(Des)conhecidos

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© 2016, Bruna Tamires e Wesley Bischoff

Projeto Gráfico: Wesley Bischoff Editoração: Bruna Tamires Foto de Capa: Brian Merrill Fotografia: Wesley Bischoff Orientação do Projeto: Rosane Verdegay de Barros Edição e Revisão: Rosane Verdegay de Barros Impressão e Acabamento: Gráfica Rápida imp+

Bischoff, Wesley; Tamires, Bruna, 1995 (Des)conhecidos / Bruna Tamires e Wesley Bishoff - Maringá, 2016

Livro-reportagem 1. Jornalismo Literário. 2. Perfil. 3. Voluntariado. I. Título


“Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou� Margaret Mead



Há muitos para quem eu gostaria de dizer obrigada. Antes de tudo, preciso agradecer a Deus, que nos momentos mais difíceis acalmou meu coração e ouviu as minhas orações. Obrigada por iluminar todas as minhas manhãs e por manter a mão sempre estendida, para me confortar nas horas de fraqueza. Agradeço aos meus pais que conseguem amar cada um dos meus defeitos e lutam para fazer os meus dias mais alegres. Tato, obrigada. Mesmo sem saber você me guiou e me fez querer ser alguém melhor. Eu amo vocês e sei que sem as nossas conversas, eu não seria nada. Ao meu amor que nunca deixou de cuidar de mim. Você ouviu cada um dos meus lamentos e, independentemente do meu humor, sempre procurou me fazer sorrir com as suas brincadeiras mais bobas. A outro amor, mais peludo e pequeno. Você não hesitou uma só vez antes de abanar o seu rabinho ou latir enlouquecido por um colo. Talvez você não saiba, Leão, mas conseguiu apagar qualquer vestígio de tristeza que pudesse haver. Obrigada aos meus amigos. Acompanharam meus passos e me viram crescer e, ainda que o estresse sondasse as nossas costas, conseguimos rir e nos divertir. Tenham certeza que estarão eternizados nessas linhas. Eu preciso agradecer aos meus professores. Bravos, engraçados ou sérios: foi um prazer imenso ouvir vocês. Obrigada porque me ajudaram a perceber quem eu era, mostraram-me o mundo de outra maneira e me apresentaram ao


grande prazer da minha vida: apaixonar-me por cada história ouvida. Rosane Verdegay de Barros, você se tornou uma guia e uma amiga e não pensou duas vezes antes de mergulhar em cada uma dessas vidas com a gente. Sem a sua ajuda, nada disso seria possível. A cada um dos que cruzaram o meu caminho e levaram um pouco de mim, saibam, vocês transformaram quem sou. Ensinaram tanto sobre mim e sobre o outro que nem posso dizer. Muito obrigada por me darem o prazer de viver com vocês. Ainda há muito para dizer e muito para conhecer, mas até esse momento, posso dizer que sou extremamente feliz por compartilhar meus dias com cada um de vocês. Obrigada. Bruna Tamires

Primeiramente, a Deus, companheiro de todas as horas. Presente em todos os momentos de comemoração e também de fraqueza. Obrigado pela mão que nunca me deixou cair e que continua me mantendo firme durante toda a caminhada e obstáculo que enfrento. Aos meus pais. Sem eles não estaria aqui para contar essas histórias e muitas outras que virão. Pelo apoio de todo momento e por sempre acreditarem nos sonhos que insistem em invadir minha cachola. Em especial, a minha irmã que, desde sempre, acompanhou todas as fases da minha vida. Aos meus amigos que não hesitam em por um sorriso no meu rosto em todos os momentos que eu preciso. Não só àqueles que continuam presentes no meu dia a dia, mas todos


que passaram, mesmo que brevemente por essa jornada. Em especial, Bruna Tamires, colega dessa empreitada, e Gabrielle Müller que, superando os laços de sangue, também se tornou irmã. A todos os professores, desde o abecedário, passando pelas fórmulas matemáticas, até a teoria hipodérmica. Vocês ajudaram a me construir e continuam construindo dezenas de talentos sedentos por conhecimento. Sem dúvidas, à orientadora Rosane Verdegay de Barros, que durante todos esses anos, mostrou-se mais que professora. Mas também, amiga e conselheira de diversos momentos. Obrigado por ter embarcado conosco neste desafio. Por último, ao meu tio Francisco Bischoff, que sempre se mostrou feliz e animado com a escolha da minha profissão. Como forma de agradecimento, faço questão de assinar no jornalismo com o sobrenome de uma das pessoas que mais me apoiou nessa escolha. Mesmo não estando presencialmente aqui no dia de hoje sei que, de algum lugar, comemora comigo mais uma etapa vencida. Wesley Bischoff



Se perguntarem qual é a tônica do mundo atual, inevitavelmente escaparemos da resposta de que todos somos vítimas da contemporaneidade e da correria que ela nos impinge, de forma a não observarmos os que nos rodeiam no dia a dia, muito menos aqueles que parecem “invisíveis” aos nossos olhos. Diante da realidade do não “tenho tempo para isso”, algumas pessoas subvertem a ordem estabelecida, contrapõem-se ao jugo de uma sociedade cada vez mais egoísta e narcisista, em que muitas vezes vale apenas o que se consegue mostrar no mundo virtual das redes sociais, e tiram uma parte do seu tempo e da convivência do lar para tornar menos dolorosa a vida de seres humanos e animais. E foi justamente a temática da solidariedade, da doação de si mesmo, que moveu Bruna Tamires e Wesley Bischoff a contar histórias de vida, de pessoas que escolheram olhar o próximo com compaixão e acolhimento, que não mediram esforços para amenizar sofrimentos e propiciar um pouco de conforto a tantos “próximos” distantes de nosso campo de visão, uma visão muitas vezes, na verdade, apenas embaçada por nossas tantas desculpas e justificativas. Numa interseção entre jornalismo e literatura, a dupla vai em busca de personagens com diferentes trajetórias de vida, mas todos com uma característica em comum: exercem um tal protagonismo que não necessariamente o de verdadeiros super-heróis, mas que possuem um único superpoder para fazer o que deveria ser missão muito simples a qualquer ser humano que preze pela vida: ter atitude. E quem são esses 13


personagens? Dirce, Larissa, Leonardo e Renata são pessoas comuns, mas que com suas atitudes podem nos dar uma esperança de que fazendo pouco podemos alcançar muitas vidas. A trajetória de cada um é narrada neste livro-reportagem, cujos autores, jovens jornalistas-escritores, conferem à linguagem certo tom poético, algo até natural para quem escolheu este gênero jornalístico como o caminho de mediação entre as ações dos protagonistas e seus leitores. Metáforas (e até mesmo personificação) é figura recorrente no modo de construir a história dos quatros cavaleiros e de seus fiéis ajudantes. Isso mesmo. Ninguém está sozinho. Até mesmo nossos protagonistas precisam de uma mão amiga para seguirem com o propósito de “salvar vidas”. Quase que duplas dinâmicas a serviço sempre do bem. Dirce, Larissa, Leonardo e Renata nos dão a certeza de que histórias como as suas deveriam ser mais que contadas e recontadas. Deveriam fazer parte do enredo de mais e mais pessoas no cotidiano. Dessa forma, o livro-reportagem de Bruna Tamires e Wesley Bischoff fica, sem dúvida alguma, como leitura obrigatória que deve transpor o ambiente acadêmico e alcançar um número de leitores interessados em narrativas de doação e de esperança. Neil Franco Novembro de 2016

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Primeira metade de 1995. Um século se aproximava do fim. Muitos começavam a contar os dias para o suposto apocalipse que aconteceria no fim do milênio. Mas, num ano em que muitos partiram, outros chegaram. A vida estava apenas começando. Os primeiros feixes de luz. O ar entrando pelos pequenos pulmões. Os olhos ainda não podiam se abrir, mas o grito ecoava pela sala. O milagre. O primeiro abraço e assim, sucessivamente, os primeiros tudo. Esse tipo de história acontece noite e dia, desde que o mundo é mundo. Mas para cada família é um momento único, como uma digital de polegar. E essa unidade também se apresenta pelo sentimento. Alegria e tristeza. Surpresa e espanto. Orgulho e decepção. São emoções que moram num jardim que se cultiva dentro da gente. O jardim das virtudes, com o tempo, apresenta as primeiras flores. Em 1995 essa história começou em duas casas do norte do Paraná, assim como em centenas de milhares pelo mundo todo. Próximas ao Trópico de Capricórnio, a distância geográfica separou por anos o que o tempo tornaria comum mais tarde. O mesmo sotaque, culturas semelhantes. Assim como a maioria, cresceram ao som do rádio, das animações da TV e das letras desenhadas em uma lousa verde. Cresceram com a internet. Foram engolidos pela informação. Aprenderam a conviver com ela. Não entenderam o 11 de setembro. Comemoraram o penta, numa manhã de domingo em 2002. Foram obrigados a ver tragédias, vitórias e derrotas. Acompanharam os capítulos da novela. Viram ce17


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nas do reality show. Mal podiam esperar pelo capítulo final do desenho favorito. E assim se construíram. Cada passo em cada etapa da vida traçou diferentemente um caminho em comum. Talvez já houvessem se cruzado pela rua em um dia típico de idas e voltas. Mas, 17 anos depois, estavam lá, juntos entre quatro paredes, com mais 43 pessoas. Se há um destino, a resposta não é exata. Mas é engraçado como somas diferentes ajudam a encontrar um quociente parecido, mesmo que, nas humanas, o resultado final possa ser completamente distinto. E que assim seja. Com o fim da distância geográfica, uniram-se em prol das ondas do rádio. Primeiramente com o semanal “RUC Revista”. A primeira experiência ao vivo. Frente a frente com o ouvinte por meio do microfone e dos impulsos elétricos. Logo após, o primeiro projeto em conjunto. Eram sete. Surge o “Desenrola” e a melhor equipe de rádio de todos os tempos. Pelo menos aos olhos deles. E já nos primeiros meses, uma prévia daquilo que viria pela frente: a paixão por contar histórias. Cianortense por nascença, tornou-se maringaense no coração. Bruna sempre se mostrou apaixonada pelas letras e literatura. Assim como o nome sugere, cabelos morenos e uma voz insistentemente doce. No rádio, foi criticada por soar infantil aos ouvidos do orientador. Mas o que realmente interessava ali eram as palavras. Essas sim, mostravam-se bem desenvolvidas e adultas para uma jovem que ingressara há pouco no jornalismo. A companhia dos livros não a desolou quando a tarefa de escrever passou às próprias mãos. Desde sempre na mesma casa, Wesley nasceu na capital. Não a do Estado, e sim da uva fina. Já tivera contato com os frutos que deixaram a cidade de Marialva famosa. Mas a 18


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altura não contribuía para o trabalho nos parreirais. Nunca gostou de estudar, mas sempre esteve entre os primeiros da turma. Ao contrário da colega, nunca foi apaixonado pelas palavras. Odiava os estudos da língua portuguesa. Trocava-os fácil pelos números, pelas piscinas e por horas de televisão. Ironicamente estava ali, mesmo indo contra a corrente daqueles que defendem o padrão de um bom jornalismo. A curiosidade e o desejo de descobrir levaram os dois até o mesmo lugar. E agora, juntos, seguiriam pensando até os capelos irem ao ar e os canudos serem finalmente erguidos como um troféu. E a paixão pelo saber, pelo conhecimento, almejou passos mais largos que as próprias pernas. Bom mesmo eram os dias de desafio. E se a cabeça ou o estômago doíam, não havia problema. Se o estresse sugeria uma desistência, tomavam-no como impulso. Se havia sobrecarga, os sábados eram de redenção. A pressão imposta por um curso de jornalismo faz parte do que se enfrenta na própria profissão. Por um lado, aquilo que é encarado como sofrimento, pode ser visto como uma espécie de trainee da vida real. E são nessas escaladas, onde as muralhas se constroem frente aos aspirantes, que as conquistas têm o seu valor. É onde os laços se reforçam. Lá de cima, pode-se ter uma visão mais completa daquilo que estava no chão. No entanto, também se veem outras muralhas que se constroem caminho adiante. Já em 2014, ano seguinte, os dois se encontram com aquilo que daria noção ao que viria pela frente. O Jornal Matéria Prima, ainda como publicação acadêmica, foi o primeiro jornal real que vivenciaram. Nos batuques dos teclados e nos dias à procura de pautas, as primeiras reportagens foram escritas. E entre uma palavra e outra, descobrem-se dons. Tal19


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vez nenhum dos dois ainda acredite quando alguém diz “você escreve bem”. Parece algo surreal ou apenas mais um elogio corriqueiro. Descobrem uma modalidade da qual nunca tinham ouvido falar. Eis aqui. Tome-o como Jornalismo Literário. E lá se foram palavrear entre aventuras e se aventurar entre palavras. São crônicas. Histórias próprias e dos outros que, no papel, ganham vida real. Quando recebem esse toque mágico deixam de ser apenas mais uma história. É o leitor se aproximando da personagem. É a vida em movimento no papel. São as palavras que ganham imagem e voz. E tudo se passa como se fosse um filme na cabeça de quem se aventura na trama de aventureiros. No mesmo ano a aventura mudou de endereço. Tomou o rumo das nuvens e desembarcou em outro país. Os dois experimentaram o significado da palavra surreal e, a partir daquele momento, tudo que parecia impossível já não era tão difícil assim. Aprenderam que, com trabalho e dedicação, podem alcançar. Parece apenas mais um discurso de horário eleitoral, mas que na prática funcionou. Colocaram o que puderam na mala. As horas vendo pedaços de algodão pareciam dias frente a tamanha ansiedade. Na Cidade Luz, Paris, abriram-se as portas para um mundo novo. Cada olhar parecia inacreditável. Aquilo que sempre viram pela TV, nas fotos de revista e na internet era de verdade. Os olhos não resistiram e as lágrimas rolaram no primeiro encontro com a estrutura de metal mais visitada do planeta. Fazia frio naquela noite, mas os corações estavam aquecidos de orgulho e paixão. Ambos não imaginavam que, antes dos 20, iriam tão longe. Sem méritos ou deméritos, não fazia parte da realidade de nenhum dos dois. 20


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Longe das lentes de cinema e das claquetes de um pequeno curso, aprenderam uma lição maior. A bagagem voltou mais pesada e, desde então, já não eram mais os mesmos. Embalados pelo ritmo natalino e pelo calor do fim de ano, também disseram até logo ao primeiro contato com a arquitetura das letras. Na despedida, o nó na garganta, mas ambos concordaram que era hora de evoluir. Assim se faz o meio acadêmico. Vencem-se etapas para que novas surjam. E embarcaram para a próxima. Definitivamente o terceiro ano foi marcante. Estava na hora de voltar à realidade e, cada vez mais perto do fim, depararam-se com o Trabalho de Conclusão de Curso. Outra vez a literatura ascendeu aos olhos e a dupla enveredou para o livro-reportagem (este que você segura nas mãos). Havia tanto para contar, tanto sobre o que decidir. Apesar de muitas dúvidas, viram no livro-reportagem a oportunidade de conhecerem o desconhecido e darem asas ao que tanto gostavam: a escrita. Mas quais seriam as histórias? Por que não falar sobre aqueles que quase ninguém conhece, que se escondem atrás de um sorriso bondoso e de uma mão amiga? Voluntários “sem rosto”, desconhecidos no carinho quase anônimo que oferecem para quem precisa. Quatro histórias diferentes que se uniam nas ações inexploradas e que, Bruna e Wesley sabiam, precisavam ser contadas. Renata, Dirce, Leonardo e Larissa. Escondidos no anonimato, seus rostos ganhariam forma e, finalmente, poderiam ser reconhecidos. Talvez você se pergunte: por que eles? Eis a resposta. Essas pessoas não foram escolhidas apenas porque ajudam a comunidade onde vivem, foram escolhidas porque representam o lado bom da humanidade. Não, eles não estão imunes 21


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a erros. São cheios de defeitos, tiveram momentos difíceis e prazerosos, mas sempre que puderam, ergueram-se e, outra vez, estenderam a mão para quem mais precisa. Eles são pessoas normais, com problemas, assim como você. E isso torna cada história mais maravilhosa. Permita-se viver essas vidas e perceba como você também pode ser uma Renata, um Leonardo, uma Larissa, uma Dirce... Frente a frente com cada um, cresceu a certeza sobre a escolha dessas quatro histórias para contar. Larissa cuida dos animais como se fossem pequenos anjos peludos e permite que encontrem um lar para viver e morrer. Dirce alimenta os famintos de sede, fome e carinho. Renata começou pequena, ajudando a passos de formiga. Hoje, apoiada por um grupo inteiro de voluntários, estende a mão a qualquer um que precisar. Leonardo encontrou nas ruas um motivo para crescer e ofereceu comida, conversa, abraço e uma nova vida para pessoas que, aparentemente, não têm nada. A verdade é que as pessoas (ou animais) que são ajudadas têm muito a oferecer: amizade, sabedoria e humildade. Eles têm uma vida inteira pela frente e precisam voltar a vivê-la. Há tanto para mostrar. Quem se beneficia da ação voluntária é fisgado pelo sorriso e quando se dá conta, entregou a vida nas mãos que o acolheram. Há choro, sorriso, abraço e mentira. Mais do que isso: há amor. Um carinho que transborda pelas veias dos voluntários. Pode ser que você fique curioso para saber como chegamos até eles, já que vivem no desconhecido. Larissa foi descoberta numa feira de adoção de animais promovida por ela. Bruna, menina das letras e da voz doce, é também amante dos cachorros. Não resiste às patinhas e focinhos molhados. Também não se controla quando vê uma boa história. Com um cachorro no colo, ela começou a con22


