VAI QUERER O QUÊ?

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VAI QUERER O QUÊ?

ANDREIA MELERO

VAI QUERER O QUÊ?

ANDREIA MELERO



VAI QUERER O QUÊ?


Mariana Kateivas

A N DREIA ME L ERO Viciada em café, livros, séries, nunca dispensa uma boa música e uma longa conversa. Amante das letras, e de um bom vinho em dias nublados, sente uma inquietante curiosidade acerca da vida, das pessoas e da sociedade. Não sonha em mudar nada, nem ninguém, mas sente de coração que pela fé e amor em Deus, ela pode todas as coisas. A Família é ela toda, é toda ela. A mais nova de 10 irmãos, tem uma profunda saudade daqueles que já se foram, um amor incondicional pela mãe – a maior salvadora de todas as vidas, de todos os momentos e de todos os amores –, e paixão por cada um daqueles que fazem parte da sua história. Nem sempre ela tem as palavras certas, nem sempre ela agrada a todos. Mas com a sincera honestidade de quem não sabe ser de outra maneira, ela se joga no mundo e mergulha nos próprios propósitos. Afinal, é quando salta de olhos fechados, que ela conduz esta dança. Vamos dançar?


VAI QUERER O QUÊ? ANDREIA MELERO


© 2015, Andreia Melero

Projeto Gráfico e Editoração: Wesley Bischoff Ilustrações: Gabriela Paes Orientação do Projeto: Rosane Verdegay de Barros Edição e Revisão: Rosane Verdegay de Barros e Wesley Bischoff Impressão e Acabamento: Gráfica Impmais

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Melero, Andreia, 1988 Vai querer o quê? / Andreia Melero - Maringá, 2015

Livro-reportagem 1. Jornalismo Literário. 2. Feiras de rua. 3. Cultura Popular. I. Título


“A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda pensou sobre aquilo que todo mundo vê.” Arthur Schopenhauer



dedicatória Primeiramente a Deus, acima de todas as coisas. À minha mãe, por estar do meu lado e acreditar em mim, e principalmente por me amar independentemente de todas as minhas imperfeições. Aos familiares e amigos, aos colegas e “migas” de trabalho, em especial a gestora e amiga Emanuelle Moraes, que me deu suporte emocional e psicológico, além de toda compreensão quando havia necessidade de folgas, horário diferenciado e aquela injeção de ânimo que apenas pessoas iluminadas, como ela, conseguem injetar no mundo – e nas pessoas ao redor. À orientadora Rosane Barros, que emprestou um pouco de sua vasta experiência no Jornalismo para o desenvolvimento deste livro,além de servir de psicóloga, me conduzindo sempre que eu queria desistir; e acima de tudo, por ser o ombro amigo nos momentos em que tudo que eu precisava era desaguar pelos olhos. Ao co-orientador Vinícius Durval Dorne, que com sua sabedoria e propriedade, me abriu um leque de opções para que eu pudesse aprofundar os estudos sobre Jornalismo e Cultura do Popular. E também pela sua paciência com meus desesperos, paranoias e ansiedade. Aos demais professores do curso de Jornalismo, que entenderam as ausências em aulas importantes e o não cumprimentos de atividades devido ao fato de priorizar o desenvolvimento do deste livro.


À compreensão de todos os entrevistados, brava gente feirante, que depositarou confiança em meu trabalho, e mesmo que em meio à clientes e afazeres, resgataram de suas memórias as lembranças e os fatos de anos de labuta, além de não se incomodarem com a minha constante presença e inquietante curiosidade. À Coordenadora das Feiras de Rua de Maringá, Ana Paula Meger Capelasso por passar intermináveis horas recolhendo arquivos e fornecendo informações sobre a história das feiras, registros históricos e incontáveis informações que tornaram tão ricas as informações presentes. Aos escritores Jack Kerouac, Hernest Hemingway, Bukowski, Tolstói, George Martin, J.K. Rolling e F. Scott Fitzgerald, que com suas obras, acalmaram minha alma. Pelo mesmo motivo, agradeço aos artistas musicais e bandas como Chico Buarque, AC/DC, Foo Fighters, Bruno Mars, The Killers, Amy Winehouse, Novos Baianos, Maria Gadú, Os Varandistas e ao Iron Maiden de cada pausa, de cada dia. E por fim, agradeço ao meu pai, que onde quer que esteja, é ciente de que é tudo por ele e para ele.




apresentação

Jornalismo: aquela particular área da comunicação que prima pelo direito à informação, que difunde fatos, acontecimentos e que, por meio da imparcialidade, busca transmitir a vida como ela realmente é para toda sociedade. Pessoas: de diferentes raças, cores, lugares, classes e ideias. Todas elas têm uma história, vieram de algum lugar e querem chegar a um determinado objetivo. E para os mais céticos ou descrentes, uma coisa tem tudo a ver com a outra, pois dentre as diversas motivações que levam à escolha do jornalismo, destaca-se a possibilidade de falar com as pessoas, conhecê-las, senti-las, e vivê-las. Lima (2009), afirma que “(...) onde há a pessoa humana, pode haver uma história maravilhosa a ser contada” (LIMA, 2009, p.253). Ser jornalista é ter nas próprias entranhas, uma curiosidade acerca das pessoas, que corrói cada centímetro da epiderme - de dentro para fora. Conhecer pessoas, vivê-las e senti-las é o nosso oxigênio, nossa célula mãe. Pessoas, somos e gostamos de tê-las, ouvi-las, transmiti-las ao mundo. De todas as cores, de todas as raças. Contando os minutos, gastando as horas. Sapatos folgados, chinelos rasteiros, sapatos fechados, saltos e brilho. Nível superior, ensino fundamental incompleto e o “eu nunca fui para a escola” misturam-se em experiência de vida e de profissão. O uniforme das empresas entrega aqueles que passam o dia na labuta, seja dentro de um escritório ou empunhando uma desempenadeira - que alisa a argamassa nas centenas de construções cidade adentro. A tinta da roupa surrada e ogesso na botina desbotada podem parecer sujeira para quem vê, mas é motivo de orgulho de quem trabalha de sol a sol para sustentar a 13


família – e assim o faz sem dever nada a ninguém. Aquele velho e manjado clichê de que “o suor do trabalho dignifica o homem” é atemporal, independentemente se as mãos passam o dia em um teclado de computador; usando uma enxada; ou utilizando uma trincha. O suor que marca a camiseta e a roupa mais confortável identifica quem leva uma vida mais fitness. Nas rugas dos casais de tanto tempo; ou no jeito daqueles de nova cumplicidade, desfilam sentimento, harmonia e vida em comum. Amigos que se encontram casualmente e aqueles grupos que todas as semanas têm o encontro marcado, como se fosse um ritual, um compromisso inadiável de separar o momento e celebrar a amizade. Famílias inteiras e solitários olhares com suas sacolas. Crianças? Sempre tem. Na algazarra de uma nova brincadeira, no rápido caminhar de quem tem um rumo certo e um objetivo já traçado, as feiras de rua de Maringá servem de plano de fundo para centenas de vidas, centenas de histórias abarrotadas de suor, sangue, lágrimas e sorrisos - graças à Deus. A variedade de produtos que move a economia deste grande bairro é incontável, e totalmente saborosa – aos olhos e ao paladar. A infinidade de todas as crenças, passados, presentes e épicos desfechos também é vislumbrada. Basta um olhar mais atento e uma nova história já é contada, vivida. Reynaldos, Marias, Alans, Josés e tantas outras riquezas. Pode vir, pode chegar, porque nas próximas páginas, este rico cardápio é para você.

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prefácio Gustavo Hermsdorff

Nem todo texto tem história. Muitos informam e podem até te apresentar determinado assunto, mas deles você sai como quem cumprimentou alguém de longe. É preciso ter aquela vontade de ficar, de perguntar da vida, o que anda fazendo. É preciso ver passado no texto. Perceber que para cada linha escrita, outras cinco foram resumidas e ter a certeza de que pode voltar e vê-lo e ainda assim encontrar assunto para esticar a conversa. E eu gostaria de esticar a conversa com esse novo texto de Andreia Melero. De prosa decorada, mas sem rodeios, Andreia nos apresenta toda a sorte de histórias que se abancam numa feira de rua maringaense. Como que nos levando pela mão, acena para o Seo Jeovanildo Perez, Marcio Sena, Jorge Ogassawara... Escolhe uma fruta na banca Seo José Franciscato, tira uma dúvida com Ana Paula Capelasso e volta a nos contar sobre os números, trâmites e rotina que estão por trás dessa tradição tão querida do maringaense. Não por acaso, a escolha do tema merece destaque. Visitar uma feira livre é como ser transportado para um momento da história em que passado e presente montam acampamento - ali mesmo, um do lado do outro. E o texto de fato caminha. Da história da agricultura no Brasil até o cooperativismo que deu força ao paranaense. Da organização administrativa das feiras livres aos chinelos rasteiros que fazem coro entre as bancas. Ah, e depois que você entender todo o assunto, sugiro pedir um pastel e dar uma passada na banca do Seo Jorge Livero e ser atendido pela Jéssica, a menina dos grandes olhos de jabuticaba que cresceu entre as barraquinhas e hoje divide sua rotina entre ajudar o pai, o noivo e ser professora de ensino fundamental. Ou então, puxar um banquinho e se deixar levar pela moda de viola de José do Bonfim. Aproveite a leitura, garanto que você nunca mais vai visitar uma feira da mesma forma. 17



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CAPÍTULO I

A AGRICULTURA DO BRASIL NO (COM)PASSO DA HISTÓRIA Década de 70, os anos de ouro da Disco Music. Essa também foi uma década histórica para a agricultura no Paraná. Enquanto o mundo mergulhava nos paetês, brilhos e no sedutor ritmo das coreografias febres das pistas de dança da época, a agricultura brasileira se lançava em ritmo próprio, montando seus acordes, bets e melodia. Porém, para ter sincronismo nessa levada, é preciso saber das principais atividades agrícolas da época no país, que antecederam essa dança. Desde antes de Cabral aportar em território nacional e colocar seus pés europeus nas brancas areias da costa baiana, a agricultura já era uma prática conhecida pelos nativos. Os índios cultivavam mandioca, o amendoim, o tabaco, a batata-doce e o milho, além de realizarem o extrativismo vegetal em diversos outros cultivares da flora local, como o babaçu ou o pequi, tanto para alimentação quanto para subprodutos, como a palha ou a madeira, e ainda de frutas nativas como a jabuticaba, o caju, a cajá, a goiaba entre outras. Todo esse relato foi feito pelo amante da terra e historiador Luiz Amaral, no livro História da Agricultura no Brasil. Com a chegada dos europeus, os indígenas não só receberam uma cultura. Também influenciaram os que chegavam. Com toda pompa e suntuosidade que se observava a partir das vestes – justamente feitas para serem sinônimo do glamour europeu –, nossos colonizadores passaram a “nutrir-se de farinha de pau, a abater, 19


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para o prato, a caça grossa, a embalar-se na rede de fio, a imitar os selvagens na rude e livre vida”, como retratou Pedro Calmon, historiador e sociólogo brasileiro, citado pelo professor Fabiano Wobeto no livro Agricultura I – Técnico em Agricultura. Quando nosso sistema ainda era das capitanias hereditárias – adotado no Brasil pela Coroa Portuguesa – a exploração do pau-brasil foi a atividade relacionada à terra mais importante da época. A árvore, que era comum da Mata Atlântica, tinha grande valor devido ao pigmento vermelho do seu núcleo, utilizado para tingir tecidos, e como tinta para os grandes pintores europeus. Até hoje, mantendo o ritmo, o uso nobre do pau-brasil ocorre também na música. O cerne de sua madeira permite confeccionar arcos de violino e harpas. Após a intensa exploração do pau-brasil, entra em cena a monocultura da cana de açúcar. As grandes propriedades da colônia viviam da prática da monocultura e se voltavam para a prática do mercado externo, utilizando mão de obra escrava para poder suprir a demanda. Essa mão de obra era inicialmente indígena, depois o trabalho passou a ser feito por negros africanos. Acompanhando o compasso das primeiras plantações – e abrindo alas ao amado caldo de cana –, as primeiras mudas de cana-de-açúcar foram trazidas da ilha da Madeira por Martim Afonso de Sousa, que instalou em 1533 o engenho de São Vicente, no litoral paulista. Entre nobres, colonos e trabalhadores, os primeiros pés de cana foram plantados em solo “verde e amarelo”. Lá também surgiu a cachaça brasileira. E esse foi apenas o começo. Mais tarde, no Nordeste, mais precisamente em Pernambuco, a economia açucareira se estabeleceu e despontou fortemente no país, tornando-se hegemônica por quase dois séculos. A prosperidade da produção no Brasil despertou a inveja dos holandeses, que, em 1630, invadiram Pernambuco. O príncipe Maurício de Nassau dominou o território 20


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por quase 25 anos, até 1654, quando os portugueses derrotaram os invasores, expulsando-os. Como nem tudo são flores – ou torrões adocicados –, a economia do açúcar perdeu a primazia mundial no século XVIII, com a produção europeia de açúcar de beterraba. O cacau ganhou destaque tanto em produção quanto em economia gerada. Desde 1783, o fruto se sobressaiu na Capitania de Ilhéus, sul da Bahia. Porém, o apogeu do ciclo do cacau se deu na década de 1920, constituindo então singular economia e servindo de cenário para a literatura brasileira Em seus romances, o escritor baiano Jorge Amado se apropriou de toda conjuntura poética, vital e física que o cacau proporciona e assim, dando um “suadô” e encharcando o corpo – e a mente – dos leitores, ele inebriou a literatura nacional no romance Cacau, em 1933. O livro iniciou o Ciclo do Cacau na literatura, contando a história dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia na década de 30. Exalando ideais, romances e complexidade de situações, o romance retrata a expansão da luta de classes no hostil mundo dos trabalhadores do cacau da época. São Jorge dos Ilhéus (1944) e Gabriela, cravo e canela (1958) descreveram bem essa opulenta – embora restrita – sociedade que buscava fugir de todas as formas do “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim” tido como destino certo da maioria. A economia do jovem notável Brasil estava prestes a passar por mais uma mudança. O açúcar deixou de ser o principal investimento – econômico e produtivo –, fazendo com que os portugueses procurassem uma nova forma de exploração econômica. Assim como a brilhante cultura brasileira – tão emergente em voz, ritmo, escrita e palco – ele pediu passagem e reluziu nos relatos agrícolas da nossa terra. Mesmo não se tratando de “alimento do campo”, propriamente dito, seria impossível falar da agricultura nacional, sem falar dele, o ouro. 21


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As primeiras minas de ouro foram localizadas nas regiões dos Estados de Minas Gerais e Goiás. A importância dessa exploração foi tão grande para Portugal, que o governo decidiu mudar a capital, até então em Salvador, para o Rio de Janeiro (1763), pois dessa forma estariam mais próximos das minas de ouro. A importância do chamado Ciclo da Mineração para a agricultura brasileira está relacionada com a redistribuição de centros econômicos entre os Estados. A corrida para o ouro deslocou o centro da economia e a estrutura político-administrativa para a região Sul-Sudeste. O grande crescimento da população consolidou o mercado interno, trazendo dessa forma, a necessidade de produção de alimentos que pudesse suprir as demandas dos novos colonos e dos estrangeiros que chegavam ao Brasil para trabalhar, construir suas vidas, buscando novos rumos e motivação de fé no próprio futuro. Outro fato importante é que durante a descoberta do ouro nas Minas Gerais a pecuária se estabeleceu pelo cerrado do planalto central e pela bacia do rio São Francisco, que ganhou o nome de Rio dos Currais. Ao mesmo tempo, a pecuária se estabelecia nos pampas a partir da negociação do gado oriundo das missões jesuíticas que era negociado com as regiões de mineração. Logo, o comércio do chamado “gado em pé” – comércio dos bois vivos – foi sendo invadido pelo comércio da carne charqueada. Começam, então, a se formar as primeiras fazendas de gado nos pampas e o consumo de charque integra economicamente a região ao resto da colônia, principalmente ao Sudeste. Em 23 de junho de 1698, Antônio Dias de Oliveira – bandeirante de Taubaté que ficou conhecido por explorar o interior de Minas Gerais em busca de riquezas como ouro, metais e diamantes – chegou aos pés do pico Itacolomi, onde nasceu a histórica Vila Rica, atual Ouro Preto, marcando para sempre o local e a 22


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data do Estado mineiro. É consolidado o ciclo do ouro das Minas Gerais e o Nordeste açucareiro passa a ser coadjuvante. Uma jovem senhora de 79 anos, moradora de Maringá há aproximadamente quatro anos e do Paraná por 68, costuma dizer o seguinte: “sempre devemos tomar cuidado, pois nem tudo que reluz é ouro”. Ela, viúva de um casamento que durou 62 anos que “só a morte separou”, bisavó de três meninos – o mais velho com 16 anos –, avó de 14 netos e mãe de 10 filhos, ainda menina viu o início do ciclo do ouro em Minas, colocou as mãos na terra dos cafezais em São Paulo, e no Paraná continuou lidando com a terra e com os animais: “Até cágado a gente criava.” Seja no cultivo do café, do algodão, nas roçadas e pomares a perder de vista das propriedades da família, Maria Amélia Ferreira carrega na memória, no coração e nas mãos, as marcas de uma vida cheia de sacrifícios, trabalho árduo, feridas latentes e nenhuma desculpa, pois o sustento da família dependia do trabalho dela e dos irmãos. A mineira de Alfenas, cidadezinha ao sul do Estado, mudou-se para o Paraná aos 11 anos com a família, em uma casinha simples que o pai ergueu “debaixo de sol e chuva” em Sertanópoles – município próximo a Londrina. Pouco a pouco, o sítio da família foi erguido “com as próprias mãos” do patricarca e ganhou o nome de “Água das Cobras”. Depois, mudou-se para a “Fazenda Floresta”, onde conheceu aquele que viria a ser o seu marido – também trabalhador rural, filho de mãe espanhola e pai alemão, mas que estudava e mais tarde também se tornou comerciante e professor. A vida no campo, por mais que seja retratada nas paisagens e nas belezas que a natureza – e o cultivo das plantações – proporciona, é difícil e árdua. “Bem antes de ser dia, eu e meus irmãos já ‘tavamos’ cuidando da lavoura, dos bichos. Meu café era na roça, encostada num pé de café, debaixo da sombra dele pra descansar os poucos minutinhos que a gente tinha. O Tonico [irmão] cuidava dos bichos, 23


