Eu tenho liberdade

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Redação Amanda Guimarães Ana Paula Candelório Bruna Tamires Caio Rosa Daniela Parkuts Lais Moser Lethícia Conegero Leticia Amadei Toregeani Luan Comitre Maria Isabel Corrêa Nailena Faian Nayara Varini Raphaela Kimberly Talita Trento Tuana Mignoso Vilson Junior Wesley Bischoff Editores bruna tamires wesley bischoff

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Editorialista ana paula candelório coordenador de diagramação Wesley Bischoff auxiliares bruna tamires talita trento orientação gráFICA EMERSON ANDUJAR capa rodrigo brambilla

curso de jornalismo agosto de 2015

A revista Eu Tenho Liberdade é uma publicação experimental dos alunos do 3º ano de Jornalismo da Unicesumar, nas disciplinas de Edição, jornalismo impresso e planejamento gráFIco. Reitor: Wilson de Matos Silva Vice-reitor: Wilson Matos Filho Coordenador de Comunicação Social: Vinícius Durval Dorne Professora responsável e edição FInal: Rosane Barros (MTb 2123) Centro Universitário Cesumar Av. Guedner, 1.610, Jardim Aclimação Maringá - Paraná - CEP 87050-390 Telefone: (44) 3027-6360 www.unicesumar.edu.br Proibida a reprodução deste material sem autorização prévia e escrita do editor. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores.


Wesley Bischoff

Para os que escolhem ser

livres

Do mitológico sonho de Ícaro aos dias de hoje, quem nunca imaginou a liberdade como o poder de voar, subir até o céu, perambular entre as nuvens brancas, vestindo-se de azul? Imaginamos a liberdade como asas, mas a pergunta com a qual sempre nos deparamos é: onde se escondem essas belas asas longas com penas de algodão? Como conseguir isso? É um mistério. A liberdade é o grande mistério. Pode estar por aí, vagando, talvez, dentro de você mesmo. A liberdade não é necessariamente o “ser livre”, como aprendemos. Não esse “ser livre”, de fazer o que quiser a qualquer momento e, claro, sozinho. O ser livre pode ser um estado de espírito, a chave da felicidade ou uma atitude que conforta. Ser livre pode representar estar ao lado da pessoa amada ou de muitas pessoas. A liberdade pode acontecer quando os músculos da face se ajeitam num sorriso bobo quando deixamos de comer um lanche para entregá-lo àquele morador de rua que não come nada há dias E, por que não, quando rimos do próprio erro com al-

guns amigos ou de uma mania engraçada ou do próprio jeito torto de andar? O politicamente correto, por vezes, pode oprimir a alegria da liberdade. É certo que a prisão é a decadência do homem, é nosso pior castigo. E foi essa a punição que a sociedade implantou (ou tentou implantar) contra aqueles que não respeitam a lei: a perda da liberdade. Estar condenado a passar alguns bons anos escondido atrás de grades cinzentas. Mas o que vemos não é só esse tipo de prisão. Há pessoas por toda parte dizendo o que fazer, o que dizer, o que vestir. A liberdade é ir e voltar, é fazer felicidade não importa como. A liberdade é desejar sem saber o que exatamente se deseja. Você, caro leitor, vai encontrar pedacinhos de liberdade já nas próximas páginas desta revista. Em nossas reportagens, pode reconhecer muito de você nas entrelinhas. Descubra que liberdade tem vários significados e vários caminhos. Seguir por qualquer um deles é fazer uma escolha. E é essa escolha que nos torna livres. Boa leitura.


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A felicidade pode estar em UMA CARTOLA lethícia conegero

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IGUAIS E DIFERENTES caio rosa

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qualquer maneira de criar vale a pena vilson junior

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A HEGEMONIA DOS CLIQUES wesley bischoff

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O exercício pleno da transparência Daniela parkuts

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Humor a qualquer custo também tem seu preço talita trento

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Muito além do souvenir nayara varini

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a luta é livre, mas não vale tudo amanda guimarães

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olhares anônimos da liberdade bruna tamires


ESSE FILHO NÃO É SEU RAPHAELA KIMBERLY

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O HORIZONTE POR TRÁS DAS GRADES NAILENA FAIAN

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PRISÕES SEM GRADES LUAN COMITRE

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SOU ATLETA, MAS NÃO SOU LIVRE MARIA ISABEL CORRÊA

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SORRIA, ESTOU TE VIGIANDO LETÍCIA AMADEI TAREGEANI

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os desafIOS PARA A EDUCAÇÃO QUE LIBERTA TUANA MIGNOSO

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eles puderam escolher ana paula candelório

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TRÊS CORES DE LIBERDADE ANA PAULA CANDELÓRIO

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livre para ir, vir e vestir laís moser

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Janosh OldPeter

A felicidade

pode estar em

UMA CARTOLA Gosto de fazer. Esse poderia ser o mantra de todo aquele que se libertou de convenções, como ‘profIssão estável’, ‘sucesso’ e ‘dinheiro’, para viver do que realmente lhe dá prazer

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Lethícia Conegero “Aqui tem velharia, mas é uma chapelaria!” É o que diz a placa na entrada da loja. Do outro lado, uma outra mensagem chama atenção: “Confie em mim! Trabalhe no que você ama”. E acima da porta, no centro do estabelecimento, a frase convidativa: “Muito bem vindos à E-Holic! Uma chapelaria feliz!” É simplesmente impossível não entrar. Apaixonado por cartolas e cores, Durval Sampaio, 27, mais conhecido como Du E-Holic, nasceu e mora atualmente em São Paulo. Ele largou um emprego estável para fazer chapéus. “Chapeleiro maluco”. Foi assim que muitos o chamaram. Antes mesmo de ser chapeleiro, Sampaio escolheu ser livre para decidir seguir a profissão que o fazia feliz. Não é que ele não tinha medo, ele tinha, mas foi com medo mesmo. Maluco ou não, ele optou por buscar dentro de si as particularidades que o faziam ser como era. Juntou alguns retalhos de tecido, colocou uma boa música para tocar e se descobriu Chaleiro. Sampaio trabalhava com automação industrial, elevendia leitores e impressoras de

código de barras e ganhava muito bem por isso. Essa história mudou quando ele precisou de um chapéu para ir a uma festa, mas não encontrou nenhum que lhe agradasse. Foi então que resolveu costurar o próprio chapéu. “Eu passava o dia vendendo máquinas de mil reais. Depois percebi que tudo o que eu precisava para ser feliz eram restos de tecido e uma máquina de costura.” Grande amante da música, Durval Sampaio encontra nas letras e melodias a inspiração para criar e costurar. Na etiqueta dos chapéus consta a fonte inspiradora de cada um deles: o nome da música que ouvia enquanto produzia o adereço. Fazer chapéu também proporcionou a ele a oportunidade de conhecer pessoas e histórias especiais, algo que seu antigo trabalho não possibilitava. Ele afirma que é feliz fazendo o que faz. ”Eu vivo o meu sonho de vida todos os dias. Quando você faz o que gosta, confunde a carreira com a vida. Não é um plano de carreira, é um plano de vida.” O consultor de gestão de pessoas Eduardo Ferraz, autor do livro Seja a pessoa certa no lugar certo (2013, Editora Gente), explica que o autoconheci-

mento é o ponto mais importante no momento da escolha profissional. “Se a pessoa não sabe o que quer da vida, qualquer trabalho serve e nenhum trabalho presta. Ela entra em um negócio e não dá certo, entra em outro e também não gosta muito, vai para o terceiro e também não está satisfeita, e quando você pergunta para a pessoa porque ela está insatisfeita, nem ela sabe responder.” Ferraz explica que existem cinco grandes motivadores profissionais: o dinheiro, a estabilidade, o aprendizado, o reconhecimento e a autorrealização. Cada indivíduo tem uma fórmula motivacional baseada naquilo que julga ser prioridade. Para a psicóloga Maria Carolina Bittencourt Socreppa a escolha profissional deve ser resultado de um processo reflexivo e de autoconhecimento. De acordo com ela, essa escolha deve ser baseada no que a pessoa gosta de fazer agora e também em uma projeção futura sobre como gostaria que sua vida caminhasse. “O histórico pessoal, bem como as relações familiares e sociais, são a base de sua personalidade, e é baseado nisso que a escolha terá significado.” O chapeleiro Durval Sam-

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Durval Sampaio

paio relata que, a princípio, a mãe dele achou que ele estava ficando louco porque largou uma vida estável para fazer chapéus. Mas, o negócio deu tão certo que atualmente ela trabalha junto com ele. O sociólogo e âncora da rádio CBN Maringá, Gilson Costa Aguiar, explica que romper com uma profissão está ligado ao desejo de realização de uma particularidade na medida em que somos as escolhas que fazemos. “Quem assume a vida e faz escolhas dá um sinal de emancipação. Seria um contrassenso ter uma determinação dos pais impondo aos filhos o que devem fazer. Os pais devem lembrar aos filhos que as escolhas recaem sobre quem as fez. Há consequências nos atos. Esse é o verdadeiro peso da liberdade.”

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SATISFAÇÃO

Aguiar explica que nem sempre foi assim. A diversidade do mundo do trabalho é recente. A relação entre a atividade profissional e a realização pessoal passou a ser um elemento de escolha e atinge aspectos da vida pessoal que no passado não existiam. Ele afirma que há 40 anos, gostar ou não do que se fazia era menos relevante do que é hoje. O importante era ter um trabalho. Hoje, a escolha está relacionada diretamente à satisfação pessoal. Abrir um novo negócio é uma tarefa delicada e muitas vezes, arriscada. O professor de empreendedorismo Eduardo Torelli explica que atualmente a inovação e a rentabilidade são fatores mais comuns nos segmentos de


Quando você faz o que gosta, confunde a carreira com a vida. Não é um plano de carreira, é um plano de vida

negócio implica considerar que talento, aplicado sobre o acesso a mercados específicos pode, por exemplo, gerar a alavancagem necessária à capitalização de recursos, que reposicionarão a empresa em um novo estágio e com alcance de novos mercados. Esse ciclo pode se repetir de forma contínua e transformar um manufatureiro de um canto do Brasil em um gigante mundial do segmento.” Se a loja de chapéus de Durval Sampaio vai virar uma gigante mundial do segmento, não dá para saber, mas não dúvida: ele é feliz colorindo a cabeça das pessoas com as cartolas mais loucas e divertidas que já se viu.

Durval Sampaio

serviços. “Quando se vai abrir um novo negócio, é interessante fazer uma pesquisa de mercado que aponte oportunidades de negócios, que mostre as vocações regionais, bem como fatores culturais que possam transparecer ideias viáveis.” O chapeleiro paulista Durval Sampaio diz que vive bem com a renda financeira proveniente da venda dos chapéus, mas explica que tem como prioridade a autorrealização, e que não precisa de muito para viver feliz. O economista Daniel Santos, comentarista da rádio CBN Maringá, explica que é possível fazer um pequeno negócio emplacar e ser rentável. “Um novo

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Ygor Gomes

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IGUAIS E DIFERENTES

Bandeira do movimento LGBT, a liberdade se manifesta na reaFIrmação da luta pela igualdade de direitos na diversidade sexual

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Caio Rosa A reprodução de estereótipos socialmente atribuídos na formação da identidade de gênero é, ainda em pleno século 21, a principal causa do desrespeito aos homossexuais. O público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), é vítima constante da aversão, que parte principalmente de determinados segmentos sociais. Essa situação é decorrente também da não aceitação de que o ser humano tem plena liberdade para não se sujeitar a todas as convenções sociais. Por essa ótica, o homem poderia agir de acordo com o que acha mais satisfatório enquanto pessoa e ser correspondido dentro do contexto emocional. É uma realidade que, infelizmente, está mais próxima do que se imagina. O medo da exclusão social é muito comum. Há pessoas que não compreendem que ser homossexual não se trata de uma opção e sim orientação, visto que, assim como os heterossexuais, são motivados por desejos incontroláveis. Em meio aos conflitos é preciso também reconhecer que, com o passar do tempo, o movimento LGBT garantiu maior espaço na sociedade. Em 2008, o Diário Oficial da União publicou portaria para a reali-

zação da cirurgia de mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em hospitais públicos do País. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o registro das uniões estáveis de casais homossexuais. A próxima causa a ser conquistada é a criminalização da homofobia. Projeto nesse sentido tramita na Câmara Federal desde 2006. Em 2013, a matéria foi atualizada a partir de um substitutivo. Em texto mais despojado, a proposta é que crimes de ódio e intolerância sejam aplicados nesse projeto. Algumas conquistas no âmbito do Legislativo foram reconhecidas e isso mostra a força crescente do movimento gay. Em contrapartida, o pensamento de muitas famílias permanece conservador, envolvido intrinsecamente com os dogmas das instituições religiosas. Para o médico geneticista e diretor do Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika, de Curitiba, Salmo Raskin, caso a medicina comprovasse os dados a respeito da origem da homossexualidade, haveria muito mais conflitos. “Se hoje tivéssemos estudado determinados genes ou outros marcadores que pudessem ser testados em uma pessoa, comprovando a homossexualidade, acho que traria muito mais preconceito.”

Muito se discute acerca de como tudo se originou, mas quando se fala em avanços, Raskin acredita que existem poucos relacionados à genética. “Acompanho esse tipo de estudo. Hoje há uma capacidade técnica muito grande de estudar o material genético. Podemos estudar o DNA inteiro, mas até agora nunca foi encontrado qualquer componente genético que pudesse explicar alguma parcela razoável sobre a homossexualidade”, declara.

NOVOS MARCADORES

Na medicina, há um assunto novo e interessante que trata dos marcadores epigenéticos, ou seja, procuram estudar as alterações que influenciam o DNA do homem sem alterar a sequência, sinalizando se os genes devem se expressar ou não. “Ao estudar somente a sequência de DNA das pessoas, não encontramos nenhuma das respostas, tampouco as características. Os pesquisadores querem entender se isso não estaria em outras linhas”, afirma. Na concepção do geneticista essas questões são muito mais comportamentais do que orgânicas. Para o psicólogo Robson Girardello, que tem estudos publicados sobre sexualidade, a dificuldade em se assumir, por conta das pressões religiosas, sociais ou até por razões mais

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IV Parada Gay de Maringá Caio Rosa

específicas, como o medo de ser violentado, ocorre muitas vezes porque os homossexuais e transexuais, além da exclusão social, têm famílias que não os compreendem e não os aceitam. “Em geral, quando há medo de se assumir, é porque existe medo de não ser aceito pela família. Quando a família tem alguma religião fundamentalista, de discurso antigay, fica ainda mais difícil a aceitação e maior o receio em se assumir. A questão religiosa também pode gerar muito sentimento de culpa pela orientação homossexual, causada pelo constante discurso de que homossexualidade é pecado.” A médica psiquiatra Maria Christina Fernandes ratifica o mesmo pensamento do psicólogo. Muitos homossexuais atendidos por ela comentam que se aceitam plenamente, mas sofrem pelo fato de que os próprios pais não os aceitam. Quanto aos indícios de homossexualidade, Robson Girardello diz que podem ser vários. “Há quem diga que sempre soube ser homossexual,

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como há quem afirme ter se descoberto na puberdade ou em outro momento da idade adulta”, diz. Ele afirma que o momento em que a consciência da sexualidade aparece geralmente é quando surgem os desejos sexuais. “Quando esses desejos são por pessoas do mesmo sexo, dependendo da situação social e familiar, a pessoa pode se aceitar bem e já se assumir na adolescência, ou pode se manter em negação por muito tempo e só se assumir tardiamente.” No caso do estudante de Publicidade e Propaganda Rodolfo Boechat, 19, o envolvimento da família dificultou algumas tentativas de se assumir homossexual. “Não se tratava do meu sofrimento, mas do sofrimento que minha família iria passar.” O universitário, que veio de Abelardo Luz (SC), com um pouco mais de 17 mil habitantes, conta que o tamanho da cidade também pesou na não aceitação. Em 2013, quando se mudou para Maringá, enxergou que “ser gay não era uma coisa tão ruim”.


Na Universidade Estadual de Maringá (UEM), há um grupo composto por alunos, professores e educadores que discutem questões sobre a sexualidade. O Nudisex (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual) foi fundado e é coordenado pela professora-doutora Eliane Maio. Ela diz que se a escola, família e Igreja debatessem temas relacionados à sexualidade desde cedo, evitaria preconceitos e não seriam necessárias tantas iniciativas posteriores. “Que eu conheça, não há trabalhos de educação sexual na rede pública em Maringá. Sempre quis elaborar essa proposta, mas nunca foi aceita,” destaca. Um dos estudos do Nudisex conta a história da primeira aluna travesti da universidade, que atualmente cursa o último ano de pedagogia. O documentário “Dani: travestilidades – Uma história de vida” foi premiado em 2013 pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Delicada, baixinha, magra com aparelho na boca, Daniele Oliveira, 21, orientanda de Eliane Maio, foge do estereótipo das travestis com muito peito, bunda e de grande estatura. Antes Danilo, por volta dos 13 anos se reconheceu Daniele. A estudante de pedagogia passou por muita dificuldade no começo, mas hoje, com incentivo dos pais, colegas e professores, age com tal naturalidade que dificilmente é notada como travesti. Daniele é uma exceção. Ainda é evidente e sistemático o preconceito contra travestis e transexuais. O presidente da AMLGBT (Associação Maringaense de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), Marcelo Souza, diz que esse grupo é marginalizado não só em Maringá, mas em todo o Brasil.

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RECEIOS EM SE ASSUMIR

Alguns até acham normal ou justo esse tipo de violência. Essa é uma luta que travamos

“Elas são humilhadas todos os dias, xingadas, espancadas e até mortas. E o pior é saber que tem muito maringaense que não se preocupa com isso, e alguns até acham normal ou justo esse tipo de violência. Essa é uma luta que travamos.” Daniele Oliveira diz ter pouco contato com outras travestis, mas tem vontade de conhecer a história de vida delas. “O mundo em que elas vivem é diferente do meu, tive uma educação em casa, elas talvez não”, compara. Além disso, mesmo levando a discussão desse tema para a sala de aula em escolas públicas, diz perceber um bloqueio por parte da equipe pedagógica, principalmente quando ela (Daniele) aborda a sexualidade com os adolescentes. Mesmo assim, diz estar tranquila e feliz com as escolhas traçadas.

CONFLITO A partir de estudos freudianos, a psicanalista Marta Dalla Torre, que atua na área de psicologia clínica, estuda as dificuldades do paciente, o tipo de sofrimento a que esta submetido para o que o indivíduo possa se interrogar e encontrar as próprias respostas. “[No caso de uma pessoa homossexual] O problema às vezes nem é porque ele é aceito ou não, mas pelo conflito que ele tem com esse ‘outro’ nos relacionamentos,” complementa. Para ela, o sujeito independentemente da orientação – homossexual, bissexual ou heterossexual – deve ter liberdade para se assumir tal como é. “Na medida em que o homem atende uma escolha para satisfazer o outro, não está tendo liberdade.”

Para o psicólogo Robson Girardello, existem casos de pessoas que não aceitam a homossexualidade e tentam viver como se fossem heterossexuais. Para ele, muitos chegam a procurar psicólogos com o intuito de deixarem de sentir desejo por alguém do mesmo sexo. “Não temos o poder de decidir pelo paciente, se ele irá ou não ‘sair do armário’, nem sobre que caminho ele escolherá seguir. O papel do psicólogo nesses casos é ajudar a pessoa a se entender e se encontrar no mundo, auxiliando para que veja os resultados de suas escolhas.” Girardello diz que atualmente homossexualidade e bissexualidade são variações comuns da sexualidade humana, sendo proibido tentar alterar a sexualidade do paciente. “Um psicólogo que promete esse tipo de intervenção está agindo de maneira antiética e deve ser denunciado ao Conselho Regional de Psicologia”, alerta.