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versar com Larissa, que, sem perceber, contou quem era. Jovem, grávida, recém-casada e completamente apaixonada pelos animais. Ali nascia um perfil, fruto de uma tarde ensolarada e peluda. Com a Dirce e Leonardo foi diferente. Ambos saíram de uma conversa em sala de aula. Numa sala de cursinho, um professor debulhava elogios ao jovem Leonardo. “Estava chovendo e eu o vi embaixo de chuva, alimentando um morador de rua”, contou. Tinha de ser ele, essa história não poderia ficar de fora deste livro. Sem pestanejar, a procura por quem era esse menino começou e, quando encontrado, não houve um segundo de dúvida. Com Dirce foi da mesma forma. Uma professora, “parente de um parente” de Dirce, dizia ter muito orgulho de sua história. Bastou um telefonema para ela e cinco minutos de conversa para a certeza de que a história dela também ganharia as páginas deste livro. O contato com Renata foi o mais tecnológico. Pertos de terminarem as escolhas, Bruna e Wesley recorreram às redes sociais. “Alguém conhece uma história legal de voluntariado em Maringá?” Apesar de várias respostas, essa chamou a atenção dos dois. Ali, no terceiro ano de jornalismo, havia vitórias de um lado e decisões importantes do outro. Uma pausa na preparação do TCC para a vida da dupla seguir um pouco mais. Um intercâmbio que surgia e saltava aos olhos de Wesley, oferecendo-lhe um mundo novo para ser descoberto. O tempo corria e faltavam horas para organizar tudo. Pizzas, trabalhos e bombons. Com o apoio dos amigos formam-se os verdadeiros vencedores da batalha que ajudaram o tempo a diminuir a velocidade, que aproximaram o sonho e o tornaram menos abstrato. Portugal começava a ganhar forma no pensamen23


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to dele e o cheirinho de viagem estava cada vez mais perto. Estava na hora de partir, muito havia sido deixado (temporariamente) para trás. Muito estava sendo levado na bagagem. Enquanto Wesley se preparava para embarcar nos próprios sonhos, Bruna iniciava outro, prestava um novo vestibular. A sala não era quente e não havia nervosismo. “Tudo bem se eu não passar.” Mas foi aprovada. Ali, duas vidas estavam ganhando outros rumos. O menino deixava a cidade das uvas para trás; a menina fincava mais fundo os pés nas letras e na literatura. Embriagados pela novidade viram 2016 chegar em câmera lenta e receberam de peito aberto todas as consequências das escolhas que fizeram. Histórias selecionadas, era hora de entrar na vida de cada voluntário. Conheceram a realidade que viviam, compartilharam os momentos complicados e perceberam a fraqueza que carregavam. Escreveram, reescreveram e fotografaram. Tudo registrado nos celulares, no papel e na alma. Sim, na alma. Ali guardaram cada segundo de vida e conversa e ali as manterão guardadas por anos. Sensibilizados com o que ouviram e viram, depararam-se com o próprio egoísmo e tentaram ser fiéis ao que a visão (atrapalha pela admiração) enxergou. Sentados em frente ao computador, deixaram as histórias fluírem da ponta dos dedos e viram aquelas vidas ganhando, finalmente, um registro de reconhecimento. Inebriados, cometeram erros e ficaram surpresos como a velocidade dos dias os ia engolindo. Queriam mais tempo, mas abriram mão disso quando deixaram as próprias vidas tomarem outros rumos. Um distante, outro mais perto. Já não importava mais, as horas correram rápido demais e eles precisaram encarar que o tempo ficou mais curto pela culpa deles mesmos. 24


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E aceitaram isso. Tiveram menos horas para ouvir as histórias, isso é verdade, mas descobriram mais tempo para amar. Apaixonaram-se pelo projeto do livro-reportagem a cada conversa e se descobriram nos defeitos e nas qualidades de cada entrevistado que hoje compõe os perfis aqui apresentados. Viveram outras realidades e mais uma vez valorizaram a importância de ouvir. Agora que se aproximam do fim, parece que tudo aconteceu há muito tempo. As conversas e as implicâncias se distanciam, os medos vão se calando e ficando mudos num coração que começa a bater mais forte, sentindo o misterioso futuro chegar. Parte desse futuro, o livro ganhou forma, cor e cheiro. Também coroou uma amizade e eternizou os momentos que Bruna e Wesley compartilharam. Logo, muito antes dos seus olhos voltarem a piscar, os dois estarão distantes daqui. Esse é o registro que deixam para marcar mais uma etapa de suas histórias cumprida. Em cada linha há vida, em cada palavra suspiros de alegria e de dor. Projetos que precisam ser multiplicados e compartilhados e um convite para que você, leitor, se junte aos ideais de um mundo mais solidário.

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Você tem câncer. Uma vida pode mudar com essas palavras. Os olhos marejam, a boca seca e as mãos tremulam. A impressão é de que o choro embaraça a voz e de que o coração deixa de ditar o ritmo da respiração. Ela estava ofegante e sabia disso. Um sopro saía pela boca e aquele era um resquício da vida que chegava diante dos seus olhos. Sentada em uma cadeira médica, sente como se o chão sob seus pés desaparecesse. Não é como sentir-se caindo, é pior. Numa fração de segundos, num átomo de três palavras, o cérebro deixa de funcionar. E volta. Sim, numa velocidade incontrolável, as lembranças da infância misturam-se ao primeiro sorriso dos filhos e apagam-se. É aquele estranho “filme” que invade o pensamento quando não se tem mais certeza do amanhã. Uma vida começa com um choro e pode terminar da mesma forma. É como se o cérebro desse um nó e, que numa velocidade insuportavelmente lenta, o embaraço acabasse. É possível voltar a sorrir depois e perceber que há muito que viver antes da hora de chorar. Dirce Isabel Orfrini viveu isso. Há 59 anos, em Floriano, um distrito de Maringá, uma criança pobre ganhava de presente os braços de uma mãe 29


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amorosa. A mais nova entre os irmãos, ela viu a vida surgindo na memória enquanto se lembrava da infância. Antônio, Paulo e Dirce, filhos de Hermida Cól e João Orfrini. Uma menina simples, criada no sítio da avó, tornou-se uma mulher gigante. Dirce dividiu a casa com o pai durante pouco tempo. João e Hermida se separaram quando ela ainda era criança, mas, junto dos irmãos, da avó e da mãe, ela foi educada. Numa família pequena, no interior do Paraná, a então menina corria pela rua, subia em árvores e aproveitava o vento que soprava alegria no rosto dela e dos amigos. Filha de pais analfabetos, ela nunca teve muito contato com os estudos, tampouco foi incentivada a buscar mais conhecimento. João mesmo, mal sabia como assinar o próprio nome e o pouco que conseguiu decorar foi fruto de muito treinamento. Ele morreu sem saber, mas viveu orgulhoso daquilo que pôde ensinar para os filhos. Se o pai quase não conseguia assinar o nome, a mãe nunca passou perto de segurar um lápis. Hermida, aos 86 anos, também não pôde ensinar os filhos a escrever, muito menos ajudá-los numa conta matemática. Mas ela fez muito mais. Esteve ao lado de Dirce nos momentos mais tristes e segurou sua mão nas horas mais difíceis. O confortável sofá da sala, em que se ajeitou para contar esta história, talvez a tenha deixado mais saudosa e as lembranças tenham vindo com mais força. No dia do aniversário da mãe, Dirce se orgulhava ao saber que ela completaria 86 anos e se divertia com as próprias memórias. “Minha mãe não quer bolo, não quer presente. Não quer nada. É uma cabecinha confusa”, que está cheia de experiências e medos. É a velha história do choro que termina uma vida. No alto da velhice, Hermida escolheu não comemorar outro ano de 30


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aniversário. No auge da velha juventude, Dirce escolheu não entender o porquê de não se festejar o privilégio de estar fazendo 86 anos. Isso, no entanto, não é o mais importante. O que realmente se destaca é o riso imperceptível que está nos olhos. A menina do sítio que cresceu com o carinho da mãe não quer comemorar o aniversário, quer comemorar o prazer de ter esse momento para viver ao lado dela. Ambas sofreram e as duas viram o peito anuviar-se; mas elas estavam ali e, ainda que num momento silencioso, vibraram o deleite de outro dia 18 de outubro. Aos 16 anos, Dirce começou a trabalhar no banco como escriturária e viu a juventude chegando ao fim. As aulas foram trocadas pelos dias de serviço. A educação substituída pelo próprio ensino da vida. Eram tempos difíceis para estudar. Mas ela não desistiu. Dirce sabia que precisava ir à escola. E foi. Os pés pisavam um chão avermelhado, lamacento do orvalho das árvores. Numa passagem tortuosa encontrava o sol chegando às casas. Ao redor, a mata ainda tomava a cidade e tudo o que se via eram alguns feixes de luz. A ponte de madeira que ligava sua casa ao colégio era fraca, mas em nenhuma manhã deixou de guiar Dirce no nascer do dia. Numa sala de aula, ela conheceu o pai de seus filhos. “Um erro”. Nova, Dirce diz que se sentia desorientada e que, 41 anos atrás, não teve a chance de ter a sabedoria que tem hoje. A inocência dos pais não deixou nem que ela soubesse como era ser “mocinha”. Quando o sangue lhe escorreu pela primeira vez por entre as pernas o peito foi preenchido pelo medo. “Eu achei que estava morrendo.” A vizinha, um pouco mais desinibida do que a mãe, explicou a Dirce que ela não precisava se preocupar. Aquilo era natural para todas as me31


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ninas. O silêncio sobre isso e tantas outras coisas impediu que muitos outros conhecimentos viessem antes dos erros. Apaixonou-se rápido. Viu seu corpo encher-se de desejo e não esperou. Os dias de mocinha acabaram. Dirce era, agora, uma mulher. Não voltou a sangrar e sentiu crescer um pedacinho de amor dentro de si. Grávida, jovem e sozinha. Os tempos eram outros. Ela precisava se casar. E se casou. Mudou-se para Jundiaí (SP), na época ainda uma cidade pequena do interior paulista. Poderia ser o lugar perfeito para criar o filho. Poderia ter sido um casamento maravilhoso. Mas não foi. Despediu-se da mãe e, com um olhar vazio, deixou sua casa. O mesmo fio de esperança que corria nos seus lábios foi aquele que se perdeu nas discussões. Houve amor, é claro, só não o suficiente para continuar existindo entre eles. Numa casa de dois cômodos, Dirce conta que viu seus dias escurecendo. O filho, Alexandre Orfrini, era o único pedacinho de luz no meio de tantas nuvens. As brigas do casal aumentavam e a situação começava a ficar insuportável. Ali, naquele espaço pequeno, os dois montaram um ringue particular. Ela apanhou e bateu. Não havia respeito. Fizeram da própria vida um show de violência explícita. Mesmo assim, dois anos depois, ainda conseguiram encontrar um estilhaço do amor que sentiam. A descoberta da gravidez do segundo filho foi o último momento que compartilharam. Agora, Dirce carregava no peito seus únicos dois amores: Alexandre e Jean, o novo pedacinho que crescia dentro dela. Era um fim de tarde quando as coisas saíram do controle. Dirce não imaginava que o marido não pagava as contas da casa. “Até então, estava tudo certo.” Ela estava na sala 32


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com o filho quando o caminhão da loja parou em frente ao portão de sua casa e entraram pela cozinha, levando a geladeira. Prometeram voltar em breve para buscar as cadeiras. Outra vez, numa fração de segundos, a vida mudava. Era hora de ir embora. Hermida já havia ligado. “Volta para casa, meu amor, a mãe vai cuidar de você e do pinguinho.” Dirce esperou o marido voltar. Brigaram outra vez. No peito, a cicatriz de uma faca. Na alma, o alívio de quem deixava o recente passado para trás. Numa mala pequena, colocou as poucas roupas que ela e o filho Alexandre tinham. Recebeu dez reais para o leite. “Mas o que são dez reais?” Foi embora sem nunca ter olhado para trás e a cada metro que ficava mais perto da casa da mãe, enchia-se de amor novamente. Jean nasceu longe do pai, mas não dá para afirmar que isso tenha sido ruim para ele. Não faltou amor, nem cuidado. Ele e o irmão uniram-se ainda mais à mãe e, juntos, os três fizeram um mundo para viver a própria infância. De tantos erros que a levaram de volta à casa da mãe, Dirce exclui dois para chamar de acerto. Os filhos vieram da pessoa errada, mas jamais seriam um engano. “O que ficou de bom, foram só os meus meninos.” Os olhos dos filhos, os sorrisos, os abraços e o cheiro. Aquele cheirinho que ela percebe de longe. Apaixonar-se a cada batida no peito e culpar-se pelos erros que não são seus. Dar a vida por alguém e receber de volta uma discussão. Tudo bem. Dirce, filha de uma mãezona, tornou-se a melhor mãe do mundo para os dois pinguinhos que viu nascer. As manhãs eram longas longe da mãe. Na escola, o tempo voava. Mas na hora de dormir, não havia nada que pagasse o beijo de boa noite. Ela não estava presente em todos os 33


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momentos, mas eles sabiam que onde quer que estivesse, o pensamento dela voaria até eles. A infância foi assim, cheia de saudade do abraço da mãe quando ela não estava por perto; repleta de felicidade quando ela abria a porta. O caçula não sofreu de ausência, o tempo que tinham para estar juntos, aproveitavam ao máximo. “Foi uma infância feliz.” Cresceu, casou-se e formou a própria família. O irmão mais velho, Alexandre, não teve a mesma sorte. Ele também se casou e teve um filho, mas perdeu-se na escuridão da noite. Há cinco anos, Dirce descobriu que ele usava drogas. O menino dela perdeu tudo. Divorciou-se e deixou para trás a chance de voltar a viver bem. Ficou internado por dois meses, mas voltou para as ruas e para o conforto que ele achava que as drogas trariam. Pode haver quem pense que a culpa é da mãe, que ela não cuidou direito. Só que ela cuidou. Amou e ama incondicionalmente esses pedaços de vida que saíram de dentro dela. Quiçá, Jean poderia pensar que a culpa fosse ser da mãe, mas também não pensa. “Eu não culpo a minha mãe. Se fosse assim, seríamos nós dois nessa vida louca, não é mesmo?”. Os filhos são parte fundamental da vida de uma mãe. Por 12 anos, Dirce manteve-se fiel a eles e, apesar de ser namoradeira, não encontrou ninguém que pudesse fazê-la sentir-se ofegante novamente. A vida, nessa incessante brincadeira de surpreender, trouxe Laércio Rodrigues para Dirce. Um eterno apaixonado, derreteu-se a cada palavra dita e brincou de não amar, enquanto amava em cada olhar. Eles se conheceram num baile gaúcho. Nada de bombachas, botas ou poncho. Vestia o seu melhor traje: o sorriso. Um colega que conhecia uma amiga. Assim, nascia uma nova história de amor. Estava tudo programado, um colega de Dir34


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ce apresentaria Laércio para uma prima dela. A comichão no estômago, no entanto, gritou aos ouvidos e, num estalo, ele soube que não era a prima que o faria feliz. “De vez em quando, a gente conversava. Às vezes, a gente até dançava junto.” Não tinha mais volta. Ele já havia se rendido “àquela bonecona comprimida, bem magrinha, com cabelinho louro cacheado, que parecia uma corda desfiada, e a cintura que cabia na minha mão.” Esperto, viu que não podia perder tempo. Já não estavam mais na idade de sentir-se completamente acanhados. “Se eu quiser te namorar, tenho chance?” Ela sorriu e, ali, ele soube que teria todas as chances que precisava para conquistá-la. Com os cabelos ainda tão pretos de quando era jovem, Laércio não demorou muito a conquistar Dirce. Namoraram por alguns meses e logo juntaram as panelas. Mãe de dois meninos, Dirce encontrou um marido, um amigo e um pai. A relação com os filhos dela não tem muita conversa, mas em cada suspiro há amor. Recebeu as crianças como se fossem suas e, por isso, soube que deveria arrumar uma casa para terminar de criá-los. Na época, ela tinha comprado um terreno para construir uma casa. O dinheiro vinha aos poucos, como golinhos de água numa torneira entupida. Não foi assim por muito tempo. Laércio vendeu a moto, única condução que tinha, para poder construir um lar àqueles que, agora, eram a sua família. Com o dinheiro que conseguiu, comprou os materiais de construção que precisava e, de tijolo em tijolo, viu-se erguendo o castelo dos seus amores. As paredes ganharam cor, quadros e fotos. Pouco a pouco ergueram um cantinho para viver. O carinho da nova família ocupou os medos do passado. Apagou as lembranças 35


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ruins e deu asas ao futuro, que um dia já foi presente, mas que hoje é um passado gostoso de ser lembrado. Cuidados como filhos, amada como mulher. Vez ou outra, contudo, a vida decepciona. Os dias claros, com um sopro fazendo a vez de vento, escureceram-se. Dirce estava em casa quando percebeu que o chão desmoronara sob seus pés. As pernas vacilaram e, de repente, os olhos já não viam mais nada. A escuridão foi se desvanecendo e o brilho avermelhado de sangue chegou aos olhos. Era 2010. Dirce tinha 51 anos quando deixou de sentir-se como uma gigante. As lágrimas escorriam silenciosamente pelo rosto, enquanto as lembranças cortavam seu peito. Ela ofegou, pediu desculpas e não falou. Durante a entrevista, levantou-se, sentou-se e, novamente, levantou-se. São memórias doloridas, guardadas numa caixa pequena que não deveria ser aberta. Procrastinou e chorou. Por nove minutos, o único barulho que existiu na sala foi a respiração pesada. Entrecortada. E quando ela falou, eu também senti. Peço que me desculpem a melancolia, mas naquele momento eu senti. Vi-me, num minuto, sentada no sofá confortável de uma sala pequena e cheia de lembranças, noutro, eu via as palavras dela ganhando forma. O sangue da hemorragia chegando ao chão, ouvia os barulhos do hospital e sentia o coração diminuindo. Cada vez menor. Cada vez mais inseguro. As lágrimas que escorriam dos olhos ganharam espaço no canto da boca. Dirce chorou a cada frase. Socorrida pelo marido, ela foi levada às pressas ao Hospital Universitário de Maringá. Era sábado. Ainda que os passos vacilassem, ela não caiu. Os braços que seguravam seu corpo carregavam também seus pensamentos, sua alma e seus medos. 36