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vinha e trazia pra gente, que tava na lavoura, o leite fresquinho que tinha acabado de tirar das vacas. Eu, por ser a mais velha [de 11 irmãos], mesmo sendo mulher, tinha a obrigação de chegar primeiro ‘que tudo eles’. Então, as quatro da madrugada eu já ‘tava’ de pé”. A mãe dela, Olinda Cândido de Abreu Ferreira era italiana, e o pai, Arthur Justino Cândido de Abreu Ferreira, português – vieram para o Brasil em busca de novas oportunidades, de colocar em prática os sonhos de um futuro bom. Com propriedade e total segurança sobre o que diz, a hoje aposentada por todo esse tempo de labuta no campo e que presenciou diversas fases da agricultura nacional, resumiu com destreza o ciclo do ouro – e dos demais ritmos que embalaram o solo tupiniquim. “Tudo é passageiro. Na verdade vai depender do que a necessidade pede. Quando as hortas e as frutas davam mais dinheiro, o povo se concentrava neles. Depois apareciam outras coisas, que davam mais dinheiro ainda, daí já mudava de disco.” Por isso, podemos dizer que a história da agricultura no Brasil está intimamente associada com a história do desenvolvimento do próprio país. Em todas as fases, o que se buscou foi o crescimento – nem que para isso fosse preciso abandonar uma cultura e começar outra do zero. A corrida em busca do ouro se enfraqueceu e o café, com toda pompa, presença e sabor, tomou lugar na economia – e no paladar – do país. Puro, espresso, latte, cappuccino. Com leite, chocolate, gelado ou fervendo. Doce ou amargo, com sabor de correria do dia a dia ou da família reunida, do sítio e largo sorriso da avó italiana que servia o café torrado na hora, com aquele pão que acabara de sair do forno – de barro. A vitamina necessária de cada dia daqueles que pedem – e imploram – para que o dia dure cerca de 40 horas. Para milhões de pessoas, o ato de tomar café é essencial, pra24


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ticamente um ritual, uma necessidade de primeira instância entre jovens, adultos e idosos. Todos os coffeehollics – assim como esta que vos escreve – somos filhos de uma geração que colocou o café no ápice econômico nacional, e, mais tarde, mundial. Em paralelo ao café e ao ouro, outro produto que também guiou a história econômica e que influenciou na agricultura no Brasil foi o látex. As exportações de borracha assumiram a terceira posição na balança comercial, atrás apenas do café e do cacau. No Amazonas e no Acre, no alto das majestosas seringueiras nativas, havia um surto de riqueza, baseado na extração do látex. Esse ciclo da borracha se esticou até 1912, quando o preço caiu fortemente no mercado mundial devido à entrada da borracha asiática. Contribuindo para a rica cultura do país, o próspero ciclo da borracha está espelhado no Teatro Amazonas, construído em Manaus, em 1986, por arquitetos europeus. Voltando ao ouro verde, o enorme peso econômico fez surgir uma nova oligarquia dominante no Brasil, os conhecidos Barões do Café. Apressou, ainda, os movimentos de imigração, com o fim da escravidão, atingindo o auge na chamada “política do café-com-leite” e política dos governadores – no governo Campos Sales. Na aromática época, as plantações tomaram conta dos morros fluminenses e se deslocavam rumo ao Vale do Paraíba, entre São Paulo e Rio de Janeiro. O nome (Vale do Paraíba) deve-se ao fato de que a região é a parte inicial da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul. São Paulo assumiu a liderança da produção, gerando uma extraordinária riqueza que vai durar até a grande crise econômica de 1929, enfraquecendo o ouro verde que escorria nas grandes plantações e corria pulsante e vibratório nas veias e terras do povo brasileiro. A moeda da vez? A industrialização. No período pós Primeira-Guerra teve início no país o debate que indicou o atraso no setor agrícola como um dos obstáculos 25


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ao desenvolvimento e à industrialização que se projetava na Era Vargas. O atraso do campo não atendia mais à demanda dos grandes centros urbanos, e cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife sofriam com escassez de gêneros básicos, como açúcar, trigo, feijão e outros. No meio acadêmico, correntes brigavam sobre a conjuntura da agricultura na época. Uma dizia que o país possuía uma estrutura feudal no campo. Prado Júnior, pesquisador e intelectual, defendia que a estrutura rural era capitalista; “em ambos os casos pregava-se a reforma agrária como meio de melhoria do sistema econômico; também se falava em alterações constitucionais”. Toda essa situação gerou a oposição e acabou por ser um dos engajadores do golpe militar de 1964. Durante o regime militar, em 1973, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) foi criada com o objetivo de diversificar a produção agrícola. O órgão foi responsável pelo desenvolvimento de novas produções e opções, adaptados às condições peculiares das diversas regiões do país, como clima. Também por meio de incentivo da Embrapa, iniciou-se a expansão das fronteiras agrícolas para o cerrado e surgiram os latifúndios monocultores com a produção em escala semi-industrial de soja, algodão e feijão. Dentre os pesquisadores da Embrapa que possibilitaram a melhora da revolução verde na agricultura brasileira, destaca-se a pesquisadora tcheca-brasileira Johanna Döbereiner. As pesquisas dela sobre os microrganismos fixadores de nitrogênio lhe renderam a indicação ao Prêmio Nobel de Química, em 1997. Antes, eram quatro os principais produtos agrícolas exportados. No começo da década de 1990, passaram a ser 19. Nesse momento, as políticas de fomento agrícola incluíam créditos subsidiados, perdão de dívidas bancárias e subsídios à exportação – que, em alguns casos, chegaram a 50% do valor total do produto. 26


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A partir de 1994, com a estabilização do Plano Real, o modelo agrícola brasileiro passou a receber um gigantesco incentivo por parte do Estado. Este diminuiu sua participação, o que fortaleceu o mercado, que passou a financiar a agricultura. Logo, a cadeia do agronegócio ganhou alicerce e solidez, desde a substituição da mão de obra por máquinas – houve redução da população rural brasileira, de 21 milhões, em 1985, para aproximadamente 18 milhões, em 1995, passando pela liberação do comércio exterior (queda nas taxas de importação) e outras medidas que, de uma forma ou outra, acabam por forçar os produtores brasileiros a se adaptarem às práticas de mercado globalizado. O aumento da produtividade, a mecanização (com redução dos custos) e profissionalização marcaram essa nova fase da agricultura nacional. Pau-Brasil, cana de açúcar, ouro e café. É inegável a riqueza da história e da produção agrícola do Brasil. Independentemente da especialidade, o homem do campo foi ferramenta certeira e precisa para todo esse processo. Desde plantio, trato com a terra, com a produção e venda. Nos primórdios da agricultura brasileira, homens livres, pequenos produtores rurais, viviam nos arredores das plantações de cana. Com as unhas marcadas pelo trabalho pesado, as mãos calejadas e o suor no rosto, eram chamados de roceiros, caipiras, caiçaras, caboclos, mandioqueiros, brocoiós. A particularidade de todo modo de vida, moradia e sustento desses indivíduos consolidou a cultura rural do país. “Lá no Sul, naquele frio de bater o queixo, especialmente nos pampas (gaúchos), produzia-se charque e eram criados animais, gado, galinha, vaca. Havia muitas caravanas vindas de Goiás e São Paulo, que cruzavam a Serra da Mantiqueira para abastecer os outros locais com alimentos básicos à população, de maioria escrava, que trabalhava nas minas”, conta Jorge Ogassawara, hoje engenheiro agrônomo da Emater, e desde sempre produtor rural – por paixão. 27


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A partir de 1970 o setor rural brasileiro foi marcado por uma revolução produtiva. Segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Paraná (Fetaep), aconteceram inúmeras transformações, principalmente com relação ao modelo de produção, manuseio da terra, mercados fundiários, e, principalmente, na “relevante mudança nas relações de troca entre os setores rural e urbano”. A “Revolução Verde”, como ficou conhecida essa transformação, gerou inúmeros benefícios para a economia, população e para o desenvolvimento das práticas do campo. Porém, alguns efeitos negativos pegaram carona com o progresso e refletiram em fragilização das plantas, desaparecimento do cultivo múltiplo, consumo de poucas variedades vegetais, êxodo rural, concentração de renda e terra, diminuição da ocupação rural entre outros.  “O modelo de política agrícola adotado atualmente pelo Brasil intensificou ainda mais o avanço do capitalismo no campo, proporcionando o surgimento de grandes unidades produtoras (agroindústrias, agropecuárias, entre outras). Isso levou à industrialização no campo, caracterizada, principalmente, pela mecanização e utilização desenfreada de agrotóxicos. Em função desse processo, notáveis transformações sociais, políticas, culturais e demográficas ocorrem no meio rural”, diz o estudo da Fetaep.     Pensando em desenvolvimento social, a agricultura ao longo dos anos se tornou a principal contribuidora para que o cenário nacional, como um todo, se ampliasse, exercendo forte papel para que mais pessoas participassem da inclusão econômica e social que o setor ofertava – e oferta. Por meio da oferta de alimentos e equilíbrio na balança comercial brasileira, uma vez que tem grande participação nas exportações, a agricultura também transfere mão de obra assalariada para outros setores, servindo como engajadora no setor de industrialização de alimentos. 28


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Atualmente, a soja é dona da pista e dita tendência. É o produto agrícola que mais ocupa área no Brasil e o que exerce maior pressão sobre os recursos naturais por meio do desmatamento, redução da biodiversidade, drenagem de áreas alagadas e das diversas formas de contaminação ambiental – consequentemente da saúde, devido à utilização de insumos agrícolas. Mas não atire ainda a primeira pedra. Esse cenário não se trata de uma particularidade da soja. Aconteceram, como dito há pouco, diversas mudanças nas relações de produção, manutenção e cuidado no setor agrícola, tanto no Brasil quanto no mundo. Atualmente, a soja é destaque, ocupa primeiro lugar e é a condutora da agricultura do país. Porem, a médio prazo poderá ser mais um “ouro verde” ou ciclo do ouro” na prateleira do nosso setor agrícola. A Fetaep explica que “há consenso de que o conceito de desenvolvimento rural está em plena construção. Esse debate é crescente e oportuno, pois percebe-se aumento nos esforços em demonstrar as desigualdades locais, regionais e territoriais que se estabeleceram ao longo do tempo”. E mesmo que o ritmo pareça estar definido, esse processo ainda está em construção. Para que uma sincronia aconteça, os passos ainda estão sendo ensaiados. Nas três últimas décadas o Brasil passou de importador de alimentos a um dos principais atores do agronegócio mundial. Essa transformação trouxe prosperidade ao campo e aos produtores rurais, mas as oportunidades são percebidas e aproveitadas de forma bastante desigual entre os diferentes participantes da economia rural. Para analistas do setor, desenvolver estratégias tecnológicas e econômicas que, por um lado, garantam o avanço da produção e, por outro, proporcionem a inclusão de um maior número de trabalhadores e pequenos produtores nos benefícios gerados por essa expansão é um dos principais desafios postos aos formuladores de políticas públicas, 29


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afirmam Antônio Márcio Buainain e José Maria da Silveira (do Instituto de Economia da Unicamp) e os pesquisadores Eliseu Alves e Zander Navarro (ambos da Embrapa). Eles, autores do livro O mundo rural no Brasil do século 21 – edição conjunta da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – explicam que a proposta é “entender os tempos”. Como observa Zander Navarro, em meio a tantas opções e reviravoltas que deu ao longo dos anos, a agricultura é a “estrutura financeira que passou a reger a atividade desde os anos 1990 e a inovação é seu principal desafio”. No artigo Alguns Condicionantes do Novo Padrão de Acumulação da Agricultura Brasileira, Antônio Buainain argumenta que atualmente nenhum produtor, seja de grande ou pequeno porte, independentemente do que planta, está imune da combinação de fatores de produção e elementos institucionais. “Há um conjunto cada vez maior de regras, formais e informais, que determina padrões de comércio, de segurança alimentar, ou que dispõe sobre o uso sustentável dos recursos naturais, como é o caso do novo Código Florestal. Há também uma evolução dos padrões de exigência dos consumidores e uma oferta globalizada de produtos.” Em decorrência da modernização, necessidade de máquinas agrícolas e produtos de última geração, há um novo padrão de exigência econômico-financeiro para viabilizar a produção e, portanto, maior vulnerabilidade, tanto em relação ao risco climático quanto às flutuações do mercado, colocando em xeque o valor único da terra e do trabalhador do campo. A posse da terra, historicamente, é a principal fonte de geração de riqueza no campo, mas segundo estudos (Embrapa), isso está mudando. Entre 2000 e 2012, a quantidade de terras e de mão de obra utilizadas pela agricultura caiu, enquanto a produtivida30


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de do trabalho, da terra e do capital cresceu, graças ao uso intenso de fertilizantes, máquinas e equipamentos e, em certas áreas, de irrigação tecnológica. A terra, antes local exclusivo do trabalho manual, irrigada com o suor dos trabalhadores, fértil de histórias de vida que nasceram e cresceram – literalmente – junto aos pés de café, às colheitas de algodão, ou talvez ao trato dos imensos pomares frutíferos, cedeu o lugar para o capital, em todas as suas estruturas. O professor da Unicamp e doutor em Economia Pedro Ramos, em Uma História Sem Fim: A Persistência da Questão Agrária no Brasil Contemporâneo (2014), reafirma a já esquecida, porém totalmente essencial necessidade da realização da reforma agrária como política social e econômica. A reforma “permitiria uma maior igualdade econômica e social, uma redução dos conflitos fundiários, evitaria a excessiva migração para as cidades, que entre 1960 e 2000 atingiu 50 milhões de pessoas, e também apoiaria a ampliação da produção”. Seria sonho, utopia ou objetivo que ainda vale a pena ser alcançado? Zander Navarro (BUAINAIN, 2014) no artigo Por Que Não Houve (e nunca haverá) Reforma Agrária no Brasil? explica que a reforma agrária, “é um ato difícil de ser operado em uma sociedade democrática. Entre 1994 e 2012, 1,26 milhão de famílias foram assentadas, mas em terras públicas, adquiridas pela União, constituindo assim uma iniciativa governamental de colonização, não de reforma agrária”. Para o autor, a reforma agrária é um tema do passado, e o grande problema a ser solucionado, atualmente, é a melhoria das condições dos produtores rurais. Steven Helfamd (Universidade da Califórnia-Riverside), Vanessa da Fonseca Pereira (Embrapa) e Wagner Lopes Soares (IBGE) argumentam no artigo Pequenos e Médios Produtores na Agricultura Brasileira – Situação Atual e Perspectiva (BUAIANIN, 2014), que muitos dos obstáculos que os pequenos produtores en31


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frentam podem ser solucionados por meio de ações coletivas que propiciem o desenvolvimento de instituições apropriadas que os auxiliem, que garantam acesso à tecnologia e aos mercados de insumos e produtos, como já ocorre nacionalmente com os produtores de aves e suínos. Com olhar fixo, sério e passando não só a certeza das palavras, mas também coragem por demonstrar opinião pessoal acerca do assunto, o engenheiro agrônomo Jorge Ogassawara, afirma que é a produtividade, e não o tamanho da propriedade, que determinará a sobrevivência dos produtores. Pensando nos pormenores e tentando embalar os produtores no ritmo do crescimento econômico, programas públicos voltados a gerar produtividade aos estabelecimentos de menor porte foram criados. O mais emblemático deles provavelmente é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), estabelecido nos anos 1990 e que atualmente gera desembolsos anuais na casa dos R$ 15 bilhões. As melhores intenções, porém, nem sempre geram resultados adequados. Em alguns casos “mais atrapalham do que ajudam”, explicou Sergio SallesFilho, pesquisador da Unicamp. O pesquisador também enfatiza a real necessidade de “associar inovações não tecnológicas às inovações tecnológicas que são desenvolvidas para o pequeno produtor. O que temos feito é facilitar o acesso do pequeno produtor à tecnologia de cultivares como soja, arroz, algodão e milho, sem que ele tenha acesso aos demais fatores que viabilizam a apropriação do valor potencial que uma nova tecnologia pode conter. De nada adianta melhorar as condições técnicas de produção para o pequeno produtor se ele está em mercados que necessariamente exigem escala”. Para o pequeno produtor, aquele que vende seus produtos nos mercados, Ceasas e feiras de rua, não basta adotar tecnologias. Existem inúmeras medidas que podem ser feitas, como es32


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tabelecer estratégias comerciais, até a adoção de certificações de origem ou selos de sustentabilidade (BUAIANIN, 2014). O balanço da Embrapa (2012) confirma os benefícios, com lucro social de R$ 17,7 bilhões, representando retorno de R$ 7,80 para cada R$ 1 investido, conforme dados públicos. Ainda com base em informações oficiais, a “colheita de grãos no Brasil foi de 58 milhões de toneladas em 1990 para 187 milhões em 2013. Apenas em soja, o Brasil exportou 42,8 milhões de toneladas no ano passado e somando os embarques de grãos, farelos e óleos, o chamado complexo soja, o país contabilizou US$ 30,96 bilhões em receitas com exportações. A produção de carne de boi mais que dobrou entre 1990 e 2013, indo de 4,1 milhões de toneladas para 9,3 milhões, e o país se tornou o maior exportador global”. Olhando para o futuro, avalia-se que são vários os desafios postos no que se refere ao desenvolvimento tecnológico. De acordo com artigo publicado na revista Pesquisa Fapesp, o Brasil “possui 140 milhões de hectares – área equivalente a duas Franças – em terras degradadas que podem ser aproveitadas para o cultivo agrícola. Possui também um clima que permite duas safras anuais. Sem derrubar florestas, apenas utilizando tecnologia, o país tem potencial para se posicionar como o maior fornecedor mundial de alimentos e bioenergia, superando os Estados Unidos”. Boa notícia, boas expectativas, pontos a serem melhorados, ao som de boa música, boa companhia e (com)passos ensaiados – e aprimorados todos os dias. Estamos sim, no caminho de encontro à “batida perfeita” na agricultura nacional.