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qualquer

maneira de criar vale a pena A licença poética mostra que apesar dos padrões, quando o assunto é arte até é possível ultrapassar os limites

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Vilson Júnior Muita gente diz que a Língua Portuguesa é um dos idiomas mais difíceis de aprender no mundo. Com as mudanças na ortografia, então, parece até que as regras gramaticais viraram bicho de sete cabeças. Mas tudo isso é bobagem se comparado ao número de pessoas que falam a nossa língua. De acordo com o portal A Língua Portuguesa, o nosso idioma é a oitava língua mais falada do planeta, a terceira entre as línguas ocidentais, após o inglês e o espanhol. Estima-se que entre 190 milhões a 230 milhões de pessoas falam a nossa língua nativa. A nossa linguagem é tão flexível que abre um leque de diversidades para ser melhor utilizada e aprendida, é claro. E é aqui que entra a licença poética. Você já imaginou que pode “errar” no texto de forma proposital? Errar está justamente em aspas porque você não comete um deslize de atenção, e sim, porque você quer.


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Quando se fala sobre licença poética assimilamos como uma forma pela qual o artista tem de inventar algo em sua poesia, música ou até mesmo em uma história. Ele faz jus a esse tipo de liberdade, justamente para brincar com as palavras tão próximas do nosso cotidiano e demonstrar todas as ideias de uma mente criativa que não fica presa a parâmetros impostos na língua gramatical. A escritora e professora maringaense Angela Regina Ramalho Xavier, 59 anos, tem mais de 40 antologias publicadas e aponta que a liberdade para “brincar” com texto e manipular as palavras, para que possa transmitir tudo o que pensa ao leitor, pode ser um grande alívio, porque alguns escritores, como ela, dizem que a rígida estrutura da métrica ‘engessa’ o poema. “O texto perde a naturalidade pela exigência em seguir a norma estruturada. Quanto à licença poética que permite ao

escritor fugir de normas gramaticais, por ser professora evito esse tipo de desvio, mas já fiz uso de ‘palavrão’ num verso, porque premeditadamente tinha intenção de chocar”, diz a escritora. “BEIJA EU” Mas não é só ela que utiliza essa licença para mostrar o que realmente quer transmitir para o leitor. O compositor, escritor e cantor Arnaldo Antunes escreveu o poema “Beija Eu”. Em uma análise de escrita pelo bom e velho português gramatical, o verbo em questão exigiria um pronome pessoal do caso obliquo (me), então teríamos uma total reformulação da frase com um “beije-me”. Porém, mais tarde, em um episódio da série “Nossa Língua Portuguesa”, da TV Escola, apresentado por Pasquale Cipro Neto, Antunes mencionou que essa frase foi, na verdade, uma inspiração sobre a filha do escritor que,

quando pequena dizia: “pega eu, abraça eu e beija eu”. O clássico poema do inesquecível Carlos Drummond de Andrade, “No Meio Do Caminho Tinha Uma Pedra”, também se encontra nessa lista de textos que usaram a liberdade de brincar com o português. Em vez de usar a norma culta, estabelecida entre os poetas, o poema causou grande indignação nesse campo, porque Drummond se afastou da Gramática formal, utilizando o verbo “ter”, no sentido “existir”. A licença poética pode estar em todos os lugares. Não só na literatura. Está também na música, no jornal, na televisão. A publicidade, por exemplo, é um dos campos que mais abraçam essa forma de escrita criativa. Claro que a publicidade utiliza a norma padrão da Língua Portuguesa. Segundo o Conselho de Autorregulamentação Publicitário (Conar) o autor será punido, caso o texto publicitário apresente qualquer

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Criação e imaginação: ferramentas principais para a licença poética

tipo de ofensa, desde xingamentos, palavrões ou erros gramaticais. Não há qualquer restrição à licença poética. Portanto, se você encontrar uma propaganda escrita de forma errada, considere aquele erro para ser entendido como o que realmente é. Um erro proposital. Ou pelo menos o que deveria ser, já que o anúncio é feito por redatores que, supostamente devem dominar muito bem a língua gramatical para “brincar” com o texto. Afinal, a publicidade pode até não ser considerada arte, mas se utiliza da arte para persuadir, emocionar e sensibilizar o público-alvo. Um exemplo disso é o slogan da Caixa Econômica Federal – “Vem pra Caixa você também”. A frase mistura duas pessoas, o TU e o VOCÊ. Segundo a norma padrão, deveríamos ler “VEM pra Caixa TU também” ou “VENHA pra Caixa VOCÊ também”. Ficaria estranho, não? Segundo o jornalista Wilame Prado, 29 anos, para que o leitor entenda esse tipo de licença na prática “precisa ler bastante poesia, contos, romances e crônicas”. Prado também diz que a licença poética não é muito comum na área do jornalismo. Segundo ele, “o jornalista não pode ‘criar’ histórias e sim contar histórias verdadeiras”. Apesar disso, ele aponta que no jornalismo

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cultural, o redator tem maior liberdade para formular textos criativos e menos engessados. Um dos que já utilizou a licença poética no jornalismo, inventando realmente histórias, foi o escritor e jornalista Gabriel García Marquez, morto em 2014. “Marquez saiu ileso e ainda com a justificativa de que isso condizia com o seu estilo literário, o do realismo mágico. Agora, se um repórter de um jornal qualquer resolver inventar uma história, corre o risco de, ao ser descoberto, ser demitido e ainda ter problemas posteriores para arrumar emprego”, revela Prado. ARTE Pode-se resumir que a licença poética é uma forma de arte como tantas outras que estão por aí. E tanto no cinema como na televisão é um artifício bastante utilizado. Quando certa produção sofre uma dura crítica em relação à idade dos atores e a idade dos personagens; como ocorreu na telenovela “Em Família” (Globo - 2014), de Manoel Carlos, muitos atores justificaram essa discrepância com a licença poética. Filmes de ficção científica, como “Gravidade” (2013) e “Armagedom” (1998) são também outros exemplos de como os autores se valem da licença poética ora


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para deixar as histórias mais palatáveis, ora também para cobrir grandes erros. Para você entender melhor isso, um exemplo clássico, são os filmes na saga de ficção científica “Star Wars” (1977 - 2015), nos quais existe som no espaço durante as batalhas espaciais. OLHAR ÚNICO A licença poética é considerada como “um olhar único. Como cada indivíduo possui um, temos várias leituras sobre a história que o artista quer mostrar ao público”. É como define o recurso a aluna do 2° ano de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá (UEM) Jesiane Bragantine. “O próprio artista tem um olhar diferente e ousado para passar em suas criações.” Segundo Bragantine, essa imaginação “ganha asas, para contar aquilo que vemos e ouvimos, levando as pessoas para outra e nova viagem”.

LIMITE Mas até quanto a licença poética pode ser usada para não se tornar algo espalhafatoso? Um exemplo disso é o filme “Noé” (2014), com diferenças gritantes entre a passagem bíblica e a produção cinematográfica. Por exemplo, não houve uma tentativa de invasão à arca comandada por Tubalcaim, descendente de Caim, como aponta uma eletrizante sequência. O diretor e roteirista Darren Aronofsky preservou só algumas passagens e deu asas à criatividade para recriar a sua maneira os eventos, antes, durante e depois do dilúvio. A também estudante do 2°ano de Artes Visuais da UEM Janaína Celerino diz acreditar que não existe uma maneira de a licença poética ser medida ou dosada. “Até mesmo porque ela é a marca de cada artista. Se fosse medida ou algo regrado, como a receita de um bolo, seriam todos iguais e para mim isso já não seria mais considerado arte”, pondera Ca estudante. Celerino também diz acreditar que, apesar da liberdade de criação graças à licença poética, ainda existe certa censura no modo como o artista quer criar algo fora dos padrões já estigmatizados, seja na gramática padrão, de filmes clichês ou até mesmo de músicas repetitivas no mercado do entretenimento. “Com certeza, ainda existem restrições. Mas acredito que a arte se supera e se renova a cada dia e com isso até os mais sensatos acabam reinventando e se atualizando”, afirma. Quando você sabe utilizar as regras do português e aplica-las na licença que é concedida, pode escrever de maneira aparentemente “errada” – já que quer chamar atenção ou brincar com as palavras. E é aí que na licença poética, usa-se o “neologismo”, ou seja, a criação de uma nova palavra. Por exemplo, em anúncios publicitários para chamar a atenção do leitor e atingir sua finalidade que é de divulgar/vender o produto, um programa de rádio pode colocar o nome de “Com certerça”. A chamada do programa pode causar estranheza, mas só é a combinação de três expressões: concerto, certeza e terça-feira, o dia em que o programa ia ao ar. Outro exemplo muito citado de neologismo está no poema de Manuel Bandeira que tem esse mesmo título. “Beijo pouco, falo menos ainda./ Mas invento palavras/Que traduzem a ternura mais funda/E mais cotidiana./ Inventei, por exemplo, o verbo teadorar./Intransitivo:/Teadoro, Teodora”. O que não se pode confundir é o “errar” dos grandes poetas, que o fazem com consciência e

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com um propósito, com o errar de forma indevida. Para a psicóloga de abordagem cognitivacomportamental Camila Bertuzzi as pessoas só vão entender tão facilmente essa “brincadeira” de palavras e conseguir discernir que o erro foi proposto, a partir do grau de aprendizado de cada um. Segundo Bertuzzi, as pessoas “digerem” mais os produtos que são dados pela mídia, aceitando sem questionar, porque acreditam que só assim serão aceitos socialmente. “Mas existem aquelas pessoas com maior senso crítico e que não possuem essa necessidade de serem aceitos e amados que filtram melhor as informações”, argumenta a psicóloga. “INTERNETÊS” O perigoso mesmo é confundir essa liberdade na hora de passar para a língua escrita. As últimas gerações experimentaram o “boom” da internet e mais recentemente das redes sociais. É, portanto, rápido e ágil. Com as redes sociais, por exemplo, como o Facebook, Twitter, Google+, Skype, Instragram, Badoo, WhatsApp, Ask.fm consolidou-se uma nova escrita, conhecida como o internetês. O neologismo de “internet” com o sufixo

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“ês”, são nada mais que palavras abreviadas e transformadas em um único vocábulo, no qual caem a pontuação e a acentuação. É comum, principalmente entre adolescentes, o uso dessa nova comunicação, “matando” as normas ortográficas: “tbm axo q vc naum deve viaja pq tá xato (também acho que você não deve viajar porque está chato)”. O uso da letra “m” para substituir o til “naum=não” é um retorno às nossas raízes. Para quem não sabe, a origem do til é a letra “n”. A grafia fonética (axo, xato) já é defendida por muita gente, mas essa brincadeira pode criar consequências de grandes proporções. Mais de 500 mil candidatos, para ser preciso 529.374 (8,5% do total de inscritos), zeraram a nota da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2014. Para não obter nota zero, segundo os coordenadores do Enem, é preciso escrever menos de sete linhas, copiar textos de terceiros ou escrever sobre um assunto completamente alheio ao tema – no último exame, realizado em 2014, a proposta era “publicidade infantil”. Pesquisa feita pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) entre setembro de 2013 e janeiro de 2014, revelou que 79% dos usuários entre 9 e


17 anos já possuem perfil nas redes sociais – um crescimento de 9 pontos percentuais em relação a 2012. Em 2013, a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), iniciativa do próprio governo federal lançada um ano antes para mapear a qualidade do ensino país, revelou um nível “baixo” de leitura entre crianças com 10 anos de idade nas escolas públicas de 22 Estados brasileiros. E a situação não fica melhor entre os adultos. Uma pesquisa da Pró-Livro, divulgado em 2012, mostrou uma redução significativa do público considerado leitor entre os anos de 2007 e 2011. O percentual de quem leu pelo menos um livro a cada três meses havia caído no período, de 55% para 50% da população. Dentro desse contexto, há ainda aquela parcela capaz de ler, mas com dificuldade para a interpretação. Entre os líderes de usuários de redes sociais, os brasileiros estão se especializando em ler títulos, em compartilhar reportagens sem ao menos compreendê-las. É como se soubessem nada sobre tudo. As

discussões, as opiniões emitidas são formadas e esquecidas na mesma velocidade que as notificações de uma página no Facebook ou em um site de notícias, como o G1. A professora e escritora Angela Ramalho faz uma importante observação sobre isso. “A internet está cheia desse tipo de leitores e escritores. E não falo apenas de alunos, tenho adicionados em minha página na rede social, cerca de 500 escritores dos mais variados Estados. Observo erros crassos do uso da língua pátria. Erros que nem de longe podem ser confundidos com licença poética”, comenta. Hoje, mais da metade dos brasileiros tem acesso à internet e grande parte dessa população é considerada analfabeta funcional. Aqueles que não têm conhecimento das regras e da “liberdade poética” acabam fazendo um mau uso das palavras. Para o jornalista Wilame Prado é um problema, mas ele ainda vê com bons olhos o fato de ter várias pessoas praticando a escrita no mundo virtual, seja errada ou não. “É melhor escrever em frente a um com-

putador ou no smartphone do que simplesmente nunca escrever nada, ou, pior, nunca ler nada”, reflete Prado. Segundo Angela Ramalho, “é o conhecimento e o uso da linguagem escrita que vão conferir ao autor a segurança para que a liberdade poética aconteça”. A escritora salienta que para um bom observador será fácil perceber a diferença de quando um autor deliberadamente usa a licença poética como forma de recurso e quando ele comete erros de linguagem (por falta de conhecimento) ao comunicar-se. Claro que sempre haverá críticas para aqueles artistas que se sentem mais à vontade para utilizar a “licença poética”, para brincar com as palavras ou a arte em geral. O importante nesses casos é não abusarmos dos “erros” e termos uma postura mais realista quanto à norma padrão. É como se você, ao aprender as regras do jogo, pudesse jogar do seu próprio jeito. Quando se tem o controle das regras gramaticais ou de um assunto em geral, você ganha o direito de “brincar” com elas.

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Wesley Bischoff

A HEGEMONIA DOS CLIQUES O real e o virtual nunca estiveram tão conectados; web abre portas e se consolida como o principal canal do século para o exercício da liberdade de expressão

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Wesley Bischoff O jogo é rápido. Tudo acontece num simples piscar de olhos. Cliques e toques. Sorrisos e desabafos. Glórias e reclamações. O detalhe da sensualidade que busca a prova de amor. O som das teclas a bater e o silêncio da tela iluminada. A velocidade da informação. É como uma corrida de Fórmula 1, porém infinita. O público à espera de um espetáculo que não pode parar. O longe nunca foi tão perto, o “lá” se tornou “logo ali”. Se os filósofos se re-


usuários. São aproximadamente 100 milhões de internautas em terras tupiniquins. Quase 50% da população. Os números surpreendem e a estimativa é de que aumentem, principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil. Como portal de conteúdos de todos os tipos, a internet também se destaca pela possibilidade da convivência por meio das mídias. Entra em pauta o fenômeno das redes sociais. Febre entre jovens e adolescentes, a história dos sites de relacionamento começa mais ou menos com a da geração atual. O “Classmates”, criado em 1995, teria sido a primeira rede mundial de troca de mensagens instantâneas. Desde então, novos sites e serviços foram surgindo, como o Facebook e Orkut, em 2004, e o Twitter, em 2006. O estudante Leandro Marques, 17, ainda não tinha nascido quando o “Classmates” foi criado. Usuário de redes sociais há pelo menos seis anos, Marques embarcou no mundo virtual junto dos colegas. “Meus amigos usavam, daí criei uma conta. Hoje uso para me distrair um pouco e interagir com amigos virtuais.” Quando Marques ingressou no navio com destino aos sete mares da web, começou a navegar junto de outros mi-

lhões de usuários. Fez amigos que nunca viu na vida, mas que estão diariamente com ele. De acordo com Elton Tada, professor universitário graduado em Filosofia, a comunicação no chamado “mundo real” pode ser tão emblemática quanto a do ambiente virtual. Tada ressalta que toda forma de comunicação tem grau de virtualidade. Ainda segundo ele, as livres trocas de informações culturais, com a queda das fronteiras pertencentes ao ambiente geopolítico, precisam ser analisadas com cuidado. “Talvez, essa seja a ferramenta que faltava para a compreensão de que o planeta, para além das fronteiras que se estabelecem nele, é uma casa comum de todos. Por outro lado, o intercâmbio cultural pode gerar confusão para quem não se atenta ao processo de adequação das particularidades de cada cultura.”

OCEANO À VISTA

As redes também ampliam o suporte às possibilidades da liberdade de expressão, muitas vezes, feita de maneira irônica ou com boa dose de humor. Não é para menos que canais humorísticos no YouTube consigam reunir tanta gen-

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feriam aos seres humanos como animais políticos, justamente pelo advento da comunicação, tal recurso atribuiu à espécie outra qualificação. Somos seres conectados. E haja tempo, disposição e criatividade para se viver em dois mundos que, com o avanço tecnológico, vêm se mesclando. O virtual e o real, emparelhados numa era em que os laços sociais ganham novas formas e características. Uma sociedade que tem fome e sede para se expressar livremente. A internet lançou as próprias bases para o desenvolvimento ainda na década de 1960. O mais famoso entre os precursores da idade contemporânea foi a Arpanet. O que era para ser serviço de troca de mensagens do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, durante a Guerra Fria, tornou-se ferramenta essencial hoje. De acordo com a agência de telecomunicações da Organização das Nações Unidas, a ITU (International Telecommunications Union – ou União Internacional de Telecomunicações), há cerca de 3 bilhões de usuários de internet no planeta. Ou seja, cerca de 40% de toda a população mundial está, de alguma forma, conectada ao mundo sem fronteiras. O Brasil é atualmente o quinto país com o maior número de

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Rodolfo Oliveira, o “Nexo Algum”, ultrapassou a marca de 14 mil inscritos no YouTube

te. O “Porta dos Fundos”, um dos maiores do gênero em todo o mundo, tem mais de 10 milhões de inscrições, com vídeos que, em junho deste ano, ultrapassavam a marca de 19 milhões de visualizações. Rodolfo Oliveira, 23, entrou na onda dos canais humorísticos em 2011. Hoje, o “Nexo Algum” tem mais de 14 mil seguidores. É nesse espaço que Oliveira consegue realizar críticas à sociedade e temas cotidianos, sempre apostando no humor. “Tem gente que não considera que o que eu faço é humor. Acho que a vida é engraçada. O que eu faço é contar o que acontece na minha vida. Ao mesmo tempo em que você tem a liberdade de publicar alguma coisa, você tem a liberdade de consumir algum produto. Você pode escolher o que quer assistir.” Oliveira con-

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fessa que reflete sobre quem pode atingir com as opiniões emitidas por ele, porém raramente deixa de publicar um vídeo por esse motivo. “Normalmente, deixo atingir mesmo. O máximo que aconteceu é eu achar que ia deixar minha avó e minha mãe tristes.” Não são apenas os canais no YouTube que distribuem humor pela internet. Blogs, páginas no Facebook e usuários do Twitter também entram na disputa. Foi nas redes sociais que a expressão “zoeira sem limites” ganhou força, principalmente com a criação dos famosos “memes”. São frases, imagens ou vídeos que se espalham rapidamente pela internet. Para a publicitária e analista de mídias digitais Danielle Andrade, muitos fenômenos da internet surgem de forma


Julia Nardin

o discurso nas redes sociais, atualmente, é o mesmo que os indivíduos usam pessoalmente. “Se as pessoas se mostram inadequadas nas redes sociais, estão mostrando que são inadequadas no dia a dia.” E o que poderia soar saudável, pode se transformar em cyberbullying. Segundo Borges, isso pertence à dinâmica humana, fazendo parte de um sentimento primitivo. “Fico feliz que na sociedade de hoje há um esforço de educadores e psicólogos no sentido de conscientizar a respeito desse comportamento primitivo. Com as redes sociais, o cyberbullying esteve muito em voga, mas nos últimos anos, por causa dessa reação dos próprios internautas e dos órgãos de controle da internet, quem tem feito isso tem se dado muito mal.”