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Por dois dias ela ficou internada. No domingo, final da tarde, um médico entrou no quarto em que estava. Uma coleta de rotina para descobrir o que teria causado a hemorragia. Quase vinte dias se passaram. Em cada um, a agonia e o medo das incertezas ocupavam o passar vagaroso das horas. Ligaram antes do que ela esperava e pediram para que ela não demorasse a voltar ao hospital. Sentou-se para escutar. E sentada ficou. Câncer de colo de útero, foi o que a médica, indelicadamente, anunciou. “Você está com câncer e corra senão vai morrer.” Se até aquele instante os pés bambeavam na hora de andar, agora não se moviam mais. Ali, viu a vida passar pertinho dos olhos. Sentiu as palavras batendo no rosto e aquilo doeu. Ah, como doeu. As pernas apenas obedeciam ao comando do cérebro. Ela se levantou e saiu. “Meu Senhor, o que eu vou fazer agora?” Não havia uma só cor ao seu redor. Procurou Marta, uma amiga que resgatou, pouco a pouco, vida para os seus dias. Pintou cada pétala de flor, deu voz aos pássaros da árvore em frente a sua casa e fez brilhar outra vez os olhos de Dirce. Marta Socio, 45, é assistente social e conseguiu tornar o processo de documentação mais rápido, agilizando o início do tratamento. Foi a muleta nos dias de dores e a guia nos dias de escuridão. A amiga ajudou Dirce a encaminhar os papéis que precisava para começar o tratamento e a levou até o hospital. Lá, ela conheceu o médico André Ribeiro Nascimento, oncologista. Ele explicou que era preciso fazer uma cirurgia para depois iniciar o tratamento. Entre um exame e outro, Dirce viu os 25 dias até a cirurgia correrem pelo calendário. Não dormia e mal comia. “Vão abrir minha barriga e encontrar o 37


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que ali dentro?” O marido sofreu baixinho e, mesmo sem saber o que dizer, não saiu de perto dela. O filho voltou de longe, vivia há dez anos em Portugal. A mãe precisava dele e ele precisava estar perto dela. Dirce sentia-se muito longe da esperança e usou cada um dos dias para programar a vida dos filhos e do marido sem ela. Organizou os papéis que ficariam em seu lugar, guardou o dinheiro do filho e escreveu um diário para a família. Naquelas folhas amareladas pelo choro, deixou escorrer a sua alma. O caderno já não existe mais, perdeu-se com o tempo. Também não haveria razão para ser lido outra vez, já que muitas alegrias ocupariam posteriormente aquele vazio. Ela se sentiu como um “animal indo para o abate”. Um aperto que esmagava o peito e sufocava a voz. Colocaram a roupa cirúrgica, prenderam o cabelo em uma touca e a deitaram sobre uma maca. O barulho das rodinhas no piso confundia-se à batida apressada do coração. Foi sentindo a sonolência da anestesia tomando seu corpo e lembrou-se apenas de pedir: “por favor, cuidem de mim”. Ela acordou horas depois com a voz do médico. “Você viu que ponto lindo que eu fiz na sua barriga?” A resposta em forma de sorriso foi o suficiente. A cirurgia era o primeiro de muitos outros momentos de luta contra o câncer. Ficou internada por dois dias e quando percebeu que o pior havia passado, pôde enxergar as cores do mundo outra vez. Deixou o hospital e voltou para casa. Naquele mesmo sofá confortável em que me sentei para ouvi-la, ela ficou deitada por dias. A barriga magrinha inchou e o cabelo comprido encheu-se de nós. Por 15 dias ela, que sempre cuidou das 38


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pessoas, precisou ser cuidada. E como foi cuidada. Filhos, marido, amigos e parentes estenderam as mãos para ela. Repousou e melhorou. Na primeira consulta médica depois da cirurgia, ela sentiu que renascia. O médico disse que o procedimento não poderia ter sido melhor e que tudo que poderia causar outro câncer havia sido retirado. Apesar disso, ainda se veriam por muito tempo. A primeira fase tinha, sim, acabado, mas apenas para dar início à segunda batalha: o tratamento pós-cirúrgico. Ela sabia, desde o começo, que a vida havia lhe dado um empurrão; não sabia, contudo, que estava apenas colocando-a no caminho de tantos outros que precisariam dela. Dirce precisava de 32 sessões de radioterapia. Quatro sessões de braquiterapia. “Pelo menos não era um tratamento com agulhas.” Todos os dias ela acordava, tomava o café da manhã e esperava o relógio da parede girar as horas. Sempre no mesmo horário. Sempre acompanhada do marido. Enquanto as pessoas almoçavam, Dirce caminhava para a sala onde faria a radioterapia. Chegava à clínica, passava pelas portas de vidro e esperava, sentada numa cadeira desconfortável. Muitas outras pessoas esperavam ao lado dela. Tantos outros tipos de câncer. Uns lutavam sem esperança, já não tinham mais certeza se ainda havia algo a ser feito; outros se animavam ao perceberem que aquilo era uma fase ruim de uma vida feliz. Dirce estava entre os que viam o câncer como um momento passageiro. Conheceu muita gente enquanto esperava chamarem seu nome. “Dirce Isabel Orfrini?” E a conversa, que há pouco tinha começado, já acabava. A passos lentos caminhava para 39


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a sala de tratamento. Deitava-se numa maca gelada e aguardava desenharem o espaço que limitava a radiação. Colocavam a enorme máquina sobre ela e, naquele pequeno quadrado, o laser era disparado. Diferentemente da quimioterapia, o tratamento de Dirce não a fez perder cabelo. Menos agressiva, a radioterapia apenas desregula o funcionamento do intestino e, por vezes, queima a pele dos pacientes. Dirce, infelizmente, queimou-se uma vez e mesmo depois de anos, ainda carrega as consequências disso. Durante uma sessão, a máquina atingiu um nervo e deixou sequelas na parte motora das pernas. Os pés incham e os tornozelos ficam enormes. Uma lembrança ruim de um momento de vitória. Entre as muitas horas de espera, Dirce encontrou (mais um) motivo para curar-se completamente. Naquela enorme sala de angústia, uma mulher levava alegria para os pacientes. Nas mãos, um pão. Na boca, um sorriso que iluminava os olhos de quem observava. Ela oferecia comida para os outros e, sem saber, levou Dirce a uma promessa: “Quando eu ficar boa, vou distribuir lanchinhos para essas pessoas também”. A melhora, que começou num desejo, ganhou mais força e ajudou Dirce a cumprir com a própria promessa. Há quatro anos, ela retribui o carinho que recebeu. Todas as semanas, reserva algumas horas do dia para levar conforto a alguém. Esse conforto retorna para ela como alegria, impressa em um sorriso gentil e sincero. As mãos, que já começaram a enrugar, preparam com carinho inestimável os lanches dos pacientes submetidos ao tratamento radioterápico. Quase não há barulho na rua. Os pássaros cantam lentamente, ainda sonolentos por uma manhã fresca. Lá dentro, Dirce cantarola uma música qualquer e se apressa para co40


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meçar a montar seus lanchinhos, como gosta de chamar. O cheiro de bolo que sai do forno ganha a cozinha e mistura-se ao carinho de toda aquela cena. Cenoura, fubá, laranja, tanto faz. Tudo muito simples, feito com muito cuidado. As mãos cortam os quadrados de bolo e são ágeis na hora de empacotar cada pedacinho. Não tem cobertura, sequer recheio, mas há muito mais valor num pedaço simples de bolo. Ele é coberto com sensibilidade e recheado com o amor de quem o preparou. Ao lado, os pães vão, vagarosamente, sendo intercalados com patê de frango. Ela não oferece refrigerante, nem suco industrial. “Isso acaba de matar a pessoa.” Aos pacientes, apenas suco natural. Cada pedacinho de bolo e sanduíche é colocado em embalagens plásticas. Tudo é guardado na bolsa, junto com os copos e os papéis. Há atenção em cada detalhe. Parada em frente à clínica, as memórias se dissipam num sorriso convidativo e, contente, ela entra na enorme sala. Os passos são leves e quase não tocam o chão. “Aceita um lanchinho?” Alguns estranham a pergunta, mas logo ficam encantados com a velha jovem. Eles não são os primeiros a se apaixonar por Dirce, muitos outros já se renderam ao charme e aos carinhos dela. Os olhos fecham ao rir e as bocas abrem-se em gargalhada. Falam da vida e ela fala de si. Não contou que já esteve naquela mesma cadeira, mas sentiu o passado cada vez mais perto. Enquanto a bolsa vai diminuindo de tamanho, o coração vai aumentando. Ela conversa com todos como se fossem amigos há anos. Alguns até se tornam amigos de verdade. Maria Hilda Detros, aos 71 anos, não esconde a gratidão pela amiga. Elas se conheceram há muito tempo, tanto que nem se lembram mais. 41


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Maria não foi uma paciente ajudada por Dirce, ela foi uma amiga. Há pouco mais de três anos foi diagnosticada com câncer de mama e, assim como Dirce, viu o chão sumir debaixo dos seus pés. “Ela me deu muita força e é uma pessoa que está pronta para ajudar.” Talvez, até esse momento, ninguém tenha descrito com tamanha precisão quem Dirce é. As duas viveram o câncer uma da outra. Choraram juntas. Quando Maria precisou, Dirce correu para ajudá-la. Fez tudo o que pôde e, sem pestanejar, estendeu todo o seu corpo para apoiar a amiga. Orou, alimentou e conversou com Maria milhares de vezes. Quando tudo havia acabado, foram juntas à clínica de radioterapia e, outra vez, agradeceram por estarem vivas. Dirce é assim. Sofreu diversas vezes, mas não deixou de agradecer o prazer de outra manhã, nenhuma vez. Agradeceu, em silêncio, a vida da mãe. Festeja, diariamente, a vida dos filhos. Aproveita, intensamente, a vida do marido e a cada visita em que entrega os seus “lanchinhos”, ensina àquelas pessoas a agradecerem também por outro dia de vida. Vera Lucia Faria Vicente, 53, aprendeu a agradecer por cada uma das manhãs em que se levanta. Diagnosticada com câncer de útero, Vera aguardava ter o nome chamado pela última vez na sala de radioterapia. Todas as cadeiras dali estavam ocupadas. As mãos estendiam-se para o lanche e o sorriso crescia a cada mordida. Para Vera, essa seria a última chance de agradecer. “A gente precisa de um carinho.” E como havia carinho. Enquanto a voz de Dirce se afastava na sala comprida, Vera deleitava-se. “É bom saber que alguém se preocupa com a gente.” A preocupação estendia-se junto ao cheiro de bolo que corria no ar. Era o primeiro dia de José dos Santos, 51, naquele lugar. 42


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A cabeça raspada, toda pintada de caneta denunciava o câncer. Tumor no cérebro. Estranhamente, ele não estava com medo. Nos olhos havia apreensão, sim, mas o sorriso chamava muito mais a atenção. José não esperava por uma visita e aproveitou cada um daqueles minutos para se distrair. “O lanche estava uma delícia e eu mal posso esperar o momento em que ela volte.” E é claro que Dirce voltará. Quantas vezes for preciso, ela estará ali, com as mãos estendidas e a pergunta tremulando num sorriso, “você aceita um lanchinho?”. Ela nunca foi atendida por Dirce, mas acompanha esse trabalho de longe. Telma Pereira de Souza, 53, é secretária da clínica de radioterapia e, em cada uma das visitas, vê o medo desvanecendo dos olhos dos pacientes. “É uma maneira de alimentar a alma deles de esperança e amor.” A hora do lanche vai muito além de sentir-se feliz pela comida. Os pacientes alegram-se com o carinho que acompanha cada pedaço de bolo e pão. “Dar comida é a mesma coisa que fazer um cafuné.” E Dirce tem um excelente cafuné para oferecer. Engraçado como algumas histórias se cruzam apenas para traçar o caminho de olhares que, num futuro próximo, irão se encontrar. Dirce ainda estava internada quando ouviu falar de Luciano pela primeira vez. No quarto ao lado, o marido Laércio conversava e marcava o primeiro passo de uma amizade. Luciano Alves tinha um tumor no cérebro e iria passar por uma nova cirurgia. “Tem um moço ali, que está com câncer na cabeça. Coitado. Está com a cabeça enorme.” Um comentário que ocuparia alguns segundos das horas intermináveis de quem espera o momento de ir embora para casa. Dirce deixou o hospital, mas levou consigo a lembrança de Luciano. Meses depois, os caminhos cruzaram-se novamente. Ela entregava o lanche e ouvia histórias. Ouviu a 43


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história dele contada nas palavras de Vera Lúcia Alves, sua mãe. Estavam sempre por ali, esperando o nome ser chamado. Aguardando a cura que não vinha. O tumor havia voltado, muito pior do que antes. Quase não tinham esperanças e os poucos vestígios de fé que conseguiam, eram corroídos pelas previsões médicas. Jovem, ele poderia ter tido um futuro brilhante. Não teve. O choro que acompanha o último suspiro chegou cedo demais e deixou sozinha uma mãe que precisava de ajuda. Os lanches materializam o carinho e a gratidão de Dirce e, muitas vezes, são retribuídos com amizade. Com Luciano e Vera foi assim. Aproximaram-se e viram uma amizade crescer. Dirce não salvou a vida do garoto, nem poderia. Mas sempre que pode, salva um pouquinho do que resta de Vera. Começaram as conversas numa sala de espera e terminaram no sofá da sala de estar. Tornaram-se amigas e, assim como foi com Maria, Dirce viveu o câncer de Luciano. Chorou sua morte e não saiu do lado de Vera. Encontraram-se por uma doença, uniram-se por um lanche e tornaram-se amigas por uma morte. Hoje, Dirce não esbarra com Vera e seu filho na clínica de radioterapia, mas a pergunta “aceita um lanchinho” não deixou de ser feita. Sempre que pode, vai à casa de Vera e leva comida. A mãe, muito pobre, recebeu uma amiga de presente e ganhou um anjo da guarda particular. Luciano precisou ir embora deste mundo para levar Dirce para mais perto da mãe. Esta história não termina aqui. Vai muito além. Numa vida de dedicação ao próximo, ela ainda vai esbarrar com muitos outros “Lucianos” e “Veras”. Vai encontrar o sorriso tímido no rosto de alguém que está com fome, vai perceber olhos brilhando em agradecimento ao carinho que recebem. 44


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Talvez ela não se lembre de todas as pessoas que pôde ajudar, mas certamente ninguém poderá se esquecer da velha jovem. O cheirinho de bolo ficou no ar. Marido e filho, com fala entrecortada por sorrisos, orgulham-se ao dizer que o trabalho de Dirce é incrível. “Ela leva um pouquinho de amor para aquelas pessoas”, diz Jean. Independentemente dos erros do passado e dos pecados do futuro, ela plantou uma semente nos sorrisos que recebeu. Se ela se arrependeu dos deslizes que teve? É claro que sim. Se faria diferente? Talvez. Se algum de nós cruzarmos com alguma Dirce por aí, certamente vamos nos lembrar desta história. Ela sorriu, chorou, sofreu, viu que poderia perder prematuramente a vida, mas não perdeu. Também não salvou nenhuma outra, mas nem precisou. Dirce trouxe alegria, mesmo que momentânea, para muitas pessoas que sofriam. “Meu lanchinho significa carinho”, ela diz. Mas sabe que é bem mais que isso.

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Reza a lenda que em um dia de sol, do outro lado do oceano, um pequeno milagre aconteceu. Fazia calor naquele dia. A estrela que banhava o solo africano se exibia em um céu completamente azul. Na terra seca, as crianças brincavam juntas, unidas. O chão arenoso, de cor amarela em tons escuros, exibia uma vegetação com poucos galhos secos. Ao redor, as casas feitas com elementos da natureza e com trabalho de inúmeras mãos guardavam um tesouro: a cultura de uma tribo africana. E foi exatamente nesse lugar em que um antropólogo resolveu se aventurar para entender a cultura daquele povo. Entre danças e rituais, entendia como era o ser humano. Em meio às cores e acessórios, compreendia a complexidade racional. Entre anotações e observações, cercou-se de indagações. Mas do alto de seu conhecimento humanístico, tentou interpretá-las. Em base empírica e teórica, as letras sugeriam respostas para o mistério do desenvolvimento humano. O enigma da sociedade. Os passos da vida. Almejando concluir a aventura, esforçou-se ao máximo que pode. Diante da fina película de vidro, fixada por hastes nas orelhas e o nariz avermelhado pela exposição solar, os olhos procuravam 49


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mínimos detalhes. Envolvendo-se com os costumes, eis que surge uma ideia. Agarra uma cesta feita de palha com as cuidadosas mãos africanas. Da mala, retira doces vindos do país de origem. Hora de presentear os pequenos que, assim como o antropólogo, aprendem a cada olhar. Mirando em uma brincadeira competitiva, típica da sociedade em que cresceu, o homem depositou a cesta aos pés de uma das poucas árvores que ali existiam. Já não fazia grande sombra, mas era perfeita para ser um marco. Toma distância. Com as mãos em um galho seco que estava no chão fez uma linha torta a partir das imperfeições do terreno irregular. Convida as crianças. Do alto da experiência, o homem mostrava as regras. O cesto que estava na árvore poderia ser de posse de qualquer criança. Para isso, bastava ser a mais rápida entre o grupo. Posicionou-as frente à linha torta. À frequência sonora, disparariam em busca do prêmio. Assim combinados, todas aguardavam atentamente ao senhor que parecia se divertir frente à situação. Puxou o ar e prendeu-o nos pulmões. Colocou a língua entre os dentes. Ali estava o assovio. Os pezinhos descalços e sujos começaram a se mover, mas diferentemente do que imaginava, os braços infantis não se projetaram para frente, regendo o impulso para a velocidade. Estenderam-se para o horizonte. Cada mão uniu-se. Agora, a marcha era única. Com passinhos acelerados, juntas as crianças chegaram até a velha árvore, que revelava os doces. Soltaram as mãos e em conjunto receberam e repartiram o prêmio. Não acreditando no que se passava, o antropólogo foi até as crianças perguntar o motivo de terem se unido, em vez de competido para que apenas um vencedor triunfasse. Como resposta ouviu em uníssono: ubuntu. 50