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CAPÍTULO II

NO PARANÁ, A GENTE FAZ ASSIM... A agricultura no Paraná é historicamente, uma das principais atividades econômicas do Estado. No início do século XX, com a terra ainda “crua”, o homem do campo paranaense se inicia na produção de erva mate – no sul do Estado – mirando a terra do Tango, pois o mercado de consumo argentino já brilhava aos olhos. Economicamente falando, também haviam forças concentradas na pecuária extensiva nos Campos Gerais, na extração de carvão, criação de suínos no Norte Pioneiro, e a dedicação à madeira da Araucária, nosso Pinheiro, no sul. Porém, pegando carona com a febre nacional – deliciosa, por sinal – na década de 1920, as atenções se voltam à produção cafeeira também do norte paranaense. O doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas Jaime Garciano Trintin, autor do artigo Modernização Agrícola no Paraná: Um Estudo nos Municípios e Mesorregiões, contextualiza essa nova fase econômica para o produtor do Paraná. Já era o momento de deixar a cuia de lado, arregaçar as mangas e concentrar as energias nos cafezais que tomavam conta das áreas rurais. “O avanço da atividade cafeeira representou o início de uma nova fase no processo de desenvolvimento da economia do Estado, estimulada pelas condições naturais do solo, pela base socioeconômica e, também, por políticas governamentais de incentivo à produção. Essas políticas propiciaram (em meados da década de 35


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40 do século passado) à economia cafeeira paranaense expandir-se e transformar-se na mais importante região produtora de café do Brasil, o que elevou a taxa de crescimento da produção agrícola estadual”. Segundo ele, significa que a era do café havia chegado, sem nenhuma pretensão de ir embora. Hoje, pode-se afirmar que a modernidade não mais “bate à porta”. Já passou a ser hóspede fixa e até parte da família. Está conosco diariamente em tudo que fazemos, na ponta dos nossos dedos, no “curtir” que lançamos ao mundo facebookiano – virtual e real –, na interação digital e em tempo real por meio da nossa TV. A tecnologia já deitou e esticou as pernas confortavelmente no sofá das nossas casas – o que indica,que veio para ficar. E com a agricultura paranaense não foi de outra forma. À medida que o setor cafeeiro ficou saturado, começou uma fase declinante no “ritmo quente” do café paranaense. A produção foi desacelerada e o governo passou a incentivar a modernização do setor usando políticas de crédito rural. Nesse novo cenário, a modernização agrícola influenciou as relações interpessoais de trabalho. Os mais espertos sobreviveriam. “O que antes era coisa de família, legado de gerações e símbolo de amizade, agora já é tudo feito por interesse financeiro. Não que a gente não tinha isso antes, mas tudo ficou mais frio. O que era até uma forma de diversão virou obrigação”, relata seo Reynaldo Costa, coordenador de Patrimônio Histórico, na Cooperativa Agroindustrial do Paraná – Cocamar, com profundos e saudosos olhos de que tem mais de uma de vida de experiência e cultura. Aos 83 anos, sustentando dignamente, “sem nenhuma tinta”, uma vasta cabeleira branca, uma memória de dar inveja a qualquer estudante pré-vestibular que se desdobra entre datas, definições, fatos e fórmulas, um trejeito simples e uma voz forte que ecoa na 36


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certeza dos fatos já vividos, seo Reynaldo conta sobre o Paraná agrícola que viu nascer, crescer e florescer. E sim, ele se emociona com cada pedaço de vida relatado, com cada história contada. Em 1951, mais precisamente em maio daquele ano – escancarando seus 18 anos de juventude – Reynaldo veio de São Sebastião do Paraíso (MG). No final de 1950, ele ainda menino, desembarcou no Paraná com a família, que buscava por novas terras, oportunidades, e vida, nova vida. Eles se estabeleceram em uma pequena terra na região de Cianorte, noroeste do Paraná. O pai português, Alfred José da Costa, teve uma horta na propriedade, mas se dedicou mesmo ao comércio “(...) e à filantropia. Meu pai, o que ele tinha, não era dele. Ele ajudava qualquer um que precisasse, seja com um prato de comida ou com alguma quantia em dinheiro. Não éramos ricos, mas mesmo com pouco, a gente ajudava”. A mãe também portuguesa, Dolores Gomes da Costa, dedicava-se à família, ao lar, à educação e criação dos filhos. Irmãos? Seo Reynaldo não fala do assunto, “melhor deixar essa parte em paz”. “Desde a infância era curioso e não me conformava com nada. Sempre queria mais, desejava conhecer o novo e desbravar cada pedaço desse mundo.Lá em São Sebastião [MG], ganhei um livro que falava da arte heráldica, relativa à criação de brasões. E a isso me fez nutrir amor pelas artes, pelo grafismo, e me tornei desenhista gráfico.” A nova atividade não o afastou da relação com o trabalho do campo, pois a sua família continuava no trato com a terra e na lida do campo. Com certeza, dona Dolores ficaria orgulhosa de ver o filho agora. “Eu sinto muita falta dela. A gente tinha uma relação de confidência, fidelidade e de honra. Meus pais me ensinaram todos os valores que sei hoje. E passei aos meus filhos. Minha mãe foi a pessoa mais amorosa que eu já conheci. Sinto muita falta dela. São mais de 20 anos de saudade.” O artista das linhas – e adorador da vida rural – é o criador 37


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do brasão de Maringá. Passando desde o processo de tentativa, erro e acerto em relação a tintas, estruturas, pesquisas quanto a desenhos, simbologia, comunidade e representação simbólica, ele então chegou a um produto final, que foi inscrito em um concurso que escolheria a arte para a cidade. Seo Reynaldo criou aquele que viria a ser um emblema histórico da Cidade Canção. O empolgante – e empolgado – coordenador, conta ainda que teve de convencer uma banca avaliadora sobre cada item que compunha o brasão. E a parte que deu mais trabalho foi justamente a representação de uma das suas maiores paixões, o trigo “que demonstrava a riqueza agrícola que estava prestes a ‘estourar’ na nossa linda região”. O trigo presente no brasão foi bastante questionado durante o concurso e nos primeiros anos da bandeira, pois na década de 1960, só era cultivado no Rio Grande do Sul, e bem aos poucos no sul e no sudoeste do Paraná. “Quando coloquei [o trigo] como potencial agrícola [de Maringá], acharam que era louco.” Os símbolos foram adotados, oficialmente, pelo Município, em 9 de novembro de 1964, como uma profecia de um futuro bom. Ele acertou. Seo Reynaldo dedica-se ao acervo histórico da Cocamar há mais de 20 anos. Paciente e cuidadoso, detalhista e perfeccionista, ele faz a ficha de cada objeto e providencia a restauração quando necessário. Ele preserva a memória e expõe da melhor maneira todas as informações que consegue reunir sobre a vida no campo paranaense. Há alguns anos, lembra que a família do ex-diretor da Cocamar Anníbal Bianchini da Rocha, falecido em 2007, entrou em contato. “Eles fizeram uma doação de uma antiga tulha de café, de madeira, e a operação de desmanche foi comandada pessoalmente por mim. Até as tábuas para a restauração passaram pelo meu crivo”, aponta para a tulha e sorri, emocionado, já emendando a história da doação da máquina de café. “O cooperado número 2 [hoje esse número passa dos 13 mil], 38


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Joaquim Romero Fontes, fez a doação. Depois que mexemos nela, demos aquele trato com carinho e repaginamos. Ficou nova, parece que saiu da loja. E não é porque é algo grande. É pelo que ela representa e carrega. Tudo que ajuda a resgatar a memória, mesmo que seja uma folha de papel ou um pedaço de tecido, terá o nosso zelo e respeito.” Essas transformações relatadas pelo seo Reynaldo foram muito importantes. Folheando livros, artigos e textos, testemunhas presentes – e oculares – dessa transformação, o cuidador de tantas preciosidades do Acervo da Cocamar olha para cima, como se puxasse à memória os dias da juventude e de quando chegou ao Paraná, e arregala os olhos quando fala da impressionante rapidez com que tudo aconteceu. Mesmo com inúmeros conflitos e “rixas” entre famílias, dificuldades para os que embarcavam de início na agricultura ou que já estavam calejados pelo uso do rastelo e enxada, ele conta que as mudanças eram inevitáveis, e que as famílias sobreviviam em qualquer circunstância. “Plantava-se de tudo – conforme a temporada –, a gente via que o importante era cuidar bem e se dedicar porque por mais que a plantação fosse de café, ou de soja, de abastados ou de humildes, se não tivesse a experiência, o amor ao campo e o trabalho pesado, de nada adiantava. No decorrer do tempo, tinha plantação de mandioca, tinha gado, tinha outras coisas. Aqui, os estrangeiros, como os japoneses, tinham a cultura própria, então eles plantavam as coisas que eles comiam lá no país deles também, para se sentirem mais próximos da terra natal. E também ensinavam aos outros a cultura deles. Era uma troca cultural.” A terra não era a natal, mas com certeza, o solo paranaenses soube como abraçar o novo povo que estava chegando – e os que ainda estavam por vir. A povoação paranaense inicial era de origem europeia, formada por espanhóis e portugueses. “Desde o início do século XVI, exploradores europeus atra39


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vessaram de norte a sul e de leste a oeste o território paranaense, tendo sempre como ponto de partida o litoral Atlântico. O primeiro europeu a percorrer toda a extensão deste território foi o bandeirante Aleixo Garcia”, conforme indicam documentos da Secretaria da Cultura do governo do Paraná. Seo Reynaldo, de família judia – com origem portuguesa – estudou e se especializou “em quase tudo”, como ele mesmo diz. Criou logomarcas para inúmeras empresas e instituições de Maringá, como a Universidade Estadual de Maringá – UEM, o Mercado Atacadão entre outros. Quando elogiado acerca de todo trabalho já realizado e sobre tudo que representa, humilde e sabiamente coloca em prática o “só sei que nada sei”, do filósofo grego Sócrates. “Quanto mais você ampliar os seus horizontes para o conhecimento, menos você vai saber, porque a gente nunca sabe de tudo”, afirma com olhar profundo e uma seriedade de quem tem toda uma vida de experiências. Assim como seo Reynaldo, a agricultura do Paraná sempre esteve em constante aprendizado e nunca se deixou abater. Ela cresceu, se fortaleceu, e carrega em cada arado, enxada e maquinário uma história inteira de culturas e reviravoltas. Entre os anos 40 e 70, as expressões ‘ouro negro’ e ‘ouro verde’ eram também usadas para descrever eximiamente a economia daqui – assim como do restante do país. Muito mais do que viver uma fase de produção, o café se transformou em orgulho paranaense por simbolizar riqueza, desenvolver cidades, atrair investidores e modernizar algumas regiões. A expansão do café no Paraná foi possível graças a uma série de questões, como aponta a historiadora Nadir Cancian: “política econômica governamental, facilidade de aquisição de terras, clima propício, terras férteis e escoamento da produção por meio de ferrovias que ligavam o Paraná a São Paulo”. Em São Paulo, apli40


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cava-se a medida restritiva que proibia o Estado todo de plantar novos pés de café por cinco anos – havia muitos produtores e a economia cafeeira estava estagnada. Ainda assim, o governo paranaense incentivava a cafeicultura no Estado, reduzindo as taxas de exportação do café e engajando o plantio. Dentro desse ritmo – e seguindo os passos largos entre melodia, aroma e política – surge o Convênio de Taubaté. Esse foi um acordo firmado entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que se comprometeram a restaurar o equilíbrio da cafeicultura, ajudar os agricultores e se manter como os principais Estados produtores. Para chegar a esse compasso, os governos decidiram que por meio da compra dos excedentes da produção cafeeira, poderiam auxiliar os produtores, além de não plantar café pelo período de cinco anos. Como consequência, tais restrições beneficiaram os países concorrentes, que tiveram condições de aumentar a área do cultivo cafeeiro. Outro efeito do Convênio de Taubaté foi o impulso à industrialização de São Paulo, como medida alternativa à derradeira economia cafeeira (POZZOBON, 2006). Aqui no Paraná, no campo, o verde dos pés de café tomava conta da paisagem. Famílias inteiras eram formadas, clãs eram estabelecidos, e a geração cafeeira – com muita terra nas unhas – se firmava. Diante dessa próspera alternativa, muitos cafeicultores de outros Estados fizeram as malas e desembarcaram no solo paranaense. Em 1920, o Paraná já contabilizava 1.215 propriedades cafeeiras, entrando para o seleto grupo dos Estados brasileiros que conduziam a promissora e rica cultura dos cafés. Com a atuação da Companhia de Terras Norte do Paraná (CNTP), cada vez mais pessoas chegavam ao norte e noroeste do Estado. Para a historiadora Nadir Cancian, a ampliação da área cafeeira no Paraná “evidencia que os programas de defesa dos preços levaram à ex41


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tensão do plantio que, conjugada a outros fatores, constituiu-se em poderoso estímulo à produção cafeeira no Paraná”. Em artigo, ela conta que no auge, a cafeicultura paranaense atraiu pessoas até de outros lugares do mundo, que buscavam entre suor, calos e esperança, grandes mudanças de vida e a motivação para ver brotar novos sonhos. Assim como nem tudo que reluz é ouro, o sedutor aroma do café paranaense também teve declínio. A partir dos anos 60, o governo incentivou novas culturas agrícolas, racionalizando o plantio do café. E para esgotar o último gole da xícara, aconteceu uma grande geada, chamada de “Geada Negra” de 1975, que transformou o verde dos cafezais, em brancos – e congelados – folículos de esperança. Com os cafezais condenados pela geada, a maioria dos cafeicultores paranaenses se rendeu ao novo compasso proposto pelo governo, e se jogou em novas – e amedrontadoras – propostas de plantio. O café, mesmo não saindo completamente de cena, abreiu caminho para a soja, arroz, feijão, mandioca, milho e variados cultivos. Novos passos, novo ritmo, novas vestes e fé renovada. A terra não negaria um sequer resquício de fartura para os filhos dela, ainda mais com a modernização fincando bandeira como mão auxiliadora dessa nova peleja. O programa de crédito agrícola foi o maior incentivador utilizado pelo governo federal para a expansão dos novos filhos da agricultura paranaense. Compra de insumos como fertilizantes e defensivos, muito utilizados na agricultura moderna, ajudaram no desenvolvimento. Não era ouro, mas brilhava e entorpecia os mais minuciosos olhos. Os campos paranaenses foram tomados pelo amarelo dos campos de trigo, soja e das novas culturas da terra, triplicando a produção de grãos até os anos 80. Mais de oito milhões de toneladas de grãos foram produzidos em 1985. As culturas de cana 42


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de açúcar, mandioca, café e algodão complementavam a rica – e seleta – cultura agrícola paranaense. No compasso da modernização e consequente industrialização do processo, o trabalho braçal do homem do campo passou a dividir espaço, e preferência, com as grandes máquinas. Acontece então uma migração do homem do campo para a cidade, as indústrias aumentam seu potencial e alavancam a produção de matéria-prima, insumos, máquinas e equipamentos para a agricultura. O ouro agora não vinha das minas. Brotava dos campos e escorria em gigantes de aço – do campo e da cidade. Jorrando produtividade, o Paraná tornou-se notável no cenário econômico nacional, aumentando a sua atividade interna, e expandindo seu comércio internacional. Hoje, os mais importantes grãos que o Paraná produz são o trigo, o milho e a soja, que já tiveram recordes de safras, competindo com os demais Estados. O Paraná é conhecido como “Celeiro Agrícola” do Brasil, fixando-se como segundo maior produtor de grãos do país – perdendo apenas para o Mato Grosso, explicou a geógrafa e professora da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Cleonice Le Bourlegat. O Estado paranaense ainda é responsável por 23,5% de toda a produção brasileira de grãos, abrigando também as culturas de mandioca e cana de açúcar. O café, embora tenha perdido espaço para a soja, ainda é cultivado por produtores que utilizam a tecnologia do adensamento (técnica que reduz a quantidade de áreas vazias no solo), que facilita o trato da cultura, aumentando a produtividade por hectare de terra. O algodão, que também teve grande importância econômica, perdeu espaço para outras culturas, mas continua sendo plantado por pequenos produtores. Há ainda o cultivo de amendoim, aveia, canola, centeio e cevada, que mesmo sendo coadjuvantes, participam da vida econômica do Paraná – segundo o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social 43


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(Ipardes). Pequenos produtores paranaenses de laranja têm obtido bons resultados com a utilização de mão de obra familiar no negócio e investimentos em tecnologia e assistência técnica para elevar a produtividade. Valorizando cada fruto do presente e do passado, eles também garantem com as indústrias, contratos para a compra da produção a preços previamente negociados e, graças às cooperativas, os produtores paranaenses vêm provando que pequenas propriedades podem ser altamente produtivas. Neste ano, os diversos cooperados da Cocamar têm contrato com a indústria nacional e internacional de suco de laranja. “O que acontece no Paraná hoje é que o produtor é remunerado porque tem alta produtividade. O dinheiro que a indústria paga a ele compensa”, explicou o presidente executivo da Citrus BR, Christian Lohbauer, em entrevista para a Revista Globo Rural. Compensa e muito. Mesmo entre adversidades climáticas ou mesmo econômicas, o homem do campo não desiste dos seus propósitos, não abandona a sua lida e não se rende ao fracasso. Em Paranavaí, a noroeste do Estado, num pomar de exibidas árvores que enchem os olhos, o também produtor Cláudio Garbin, 59, conta que o clima da região ajudou bastante, mas o que fez, e faz, a diferença são os investimentos em tecnologia e os ensinamentos dos agrônomos. “Todas as recomendações que os técnicos fazem eu pratico.” Há dez anos, Garbin trocou o cafeeiro pelo pomar de laranja. “Na época, a laranja era rentável porque o dólar estava valendo mais de R$ 3. Depois, começou a baixar. Hoje, para quem tem contratos com a indústria, os preços ainda estão bons. Quem não tem contrato está vendendo a preços mais baixos. Tem uns aí que nem cobrem o custo de produção.” No município de Alto Paraná, também na região noroeste, o agricultor João Luz Pasquali, 62, investe na citricultura familiar há 20 anos. A mulher e os filhos trabalham diretamente no po44