MEGAFONE VIRTUAL

inocente, sem intenção de se tornar hit. Segundo a profissional, são grandes sites e blogs de humor que emplacam tais memes nas redes sociais. “Eles não têm data de validade. São feitos por pessoas que têm um olhar mais apurado.” E enquanto alguns estão de olho nos acessos, outros enxergam faturamento. Empresas de todos os ramos vêm apostando no humor como forma de divulgação. “É uma forma de as empresas içarem [a marca] dentro da vida das pessoas de uma maneira legal.” Para ela, ou as corporações seguem a tendência nas mídias ou perdem público. “Você tem que estar dentro da brincadeira,” complementa Danielle. Além do humor, outros níveis de expressão permeiam a internet e as redes sociais. De acordo com Hélio Borges, psiquiatra e psicoterapeuta, as pessoas buscam afeto e reconhecimento de outros indivíduos. Além disso, segundo ele,

A internet abriu as portas para a liberdade de expressão em diversos âmbitos, até mesmo para aqueles que desejam construir a informação. Blogs de opinião e notícias também dividem espaço no emaranhado de conteúdo disponível pela web. Alguns adotam tom um pouco mais popular e policialesco, como o caso do blog Câmera Rec, criado em 2011 e administrado pelo estudante de jornalismo Flávio Souza, 38. A página apresenta notícias e imagens de fatos que englobam a ronda policial, como acidentes, assassinatos, incêndios entre outros temas. De acordo com Souza, praticamente todos os dias, posts de ameaças surgem como resposta às publicações do blog. Ele também conta que já teve de responder a dois processos judiciais, mas que venceu “pela liberdade de imprensa”. Atualmente, o Câmera Rec desfoca rostos de vítimas e imagens classificadas como “fortes”. Uma exigência da Google. Para o estudante, os processos são afronta à liberdade de expressão. “Eles se acham no direito porque são familiares, amigos, mas não tem jeito. Tá na rua é público. Saiu no Corpo de Bombeiros, na polícia, ficou público. Lógico que eu tenho pena, tenho dó, mas desde os 20 anos trabalho com isso. É a minha profissão. Eu só aponto os fatos.”

ZOEIRA

Embora ainda haja o pensamento de que a internet é terra, ou melhor, oceano sem lei, a regulamentação do serviço já existe. Em abril de 2014 a presidente Dilma Rousseff sancionou o chamado Marco Civil da Internet, que visa legislar sobre o uso da web no Brasil. Uma das determinações é que os provedores de internet devem guardar por no mínimo seis meses todos os

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dados gerados pelos usuários. Segundo Leonardo Pacheco, advogado especialista em direito digital, o problema é que, por ações de danos, o cidadão tem carência de três anos, a partir da ciência do fato, para entrar com ação judicial. Para ele, os maiores interesses atendidos foram os das grandes empresas. No entanto, o Marco Civil contribuiu para punir aquelas “pessoas que acham que a zoeira não tem limites, ‘posso zoar que está tranquilo, é só brincadeira’. É o pensamento que envolve a molecada da internet brasileira, e isso tem consequência, sim”. Pacheco defende que a liberdade de expressão presente no espaço virtual é praticamente idêntica à que existe na vida real. “A mesma coisa que posso falar na mesa do bar, posso falar na internet. A única diferença é que na internet tudo fica sempre registrado.”

DIREITO AUTORAL

Muitas infrações que permeiam a internet estão ligadas a boatos, crimes contra a honra e até mesmo vazamento de material íntimo. No entanto, engana-se quem pensa que só pessoas físicas estão sujeitas a tais transtornos. Grandes corporações também enfrentam esses tipos de problema frequentemente, principalmente no que diz respeito ao vazamento de materiais protegidos por direitos autorais. Em abril do ano passado, a TV Globo se tornou alvo dessas publicações. Algumas semanas antes da estreia do novo “Fantástico”, uma equipe, que se identificou como “Grupo Absurda de Comunicação”, por meio da “Absurda TV”, “vazou” nas redes sociais o piloto do novo formato da atração. Na época, o caso explodiu de forma negativa nos bastidores da Glo-

40% 100

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da população

milhões

mundial tem acesso a internet, de acordo com o relatório da agência de telecomunicações da onu em 2012.

de brasileiros estão conectados ao mundo virtual, deixando o brasil em 5º lugar no ranking de usuários.

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O cyberbullying esteve muito em voga, mas nos últimos anos quem tem feito isso tem se dado muito mal contidas em contas de e-mail pessoais revelam muito sobre o usuário. Para ele, é preciso proteger a senha de serviços de correio eletrônico como se fosse de contas bancárias. “Não existe receita mágica para se proteger de ataques. Empresas podem contratar profissionais, mas todos nós fazemos uso do computador e nenhum programa de segurança, seja de antivírus ou outro, será infalível. Precisamos ter algum conhecimento sobre as fraudes praticadas e agir com cautela”, alerta Rohr. Os debates sobre a liberdade presente nas redes sociais e o uso da internet ainda começam a ser aprofundados. Em uma sociedade que anseia pelo desenvolvimento tecnológico e ao acesso a novas fontes de conhecimento, geralmente, os usuários que permanecem tempo demais conectados são friamente julgados. É um impasse entre a liberdade de escolha na comunicação e o aprisionamento às novas tecnologias. Porém, para o professor Elton Tada, isso também indica processo de sociabilização, sendo necessário questionar qual a intensidade dessa conexão e com quem se está conversando. Tada utiliza o exemplo de um casal que está o tempo todo no smartphone: “Ao mesmo tempo em que não estão conectados entre si, estão conectados com outras pessoas. Certamente, o motivo para que eles não estejam conversando não é a possibilidade de acesso às redes sociais, e sim o desinteresse em seu par.”

Wesley Bischoff

bo. Em nota, a emissora afirmou que foi vítima de “furto de conteúdo protegido” e que entraria na Justiça para penalizar aqueles que divulgaram o material. Um ano após o episódio, o estudante de jornalismo Luan Borges, membro do Grupo Absurda de Comunicação, disse à Eu Tenho Liberdade que o material foi repassado por uma pessoa com acesso ao sistema da TV Globo, além de se ter descoberto uma falha no mesmo. “Eu ri, não sei se a Globo quis despistar alguma coisa, não dizer que era uma falha deles. Essa falha ainda existe no sistema deles. A gente não lucrou um centavo com aquele vazamento. A gente não roubou ninguém.” A Sony Pictures, nos Estados Unidos, também foi vítima de vazamentos, porém em proporções bem maiores. A empresa norte-americana foi invadida por hackers em novembro do ano passado e teve, além de dados de funcionários, produções vazadas. Entre as quais, o filme “Corações de Ferro”. Na ocasião, mais de 11 GB em dados foram enviados para o grupo de hackers The Guardians of Peace (Os Guardiões da Paz). De acordo com o jornalista Altieres Rohr, colunista do portal G1 e criador do site Linha Defensiva, que explora a segurança na web, sistemas de proteção virtual devem estar de acordo com o tipo de informação que se está guardando, seja em uma empresa, no governo ou até mesmo em computadores pessoais. Rohr ressalta que informações

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O exercício pleno

da transparência

Shutterstock

Nunca a sociedade esteve tão presente na vida pública como agora, depois que a legislação tornou obrigatória a exposição de gastos e dos atos das administrações. Mas o cidadão ainda precisa compreender o seu papel de FIscalizador nessa engrenagem

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Daniela Parkuts A liberdade tem grande peso na história. Das lutas e conquistas sociais, fatos que marcaram o Brasil e o mundo, muitos passam pela busca ao ideal de ser livre. A palavra é simples, mas tem peso imensurável. E o que dizer quando aplicada à política? É aí que a reportagem da revista Eu Tenho Liberdade propôs uma discussão, que reúne vários pontos de vista sobre o assunto. Para iniciar a conversa, primeiramente é preciso relembrar um fato que chocou os maringaenses. Há cinco anos, Maringá viveu o fim de um cenário vergonhoso na administração pública. Naquele período, 16 pessoas envolvidas num forte esquema de corrupção foram condenadas a devolver aproximadamente R$ 500 milhões desviados dos cofres públicos. Entre os envolvidos,o ex-prefeito Jairo Gianoto (PSDB), o ex-secretário municipal de Fazenda Luiz Antônio Paolicchi e o ex-deputado federal José Borba (PMDB). Mobilizados pela falta de fiscalização de recursos públicos e atuação da sociedade, um grupo de profissionais liberais, juízes, advogados, economistas, contabilistas, aposentados e voluntários criou, em 2006, o Observatório Social de Maringá (OSM), com o objetivo de fiscalizar a administração pública, mantendo a transparência aos olhos da sociedade. Começava aí o primeiro grande exercício prático da liberdade de acesso à informação. O primeiro presidente e atual voluntário do OSM, o empresário Ariovaldo Costa Paulo, conta que, no início, foram realizados vários treinamentos com o apoio do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE -PR), com os poucos voluntários que havia na época. “A estrutura era formada por dois funcionários, alguns estagiários e voluntários. Mais tarde,

com a grande demanda de serviços, houve a necessidade de ampliação do quadro de técnicos, mais capacitações e treinamentos.” Por meio dos cursos, foram aplicados métodos de trabalho, como o acompanhamento de licitação. A partir daí, começava a atuação do primeiro Observatório Social no Paraná. “A metodologia do OSM sempre foi a de auxiliar na fiscalização das contas públicas, mostrando que o dinheiro é público e precisa ser bem aplicado”, diz. Atualmente o OSM é referência nacional e internacional. Prova disso é que o órgão recebeu em 2009 um prêmio da Organização das Nações Unidas (ONU) na categoria Inovação Social. Após o reconhecimento, o observatório ganhou visibilidade. Tendo sido pioneiro, estimulou a criação e expansão de outros observatórios em várias cidades do Paraná. “Por mês, em média, três municípios entram em contato conosco, pedindo auxílio na implantação de um observatório e capacitação para ajudá-los a fiscalizar as contas públicas”, diz Ariovaldo Costa Paulo. Atualmente a entidade trabalha com cerca de 40 voluntários e todos podem participar desde que não sejam filiados a partidos políticos. Uma vez por semana, o comitê gestor, composto por parte desses voluntários, participa de uma reunião para decidir o que deve ser feito quando algo está errado. A atual presidente do Observatório Social de Maringá, a advogada e professora de direito Fabia Sacco, afirma que todo o trabalho realizado durante o ano é divulgado numa reunião aberta. Ela explica que essa “prestação de contas” é importante para que as pessoas tenham consciência e possam se envolver no processo. “Tivemos [o município] uma economia efetiva de R$ 53 milhões em oito anos de trabalho. O observatório exerce papel na sociedade para evitar gastos des-

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necessários e inspirar as pessoas a alcançarem resultados e saírem do inconformismo.” Para ela o OSM exerce um papel de liberdade. “Quando tivermos a boa aplicação dos recursos públicos, certamente seremos cidadãos mais livres. Livres para exercitarmos nossos direitos e para exercermos de forma plena nossas prerrogativas de cidadãos, livres também da carga que o Estado vem impondo com a cobrança excessiva de impostos sem a devida e correspondente contrapartida”, ressalta a advogada. Para o advogado e professor de direito constitucional e administrativo Rogério Calazans, o trabalho do OSM é importante, mas com muitos objetivos a serem cumpridos, pois ainda não há transparência suficiente para o cidadão compreender os dados divulgados. “É Shutterstock

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preciso ter liberdade, se não tiver liberdade não tem transparência”, ressalta. Manoel Quaresma Xavier, voluntário do Observatório Social de Maringá e professor de Ciências Contábeis é da mesma opinião. Ele acrescenta que todos são livres para saber como o dinheiro é gasto, mas o que falta realmente é transparência. “Tenho a liberdade de saber, de falar, de fiscalizar as contas públicas, é um direito meu. Para isso, é preciso ter transparência. Tudo o que é público tem de se tornar público.” Segundo ele, várias leis foram criadas para que as pessoas fiscalizem a gestão pública, ainda assim não é o suficiente. “Mesmo sendo pública, ainda não está sendo transparente. É preciso mais publicidade”, ressalta o professor Manoel Quaresma Xavier.


É preciso participação para ser livre POPULAÇÃO ALHEIA O cientista político Tiago Valenciano também avaliou o trabalho do OSM e ressaltou a importância da liberdade na fiscalização da administração pública. “Havia um desejo da sociedade de combater a corrupção e os desvios na máquina pública. O espírito de criação do observatório foi justamente nesse sentido. Além do trabalho, a própria legislação contribuiu para isso.” Porém, ele salientou que a maioria da população se mantém alheia às situações das contas públicas. “É preciso que o cidadão se envolva mais, participando, sobretudo, do Poder Legislativo, voltado às discussões políticas mais importantes da cidade.” Para Valenciano liberdade é essencial na participação do meio político. “Há uma relação direta entre transparência e liberdade. Sem liberdade não é possível manter a transparência, uma vez que, para tê-la, precisamos não sofrer coação de qualquer governo.”

É preciso que o cidadão se envolva mais, participando, sobretudo, do Poder Legislativo, voltado às discussões políticas mais importantes da cidade Quando tivermos a boa aplicação dos recursos públicos, certamente seremos cidadãos mais livres

De acordo com Fabia Sacco , o OSM tem duas categorias de atuação, voluntários e técnicos com vínculos empregatício. Qualquer pessoa, desde que não tenha um vínculo político partidário, pode se tornar um membro. De acordo com ela, ainda é preciso muito trabalho para que a sociedade fique mais atenta. “É preciso mais envolvimento e preocupação da sociedade na fiscalização. Geralmente partidarizam e simplificam esse assunto, utilizam o senso comum, um discurso vazio que não leva a nada. quando se mobilizam, fazem passeatas e não obtém resultados , muitas vezes, geram mais prejuízos pois quebram o patrimônio público”, ressalta a advogada. Para Rogério Calazans, todos têm o direito de fiscalizar a administração pública. Existem instrumentos para a população observar, além da lei da transparência, como o direito de petição, ação popular, que dá o direito às pessoas de sustar atos da administração pública, desde que resulte a um dano ao patrimônio público, histórico e cultural. “Falta conhecimento das pessoas. O direito constitucional deveria ser matéria de ensino médio, a população não conhece o Brasil, isso tem uma culpa na educação. Está tudo na Constituição, mas as pessoas não conhecem , sabem apenas que são obrigados a votar”, diz . Segundo Tiago Valenciano ainda há empecilhos em vigiar um modelo de governo tipicamente fechado, e que dignidade em qualidade de vida ao que se aplica em vigiar o poder, depende da visão de cada um. “Dignidade significa elevar a grandeza moral, qualidade daquilo que é grande. Se acredito que ter liberdade é elevar minha moral e, consequentemente, que ela é importante para mim, posso dizer que a partir da liberdade tenho uma vida digna no que diz respeito à avaliação do poder público. Afinal, não há possibilidade de contestação em um regime político fechado”, frisa o cientista.

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Poliana Bolqui

Humor a qualquer custo também tem seu preço

Ainda hoje a liberdade de humor tem sido censurada pelo “politicamente correto”; a dualidade entre falar o que quiser e o desrespeito se mostram adversas

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Dentes de fora, aplausos e barriga doendo de risadas definem os sintomas da comédia. Uma história que é contada e modificada, lados opostos e uma questão instigante: qual é o limite entre o humor e o respeito ao indivíduo? A resposta para essa pergunta ainda é muito debatida e apresentada sob diferentes pontos de vista. O fato é que piadas são expostas publicamente, sem qualquer medida e, na maioria das vezes, têm a única função de entreter e lidar com situações do cotidiano de forma descontraída. Todavia, o momento crítico deste tema se estabelece no modo como reage o indivíduo que se sente tocado pela ironia. A forma como a comicidade é vista atualmente no Brasil contraria em parte a ideia de liberdade no fazer humor. Aos olhos do “politicamente correto”, explorar minorias ultrapassa os limites da ironia, o que pode significar, em alguns casos, retrocesso sobre a livre vontade de fazer humor. Manifestos com o objetivo de libertar o país da censura humorística foram feitos. Um recente exemplo bem-sucedido, em 2010, foi a manifestação “Humor Sem Censura”. O protesto foi feito por humoristas do Rio de Janeiro contra a limitação do humor imposta pela lei eleitoral, que impede sátiras aos candidatos durante as campanhas. O resultado foi que nada aconteceu e a proibição continua até hoje. Por mais que a sociedade declare ser livre, a censura midiática, religiosa, étnica, entre outras, ocorre sem que a maioria se dê conta disso. É evidente perceber os diversos rumos que uma piada ou comentário pode tomar. As questões relacionadas à homossexualidade, por mais que estejam ancoradas em nosso cotidiano e sejam compreendidas, ainda conotam sentido de deboche e zombaria. Um dos fundadores e ex-presidente da Associação Maringaense de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (AMLGBT) Luiz Modesto Costa, 34, conta que, muitas vezes as piadas relacionadas a essas questões ultrapassam o limite do respeito. Segundo ele, acabam por incentivar e perpetuar a prática do preconceito no momento em que tentam tornar natural a infe-

riorização do outro. Esse “humor” estaria reafirmando estereótipos e termos que minimizam a existência do ser humano e sua orientação sexual. “Propagam, assim, a reprodução da homofobia transmutada em elemento de comédia.” MANIFESTAÇÃO HUMORÍSTICA O humor sempre esteve presente e, claro, sempre incomodou. Tanto no período da ditadura militar como agora, as formas de se fazer comédia buscaram quebrar barreiras com audácia e perseverança. O ator, humorista, palestrante e fundador do clube de comédia Kimkilharia, Kim Archetti, 31, esteve presente em manifestações a favor da comédia descomedida e luta até hoje pelo direito de liberdade artística. Na opinião dele, o humor depende da construção de mundo de cada indivíduo. “É muito comum pessoas se ofenderem com piadas, mesmo aquelas construtivas, porque o ser humano é quase incapaz de aceitar questões relacionadas a críticas a si mesmo. É difícil explicar a todos que em um show de humor, as piadas foram criadas apenas para entreter, fomentar e indagar questões como a política, educação entre outros”, diz, Archetti.