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Mas antes que esta história chegue ao fim, se é que as histórias de fato têm um ponto final, é preciso conhecer outra personagem. Essa não faz parte de nenhuma lenda ou mito. O próprio enredo continua a ser construído a cada dia que passa. Inclusive agora. Apenas mais uma protagonista, ou coadjuvante, entre outros 7 bilhões, Renata Bespalhuk poderia ser uma das crianças africanas retratadas na lenda. Mas quis o destino que ela nascesse em solo americano. Há 24 anos, o casal Maria de Fátima e José Carlos Bespalhuk ouvia em Maringá o choro da terceira filha. A gravidez não era desejada. Mas, segundo os pais, isso não foi impedimento para que a filha recebesse o mesmo amor que os irmãos mais velhos, Ricardo e Rafaela. Quando criança, Renata estudou em colégios particulares de Maringá. Ela diz não se recordar muito do tempo em que era pequena, mas se a memória da jovem é falha, a avó Salvelina Lisboa, outra jovem, mas com 83 anos, não se esqueceu de nenhum detalhe. Dona Salvelina comemorava o aniversário enquanto descrevia a infância da neta. Como recordação especial, lembra-se dos desenhos que a pequena Renata fazia e lhe entregava como presentes. “Ela gostava muito de desenhar e dava tudo para mim.” Ao abrir o baú repleto de memórias, dona Salvelina recorda-se que, assim que a neta começou a crescer, pedia que a mãe ligasse para a avó convidando-a para brincar. E assim foram correndo os dias, entre bonecas, brincadeiras. O faz de conta na fantasia infantil. Tudo o que uma mente criativa pudesse contar. A oportunidade de Salvelina resgatar o passado que não teve com os filhos. “Eu nunca brinquei com meus filhos. Com ela fui sempre grudada.” Brincando com a neta, realizou-se enquanto Renata se construía. 51


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Apesar de os pais terem batalhado para oferecer qualidade de vida, Renata relatou uma infância atribulada. Os irmãos mais velhos tiveram depressão no início da adolescência. De frente com o passado, a atual estudante de química da Universidade Estadual de Maringá deixou escapar que tinha de conviver na infância com aquilo que classificou como “problemas familiares”. Olhando para o espelho que reflete a garotinha que foi há mais de uma década, Renata se enxerga como uma pessoa organizada e comprometida. Diz ter tomado cuidado com as próprias atitudes. Não queria sobrecarregar os pais. “Tinha medo de ser mais um trabalhinho extra.” Frente a um tema delicado e um tanto enigmático do passado familiar, Renata teve de adquirir responsabilidade cedo, mas isso não impediu que tivesse infância completa. Quanto à responsabilidade, os pais enxergam esse amadurecimento de maneira diferente. Talvez a responsabilidade possa ser substituída pelo desenvolvimento da independência e da determinação. E a partir daí as peças que formam o quebra-cabeças do crescimento da jovem começam a se mostrar mais claras na adolescência. Com o tempo, Renata se tornou uma adolescente “alta, magrela e desengonçada”. Ainda estudante, nos tempos de colégio, não era muito estudiosa, mas foi nas salas de aula que fez muitos amigos. Apesar da delicadeza e calma que demonstra durante as conversas, com os movimentos das mãos e a própria voz, ela tem um temperamento explosivo. E talvez seja por esse motivo que marcou presença na coordenação do colégio algumas vezes. Olhando para o teto, Renata diz não se lembrar de ter sido uma aluna rebelde, mas que sempre queria bater em alguém. A frase foi dita em tom de naturalidade. Quem sabe, ironia. 52


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No entanto, José Carlos Bespalhuk confere as informações da filha. A família como um todo define o temperamento de Renata como um tanto forte. Para o pai, desde criança era teimosa e não aceitava de bom grado a imposição de regras, mas com o passar do tempo, acabou tendo que ceder. “Descobri que tenho que respeitar o espaço que ela acha que é dela”, diz o pai. Ao ouvir uma pergunta, a moça alta, de cabelos encaracolados e que tem um grande sorriso, mostra um outro lado. Renata questiona involuntariamente. Os lábios se encerram e a testa ganha três ou quatro marcas ao se expressar com os olhos. Em uma fração de segundos deixa escapar um feixe de pensamento. Ser obediente às regras familiares é comum na maioria dos lares. Antes mesmo de engatinhar, os pequenos já começam a receber os primeiros valores que os pais acreditam ser os melhores, mas as crianças crescem. Tanto em estatura quanto em racionalidade. E nesses primeiros questionamentos surgem também os primeiros conflitos. É no antagonismo que se exprimem as primeiras digitais da verdadeira identidade e os selos de teimosia. Renata prefere ver isso de outra forma. Em tom sério, diz que os pais sempre tentam mostrar aquilo que é certo e o que é errado, porém, nem sempre o que pensam bate com o que ela e os irmãos acreditam. Com o fim da adolescência se aproximando, Renata se viu cercada pela pressão que todo o estudante enfrenta. Avistava o ensino superior como trem em alta velocidade. A escolha da profissão era apenas uma consequência. Primeiramente, pensou em enveredar pela psicologia, mas a mãe teria lhe dito que ela deveria se tratar antes do curso. Mesmo sabendo que a observação não passou de brincadeira da mãe, acabou desanimando. Durante as aulas de Química do ensino médio, 53


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principalmente na frente orgânica, Renata vislumbrou uma possível afinidade com carbonos e hidrocarbonetos. Provavelmente influenciada pela empatia do professor ao amor que enxergava no olhar dele pela profissão, selou a escolha e arriscou-se nessa área. Foram quatro vestibulares, dois ainda no “terceirão”. Sem sucesso. Após concluir o ensino médio, prestou outros dois exames para a graduação em Química. No primeiro, das 21 vagas disponíveis, passou raspando e conquistou o 25º lugar. Mas, no fim de 2010, a inversão do curso de bacharelado integral para licenciatura noturna colocou a estudante no primeiro lugar entre os concorrentes. Enfim, estava dentro do mundo acadêmico. E foi na universidade que uma nova história começou. Durante o período acadêmico, entre vestibulares, livros e universidade, Renata se embalou por outros ritmos. Envolveu-se com braços e pés na dança, mas as mãos continuavam um tanto fechadas. Quem ajudou a abri-las foi a irmã, Rafaela, bióloga, que atualmente, respira ares europeus, na Alemanha. Rafaela iniciou trabalho voluntário junto de amigos para o Lar Escola, que ajuda na educação de crianças e adolescentes menos favorecidos. Daí, a ideia de convidar os irmãos para a nova empreitada. Ricardo e Renata acompanharam a irmã por um certo tempo em ações no Lar Escola. Rafaela voou. O irmão desistiu. Apegando-se às ações sociais, Renata passou a envolver-se com o voluntariado, usando o tempo disponível entre as aulas de química e as atividades de dança. No fim de 2013, resolveu procurar uma agência dos Correios para adotar uma das cartinhas para o Papai Noel, tradição de décadas no Brasil. No entanto, decepcionou-se ao ler as letras que repre54


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sentavam um sonho natalino. Para a estudante, as cartinhas não pareciam ser de alguém que realmente precisava. Desanimou, mas não deixou de procurar algo mais para preencher o vazio que o espirito natalino não saciou. Ainda naquele ano, um convite inesperado surgiu. Na tela iluminada, a barra azul do Facebook indicava uma notificação em um círculo vermelho. Lá estava a deixa para o futuro. Foi pela internet, em um grupo de rede social, que uma outra universitária buscava completar uma missão. Lá estava Natália Millaré, dando início às bases do Centro de Voluntariado Universitário, o CVU, na Cidade Canção. O grupo, “Voluntários Maringá”, já existia há um ano. Foi criado pela própria Natália. Em texto, convidou os membros para uma reunião em auditório reservado na UEM. Antes que a primeira reunião do então “pré-CVU” acontecesse, muita água rolou por baixo dessa ponte. Natália Millaré, à época, era estudante de secretariado. De Limeira, no interior de São Paulo, para Maringá, Natália sempre achou os maringaenses muito solidários. Procurando o voluntariado, a então estudante começou a trabalhar na Aiesec, instituição presente em dezenas de países que contribui para o intercâmbio voluntário. Nesse emprego, Natália tinha conhecimento sobre a atuação de ONGs em Maringá. Mais tarde, abandonou o próprio trabalho para viver uma experiência em outro país. De volta ao Brasil, Natália sentiu falta de fazer ações voluntárias. Foi aí que teve a ideia de criar o grupo no Facebook. Em um dia corriqueiro, contou a uma amiga, de Ribeirão Preto (SP), seus anseios. Por sua vez, a amiga conhecia um colega que havia fundado uma ONG. No meio de toda essa confusão e networking, Natália era indicada a um dos 55


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fundadores do CVU. De Maringá, ela conheceu de longe o trabalho do Centro que começava a se expandir pelo Brasil. Recebeu um convite para participar do encontro nacional do CVU, chamado Integra. Pensou em recusar. Por hora, não queria ser indicada a fundar uma filial da ONG em Maringá. Seria muita responsabilidade. Mas o coração falou mais alto. Sem compromissos, pegou a estrada rumo à cidade paulista. Ao chegar ao encontro, a estudante de secretariado se espantou. O CVU já contava com a abertura de uma base em Maringá. Inclusive, o nome da cidade já aparecia no mapa feito pela ONG. A responsável seria a própria Natália. Vendo o entusiasmo e a recepção de outros membros da ONG, viu-se contra a parede. Seria a primeira sede do CVU no Paraná. Àquela altura, todos no evento contavam com as mãos que surgiriam na região Sul. Ficou sem graça, mas aceitou o compromisso. Foi aí que teve a ideia de divulgar a abertura da ONG pelo Facebook. No auditório reservado por ela, 10 pessoas marcaram presença. Se isso é considerado muito ou pouco, não se sabe. Mas entre os 10 estava Renata Bespalhuk que, assim como os outros, tinha sede por ajudar. Natália tinha a missão de explicar como funcionava o CVU, lançando a missão e os ideais do Centro. Era apenas o primeiro passo da organização em Maringá. Todos pareceram interessados. Mas já na segunda reunião, nem todos voltaram. Já no segundo encontro, o CVU Maringá estipulou uma ação piloto. Em época de Natal, a equipe colocou como meta arrecadar 50 panetones que seriam distribuídos para crianças carentes. A meta era simbólica. O Centro estava apenas se ajustando, mas as mãos trabalharam com firmeza. Na época, Renata, junto dos outros membros, saiu de porta em porta e 56


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pediu aos amigos. As mãos foram se abrindo. A arrecadação bateu, dobrou e quadruplicou a meta. Cerca de 200 panetones foram entregues. Natália se espantou mais uma vez. Em 2014, o grupo foi se estruturando melhor. A cada passo que dava, o CVU ia se consolidando e garantindo espaço em Maringá. Sempre frequente nas ações da ONG, Renata também cresceu junto com o grupo. Já no primeiro ano conquistou o primeiro cargo de liderança. Tornou-se Diretora de Cultura Voluntária. Para ela, o desenvolvimento do CVU teve pontos positivos e negativos. Criticou a grande evasão de membros da ONG no decorrer das ações. A desistência de membros “temporários” sobrecarregava outros que queriam a manutenção das atividades do CVU. “O pessoal tem a visão que trabalho voluntário não exige responsabilidade. Na verdade, você precisa, sim, de um pouco de dedicação.” Além de Maringá, o Centro de Voluntariado Universitário está presente em outras oito cidades: Bauru, Franca, Limeira, Ribeirão Preto, São Bernardo do Campo, São Carlos (SP), Uberaba e Uberlândia (MG). Em sua formação original, foi fundado em abril de 2011 pelos então estudantes universitários Daniel Bellísimo e Milton de Lázaro Neto, no Estado de São Paulo. A ideia da criação de um centro de voluntariado se deu a partir da vontade de se fazer uma ponte entre pessoas que querem ser voluntárias e instituições que precisam de ajuda. Como valores, o Centro prega a proatividade, o respeito, a abnegação, o comprometimento, a organização, a colaboração e o amor. As bases do CVU se encontram em grandes reuniões chamadas de Integra. Nessas reuniões é que se discutem as ações promovidas pelos centros espalhados pelo País. Porém, o Integra vai além de apenas uma reunião geral. Nele também 57


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são feitas dinâmicas e outros exercícios que buscam despertar os membros do Centro para a positividade e a necessidade de prestar atenção na vida e no cuidado com as pessoas. Há momentos de reflexão e treinamento. A mente começa a trabalhar junto com as batidas do coração. Para Renata, o Integra representa uma troca de boas energias. É uma viagem que contribui para o autoconhecimento. Na Cidade Canção, a história do CVU veio se transformando com o tempo. A fundadora Natália Millaré concluiu o curso e voltou a São Paulo. Renata assumiu, então, a presidência do Centro, que se alterna em mandatos. Mas, a estudante de química foi além. Atualmente, não é só para o CVU que executa trabalhos voluntários. Renata tem mãos dispostas para o que der e vier. Um exemplo disso foi a ação promovida pela ONG Teto, em Curitiba. Enquanto o CVU firmava parceria com a Associação Haitiana de Maringá, Renata conheceu uma amiga que estava arrecadando dinheiro para a construção de casas destinadas a famílias carentes. Para que as paredes fossem erguidas na capital paranaense, R$ 6 mil eram necessários. A partir daí, iniciou-se o desafio. Com a venda de trufas de chocolate, entre outras promoções, levantou-se a quantia. Mas além do dinheiro, era preciso pessoas que topassem o desafio de pôr a mão na massa. Renata aceitou. Fez um curso rápido para aprender como a construção das casas funcionava e caiu na estrada rumo à capital. A viagem foi feita durante um fim de semana de dezembro de 2015. Em Curitiba, as salas de aulas de colégios se tornaram quartos improvisados. Lá, voluntários dormiam, cozinhavam com alimentos doados e ajudavam com a limpeza. Na comunidade carente, as mãos montavam a casa de apenas 58


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18 metros quadrados. Para quem não tem nada, o pequeno cômodo já representa uma vitória. Renata conta que, durante sua curta passagem pela construção, muito ouviu. As crianças que brincavam entre as construções se impressionavam com o mutirão. A estudante não se esquece de uma pequena garotinha que disse que os voluntários estavam construindo um castelo. O conto de fadas da realidade não possuía bruxas, nem abóboras, muito menos príncipes encantados, mas trazia personagens que tinham um bom enredo. São Marias e Josés que enfrentam na pele o dia a dia da pobreza. Verdadeiros heróis. Renata se lembra que, até então, nunca havia pegado direito num martelo. Com dificuldades, lembrou-se do nome de uma das ferramentas que usou. Era uma serra. As casas construídas pela ONG Teto são feitas de painéis pré-fabricados. Logo, nenhum voluntário precisou utilizar materiais elétricos. Assim como toda a casa, têm telhado, janelas e portas. Um pequeno e acolhedor espaço que protege da chuva e do frio. Abriga corações felizes, que também ajudaram na construção da própria casa. Renata se recorda do sol forte e dos momentos de desânimo. O trabalho não era tão simples. Mas os voluntários, em efeito cascata, gritavam para se manter em pé. “Começou, não para.” Renata elegeu o trabalho em Curitiba como uma das melhores experiências que teve. E não é para menos. É perceptível no sorriso e nos olhos da moça como se orgulha do trabalho social. Relatando tudo o que viveu, parece que se encontrou com uma realidade ainda mais triste do que jamais vivenciara. Lembra-se que uma das filhas de uma família simples contou que não acreditava que aquilo de fato estava se erguendo diante dos próprios olhos. Só iria cair em si quando 59


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as casas fossem entregues e visse a própria mãe dentro da residência. Ao cair da tarde de um domingo em Curitiba, Renata conta que os voluntários foram convidados pelas famílias para uma visita. Em suas recordações lembra que, apesar de ter construído casas, descontruiu muitos pensamentos e preconceitos que tinha. Começando pelas crianças. A voluntária sempre achou crianças irritantes. Não gostava da presença dos pequenos. Mas foi durante as ações que começou a mudar de opinião. Enxergou a pureza e a doçura. Viu a simplicidade que se esconde por trás de um pequeno rostinho. Muita coisa mudou dentro dela após o início dos trabalhos voluntários. Até mesmo o próprio visual. O cabelo longo e alisado deu lugar a um corte mais prático. Agora, a estudante assume os cachos, que caem graciosamente até os ombros, dando destaque ao rosto fino. Para ela, o novo cabelo é símbolo de desapego e liberdade. Renata diz nunca ter sido apegada ao dinheiro. Sonhava, sim, com uma boa qualidade de vida, mas, diferentemente de antes, diz não se encaixar mais no sistema atual. Se os pais deixassem, sairia viajando pelo mundo e tentaria contribuir de alguma forma nas cidades onde desembarcasse. Trabalho braçal ou conhecimento. Pode ser apenas mais um sonho jovem que, nos primeiros passos da vida, quer desbravar o mundo. Mas enquanto o avião não decola, Renata abre os braços onde pode. A amiga Milena Fernandes conhece Renata antes mesmo da criação do CVU Maringá. Hoje, trabalham juntas no voluntariado. Milena diz que a amiga sempre foi muito sensível àquilo que acontece ao redor dela. Tanto em aspectos pessoais, quanto do mundo externo. “Ela é um pouco tímida em algumas situações, te ouve, presta atenção em você, 60


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consegue estar de corpo e alma, quando quer algo. Sempre foi muito sincera, difícil esconder algum sentimento, deixa transparecer aquilo que sente.” Milena acredita que quando Renata guarda algum sentimento ou problema acaba sofrendo sozinha, mas tenta resolvê-lo. Charlles Souza, outro amigo de Renata, conheceu a voluntária em uma conversa informal. Souza desenvolve um projeto de futsal com adolescentes, o “Futebol e Cidadania” e ambos trocam experiências sobre os projetos voluntários que tocam. Driblando as dificuldades, Souza define Renata como uma pessoa que tem o coração do tamanho do mundo. “A Renata é uma pessoa especial e, se for necessário, tira dela para ajudar o próximo.” Frente a frente com a Renata do ensino médio, a universitária diz hoje já não se interessar tanto pela Química, mas vai concluir o curso. “A vida tem dessas.” Ela, que nos últimos anos aprendeu a somar e, principalmente, dividir, acha agora a profissão de químico muito individualista. Hoje, a jovem pensa em trocar as exatas pelas humanidades. Pensa em continuar na dança. A avó, que também adora uma valsa, apoia. “Ela dança muito bem”, insiste. Diz que a neta seria uma ótima professora de dança. Dona Salvelina representa um grande pilar na vida de Renata. Sempre esteve ao lado da neta, inclusive em suas aventuras. A avó foi a primeira a ficar sabendo do desejo da neta de fazer uma tatuagem. “Se é do seu gosto…” A mãe não gostou nada da ideia. A bailarina que hoje marca as costas de Renata foi motivo de conflito familiar. Dona Maria de Fátima, mãe de Renata, diz ter um relacionamento aberto com a filha. Conversam sobre tudo. No entanto, como toda mãe, preocupa-se com o futuro da jovem. 61