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mar, buscando sustento para a família, aprendizado e valorização de todos os esforços feitos ao longo dos anos. O agricultor, que tem calos nas mãos, pele bronzeada pelo sol do dia a dia do campo e profundas rugas – testemunhas de toda uma vida de sacrifícios, sonhos e labuta –, coloca na ponta do lápis as despesas para produzir cada caixa da laranja que vende. “A indústria aqui garante tranquilidade. Nunca ficamos sem contrato. Tem amigo aí que fica um ano sem contrato e se rala, porque não tem onde vender. Talvez ele veja a laranja cair no chão e deixe lá. Aqui, nadinha fica para trás. Até as verdes vão”, conta orgulhoso o produtor. O Estado celeiro do país é grande, aconchegante e receptivo para toda e qualquer cultura agrícola. Em todas as regiões, por mais que haja predominância de determinada cultura, existe variedade agrícola. O ouro verde, por exemplo, ainda rende bons frutos – e saborosas xícaras – por aqui. As microrregiões paranaenses que produzem o café nosso de cada dia são as de Umuarama, de Paranavaí, de Cornélio Procópio, de Ivaiporã, de Campo Mourão, de Jacarezinho, de Londrina e de Ibaiti. Os nossos ricos e famosos cereais são plantados principalmente nas regiões de Toledo, Francisco Beltrão, Cascavel, Guarapuava, Pato Branco, Ponta Grossa, Foz do Iguaçu e Capanema. O arroz ganha destaque no cultivo nas terras de Guarapuava, Cornélio Procópio, Francisco Beltrão, Paranavaí, Campo Mourão, Ponta Grossa, Jacarezinho e Wenceslau Braz. O trigo tem se sentido em casa no solo de Toledo, Campo Mourão, Cornélio Procópio, Goioerê, Cascavel, Ponta Grossa, Londrina e Porecatu. O centeio, a cevada e a aveia, figurinhas peculiares da agricultura paranaense, encontraram família nas riquíssimas terras de Guarapuava, Campo Mourão, Apucarana, Cascavel, Prudentópolis, Palmas, Irati e Ponta Grossa. 45


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As microrregiões que mais produzem feijão são as de Francisco Beltrão, Irati, Prudentópolis, Wenceslau Braz, Ponta Grossa, Ivaiporã, Telêmaco Borba e União da Vitória. Ainda entre as riquezas paranaenses, nossa soja é também destaque internacional. No solo tupiniquim, é muito procurada como matéria-prima na indústria de óleos alimentícios. Os municípios paranaenses que mais se destacam na produção de soja são Toledo, Campo Mourão, Cascavel, Goioerê, Guarapuava, Foz do Iguaçu, Ponta Grossa e Londrina. Não menos importante – e com suntuosa presença – o algodão é o principal fornecedor de fibras para industrializar tecidos, “ganhando fácil” o coração das regiões de Goioerê, Toledo, Umuarama, Cornélio Procópio, Campo Mourão, Ivaiporã, Astorga e Cascavel. O amendoim – com gostinho de infância, de molecagem e da paçoca marota de cada momento bom – tem forte no Arenito Caiuá, mais precisamente nas regiões de Toledo, Umuarama, Cianorte, Francisco Beltrão, Campo Mourão, Pato Branco, Cascavel e Astorga. Entre pesquisas, leituras e histórias, aparece também o rami, planta têxtil própria para a produção de roupa. É uma herbácea que se originou na Ásia. O rami é adaptável a qualquer terreno e aos climas tropical e subtropical. Com valiosa fibra, uma combinação feita entre o algodão, a seda, a lã e o linho, o rami começou a ser produzido em Uraí, caindo nas graças de diversos produtores de Londrina, Assaí, Campo Mourão, Cornélio Procópio, Goioerê, Faxinal, Floraí e Porecatu. Com terra forte e fértil, o Paraná acolhe a todos, seja nas mais frias, porém sempre receptivas regiões, como também nas calorosas e convidativas áreas de clima quente. No norte e noroeste paranaense, o sol é forte e, confirmando o ditado popular, é de “rachar mamona”. Aliás, as sementes da mamona, utilizadas 46


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na atividade industrial e nos meios de transporte, como aviões, são figuras certeiras nas regiões de Ivaiporã, Umuarama, Pitanga, Goioerê, Cianorte, Faxinal, Campo Mourão e Toledo. A cana de açúcar pode até ter deixado de ser a rainha da atividade econômica do país, mas ainda é utilizada para fabricar açúcar, álcool, rapadura e diversos outros produtos – agradecemos à cana pelo delicioso caldo acompanhante de pastel (amém). As principais regiões paranaenses que têm destacado canaviais são Astorga, Jacarezinho, Cianorte, Cornélio Procópio, Porecatu, Paranavaí, Campo Mourão e Ivaiporã. Valiosas na agricultura e na mesa de milhares de pessoas, a batata e a mandioca são destaque nas plantações das regiões de Curitiba, Lapa, Guarapuava, Rio Negro, Ponta Grossa, São Mateus do Sul, Prudentópolis, Irati, Toledo, Paranavaí, Cianorte, Francisco Beltrão, Cascavel, Campo Mourão, Foz do Iguaçu e Capanema. Nesta rica produção da agricultura do Paraná, ainda há imenso espaço para frutas como laranja, banana, maçã, pêssego e uva. Na salada mista de frutas, café, soja, arroz, algodão e todas as demais culturas citadas, a terra paranaense é a mãe de todos os filhos. Abraça e acalenta o homem do campo, entrega-se sem medo às tecnologias e, de coração aberto – assim como todas as mães – sempre terá espaço para mais um cultivo, mais um trabalhador. Regada a história, suor, e esperança, a terra do Paraná, cresce, prospera, destaca-se nacional e internacionalmente. Dos 371.051 estabelecimentos rurais existentes no Paraná, 302.907 são caracterizados como sendo da agricultura familiar (Ipea). As pegadas do homem do campo, sejam do grande produtor exportador ou do humilde e pequeno feirante de rua, são as notáveis e inesquecíveis condutoras dessa dança caliente. Os anos podem passar, os cultivos podem variar, mas a receita continuará sempre sendo a mesma: trabalho, dedicação e destreza. Esses são 47


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os grandes adubos da agricultura do Paraná – dessa terra que tudo dá. Porque aqui, a gente faz assim.

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CAPÍTULO III

“Maringá, que não tinha energia, era a cidade mais iluminada de toda região” Na década de 50, a jovem Cidade Canção já brilhava. Kerouaquizando a história, o que seria da escuridão se não houvesse a luz, o fogo? O que seria do mundo sem as pessoas que se arriscam em novas ideias, novas oportunidades? Que não se deixam abater – por mais congelante que pareça a situação? O que seria de todos nós, se não existissem aqueles brilham, engajam, empreendem, têm liderança e visão de futuro? Em uma boa história a chama de quem a conta e a escreve deve ser intensa. Aqueles que queimam verdadeiramente são capazes de mudar o mundo, por mais adversa que, muitas vezes, a vida pareça estar. O livro Cocamar, 50 anos, presente entregue ao mundo por meio da escrita do jornalista maringaense Rogério Recco, em 2013, traz as memórias do pioneiro da cidade de Maringá Edmundo Pereira Canto – que mais tarde, viria a ser um dos fundadores da Cocamar. Ele, desbravador nato e em chamas por obter o que de melhor a vida poderia lhe dar, não hesitou – simplesmente correu, tentou e brilhou. O pioneiro conta que naquela época, quem passasse pela cidade de avião “teria a impressão de que estava sobrevoando uma grande fogueira”. E essa chama, da Cidade Canção, ainda estava apenas começando. Fundada em 1947, Maringá tornou-se município em 1951. Desde 1942, com a Companhia de Terras Norte do Paraná – que depois da tomada acionária dos brasileiros viria a ser Companhia Melhoramentos, em 1944 –, já havia sido criada uma pequena, 51


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charmosa e promissora vila, o nosso Maringá Velho. O mundo criado naquelas oito quadras do local, nas quais estrangeiros, brasileiros, jovens, adultos e crianças se misturavam, foi criado para melhor atender os agricultores, que já estavam se instalando ali desde 1936. A Segunda Guerra Mundial a todo vapor, a falta de mercadorias, combustíveis e produtos já eram presentes em alguns lugares do país, e aqui, neste pequeno pedaço da terra em que tudo dá, mais conhecida como Paraná, uma pequena – e sonora – cidade era erguida. A canção já estava no ar. Cada nota musical que compõe esta sinfonia em forma de cidade – hoje, uma das maiores representações do Paraná – teve como base a terra, o suor de homens e mulheres que acreditaram e trabalharam pelos seus sonhos e a alegria de um povo que via no chão de Maringá, lugar de prosperidade, fartura e saciedade. O lugar e os corações daqueles que ali estavam em chamas. Desde cada pedaçinho de chão que era aberto entre os matagais e florestas que ocupavam Maringá, uma melodia ecoava por todos os cantos dessa cidade, entre chegadas e partidas. E a vida de cada lugar de Maringá, leva o nome daqueles que primeiro trataram da nossa terra nos anos 30. O historiador João Laércio Lopes Leal relaciona vários agricultores. A Fazenda Santa Lima, de Alexandre Rasgulaeff, é a terra que nos deixou de herança o Jardim Alvorada. A Fazenda Diamante, do produtor Silvino Dias, hoje é a zona norte de Maringá; a Fazenda Montenegro ficava onde hoje temos o bairro Vale Azul; a propriedade do agricultor José de Freitas Cayres Filho, originou a Vila Esperança; e do seu pai, Manoel Freitas Cayres, hoje é território da Universidade Estadual de Maringá – UEM; entre outras. Hoje, cimento, asfalto, milhares de pessoas circulando diariamente, tecnologia no comércio, no bolso e nas mãos. Onde a melodia do dia a dia de uma população que aumenta e busca progresso é formada por batidas e ritmos extasiantes, porém silen52


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ciosos - refugiados nos fones de ouvido e no subjetivo da rotina de cada bairro maringaense -, antigamente havia muito barulho, e era de todos e para todos. A bordo de uma carroça de roda dura, puxada por um velho burro, a família Grava chegava - de início só de passagem, mas depois para ficar. E eles não eram os únicos. “A viagem foi feita na carroceria. E ela era bem barulhenta, todo mundo sabia que a gente tava chegando. Tinha bastante serviço a ser feito, foi muito sofrido. Derrubei o mato, tirei tabuinha do palmito para fazer os primeiros ranchos e preparei a terra para o café”, recorda-se João Mori em relato aos 50 anos da Cocamar. Ele é patriarca da pioneira família paulistana que adentrou em Maringá. Em 1957, eles chegaram para ficar e tornaram-se parte da história da Cidade Canção. A passagem da “fogueira noturna” que Maringá se tornava durante a noite, contada pelo seo Edmundo Canto, refere-se aos troncos de árvores que ficavam acesos e queimando por dias e noite seguidos, para abrir espaço na mata. Depois que as ardentes cores do fogo deixam de iluminar a noite maringaense, o verde – o ouro verde – passa a ser o brilho da vez. Depois da derrubada da mata, do fogo da noite, de preparar a terra e semear as primeiras sementes – de café e de esperança – os produtores passam a esperar o resultado. Assim como relata o jornalista Rogério Recco, no livro Cocamar 50 anos, o café então teria o poder de fazer o sitiante maringaense rir e chorar. Rir, se estivesse no lugar certo e florescesse a tempo de pegar a economia cafeeira no auge. Chorar, se não fosse tratada da maneira correta e perdesse o compasso do ritmo do café. O período de espera para que fosse uma boa colheita levava em média três anos – isso para ser considerada uma safra de bom ritmo. Em terra de “pés vermelhos”, o historiador João Laércio, também em relato, disse que Maringá tinha 70 máquinas de beneficiamento - que mediam a quantidade e valor dos grãos de café 53


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dos produtores. Segundo o produtor Odwaldo Bueno Netto – cooperado número um da Cocamar -, essas máquinas prejudicavam os produtores, que ficavam endividados, procuravam ajuda nos bancos e, quando não tinham, buscavam outros produtores. Estes, com força vinda da união, tornavam-se influentes, fazendo os bancos cederem e oferecendo a eles melhores condições no que diz respeito às dívidas, créditos solicitados e no que mais fosse preciso. As máquinas – e a situação que elas criaram, acabaram sendo um dos motivos para a fundação da Cocamar. Nessa época, década de 60, diversos produtores se uniram, gerando então diversas cooperativas pelo país todo. O governo federal instituiu medidas para ajustar a produção de café – o qual o Brasil era líder mundial; foi criada a Organização Internacional do Café (OIC), com o objetivo de tomar medidas que levassem ao equilíbrio de mercado; e o esperado Acordo Internacional do Café entre as nações produtoras e as consumidoras foi assinado. Nos primeiros passos de uma grandiosa jornada, a Cocamar foi fundada com o intuito de organizar, apoiar e engajar a produção de um grupo pequeno de produtores. Cada produtor atribui a criação da cooperativa de um jeito – como retrata a história. Alysio Gomes Carneiro, engenheiro agrônomo e o primeiro executivo da Cocamar diz que outras cooperativas já estavam sendo criadas em outras regiões do Estado, a pedido do próprio Banco do Brasil – como forma de ajudar os cafeicultores e a economia brasileira, que já não encontrava tanto brilho no ouro verde como anteriormente. Entretanto, mesmo sem reluzir tão fortemente como antes, o rei não perderia tão facilmente a majestade: “o café continuava a levar progresso aos municípios e a fazer surgirem cidades quase que do dia para a noite”, conta a Recco, ainda no livro da história da Cocamar. Acompanhando seo Bueno e seo Carneiro, Ermelindo Bolfer, também cafeicultor que participou da fundação da Cocamar, 54


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diz na versão registrada em 2003 do livro Cocamar, uma história em quatro décadas, que nesta dança, o condutor foi o seo Bueno. “Ele tinha quinhentas ideias ao mesmo tempo, e todas boas. Para Maringá, ele era um homem excepcional. Estava 50 anos à nossa frente. Ele lançou ideia da cooperativa do sr. Milton Mendes, gerente do Banco do Brasil, pegou e pediu a colaboração da gente.” “Naquele tempo, não tinha comércio do café. Com isso, os atravessadores é que recolhiam a produção de sítio em sítio, pagando o que queriam. Além do preço baixo, eles pagavam preços diferentes pelo mesmo tipo de café, dependendo da cara do freguês. Isso gerava muita insatisfação entre os produtores. O café comprado em Maringá era vendido em Mandaguari, e para chegar lá, os caminhões tinham que passar por uma estrada de terra batida que ficava intransitável em dias de chuva. (...) Como o transporte era difícil, os atravessadores, mais conhecidos como picaretas, se aproveitavam para manter seus preços em baixa. Esta situação, mais o problema da crise nacional vivida pela cafeicultura, é que motivaram alguns produtores a pensar na fundação de uma cooperativa”, conta seo Edmundo Canto em “Cocamar, sua história, sua gente”. Diversos produtores passaram a se reunir “pelo menos mais de 20 pessoas ligadas à cafeicultura”, recorda seo Edmundo. As primeiras reuniões nem registro têm. Depois, com os passos já definidos e ensaiados, foram estipuladas atas nos encontros entre os cafeicultores. A primeira de caráter “oficial”, é datada de 27 de março de 1963 – como detalhadamente registra o jornalista Rogério Recco. Depois de muitas horas de sugestões, ideias e debates, os 30 produtores presentes naquele marcante dia batizam a cooperativa com o nome de Cooperativa de Cafeicultores de Maringá Ltda - Cocamar. Mais duas reuniões ao longo do ano, e tudo ficou definido dentro do estatuto da cooperativa. A união não só fez a força, mas também fez história na cidade maringaense. Ficou 55


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decidido então que os 46 produtores que participaram da reunião do dia 17 de julho de 1963 se tornariam os sócios-fundadores da Cocamar. Nessa época, a tecnologia já batia à porta dos produtores maringaenses. Novos produtos, novas lavouras e novas máquinas. Em 66, após uma geada que levou centenas de produtores a perderem todas as lavouras, o então IBC (Instituto Brasileito do Café) lançou um programa de financiamento de máquinas de beneficiamento de algodão, visando diversificar a economia das regiões cafeeiras e torná-las menos vulneráveis a todos os problemas – da terra e do bolso dos produtores. Em 1975, uma forte geada foi a derrocada. Diversos cafeicultores – fiéis à tradição do ouro verde, que não haviam desistido do cultivo, mesmo que outras geadas menores os tivesse prejudicado ao longo dos anos – renderam-se aos novos cultivos. O ritmo mudou, mas a procura pela melodia e a fé na terra ainda são as mesmas. A chama não poderia tão facilmente se apagar. Um flamejante exemplo são os irmãos Antônio e Edgar Baveloni. Eles sairam de Itápolis, São Paulo, em 1942 para derrubar a mata e plantar café. A família comprou terras, semeou e trabalhou duro, de sol a sol de geada a geada. Mas após a geada de 75, a decisão foi tomada. “Em 1975, arrancamos todo o café e partimos para a cultura de grãos”, contou seo Antônio. Os Baveloni então passaram a produzir soja e milho – assim como grande parte dos produtores, que perderam muito com as geadas e a crise. Grãos e algodão, as culturas da vez. Logo depois da grande geada de 75, os produtores passaram a procurar alternativas. Muitos deles, por sinal. A Cocamar, que era o alicerce de muitos desses produtores de Maringá e de toda região, mesmo especializada no trato produtivo, técnico e econômico quanto ao algodão e ao café – sim, ele ainda estava por lá – se reinventou, enfrentou crises, problemas internos e externos e 56