Adriano Correa

Talita Trento

O humorista Kim Archetti

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Em uma época que o politicamente correto predomina e qualquer palavra “fora do lugar” pode resultar em processo judicial, a liberdade de expressão tornou-se reprimida e sufocada. Em 2010, ao julgar a consagração expressa do sarcasmo como expressão legítima da liberdade de expressão e artística, o Supremo Tribunal de Justiça reconheceu a dignidade constitucional do humor. No entanto, deixou claro também que, “[...] não cabe aos tribunais dizer se o humor praticado é ‘popular’ ou ‘inteligente’, porquanto à crítica artística não se destina o exercício da atividade jurisdicional”. O então ex-ministro do Supremo Tribunal de Justiça Carlos Ayres Britto ainda defendeu que o humor “[...] traduz informação, opinião crítica e, ao mesmo tempo, revela talento criativo. Isso já faz parte da atividade artística propriamente dita”. Muitos casos de humoristas que carregam alguns processos são obser-

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vados na mídia e, com isso, a constatação de que a forma de se fazer humor no Brasil está transformada. A indignação de grupos que tomam a dor alheia e acreditam ser atingidos pela comédia é imensurável. Uma piada é feita para divertir no momento e não para ser incorporada ao cotidiano. O advogado Leonardo Pacheco, que defendeu humoristas na Justiça por acusações de ofensa, dá um conselho a quem trabalha no ramo. Ele sugere que os humoristas não façam piadas sobre uma determinada pessoa, e sim busquem falar da situação como o todo, criticando apenas o fato. “A verdade é que todo indivíduo tem o direito de acionar alguém caso sinta que está sendo ofendido, porém, não significa que vai necessariamente ganhar a causa”, explica o advogado. Ele afirma que as pessoas que procuram os shows de humor como forma de descontração sabem que as piadas e histórias ali contadas servem exclusivamente para o divertimento.


lqui

Temas que ainda promovem grandes polêmicas dissertam sobre um emaranhado de valores que cada indivíduo carrega em suas tradições, costumes e crenças. Em janeiro deste ano, o atentado em Paris ao jornal de sátiras Charlie Hebdo chocou a todos ao colocar em questão o limite do respeito com a religião alheia versus a liberdade de expressão absoluta. Os chargistas que publicaram referências ao profeta Maomé provocaram constrangimento à religiosidade do povo islâmico, o que determinou a tragédia no jornal, com a morte de 12 pessoas, que chocou o mundo. O teólogo Luiz Alexandre Solano Rossi, doutor em ciências sociais e religião, pós-doutor em história antiga e escritor, explica que o Estado é laico a fim de que, em seu espaço territorial, possa conviver a pluralidade, o diverso, o misturado. “Com o respeito à diversidade, os olhares e vivências de uma nova humanidade podem ser construídos assim como um mundo onde todos possam encontrar os espaços dos outros.” O cartunista maringaense Gucharges, que há mais de dez anos apresenta produções artísticas e convive diretamente com o humor, diz que “toda comédia, seja teatral, no traço ou na música, é desenvolvida com o intuito de criticar ou construir algo. O papel de quem a desenvolve vem simplesmente para quebrar esse paradigma de preconceito, fortalecendo a liberdade de ex-

a Bo

CHARLIE HEBDO

pressão que, na verdade, é barrada pelos interesses políticos.” Ele afirma que o caso Charlie Hebdo traz à tona o disfarce ao título de “liberdade de expressão”, salientando apenas o fortalecimento da politicagem e de interesses particulares. À revelia de ser ou não livre, o autêntico papel do humor na sociedade deve ser o de evidenciar questões que afligem os indivíduos ou que estão em um patamar ao qual eles não conseguem chegar, mas que, com a comicidade, pode ser conquistado ou até mesmo transformado. Desse modo, mostrar às pessoas a situação em que vivemos, de forma bem humorada, articula e promove o debate de pensamentos diferenciados. As sátiras exibidas pelos meios de comunicação nos fazem refletir, baseados em momentos da história e do contexto ao qual as pessoas estão inseridas.

Polia n

Entretanto, ainda há aqueles que não ficam satisfeitos e não concordam com o vocabulário e ideias apresentados em um show de comédia. A estudante de direito Suelen Ramos, 24, afirma que esteve em um evento humorístico do qual muitas pessoas saíram desapontadas. "Pensei que São Paulo, por ser um grande centro, apresentaria uma mentalidade aberta, livre de preconceitos e ofensas dentro do humor, mas essa expectativa me decepcionou. O humor sujo imperou e eu não pensei duas vezes em ir embora", conta, revoltada.

O com edian te Ki m

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apres entaç ão

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CARICATURA A caricatura é uma das diversas expressões de humor realizada por meio de desenhos artísticos. Normalmente, utiliza traços específicos de alguém, reforçando e dando maior expressividade à imagem. É um momento do humor que permite ao artista expor uma opinião individual ou uma crítica à sociedade e personagens dela, reforçando contornos e linhas que denunciam as particularidades de cada elemento.

Toda comédia, seja teatral, no traço ou na música, é desenvolvida com o intuito de criticar ou construir algo

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Muito além do souvenir Cerca de 2,5 milhões de brasileiros, legalizados ou não, vivem hoje em 193 países, segundo o Ministério das Relações Exteriores

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Nayara Varini Conhecer novos costumes, novas regras, novas pessoas, ou melhor, conhecer um novo país. Quem nunca quis se aventurar por terras desconhecidas e curtir um pouco da própria liberdade? Para alguns brasileiros é apenas uma diversão e com tempo determinado. Para outros, é uma mudança radical e, talvez, sem data certa para voltar. A revista Eu Tenho Liberdade conversou com alguns desses emigrantes. Para vários deles, o que mais pesou na decisão de ir embora é a desigualdade social no Brasil. Paula Pereira, 24 anos, estudante, mora há três anos e meio em Bournemouth, cidade localizada ao sul da Inglaterra. Para ela, é inadmissível a diferença entre as classes sociais no Brasil. “Antes dessa experiência

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eu podia facilmente aceitar que a empregada doméstica da minha mãe não tivesse estudo nenhum e nem sequer uma televisão em casa. Hoje isso me parece inaceitável. Aprendi a essência desse sistema e deixei de ser conformada ao ver gente tão pobre trabalhar tanto e não conseguir ter nada”, disse ela por e-mail. A estudante, que atualmente mora com o noivo e está cheia de planos para o futuro, diz estar totalmente realizada com a decisão. “Aqui tenho o que jamais teria no Brasil se meus pais não me ajudassem: apartamento, móveis, carro, viagens e faculdade financiada pelo governo [britânico]. E até as coisas bobas, como celular, computador, roupas de marca. Aqui, qualquer um pode ter essas coisas; no Brasil só os ricos têm. Me sinto realizada em poder construir minha vida e ter suporte de um governo que co-

labora para isso.” Já para Guilherme Mendonça, 30 anos, há cinco vivendo na Nova Zelândia, além da desigualdade social, a falta de segurança e a corrupção do governo brasileiro ajudaram bastante para essa tomada de decisão. “Educação entre os cidadãos e respeito por parte dos órgãos públicos é o que acontece aqui”, diz o analista de software. “Encontramos o prefeito da cidade nas ruas e podemos conversar com ele. Até já vimos o primeiro ministro uma vez. As ruas não têm buracos ou sujeira e as estradas não têm pedágios. Vemos claramente onde a verba dos impostos é investida”, diz ele, também em entrevista por e-mail. Porém, enquanto cidadão, Mendonça afirma que o problema não está só no governo, mas também na falta de educação do brasileiro. “Não culpo somente


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NÃO VOLTA O analista de software, que é casado com uma brasileira e tem dois filhos neozelandeses, diz que não retornará para o Brasil e que quer mesmo se aposentar por lá. “Sempre nos encantamos com a forma com a qual os idosos são tratados por aqui, pela sociedade e pelo governo. Eles têm confiança para passear e explorar o país como qualquer outra faixa etária, sem medo de assalto, ataques ou até mesmo de serem ignorados caso precisem de auxílio.” Após quase dois anos tentando recolocação no mercado de trabalho, Jocelaine Nascimento, 38 anos, sentiu-se totalmente desmotivada com as pequenas oportunidades ofere-

cidas no Brasil. Por isso acabou decidindo tentar conquistar os objetivos em outro país. Também por e-mail, ela conversou com a revista Eu Tenho Liberdade. “Hoje posso dizer que sou feliz e realizada pessoalmente e profissionalmente, porque durante 12 anos de trabalho no Brasil, graduada e pós-graduada, não conquistei o que em apenas um ano pude conquistar trabalhando e morando nos Estados Unidos”, diz ela, que é bacharel em direito e mora há um ano na Flórida

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a corrupção, e sim a cultura, a falta de respeito de um [cidadão] pelo outro.”

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(EUA). Além disso, ela afirma que tudo no começo foi complicado. “Os primeiros meses foram difíceis; cultura, idioma e costumes diferentes, mas todas essas dificuldades são recompensadas quando somos valorizados, respeitados, e reconhecidos. Aqui é um país de oportunidades, a mão de obra é valorizada. A diferença das classes socioeconômicas nos Estados Unidos, na comparação com o Brasil, é muito tênue.” PRÓS E CONTRAS Deixar o País, que se enquadra no direito enquanto cidadão e na liberdade enquanto ser humano, pode ser positivo. No entanto, segundo a psicóloga Ubiraci Botelho, essa mudança de território também pode ser prejudicial à saúde mental se não for bem planejada. “Mudança é algo muito subjetivo, pois cada ser humano tem seu próprio modo de dimensionar os conteúdos, dependendo de como ele elabora critérios para essa tomada de decisão.” Isso, segundo ela, pode fazer bem, assim como pode fazer mal, ou seja, se essa escolha momentaneamente for a melhor para que o indivíduo tenha certo alívio psíquico, pode ser bom. “Porém, as escolhas geram grande conflito interno e psíquico. O desconhecido causa angústia, ansiedade e dor.” Ubiraci diz que esse conjunto de sentimentos é inerente ao ser humano. “Essa condição pode permanecer enquanto ele esteja vivenciando esse momento conflituoso ou, dependendo do seu estado emocional, evoluir para uma patologia.” Os problemas socioeconômicos e políticos que respingam na decisão de deixar o país vêm de séculos passados. É o que afirma o professor e cientista político Marcelo Francisco de Assis. “O problema do Brasil vai bem além de qualquer governo que dirigiu nosso País nas últimas décadas. A história nos mostra que as mazelas do Brasil têm se estruturado há muito tempo, desde a colonização.” Ele menciona o período escravocrata, fonte de riqueza dos colonizadores, que manteve o País no atraso enquanto na Europa pipocavam revoluções. “Aqui ainda vivíamos sob o jugo de um colonizador que nada pode-

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ria oferecer para estruturarmos como uma nação, já que servíamos apenas como fornecedores de riqueza.” O cientista político diz que a identidade que temos, principalmente quem se considera classe média, é deturpada e irreal. “Por mais que tenhamos problemas, o mundo como um todo está em crise”, salienta. Ele se refere à alienação que os brasileiros sofrem com relação à própria imagem na comparação com outros países, exibida em filmes e publicidade. “[Isso] Leva as pessoas a, muitas vezes, trocarem os pés pelas mãos, mesmo não querendo admitir.” E arremata citando o “titã” Branco Mello: “Um idiota em inglês, se é ‘um’ idiota, é bem menos que nós”.


Daniela Parkuts

Amanda Guimarães

a luta é

livre,

mas não vale tudo

O mma vem ensinando os praticantes a se expressarem honestamente, respeitando os próprios limites e os limites do oponente

Quando mãos e pés se transformam em armas, o tiro é certeiro. O MMA (Mixed Marcial Arts), que em português significa Artes Marciais Mistas, vem ensinando os praticantes a pensar com franqueza para o corpo obedecer com exatidão. Seguindo estilo livre de luta , os praticantes de MMA podem escolher o golpe que quiserem para vencer. Seja de judô, jiu-jitsu, muay thai e até mesmo de capoeira. Dessa forma, a liberdade prevalece ao usar a técnica escolhida, mas engana-se quem pensa que o MMA é uma luta livre. Para alguns atletas, o sonho de se tornar lutador começa na infância. André Oliveira, 30, conhecido pelos amigos como Tio Chico, dedicou a vida à paixão pela luta, e hoje tem orgulho de dizer que ganha dinheiro, fazendo aquilo

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João Paulo Santos/Artpress

André Oliveira, vencedor do MMA Maringá Combat

que ama. “Comecei a lutar karatê com 6 anos de idade. Aos 12 , mudei totalmente de rumo e fui jogar futebol.” Aos 19 anos, Oliveira voltou a lutar e dessa vez, para valer. No auge do vale-tudo, o lutador treinava intensamente. Saber lutar não era o bastante, também era preciso talento e disciplina. Por em prática a força apreendida no treino para vencer a batalha no octógono. Respeitar os próprios limites e os limites do outro, nas regras do vale-tudo, era missão quase impossível, pois naquela época, quase não havia regras, como ressalta o treinandor de MMA Samir Kourani. “Não tinha limite de tempo no round. Valia até mesmo chutes na cabeça do adversário quando ele estava no chão. Eu poderia pisar no oponente e talvez matá-lo ou machucá-lo gravemente. O treinador destaca a evolução do esporte e a inclusão das regras nas artes marciais mistas. “Hoje o MMA está se tornando esporte. as regras protegem os lutadores e os encoraja a continuar lutando.” CONSEQUÊNCIA André Oliveira foi um dos muitos lutadores que sofreu as

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consequências da época que o esporte era “livre”. “Há 6 anos em uma luta, eu fraturei o rosto. Fiz algumas cirurgias e fiquei dois anos sem sentir uma parte da face. Passei um período bem difícil. Naquela época, já existiam algumas regras, foi no final do vale-tudo, mas alguns eventos [os organizadores] seguiam estilo livre.” Foi nessa época que o lutador resolveu dar um tempo na carreira, ficando sete anos longe do octógono. “Só agora resolvi voltar. Surgiu uma oportunidade de lutar no MMA Maringá Combat, então resolvi encarar. Os treinos foram intensos, emagreci 30 quilos, mas valeu a pena. Venci a competicão e as portas se abriram novamente. Hoje vivo daquilo que sempre gostei de fazer.” LIBERDADE A liberdade norteia os lutadores como Tio Chico o tempo todo, porém, existe uma brecha. Os praticantes são livres para escolherem o estilo de luta, livres para escolherem com quem lutar, o que vestir e a hora de parar a luta, porém, ao mesmo tempo, os lutadores são presos a regras e qualquer passo em falso, equivale à desclassificação. O jornalista Carlos Emo-

ri, que atua na área esportiva, acompanha os eventos de lutas desde a época dos telecatches, espécie de armação em que os lutadores simulavam as lutas. “Conforme fui ficando mais velho, continuei acompanhando os eventos de artes marciais , desde o Pride [etapa inicial da luta] até hoje, com o UFC. Na faculdade fiz meu trabalho de conclusão de curso sobre MMA e conheci a história do esporte.” Segundo o jornalista , no princípio, a mídia acompanhava e dava destaque aos eventos de luta por causa da influência política da família Gracie, mas pode se dizer que o MMA é um fenômeno mundial muito em função da profissionalização do esporte. “Só de ter a Rede Globo, maior emissora do Brasil, transmitindo UFC ao vivo, já é um sinal de que o esporte está em um patamar bem alto.” A HISTÓRIA O MMA que conhecemos e assistimos teve origem no vale-tudo, na época em que os lutadores não seguiam regras e todo golpe era válido. Segundo Fellipe Awi, no livro Filho teu não foge à luta, foi a família brasileira Gracie que deu início aos


campeonatos de artes marciais. Carlos Gracie e seus irmãos praticavam jiu-jitsu desde a infância. Hélio Gracie era o irmão mais novo e mais franzino de todos. Sempre levava desvantagem nos combates, então adaptou técnicas em que poderia utilizar a força dos adversários contra eles mesmos. A confiança foi tamanha. A nova adaptação do jiu-jitsu era tão eficaz que os Gracies desafiavam vários adversários de outras modalidades, a fim de mostrar como os praticantes encaravam seus oponentes e os venciam. Os chamados ‘Desafio dos Gracies’, deram origem ao UFC (Ultimate Fighting Championship), o maior campeonato de artes marciais do mundo. O PERIGO É notável que o público que acompanha o MMA fica vidrado com os eventos. A plateia vibra quando lutadores como Anderson Silva e Junior Cigano sobem no octógono. É difícil perceber e acaba se esquecendo que antes da luta existiu muita preparação, com mãos e pernas que foram castigadas até se tornarem armas podero-

sas. O público torce, grita e, muitas vezes chora com a derrota. Em um esporte em que todo golpe visa nocautear o adversário, trabalhar as técnicas têm importância fundamental para quem deseja vencer, porém, os lutadores acabam se expondo a várias lesões, como explica o fisioterapeuta Paulo Henrique de Assis. “As artes marciais quando praticadas apenas para melhorar a condição fisíca, com devida orientação e preparo, trazem muitos benefícios ao lutador. Quando o praticante tem a intenção de competir, muitas vezes acaba exagerando nos treinos e lutas, expondo-se a contraturas musculares, fraturas, luxações, além disso, ligamentos, capsulas articulares, tendões e lesões no sistema nervoso também podem ser comprometidos durante a luta.” Ainda segundo o fisioterapeuta, “as regras do MMA, ajudam a cuidar da integridade fisíca do atleta, mas as repetidas agressões no sistema nervoso central, podem causar microlesões ao cérebro e futuramente levar o lutador a sofrer algum tipo de doença como Parkison, Alzheimer, entre outras”. Amanda Guimarães

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Giovanna Defacio

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olhares anônimos

da liberdade o desafIO DE ENCONTRAR LUGARES, PESSOAS E SABORES; O EFEITO DE SE APAIXONAR EM CADA PASSO QUE FOI DADO

Bruna Tamires Imagine. Uma gota de chuva cai na sua cabeça e escorre pelas costas. O bafejo do vento balança de leve a mecha do cabelo que, insistentemente, esgueira-se para fora do coque. Os pés começam a ficar doloridos da caminhada no asfalto quente. Chuva: intensa e nada harmônica ao momento. Agora, ignore as vicissitudes e imagine o deleite de estar peregrinando a liberdade. Acredite, essa é uma jornada para quem tem asas e anseia conhecer a forma, o gosto e o sabor daquilo que te deixa mais livre. Desfrute de um raro momento em que

as cortinas se abrem para uma roda antiga, tomada de histórias e significados. O ano é 1973, período de embates políticos e repressão. Quase uma criança, Maringá tinha 26 anos e estava prestes a colocar no mapa um ponto marco de atrevimento. Segundo o historiador João Laércio Lopes Leal, a crescente expansão maringaense abriu novos espaços para loteamentos na região norte da cidade. A Empreiteira Ingá, responsável pela construção do bairro, provocou a Ditadura e chamou o loteamento de Conjunto Liberdade, acenando para um possível afastamento do governo autoritário da época. Para Leal, a genialidade do nome está na brincadeira de a liberdade ser “exatamente o que não havia no País”.