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Ela não a apoia nas atividades de voluntariado. Admite ser um trabalho bonito e necessário, mas diz que a filha se preocupa demais com os outros e esquece de si própria. Apontando para o temperamento forte de Renata, diz que ela se estressa demais com alguns acontecimentos dentro do próprio CVU, enquanto o tempo passa e a carreira profissional vai ficando de lado. Maria de Fátima chegou a ser convidada pela filha para estar presente em uma das ações sociais, porém não aceitou. “Não faz o perfil dela”, rebate Renata. A dona de casa concorda que há falta de iniciativa, mas diz ajudar pessoas que precisam sempre que alguém pede. O pai, José Carlos Bespalhuk, assim como a avó, apoia Renata nas ações de voluntariado. A avó se diz tocada pelo trabalho da neta. “Eu a apoio a fazer isso, acho bonito. Mexe um pouco com a gente.” Dentro daquele lar, todos concordam que, de uns anos para cá, Renata mudou. E não foi pouco. Segundo os familiares, ela está mais compreensiva. Citam que a jovem parecia ser muito revoltada. Dona Salvelina relata que a mãe de Renata, em conversa, dizia não saber mais o que fazer com a filha. Para a avó, de vez em quando, a neta tomava atitudes grosseiras frente aos pais, sem necessidade, mas há algum tempo isso vem mudando. Para eles, graças ao voluntariado. Dona Maria de Fátima acha que a mudança de Renata também se deve a outros fatores. A mãe cita uma viagem feita à Alemanha, quando todos da família foram visitar Rafaela. Renata foi a única a ficar. Ficou três semanas sozinha em casa. Cuidou das obrigações diárias, além da faculdade e das ações do CVU. O pai também notou mudança no comportamento e na independência da filha após o retorno para casa. Além disso, para a mãe, Renata passou a valorizar mais 62


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aquilo que tem, e isso só aconteceu após conhecer a realidade de crianças e famílias pobres. De longe, a irmã Rafaela não consegue notar as diferenças completamente. As irmãs, na infância, sempre dividiram o mesmo quarto. Rafaela diz que os conflitos e briguinhas de crianças são normais em toda família, mas que tiraram isso “de letra”. Quanto ao talento da irmã mais nova para ajudar o próximo, não acredita ter sido uma influência direta, uma vez que Rafaela foi quem inseriu Renata nas ações do Lar Escola. Acha que apenas ajudou nos primeiros passos. “É a primeira vez que eu vejo que ela realmente encontrou algo que ama de paixão e não mede esforços para fazer isso acontecer.” Mesmo estando a milhares de quilômetros de distância, Rafaela cita uma frase parecida com a da mãe. “Talvez ela tenha desenvolvido mais o sentimento de gratidão pela própria vida e de aceitação da sua realidade ou problemas e compaixão pelo próximo.” Rafaela acha que, antes, Renata não sabia lidar com os próprios sentimentos. Quiçá, a irmã que hoje vive na Alemanha seja, de fato, uma das pessoas que mais conhecem a caçula da família. Renata se descreve exatamente como uma pessoa que não gosta de transparecer as emoções. Ela não sabe o motivo que a levou ter essa característica. “Talvez seja frescura minha”, diz, ou até mesmo os momentos na infância. Afirma estar tentando mudar isso. Não parece encarar o defeito ou qualidade de maneira positiva. Isso faz transparecer, às vezes, uma pessoa fria. Mas Renata já não consegue esconder tão bem as emoções. E se as armaduras tentam esconder uma mulher cheia de sentimentos, há ocasiões em que todo o aço desaba e escorre como água. O dia amanheceu nublado. Algumas gotas insistiam em 63


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cair do céu. O vento forte e gelado não era nada compatível com a Primavera, que acabara de chegar. Aos poucos, o sol tímido intimidou também as nuvens. O azul começou a ganhar espaço. Finalmente, a manhã recebia cores. Muito além dos tons que um arco-íris pode oferecer. A estação das flores também desembarcou na Rua das Rosas, no Jardim Maravilha, em Maringá. Lá estava a sede da Casa de Missão Amor Gratuito, que acolhe gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. São sobreviventes da incompreensão e do preconceito que começou dentro de suas próprias casas. As folhas verdes ainda balançavam com a brisa gélida que soprava. Enquanto o relógio não indicava o horário marcado, um grupo de jovens reunia-se em frente a uma casa branca. A residência parecia ser apenas mais um abrigo comum, entre tantos no bairro. Conforme todos foram chegando, a casa foi aberta. Com muita calma, os jovens entraram, um a um, na varanda que dava acesso a uma edícula, nos fundos do terreno. Ali, os moradores esperavam ansiosamente a visita dominical. Apesar de tudo, todos se mostraram tímidos. Alguns apreensivos. Ninguém sabia o que iria acontecer naquela manhã. Ouve-se uma voz. Pede que todos façam uma roda para quebrar o gelo e uma das jovens que visita a casa começa a falar algumas palavras, seguidas de gestos. Ali estavam os valores do CVU, expressos em letras e movimento. A jovem, estudante de direito, chama-se Carol. Ela, então, desafia todos a repetirem as palavras e os gestos por ela feitos. E assim, rompem-se as barreiras e até o frio que acompanha a manhã de domingo parece perder a força. Renata, que está entre os jovens visitantes, mostra-se muito animada ao ver cada gesto se realizando. Vestindo je64


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ans e um moletom masculino improvisado, bem acima do tamanho dela, a jovem participa e acompanha a reação de cada um. A timidez é demonstrada pelas mãos unidas à frente da cintura. Parece estar em oração. Aos poucos, cada um se apresenta. Dentro da casa, todos os moradores, apesar de diferentes, têm histórias em comum. As portas de onde vieram se fecharam e na rua não tinham para onde ir. Julgados pelo tradicionalismo medieval, todos, em algum momento, sentiram-se abandonados. Mas a casa branca da Rua das Rosas chama-se Amor Gratuito. E lá todos são muito bem-vindos. A Casa de Missão Amor Gratuito é a única no Brasil a acolher exclusivamente pessoas da comunidade LGBT expulsas de casa. No novo lar, os moradores buscam uma nova oportunidade. Durante a apresentação individual, cada um pôde contar um pouco da própria história. Um novelo cor-de-rosa é jogado pelos ares. Cada participante segura um pedacinho da lã. Ao fim, uma grande teia se forma. Todos estão conectados. Renata, que ouvia a tudo junto dos colegas, diz uma palavra que representa muito bem o momento: família. A voz, meio embargada, é incompatível com a imagem construída pelos que se dispõem a ajudar. Quando ela precisou erguer a armadura para não demonstrar sentimentos, deixou uma lágrima cair e se desculpou. Ao desfazer a teia, todos recebem crachás. Agora, o nome de cada um estampa o próprio peito. Todos também ganham papel e caneta, além de um balão. O objetivo é transcrever em palavras, desejos que estão no coração. Da mão de um dos moradores, o pequeno papel é dobrado e depositado dentro do balão, ainda vazio. Segura o bico, enche os pulmões de ar e esvazia-os totalmente dentro da bexiga amarela. Aos poucos, todos os balões estão cheios, todos se levantam 65


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e vão até a varanda da casa. A regra é simples: os balões não podem cair no chão. Uma das participantes, sem balão, retira alguém da brincadeira. É a quem deve confiar a própria bexiga. Com uma explosão de cores no ar, as risadas ecoam pelo espaço fechado. A área se torna pequena para os passos apressados que não deixam as bexigas cair. Aos poucos, a leveza do movimento quase artístico dos balões começa a pesar. Com membros abandonando a brincadeira, os que agora restam, devem manter dois, três ou até quatro balões simultaneamente no ar. Paradoxalmente, as bexigas são pesadas demais para o movimento braçal. Quando todas já estão no chão, cada um escolhe um balão, que não seja seu. A ordem é estourar. O barulho ensurdecedor da liberdade do ar ecoa pela área. Livres também estão os pequenos papeis que cada balão guarda cuidadosamente. Cada um lê o pequeno texto. Renata, ainda vestida com o moletom, apesar do calor que a atividade proporcionou a todos, abre o papel amassado e decifra a mensagem escrita em letras finas e altas. O português não está ortograficamente correto, mas a mensagem é comovente. E não há corretor que possa julgar o conteúdo dessas palavras: “Pesso a Deus 1ª mente que ajude ao Reverendo Celio Camargo nessa luta e em seu estado de saúde; Que a Cassa de Missão fique livre de discórdia e seje uma família unida e em fim que Deus envie mais colaboradores.” Entre dinâmicas, risos e palavras de esperança, a manhã termina. Sentados ao chão coberto com um azulejo branco, cada um relata um pouco da experiência. “Entrei pensando em fazer pelos outros, mas recebo muito”, diz uma jovem que está há pouco no CVU. Renata é uma das últimas a discursar. 66


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Durante toda a manhã, economizou palavras, mas esbanjou sorrisos. Quando solicitada ao uso da voz, emociona-se novamente. “Ai, que sacanagem.” Todos riram. Ao fim, uma das missionárias, transexual, que ajuda na casa, pede um momento de oração. Uma mão virada para baixo, para entregar, e outra virada para cima, para receber. E assim, de mãos dadas, rezam pela paz. Reginaldo Aparecido de Oliveira, que ajuda na Casa de Missão, acredita que através do diálogo e das brincadeiras, o trabalho do CVU ajuda os “feridos pela discriminação” a terem de volta um relacionamento com a sociedade. Como bom observador, Oliveira percebeu que Renata se deixou levar pela emoção durante o encontro. “Ela estava muito comovida, mas é uma pessoa muito carinhosa. Para mim, foi um trabalho maravilhoso. Não vejo a hora da próxima visita.” No abraço apertado de despedida, os moradores da Amor Gratuito pedem para que o grupo volte outras vezes. Já do outro lado da rua, os membros do CVU se reúnem. Avaliam o próprio trabalho, relatam o receio do uso de palavras erradas. Chegam à conclusão que precisam debater mais vezes temas delicados, como o preconceito, para não espalhar um discurso ofensivo de forma involuntária. Enfim, despedem-se, cada um segue para uma direção. Antes de entrar no carro, uma das jovens se vira para dar outro adeus. Com a camiseta do CVU na cor preta, várias palavras formam uma árvore. Dentre ao emaranhado de letras aparece o enigma: ubuntu. Naquele dia, na tribo africana, o antropólogo que vinha de longe compreendeu o sentido da palavra nascida no Continente Mãe. Ubuntu significa “eu sou porque nós somos”. O sentido da existência na presença do próximo. A palavra de 67


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apenas seis letras representa uma filosofia de vida. Opõe-se ao individualismo, condenado pelas crianças que dividiram os doces do cesto. Ubuntu compreende a fraternidade e o amor. E por esse motivo, também é um dos símbolos do CVU, do trabalho da jovem Renata. Talvez, por essa razão, ela já não seja mais a mesma de antes. A personalidade pode até continuar forte, mas o temperamento explosivo é amenizado dentro de casa. Assim como a estudante aprendeu, a família, mesmo acompanhando as ações com certo distanciamento, também parece crescer com a filha. Enquanto o pai de Renata cita um trecho bíblico sobre o respeito, a mãe pede a palavra. “Eu tenho uma coisa pra falar”, pede, insistentemente. Ela lamenta uma possível ausência durante o crescimento dos filhos. Avalia que, talvez, não tenha oferecido todo o amor e o carinho que poderia dar. Culpa a rotina. Seguindo o marido José Carlos, dona Maria de Fátima diz se sentir orgulhosa dos filhos. Concorda com a frase dele: “Sinto orgulho dos filhos que a gente criou.” Adentrando no contexto familiar, percebe-se que esse núcleo reproduz o enredo da maioria dos lares. Como toda família, essa também não é perfeita. Tem conflitos, intimidades e segredos. Passou por dificuldades e dores, assim como viveu momentos alegres e de muita compaixão. E tudo aquilo que se vive num passado, que não parece tão distante, é difícil de ser revelado. Ainda mais para um desconhecido. Na viagem que fez no tempo, a mãe de Renata lembra dos conflitos com a filha. Ao gritar, outrora, que era fruto de uma gravidez indesejada e, por isso, menos amada, o nervosismo de Maria de Fátima ultrapassou o limite da pele. A mão se ergueu. Cortando o ar, a mão materna parou no rosto 68


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da filha. O arrependimento bateu. Hoje, Renata confessa que usava o argumento contra a mãe nos momentos de raiva. Mas talvez o tapa maior tenha sido dado por meio de palavras. “O importante é que veio de um ato de amor.” Após dizer a frase que retirou de uma de suas lembranças, Renata olhou para baixo e pareceu nostálgica. Encontrou razão no que havia dito. Bem longe daqui, quiçá Rafaela em um momento de inspiração, tenha desvendado o enigma que preenche essa história e a de outras muitas que ocupam o roteiro da vida. “Se você ajuda alguém, você automaticamente se ajuda. Se você ama alguém, você também está amando a si.” Desde criança, Renata aprendeu ajudar e, também, a amar. Mas hoje, com a experiência que vai adquirindo, além de ajudar aos outros, aprendeu a se ajudar e também a se amar. E é assim que se desenvolve diariamente. Hoje não se sente vazia. Preenche-se no amor que, para ela, está no trabalho, nos amigos e na própria família.

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10 de setembro de 2016. O relógio tiquetaqueava devagar. Os ponteiros marcavam 6h. Ainda não era a hora de acordar, mas levantou-se. No chuveiro, a água corria pela cabeça e a cada gota uma nova lembrança. Finalmente o grande dia havia chegado. Vestiu a melhor roupa do armário e os sapatos mais brilhantes. O perfume preferido flutuava ao seu redor. No espelho, a imagem do jovem garoto afastava-se para dar lugar ao futuro homem que subiria ao altar. Dirigiu-se para a igreja. Freia. Acelera. Troca de marcha. Não se sentiu nervoso, o coração batia sossegado no peito. Os olhos semicerravam num sorriso enquanto via a hora passar. Ajoelhou-se em frente ao altar e rezou. Pouco a pouco os convidados foram chegando. Tudo estava lindo. Ela estava linda. Os passos lentos arrastavam a cauda do vestido pela igreja. Agora estavam juntos, lado a lado, esperando pelo “sim”. Sentiram-se um no outro. Os olhares se encontravam, a respiração descompassava e a cada palavra despejavam amor. A música cantarolada por anjos dava início ao recente futuro e guiava-os para a vida que tanto haviam procurado. Juntos viveram esse amor. Compartilharam segredos em silêncio e, feito sopro no ar, beijaram-se. Leonardo Vedovoto, um menino-homem, casou-se. 73


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Há 19 anos uma criança de choro sereno nascia. Nos braços da mãe ganhou o mundo e, mesmo sem ter consciência de quem era, a fez apaixonar-se pelo seu sorriso sem dentes. Nem o mais velho, tampouco o mais novo. Sentado numa cadeira de madeira, ouvindo a chuva cair lá fora, ele viu a infância recente brincar na frente dos seus olhos. O segundo filho de Daniela Silva Vedovoto e Leonildo Vedovoto, dividiu a infância com outras três crianças. Maria Gabriela, Leonardo, Isabela e Pedro criaram um mundo para eles e lá, naquele pedacinho de universo, cresceram. Quase não tiveram tempo para brigar, estavam ocupados vivendo a fantasia de serem pequenos. Quase não tiveram tempo. Brigaram. Não houve socos ou palavrões, mas havia gritos e baderna. Foram crianças disputando o amor dos pais. Dividiram segredos e brincadeiras, mas não dividiram as broncas. Essas sobravam para o Leonardo. Calmo, ele não gritava com os pais, nem batia a porta do quarto quando chamavam sua atenção. O menino loiro e alto para a sua idade, simplesmente, desmaiava. O ar dos pulmões sumia e, antes de dar lugar à raiva ou ao choro, os olhos fechavam e tudo apagava. “Nunca conseguia chorar”. O desmaio sempre chegava primeiro. A verdade é que ninguém sabia motivo dos “apagões”, nunca entenderam o que acontecia com ele. Também não tiveram tempo de descobrir. Leonardo cresceu antes disso e o mistério sobre os desmaios desapareceu, dando lugar ao sorriso com gosto de passado. Na cafeteria, quase vazia, ele ria sozinho das próprias lembranças. “Eu falava muito alto, minha mãe até me levou no médico para ver se eu não tinha problema.” E é claro que não tinha. Leonardo é apenas descendente de italianos e espalha, em alto e bom som, a alegria que sente. De criança 74


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tornou-se adolescente, mas não um menino comum. O menino-homem não se preocupava com quantas meninas poderia beijar, nem mesmo desejava poder sair à noite e tomar uma cerveja. Um pequeno (grande) orgulho para a mãe. “Ele sempre foi uma criança diferente das outras, até mesmo dos irmãos”. O diferente, é claro, nem sempre é ruim. O universo de fantasia das crianças Vedovoto diminuiu. Já não brincavam de correr no quintal, nem subiam em árvores para ficar mais perto do céu. Os irmãos cresceram juntos e juntos continuaram para poder ajudar o pai no novo emprego: confeccionar edredom para caixão. Juntos, pais e filhos produzem as mantas que cobrem os mortos durante os velórios. Cada um tem a sua própria função. Uns recortam, outros costuram e Leonardo prega o papelão para deixar o tecido trabalhado. O serviço que começou como uma forma de ajudar a pagar as contas, hoje é a principal renda da casa. Olhar os edredons empilhados num canto do quintal não causa estranheza para eles. Nunca pararam para pensar que aquele tecido faria parte de um momento de tristeza. “Enquanto a gente está fazendo, não temos dimensão do que vai ser aquilo. No início é apenas tecido, linha e papelão.” A verdade é que o diferente tornou-se parte da rotina da família, mas não dos que visitam a casa. Passar pela pilha de edredons e não se lembrar de um velório é impossível. Um arrepio corre devagar a espinha. Não, não a deles. “Meu amigo mesmo nem dormiu quando soube o que fazíamos, porque ficou pensando nos mortos.” A família, muito unida e religiosa, criou Leonardo dentro da igreja e lhe deixou de herança o amor pelo próximo. “Eu sonhava em ser padre.” O desejo ficou guardado num 75