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passou a enxergar os produtores de grãos, assim como os Baveloni. Foi construído um armazém gigantesco para abrigar as safras de trigo, milho, soja e diversos outros grãos – já produzidos então pelos produtores paranaenses. Caindo nas graças dos produtores e da economia nacional, a soja passou a ser “o feijão que salvou a pátria”. Na edição de 2013 do jornal Valor Econômico, o então ministro da fazenda Delfim Netto lembrou que foi nos saudosos anos 60, a época que o então presidente do Banco do Brasil Nestor Jost apresentou-lhe um tipo novo de “feijão”, que brotava e prosperava no Rio Grande do Sul. Nessa época, o ouro ainda era verde e conduzia a economia. Porém, houve diversas intempéries que levaram a economia para outros rumos. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) foi criada em 1973, permitindo um salto tecnológico na produção de soja. “Partindo do nada, o Brasil descobriu a soja e produziu, em cinco ou seis anos, seis milhões de toneladas do grão”, afirmou o ex-ministro. Dos anos 60 para cá, a soja cresceu, a diversidade da produção aumentou e as cooperativas paranaenses também cresceram e prosperaram. De acordo com a Organização das Cooperativas do Estado do Paraná (Ocepar), até 2014, havia 82 cooperativas agropecuárias no Estado paranaense, que representavam 56% do PIB agropecuário estadual. Somando todas as cooperativas, há 1,7 milhão de cooperados, com resultado de R$ 2,16 bilhões em investimentos diversos e R$ 2,36 bilhões em exportações só em 2014. Somando os últimos três anos, o setor cooperativo obteve um lucro de R$ 100 bilhões. Em se tratando de qualidade de vida, Maringá – casa de uma das maiores cooperativas do Brasil - tem um dos maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado, com uma média de 0,808%. O índice geral do Paraná é de 0,74%. A mudança e a diversificação de culturas no campo benefi57


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ciou a todos, inclusive quem não é cooperado. No fechamento de 2014, a soja atingiu um patamar histórico de 193,8 milhões de toneladas no Brasil inteiro. Só no Paraná foram 930 mil toneladas de soja, o ouro que reluz dourado nos campos paranaenses. E o que o pequeno produtor, as feiras de rua de Maringá tem a ver com isso tudo? Tudo. Os pequenos produtores podem ser aqueles que vieram de outros Estados há pouco tempo, como Ricardo Maqueschi Hiraka, 67. O feirante – e as apetitosas verduras da sua barraca – podem ser encontrados facilmente nas feiras maringaenses, mas antigamente ele já tentou outros cultivos, como café e soja, que não deram muito certo, seja pelo clima, seja pelo momento. “Eu até tinha uma terra boa pro café, pequena mas boa. Depois da geada de 75 perdi muita coisa e tinha umas dívidas altas da família, minha mulher tava doente e a gente tava tratando.” Devido às adversidades e ao clima, o café trouxe mais dívidas, a soja “não engrenou” e ele teve de vender parte das terras para poder manter “o nome limpo”. “Nada tem mais valor do que o nome da gente.” Foi então que entre verduras e legumes a família Hiraka se reinventou. “Almeirão, alface, rúcula, tomate, couve, cenoura de tudo um pouco. Se a época dá, a gente planta, cuida e depois vende, sempre com carinho porque as plantas sentem isso, sabia? Quanto mais carinho, mais vistosas e brilhantes elas ficam”, afirma o pai de dois filhos, um de 40 e outro de 36 anos; avô de uma menina de 14; e marido há 41 anos da dona Avelina Hiraka, 64. Na casa deles, as lembranças de uma vida feita de bons momentos. Mas também de muitos obstáculos. “Eu não sabia o que fazer, porque tinha família pra criar, entende? Mas Deus é muito bom e me encaminhou, me deu força pra trabalhar e pra nunca desistir porque eu tinha que ser exemplo. Os meninos me ajudaram quando deu, hoje eles é que cuidam e me ajudam na lida e na feira.” Os olhos brilham e as mãos, marcadas pela força de trabalho que foi exigi58


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da ao longo de toda uma vida, se juntam em um gesto nostálgico – de estar novamente revivendo aquelas lembranças. Na simples, aconchegante e amorosa residência, diversos e espaçosos cômodos e retratos de toda uma geração. Os móveis daqueles feitos de madeira antiga, talhados com detalhes rústicos e carregados de histórias – são testemunhas de diversas fases de uma família que encontrou por gerações uma nova forma de sobreviver. Sob um largo balcão, as fotos refletem no grande espelho que fica na parede do outro lado da sala. Ao lado de uma desgastada, porém convidativa, poltrona – dessas que lembram a casa da avó – um cesto a princípio feito de palha – que depois descobre-se, era feito de fibra de bambu – diversos novelos de linhas de crochê, agulhas e linhas diversas, coloridas e até com fios brilhantes. Realmente, o brilho visível, os subjetivos afago, macies e dedicação, e a sensação de segurança são visíveis – tanto nos novelos das linhas como em toda casa. “Tapete grande, pequeno, jogo pro banheiro, pra cozinha e até caminho de mesa. Eu faço de tudo, sempre gostei. Minha mãe me ensinou quando eu ainda nem tinha tirado as fraldas. Tenho até os calos nas mãos. Sente só”, mostra, em um gesto de carinho, dona Avelina. A chuva cai forte naquela tarde. O patriarca começa a se preparar para a feira com a ajuda do mais velho dos filhos, Afrânio Maqueschi Hiraka, 41, para carregar a camioneta e o carro condutor onde ficam os produtos e as armações da barraca. Afrânio, a mulher e a filha moram na grande casa do pai, em Mandaguaçu. O outro filho, Carlos Francisco Maqueschi Hiraka, fez faculdade, mora em Maringá com a família e é professor de educação física. Para a matriarca da família Hiraka, hoje não é dia de feira – é dia de uma sopa bem quentinha e de terminar o jogo de tapetes que está fazendo para a nora que mora na cidade. “Ela não tem tempo pra essas coisas e nem sabe fazer. Faço e dou de presente 59


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com gosto”, explica Avelina, enquanto prepara a comilança. Depois de diversas lições de crochê, tricô, uma deliciosa refeição caseira, ensinamentos sobre como fazer um bom tempero caseiro, muitas histórias de família e alguns programas na TV, a noite cai e seo Hiraka retorna com o filho. O cansaço é visível, mas mesmo com todos os sinais – e o suor encharcando a camisa – eles chegam com largos sorrisos no rosto. Sensação de dever cumprido certamente definiria tal cena. A família Hiraka é uma entre as muitas que obtêm do cultivo familiar, e da revenda nas feiras de rua da cidade, o próprio sustento. Mesmo com gigantescas propriedades, de milhares de hectares de produção de grãos, ou com gado correndo firme e forte nos pastos, ainda temos nossos pequenos produtores, que podem não ser grandes em números, resultados financeiros, ou largura de terras. Mas com certeza, são ricos em histórias e experiência de vida. Maringá, a eterna Cidade Canção, e o seu povo continuam fazendo história.

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CAPÍTULO IV

MARINGÁ: UMA FEIRA DE HISTÓRIAS A canção da cidade ecoa pelos bairros, praças, avenidas e alamedas. Essa mesma música também é tocada por corriqueiros corredores, lugares que exalam sabor, essências de uma alegria que não pode ser tocada. Envolta nessa sonora melodia – da canção e da cidade – Maringá é casa de 43 feiras que ocorrem todos os dias – faça chuva, faça sol ou mesmo que mudem a melodia. Há mais de 60 anos. Pode vir, pode chegar: Feira do Produtor, Feira Livre, Feira Verde e Feira Pôr do Sol. O que você vai querer?   É DIA DE FEIRA  Cores vivas, olhares atentos, sorriso no rosto e um vai e vem de sacolas, conversas, algazarras e procura. Abrindo alas para o público passar, a novinha Feira Verde está na casa dos 20 anos e reúne cerca de 40 feirantes. Ela começou em 22 de agosto de 2002, no Jardim Alvorada, região sul da cidade. A maioria dos feirantes era e são pequenos produtores que melhoram a renda das famílias na comercialização direta de parte da produção. O “Verde” do nome logicamente tem a origem na predominância da cor dos produtos. Reluz nas barracas e chama a atenção dos olhares atentos – e famintos – das pessoas que passam por lá. O foco dessa feira maringaense são as hortícolas – também reconhecidas popularmente como verduras, legumes ou vegetais, 63


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incluindo também as hortaliças (ramas, folhas e flores), as raízes (cenouras, rabanetes, beterraba), os bolbos (cebolas, alhos) e frutos (abóbora, pepino, tomate). Daí vem a necessidade de que os produtores participantes dessa feira  sejam produtores de alimentos e de produtos voltados para esse foco. Os alimentos que não são tipicamente produzidos na região, também são encontrados ali – salvo exceções. Tais critérios visam reunir produtores nas feiras de bairros e/ou menores, com maior variedade de produtos, para que possam atrair os consumidores. O caminho e procedimento para que um produtor entre na Feira Verde é o mesmo de qualquer outra: o feirante tem de ir à Prefeitura Maringá, solicitar e realizar um pedido via requerimento oficial. A prefeitura, por sua vez, repassa o requerimento para a diretoria da associação dos feirantes em que o produtor deseja se inserir.   Engana-se quem acha que feira é lugar de desorganização. Sim, ali tem grito, música e gargalhada – típicos comportamentos de quem está feliz, de quem oferece o melhor de si e de quem busca bons momentos. Toda essa barulheira provavelmente vem acompanhada de empolgação dos feirantes e consumidores. Para cada feira da cidade, existe uma categorização. Cada uma destas categorias tem a sua associação de feirantes formalizada.   Dentro das solicitações para novos membros nas feiras, o processo nas associações inicia-se da seguinte forma: o produtor participante é convocado e todos produtores que já são membros da associação reúnem-se para decidir se aceitam a solicitação de participação do novo feirante. Pelo entendimento de que todos precisam e merecem garantir o sustento das próprias famílias – como vários produtores expuseram ao longo de entrevistas para a produção deste livro – a aprovação de novos membros é comum e praticamente certeira.   Nesse sentido, a Feira Pôr do Sol, em Maringá há 24 anos, 64


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é a mais acessível a novos feirantes, pois não existe um limite de participantes e trata-se de uma feira rica em variados produtos de toda qualidade. Lá nesse Pôr do Sol que insiste em dar o melhor de si, todos os dias, o foco vai além do ramo alimentício. Essa feira começou em 2003, no bairro Borba Gato, região sul de Maringá. A Pôr do Sol tem o segundo maior número de feiras, 15; logo atrás da Feira Livre, que tem 18. Durante a semana, simultaneamente, são realizadas três edições da Pôr do Sol em bairros diferentes da cidade.  É de encher os olhos e aquecer o coração. A minuciosidade das pinceladas nos tecidos, da criatividade posta em cada detalhe dos arranjos, de cada marca – nas mãos e na vida – exposta dos feirantes para os clientes renderiam centenas de relatos, de histórias, de danças e reviravoltas de uma trama que envolve centenas de pessoas, de idas e vindas. Nas Feiras Livre e Pôr do Sol, a presença tradicional de artesanato ganhou espaço e tornou-se um grande e arrojado atrativo ao consumidor. Muitos são jovens e donas de casa, que têm gosto pelos trabalhos manuais e pela delicadeza das produções, como guardanapos, arranjos, enfeites, jogos para a casa, utensílios domésticos, etc. Para poder vender esses produtos, o feirante deve também preencher requerimento na Prefeitura de Maringá, que será repassado aos fiscais da feira. Eles, então, verificarão a possibilidade de venda de um determinado produto. A taxa anual cobrada pela prefeitura de uso e ocupação de solo, explica a coordenadora das feiras, Ana Paula Capelasso, é contrapartida pelos serviços públicos oferecidos: “o setor do controle das feiras, os fiscais, a limpeza, a secretaria de gestão e fiscalização para que haja tranquilidade na comercialização e consumo”. Observando a questão da segurança no local, tanto para os feirantes como para os consumidores, a coordenadora pontua: “não estamos livres de situações que podem envolver fiscalização, 65


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assistência social ou atuação da polícia. Observamos já casos de usuários de drogas nas imediações da feira, o que traz para toda comunidade, em especial a que está ao redor da feira, uma insegurança. Por isso, tivemos a necessidade de contratar segurança particular”, lembra Ana Paula.   A taxa cobrada vai de acordo com o tamanho das barracas, da metragem de ocupação de cada uma delas. As menores ficam com o valor de R$ 109 mais R$ 36, referentes à licença sanitária. As barracas que demandam espaço maior, justificando-se pelo tipo e quantidade de produtos oferecidos, chegam até cinco metros quadrados e pagam R$ 145. As metragens maiores, acima de cinco e alcançando dez metros quadrados são taxadas em R$ 290. Todos os valores são cobrados anualmente, ainda com possibilidade de parcelamento.  Desde 2009, a Prefeitura de Maringá, em parceria com o Sebrae Paraná (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) do Paraná, passou a oferecer para todos os feirantes ativos, treinamentos e capacitações, auxiliando também no que tange à padronização das bancas. Quanto a essa padronização, o que ainda era resistência no passado, hoje observa-se como forma de organização e higiene, além de trazer melhorias quanto à conservação dos alimentos expostos.   Maringá, sob aspectos, é uma cidade que apresenta boa estrutura urbana, inclusive com reconhecimento nacional feita pela Revista Exame (edição agosto/2015). A publicação apresentou uma lista das cidades mais inteligentes do país e Maringá se sobressaiu entre municípios como Rio de Janeiro, Curitiba, Belo Horizonte e Vitória. Um dos pontos destacados pela revista é o uso, pela prefeitura, de imagens de satélite para evitar o crescimento desordenado. “O monitoramento contribuiu para a cidade emergir como a primeira colocada na categoria planejamento urbano”, afirma a reportagem.  Nesse planejamento, no entanto, o 66


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município não parece estar dando a devida atenção às feiras, que também compõe o seu patrimônio. As feiras de Maringá passam por dificuldades, pois o número de feirantes tem diminuído com o passar dos anos. A exceção nesse ponto é a Feira do Produtor, assessorada pela Emater. O motivo desse sucesso pode ser atribuído aos “produtos [frutas, verduras, entre outros] sempre frescos, a possibilidade do contado entre consumidor e produtor e ao trabalho da Emater que faz a inscrição dos feirantes e garante acompanhamento, assistência técnica e coordenação durante a feira”, diz Jorge Ogassawara, agrônomo do órgão e coordenador da Feira do Produtor. Formosa é dotada de muitos corredores, a Feira do Produtor tem atualmente 125 produtores associados de 17 municípios diferentes. No deslocamento de propriedades rurais até a feira, alguns feirantes enfrentam dificuldades para transportar as mercadorias, por falta de estradas ou má conservação das existentes. Boa parte deles mora nas propriedades rurais, onde ficam as plantações “e a roça de onde vem o sustento”, diz Jeovanildo Perez, 57, que mora em Mandaguari e é feirante há 18 anos. Quando os trabalhadores são de municípios mais distantes como Santa Isabel do Ivaí, Porto Rico, Guairaçá, São Tomé, Nova Esperança, Uniflor, Colorado, Londrina, os custos de deslocamento são maiores. A Feira do Produtor de Maringá se encontra no espaço público, portanto, espaço de responsabilidade da Prefeitura de Maringá, apesar da coordenação individual ser da Emater – que diretamente controla a presença e cadastros dos produtores rurais. Conforme registros oficiais da prefeitura, a Feira do Produtor existe há 33 anos – completados este ano.  Em entrevista, Ogassawara contou que ele e outros amigos viram a necessidade de vender os produtos cultivados por eles por meio de uma feira em Maringá, evento que já acontecia em outras cidades. O grupo fez visitas nas feiras livres de São Paulo, pesquisas e levantamentos 67


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para conhecer os procedimentos físicos e burocráticos e iniciar as atividades – já que na época, 1982, não havia supermercados que os comportassem. Nesse início, os primeiros produtores levavam o que tinham – mesmo que fosse pouca mercadoria. A época era complicada – economicamente – para a maioria deles, mas o trabalho nunca acabava, a esperança de que a situação melhorasse, e a certeza de que algo novo estava prestes a mudar a trajetória dessas famílias crescia. Mesmo que fosse apenas “um franguinho”, cinco ou seis pés de alface, ou algumas frutas. Como é uma das maiores feiras da cidade – e uma das mais movimentadas também, com cerca de 20.000 consumidores semanais – existe uma fila de espera de produtores que querem fazer parte dessa feira. Os critérios para que ocorra chamada de feirantes seguem a dinâmica da feira, ou seja, se um produto é importante para melhorar o atendimento aos consumidores, um candidato pode ser chamado antes dos demais à sua frente, como explicou coordenadora das feiras Ana Paula Capelasso. O objetivo principal da Feira do Produtor, segundo Jorge Ogassawara, é dar oportunidade ao produtor de ingressar no mercado, usufruir os benefícios e permanecer no processo produtivo, tendo possibilidade de ampliar sua atividade.  De acordo com a história dos feirantes e da coordenadora das feiras, Ogassawara, Antônio Rodante e Luiz Caetano Vicentini identificaram a necessidade de se realizar uma feira maior na cidade, então realizaram pesquisas em feiras de outros Estados, como a Feira de Mogi das Cruzes (SP) e de Lavras (MG). Com o apoio da Emater foram inscritos 43 produtores interessados em vender seus produtos, com presença apenas de 27 produtores na feira inaugural. “Em contrapartida, compareceram mais de 2.000 pessoas para adquirir a produção” (RODANTE, 1996, p. 1-3).  De lá para cá a Feira do Produtor cresceu e, junto, também 68


