ao analisar alguns dados e referências sobre essas ações e desigualdades sociais, chamou a atenção a inclusão do negro na sociedade dos dias atuais. A partir desse recorte, restringiu-se sobre a mulher negra periférica das grandes cidades que se encontra em uma posição crítica, podendo ser estereotipada
em relação a sua escolaridade, carreira, filhos e outros aspectos da vida social. Nos últimos anos, as políticas públicas de maior inserção da população negra em colégios, universidades e concursos públicos tem sido alvo de constantes críticas e tentativas de desqualificação do direito adquirido a partir dessas políticas, encontrando adeptos inclusive nos possíveis beneficiados por elas. Este trabalho teve como objetivo apresentar uma narrativa através do relato de uma mulher negra, estudante cotista, sobre a lei de cotas e enfatizar como algumas ações afirmativas foram benéficas e favoráveis à sua inserção na educação e ao seu desenvolvimento acadêmico. Apresentar e discutir políticas públicas, no âmbito educacional ou não, são importantes vias instrumentos para possível correção das injustiças sociais, pois a partir dessas discussões se é possível gerar uma força motriz para produção de profundas e significativas mudanças nesse contexto através da liderança, do exemplo e da ação constante das injustiças sociais.
Como o avanço das políticas de cotas no Brasil os estudantes negros puderam ter uma esperança maior em almejar a continuidade no ensino superior e afins. Ser cotista em um meio onde a maioria inserida veio de condições escolares favoráveis é muito complexo, pois quem não as obteve sente-se com uma lacuna a ser preenchida, uma sede de conhecimento e ao mesmo tempo sem espaço cognitivo para preencher. Pois somos arrebatados de informações na graduação e na pós graduação, que sem uma base é difícil, mas não impossível, alcançar o objetivo sonhado e pretendido.
O relato trouxe uma reflexão de que mesmo sabendo e vivenciando todos os desafios, essa mulher fica de exemplo para muitos da capacidade do ser humano em sonhar, lutar, crer e comprovar que todos são capazes e merecedores de oportunidades, principalmente numa sociedade dividida em muitas classes sociais onde o negro, independente de sexo, morador de comunidade pobre, é discriminado por falta de oportunidade.
Referências
BITTAR, Mariluce; ALMEIDA, Carina E. M. Mitos e controvérsias sobre a política de cotas para negros na educação superior. Educar. UFPR: Curitiba, n. 28, p. 141-159, 2006.
BRASIL. Ministério da Educação. Ensino Superior: entenda as cotas para quem estudou todo o ensino médio em escolas públicas. Brasília, 2012. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cotas/index.html. BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 12.987, de 2 de junho de 2014. Dispõe sobre a criação do Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Brasília, 2014. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2014/lei12987-2-junho-2014-778851-publicacaooriginal-144294-pl.html BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/ lei/2003/lei-10639-9-janeiro-2003-493157-publicacaooriginal-1-pl.html BRASIL. Secretaria da Casa Civil. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Brasília, 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/ L12990.html
PERROT, Michelle. Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência. Cadernos Pagu.Campinas, SP, n. 4, p. 9-28, jan. 2008. ISSN 1809-4449. SOARES, Karine S.; BACZINSKI, Alexandra V. M.. A Meritocracia na educação escolar brasileira. Temas & Matizes. Cascavel, v. 12, n. 22, p. 36 – 50, jan./jun. 2018. ISSN: 1981-4682.
UERJ. Sistema de cotas. Programa de Ação Afirmativa. Disponível em: http:// www.uerj.br/a-uerj/a-universidade/sistema-de-cotas/ UFMG. Inclusão social: um debate necessário? Os 10 mitos sobre as cotas. Minas Gerais, 2006?. Disponível em: https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=53
A linguagem tem a possibilidade de fazer curtoscircuitos em sistemas orgânicos intactos, produzindo úlceras, impotência ou frigidez. Porque são as palavras que carregam consigo as proibições, as exigências e expectativas. E é por isto que o homem não é um organismo, mas este complexo linguístico a que se dá o nome de personalidade.
Rubem Alves