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Luís Alvares Neto, o observador da rua Vila Rica, guarda memórias de quem passa por ele

OLHOS CANSADOS

Com a história ainda ressoando na cabeça, os pensamentos devaneiam sobre o passado próximo. Sentado ao

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abrigo de uma árvore, seguro em um banco corroído de madeira, o derradeiro ganha voz. Olhos verdes de quase cem anos, sorriso velho de um eterno contador de façanhas. Num sossego anti-

quado, o número 432 da rua Vila Rica acolheu Luís Alvares Neto, 91, senhor de muitas palavras. Morador do bairro há 40 anos, Neto conta que quando chegou ao Conjunto Liberdade


Bruna Tamires

para cima e os que passam para baixo. Fico, assim, desse jeito”, conta, sorridente, o observador. Alagoano de nascença e cearense de coração, o pioneiro é viúvo de duas mulheres e também enterrou sete filhos. Apenas no bairro, Neto encontrou o conforto que precisava para criar mais cinco crianças. Amigo de muitas décadas, Francisco Bula, 74, de quando em quando faz companhia ao carpinteiro no serviço da observação. “Naquele tempo não tinha televisão e não tinha luz. Então, ele ia fazer o quê? Filhos”, brinca Bula sobre a numerosa paternidade de Neto, arrancando uma longa gargalhada do amigo. Ainda sob a sombra da árvore, Neto procura outro alguém com quem conversar e, quiçá, revelar outras histórias de quase um século de vida.

FERRUGEM HISTÓRICA

encontrou apenas pés de café. Carpinteiro nas horas vagas e avô em tempo integral, ele encontra tempo para admirar a vida passar. Na companhia de uma árvore e do cão Bob, ele observa a rua quase deserta e, vez ou outra, encontra um novo amigo para conversar. “Fico sentado aqui, olhando os que passam

A liberdade, aparentemente, gosta de mostrar o passado. Na avenida Osires Stenghel Guimarães, número 870, a história tem até textura. Dono de uma sapataria peculiar, João Mendes Fonseca, 66, exibe com orgulho as relíquias do pequeno museu. Uma estrela entre os moradores, Fonseca já recebeu na célebre sapataria, inúmeras visitas da imprensa maringaense. O colecionador conta que trabalha como sapateiro há 57 anos, mas foi apenas em uma visita à Itália, em 2009, que ele adquiriu o prazer de preservar a história. Durante um passeio de bicicleta com o neto em Veneza, Fonseca conheceu um sapateiro que guardava objetos antigos. Para inspirá -lo, o italiano deu a ele uma máquina de costura com mais de cem anos. Desde então, Fonseca continuou recebendo doações de antiguidades para o museu. Segundo ele, cada peça da coleção tem mais de 80 anos e por essa razão, aceita apenas doações de objetos realmente antigos. A loja, com cheiro de ferrugem e cola de sapateiro, guarda muito mais do que objetos históricos; ensina como se autopreservar para poder zelar pelo passado. Fonseca, de cabelos pretos como o piche e olhos sem rugas, conta orgulhoso que o segredo para a eterna juventude é um suco matutino que

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Bruna Tamires

João Fonseca, sapateiro e historiador, exibe orgulhoso o “museu-sapataria”

mistura castanha-do-pará, berinjela e cenoura, além de todos os exercícios físicos que pratica. Sem parar de sorrir, ele afirma: “preciso cuidar de mim, para cuidar do passado”.

CONVERSA AÇUCARADA Se porventura a boca ficar seca pelo frenesi que a história tomou, há um carro de caldo de cana muito próximo dali, descendo a Osires com a rua Joana D’arc. Sempre gelado, doce e com gotinhas de limão, a iguaria combina muitíssimo bem com o “passeio da liberdade”. Acaso você queira mais do que saciar a sede, aproveite para conhecer Marino Petrangelo, 75, morador e comerciante do Conjunto Liberdade.

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Vendedor de caldo de cana há três anos, Petrangelo diz ser especialista na tagarelice e produção da bebida. “O trabalho é muito bom, fico parado só batendo um papo. Passa o dia e eu nem vejo”, graceja ele. Petrangelo conta que decidiu abrir o carro de caldo de cana quando se cansou de trabalhar como pedreiro e percebeu que precisava aproveitar a velhice. Trabalhando de segunda a sábado, o vendedor cultivou amizades e presenteou os amigos com muitos copos de caldo de cana. Zombador, Petrangelo não perde a oportunidade de caçoar Ivone Aparecida Lopes, 50, uma das companhias diárias dele, no carro de caldo de cana. “Essa aqui, por exemplo, está gorda desse jeito de tanto beber caldo de graça”, brinca.

O bairro ainda estava sendo construído quando Petrangelo se mudou para lá, há 40 anos. Segundo ele, no início era perigoso andar sozinho pelo Conjunto Liberdade, uma vez que a região não estava totalmente povoada. O vendedor afirma que o lugar é “bom demais, com povo humilde e simpático”.

OLHE PARA CIMA Indubitavelmente, os olhos não enxergarão tão adiante e o corpo ainda estará saboreando uma sensação açucarada de prazer. Está na hora de pagar a conta e conhecer outra forma de liberdade. O caminho pela Avenida Osires Guimarães é curto, mas deve ser apreciado, afinal, não é todo dia que, inopi-


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Entre um caldo e outro, Mariano Petr창ngelo coleciona amigos


Bruna Tamires

nadamente, uma vaca surgirá no meio da calçada. Quando as pernas parecerem pesadas pela subida, o número 946 estará próximo. Com a promessa de deixar a cidade mais bonita, o cabelereiro Evanildo Pereira dos Santos, 43, decidiu abrir, junto da mulher, o salão de beleza no mesmo bairro em que cresceu, o Conjunto Liberdade. Dono do salão e de um enorme cabelo black power, Santos explica que antes de ser cabelereiro, não trabalhava mais que três meses em cada lugar. A profissão começou inicialmente com um convite da mulher, Adriana Santos, 37, que precisava de um auxiliar. “Eu pagava R$ 200 para uma menina lavar cabelo das clientes e quebrar tudo dentro do salão. Então, ofereci R$ 250 para ele, e ele ainda ia pagar as contas da casa”, diverte-se Adriana. Um corte aqui, outro acolá e 8 anos trabalhando juntos passaram. Santos mora no Conjunto Liberdade há 36 anos e se lembra carinhosamente como foi crescer no bairro. Correr à procura de cascalhos na rua foi a grande diversão da infância dele. Fiel ao Conjunto Liberdade, ele afirma que está vivendo a melhor idade da vida no bairro. “E os filhos também viverão.”

Igreja em tons pastéis é espaço para fé

(C)ORAÇÕES AO ALTO Seguindo as placas, uma obra grandiosa, refinada, artística e suntuosa aparecerá. Inquestionavelmente, a paróquia Nossa Senhora da Liberdade dá ao bairro resplandecência. Para quem olha de fora, assemelha-se a uma grande caixa de tons pastéis. A visão de dentro é o que, de fato, surpreende. A santa que originou o nome do templo acolhe todos os fiéis de braços abertos em uma gruta de pedras, transmitindo, quem sabe, serenidade. Banco confortável e silêncio apaziguador. Pinturas por todas as partes. Oração. A paróquia Nossa Senhora da Liberdade foi inaugurada há 27 anos e desde então os fiéis se uniram para cuidar do templo. O padre Dirceu Alves do Nascimento prega na Nossa Senhora da Liberdade há dois anos e fica encantado com a dedicação dos peregrinos. As reformas foram financiadas pelo dízimo e, segundo o padre, os fiéis “têm um zelo muito grande pela igreja e tudo que for preciso fazer para dar conforto e acolher bem, eles farão”.

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Com o black power preso, Santos trabalha com a mulher

CHEIRO ENLOUQUECEDOR Na saída da paróquia, o Sol já está baixo e o corpo mostra os primeiros sinais de preguiça. O cansaço – quase – repentino é incitado pelo cheiro de massa assando. Poucos minutos andando e já é possível imaginar o gosto da esfirra quente e macia, recém-saída do forno.


Na Esfiharia Liberdade os “carros-chefe” em vendas tem sabor intenso

A Esfiharia Liberdade, responsável pelo perfume que se espalha pelo bairro, está aberta há um ano. O dono, Valter Rodrigues Barroso, 40, comanda a cozinha do restaurante todas as noites e afirma que os “campeões de vendas” são as esfirras de carne e de brigadeiro. O cuidado na produção é o que atrai os clientes, alguns deles “chegam a pedir esfirra quatro a cinco vezes na

semana”, conta Barroso. O sinal de que as esfirras estão prontas toca. Três discos de massa recheados sobre um prato aguardam ser devorados. O sabor é minucioso. Cada mordida é uma irrupção de temperos e gostos. Carne. Frango com catupiry. Brigadeiro. Não se permita esquecer que esses sabores são, comprovadamente, inebriantes.

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Wesley Bischoff

TRECHO DE OUSADIA O dia (ou noite) termina na Travessa Liberdade, primeira rua da minirotatória da avenida Monteiro Lobato. Para quem enxerga apenas o trivial, pode não haver grandes atrativos lá, contudo, a liberdade está em toda parte. Em casas pequenas ou grandes, nos cachorros que caminham tranquilamente pela rua, bêbados sentados na frente de um bar fuleiro, um pet shop elegantemente amarelo, numa praça para aqueles que desbravam o mundo. Na disparidade entre os lados da rua, entre o ébrio com a “branquinha” na mão e a dama com o cachorro

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no colo, repete-se a ousadia de ser livre. Então, enquanto os olhos percorrerem aquele pequeno pedaço de rua, você vai descobrir que a desarmonia é cotejo de liberdade. O caminho ilustra a liberdade de olhos cansados, cabelos de poodle, cheiros enlouquecedores, imagens de união, mãos sujas de cana e histórias para idealizar e para tocar. Agora pare e imagine por um segundo. Fantasie uma liberdade colorida, palpável e cheia de sabor. Alguns passos à frente e a cortina começará a abrir para dar início à melhor parte da vida: o prazer de ouvir alguém que tem algo a contar.


esse fILHO NÃO É SEu Nas sociedades cristãs o aborto ainda está envolto a muita polêmica e revela, na prática, que a mulher é dona do próprio corpo, mas somente até engravidar

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Raphaela Kimberly “Engravidei aos 19 anos. Estávamos juntos há poucos meses, mas acreditava que seria para sempre. Ele era sete anos mais velho e já tinha um filho de um outro relacionamento, mas que vivia com a mãe. Quando descobri, fiquei sem chão. Morava numa república e me sustentava apenas com salário de garçonete. Meu então namorado disse que não queria ter outro filho e que eu teria que ‘dar um jeito nisso’. Fiquei sem opções”. Maria [nome fictício] não morava mais com a família e o namorado disse que não ficaria com ela caso decidisse seguir adiante com a gravidez. “Não tinha condições para criar um filho sozinha. Não me lembro bem ao certo como foi. Uma amiga conhecia uma enfermeira que fazia esse tipo de ‘trabalho’ e me indicou. Não tinha muito o

que pensar, eu não tinha saída. Trabalhava para me sustentar, não tinha com quem contar, estava sozinha e sem apoio de qualquer tipo.” Segundo ela, depois do aborto, viveu anos de tristeza e culpa. Não conseguia se relacionar com ninguém e tinha medo de engravidar novamente. “Não me sentia digna da maternidade”, diz. Vivemos numa época em que a mulher está deixando o posto de coadjuvante e assumindo novos papéis na sociedade, dando voz ao senso crítico, com liberdade e responsabilidade. Mas se ela vem conquistando todo esse espaço, por que não é livre para decidir se quer ou não levar uma gravidez adiante? Eliane Aparecida de Oliveira, 42, mestre em Ciências Sociais, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-brasileiros (Neiab/ UEM), professora de sociologia e feminista negra, afirma que o

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reconhecimento da mulher ainda não se deu na prática. “Essa é uma das defesas do movimento feminista, ou seja, que a sociedade machista em que vivemos reconheça e aceite que a mulher é dona do próprio corpo e tem o poder de decidir sobre ele. Não é o homem, a religião ou o Estado que devem dizer a uma mulher como ela deve pensar agir ou se comportar.” Já Maria Fátima Sato, 52, coordenadora e assistente social da instituição espírita “Lar Preservação da Vida”, diz que a mulher tem o direito sobre o corpo dela, mas não sobre o que está sendo gerado nela. “É o corpo de um terceiro, tem uma ‘pessoinha’ ali. Não se pode atentar contra a vida. Não imFreeImages

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porta o momento em que ela esteja.” A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada pela antropóloga Debora Diniz e pelo sociólogo Marcelo Medeiros, em 2010, pela Universidade de Brasília em parceria com a Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), virou referência para a Organização Mundial da Saúde. Revelou que mais de uma em cada cinco mulheres, entre 18 e 39 anos de idade, recorreu a um aborto na vida. E dados da OMS vão além, mostram que o número de abortos ilegais ultrapassa 1 milhão por ano no Brasil. A despeito de ser crime, em 2013, a internação na rede pública por complicações decorrentes da

interrupção da gravidez chegou a 205 mil pacientes. Segundo a psicóloga Ieda Benedetti, 50, especialista em psicossomática pela PUC (Pontifícia Universidade Católica), de São Paulo, não se pode afirmar que haja consenso na psicologia sobre o aborto, e sim vertente. “Existe uma vertente que defende o aborto com liberdade da mulher, algo que estaria sobre responsabilidade da mulher, e que o bem maior seria a redução de danos e do risco que as mulheres passam a submeter-se nos abortos clandestinos.” Ela explica que, por essa corrente, a mulher poderia se submeter ao aborto em instituições legalizadas, com possibilidade de preservação da saúde.


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“Mas também existe outra vertente, que entende que o bem maior é a preservação da vida. Para isso, é preciso criar condições para que as mulheres possam ter seus filhos e cria-los ou não depois de nascidos.” Benedetti afirma que as mulheres interrompem a gravidez por pudor e por questões financeiras, já que na maioria das vezes o pai biológico se exime da responsabilidade e a mãe não tem estrutura econômica para assumir esse compromisso. A pesquisadora Eliane Oliveira discorda e diz que os abortos são feitos por mulheres de todas as classes sociais, “desde as que podem pagar e fazer com segurança, até as que não podem e se submetem aos carniceiros de plantão”. Mas o ponto central da discussão sobre o aborto é a libertação da mulher da escravidão reprodutiva. A Igreja Católica deixa claro sua posição contrária a isso. O padre Luiz Antônio Bento, 56, da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, de Maringá, mestre em teologia moral, pós-doutorado em bioética e autor do livro “Desafios éticos no debate contemporâneo” (2008), diz que o aborto é

um crime abominável. “O direito à vida é de todo mundo. Tirar a vida de alguém indefeso é um atentado. Tertuliano [foi bispo de Cartago e o primeiro cristão a fazer uma obra sobre a Trindade], dizia que o aborto é um homicídio antecipado. É você tirar a vida de alguém que ia ser adulto amanhã.” Há dois anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) chegou a dar um passo histórico para que o País avançasse nas discussões sobre o tema. O CFM defendia que o procedimento pudesse ser feito até a 12° semana de gestação, ampliando os casos em que poderia interrompê-la. Mas a proposta não avançou no Senado. A advogada Rafaela Bortolieri, 34, afirma que não é possível a lei se tornar mais flexível, mesmo levando em conta o número de mortes que vêm acontecendo no País. “O Brasil é um País cristão e a lei não pode ir de encontro à opinião popular. O cristianismo trouxe uma concepção de que o feto, mesmo que no ventre materno, embora não se possa reputar como pessoa no sentido jurídico, representa um ser a quem a sociedade deve proteger e garantir seu direito à

vida.”

Seja qual for a defesa entre abortar ou não, para Edson Barbosa, professor de filosofia, o fato de ser mulher, estar gerando uma vida, não diminui nem aumenta a responsabilidade. A decisão deve sempre ser compartilhada com o outro, visto que ninguém fica gravida sozinha. A presença do outro na decisão, não torna a responsabilidade maior ou menor. “A liberdade possibilita uma escolha, mas sempre é necessário renunciar e assumir as responsabilidades inerentes à mesma.” Em 2014 foi elaborado um mapa pelo Centro de Direitos Reprodutivos (Center for Reproductive Rights), que mostra que o Brasil faz parte dos 66 países que têm leis mais rígidas em relação ao aborto. No Brasil, abortar é um crime, já que se trata de um atentado contra a vida de acordo com a lei nº 2848/40. Para a legislação brasileira, só tem direito ao aborto mulheres que engravidaram por causa de um estupro ou se existe algum risco de vida à mãe. Em contrapartida já existem 61 países, incluindo parte da Europa, nos quais o aborto é legal.

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Nailena Faian

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o horizonte

por trás das grades Projeto “Visão de Liberdade”, da Penitenciária Estadual de Maringá, faz de detentos os “olhos” de deficientes visuais

Nailena Faian Um universo sem cores. Tudo aqui parece girar em torno da escuridão. A morte, o medo e a solidão são pensamentos que vagam incessantemente e tornam o ambiente ainda mais obscuro. As grades e a sensação de aperto corroem não só o corpo, mas o coração. No entanto, esse mundo também acomoda sonhos, esperanças e vontades de fazer e ser diferente. Os detentores desses pensamentos conseguem encontrar em meio à prisão a chave da liberdade. “Tudo melhorou depois que eu comecei a participar desse projeto. Eu tinha uma visão e achava que estava no caminho certo, mas percebi que estava no caminho errado”, revela o detento Alessandro Rogério Padovani, 27, que está preso há seis anos por homicídio. O projeto do qual Padovani faz parte é o “Visão de Liberdade”, da Penitenciária Estadual de Maringá (PEM). Funcionando desde 2004, o projeto foi iniciativa da coordenadora do Centro de Apoio Pedagógico para atendimento com pessoas de deficiência visual (CAP), Maria Ângela Bassan Sierra, e do ex-diretor da PEM Antônio Tadeu Rodrigues.

A intenção é ampliar a oferta de materiais literários que facilitem a inclusão social de pessoas com deficiência visual, já que o CAP, órgão da Secretaria de Educação do Paraná, é responsável por elaborar somente materiais didáticos. “A gente não dava conta de produzir os materiais em relevo, os mapas, os brinquedos adaptados, um material religioso, uma literatura diferente. Agora, eles [deficientes visuais] têm acesso por conta dos meninos da penitenciária”, conta Maria Ângela. Atualmente os detentos que participam do projeto se dividem em três categorias: digitação de livros em braille; confecção de matrizes em relevo; e a gravação de livros falados. Mas para chegar à estrutura que tem hoje, o “Visão de Liberdade” teve de passar por várias modificações. “Começou dentro de uma câmara fria [espaço desativado dentro da penitenciária], os equipamentos utilizados eram bem rudimentares e a gente não podia dar a atenção que dá hoje ao projeto. Com o tempo e os recursos que fomos conseguindo, houve grande melhoria”, explica o chefe da Divisão de Ocupação e Qualificação da PEM e também coordenador do projeto desde o início, Paulo Sergio Magalhães.