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cresceram os problemas, os quais o grupo de produtores iniciantes não tinham condições de administrar sozinhos. Surge então a Associação da Feira do Produtor de Maringá, que administra e dá suporte à atividade. Para a maioria dos integrantes, hoje a Feira do Produtor é a principal fonte de renda, visto que 90% deles são pequenos produtores familiares. A grande preocupação é fazer sucessão, tendo em vista que em algumas famílias, “algumas das gerações mais novas não demonstram desejo de continuar a atividade dos pais. E é o nosso desejo ficar aqui por longos anos”, diz Ogassawara.  A função da Emater na feira é de gestão, coordenação, assistência técnica, treinamentos, elaboração da lista de preços, assessoria à diretoria, cadastramentos, inscrição, vistorias e regulamentação sanitária, pois a Vigilância Sanitária faz visitas às barraquinhas periodicamente. “É bom, é necessário e é assim que garantimos produtos de qualidade, segurança e fidelidade dos nossos clientes, que se tornam nossos amigos”, diz o agrônomo.  “Caso não existisse ou ela [a Feira do Produtor] acabasse hoje, o impacto seria grande, visto que nossos produtores familiares não têm estrutura para entrar no mercado atacadista, tanto na Ceasa como nos supermercados. Grande parte dos produtores direciona a sua produção para a feira, visto que já conhecem a preferência dos consumidores e, assim, produzem para satisfazer a essa clientela”, conta Ogassawara, olhando para a prancheta onde estão os nomes dos feirantes.  Se não tivesse a feira, aqueles que precisam dela para garantir o sustento da família, ficariam em uma situação difícil. “Com tudo isso, temos ainda a questão da sucessão familiar dentro da propriedade, pois hoje temos 31 produtores titulares que continuam a atividade do pai que foi feirante anos atrás. Até casório e romance você vai encontrar por aqui.  Várias  meninas cresceram aqui pelos corredores da feira, casaram e agora consti69


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tuíram uma família. A família da feira”, conta Ogassawara. Com a falta de mão de obra e com a produção totalmente direcionada para a feira, surgiu um problema com relação à compra por parte do governo (Programa de Aquisição de Alimentos – PAA – e Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE), pois não sobra da produção regional para abastecimento nesses programas. A Secretaria das Feiras de Maringá juntamente com a Associação das Feiras trabalham para encontrar uma solução.  Na maioria das barracas, de todas as feiras, a mão de obra é familiar, poucos contratam trabalhadores mensalistas ou diaristas. Em uma pesquisa realizada pela Prefeitura em 2013, constatou-se que pela Feira do Produtor passam semanalmente, cerca de 20 mil pessoas, sendo o maior fluxo na quarta-feira. Ainda segundo dados da Emater, são 278 associados cadastrados até a presente data, sendo que 136 participam ativamente. O número médio de produtores participantes por feira realizada é de 121 pessoas – 50% de Maringá. Desses números, pode-se afirmar que cerca de 1.200 pessoas (membros da família e empregados) sobrevivem com os rendimentos que a Feira do Produtor proporciona. São cerca de 115 no sábado, 60 na segunda-feira e aproximadamente 130 na quarta, nas palavras de Jorge Ogassawara, “arredondando”. A média de volume total vendido no mês chega a 159.570 kg, um total financeiro de R$ 267.850. Por produtor, o lucro ultrapassa o valor de R$ 2.142,80.  Servindo de referância para preço de mercado e regulador de preço para as demais feiras da cidade, a Feira do Produtor inspira outras feiras em todo o Paraná e também em outros Estados, como Mato Grosso do Sul e Minas Gerais.  Números, estatísticas e valores à parte, o pioneiro, agrônomo, fiscal e entusiasta da Feira do Produtor alega que não há como definir em uma única palavra o trabalho que vem sendo realizado ao longo desses anos. “Parceria, organização, amizade, 70


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venda direta, produtos frescos e, principalmente força de vontade”, relata Jorge Ogassawara.  No começo, os produtores não acreditavam na nova opção de mercado e outros tinham vergonha de enfrentar o público consumidor. Havia, portanto, um grande distanciamento entre o produtor familiar rural e o consumidor urbano. Porém, verificou-se também um grande potencial de venda pela intensa presença dos consumidores. Foi necessário preparar os produtores para que pudessem ser também vendedores, ou seja, foi necessário criar um capital social.  Assim as feiras são vistas como a única oportunidade de o produtor vender seus produtos diretamente ao consumidor, sem a presença de intermediários (hipermercados, supermercados, feirantes revendedores e outras atividades comerciais).   A variedade de itens oferecidos é imensa: conservas, pescados, produtos derivados do leite e de industrialização caseira, carnes, hortifrutigranjeiros, flores, mudas de plantas e frutas, legumes – inclusive grãos –, verduras, ovos, aves, mel, pequenos animais vivos, peixes frescos e peixes vivos, derivados do leite como queijo, manteiga e requeijão; conservas, doces caseiros, compotas, tudo que tenha origem na propriedade do feirante. Ainda os artesanatos, os vendedores ambulantes – que oferecem brinquedos e produtos lúdicos e eletrônicos adquiridos pela internet ou no Paraguai, e até apresentações artísticas. Também existem as comidas típicas – predominantemente a cozinha oriental e japonesa, devido à grande quantidade de imigrantes e descendentes em Maringá, churrasquinho, tapioca, crepe, pastel, sorvete. Quem vai à feira para comer, come bem e tem muita opção.  Para chegar nos locais em que acontecem as feiras, nem precisa de tecnologia via GPS ou mapa ou qualquer orientação. É só sentir o cheiro das delícias que fica no ar, seduzindo os moradores dos bairros ou qualquer um que passe por lá. Afinal, cheirinho de 71


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pastel frito na hora, de uma boa carne assada, junto com aquele aroma doce das diversas especiarias, é fácil de reconhecer – e muito gratificante de seguir. Categorizando os produtos de acordo com as feiras, quem busca variedade de verduras, frutas, legumes, até produtos artesanais, brinquedos, roupas, dentre outros, a Feira Livre é a ideal. A Feira Verde prioriza verduras, frutas e legumes orgânicos, livres de agrotóxicos. Nas feiras noturnas e do Pôr do Sol, além dos produtos das feiras livres, comercializam-se – e garante sucesso – os pratos típicos regionais e internacionais, como comidas baiana, mineira, japonesa, árabe, entre outras. E pastel em todas elas, claro. Nesse tipo de feira (com as comidas típicas) as barracas têm permissão para funcionar até as 21 horas. E não menos importante, a Feira do Produtor comercializa todo e qualquer produto hortifrutigranjeiro, pães, doces, pasteis, queijos, compotas, carnes frescas, utensílios domésticos de madeira, caldo de cana, etc.  A modernidade bate à porta, temos a tecnologia na ponta dos dedos – literalmente. Hoje em dia, em um mundo globalizado no qual a sociedade se joga em demasiadas tarefas, fazendo o tempo escorrer por nossas mãos, otimizar é o verbo principal para todo e qualquer processo, inclusive quando se trata de compras. A internet oportuniza, inclusive, a opção de se fazer compras no supermercado sem sair de casa, inclusive com opção para a compra de todos itens – já citados anteriormente – que encontramos nas feiras. Levando em conta logística, otimização de tempo e contemporaneidade, as tradicionais feiras de rua irão perpetuar?   “A nossa feira tem produto diferenciado de melhor qualidade, que você não vai encontrar em supermercado nenhum e com um fator essencial, que é a mercadoria fresquinha, direto do produtor, não tem tecnologia que pague ou entregue isso”, disse o feirante e presidente da Feira do Produtor José Márcio Franciscato.  “Acredito no futuro das feiras de rua de Maringá porque a 72


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população tem vontade de frequentar uma feira. Sair de casa, encontrar os amigos e passear. Com a entrada dos supermercados, tivemos concorrência forte, mas sobrevivemos”, diz o também feirante Jorge Ogassawara.  “A Feira do Produtor tem fila de espera até hoje e o produtor rural, por mais que esteja existindo o êxodo rural, nos procura muito. Nem todos os filhos ou a grande maioria dos filhos têm condições de continuar na terra como os pais, mas a situação é boa, apesar de passarmos por uma crise brava. O governo tem projetos e formas de incentivo à agricultura familiar, então todos aqueles que dependem da terra, que sobrevivem do que o campo oferece, estão se adaptando também, evoluindo, mas sem perder as raízes. Havia produtores que vendiam exclusivamente legumes e hortaliças, aí as feiras começaram a trabalhar com o minimamente processado porque o futuro é esse, e o público começou a pedir. Esses feirantes que não queriam deixar o tradicional, acabaram cedendo e também trabalham com tudo cortadinho, embaladinho, pronto para o consumo”, diz a gerente de controle de feiras livres da Prefeitura de Maringá, Ana Paula Capelasso.   “Para esses trabalhadores a feira tem futuro sim; continuará existindo pois tem garantido a sobrevivência de muitos feirantes (principalmente os produtores), além de movimentar a economia local, gerando ocupação e renda para uma parcela da população que não possui os atributos necessários (idade, instrução, etc.) para os empregos urbanos. No entanto, para continuarem existindo, as feiras necessitam ser mais dinâmicas, inovadoras e prestativas, devendo possuir serviços personalizados aos consumidores, motivação relativa ao gerenciamento do negócio familiar, competência (investindo na formação) e profissionalismo”, aponta o professor e doutor em geografia da Universidade Estadual de Maringá, Virgílio Manuel Pereira Bernardino, em sua tese “A Mobilidade da Força de Trabalho e do Consumo nas Feiras de Maringá 73


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(Brasil) e de Leiria (Portugal): A resistência do Setor no Contexto do Capitalismo Global (2015 p.115). Tudo sem perder a cultura familiar, o contexto e atmosfera de um “grande bairro” e “vila rural”, na qual todos são vizinhos e formam grandes famílias.  Marcio Sena, da Associação de Feirantes da Feira Verde, destaca que as feiras são importantes formas de abastecimento da cidade. E vai de acordo com o que a coordenadora das feiras pontuou.  “Existe o lixo. Nós não temos como fazer a coleta dos restos de todas as feiras, porque imagine 43 feiras, de manhã, de tarde, de noite. A prefeitura ainda não tem estrutura para ter uma equipe só exclusiva e ativa para atender as feiras. Só que nas principais, como a Livre e a do Produtor, existe a coleta e colocamos algumas caçambas. As feiras normalmente estão em frente a residências, em frente ao comércio, então às vezes a gente ainda tem certos tipos de problemas quanto a isso. No restante, ainda tem a questão das ruas, avenidas e do tráfego, o fluxo também do trânsito de pedestres; as pessoas donas das residências que ficam próximas pedem reformas nas calçadas que, vez ou outra, são danificadas e ainda a segurança”, explica Sena, que procura uma solução para todas essas questões.  A feira sobrevive, mesmo com as intempéries cotidianas e dentro de cada tipo de produção, cada detalhe e minúcia que envolve os produtores rurais, pode-se observar de acordo com a tese do professor Bernardino, diferentes tipos de feirantes: o revendedor, o produtor, o produtor revendedor e feirante funcionário.   São produtores aqueles que comercializam o que produzem, ao passo que os feirantes revendedores apenas vendem a mercadoria. Os produtores revendedores, produzem o que vendem, mas também compram para revender. Os feirantes funcionários vendem mercadoria de um patrão e auxiliam nos serviços mais difíceis como montar as barracas e carregar os produtos até 74


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aos locais de venda. Essa última categoria tem grande importância, pois muitos feirantes têm idade acima dos 60 anos, o que muitas vezes contribui para o surgimento de algum tipo de cansaço físico. Com a ajuda dos feirantes funcionários, aumenta a possibilidade do feirante, seja de qualquer outra categoria, ter disponibilidade de tempo para atender à produção e o consumidor. As pessoas que trabalham nessas feiras são, em sua maioria, integrantes de uma mesma família, vendendo suas mercadorias, ou nos casos dos produtores, também trabalham na propriedade da família. Nas feiras verificou-se que parte dos feirantes têm o ensino médio completo, e existe uma parcela que tem ensino superior – concluído ou em andamento. O que faz com alguns tenham jornada dupla de trabalho em dois empregos, na feira e na outra profissão de origem acadêmica. Os jovens pontuam a continuidade das feiras, mesmo aqueles com curso superior.  A educação e conhecimento, ratificados pelos feirantes mais velhos e pelos jovens feirantes, são quesitos importantes de extremo interesse e necessidade. Educação, qualidade de consumo, qualidade de produção, qualidade e estímulo de vida. Nas feiras de rua de Maringá, assim como em qualquer outra comunidade que tornou-se um organismo vivo e independente, existem os problemas, as adaptações, as contribuições e as características que tornam cada setor, cada categoria única e necessária para o bom funcionamento do todo, da feira em geral. E é essa unicidade, essa demasiada força de vontade que continuam a fazer crescer cada plantinha, que reforçam raiz e geram fidelidade à família, aos amigos e ao produtor ao lado. Essa é uma história que é contada todos os dias, arrastada por cada rua, bairro e avenida. É vivida a cada amanhecer, em cada vistosa e cheirosa fruta oferecida, em cada barraca erguida.  75



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CAPÍTULO V

FEIRA DE PESSOAS

De todas as cores, de todas as raças. Contando os minutos, gastando as horas. Sapatos folgados, chinelos rasteiros, sapatos fechados, saltos e brilho. Nível superior, ensino fundamental incompleto e o “eu nunca fui para a escola” misturam-se em experiência de vida e de profissão. O uniforme das empresas entrega aqueles que passam o dia na labuta, seja dentro de um escritório ou empunhando uma desempenadeira – que alisa a argamassa nas centenas de construções cidade adentro. A tinta da roupa surrada e o gesso na botina desbotada podem parecer sujeira para quem vê, mas é motivo de orgulho de quem trabalha de sol a sol para sustentar a família – e assim o faz sem dever nada a ninguém. Aquele velho e manjado clichê de que “o suor do trabalho dignifica o homem” é atemporal, independentemente se as mãos passam o dia em um teclado de computador; usando uma enxada ou utilizando uma trincha. O suor que marca a camiseta e a roupa mais confortável identifica quem leva uma vida mais fitness. Nas rugas dos casais de tanto tempo ou no jeito daqueles de nova cumplicidade, desfilam sentimento, harmonia e vida em comum. Amigos que se encontram casualmente e aqueles grupos que todas as semanas têm o encontro marcado, como se fosse um ritual, um compromisso inadiável de separar o momento e celebrar a amizade. Famílias inteiras e solitários olhares com suas sacolas. Crianças? Sempre tem. “Vai querer o quê?”, pergunta a moça de longos cabelos ne77


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gros e sorriso largo no rosto. A feira é livre para todos. Por mais que lá existam pessoas que já sofreram muito na vida; e sentimentos que devem ficar no passado.O presente é batalhador, derramado em simpatia, em vontade de ser mais, de poder fazer mais, e de – com fé em Deus e trabalho árduo – ter a certeza de que esse é o lugar certo. Lugar de cores, de sabores. Lugar de essências, cheiros e aromas que se misturam e tornam a atmosfera irresistível. Não há como não querer se achegar, mesmo que for “só para dar uma olhadinha”. Nessa mistura de todos os tipos, o encontro é marcado todos os dias. Mesmo que em locais diferentes, esse coletivo de diferenças torna-se único, uníssono e repleto de oportunidades, tanto para quem vem, quanto para quem vai, ou para quem sempre permanece. ERA UMA VEZ, NA BARRACA DO PASTEL Uma barraca, um encontro e um só desejo: “Construir um futuro a dois”. Jéssica Lívero, 24 anos, pedagoga de formação, noiva do Júnior, filha do seo Jorge e feirante desde sempre. Jéssica nasceu em Doutor Camargo, mas quando era recém-nascida, a família passou por dificuldades e se mudou para Mandaguari, 29 km de Maringá. A moça cresceu na feira, ia para brincar com a molecada que acompanhava os pais – que faziam compras na feira. Também era a líder da patotinha composta pelos herdeiros dos feirantes. Enquanto os pais dessa galerinha trabalhavam, Jessica e os amigos brincavam de esconde-esconde, pega-pega e siga o mestre. Bons tempos onde telas de led, aplicativos e wi-fi liberado não eram prioridade. 78


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Quando completou 10 anos, a menina dos grandes olhos de jabuticaba decidiu que era hora de deixar as molecagens de lado e assumir responsabilidade. Ajudar o pai Jorge Lívero, hoje com 62 anos e feirante há 18, tornou-se prioridade. Seo Jorge é casado há 40 anos com a dona Lucimar, a maior incentivadora dos estudos de Jéssica. E com tanto empenho e certeza de que ali na feira estaria o futuro profissional, a jovem não deixou os estudos. “Meus pais me fizeram prometer que eu ia estudar e que teria todas oportunidades que eles não tiveram. O pai sempre me dizia que quem tem estudo, tem tudo, e que para filha dele, tudo ainda era pouco.” E assim o foi. A moça da feira estudou, abraçou o mundo e hoje é professora formada. Mas engana-se quem pensa que ela só vai à feira de passagem. No exato momento deste relato, Jéssica está com “a mão na couve”. Enquanto conta sobre a sua vida, atende os clientes – alguns a chamam pelo nome, pois já se tornaram amigos – com atenção, dicas de uso das verduras e o sorriso fácil. “O Júnior também fala bastante. Ele faz amizade fácil, fácil. As pessoas ficam aqui um tempão batendo papo com ele. Tem gente que chega de cara feia, não quer papo, pega o que quer e já sai. Mas quase sempre a gente fica conversando bastante tempo.” Nas manhãs e no período da tarde, Jéssica é professora do ensino fundamental. Quando é dia de feira, ela sai do colégio e vai direto para o “segundo turno”. Ali, ela chega, troca de roupa – dentro da Kombi da família – come algo “pra enganar o estômago”, e já assume lugar na barraca ao lado de Júnior César Barreto, 27, feirante desde sempre, amor da vida da Jéssica há sete anos. O pai de Júnior, Antônio Barreto, é feirante há 25 anos. Nem tão assiduamente os pais do jovem casal vêm trabalhar na feira. Com a saúde mais debilitada e o peso dos anos, os filhos assumiram de vez essa missão. Os pais dele moram em Mandaguari, em sítios vizinhos. 79