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canto daquele passado e a vida, essa que surpreende a cada segundo, deu a Leonardo uma nova razão para sentir o seu coração bater: Ana Maria de Moura. O primeiro encontro com Ana não foi como o esperado. Eles estavam em um retiro da igreja e não se conheciam. Leonardo passou três noites olhando a maneira como o vento bagunçava o cabelo dela. Decorou a forma como os olhos dela se mexiam quando riam e sonhou andar de mãos dadas. Não se esqueceu dos dedos que tocavam o teclado, nem da voz doce que percorria no salão. Naquele retiro, ele sonhou com Ana. Nada disso aconteceu. Leonardo não a chamou para conversar, tampouco foi sutil no primeiro encontro. Era hora de ir embora e ele sentia que sua chance escorria pelos dedos. Não podia deixar escapar a oportunidade de dizer o quanto ela era linda. Treinou mentalmente como diria e ensaiou o sorriso diversas vezes. Nada saiu como o planejado. Ela vinha em sua direção no corredor e tudo ao redor apagava-se. As paredes perderam a cor e era como se mais ninguém respirasse. Poderia ter sido o momento perfeito, mas ainda não era a hora de apaixonar-se. Ele andou a passos largos na direção dela e sem que Ana pudesse esperar, a abraçou. Não um abraço longo e tranquilo, e sim, um abraço apertado, desesperado e sufocante. Havia muito sendo dito naquele momento. Outra vez, poderia ter sido perfeito. Leonardo não conseguiu controlar o coração batendo frenético e gritou. “Você é linda.” Talvez, se ele tivesse esperado o coração dela começar a bater no mesmo ritmo descompassado do seu, a situação fosse diferente. Mas não esperou. Ele gritou e correu. Deixou-a no meio do corredor e fez os próprios pés andarem na mesma velocidade 76


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em que o peito arfava. Pronto. Ele havia dito o que estava planejando. Não da mesma forma como sonhou durante três noites, nem da maneira tradicional e apaixonada que esperava. Leonardo gritou, mas aquele grito ainda ecoava em Ana. Bem no fundo do peito, eles sabiam que anos depois aquele momento seria motivo para rir e para lembrar que desde o início estavam juntos. Leonardo carrega no peito uma cruz e na blusa uma imagem. Sempre esteve envolvido com a religião e não tem vergonha de mostrar sua fé para quem quer que seja. Não falta a uma missa sequer, reza ajoelhado em frente à imagem de Nossa Senhora e coloca nas mãos de Deus todos os seus dias. “A vontade Dele é muito maior do que a minha.” E quando se crê, é mesmo. O ano era 2015. Época de Carnaval e, diferentemente dos meninos da sua idade, Leonardo não queria ir para festas. Ele queria aproveitar esses dias para rezar. Os amigos da igreja preparavam-se para ir a São Paulo, onde ficariam em um retiro durante o Carnaval. Cada um pagaria uma parte da viagem e ele iria de graça. Tinha tudo para dar certo, agora era só pedir para a dona Daniela deixar. “Senhor, se for da Sua vontade que eu vá, que minha mãe me deixe ir de primeira.” Ela não deixou. Com medo da estrada movimentava pelo feriado, Daniela foi resoluta: “não”. Resmungou, relutou, mas aceitou. Afinal, esse não seria o único retiro acontecendo no País. Era uma noite de quinta-feira, quando a vida, outra vez, surpreendeu Leonardo. Ele não tinha feito a inscrição, não tinha dinheiro para pagar o retiro e faltavam apenas algumas horas para a manhã de sexta. Foi à igreja fazer uma adoração e novamente pediu para que Deus organizasse os seus dias. 77


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Como de costume, saiu de lá e foi à missa. Sentou-se com os amigos e começou a conversar. Ali, tudo deu certo. Disse que queria ir ao retiro da Renovação Carismática e lamentou não ter se programado antes. “Você está sentado atrás do coordenador do retiro, fala com ele.” Leonardo ouviu o amigo e falou com o responsável pelo evento da igreja. Quando é para ser, tudo funciona corretamente. A inscrição custava R$ 40, muito mais do que ele poderia pagar. Por um momento, imaginou que não era para ele ir e conformou-se. Por um momento, apenas. “Rapaz, que sorte. Eu acabei de receber.” O amigo tirou R$ 50 da carteira e deu para Leonardo. “Você me paga quando puder.” Ele pediu uma ajuda a Deus para poder ir e recebeu três confirmações. A terceira? Um colega passou por ele e, sem saber o que estava acontecendo, disse que Leonardo deveria ir ao retiro. Tudo estava preparado para que ele conhecesse a mulher de sua vida. E ele sabia. Na sexta-feira pela manhã foi à missa e recebeu uma graça. Um vento silencioso cantarolava nos seus ouvidos que nesse retiro ele conheceria o amor que faria o seu peito inflar. “Quanta bobeira.” Leonardo não imaginava que aquele sopro no ar dizia a verdade. Comprometeu-se a rezar mil Ave Marias, e para conseguir, acordou às três da manhã no sábado. 14 de fevereiro de 2015. Esse era o dia em que, de fato, conheceria Ana. Foi à missa que teria naquela noite e enquanto rezava recebeu outra graça. A voz que ecoava em sua cabeça fazia o coração acelerar. “O último terço que você rezar essa noite vai ser com a mulher da sua vida.” Quase não acreditou, mas voltou ao retiro a passos de formiga, porque queria deixar um único terço para o fim daquele sábado. Antes de 78


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jantar, encontrou os amigos e, enquanto conversava, viu Ana caminhando em sua direção. Ela se sentou perto da roda e as lembranças os levaram de volta a 2013, para o dia em que o estranho abraço aconteceu. Dividiram os sonhos do futuro e descobriram as ideias em comum. Olharam-se. Leonardo, falante, contou que sabia rezar Ave Maria em latim e que sonhava com o dia em que encontraria alguém para fazer isso com ele. Ana sorriu. É claro que ela sabia. Ali, ele sentiu-se ainda mais próximo de encontrar o seu amor. Jantaram, mas não conversaram. Meia-noite. “Ana, você já rezou o terço hoje?.” Ela não havia rezado. Ajoelharam-se diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima e oraram. A cada prece, agradeceu pela vida que tinha. Sentiu-se grato por terminar o terço ao lado da menina com quem sonhava. Não, ele não se esqueceu que queria ser padre. Só que, naquele momento, ser padre fazia parte do passado. Agora, Leonardo sonhava com os olhos pequenos de Ana e com o sorriso infantil que dançava em um rosto magro. Outra vez, dois anos depois, Leonardo a abraçou. Segurou suas pernas num abraço apertado e deixou extravasar o amor que sentia. Aquela noite foi a primeira de muitas outras que compartilhariam. “É a mulher da minha vida.” Era o último dia para impressioná-la. Mas não conseguiu. Por um instante viu sua chance sumir de perto dos seus olhos, na mesma velocidade em que a voz desaparecia. Leonardo estava completamente rouco. Na roda com os amigos, ele tentou conversar. Sem sucesso. Desistiu. Mas Ana não queria deixa-lo de fora e deu a ele a solução: “por que você não fala no meu ouvido e eu falo para as pessoas o que você está dizendo?”. Era tudo o que ele precisava e queria: falar no ouvido de Ana. Escolheu as melhores frases e fez os aponta79


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mentos mais inteligentes. Conquistou, para si, um pedaço do coração de Ana. Assistiram a missa juntos. Lado a lado. Não poderiam fazer o retiro durar para sempre, precisavam ir embora. Enquanto Ana se arrumava para voltar para casa com uma amiga, Leonardo encontrava um jeito de mostrar a ela o que sentia. Na mão, duas rosas: uma vermelha e uma branca. Ele não sabia, mas Ana também pedia por um amor. Tudo estava combinado com Nossa Senhora. “Quando o meu marido aparecer, ele vai me presentear com uma rosa branca.” Leonardo estendeu a mão e, antes que pudesse decidir qual daria a Ana, a amiga pegou a vermelha. A rosa branca separava os dois. Ela sabia. Ele não. “Leonardo é o amor da minha vida.” Foram embora e deixaram um com o outro, um pedaço daquele amor. Um ano e três meses depois, noivaram. Sempre rezaram com essa intenção. Sabiam que estavam destinados. “Que Nossa Senhora movesse os ‘pauzinhos’ para que a gente pudesse se casar, mas que, se necessário, ela movesse as colunas no céu para que fosse o quanto antes.” E moveu. Ela colocou no caminho deles, o monsenhor João Cla Dias Scognamiglio. Leonardo não hesitou, nem por um segundo, e, enfático explicou que “quando uma pessoa santa te orienta, você não deve temer em seguir”. Ouviram cada um dos conselhos do Monsenhor. Leonardo trancou a faculdade de Psicologia, arrumou um emprego e em dois meses, tudo se ajeitou. Com medo dos pais de Ana não deixarem que se casassem, deram entrada nos documentos do cartório escondido deles. Sentiam-se culpados por não contarem a verdade. O peito apertava a cada mentira, as mãos suavam frio. Não podiam continuar escondendo que se casariam. Sentados no banco 80


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do carro, pediram para que Deus cuidasse de cada palavra dita e, de mãos dadas, entraram na casa dos pais. Foi muito mais fácil do que imaginavam. “Não criei os meus filhos para mim, e se Nossa Senhora quer assim, que seja”, decretou Madalena, mãe de Ana. O peso que carregavam nos ombros caiu e, finalmente, puderam respirar tranquilamente. Tudo o que precisavam para se casar, eles conseguiram. De um pai, o carro. De outro, a casa. Dos amigos e familiares, ganharam todos os móveis e eletrodomésticos. Não poderiam pagar para ter uma festa, mas tiveram. Tudo, absolutamente tudo, lhes foi doado. “Eles foram abençoados”, disse a mãe. Casaram-se numa manhã de sábado. Estavam lindos e completamente apaixonados. Olhavam-se com amor. Amavam-se em cada olhar. Disseram o “sim” e sentiram que viviam um no peito do outro. “Eu me senti completa naquela manhã”, derreteu-se Ana. Leonardo suspira sempre que fala da mulher. Os olhos não escondem o amor entre os dois. Com as mãos sobre a mesa e a família ao seu redor, ele se lembra de Amauri, um homem que lhe mostrou como amar o próximo. Toda manhã entrava no carro e ia para o colégio. Amauri sempre sentado no chão naquele caminho. Sujo e com fome. Morava na rua havia anos e só precisava de atenção. O menino-homem não podia ficar indiferente. Por vezes comprou o café da manhã de Amauri. Queria fazer mais: precisava levá-lo para casa. Não conseguiu. Era noite de Natal, quando Leonardo saiu com o carro procurando Amauri. A ceia estava farta e havia lugar para mais um na mesa. Rodaram a cidade e não o encontram. Frustrado, voltou para casa, mas não se esqueceu de Amauri. “Você tem tantas coisas. Não tem como dormir tranquilo 81


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pensando naqueles que não têm nada.” E Leonardo não conseguiu dormir. Nas noites em que chovia ou fazia frio, pensava nas pessoas que estavam na rua, que sentiam o peso da noite. Era escuro, frio e perigoso. Tinham fome, medo e sede. Dona Daniela não costumava comprar o jornal, mas nas linhas impressas no papel, uma notícia chamou a atenção. Amauri tinha morrido. Não havia nome e nenhuma família tentou encontrá-lo. Morreu nas ruas, sozinho. Leonardo culpou-se por não ter feito mais e sentiu a morte de Amauri como se morresse um amigo. “Com ele aconteceu, mas com os outros não vai mais acontecer. Eu preciso fazer a diferença para que os moradores de rua não passem mais por isso.” E Leonardo resolveu fezer a diferença na vida de outras pessoas. Aquelas que ninguém olham e que causam medo. Pessoas. Pobres. Sujas. Que dormem no chão. Cheias de vícios e medos. Simplesmente, pessoas. Depois de Amauri, Leonardo não poderia continuar em silêncio, pensando, deitado na própria cama. Era hora de ajudar. Menino, a família não deixaria que saísse sozinho à noite para ajudar os moradores. Não, não era preconceito. Era receio. Leonardo precisava de uma companhia, alguém que caminhasse com ele no escuro, estendendo a mão para as pessoas que precisassem. Conheceu um amigo, que se tornou um companheiro na sua missão: Evertom da Silva Reis, o Tom. Não faltava uma sexta sequer. Com chuva, calor, vento ou frio, Leonardo estava nas ruas. Começaram a pastoral Voz dos Pobres em dois e, aos poucos, muitos outros jovens passaram a ajudar. Pão, maionese, salada e mortadela. Podia até não ser um banquete, mas estavam recheados de carinho, e isso bastava. Leonardo abria o pão, passava a maionese e colocava a mor82


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tadela. A mãe completava com a salada. As irmãs empacotavam. Dentro de cada saco plástico, um pedaço de vida. Colocavam tudo no carro, junto com as roupas que conseguiam arrecadar. Empilhavam blusas, calças, cobertas, sapatos e meias. Tudo limpo, cheiroso e pronto para ser usado por uma pessoa nova. Saía para a rua vestindo as próprias roupas e, por vezes incontáveis, voltava com as roupas dos moradores. Conversava com os moradores como se fossem amigos. Sempre se tornavam amigos. No início, as pessoas mentiam sobre quem eram e escondiam a razão de viverem na rua. Isso não durava muito tempo. Leonardo não desistia de nenhum deles, mesmo sabendo que estavam mentindo. Todas as sextas-feiras estava nas ruas novamente. Conseguiu a confiança de muitos e, sem que eles percebessem, começaram a contar a verdade. Drogas, álcool, roubo, homicídio. Havia muitas histórias nas ruas e, em cada pedaço de chão, um segredo. Próximo à Praça Napoleão Moreira da Silva, Leonardo encontrou um amigo. Latinha, sem nome ou idade, esperava todas as noites pela visita do colega. Ficaram, realmente, íntimos. “Ele até começou a me pedir algumas regalias.” Não gostava de comer mortadela, isso fazia as feridas que tinha espalhadas pelo corpo, sangrarem. Eram amigos, certo? Então, não havia razão para não exigir um pouco de Leonardo. “Será que você não pode trazer outra coisa para mim?.” O sorriso sem dentes abria-se com a chegada de Leonardo segurando o pão com um novo recheio. O ovo estrelado era coberto com maionese, acompanhado de salada e cebola no shoyu. O prato do amigo era especial, muito mais macio e muito mais gostoso. “Comer sem os dentes não é fácil, viu?.” O pão era a melhor refeição que Latinha poderia receber, já que entre cada mordida, havia uma razão para sorrir. 83


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O morador de rua contou a Leonardo que era baiano e, se havia uma coisa no mundo de que ele gostava, era pimenta. Pronto, foi o que bastou. Agora, as visitas levavam o lanche especial, roupa, carinho e pimenta. Latinha recebeu tratamento vip do amigo. Riam juntos e quem passasse ao redor não entenderia aquela amizade. Eram completamente diferentes, mas Leonardo nunca o viu assim. Eram amigos e só. Latinha não foi o único que cruzou o caminho de Leonardo. Ele nunca saiu das ruas e se você, por acaso, passar pela “Praça da Pernambucanas”, no centro de Maringá, talvez consiga ver o Latinha por lá. Ele tem corpo esguio e o sorriso é inconfundível: não há um único dente para chamar de seu naquela boca risonha. Já era tarde da noite quando Tom ligou para Leonardo. Tinham uma nova missão. Um irmão de rua precisava de um lar para viver com a namorada. Faltaram à missa naquele dia, mas não se importaram. Alguém precisava deles. Thiago e a namorada não aguentavam mais viver na rua. Pegaram o carro e buscaram os dois no lugar em que estavam morando. Entraram no carro e, juntos, pediram refúgio. Em Maringá, não havia nenhuma casa de recuperação que aceitasse o casal, mas em Londrina, sim. Enquanto iam para a rodoviária, conversaram. Thiago disse ser ciumento e contou que já havia brigado muitas vezes por causa da namorada. “Eles não a respeitam e eu não aguento ver isso.” Thiago não estava brincando. Tom e Leonardo sabiam que era melhor não encararem a mulher dele. Assim, com medo de olhar pelo retrovisor, Leonardo e Tom afundaram-se no banco e seguiram o caminho sem olhar para trás, apenas ouvindo Thiago falar. O morador de rua tirou um facão da mochila e jogou 84


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pela janela, aliviado. “Agora, eu não preciso mais disso.” Tomaram banho na rodoviária e seguiram viagem para Londrina. Lá, encontrariam uma nova oportunidade de vida e não precisariam conquistá-la sozinhos. Juntos, teriam mais chance de saírem das drogas. Hoje, ele vive com a mulher em Astorga, município da região metropolitana de Maringá, e são felizes por terem conseguido sair das ruas. Leonardo continuou estendendo suas mãos para muitas outras pessoas. Wagner Francisco da Costa, 44 anos, ex-morador de rua. Em uma das muitas noites sozinho, esbarrou com Leonardo. Tornaram-se amigos com a mesma rapidez em que devorava o lanche que recebia. Ganhou roupas e sapatos. Valorizou cada uma dessas ajudas. Adoeceu. Foi ao fundo do poço. Wagner tinha tuberculose. “Disse para a gente não se aproximar, mas eu não podia deixar um irmão naquela situação.” Tom, não teve medo da doença e aproximou-se. Leonardo abriu as portas da própria casa para receber o colega da rua. Wagner pediu socorro para os amigos. “Eu estava muito debilitado e já não sabia mais o que fazer.” Leonardo, outra vez, desesperou-se para salvar um colega. Pediu à mãe que deixasse o morador viver com eles por alguns dias, pelo menos até sarar. “Na época eu lembro que fiquei com medo de deixar ele entrar, afinal eu tinha duas meninas em casa, mas eu preferi confiar no Leonardo.” A confiança de dona Daniele salvou uma vida. Recusou-se a dormir dentro de casa e ficou feliz em poder ter um lugar quente e confortável para passar a noite no quintal. O café da manhã, sempre rico com aquilo que tinham em casa. Para Wagner, apenas o melhor. Ficou na casa de Leonardo até um abrigo poder acolhê-lo. “Eu fui muito bem acolhido pela família dele e não é qualquer pessoa que pega 85