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O mantenedor do “Visão de Liberdade” é o Conselho Comunitário de Segurança Pública (Conseg) e a Associação Maringaense dos Amigos do Centro de Apoio Pedagógico (Amacap). Tanto um como o outro buscam recursos por meio de patrocínio e bazares beneficentes. Além disso, a atividade foi aprimorada por meio de premiações nacionais, que já somam três. “O projeto foi alavancado em 2011 quando recebeu duas premiações e agora em 2014 mais uma. Aí alguns recursos vieram e foi melhorando”, relata o diretor da PEM, Vaine Gomes. No total, o projeto recebeu R$ 150 mil em prêmios. Sem contar o último, o Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), conquistado no ano passado, que proporcionou mais R$ 100 mil que ainda não foram utilizados. Neste último, o “Visão de Liberdade” concorreu com mais 1.090 projetos inscritos em todo o Brasil. Olavo Perondi, que hoje vive em Maringá, foi coordenador do ODM Brasil por quatro anos e considera o “Visão de Liberdade” inovador e muito ousado. Segundo ele, é daquelas iniciativas que se diferem dos demais projetos pelo ineditismo. “É muito interessante, pois se relaciona diretamente com dois públicos e que normalmente são relegados pela sociedade. O fato de ser um projeto premiado certamente possibilitará o recebimento de mais apoio financeiro.” Mas a recompensa não para por aí. Quem se sente muito gratificado com o projeto é Matheus Morotti, 16, que recebe os materiais produzidos na PEM desde pequeno e, por isso, consegue ter uma rotina tranquila

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na escola. “Nunca repeti o ano, consigo acompanhar tudo. Os materiais que eles fazem ajudam bastante”, diz o menino. Morotti convive com a deficiência visual desde que nasceu, mas isso nunca foi um empecilho para sonhar, como revela a mãe, Rose Morotti. “Ele sonha ser locutor [de rádio]. Inclusive, a Maria Ângela [coordenadora do CAP] disse que se ele quiser os meninos [da PEM] fazem todo o material em braille para ele fazer o curso.” Essa gratificação tem mãos múltiplas, pois parece ser ainda maior quando se observa o brilho no olhar dos detentos que estão envolvidos nesse processo. “É muito bom saber que a gente, que um dia cometeu um crime, agora está ajudando, sendo os olhos de outra pessoa”, diz Sidirlei Rodrigues, 34, que atua na digitação de livros e está preso há três anos. Psicológo da PEM desde 1996, Dagoberto Dias Ribeiro acredita que o projeto influência muito no comportamento dos detentos. “Eles ficam mais calmos, mais sociáveis, aguça muito o sentimento de altruísmo. De repente eles começam a se sentir valorizados, úteis para alguém.” Ribeiro ressalta que o “Visão de Liberdade” tem um impacto muito grande na vida dos presos. “Eles começam a ter uma perspectiva de que podem ter uma vida melhor futuramente.” Libertar da escuridão e ajudar a descobrir um mundo cheio de formas e belezas é o papel fundamental desse projeto. “Um dos relatos que mais me marcou é o de um deficiente visual que não entendia o que era um prédio. Um prédio para ele era um casa sobre a outra. Aí os

presos fizeram uma maquete e [pelo toque] ele entendeu o que era um prédio”, revela o diretor da PEM, Vaine Gomes. Além de expandir o horizonte dos deficientes visuais, os detentos abonam um dia de pena a cada três trabalhados e recebem R$ 45 por mês. No entanto, para o detento Sidirley Rodrigues, o mais importante é poder


aprender e ajudar o próximo. “A questão da [remissão] da pena é consequência. O que sobressai é fazer parte do projeto, tanto é que eu quero vir trabalhar toda hora”, conta. Quando foi planejado, o “Visão de Liberdade” previa que os presos trabalhassem de seis a oito horas por dia. Porém, nem sempre isso é possível, por causa de acontecimentos internos que dificultam o andamento do projeto, como as rebeliões na PEM que aconteceram em 2014. Mesmo diante de alguns obstáculos, o projeto já produziu um número significativo de ma-

teriais. Desde 2004 foram feitos mais de 84 mil trabalhos didáticos em relevo; quase 450 livros e 50 apostilas em braille; 130 livros e 16 apostilas faladas com tiragem de 150 cópias cada, que foram enviadas para todo o Brasil e para uma biblioteca de Sobreda, em Portugal. Já participaram do projeto 197 detentos. Com capacidade para 376 presos, a PEM consegue absorver o trabalho de 150 detentos em todos os projetos existentes na unidade. “No ‘Visão de Liberdade’ são 19 vagas. Trabalha quem tem interesse. Temos mais procura do que a oferNailena Faian

Alessandro Padovani, narrando o livro de aventura“Robinson Crusoe”

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ta”, explica o diretor da PEM, Vaine Gomes. Segundo o coordenador do projeto, Paulo Sergio Magalhães, para ser justo na escolha de quem participará do projeto, há uma comissão julgadora que define com base em alguns critérios as pessoas mais aptas a participar. “É preciso passar por uma avaliação para ver se tem afinidade com o trabalho. O trabalho manual tem que ter habilidade; para a digitação tem que ter cursado nível médio; na gravação tem que ser alguém que gosta de ler e ter habilidade na voz.” Quem capacita e a avalia o material é o presidente da Associação Maringaense dos Amigos do Centro de Apoio Pedagógico (Amacap), Ricardo Alexandre, que é deficiente visual. “Os materiais que são feitos por eles [detentos] são revisados para ver se está tudo legal. E a gente vai na penitenciária dar dicas. O legal da leitura deles [no livro falado] é que não é uma leitura pura, simples. Eles interpretam.”

Outro fator fundamental no projeto é o contato que os detentos têm com quem capacita e com as pessoas que recebem o material produzido. “Na nossa unidade a gente preza muito por trazer a comunidade para dentro, para desmistificar um pouco o que é a prisão. Eles veem para quem estão trabalhando e isso sensibiliza muito. A gente vê como é importante não perder esse vínculo”, conta o psicólogo da PEM, Dagoberto Ribeiro. O detento Hermisson Avelino Batista, 29, preso há dois anos na unidade por tráfico de drogas, concorda que o vínculo com os deficientes visuais é importante. “É muito bom. Tem o futebol, que é uma vez por ano. Geralmente a gente leva uma surra deles [deficientes visuais],a gente não tem como competir”, conta brincando. O “Visão de Liberdade” é único no Brasil. Já houve tentativas de estabelecer esse projeto em outras unidades prisionais sem sucesso. De acordo com a idealizadora do projeto, Maria

454 pessoas defIcientes já foram atendidas com os materiais produzidos pelos detentos da PEM.

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Ângela Bassan Sierra, isso ocorreu porque é preciso haver parceria sólida entre todas as partes. “Precisa ter um diretor na penitenciária que aceite esse trabalho, tem que ter alguém de fora que vá fazer o treinamento, e não é qualquer pessoa que gosta de ir numa penitenciária.” Maria Ângela confessa que a maior frustração é não poder estender o projeto para fora da penitenciária. “A gente fica triste

quando sabe que alguns que estavam lá voltaram para o mundo do crime. A nossa intenção era oferecer um suporte para que eles pudessem continuar fazendo o trabalho que fazem tão bem. Mas não tem como porque [o projeto] precisa de recursos financeiros. Se o Estado fosse mais inteligente poderia aproveitar o trabalho desses meninos em vários órgãos públicos.”

Paulo Sérgio Magalhães

EU TENHO LIBERDADE - ANO 2015 Produção de materiais em braille exige habilidade dos detentos

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prisões sem

grades a formação das crianças e adolecentes gera códigos cada vez mais complexos de identidade; eles nascem livres, mas logo são aprisionados pela facilidade e pelo meio que os cerca

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Luan Comitre Uma criança nasce livre e inocente, mas são várias as razões que podem levá-la a seguir caminhos diferentes e a um estado de prisão permanente, que nem sempre representa estar atrás das grades, cumprindo pena socioeducativa. O histórico familiar, vícios e a violência em geral sempre estão na origem das circunstâncias que levam meninos e meninas à perda definitiva da liberdade que a infância e a adolescência representam. Porém, em um mundo movido a tecnologia e informação massivos, não se pode descartar outras forças agindo simultaneamente na formação desse ainda frágil caráter.


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“Tudo que leva um adolescente a entrar para o crime é por conta da família”, diz psicóloga Ana Lucia Santana Pintinha

“A nossa convivência em sociedade e com tudo que está presente ao nosso redor diz muito sobre o que somos ou até mesmo o que podemos ser ou não”, afirma a Rute Rodrigues Carvalho, psicóloga, especialista na área de saúde mental e psicologia do desenvolvimento humano, atuando principalmente na área de saúde mental, desenvolvimento na infância e adolescência, psicodiagnóstico, violência doméstica, e suicídio. A formação das crianças e adolescentes gera códigos cada vez mais complexos de identidade e, de acordo com a psicóloga, na maioria

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das vezes eles são iludidos com muita facilidade pelo meio que os cerca. A perfeita combinação de desemprego, corrupção, abuso de poder e a falta de esperança, que afetam a sociedade como um todo, não exclui crianças e adolescentes. Há um número considerável deles hoje em conflito com a lei pela prática de crimes que vão dos considerados mais leves, como vandalismo e desacato, até os mais graves, como furto, roubo, tráfico, lesão corporal e homicídio. De acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 47,5% dos adolescentes


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comete o primeiro crime entre 15 e 17 anos. E 9% começam ainda na infância (7 a 11 anos). Os dados mostram também que em quase 60% dos casos, os adolescentes não estavam estudando quando cometeram o primeiro crime, e 75% já eram usuários de drogas. Especialistas apontam que o envolvimento com tráfico de drogas é o maior responsável pelo aumento do número de crianças envolvidas

com o crime. A promotora da Infância e Juventude de Maringá, Mônica Louise de Azevedo, atribui o problema à má qualidade da educação, ao frágil sistema de proteção social e à falta de iniciativa do governo em criar programas para atender crianças infratoras ou mesmo aquelas que ainda não se envolveram com o crime. “É mais fácil vender a ilusão de poder e de ascensão social e é através do tráfico e dos crimes que essa ilusão vem levando crianças e jovens a cometerem certas atrocidades”, diz. Em 2012 o jornal O Globo fez um levantamento em sete dos dez Estados mais populosos do Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará, Paraná e Santa Catarina). Os dados apontaram aumento de 14,3% no número de crianças e adolescentes envolvidos com o crime. Arnobe Lemes dos Reis, atual diretor da Penitenciaria Estadual de Cruzeiro do Oeste (Peco), município distante 137 km de Maringá, diz que mais de 80% dos detentos relatam que vieram de lares desestruturados e a violência e a falta de apoio dos pais e da sociedade é a única realidade que conhecem. “Um dos grandes fatores é a base familiar. Percebemos que a maioria dos presos têm a estrutura familiar totalmente comprometida e esse é um dos fatores que, com certeza, aumentam a criminalidade.” Assim como a psicóloga Rute Carvalho, o diretor da Peco reforça que investir na base é o único meio de impedir que o crime retire da infância e a adolescência a liberdade que representa essa fase da vida. “Para recuperar esse cidadão [depois] é uma situação extremamente complicada, custa muito mais caro e os resultados são mínimos. Para resolver tem que investir na base [família] e na educação.” Para o advogado Carlos Henrique Pinheiros, que atua nas áreas de responsabilidade civil e direito da família, a criminalidade infantil envolve questões muito delicadas no que se refere à ressocialização. Para ele, não adianta apenas reduzir a maioridade penal, pois esse ato pode ter consequências graves. “A sociedade se equivoca ao associar maioridade penal com entrar para o crime. O lugar mais violento de uma sociedade é a prisão. Se você joga um adolescente nesse meio sem ao menos tentar oferecer ajuda, é o mesmo que dar um diploma de criminoso quando ele sair”, afirma. A psicóloga Ana Lucia Santana Pintinha, especialista em aconselhamento familiar, diz que a ganância aliada ao excesso de trabalho, em que a prioridade passa a ser financeira, é um dos principais motivos para a entrada de jovens e adolescentes no mundo do crime. “Hoje os valores se inverteram, muitas famílias colocam o trabalho em primeiro lugar e, quando sobra um tempo, se dedicam aos filhos. Isso gera um vazio que tem que ser preenchido por algo.” Ela afirma que não é a sensação de impunidade diante da legislação “protetora” que empurra menores

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para o crime, e sim o abandono. “Tudo que leva um adolescente a entrar para o crime é por conta da família, tanto em lares bem estruturados, mas que não dão a atenção necessária, quanto em lares totalmente desestruturados. Eles estão sempre atrás de preencher o vazio que deveria ser preenchido pela família.” A psicóloga Rute Rodrigues Carvalho concorda que a ressocialização de uma criança depois que ela se envolve com o crime é difícil. “Não adianta tomar uma serie de medidas, fazer acompanhamento e depois soltar no mesmo meio que a levou a tais atos, pois a tendência de ela voltar a cometê-los é muito maior. Diferente dos adultos, ela depende completamente do meio que a cerca.” A psicóloga Ana Lucia Santana Pintinha completa: “O Estatuto da Criança e do Adolescente é fantástico, mas os programas de ressocialização não conseguem acompanhá-lo e acabam deixando que [menores infratores] voltem à sociedade sem o devido acompanhamento.”

Depoimento “Quando eu era criança, tinha de tudo, nunca me faltou nada para comer e nem vestir, mas mesmo assim eu entrei nesse mundo muito cedo. Com o tempo, aprendi a dirigir e me especializei em roubo de carros. Fui pego pela polícia várias vezes. O juiz até virou meu amigo, me ofereceu bolsa de estudos em um curso técnico. Ele sempre dizia que eu era um garoto muito esperto e que deveria me dedicar aos estudos, mas era como se me faltasse algo. Eu sempre tentava mudar, mas alguma coisa me atraia e novamente eu era preso. Hoje tudo mudou. Depois de mais de 20 anos preso, tenho minha família e duas filhas lindas. Agora sim, tenho motivos para mudar e por quem lutar.” João Santos Fertonani, 42, detento da Penitenciária Estadual de Cruzeiro do Oeste.

Luan Comitre

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SOU ATLETA, MAS NÃO SOU LIVRE

Maria Isabel Corrêa Começa o segundo set no estádio Chico Neto. O juiz apita. Torcida animada, técnico enfurecido. A bola sobe, cai e é ponto do Maringá. O técnico pede tempo, o que aconteceu? Parece que um dos jogadores está passando mal. Deve ser a pressão. Não, não essa pressão, a pressão do jogo, a tensão da partida. A torcida, enfurecida, está gritando, porque agora é o ponto decisivo do jogo. O coração vai a mil... O que foi dessa vez? Parece que agora um integrante do time é quem está gritando, e gritando “LIBERDADE”. Como num sonho que virou realidade, tudo mudou. Quem nunca sonhou, quando pequeno, ser jogador? Ou melhor, um grande atleta? Fazer do passatempo uma profissão? Muitos sonham, mas poucos conseguem alcançar e se dedicar à rotina, que, muitas vezes, se assemelha a de uma prisão. “A decisão de ser atleta veio aos 12 anos, quando perguntavam minha futura profissão e eu dizia que iria ser jogador de vôlei. Não

Vôlei Maringá

A rotina dos esportistas parece agradável para quem vê de fora todo o esforço e dedicação; para eles, no entanto, o preço pode custar a liberdade

O jogador do vôlei Maringá, Tiago Brendle, 29, em partida da Superliga

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foi algo pensado ou planejado, mas sentido.” Há 15 anos como atleta profissional, o líbero, Tiago Brendle, 29, que atua no vôlei de Maringá, conta que muitas mudanças aconteceram na vida dele desde então, mas acredita que a mais drástica de todas foi quando, para dar início à busca do sonho teve de sair de casa aos 14 anos, na cidade de Panambi (RS) para morar em Brusque (SC), a 700 km de distância. Sem se dar conta que o esporte lhe impôs rotinas que, de certa forma, tiram dele a liberdade, Tiago Brendle enumera as mudanças pelas quais diz ter passado. “A alimentação muda de um estado para outro [assim como o atleta] e a necessidade de recuperação e exigência física aumentam com os anos.” Em relação à

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personalidade, ele diz que também muda. “Mudamos inúmeras vezes de cidade, entramos em contato com muitas pessoas diferentes e culturas diversas em um país tão amplo, e isso acaba exercendo influência na formação pessoal.” Em relação à condição física, o líbero diz que aprendeu a acumular benefícios com o passar dos anos. “Muda a forma como trabalho o corpo, porém os resultados e o condicionamento evoluem ou se mantêm.” O educador físico Rafael Fernandes de Souza, 29, explica que para se tornar um bom atleta é preciso ter foco e perseverança. “Quando se almeja ser um atleta de alto desempenho existem

alguns fatores essenciais, como disciplina, dedicação, planejamento e treino. Não é de uma hora para outra que a pessoa inicia uma prática desportiva e imediatamente obtém resultados satisfatórios; os atletas de alto rendimento têm que ter paciência para colher os frutos do treinamento.” Souza acredita que esportistas de alto nível se privam de particularidades e lazeres para se dedicar integralmente ao alto rendimento visando alcançar um objetivo, o que acaba resultando em uma falta de liberdade para a vida pessoal. “Existem atletas reconhecidos que só vão desfrutar do sucesso alcançado após a aposentadoria do esporte, em alguns casos esportistas mundialmente renomados desnorteiam após o


te em fornecimento nutricional adequado para a recuperação. “Aquele que almeja ser ou é um esportista precisa se conscientizar que é atleta sempre, 24 horas por dia. Então os hábitos saudáveis devem ser seguidos sempre, todos os dias da semana.” Nicolle lembra que exageros na alimentação e bebida alcoólica atrapalham muito essa evolução, por isso é importante alimentar-se corretamente para o momento do treino ou da competição e até mesmo depois, nutrindo-se com fontes de carboidratos fundamentais para o fornecimento de energia e recuperação muscular. A nutricionista defende as privações dos superatletas e ressalta que são importantes para que o processo ocorra de maneira eficaz. “Se os deslizes acontecerem, [o atleta] terá pouco tempo para correr atrás e recuperar o que foi perdido.” Diariamente, de cinco a seis horas, Tiago

Shutt ersto ck

término da carreira. Por isso é importante uma assessoria para dar suporte a esse atleta.” Rafael Souza diz que atualmente os esportistas procuram a tecnologia presente na medicina para aperfeiçoar o desempenho na modalidade. “Hoje existem treinamentos específicos para cada esporte, com o avanço da tecnologia na área da saúde, o atleta passa por baterias de exames que constatam o que ele tem que aprimorar, tanto fisicamente quanto tecnicamente, e em cima desses resultados é que se tem uma periodização de treinos voltada para suprir tanto a parte técnica, quanto física”, diz. O jogador Tiago Brendle segue também uma rigorosa dieta preparada pela mulher dele, a nutricionista Nicolle Cargnin Paese Brendle, 27, especialista em nutrição e esporte. Ela explica que a alimentação de um atleta não está baseada somente em gasto energético, mas principalmen-

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Vôlei Maringá

Tiago Brendle no amistoso de 2014, contra a seleção japonesa

Brendle e o time de vôlei de Maringá abrem mão de qualquer outra atividade que poderiam estar realizando para se dedicar à preparação física. Flávio Ciciliati, preparador físico do grupo, conta que os treinos tomam parte da manhã e da tarde/noite. No período da manhã musculação e treino técnico com bola, no segundo período treino tático com bola. Ciciliati acredita que para sobreviverem à carga de exigências que o esporte impõe, devem “ter consciência que são atletas e que dependem do corpo para ter bom rendimento”. Ter bons hábitos, como comer bem, dormir bem e ser profissional acima de tudo, parece ser incompatível com a ideia de liberdade da maioria das pessoas. Isso poderia levar muitos atletas a desistirem da carreira. O preparador físico discorda dessa hipótese. Ele não acredita que esportistas desistam da profissão quando se deparam com a árdua rotina. “Quem está realmente disposto a ir à busca de seus objetivos não desiste, porque quando se alcança o sonho, o resultado é

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satisfatório.” O atleta desta reportagem revela que a rotina de treinos dura 10 meses da temporada, sendo que sete são os campeonatos propriamente ditos, Superliga mais Estadual, e os outros três meses são dedicados a treinos preparativos. Ele não se vê como um “escravo” do esporte. “É um pequeno preço a se pagar em um universo de muitos benefícios”, diz Tiago Brendle. Em relação à pressão psicológica para alcançar objetivos e vencer jogos, Brendle explica que isso realmente acontece, ainda mais quando é um resultado negativo; pois o profissional é o maior responsável. “O atleta sente a derrota e deve fazer sua própria análise e a ‘digestão’ deve ser rápida.” Segundo a psicóloga especialista em rendimento esportivo, Constanza Pujals, 35, o preparo mental é longo e duradouro. É preciso educá-lo emocionalmente. “O trabalho é realizado de acordo com o esporte.” Doutor em medicina es-

portiva, Andrew Wilson, médico do Hospital Universitário de Maringá, destaca que não há como “preparar” um atleta para saber a hora de se aposentar do esporte. Mas, quando se encontra na fase final da atividade profissional, é importante o acompanhamento de um psicólogo para prepará-lo à nova etapa da vida. “Ocorre não só no Brasil. A aposentadoria abrupta do atleta tem de possuir novas metas, caso contrário é bem provável que ele comece a desenvolver quadros depressivos que poderão levá-lo à dependência de drogas, ruptura familiar e, em alguns casos, ao suicídio. Por isso a importância do preparo psicológico, pois a aposentadoria do profissional é do dia para a noite. Toda a sua vida vira de cabeça para baixo”, diz Andrew Willson. Ainda com relação à aposentadoria dos esportistas, a psicóloga Constanza Pujals alerta: “Quando é prevista, pode ser planejada, mas e quando a aposentadoria chega por uma lesão séria e inesperada?” Ela


diz que atualmente, além de o atleta treinar, é preciso se preparar para o que vai acontecer depois do esporte. “Por isso há grande insistência e acompanhamento dos atletas nas escolas. Existem muitos

clubes de diferentes esportes, conveniados com universidades, que oferecem bolsas para que [os atletas] cursem uma graduação.” Para muitos esportistas, tanto homens quanto mulhe-

res, é difícil explicar a pressão sofrida nesse meio que, por outro lado, traz grandes benefícios. Mas a pergunta que fica é: até que ponto o preço da própria liberdade pode ser colocado em jogo?

liberdade que se perde na rotina de treino A rotina dos atletas acaba sendo muito rígida, por isso privam-se da liberdade da vida pessoal. Sem poder mudar essa rotina, acabam tendo que viver exclusivamenteparaaprofissão. Alguns atletas renomados nacionalmente relataram para o portal UOL Esportes, em 2014, e ao Banco de Saúde, em 2010, como a rotina dos treinos limita a liberdade da vida pessoal.

mentos de lazer são raros pela intensidade dos treinos, quantidade de viagens e torneios, mas é uma escolha, a vida de atleta é assim, exige dedicação e comprometimento”, diz.