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Tudo que tem na banca é produzido nesse sítio – almeirão, rúcula, salsinha, cebolinha, couve “e o que estiver na época. Dependendo, até tomate a gente planta”. De todas as idades, de todos os sonhos. Todo sábado ela se sacode às 3 horas da manhã – e às 17 horas. A rotina é intensa. Antes de o sol nascer, Júnior já está em pé, na lida, cuidando das plantações, da roça. Ele também cuida das embalagens, de toda estrutura que é usada na feira – barraca, lonas, toalhas, placas e preços. Não tem feriado nem fim de semana. “O trabalho não para. Só no domingo que a gente acorda um pouquinho mais tarde, né, umas 9 horas. Na semana todo dia a gente acorda 5, no máximo 6 horas. ‘Passamo’ o dia na lida, cuidando de tudo com muito zelo porque o cliente gosta de coisa boa, e se o cliente compra, a gente garante sustento. Ainda mais agora que vou ser homem casado”, conta Junior. Quando é dia de feira, no período da manhã, o feirante chega ao local às 4 da manhã, pois precisa de tempo para armar a barraca e organizar os produtos. Se a Feira for no período da tarde, ele chega cerca de duas horas antes, às 15 ou 16 horas. Arruma tudo e recebe os clientes. Logo, Jéssica chega e o ajuda. Exemplo de cumplicidade, humildade e trabalho em equipe. E pensar que essa “amizade colorida” é culpa de um pastel. “Era uma vez, na barraca do pastel”. Jessica estava sentada no balcão, comendo o pastel de queijo – sabor favorito. Júnior chegou “correndo”, pedindo um de queijo também, mas não tinha mais desse sabor. “A moça aqui pegou o último”. Ele olha para Jéssica, abaixa a cabeça e pede um “tradicional de carne”. Sabe aquela troca de olhares, risadinha tímida e a tão manjada frase “você vem sempre aqui”? Pois foi exatamente nesse cenário, com esses gestos e com essas palavras que eles se conheceram, passaram a namorar e estão noivos. Depois que decidiram se casar, Jessica e o Júnior “juntaram as economias e os trocados 80


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que ganhavam”, assim conseguiram comprar a própria barraca, que fica ao lado da barraca do pai de Jéssica que agora fica só no sítio – quem cuida das vendas da barraca agora é Alan Lívero, 31, irmão de Jéssica. “Olha, não vou falar que é fácil, não. A gente gosta do que faz, mas é difícil. Já teve época de esbanjar dinheiro, mas também já teve época que a gente não vendeu quase nada e passou por necessidade.” Seo Lívero virou feirante em 1990. Alan, assim como Jéssica, passou boa parte da infância nos corredores da Feira Livre. Aos 12 anos, começou a ajudar na venda dos produtos – mas já trabalhava no sítio. “Eu já trabalhava com o pai. E eu queria ter as minhas coisas. Vendia um brinquedo aqui, uma coisinha ali, e juntei. O primeiro dinheirinho que consegui, comprei uma bicicleta. Foi o primeiro dinheirinho de umas abobrinhas que eu tinha plantado e vendido com meu próprio trabalho.” Com honestidade, empenho e foco no que queria, o feirante passou a trabalhar mais, fazer as economias renderem e logo já estava motorizado. Comprou o primeiro carro aos 17 anos “um Uno verde, bem lindão”. Nessa época, Alan estava terminando o ensino médio. Os Lívero nem sempre foram do ramo das frutas, hortaliças e verduras. Eles iniciaram as atividades com o bicho da seda – ainda em Doutor Camargo. Mesmo morando lá, toda produção era comercializada aqui em Maringá, na Feira Livre. Com o tempo, o custo benefício desse ramo de atividade não trazia mais lucro, por isso, um novo tempo de mudanças começou. Os esforços foram gigantescos, tanto para preparar a terra, adaptar-se às novas rotinas de plantação e cuidado com os produtos, como na questão de aprender e aceitar as novas condições para que o negócio desse certo. “Nossa sorte é que a gente sempre 81


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se deu bem com a terra”, conta Alan Lívero. Em 2010, depois de muita burocracia, Alan, com a ajuda do pai conseguiu comprar um lote, “uma terrinha pra mim”. Nessa época, eles moravam em Doutor Camargo e logo depois se mudaram para Mandaguari – sempre trabalhando juntos no município, localizado no norte central do Paraná. Doutor Camargo, pacato município da região metropolitana de Maringá, leva esse nome devido à homenagem prestada pela Companhia de Terras ao médico Antonio Cândido Camargo, nascido em Campinas (SP). Segundo o IBGE, o médico que formou-se em Medicina em Genebra, na Suíça, regressou ao Brasil e passou a exercer sua profissão na cidade de Limeira (SP), quando ficou famoso como cirurgião. Doutor Camargo – o médico – faleceu aos 82 anos, no ano de 1947. Mesmo com os terrenos separados, a plantação era uma só, mostrando que a união da família Lívero não era delimitada por espaçamento de terras ou dificuldades que a vida impõe. A então namorada de Alan morava na “cidade grande”. Em uma certa festa de bairro, estilo quermesse, nos tempos de Doutor Camargo, Alan conheceu uma linda moça de olhos verdes. Não deu em outra: eles namoraram, casaram e estão juntos há nove anos. Do relacionamento deles nasceu Nicollas Felipe Lívero, “o tesouro mais precioso que tenho na vida”, diz o feirante. Todo esforço no sítio não parava. Cada dia era uma batalha diferente. Mas o rumo sempre era o mesmo. Acordar cedo, antes do sol brilhar, e dormir tarde, fazem parte da rotina do feirante. Nos fins de semana ele relaxa e aproveita. “Fico mais com a família, cuidando da minha mulher e do meu filho.” Assim como Júnior, antes do sol nascer Alan também está em pé. Com coragem, esperança no futuro e sem nenhum receio. No momento em que ele conta a sua historia, algumas pessoas que estão na barraca parecem rir do feirante, no modo arrasta82


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do e típico do linguajar que ele usa. Mas o jovem feirante não se abala. Olha para os adolescentes com olhar calmo e sorri como se dissesse: – Para você pode ser piada, mas para mim, é meu sonho de vida, de batalha, realizados. Ele se volta para mim e diz: “Eu tenho orgulho disso. Eu gosto de ver as plantações. Plantar a sementinha, depois ver a plantinha crescendo e daí nasce aquela verdura vistosa”, conta o feirante, enquanto gesticula com as mãos, como se estivesse nas plantações dele, com terras nas mãos e felicidade pulsando nas veias. O brilho no olhar que tanto ele como Jéssica carregam, é a certeza de que ambos estão no caminho certo. “Já teve muitas horas que tive vontade de desistir, mas Deus não me permite desistir, Ele me ajuda a vencer”, conta a professora. A SELVA ERA DE PEDRA, MAS O CORAÇÃO ERA DA TERRA Tem gente que gosta dos grandes centros, do asfalto, da poluição. Do barulho dos carros e das pessoas, do dia a dia corrido e da frenética rotina de estar sempre contra o tempo. Adrenalina, excitação e sensação de liberdade, diriam os amantes da vida urbana, numa tentativa – talvez frustrada – de descrever o porquê de se viver na cidade e não abrir mão dela por nada deste mundo. Mas nem só de loucura sobrevive a humanidade. O carioca Juvenil de Moraes, nascido em Campos do Jordão, Rio de Janeiro, veio para Maringá em 1968. Em 1990, ele trocou todo o frenesi urbano, o golden ticket daqueles que sonham em um dia sair de supostas “vidas monótonas” de pequenas cidades e zonas rurais, para fazer exatamente o que toda a sua geração – e os próprios amigos – jamais sonhariam ou queriam: procurar calma, tranquilidade e uma vida pacata. Ele conseguiu comprar uma pe83


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quena propriedade em Marialva, e se mudou para lá. Hoje, com 61 anos, seo Juvenil conta que começou a tratar da terra e logo já tinha uma horta “verdinha prontinha”. Em 2003, ele conheceu Maria Aparecida de Moraes, hoje com 49 anos, casada com o feirante desde então. “Eu tinha uma propriedade em Terra Boa (região norte do Paraná). Também tinha um amigo lá que me apresentou ela”, conta entusiasmado e apontando para a mulher – que fica vermelha e abre um sorriso. O casal tem uma filha, de 9 anos. Mesmo com os pais feirantes – Maria também ajuda na barraca e na lida da roça com o seo Juvenil – a pequena Gabriela quase não vai à feira. Nos dias de trabalho fora de casa, a avó vai buscar a menina no colégio e a leva para casa, já ficando para cuidar da neta até os pais retornarem da feira. “Gabriela vai estudar. Ela eu quero ver doutora.” Nas propriedades da família, um único empregado ajuda ele. Antes de ir para a feira – ele sempre faz a Feira do Produtor no período da noite – ele já começa a colher a produção logo após o almoço, para assim dar tempo de embalar tudo e ainda garantir o frescor do campo que os clientes tanto procuram. “No dia da feira, acordo cedinho, já vou me preparando, vendo como vai ser a colheita, como tá o tempo e como vou fazer. A Maria me ajuda a escolher o que vamos levar, depois que o meu funcionário chega a gente vê se vai precisar ir em outra propriedade buscar [os produtos]. Até as três da tarde já tá tudo escolhido, colhido e a gente já ta finalizando as embalagens porque temos que começar a montar a barraca antes das cinco.” Juvenil conta que só quando vai na feira do domingo cedo, deixa tudo certo no sábado, pois acorda às três horas para vir para Maringá e preparar tudo para que às sete horas esteja “tudo nos conformes pros clientes”. O feirante que estudou até a quarta série de ensino fundamental, sempre gostou da natureza, de estar perto dela. O pai já 84


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era produtor no Rio. “Mas era desses que tinha uma horta grande no fundo de casa. Eu queria viver daquilo mesmo, de vender o que eu plantava.” Para Juvenil, a selva de pedra foi refúgio por muito tempo. Até para quem precisa de um pouco da loucura diária que a cidade grande oferece, o arraial que brota entre a tecnologia e o perder de vista de uma modernidade desenfreada podem até ser uma alternativa. Mas para ele, o canto sagrado dos pássaros ao nascer e findar do dia, o deslumbrante nascer de um sol que tem cores próprias quando apreciado sem ter arranha-céus que cortam a paisagem, e cheiro da terra molha – pela chuva, pelo suor ou pela esperança –; essas poucas e divinas coisas da vida, não têm preço. “Eu amo isso aqui. Não trocaria, de jeito nenhum”.

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CAPÍTULO Vi

UMA FEIRA, UM BANQUINHO E UM VIOLÃO “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma ‘faiá’”, já dizia Gil, Caetano e, em feiras de Maringá, Bonfim. José do Bonfim Batista, 60 anos de vida e 38 de dedicação à música. A carreira lhe rendeu três CDs gravados: um solo, com músicas de autoria própria, outro em parceria com o irmão João Batista, e outro com o amigo também músico Nilson Carreiro. Um caixote de madeira, um chapéu, o já conhecido banquinho e um violão. Parece cena de filme, mas não é. É o retrato da realidade de alguém que encontrou na música um alívio para a ingratidão dos fatos do passado, da amargura da alma cansada e do coração cheio de incertezas. Sobre um caixote desses de feira – não poderia ser outro tipo – desgastado pela chuva e poeira de tantas horas de todos os dias, os três CDs ficam enfileirados ao lado de um chapéu preto – onde as pessoas que por ele passam, depositam gratidão ao talento em forma de cédula. Bonfim é maringaense e músico há mais de 30 anos. Aos 21, um moço qualquer, cheio de intenções e objetivos e acompanhado de um novo amor – extasiado com a experiência de estar apaixonado pela primeira vez –, vê todos os planos e projetos cairem por terra. Ele perdeu totalmente a visão para uma doença hereditária, a retinose pigmentar, que o foi cegando aos poucos. Na família, quatro irmãos têm a mesma doença, hereditária, responsável pela cegueira gradativa – inclusive o irmão com quem faz dupla, João Batista. 87


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“Quando venho aqui, me desligo do mundão e canto a fé que Deus me deu. Dá até para ganhar uns trocadinhos, porque é da música que tiro meu sustento”, diz o artista. Nem o tempo ruim desanima o músico autodidata. “Pode se acabar em água! Eu tô prevenido”, tirando de dentro do caixote um grande guarda chuva. Quando já não enxergava mais, aprendeu sozinho a tocar violão e não parou mais. Nessa hora, qualquer indivíduo que ali estivesse escutando o relato do músico, sentiria o coração esmiuçar e os olhos encharcarem – afinal, quantas vezes maldizemos o universo, reclamamos do cotidiano, dos afazeres diários, das mazelas que criamos como incidentes negativos acerca de nossa própria vida, quando na verdade estamos no alto da mais conservada, completa e trabalhada saúde? Vergonha ao ouvir as palavras de Bonfim. Vergonha de ter tanto e reconhecer tão pouco – sobre minha própria vida. Quem chega a qualquer uma das feiras de Maringá, principalmente na do Produtor, de longe sente o aroma de churrasco, de pastel, e de quebra escuta a melodia do mais puro e autêntico sertanejo raiz, daqueles que dá vontade de deitar numa rede e não pensar em mais nada, apenas admirar as tão sofridas, porém amáveis, histórias de um povo de uma vivência, de um amor. Tonico e Tinoco, Milionário e José Rico, e Sérgio Reis – com seu sempre pezinho do iê-iê-iê da Jovem Guarda – sabem das coisas. Na quarta-feira, a música de Bonfim ecoa por entre os corredores lotados, e nesse dia o público é maior. Ali se encontra um coletivo de todas as formas, integrado por todas as tribos, classes, todo canto da cidade e todo intuito de estar naquele local. Nesse gigantesco bairro que tem dia e hora marcados para surgir e “desaparecer”, as pessoas parecem ser amigas, conhecidas de anos atrás, mesmo nunca tendo visto umas as outras. Existem as crianças que correm e brincam entre si; a moça refinada e imponente em seu 88


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salto e roupa fina mostrando claramente que veio direto do trabalho para poder comprar os produtos da feira – e os quitutes também, pois nas sacolas que exibem o verde das verduras, um pacote marrom, cheirando a fome, entrega o pastel fresquinho, ainda soltando vapor e fazendo a embalagem suar. Observando o violeiro que se apresenta no centro de um dos corredores, um casal que andava de mãos dadas se aproxima, sorrindo com os olhos um para o outro, sem saber que são uma representação viva dos sonhos de muitos que ali os observam. “Tá vendo amor, você não é mais assim comigo. O que aconteceu? Seu Corinthians é mais importante do que eu? Você já me amou mais”, diz a vendedora Caroline dos Anjos Lopes, 36, ao marido que está sentado ao lado dela, com os dedos engordurados empunhando-se de dois espetinhos de carne bovina, um em cada mão. Ele engole o pedaço que já mastigava, sorri e diz que “eu sou louco por você. E pelo Timão também” – Ricardo dos Anjos Lopes Junior, mototaxista, com certeza faz parte do bando de loucos, além de ser uma das figurinhas carimbadas da grande feira maringaense. “Feira da segunda, da quarta, do sábado e quando dá certo, no domingo também estamos na feira”, relata Ricardo. O cantor, nosso Bonfim, é uma dessas figuras inusitadas, contagiantes e que esbanjam harmonia, simpatia e vontade de viver. Tudo isso em meio às barracas da feira, das pessoas cantarolando, conversando, rindo e até mesmo gargalhando. Afinal, é mais um dia de feira. A assiduidade no local é inconstante para Bonfim. A dinãmica da Feira do Produtor, onde os feirantes obedecem à sazonalidade, parece servir até mesmo para o músico. No entanto, ele não hesita em contar sua história de vida, entre uma canção e outra. “Na vida eu tinha duas escolhas. Ou me entregava pra morte ou tentava um jeito de ser feliz. Eu escolhi ser feliz”, diz o cantor, 89


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nos seus 68 anos bem aproveitados. “E como aproveitei!”, exclama e se esparrama em longa e sincera gargalhada. As mãos de Bonfim carregam as marcas de um passado sofrido, duro, no qual ele teve de se reinventar. Os calos e as cicatrizes carregam horas de treino e ensaios, com muita dedicação, seja dedilhando o violão ou escrevendo uma nova canção. “Já fiz dueto, dupla e solo. Mas as composições são sempre minhas. Tenho um carinho pelas letras e as letras por mim. Quando minha mulher me largou – ele foi casado por um bom tempo, 15 anos, e não quis revelar os motivos da separação – fiquei muito triste, bem deprimido, mas entendi que foi melhor para mim, para ela também. Mas nunca escrevi tanto como naqueles dias. Quer ter uma boa inspiração? Leve um bom pé na bunda”, conta o cantor. Em meio a histórias, risadas soltas e uma imensa vontade de desaguar em lágrimas dessa que vos escreve, observo que não estava sozinha. As palavras de Bonfim são admiradas com olhos e ouvidos atentos de vário outros ouvintes. Dona Lúcia Alves Salvador, 67 anos, aposentada, coloca algumas moedas no chapéu, olha para Bonfim, abaixa a cabeça e fecha os olhos. De perto, dá para ouvir ela cantando, bem baixinho, a mesma música que o cantor está entoando. Naquele momento, a consumidora se torna expectadora. Ainda com olhos fechados, ela parece ser transportada para um universo paralelo, um passado bom – pois discretamente ela sorri – ou um futuro de esperanças, no qual a música soa como trilha de uma boa história que está por vir. “É bonito demais, não é mesmo? E é daqui! Não é aquela barulheira que meus netos escutam, não. Isso é que é música. Me lembra dos tempos de menina, de quando eu saia com meu ‘Nego’ pra dançar aquele sertanejo bem agarradinho.” “Nego” é o apelido de Augusto Klein Oliver, marido falecido 90


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de dona Lúcia. O casamento deles durou 48 anos, mas um câncer de próstata levou o fiel escudeiro da aposentada. “A gente vinha juntinho. Lá em casa não pode faltar essas coisas fresquinhas que eu só encontro aqui. E também tem os doces, as compotas. Você já provou desse pão da dona Sueli? – e abre a sacola, exibindo um convidativo pão caseiro – olha, é quase igual da falecida senhora minha mãe. O Nego que gostava”, e exibe um saudoso sorriso, de canto, como se puxasse pela memória lembranças boas e tristes ao mesmo tempo. Entre a plateia que acompanha o cantar do Bonfim, está o jornalista Everton Barbosa. Com roupa formal, camisa e calça social, de quem acaba de sair do trabalho, e panfletos nas mãos, ele também se emociona ao ouvir o músico. “Linda história, né? Eu, que estou aqui lutando pelos direitos da minha classe – os panfletos têm o desenho de uma banana e se trata de uma reinvindicação do sindicato dos jornalistas contra proposta patronal que achata os salários da categoria – não pude deixar de parar para ouvir as músicas do Bonfim e a conversa de vocês. A palavra que me veio à cabeça, certamente foi ‘superação’.” Feira também é lugar de protesto, de liberdade de expressão e de denúncia. “Confesso que sempre estou aqui. Quem resiste ao bom e velho pastel? Mas nestes últimos dias, minha missão tem sido sensibilizar e conscientizar as pessoas sobre a nossa situação” – diz, referindo-se aos jornalistas e profissionais da comunicação. O freguês dos quitutes – é mais um “morador” deste imenso bairro chamado Feira do Produtor, assim como o cantor, e milhares de pessoas que por ali passam sempre que a feira ocorre. “No próximo mês vou para Uberlândia. Vai ter uma feira lá e vou ficar por muitos dias. Viajo sempre que posso, já vi de tudo nesse Brasil de meu Deus. Mas aqui, na Feira do Produtor, aqui é quando eu posso colocar o pé no chão, soltar a voz e sentir que é onde eu faço parte, que é a minha história.” 91


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Com o coração nas mãos, e uma gigantesca vontade de ouvir mais e mais sobre a vida do nosso senhor Bonfim, me afasto para que ele possa continuar a apresentação. Afinal, é dali que vem o sustento dele. Em feiras, praças, eventos abertos e a convites, o cantor tira a renda mensal da qual ele se sustenta.