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alguém na rua e leva para a sua casa.” Wagner, assim como outros, ganhou a chance de sorrir outra vez. Leonardo não apenas o tirou da rua; deu a ele uma oportunidade de viver dignamente. E Wagner agarrou essa chance como se fosse o último sopro da sua própria vida. O ex-morador de rua, atualmente, vive em uma chácara para quem passou pelo sistema prisional e não conseguiu ter um lar. Ele tem uma família, mas não vivem juntos. Falam-se por telefone e Wagner até planeja passar o Natal desse ano com os filhos. Sair das ruas e encontrar uma alternativa para a própria vida é o mesmo que renascer. Wagner não tem vergonha do passado e nem receio de falar sobre a gratidão com Leonardo. A pastoral Voz dos Pobres foi o ancoradouro dele no momento em que mais precisou. “Fácil é amar quem te ama, mas e amar o desconhecido?” Leonardo aprendeu isso ainda criança. Uma daquelas heranças que os pais deixam para os filhos. O passado foi lembrado com carinho. A voz alta, porém afetuosa, recordou-se dos nomes e não se esqueceu dos detalhes. Era noite de quarta-feira quando ele viveu outras histórias. Estava chovendo naquela noite e um frio, inesperado, corria nos ventos de outubro. Na porta da igreja um homem apareceu. “Desculpa incomodar, mas eu preciso de ajuda para voltar para casa.” Mauricio Aparecido Souza, 40, é pedreiro e veio para Maringá tentar uma vaga de emprego. Por dois dias dormiu na rodoviária e sentiu fome. Ninguém quis ajudá-lo. Não tinha dinheiro para comprar uma passagem de volta à Presidente Prudente (SP), e aquele grupo de amigos parado em frente à Catedral seria a solução. Envergonhou-se ao pedir dinheiro, disse nunca ter passado 86


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por isso. Foi humilhado. Ali, sozinho e molhado pela chuva, pediu ajuda. Leonardo não tinha dinheiro na carteira, sempre que vai à pastoral de rua leva apenas os documentos. Mas ele não estava sozinho, havia amigos e um anjo colocado no caminho de Mauricio. Vestido com uma camiseta vermelha, um homem que ninguém conhecia questionava se levariam o pedreiro para a rodoviária. Foi uma conversa rápida e ninguém percebeu. O anjo de vermelho tirou do bolso R$ 20 e deu a Leonardo. “Pega para comprar a passagem.” Saiu dali quando todos entraram no carro e foi embora. Mauricio foi levado à rodoviária, comeu uma marmita desesperado. Ele estava faminto. Agradeceu, agradeceu e agradeceu novamente. “Essa ajuda significa bastante. Finalmente posso voltar para minha família.” Enquanto o ônibus não chegava, Mauricio pulava na cadeira de ansiedade. Estava preocupado com a mulher, desejava sentir o cheiro de casa novamente. A noite não terminou aí. Debaixo de chuva, Antônio Almeida, 65, esperava pela sua marmita. Está na rua há quatro meses e dorme no lugar que ajudou a construir: a rodoviária. Todas as noites, deita-se no chão frio e sonha acordar em uma cama quente. Antônio estava bêbado naquela noite, mas ninguém se importou. Ele abraçou todos como se fossem irmãos e chorou enquanto rezava pela família. Pediu para que Deus cuidasse de cada um deles e que cuidasse também de si. Naquela noite, Antônio recebeu uma coberta e pôde dormir aquecido. Comeu como se fosse um banquete. “Essa comida é uma benção de Jesus que vem para matar minha fome.” Na quarta-feira, Antônio dormiu feliz. Muitas outras vidas foram salvas por Leonardo e pelos 87


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outros amigos da pastoral. Ele não sentiu medo, nem repulsa, não se preocupou com o cheiro ao abraçar um andarilho. Leonardo viveu a vida deles, trocou as suas roupas novas por aquelas que eles usavam. A mãe vê nele um homem de sucesso que irá se tornar um grande pai, quando chegar a hora. Eu vejo coração. Em cada memória, ele sorriu. Amou sem olhar quem fosse. Passou frio, mas nunca morreu por causa disso. Leonardo Vedovoto transformou a noite de muitos moradores. Ensinou a qualquer um que tenha parado um segundo para ouvi-lo que as pessoas na rua são gente. Menos arrumados, é verdade, mas gente que precisa de carinho. O menino-homem está casado e acredita que precisa ter sempre o melhor para oferecer a quem realmente precisa. É desapegado dos bens que conquistou durante a vida. “Deus me deu e vai tirar de mim quando quiser.” Existem muitas pessoas como o Latinha, o Thiago, o Antônio e o Wagner. Também há muitos que precisam apenas de uma mão amiga, como o Mauricio. Já, como Leonardo, não existem tantos. Talvez, andando pela rua à noite, no frio ou no calor, você se sinta convidado a ajudar alguém. “Leonardo tem ‘vocação’. Ele vive para o próximo”. Ana estava certa quando disse isso. Ele tem vocação. Leonardo vive sempre com as mãos estendidas, pronto para ajudar quem precisar dele.

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Cai a noite na cidade. As luzes começam a ganhar força contra a escuridão que se aproxima. As primeiras estrelas chegam para abrilhantar o espetáculo celeste. Ele vai passando pelas vitrines. Olha os manequins tão bem vestidos nas lojas da avenida. Vai desviando dos passos apressados de quem anseia por chegar logo em casa. Mira alguns rostos, torcendo para que atendam seu olhar. Também queria ir para casa. Aos poucos, a movimentação da gelada noite vai se esgotando. Vestido com o casaco naturalmente encardido, busca algo para comer. Passeia entre as lixeiras, rasga algumas sacolas. Cheira tudo o que vê. Eis que surge alguém que o adverte. É chamado de arruaceiro. Corre, com o coração acelerado, com medo. Encontra um lugar seguro. No entanto, a barriga ainda está roncando. Senta-se no chão para descansar um pouco antes de retomar a caçada. Espia como se fosse um lobo, segue em frente. Vai andando sozinho pela cidade até entrar em uma ruazinha da periferia. Lá, encontra um barzinho daqueles de esquina. O boteco, encardido como sua manta irregular, abriga alguns homens que riem ao som de um sertanejo tão velho 93


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quanto os frequentadores do lugar. Não parece ser ruim. Um dos homens o vê se aproximando. Sente pena. Recorda-se do tempo em que era jovem e passava os fins de tarde com o melhor amigo, mais ou menos do tamanho do pequeno andarilho. Retira dois pedaços do espetinho já frio sobre a mesa e entrega ao ser de olhar agradecido. Foi o suficiente. Enquanto anda pelas ruas da cidade, a madrugada se aproxima. O frio vai se acentuando. Chega à praça onde encontra alguns “colegas de quarto”. Aconchega-se na grama úmida e gelada. Olha para a Lua. Rapidamente, o peso do cansaço cai sobre os olhos. Adormece. No sonho faz parte de uma família. Não há riquezas materiais, mas sim, abundância de carinho. Ali não precisa pedir nada, nem um grão de arroz, nem um cafuné. Sorri enquanto dorme. Amanhece. Aos poucos, os primeiros trabalhadores e estudantes, bem agasalhados, passam pela pracinha. A cidade começa a receber os primeiros feixes de luz do sol, mas são poucas cores. É puxado para fora do sonho. Novamente, está preso em sua liberdade. Boceja e se espreguiça ainda na grama úmida. Repara nos carros que esperam o sinal abrir. Não compreende a complexidade humana, mas entende como funciona o bicho homem. Caminha apressadamente até o terminal rodoviário. Uma fila aguarda o próximo ônibus para a metrópole. Nela, pessoas de todas as idades. Alguns olham para o relógio, outros para a tela do celular. Muitos dentro de si. Repara em um garoto com fone de ouvido. O olhar fixo no horizonte. Recorda-se do sonho na última madrugada. O cão estava ali. Olhos esperançosos. Mas era só parte de uma paisagem rotineira. Os olhos que o viam de cima pareciam não o enxergar. Talvez as preocupações diárias fossem 94


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maiores. E assim como o pequeno andarilho, que vaga pelas ruas da cidade, outros milhares andam por aí. Sem família, carinho, comida. Mas, de vez em quando, alguns deles têm sorte. Num sopro de destino, ou bondade, encontram alguém disposto a abrir as mãos e a casa para uma nova chance de encontrar um lar. Larissa Peron é uma dessas pessoas. Foi em Altônia, no interior do Paraná, que Larissa aprendeu diversas lições. Foi naquela cidadezinha que deu os primeiros passos, balbuciou as primeiras palavras e aprendeu a ler e escrever. Tarefas comuns a toda criança que inicia a formação. Mas dentro de casa, Larissa aprendeu lições que vão além. Desde muito pequena, a menina assistia aos pais cuidando de animais. Alguns, encontrados na rua. O coração da mãe de Larissa sempre bateu mais forte pelos bichos. Sofria quando via algum animal passando necessidade. Herdou a paixão da avó da menina. Hoje, Larissa Peron tem 27 anos. Junto com o marido, Gilberto, administra um restaurante. Antes eram apenas os dois. Hoje, são três. Neste ano, a família ficou maior. A pequena Alice nasceu. A primeira filha do casal. Perto deles, Lili e Mel abanam o rabo e, em cada balançar, mostram ser os xodós da casa. As cachorras foram encontradas e resgatadas da rua. Hoje, a família vive em Maringá, mas o passado em Altônia ainda continua presente na vida de Larissa. Agora, a empresária segue os passos da mãe. Ajuda animais abandonados na rua a encontrar o caminho de casa. A infância de Larissa sempre foi rodeada de bichos. A mãe dela, dona Cristina Peron, 56, sorri com a lembrança de uma filha sempre alegre. A menina não era bagunceira, mas adorava dançar e cuidar dos bichinhos. A casa da família na pequena cidade do noroeste paranaense já chegou a abrigar 95


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18 cachorros. Alguns, eles ganharam. Outros, vieram da rua. “Não me lembro de uma época em que não tinha cachorro em casa.” Eram muitas patinhas e latidos no quintal e, diante dessa matilha, o pai de Larissa resolveu levar alguns dos animais para a chácara da família. Lá, continuariam a viver sua liberdade rodeada por amor. Naquela época, os pais de Larissa não tinham conhecimento sobre castração. Assim, os cães iam procriando. Nasciam atrás do sofá, no quintal e em qualquer outro lugar que desejassem. A casa também era dos peludos. A comida, posta diariamente na mesa da família, também era compartilhada com os animais. Para alimentá-los, não havia ração, mas havia polenta. Dona Cristina se lembra de que sempre que encontrava animais machucados, levava-os para o veterinário. Como tinha pena dos bichos, abrigava-os na chácara. “Tinha muito espaço para eles brincarem, correrem. Eles ficavam soltos no quintal e ajudavam a cuidar da chácara. Lá, eram muito felizes.” Crescendo nessa realidade, os pensamentos de Larissa voaram. Com a cabeça nas nuvens, a jovem sonhava ser veterinária. Mas os pés tiveram de voltar ao chão. Não tinha dinheiro e acabou desistindo do curso. Mesmo assim, se vingasse na profissão, ela sabe que acabaria falindo. “Eu iria atender todo mundo de graça.” Acabou optando por um curso bem diferente: estética. Mudou-se para Maringá e viu o amor pelos animais crescerem ainda mais. A estudante trocou a casa dos pais em Altônia por uma quitinete. Pela primeira vez, Larissa não poderia ter cães em casa, situação que se manteve assim por quatro anos. Apesar disso, ela não deixou de se preocupar com os cachorros que dormiam nas ruas e, sempre que surgia uma oportunidade, os alimentava 96


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com um pouco de comida. A mãe de Larissa ainda se lembra de quando a filha se mudou de cidade para estudar. Larissa é a caçula da família e quando iniciou a faculdade, Francielle, a irmã, já havia se casado e se mudado também para Maringá. Com as duas filhas fora de casa, a companhia dos cães e do marido não era suficiente para Cristina. “Quando ela [Larissa] se mudou foi muito triste, porque eu me sentia sozinha.” Em 2011, um novo desafio se iniciaria e obrigaria os pais de Larissa a abandonar Altônia, partindo definitivamente para Maringá. Dona Cristina foi diagnosticada com câncer de mama. Era hora de ficar perto da família novamente. A mãe precisava de Larissa. Ela voltou a morar com os pais e da pequena cidade vieram também outros três membros da família: os cães. Se até então, impedida pelas normas do lugar onde vivia, Larissa nunca pode resgatar um animal de rua em Maringá, na casa dos pais a história seria diferente. Em uma tarde, ela avistou uma cachorra magra vagando em frente à própria casa. Olhando o estado do animal, a jovem não pensou duas vezes. Chamou-a e lhe ofereceu um pouco de ração. “Ela estava com tanta fome que a comida não foi suficiente, tive que pegar mais.” Naquele dia começava uma grande amizade, mas para que tudo desse certo, Larissa precisou enfrentar o pai e o namorado. “Eu queria colocar [a cachorra] para dentro de casa, mas meu pai não deixou e meu namorado também não.” Naquela noite, muitas lágrimas rolaram. Larissa foi dormir chorando, pensando no animal abandonado. Antes de fechar os olhos, prometeu a si mesma que, se a nova amiga voltasse no dia seguinte, brigaria até conseguir levá-la para casa. A 97


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promessa se cumpriu. No dia seguinte, a cachorra voltou à porta da residência dos Peron. Imediatamente Larissa lhe deu um pouco de ração e levou-a a um pet shop. Cuidando da cachorra, que estava muito magra, ela percebeu a prenhez, condição que levou a jovem a querer ainda mais o animal. Batizou-a de Mel e levou-a para casa. Não restou outra opção para os pais, eles teriam de aceitar. Para sustentar mais um animal em casa, Larissa pediu a ajuda de amigos. Fez uma “vaquinha” entre os colegas de trabalho e conseguiu comprar uma casinha para a cachorra. A vizinha da frente também ajudou. Com o dinheiro, Larissa comprou ração. Um mês depois, quando chegou a época de dar à luz, Mel estava tão apegada à dona que queria criar dentro do quarto de Larissa. Agora saudável, a cachorra deu vida a nove filhotinhos. Todos foram doados, menos um que substituiu uma das cachorras vindas de Altônia com a família e que acabara de morrer por causa da idade e por complicações com o diabetes. Ringo, o filhote, tornou-se o novo mascote da casa dos Peron. Com Mel em casa, Larissa começou a perceber ainda mais a realidade que a cercava em Maringá. Na rua onde morava, mais à frente, oito cachorros viviam soltos. Ali, os vizinhos ajudavam a cuidar dos cães de rua. No entanto, ainda preocupada, ela pensou que seria necessário castrar os animais. Não se importou de tirar dinheiro do próprio bolso, aquelas cachorras precisavam dela. Levou as fêmeas para o veterinário e, só então, acalmou o coração. Nessa época, dona Cristina caminhava pelas ruas para se exercitar. Um dia, passou em frente a uma casa onde tinha uma espécie de canil. Ali, em meio aos animais, morava 98


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Celita Sales de Abreu, 49, dona de casa. Outra mulher apaixonada por bichos. Ao ver aquele espaço, dona Cristina não hesitou e pediu ajuda a Celita, para que abrigasse os animais que moravam na rua da casa dos Peron. Não podia. Sob a guarda de Celita já havia muitos outros bichos e ela não teria condições de abrigar novos. Mesmo assim, as duas trocaram telefones e mantiveram o contato. Mal sabiam que essa troca de números as faria conviver juntas em prol dos animais. Foi aí que outro cachorro apareceu no portão da casa de Larissa. Ela o chamou de Fred. A essa altura, cuidar de animais abandonados, para ela, já era praticamente obrigação. A jovem levou o cão até o veterinário e lá o animal foi diagnosticado com cinomose. A doença funciona como uma espécie de virose para os cães. No entanto, é extremamente difícil de tratar, geralmente levando o animal à morte. Ela não fazia ideia do que se tratava aquela doença. O médico disse que o quadro já era avançado. Não teria mais jeito. A única saída seria a eutanásia. Larissa não tinha dinheiro para o procedimento. Por esse motivo, levou Fred para uma casa desocupada que a família usava para alugar. Afinal, a cinomose é altamente contagiosa e levar o animal infectado para a própria casa deixando-o próximo de outros cães seria muito arriscado. Foi assim que Larissa recorreu à Cláudia, veterinária que ajudava Celita no canil. Cláudia foi até Fred e não cobrou um único tostão pelo atendimento. Disponibilizou os medicamentos que tinha e iniciou o tratamento. Larissa conta que acordava diariamente às seis da manhã para medicar o cachorro. De lá, partia para o trabalho. Ao fim do expediente, ia novamente ao encontro de Fred para cuidar dele. A dificuldade tornou-se esperança. 99