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Melanie Roach Levantadora de Peso norte-americana “Treino cinco dias da semana, sendo que ainda faço exercícios adicionais. A minha dieta se baseia em Ketleyn Quadros frango e peixe, não como Judoca brasileira “Na minha rotina muito carne vermelha e passo muito tempo sem gosto bastante de frutas, vever minha família, os mo- getais e arroz integral. Além

disso, bebo muita água e como lanches saudáveis.” Justin Spring Ginasta norteamericano “Trabalho buscando o máximo de desempenho na menor quantidade de tempo possível. A minha dieta se resume a cinco refeições diárias que incluem lanches saudáveis, uma refeição que pode ser uma massa, uma carne ou um peixe e um jantar que deve ter vegetais e proteínas. Sempre que posso, como frituras, mas isso acontece raramente, quando estou de folga.”

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sorria, estou te vigiando SEM SE DAR CONTA, AS PESSOAS TROCAM A LIBERDADE TAMBÉM TRADUZIDA POR PRIVACIDADE PELA iDEIA DE QUE, VIGIADAS POR CÂMERAS, EStão LIVRES DE AMEAÇAS.

Leticia Amadei Toregeani

Leticia Amadei Taregeani

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A ideia arquitetônica do filósofo Jeremy Bentham, o panóptico, citado por Michael Foucault na obra Vigiar e Punir (1975) está hoje intrinsicamente incorporada ao ir e vir de qualquer um que viva em sociedade. No livro, o autor descreve o panoptismo a partir de um cenário no qual presos são vigiados por um observador de um ponto central da prisão. Eles acreditam que estão sendo vigiados, mas não sabem se quem os observa está ou não ali. Essa impossibilidade de ver o observador produz um controle psicológico nos indivíduos que os leva ao autocontrole. No panóptico do século 21 o “observador” tomou outra forma. São máquinas com olhos de vidro que seguem e monitoram de todos os ângulos passos, suspiros, reações e emoções de milhares de pessoas em praticamente todos os ambientes - ruas, garagens de prédios, supermercados, escolas, hospitais, praças e uma infinidade de outros lugares. E sem que as pessoas se deem conta,


acabam trocando a liberdade – que também pode ser traduzida por privacidade – pela ideia de que, vigiadas, estarão livres de qualquer tipo de ameaça. Ora escondidas, ora estrategicamente expostas, as câmeras de segurança invadiram a vida das pessoas em geral para oferecer a sensação de segurança. Mas se por um lado as imagens registradas por computadores e observadas por humanos podem nos proteger de um abuso, identificar criminosos e garantir a ordem, de outro revelam ao mundo quem somos, onde estamos e o que gostamos de fazer. A privacidade é necessária para a convivência em sociedade e um direito garantido pela Constituição. É o que diz a socióloga Fernanda Mendes, 34. Em entrevista por e-mail à revista Eu Tenho Liberdade, ela define o termo como “tudo o que não é público e que faz parte da intimidade do indivíduo”. Esse conceito, diz, nasceu do Movimento Iluminista no século 18, no qual vários pensadores defendiam a separação entre o público e o privado e a valorização do individualismo. Então, qual a lógica das câmeras de segurança que tornam público também o que deveria ser privado? Giselly Compelo Rodrigues, 32, advogada especializada em direito penal e professora-mestre no curso de direito da Unicesumar – Centro Universitário Cesumar explica que, ao expor a vida alheia, mesmo sendo verdade o que ali é apresentado, a ação se torna uma difamação, pois não foi autorizada. Portanto, é passível de processo por danos morais. “Ofendeu? Entrou na privacidade ou na intimidade, vai repercutir em indenizações”, diz ela.

No entanto, para o jornalista, sociólogo e professor universiário Gilson Aguiar, 49, as câmeras invadem a privacidade em nome do bem comum . “Você coloca uma câmera de segurança numa praça,em um elevador, numa sala de aula; alguns que estão ali, não sabem que estão sendo filmados e a vida pessoal deles em nada agride a comunidade, mas devem ser filmados porque há suspeitas. Então, de certa forma, eu autorizo invadir a privacidade do outro em nome de uma coisa chamada segurança.” Há situações, no entanto, em que o ato de vigiar não significa livrar as pessoas de riscos. VOYERISMO Aproveitando a luz das estrelas, o olhar curioso, assessorado por um binóculo ou luneta, espia às escondidas pela janela de casa ou do apartamento o seu alvo, em outro ponto, que pode estar em um momento íntimo, privado. O voyeurismo, prática que, em geral, leva o indivíduo a obter prazer sexual por meio da observação de pessoas, pode ter consequências desastrosas tanto para quem observa como para quem é observado. O problema pode surgir quando ainda se é criança. É o que afirma a psicóloga Eliany Mariussi, 46, pós-graduada em sexologia e terapia de casal. Ela, que é membro da Sociedade Brasileira Sexualidade Humana ( Sbrash) e coordena o Centro de Informações e Estudos de Sexualidade de Maringá (Ciesma), diz que nessa fase, o processo de aprendizado ainda não se concluiu e as sensações e atenções se voltam para o novo. “Às vezes, a criança ouve uns gemidos no quarto dos pais, não

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sabe o que é. Quietinha, espia pelo buraquinho da fechadura e vê que os pais estão nus ou só vê o corpo da mãe ou, então, só o corpo do pai e isso pode dar um ‘start’ para [mais tarde] ela virar um voyer”, explica. STALKING Em alguns casos, o quadro pode se agravar e o indivíduo se tornar um stalker, alguém com condutas relacionadas a assédio e intimidação, que passa a seguir pessoalmente ou monitorar suas vítimas. A advogada Giselly Compelo Rodrigues explica que casos como esse ferem o direito à privacidade e fazem parte de um complexo de perturbações que, à luz do Código Penal, podem ser enquadradas como constrangimento, injúria ou violação do sossego e, portanto, passíveis de punição. Lançada em 1983, a música Every Breath You Take (Cada Vez Que Você Respira), da banda inglesa The Police, não é apenas uma balada romântica como muitos podem achar. A letra traduz o comportamento típico do stalker, que pode revelar obsessão: Cada suspiro que você der/ Cada movimento que você faz/ Cada elo que você quebrar/ Cada passo que você der/ Eu estarei te observando. Estudo feito em 2008 por pesquisadores da Universidade do Minho, citado em reportagem publicada em 2014 pelo jornal português Observador, indica que 2 milhões de portugueses já foram afetados pelo stalking e a maior porcentagem de vítimas do assédio persistente é do sexo feminino. Crimes como invasão de privacidade, ofensa à reputação e danos à integridade psicológica e emocional também chegaram ao mundo virtual. Agora, o espião envia e-mails, mensagens, segue as

vítimas pelas redes sociais. Mas em boa parte dos casos, é a própria vítima que acaba por atrair o assediador ao expor publicamente nessas redes detalhes da vida pessoal. “No mundo digital, a informação ficou tão ágil, tão rápida, tão instantânea que cada vez mais as pessoas se preocupam em saber o que está sendo postado. Por outro lado, há pessoas que desconhecem por completo, talvez por inocência, as consequências jurídicas disso. Costuma-se dizer que hoje em dia, pelas redes sociais a vida é exposta, e essas informações ficam armazenadas pelo resto da vida. Você vai morrer e as suas informações estarão ali marcadas. Muitas vezes com traços de personalidade que não condizem com a realidade” conforme explica o presidente da Comissão de Direito Eletrônico e Crimes Virtuais Thomaz Edson de Carvalho. REVENGE PORN Um dos crimes que vem se tornando comum, é o revenge porn (pornografia de vingança) a publicação vídeos e fotos intimas de alguém em redes sociais ou em sites pornográficos. Dentre as vítimas, a maioria são mulheres. Tudo começa quando, no momento íntimo, o casal decide filmar ou tirar fotos. Ao terminar o relacionamento, uma das partes se vinga postando este conteúdo na internet. Ao ter a intimidade exposta, a vítima, sofre um lichamento moral não somente nas redes sociais, mas também no dia a dia. “As pessoas perdem o horizonte, o rumo contruído por elas. Planos de constituir uma família, casar, por exemplo, se tornam mais delicado de se realizar”, explica a advogada do Núcleo Jurídico da Unicesumar Marli Aparecida Saragioto Pialariss.

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Tuana Mignoso

os desafIos para a

educação que

liberta com recursos tecnológicos e acesso fácil à informação, a principal dúvida hoje é como escolher, entre os métodos existentes, aquele que vai educar não apenas pelo aprendizado, mas para a vida toda

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Tuana Mignoso Feche os olhos e pense por um instante num mundo encantado. Os unicórnios existem e correm soltos pelos jardins dos grandes castelos, e as princesas, bem como os homens malvados, estão por toda a parte. Eis que entramos no mundo das crianças, um lugar cheio de sonhos e fantasias e que, por muitas vezes, nos transportamos para esse “conto de fadas”. E é assim que o pequeno Miguel Expedito de Brito Rodrigues, de apenas 7 anos, sonha com o mundo. “Um dia vou viajar em volta do planeta, sozinho, em um jatinho particular, e vou conhecer até as pirâmides do Egito. Mas só quando eu crescer, porque antes disso minha mãe fala que eu tenho que estudar muito.” É fácil analisar e comparar o comportamento das crianças que viveram décadas passadas com as que vivem na geração da tecnologia. Atualmente, as crianças situam-se como sujeitos que procuram seu espaço na sociedade. São exigentes, questionadoras, consumistas, principal alvo dos programas televisivos. Nesse cenário, fica a seguinte dúvida tanto para famílias como para educadores: como educar uma criança para que não receba toda essa influência? Para os pais de plantão que estão preocupados com o melhor método educacional a seus filhos, especialistas alertam: nenhum pode ser considerado melhor que o outro. Porém, não significa que todas as escolas ofereçam um ensino de qualidade. É necessário pesquisar e analisar os métodos de educação oferecidos antes de matricular as crianças.

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cólogo é necessário existir uma dialética intensa. “Por exemplo, ao mesmo tempo em que a escola se relaciona com o estudante, a família tem que se relacionar com a escola.” Imagine um mundo sem adultos, em que absolutamente todas as decisões são tomadas pelas próprias crianças. Como seria, para elas, viver sem o auxílio dos pais e de educadores? Foi exatamente isso que a rede de televisão britânica BBC, resolveu expor para a sociedade, criando um reality show chamado: “Esqueceram de nós – A vila das crianças” (boys and girls alone). O programa confinou crianças entre 8 a 11 anos, por duas semanas em uma vila. Em casas separadas, meninos e meninas tentaram conviver – ou sobreviversem os pais por perto, eles apenas as observavam. Em menos de 48 horas, o caos total reinou nas duas casas. De acordo com esse experimento, pode-se concluir que o comportamento das crianças perante a ausência, tanto dos pais, como dos educadores, é catastrófico. Segundo a professora de língua portuguesa, escritora, blogueira, colunista, palestrante, radialista e mãe de dois meninos. Lucilene Baratela Ribeiro Oliviera (Lu Oliveira), a responsabilidade sobre a educação das crianças não pode ser delegada à escola, e sim à família, pois é o primeiro lugar em que ela aprende as lições mais importantes. “Uma criança é como se fosse uma esponja, se eu jogar a esponja dentro de algo cheio de água, ela irá absorver, então, se eu colocar uma criança em um ambiente que possua muito estímulo, ela vai absorver tudo

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Segundo o psicólogo Luiz Carlos Novaes Junior, especialista em psicopedagogia clÍnica e institucional e neuropsicológica, o método aplicado em sua maioria nas escolas de Maringá é o tradicional, entretanto, nada impede que seja adaptado para as crianças da geração atual. Para ele, a escolha do método educacional depende muito do conhecimento dos pais em relação à criança. “Nós temos crianças que possuem a facilidade de aprendizado por um método, ou por outro, então o que é importante para os pais? A criança não vai saber escolher qual é mais interessante para ela, mas o pai tendo conhecimento das necessidades da criança, vai saber identificar qual colégio vai apresentar o método mais interessante para ela”. Novaes Junior lembra que há pessoas que são mais visuais, outras mais descritivas, por isso, diz ele, o mais importante dos pais é conhecer os próprios filhos. O psicólogo acrescenta ainda que o conhecimento nem sempre acontece no dia a dia da casa, da família. “Talvez, para um melhor conhecimento dos pais sobre seus filhos, eles necessitem passar por uma avaliação psicológica e psicopedagógica, para entender qual é o funcionamento ou como essa criança reage melhor em qual método de aprendizado.” Por outro lado, Novaes Junior salienta que não basta apenas descobrir qual o melhor método educacional para a criança, é necessário conhecer a escola e o método educacional aplicado ali. “Eu recomendo a participação dos pais na vida escolar dos filhos. A maioria, infelizmente, conversa uma vez por ano com a diretora, com o professor de vez em quando, e não tem muita intimidade com a vida escolar.” Para o psi-

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aquilo. Ela não vai aprender necessariamente só a parte do boa do que está sendo ensinado, mas também a parte ruim. Então a participação dos pais e o estímulo em casa, favorece muito.” EDUCAÇÃO INCLUSIVA A educação inclusiva pode ser a resposta para uma situação que até bem pouco tempo atrás atrapalhava o desenvolvimento educacional no Brasil. Até o início do século 21, o sistema educacional brasileiro contava com dois tipos de serviços: a escola regular e a escola especial. Ou o aluno frequentava uma, ou a outra. Entretanto, na ultima década, a educação absorveu um método de inclusão social, abrigando assim um único tipo de escola, a regular. Esse ensino tem o dever de acolher a todos os alunos e oferecer apoio para aqueles que encontram dificuldades no processo de aprendizagem. Segundo a pedagoga Magda Ribeiro especialista em educação especial, a educação inclusiva no Paraná é na comparação com outros Estados. “Temos as escolas especiais, as de ensino regular e os alunos que têm necessidades educacionais especiais vão, de acordo com a avaliação e do desejo dos pais, para as escolas regulares ou especiais. Ou então a criança vai, no período da manhã para o ensino regular, e no período da tarde, para uma escola ou centro de ensino especial.”

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A pedagoga afirma ainda que, em Maringá, a educação inclusiva atende plenamente aos alunos especiais. “Há preocupação em desenvolver políticas publicas para atender as necessidades desses alunos. Até porque eles têm o direito de estudar, e isso tem sido respeitado.” Magda Ribeiro diz que é interessante ver a reação dos pais quando o filho vai para a escola regular. O medo, segundo ela, vai perdendo espaço para a confiança, pois eles já sabem onde e como buscar ajuda. “Além de terem a certeza de que as crianças estão sendo acompanhadas por alguém específico para atender cada necessidade básica deles.” “HOMESCHOOLING” - A EDUCAÇÃO EM CASA No Brasil, a liberdade de escolher o melhor método educacional para os filhos pode ter limites constitucionais. Muito utilizada nos Estados Unidos, a educação domiciliar começa a ganhar espaço entre as famílias brasileiras, entretanto a Constituição Federal ainda não reconhece a prática. Em reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo, no dia 25 de fevereiro deste ano, a Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar), informa que o número de adeptos no Brasil atinge hoje cerca de 2.000 famílias. Entretanto, a homeschooling, ainda divide opiniões entre educadores e pais, havendo uma


luta entre dois extremos é travada. De um lado da trincheira estão às famílias que lutam pelos direitos de decidir o método e o local onde os filhos serão educados, e não o Estado. Do outro lado está o governo, alegando que tirar o direito de uma criança de permanecer na escola é ilegal. Professores e educadores contrários ao método da homeschooling alegam que essa prática coloca as próprias crianças em uma espécie de bolha, privando-as do convívio social com outras da mesma idade. A escola já não faz parte da vida de Lucas, 18 anos, e da sua irmã, Júlia, 17, há quase dez anos. Filhos de um ex-frade dominicano, pedagogo, filósofo, mestre e doutor em educação com especialização em alfabetização, Luiz

Carlos Faria Silva, ambos deixaram a escola ainda no ensino fundamental para estudar em casa, onde receberam aulas de língua portuguesa, geografia, ciências e até catecismo. “Estou no ramo da educação e alfabetização há muito tempo e uma coisa que me fez ficar perplexo foi a queda do desempenho escolar dos alunos, principalmente dos universitários. É assustador. Parece que a nova ideologia dos estudantes e das escolas e universidades é ‘deve-se estudar menos e aprender menos’”, declara o pai. Faria da Silva afirma que quando as crianças começaram a ir para a escola, os problemas vieram junto. “Aos 7 eles foram para uma escola pela primeira vez. E foram sabendo ler, escrever e contar. Passou um

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“É importante entender que a família – pais – precisa estar com as crianças boa parte do dia, pois só assim o ensino domiciliar conseguirá seguir o processos de educar. Entretanto, os pais devem estar atentos também ao comportamento da criança com o novo método de ensino, pois é na escola que ela aprende a ter um convívio social com os colegas e professores

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ano e as inquietações começaram a aparecer. Eu pagava a escola para ensinar e tinha que corrigir em casa o que a escola fazia de errado. E não adiantou mudar. A mudança só seleciona o grupo social com o qual seu filho vai se relacionar ou a faixa de gasto que você vai ter. A qualidade de ensino não muda.” A filha mais nova, Julia, 17 anos, vê a educação dentro de uma sala de aula como uma espécie de jaula. Ela afirma que em casa, tem a liberdade para estudar na hora que acha melhor, desde que cumpra os deveres impostos pelos pais e depois explique o que compreendeu das lições do dia. “Quando fui para a escola aos 7 anos, me sentia sufocada e presa. Não gostava das professoras e meu pai acabava sempre ensinando para mim e para o Lucas [irmão] o que tínhamos visto em sala de outra forma. Acabei me adaptando ao sistema de educação implantado pelo meu pai e me sinto muito mais a vontade estudando em casa ao lado dele e do meu irmão.”