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CAPÍTULO ViI

“A FEIRA ME FAZ VIVER”

Seo Luiz Camillo, 80 anos, foi feirante por mais 30. Filho de produtores rurais, nunca foi ao colégio. Trabalhador desde menino, sempre acreditou que era pelo esforço, dedicação, honestidade e retidão que as coisas boas aconteciam na vida. A mulher, dona Aparecida Camillo, 73, acreditava, e acredita, nos mesmos ideais. Ela também já sente na pele – e no resto do corpo – o peso de muitos anos de trabalho, a canseira de quem todos os dias, juntamente com o marido, ia dormir às 19h, e acordava às 4h. Jantar? Deveria estar posto à mesa precisamente às 17h. A ponta da mesa é sempre dele, do seo Camillo. O prato, talheres, copo e guardanapos eram diferenciados, exclusivos para ele. E deveriam – ainda hoje devem – estar nas posições corretas no seu lugar a mesa. Por que de dormir e acordar tão cedo? “É só olhar as plantações, cada detalhe de cada hortaliça, fruta e verdura. O sabor de cada doce, a limpeza de cada paninho, mesmo que seja um pano de limpar, daqueles que depois de um tempo fica tão velhinho que a gente dá pro cachorro brincar. Tudo sempre foi limpo, regrado, cuidado e com um apreço que o meu avô passou pra ele, e que ele passou pro resto da família”, conta Angelina Camillo Martins, 49, filha do seo Luiz, a mais velha de dois irmãos. “Só de olhar, a gente já sabe o que ele quer.” Quando menina, nem precisava de muitas palavras para ela saber se terminaria o dia nos braços do pai, ouvindo uma boa história ou quietinha de castigo no quarto – depois de ter aprontado uma. Bastava um certeiro 95


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olhar do seo Luiz Camillo para que a família toda soubesse o que ele queria dizer. “E nunca foi medo nem temor. É respeito, dedicação e jeito de quem gosta das coisas certas. Ele é a pessoa mais amável do mundo.” Ela, mesmo sendo casada, está à frente da barraca da família Camillo. Sendo um dos pioneiros das feiras de rua maringaenses – esteve presente na Feira Livre e na Feira do Produtor – seo Luiz Camillo raramente vai à feira, pois a idade avançada atrapalha. Perseverante, trabalhador e teimoso, palavras que, segundo a filha, caracterizam o pai em todos os sentidos. “Mesmo ficando em casa e meu marido tomando a frente lá nas plantações, ele acorda todos os dias às cinco horas da manhã. Dorme bem cedo e janta bem cedo. Quando dá uma oito horas, ele já tá indo deitar. Ele devia aproveitar, cuidar mais da saúde e descansar. Mas não tem Cristo que tire o velho Camillo de perto da terra e do trabalho”, conta Angelina. A família Camillo mora em Maringá. Na grande casa ficam os pais de Angelina, ela própria com o marido Enivaldo Antônio Martins, e a tia – Leonice Camillo, que também ajuda nas feiras. Em Mandaguari, eles têm um sítio. Em Floriano, município que fica a 17 quilômetros de Maringá, eles também têm um grande terreno arrendado. “É lá que a gente planta banana e a banana é assim, de vez em quando tem que mudar a plantação de lugar, senão acostuma com a terra e fica ruim”, explica Angelina. O irmão mais novo dela, Henrique, ajuda na casa e na plantação de bananas “Ele ajuda a colher, embalar e a preparar as coisas que a gente traz pra feira.” “Todo dia é dia, toda hora é hora”, também para a família Camillo. Não tem sábado, nem domingo. Não tem feriado e nem dia santo. Todos os dias eles também fazem tudo – não sempre igual, mas sempre. “O pai busca feijão com o fio [irmão mais novo], traz e a gente embala. Ontem mesmo ele fez isso e ó: é esse aqui. Ficamos a tarde 96


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toda escolhendo, limpando pra trazer pra feira. E é muito. Daí tem dia que tem as bananas também, pra colher, limpar embalar. E isso é todo dia”, enquanto atende a uma amiga e cliente, explica a feirante. “O feijão a gente traz assim, já escolhido, então tem qualidade. Porque eu acho que um produto daqui não pode ser comparado com o produto do mercado. Não tem lógica. Porque assim, as minhas bananas podem não ser lindas maravilhosas. Mas é uma banana caipira, maturada, sem veneno, sem agrotóxico. Como a banana maçã, ela não é linda, mas é saudável, docinha.” Amendoim, paçoca, e compota. Doces, delícias e histórias. Para completar a mistura as cores, sabores e preferências, “olha ele aí de novo” – e no melhor da sua forma: puro, torrado quase na hora. Ele mesmo, o tal que a cantora Alcione dizia ser de tirar o chapéu. O café. Na banca da família Camillo também tem café, em embalagens pequenas ou grandes “o cliente escolhe”. Sempre reafirmando que a produção deles não é uma “coisa medonha” e nem de “porte para Ceasa”, Angelina Camillo, a simpática feirante de voz forte e destemida deixa bem claro que tudo que eles produzem é exclusivo para ser vendido nas feiras. Querendo “um pouco de tudo” e já sem tantas mãos para carregar mais sacolas, Raquel Helena da Silva Novaes, dona de uma loja de roupas em Maringá, não perde uma feira. “Tô em todas, sempre que posso. Toda semana eu preciso ir para a feira porque não compro nenhum desses alimentos em mercado ou outro lugar. Gosto de conhecer o que vou colocar pra dentro do meu corpo e da minha família, e nada melhor do que conhecer quem planta o que eu vou comer. E aqui eu sei que é garantido. Minha mãe comprava aqui com o seo Luiz e eu sempre vinha com ela, fosse pra fazer companhia, fosse pra comer ou pra aprender a comprar coisas saudáveis. Confio nessa família”, diz sorridente e carismática, a loira empresária, vesti97


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do com traje social e sapatos de salto. Raquel, na infância, era daquelas serelepes crianças que sabiam bem como aproveitar cada minuto da infância. A pequena menina que se encantava com aquele universo alternativo aberto para ela “pelo menos uma vez por semana”, corria pelos corredores das feiras de rua maringaenses, comia pastel e tomava sodinha. “Aqui é um dos poucos lugares que ainda tem tubaína, dessas originais. Tem coisa melhor?” Também foi na feira, quando já maior e não tão interessada em corridas, que ela passou a prestar atenção no modo como a mãe escolhia os produtos. “Tem umas [frutas] que a gente sabe se está doce ou azeda só pela cor, textura. Outros, a gente tem que cheirar, pra sentir o que vai ter na hora que vai colocar no prato. Sem contar que aqui na feira, a gente pode provar o que vai levar e ainda ganhar presentes maiores, como amizade e experiência”, diz, sem nenhuma vergonha, preconceito ou qualquer paradigma social. A empresária solta as sacolas e tasca um abraço na feirante Angelina, que sorri e retribui o carinho. “Você está vendo? A gente é feliz. É como se fosse uma vila rural, a nossa vila rural. Tem gente que traz os cachorros para passear, as crianças para se divertir. A feira é tudo de bom”, diz Angelina. A família que recebeu ajuda da Emater para poder entrar nas feiras, tornou-se referência e ganhou popularidade entre os clientes, mas, infelizmente, pode não durar por muito tempo. Dona Angelina tem um filho, mas ele é casado e tem família “em outro lugar”, não tem nenhum interesse em continuar com a tradição feirante do dos Camillo. A doce e simpática senhora, de cabelos castanhos claros e óculos no rosto, que era vendedora de shopping e deixou a própria vida para poder assumir o sonho do pai, sabe a que veio, mas tem medo de um dia não saber mais para onde ir. “Eu já falei que vou ter de ficar aqui para sempre, tipo um casamento, até onde eu conseguir levar”, conta dona Angelina, pela 98


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primeira vez em uma longa conversa, desviando o olhar e abaixando a cabeça. “Mas isso ainda vai demorar. Olha só, a minha tia me ajuda e aqui é tudo prático. Então olha só, ela carrega comigo as caixas e as coisas e é tudo prático, pra gente é fácil. Mas para essa nova geração não é. Quando eu chego e descanso, eu me sinto me sinto satisfeita. A feira me faz viver.” Faz viver e faz pulsar energia, economia, esperança de um presente capaz, de um futuro promissor e de uma jornada que seguirá adiante. Fé, daquelas que não costumam falhar, é produto intrínseco que se pode encontrar em cada barraca, em cada corredor. O que a diferencia dos demais produtos oferecidos, é o preço: não tem. Está ali para quem quiser ter, observar e se contagiar. Como no caso do seo Geraldo Aparecido do Santos, 59 anos, morador da cidade há mais de 40 anos. Seo Geraldo não é feirante, não vende frutas, verduras, hortaliças ou qualquer produto alimentício que venha da agricultura ou da terra. Também não faz artesanato. Mas o que ele oferece ao público é tão importante quanto qualquer um desses. Se trata de alegria, diversão sorriso no rosto das crianças e nostalgia aos adultos – que retornam à infância assim que se aproximam e se divertem com os produtos do seo Geraldo. Brinquedos e doces. Tem combinação melhor? Diversão acompanhada de balas, chicletes e algodão doce! Tão certo como encontrar pastel na feira, é encontrar o seo Geraldo. Basta procurar por uma bicicleta antiga, daquelas que ainda tinham uma cestinha na frente, que ali vai estar ele. Provavelmente estará rodeado por algumas crianças e por adultos que as acompanham – em todos os casos, encantados com as lembranças que os produtos, que estão na caixa em cima da bicicleta, oferecem. Brinquedos eletrônicos, daqueles com muitas luzes e barulhos que soam engraçado, bolas, bolinhas coloridas, bonecas e “gosmas mágicas” – daquelas que as crianças jogam e grudam em toda e qualquer 99


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superfície das suas casas, inclusive as paredes, o que não deixa as mães muito felizes em ter de limpar depois. Nascido em Sertanópolis, região metropolitana de Londrina, seo Geraldo mudou-se para a Cidade Canção por decisão dos pais. Aos 16 anos, ele se casou e carrega orgulho disso. “Hoje em dia as pessoas trocam de relacionamento do jeito que trocam de roupa. Eu não sou assim, não. Antigamente não era assim. A gente encontrava uma pessoa boa, se comprometia e fazia de tudo pra dar certo. Não tinha esse ‘casa e separa’ todo mês. Amor era coisa séria, mesmo que a gente fosse jovem”, conta. Seo Geraldo encontrou nas feiras de Rua de Maringá, suporte para sair de uma crise que se instalara em sua família. Ele, casado e pai de cinco filhos, havia acabado de perder o emprego depois de um acidente na empresa em que trabalhou por longos 10 anos. Sem o suporte legal ele teve de ir à luta, buscar alternativas e batalhar para se reerguer e conseguir manter a família. Trabalhou de motorista, de vigia de prédio e até de carteiro, mas nenhuma dessas profissões durava muito. Há 16 anos, ele passou a vender os produtos eletrônicos e as guloseimas nas feiras de Maringá e pelas ruas do centro da cidade. Quando vai às ruas e se sente cansado por ficar andando por tanto tempo, ele para em alguma esquina movimentada e fica sentado, por algumas horas, até descansar. Depois, volta a andar e já se prepara para ir às feiras dando continuidade às vendas. Os produtos ele diz comprar pela internet e em viagens que faz ao Paraguai e à 25 de Março – famosa rua comercial de São Paulo. “O único dia que eu descanso é no domingo, de tarde e de noite. Sábado de manhã também faço feira. Vou no centro comunitário do Jardim Alvorada e passo nos cemitérios. No domingo, fico na feira de manhã, de tarde eu organizo os produtos e as coisas. Minha mulher me ajuda bastante nessa parte”, explica seo Geraldo, com um 100


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olho nos produtos e outro no público – que, infelizmente, naquele dia estava fraco. “Tem dias que é assim mesmo. De uns tempos para cá diminuiu bastante as vendas. Ainda bem que na cidade tem bastante festas, como a das Nações, e outras, porque posso ir lá e tirar esse atraso”, explica. Seo Geraldo diz ter licença da prefeitura para poder participar das feiras de rua e das demais. Ele também ajuda financeiramente as feiras com uma taxa, assim como todos os demais feirantes. O vendedor conta que tem uma máquina de fazer algodão doce em casa, e com a ajuda da mulher, ele faz os doces. Coloridos, que pintam o céu dos pequeninos e que fazem os adultos salivar, afinal, quem resiste ao sabor doce das molecagens da infância? Junto aos algodões doces, tem bexigas e balões, em formato de super heróis e personagens de desenhos animados, coloridos e fantasiosos. Não demora muito e duas pequenas garotinhas se aproximam do seo Geraldo e pedem dois algodões doces. De longe, a mãe as observa. E as duas, com ares de responsabilidade para fazer as próprias “compras”, pegam os doces e saem saltitando de felicidade em direção à mãe, abandonando a precoce maturidade – ainda bem. “Antigamente, o pessoal da feira me chamava de ‘Raspadinha’, porque eu comecei a vender raspadinha, mas não foi para frente. Outros me chamam de ‘tio’, outros de ‘algodão’ e até ‘Geraldão’”, conta seo Geraldo. O vendador fala da relação dele com os demais feirantes e clientes. “Tem uns clientes com quem eu até já fui almoçar na casa com a minha mulher. E já levei na minha também. A gente convive há muito tempo e acaba ficando amigo. Tenho uns amigos aqui na feira que são parte da minha família. No que precisarem de mim, eu vou ajudar”, explica, sorridente, seo Geraldo. Geraldos, Angelinas, Líveros, Bons-Fins e tantas outras passa101


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gens. A correria e o vai e vem dos corredores de cada uma das feiras também permite o compartilhamento de experiências, de novos caminhos e de amizade entre os que estão ali para trabalhar e os que estão ali para aproveitar, abastecer e se reinventar. Todos os lados têm visão, força de vontade, seja talhada em madeira, montada em potes decorativos, amarrada em arames ou plásticos protetores ou que brotou da terra, dos olhos, dos laços de família. Todos ali têm um propósito e carregam a própria carga de vida, sabem o que foram, o que são e onde querem chegar. Os cheiros, os sabores e o colorido de cada produto, de cada pele, transmitem as dores, o trabalho, o cansaço e a alegria – de ser e de ter toda e qualquer história para contar, sejam tristes, alegres, de superação ou ainda não findadas. As feiras de rua de Maringá são as cores da cidade, abrigam as lidas de todas as raças, de todos os bolsos, de todos os propósitos e de todos os caminhos. Cada barraca é única, especial, dotada não só das delícias que a terra – e as mãos – proporcionam ao paladar, mas também apresentam ao mundo, sorrisos, família, planos, projetos, sentimentos que ficaram no passado e novas expectativas sobre o que ainda há de acontecer. – E você, vai querer o quê?

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referências bibliográficas BUAINAIN, A. M.; ALVES, E.; SILVEIRA, J. M. da; NAVARRO, Z. O mundo rural no Brasil do século 21: a formação de um novo padrão agrário e agrícola. Embrapa Informação Tecnológica, Brasília DF, 2014. COMUNICAÇÃO. Flamma, Cocamar 50 anos, Maringá, 2013. POZZOBON, Irineu. A Epopeia do Café no Paraná. Londrina: Grafmarke, 2006 SERRA, Elpídio. Cocamar: sua história, sua gente. Maringá : COCAMAR, 1989. ZAPAROLLI, Domingos. Mundo Rural em Transição in Revista Pesquisa Fapesp, 2014.

fontes de informação Banco Nacional do Desenvolvimento – BNDES Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística – IBGE Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural – Emater. Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social Jornal Valor Econômico Ministério da Agricultura Organização das Cooperativas do Paraná – Ocepar Prefeitura Municipal de Maringá Revista Globo Rural Secretaria Estadual de Agricultura e Meio Ambiente



“Visitar uma feira livre é como ser transportado para um momento da história em que passado e presente montam acampamento – ali mesmo, um do lado do outro”.


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