(DES)CONHECIDOS

Com amor e bons tratos, Larissa reverteu a sentença dada pelo primeiro veterinário que o consultou. Fred foi salvo. Hoje ele vive com a mãe de Larissa. Recuperou a vida e ganhou um lar definitivo. Entre animais e cuidados, Larissa casou-se em 2013 com Gilberto Favero, a quem ela chama carinhosamente de Beto. Larissa e Beto se conheceram em 2008 por meio do Orkut, uma das primeiras redes sociais da internet que perdeu a força com a chegada de novas ferramentas e desapareceu, ao contrário do sentimento do casal, que só aumentou de lá para cá. As paqueras começaram pela internet. Uma conversa aqui, outra acolá. Tinham amigos em comum. Tinham muito em comum. Os primeiros encontros apareceram de mansinho e sem que percebessem, estavam completamente apaixonados. Não havia volta. Beto e Larissa começavam a namorar. Ele se lembra da época em que conheceu Larissa. Se encantou pela força da jovem, que conciliava o trabalho com os estudos. “Começamos a conversar e então marcamos de nos conhecer. Sem pretensão nenhuma fomos ficando mais próximos até que começamos a namorar. Ela também gostava de festa. Nós saíamos e bebíamos bastante. Nos divertíamos.” Na época do início do namoro, Larissa ainda morava na quitinete. Só com o tempo o namorado foi descobrindo a ligação dela com os bichos. O que era bom para os cachorros foi quase um revés no relacionamento. “Eu nem sabia dessa paixão.” Quando os pais vieram para Maringá e ela voltou para a casa deles foi quando tudo recomeçou. Beto se lembra do dia em que Larissa resgatou Mel e que foi contra. “Não gostei muito, mas como era a casa dos pais dela, nem falava nada.” A diversão deu lugar a alguns estranhamentos. Por ve100


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zes o tom das vozes subiu. Conflitos, brigas e choro. Em meio a algumas discussões o casal quase se separou. Mas o amor foi maior. Aprenderam e amadureceram com as próprias diferenças. Beto sabia que os animais estariam sempre entre os dois e, à sua maneira, aceitou essa condição. Noivaram e foram ao altar. Diante de Deus e do padre prometeram permanecer juntos até que a morte os separe. Larissa diz entender o marido quando ele se posiciona contra sua grande dedicação. “Eu, no lugar dele, também não sei se aceitaria. Às vezes penso ‘meu Deus, ele tem razão’, mas não consigo, é maior que eu.” Beto compreende o envolvimento e a dedicação da mulher aos animais, mas tenta negociar um meio termo. “A questão não é que eu não goste. É que, se eu deixar, daqui a pouco tem 10 cachorros aqui em casa. Essa mulherada é louca”, brinca. Quando se casaram, Beto e Larissa concordaram em ter apenas um cachorro. Mel, a vira latas de pelo escuro e gestos tranquilos, foi a escolhida para acompanhá-los. E não é para menos. Após tudo o que passaram juntas, Mel e Larissa são praticamente inseparáveis. Mas o acordo pré-nupcial não durou muito tempo. Dona Celita recebeu o chamado de um homem que tinha visto cinco cachorras abandonadas. Todas foram levadas para o canil. Larissa se recorda que das cinco, quatro conseguiram novos lares, mas uma ficou. Enfraquecida e com sarna negra, doença hereditária não transmissível, Lili estava feia e malcheirosa. Ninguém queria adotá-la. Vendo que Mel estava sempre sozinha em casa, Larissa teve uma ideia: adotar mais uma cachorra. Brilhante ideia para ela, péssima para Beto. Como já era de se esperar, o marido reprovou. A verdade é que Larissa já havia feito isso antes e, sem 101


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cerimônia, repetiu o ato: lutou pela sua causa. A insistência foi grande e Beto deixou que a mulher fizesse um teste. Lili foi morar com eles. “Um furacão”, lembra Larissa. A pequena de quatros patas é uma cachorra extremamente “espoleta”. Branca com pintas pretas ou preta com pintas brancas, Lili é hiperativa. Sempre com a linguinha para fora, parece sorrir. Interrompeu Larissa várias vezes enquanto a empresária contava as histórias que viveu e não envergonhou-se por isso. A cachorrinha quis participar da entrevista. Latiu e pulou. Lili deixou sua mensagem. “Ela é muito dada”, define Larissa. Lili não é nada desconfiada. Sempre que chega alguém no portão, sai em disparada para pular sobre o visitante. Um ataque de carinho. Mas tanta energia incomodou Beto e até mesmo Mel, que rosnava para a cachorra quando se aproximava. Apenas alguns meses na casa de Larissa e Lili está recuperada. Engordou e não teve mais nenhum surto de sarna negra. Mel cedeu e hoje as cachorras são amigas. “Brincam o dia todo.” Beto, contudo, ainda não se rendeu à nova moradora. Larissa descobriu estar grávida dias depois de levar Lili para casa. O marido pediu então para ela devolvesse o animal ou o doasse. Não teve jeito. Larissa já estava apaixonada por Lili e a cachorra enlouquecida pela nova dona. Mas a energia que parecia inesgotável em Lili incomodou. A cachorra comeu tapetes, fez buracos na grama, arranhou paredes e roeu chinelos. Certa manhã, Beto entrou no carro, colocou a chave na ignição e viu acender uma luz diferente no pequeno painel. O automóvel tinha algum problema. Levando o carro à oficina, o mecânico advertiu: “Sua cachorra roeu um cabo”. O prejuízo de R$ 300 aumentou ainda mais a vontade de doar a pequena sapeca. 102


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Beto deixa bem claro que, apesar de Lili já estar na casa do casal há algum tempo, ainda não se acostumou tanto com a ideia. “Ela [Larissa] me perturbou tanto que acabei cedendo. Nossa casa é pequena, não tem espaço para duas cachorras, fora a sujeira que faz. Quando era só a Mel, ela ficava dentro de casa. Agora não tem como.” Larissa confirma a versão do marido. Antes de Lili, Mel vivia cheia de mimos. Era a princesa da casa. Com a nova cachorra, o casal precisou rever algumas regras. Mel perdeu regalias. Já não pode mais se deitar no sofá e passear de carro. Apesar disso, ganhou uma companheira. Cães são animais sociais, precisam fazer parte de um grupo para estarem felizes. Com Mel e Lili não é diferente. Quando Larissa descobriu que estava grávida, pensou nos animais. Não apenas nas cachorras de casa, mas também naqueles que continuavam vagando pelas ruas. Alice ainda não estava nos planos do casal, que deseja ter dois filhos. “Eu pensei ‘e agora, minha vida mudar’, como eu ia continuar ajudando?” Ela ficou chateada, não pela gravidez em si, mas por ter se sentido dividida. “Eu sabia que a partir de agora minha vida iria ser toda para ela [a criança].” Na espera por Alice, a futura mamãe não parou de ajudar os animais. É claro que a empresária desacelerou o ritmo dos resgates, mas mesmo assim continuou retirando animais das ruas. Agora, com a filha recém-chegada, ela se dedica mais aos bastidores da ajuda animal. Junto com amigas, fundou a Focinho Amigo, uma espécie de associação que auxilia animais de rua. Ela não classifica a Focinho Amigo como uma ONG. Semanalmente, as amigas realizam feiras de adoção de animais no Parque do Ingá. Para arrecadar fundos, contam com doações e bazares, além de bingos e vendas de rifas. 103


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Larissa não faz ideia de quantos cachorros já resgatou durante os últimos anos. Sempre que ela ou as amigas encontram um, levam o animal para o veterinário. A ideia é castrar e cuidar dos que estão doentes. A prioridade são as fêmeas. A partir daí, os cães são levados para a casa de Celita. Geralmente, os cachorros são fotografados e têm, além das fotos, uma breve descrição postada no Facebook. É pela rede social que as amigas procuram alguém que esteja disposto a lhes dar um lar. Hoje, o canil de Celita abriga 15 cães e quase 50 gatos. A dona de casa, assim como Larissa, sempre gostou de cuidar dos animais. Aos 49 anos, conta que desde criança gostava de animais e tentava cuidar deles, mas não tinha muito conhecimento de como tratar os bichinhos. De uns anos para cá, envolvida completamente na causa animal, começou a entender melhor. As histórias de Celita e Larissa cruzam-se em semelhanças. Celita também seguiu os passos da mãe que gostava de cuidar dos animais e não parou de caminhar desde então. Com o canil no quintal, Celita conta que diversas vezes animais foram abandonados à porta da casa, mas isso não impede que ela também resgate outros que encontra pela rua. Larissa e Celita têm muito em comum. É como se pudessem ver além do olhar da maioria. Quando saem de carro, identificam facilmente cães abandonados que estão passando por dificuldade. Quando Larissa está com o marido, precisa fechar os olhos, porque sente vontade de resgatar todos. Ela sabe que o marido não vai parar o carro para ela recolher o animal, a menos que seja algo extremo, como um atropelamento. Celita é daquelas que se coloca no lugar dos animais e 104


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sofre como se fosse um deles. É toda compaixão. Ela perdeu o marido recentemente. Durante o luto, andando pela rua, viu uma cachorra. A tristeza da morte não é maior que o sentimento de amor e o prazer em ajudar. Resgatou o animal. Mesmo assim, vê a complexidade que existe nesse trabalho. Parece ser algo que ela mesma não compreende. “A gente não pode recolher todos os que vivem na rua.” Durante as feirinhas de adoção no Parque do Ingá, muitos param e olham para os animais que aguardam um dono. A musicista Patrícia Sena, 25, sempre acompanhou de longe o trabalho da Focinho Amigo. Ela sempre gostou de animais. A mãe nunca a deixou ter um cãozinho por causa do tamanho da casa onde moram e pela questão da limpeza, mas Patrícia não se conformava com a situação e teve uma ideia. Ela e o namorado passeavam sempre no Parque do Ingá nos dias de feirinha. Foi então que o convenceu a parar para olhar os cachorros. Naquele dia, Patrícia conheceu Larissa, que lhe deu algumas informações sobre o trabalho da associação. Em meio a tantos olhares e mãos querendo tocar os cachorrinhos, Larissa não conseguiu dar muita atenção à Patrícia, afinal a musicista ainda não tinha o aval do namorado para adotar um cãozinho. Mas a partir daquele dia, ela começou a acompanhar o trabalho do grupo pelo Facebook. Semanalmente, Patrícia e o namorado iam até o Parque e paravam na feirinha. Após cinco meses de muita insistência, ele, que mora em uma casa com um grande quintal, acabou cedendo. “Ele foi com um bico enorme para lá, porque não queria.” Chegando à feirinha, Patrícia encontrou Larissa. Disse que finalmente iria adotar. Pediu à empresária o cachorro que mais precisava de um lar. Na verdade, todos os animaizinhos ali precisavam, mas Larissa viu aquele que viria 105


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a ser tratado como Bruce, um vira-lata com pelos brancos e orelhinhas pretas. Aquela era a sexta semana em que estava exposto na feirinha. A vida dos três mudaria depois daquela tarde. O cão, traumatizado com as agressões do antigo dono, urinava de medo quando Patrícia se aproximava. Hoje, Bruce já não se apavora e tornou-se um dos motivos que a levaram a participar do trabalho voluntário. De tanto ir às feirinhas, a musicista começou a ajudar aos poucos a Focinho Amigo. Foi aí que se envolveu definitivamente com os animais. Quando se deu conta, já estava efetivada no grupo. “Eu vi que poderia ser útil, mesmo nas coisas pequenas. Não só eu, mas todo mundo pode ajudar.” A assistente comercial Helen da Costa Freire, 25, também adotou um amigo de quatro patas por meio da Focinho Amigo. Helen já havia resgatado Neguinha por conta própria. A cachorra apareceu na porta da casa dela. Procurando uma companhia para o animal, Helen já conhecia e ajudava a Focinho Amigo há algum tempo. A assistente comercial também acompanhava o trabalho de Larissa Peron pelo Facebook. E foi em uma postagem feita pela empresária na rede social, que conheceu e adotou Lola. “Cachorrinhos de rua têm mais vulnerabilidade. Eles estão sujeitos a serem maltratados, atropelados e até espancados. Eu sou contra a compra de animais, pois acho um mercado desnecessário e desumano. Prefiro um cachorro de rua, porque para mim elas [as cachorras que adotou] têm um valor enorme.” Ela não era a única em busca de uma companhia. Silvana Marin, 45, também procurava uma companhia para a cachorra que adotou das ruas. Na verdade, Silvana conta que a cachorra apenas passou pela grade do portão e, desde então, 106


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nunca mais foi embora. A aposentada também contribui com a Focinho Amigo com doações de ração. “São pessoas com um coração enorme e que fazem um trabalho muito importante. Se eu pudesse, adotaria vários.” Quando o assunto é cachorro, Larissa Peron compra a briga. A empresária e esteticista acredita que nenhum animal tem culpa pelo sofrimento que passa. E é por esse motivo que enfrenta tudo sem medo. Enquanto afaga Alice no colo, recorda-se de um episódio que mostra o que realmente pensa sobre os animais de rua. Já era noite. Estava em casa junto com a amiga e companheira da Focinho Amigo Ana Isabel Scremin. Na época, Larissa já sabia que, dentro de alguns meses, seria mãe. Entre as conversas das duas naquela noite, o celular tocou. Do outro lado da linha, uma amiga descrevia a cena que via com certa distância. Um homem estava próximo à Catedral de Maringá. Junto a ele, um filhote. Instável, o homem se divertia com o pequeno animalzinho enquanto o agredia. Larissa e Ana não pensaram duas vezes. Saíram em direção à Catedral só com a chave do carro, sem documentos, dinheiro, nada. As bolsas ficaram em casa. Ambas aflitas, com o coração acelerado, não viam a hora de resgatar o filhote. Não suportavam a ideia de que alguém estivesse maltratando um animal pelo simples prazer da tortura. Era injusto e, mais que isso, um crime. Chegando ao local, encontraram a amiga já conversando com o homem. Na área verde, em frente à construção religiosa mais alta da América Latina, as amigas pediam gentilmente que ele as entregasse o animal. Recusou-se. Frente aos olhos das três continuou judiando do filhote. Viu ali uma oportunidade de lucrar. Tentou negociar o cachorro. 107


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A princípio o homem pediu R$ 50 pelo animal, mas as amigas não tinham aquela quantia. Tentaram argumentar. O homem percebeu que o que tinha em mãos era algo valioso para elas e barganhou. Diante da resistência e sabendo que poderia ficar sem nada, concordou em lucrar R$ 15 pelo filhote. Ao ser passado para as mãos de Larissa, o sentimento inicial foi de alívio. O animalzinho estava a salvo e poderia, finalmente, receber cuidados. No entanto, os nervos, que estavam à flor da pele, explodiram. Segurando o cachorro, as amigas questionaram o agressor, que partiu para cima das três. Da confusão seguiu-se um bate boca que chamou a atenção de alguns rapazes que passavam pelo local. As moças diziam ao homem que ele havia cometido um crime; o homem rebatia com ameaças. Elas só conseguiram ir embora em segurança depois que os rapazes se aproximaram. Alguns dias depois conseguiram promover a adoção do filhote. Hoje, divertem-se da situação. Trabalhar em prol de qualquer causa pode ser uma tarefa complicada. É preciso tempo, dedicação e, claro, segurança financeira. Quando se fala em voluntariado, relaciona-se a atividade à doação, não apenas financeira, mas também de entrega total. Dona Celita admira Larissa Peron. Há anos acompanhando o trabalho da amiga, ela conta que a jovem já enfrentou muitos desafios para salvar animais. “Já fizemos muitas loucuras por causa de bicho. Fomos atrás de animais de muito longe. Já entramos no meio do mato atrás de bicho. Você não tem ideia. É uma coisa que você tem que gostar mesmo, tem que ter amor e compaixão.” Para a mãe de Larissa essas características vêm desde pequena. Dona Cristina conta que a filha sempre foi muito carinhosa com os animais de casa. Era como se fossem seus 108


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próprios irmãos. Cristina, que também nutre grande amor pelos bichos, não deixa escapar as memórias em que Larissa a ajudava nos cuidados com os animais. A mãe se lembra que após a morte de um dos cães da família, o pai o teria jogado em uma valeta. Larissa, é claro, não gostou nada. Chorou. Fez o pai buscar o animal e enterrá-lo dignamente. “Aí a gente foi desenterrar para ver se ele tinha mesmo enterrado o cachorro.” Só assim, Larissa estaria feliz. Vendo a atenção da amiga com os animais, Celita se impressiona com energia de Larissa. Mãe há poucos meses, ela pode até ter diminuído o ritmo dos resgastes, mas, aos poucos, retoma a atividade que tanto ama. Personalidade forte que espanta Celita. A senhora se identifica muito com a jovem, não esperava que ela voltasse tão cedo ao resgate de animais. “O que a Larissa faz não é qualquer um que faz, não. Ela até me surpreendeu agora. Eu achei que depois que ela tivesse o bebê, iria parar. Mas hoje mesmo já saímos juntas atrás de cachorro.” Apesar das brigas com o marido, na maior parte motivadas pelos animais, Larissa sente que ele a apoia. Às vezes Beto até pede para que ela evite falar sobre o assunto, porque se incomoda com a preocupação excessiva da mulher. Mas ele reconhece que o trabalho a engrandece e, mesmo sendo contra em alguns momentos, valoriza o que ela faz. “Eu a vejo como uma mulher muito forte. Apesar de todas as dificuldades ela sempre está nessa luta pela causa animal sem ganhar nada em troca, financeiramente falando. Na verdade, às vezes, até tira do próprio bolso.” Casados há quase três anos e juntos há mais de oito, Beto e Larissa continuam se conhecendo dia a dia. E nas diferenças também encontram a união. Ele é extremamente 109


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apaixonado pela mulher e, agora, pela filha Alice que, espera a mãe, siga seus passos quanto ao amor pelos animais. Para Beto, isso não deve ser problema. A admiração por Larissa continua a mesma. “Como mulher, esposa e mãe ela é demais. Uma mulher guerreira que cuida da casa, da família, trabalha fora e ainda faz de tudo para nos agradar. Realmente tive muita sorte em encontrar uma pessoa como ela para ser minha companheira.” Larissa tem uma família, trabalha, cumpre suas tarefas. Ama e se dedica. Tem sonhos e objetivos. A cada dia, põe mais um tijolo na construção diária da própria vida. Mas diferentemente de muita gente, vê cores onde ninguém enxerga. Vê como solução aquilo que muitos acreditam ser problema. Larissa é gente. E, como todos nós, também tem uma missão. “Cada um tem um dom. O meu é cuidar de animais.”

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“Numa interseção entre jornalismo e literatura, Bruna e Wesley vão em busca de personagens com diferentes trajetórias de vida, mas todos com uma característica em comum: exercem um tal protagonismo que não necessariamente o de verdadeiros super-heróis, mas que possuem um único superpoder para fazer o que deveria ser missão muito simples a qualquer ser humano que preze pela vida: ter atitude.” Neil Franco


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