Por ser uma prática não reconhecida no Brasil, e podendo haver a interpretação judicial de violação do artigo 246 do Código Penal (que considera crime “deixar de prover a instrução primária” aos filhos), pais optaram por tirar os filhos da escola e foram obrigados a reestabelecer o convívio da criança com a escola com pena de multas mensais e perda da guarda. De acordo com Guilherme Aranéga, advogado especialista em direito da família, a prática não deveria ser proibida e considerada crime pela justiça, entretanto, é necessário compreender que a educação domiciliar requer alguns cuidados extras. “É importante entender que a família – pais – precisa estar com as crianças boa parte do dia, pois só assim o ensino domiciliar conseguirá seguir o processo de educar. Entretanto, os pais devem estar atentos também ao comportamento da criança com o novo método de ensino, pois é na escola que ela aprende a ter um convívio social com os colegas e professores.”


ENTENDA OS MÉTODOS EDUCACIONAIS idades o trabalho em grupo é sempre muito bem visto. Uma quarta opção é o método Wardolf, desenvolvido pelo filósofo Rudolf Steiner (1861 – 1925), pelo qual procura-se equilibrar os aspectos cognitivos das crianças (capacidade de aquisição de conhecimento), como o desenvolvimento das habilidades artísticas, musicais, entre outras. No ensino fundamental, a grade curricular inclui matérias como astronomia, meteorologia, jardinagem, trabalhos manuais, além das disciplinas exigidas pela legislação do sistema educacional do Brasil. Por fim, o método Freinet é um pensamento do pedagogo francês Célestin Freinet (1896 – 1996) e consiste no aprendizado por meio do trabalho e da cooperação. Nesse método, a criança é incentivada a compartilhar as produções com os colegas, sejam eles da sua classe ou de outra. Estudos de campo, elaboração de jornais em grupos e debates são atividades valorizadas no método educacional.

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O método tradicional é a abordagem predominante no país, e consequentemente a mais conhecida pelos pais. O foco está no professor, que repassa o conhecimento ao aluno. Nele, a criança tem metas a cumprir dentro de determinados prazos que, de tempo em tempo, são verificados por meio de avaliações periódicas. Já o chamado de método construtivista segue os princípios do conhecimento ativamente construído pelo sujeito e não o tradiocional sistema professor-aluno. Nele cada aluno é visto como alguém com um tempo único de aprendizado e o trabalho em grupo é extremamente valorizado. O terceiro método, denominado montessoriano, é baseado na filosofia da pesquisadora italiana Montessori (1870-1952), pela qual a criança deve buscar autoformação e construção com a ajuda dos adultos, favorecendo assim o desenvolvimento criativo, a confiança e a iniciativa dos pequenos. As salas de aula são compostas por alunos de diferentes

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Eles puderam

escolher ter o controle total da situação e decidir como e o que fazer da própria vida, seja no campo proFIssional ou pessoal, é o que muita gente persegue, mas poucos conseguem

Ana Paula Candelório Primeiro ato: Levantar cedo, passar um bom perfume, calçar salto alto, sair e trabalhar. Ou então, dar banho, alimentar, pegar no colo e sentir o cheirinho de leite azedo ao arrotar: ser mãe. Numa sociedade em que as mulheres, ao longo dos anos, lutaram para conquistar direitos, como votar, trabalhar e receber salários

mais dignos, ser mãe em período integral parece algo fora de cogitação. Pode soar retrocesso. Para a jornalista Giovana Cardoso, 36, não. Quando se tornou mãe, ela não titubeou. Jogou tudo para o alto e resolveu se dedicar full time à maternidade. Segundo ato: Uma criança de família humilde tem o sonho de, quando crescer, virar médico. Quando jovem, pega dois ônibus até a cidade vizi-

nha para estudar. Faz o técnico em enfermagem porque a cidade ainda não oferece curso de medicina, mas não desiste e depois de muita luta consegue, afinal, concretizar o sonho. Amarildo José Ramalho, 51, é médico ginecologista e obstetra, formado há 26 anos. Passa os dias fazendo partos, ajudando mais e mais crianças a chegar ao mundo. Pelas contas dele, já foram mais de nove mil.

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Giovana e Ramalho não se conhecem, mas têm em comum o controle total da situação, ou seja, em algum momento exerceram a liberdade de decidir quando, como e o que fazer das próprias vidas. “A liberdade consiste no ato de escolher entre as diferentes opções, dadas pela própria sociedade, sobre os modos de agir existentes.” É o que diz o advogado e professor da Universidade de Brasília (UnB) Alexandre Araújo Costa, na obra Introdução Crítica ao Direito, publicado em 2008. Ele pondera que a livre escolha deve estar de acordo com o ato de reflexão de quem age. No artigo, o advogado expõe que as pessoas não controlam conscientemente os mecanismos que desencadeiam as emoções, mas têm controle reflexivo sobre

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os comportamentos. E a possibilidade de julgar as condutas de um comportamento proposital vem das avaliações das experiências, que ele denomina liberdade. APOIO E CRÍTICAS Hoje, Giovana Cardoso tem dois filhos. Ela conta que trabalhava com vendas, no entanto, sempre teve em mente que se dedicaria por completo às crianças quando se tornasse mãe. E foi isso o que ocorreu. Ela diz que recebeu total apoio do marido e familiares, no entanto também ganhou muitas críticas, até mesmo pessoas desconhecidas, por tomar essa decisão e tornar pública por meio de um blog que mantém desde antes do filho caçula nascer, há cerca


carinho e formação de vínculo que possivelmente não teria para mim a mesma qualidade caso eu trabalhasse fora e passasse pouco tempo com eles. Evoluímos juntos diariamente e isso é muito prazeroso”, conta Giovana. Antônio Ozaí da Silva, 52, professor de Sociologia da UEM (Universidade Estadual de Maringá), diz que a sociedade determina regras e padrões no campo da política a fim de prezar a ordem. Entretanto, há outros tipos de padrões presentes na vida em coletividade. A escolha dessa mãe, ele diz, pode ser vista do ponto em que toda sociedade tem padrões de crenças, Daiele dos Santos Rohde

de 5 anos. Segundo ela, as pessoas fazem perguntas desnecessárias sobre o dia a dia dela e a escolha pelos filhos. “Sou criticada por supostamente não ajudar o marido nas despesas da casa ou não possuir certas coisas que teoricamente todo mundo já tem. A pressão para você se ‘livrar’ dos filhos é muito grande. A intromissão e os palpites não param nunca e vêm de todos os lados.” Apesar das críticas, ela afirma não ter se arrependido da escolha que fez. “Além do convívio com eles [filhos] em tempo integral, vivo um amor diário muito intenso, pois esse convívio me traz aprendizado,

de comportamento e culturais. “Os padrões são necessários, mas às vezes se transformam num fardo, passam a ser um peso que nem todo mundo está disposto a carregar”, explica o professor. A cultura é também peça chave nesse quebra-cabeça. Segundo Licemar Vieira Melo, 43, mestre em Ciências Sociais Aplicadas e professora da Unicesumar – Centro Universitário Cesumar, a cultura é entendida como normas de conduta, hábitos, costumes, leis, códigos éticos e morais e é relacionada ao acesso às artes. “Mas também é encarada como mecanismo de controle do comportamento social. É a cultura que diz o que é certo e errado em sociedade e isso padroniza nosso comportamento”, diz ela. Para o obstetra Amarildo Ramalho, os valores, éticos e morais ensinados pela família tendem a permanecer e perpetuar. “Freud disse que você tende a repetir as experiências vividas e eu procuro passar isso [para os filhos], porque acredito no que me foi ensinado. Sempre dei a liberdade para eles me questionarem, mas com argumentos”, diz. Ele conta que sempre recebeu apoio para lutar pela profissão que escolheu. “Desde que eu me entendo por gente, fazer medicina foi sempre o que eu quis, não tem ninguém que me influenciou na família”, conta. Logo que entrou na faculdade, começou a namorar a atual mulher, Sônia Arce Ramalho, 50, advogada. Afastaram-se por alguns meses e retomaram o namoro. Hoje eles têm dois filhos, Guilherme, 21 e Tiago, 17. Ambos querem seguir os passos dos pais, o mais velho

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Amarildo Ramalho (direita), diz preferir passar o tempo livre com a mulher e os dois filhos

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Humberto Girotto

estuda direito e o caçula, quer ser médico. Amarildo Ramalho diz que se orgulha da escolha dos filhos, mas isso não é algo a ser cobrado. “Uma coisa que eu sempre dei para os meus filhos foi a liberdade em relação à profissão. Só exijo que sejam felizes no que fazem”, afirma ele. EQUILÍBRIO Falar em ser livre na sociedade não é tarefa fácil. Reginaldo Bordin, professor de Ciência Política da Unicesumar, diz que em toda a história a sociedade buscou o equilíbrio entre a heteronímia e a isonomia. Isto é, entre as normas coletivas e a liberdade individual. “As normas, na medida em que são decididas coletivamente não têm o caráter de pressão, mas de regulamentação. Quer dizer: o excesso de liberdade, se é que podemos assim dizer, é tão perigoso quanto a falta dela”, diz o professor. Bordin cita Montesquieu, pensador da filosofia política, e entende que a liberdade deve ser garantida pela lei, pois a liberdade está relacionada à segurança, proteção. Sendo assim, é necessário levar em conta

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que o homem não vive sozinho numa sociedade. “As escolhas devem ser criteriosas e claras e não podem ancorar-se tão somente no desejo, no sentido de que há desejos que podem ser bons para quem os realiza, mas não necessariamente para os que se envolvem na ação.” Para Roberto Barbato Júnior, advogado, professor e mestre em ciências sociais, o homem moderno é submisso aos padrões de comportamento relativos às tradições, além de sofrer influências que vêm do meio midiático. “Ademais, o ser humano não consegue viver sozinho, já dizia o filósofo Aristóteles, ‘o homem é um ser social’.” LIMITES Por isso, Barbato pontua que a margem de “ser livre” é reduzida quando se está diante de uma sociedade civilizada, com ordem constitucional estabelecida. “Não poderia ser de outra maneira, já que, do contrário, assistiríamos ao esfacelamento do tecido social. Ser livre, desse ponto de vista, consiste um exercício de buscar a máxima

satisfação dentro dos limites da lei”, afirma ele. É importante pensar que o ser humano é racional e tem vontades próprias. No entanto, é impossível negar que é um ser influenciável. Os comportamentos podem se repetir ou desaparecer de acordo com as consequências. Ghyslene Rodrigues, 52, psicóloga especialista em análise comportamental cognitiva, cita Burrhus Frederic Skinner (autor e psicólogo norte -americano), e diz que na verdade não existe liberdade, mas sim uma forma de se comportar. “Todo comportamento que a gente tem, se a consequência é positiva, se repete. Todo comportamento que temos e tem consequência negativa, desaparece, e quem determina nosso comportamento é a sociedade”, afirma a psicóloga. De acordo com ela, o ambiente social pode determinar qual vai ser o comportamento do indivíduo. O resultado positivo é o elemento reforçador. “Até o gosto, o cheiro, o paladar e o modo de vida é influenciado pela sociedade, não é a parede [que influencia], são as pessoas”, afirma.


três cores de liberdade “A Liberdade guiando o povo” é a obra moldada por traços que representam o desejo de libertação

“La Liberté Guidant le Peuple”, Eugéne Delacroix, 1830. Óleo sobre tela. 2,6 m. X 3,32 m.

Ana Paula Candelório As revoluções ensejam a liberdade em qualquer nação, mas poucos traduziram tão bem esse ideal como os franceses. Liberdade, Igualdade e Fraternidade inspiraram as artes e artistas de todas as vertentes da Revolução Francesa (1789 a 1799). A tríade que representa a constituição do país, não ficou apenas documentada na história. Por meio de pincéis, tintas e telas, ganhou esboço, cores, formas e valores. Uma das mais belas páginas da história da arte francesa é moldada por traços que representam a liberdade. La Liberté guidant le peuple (ou a Liberdade Guiando o Povo) é o quadro mais conhecido do pintor francês Eugéne

Delacroix (1799 – 1863), que tornou-se famoso por retratar a agitação das ruas. A obra é um óleo sobre tela com dimensões 2,60 m x 3,32 m., de acordo com o livro “Descobrindo a história da Arte”, de Graça Proença. A obra nasceu na Revolução de Julho. Os dias 27, 28 e 29 de julho de 1930 formaram os três dias gloriosos que encerraram o reinado absolutista de Carlos X e o fim do período conhecido como Restauração Francesa. Na Revolução, estiveram presentes homens, mulheres e até mesmo crianças. Com o término do regime absolutista, resurge a bandeira de três cores, símbolo da liberdade igualdade e fraternidade. A tela representa o anseio pela libertação que o povo francês sentia. A liberdade é

ilustrada por Delacroix como a figura de uma deusa sob uma plebeia, pois carrega consigo os ideais de liberdade e toma a liderança, mas, ao mesmo tempo, é representada por uma mulher com traços robustos e tão reais quanto os demais personagens. O artista consegue unir romantismo e realismo numa única tela. O realismo se dá pelas mortes e agitação da época. Já o menino ao lado da Liberdade é a perfeita encarnação romântica da obra, pois representa um adolescente indiferente ao perigo que o cerca, na busca e defesa de uma causa nobre. “A Liberdade Guiando o Povo”, de Eugéne Delacroix, ainda hoje provoca emoção entre apreciadores e pode ser visitada no Museu do Louvre, em Paris.

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Lais Moser

livre para ir,

vir e vestir Na moda, a liberdade vai além das escolhas. Criar, copiar, se sentir-se bem, estar confortável, o que importa é que a roupa traduza a personalidade.

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Lais Moser E de repente é como se a rua parasse. Todos. Os tortos, os tímidos, os arregalados, os de canto, todos os olhares de uma única vez. Todos voltados para aquela roupa. Sempre tem aquele mais careta, aquele que olha com preconceito e já sai ofendendo, mas também tem quem olhe com curiosidade e admiração. É como se dissessem “queria ter a coragem de usar isso”. “Moda representa fantasia, ela pode mascarar e criar identidades para as pessoas. A moda e minhas roupas representam minha forma de viver”, conta o estiloso estudante de moda Pedro Soda, 20. Na mesma rua, tem quem passe despercebido. A mesma calçada. Os mesmos olhos. Olhos calmos e dispersos. Atentos a outros assuntos, agora não se espantam, não acompanham, não julgam. É como se estivesse invisível. Apenas mais um, apenas mais do mesmo. Apenas alguém que decidiu sair de casa sem se preocupar. Naquele dia, apostou no básico. “Moda é liberdade de expressão, quando eu escolho uma peça ou determinado look para sair, estou querendo transmitir a imagem da mi-

nha personalidade. Às vezes menos inspirada, outras muito inspirada. A moda, para mim, é caminho de liberdade, de mostrar quem eu sou naquele dia”, conta a it girl (garota que não necessariamente é famosa, mas tem um estilo que inspira e é copiado por outras), Naiara Prado, 22. Quem nunca, ou melhor, quem sempre acorda cedinho, toma um banho rápido e apressa o café da manhã só para ter mais tempo em frente ao espelho escolhendo o look do dia? Tudo bem se você não tem esse ritual logo cedo, mas escolher o que vai vestir no dia seguinte antes de dormir também conta. Básico, daquele para não tirar nenhum olhar de seu foco, ou aquele totalmente diferente e que dá a certeza de muitos olhares e até julgamentos. Os dois dependem de escolhas, e as escolhas dizem muito sobre cada um. Escolher o que vamos vestir faz parte da nossa liberdade na moda. O GRITO DE LIBERDADE

Segundo a professora de história da moda, mestre em História e Sociedade, Paula Piva Linke, 28, a moda surgiu justamente para fazer referência à distinção social

e comportamento que são complementados pelo ato de vestir. “A roupa vai se voltar para o público jovem que vai usá-la como forma de protesto, em oposição ao estilo conservador e à reprodução do comportamento dos pais.” O “grito de liberdade na moda” foi dado nos anos 1960, mas lutamos por ele até hoje. Nesse período, as mulheres deixaram de lado as saias rodadas para dar vez às minissaias e também às calças jeans. Os homens aderiram aos paletós sem colarinho, gravatas largas e botinas. A moda era ser diferente, chamar a atenção. Parece familiar. CORTE, COSTURA E ESTILO Paula Linke lembra que essa mudança de “estilo” fez a alta costura e as grifes perderem espaço, a confecção ganhou mais terreno e a criatividade tornou-se essencial, já que todos queriam consumir novidades. Também foi nesse período que o estilo começou a ganhar destaque, então o costureiro começou a ser chamado de estilista. Hoje, a realidade é muito parecida. A busca incessante é por novidades, estilo diferente e destaque. Ao parar na frente do espelho,

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AUTOESTIMA Para a blogueira Andressa Dias, 26, a liberdade na moda, além de ser pessoal e individual, tem a ver com autoestima e com não se sentir obrigado a seguir os padrões da sociedade e da mídia. “Ainda há revistas e blogs que pregam regras ferozes para o uso de cada tipo de look, mas hoje muitas pessoas já conseguem se desprender disso,

Moda é liberdade, e hoje vivemos em uma era na qual a moda se impõe como arte, como uma maneira de se expressar. É meio que obrigatório que desfrutemos dela, mas sem escravidão e sem medos.

Liberdade na moda é cada um sair do jeito que quiser, estando ou não na tendência. Sendo ou não comercial ou conceitual.

Guilherme Stela Lais Moser

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real” estiver do “eu desejado”, mais infeliz e insatisfeito será o indivíduo. Por outro lado, a blogueira Andressa Dias afirma que o papel de mídias, como blogs e sites de moda, não é ditar ou impor comportamentos. Servem para apresentar opções variadas e representar os indivíduos em suas diferentes formas, em vez de focar só em pessoas que representem o padrão de beleza imposto pela sociedade. INDÚSTRIA DA MODA Dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) apontam que a moda também pode ser vista

Liberdade na moda, é o fato de ninguém ditar o que eu devo ou não vestir. É poder usar o que gosta, expressando pela roupa. Individualizar, sem ser julgado por isso.

Amanda Custódio

Naiara Prado

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usar as regras apenas como um direcionamento e adaptarem as tendências que gostam para o visual que querem produzir.” Segundo a psicóloga Marjorie Vicente, especialista em psicologia de imagem, “somos julgados primeiro pela imagem apresentada para as outras pessoas, só depois pelo ‘verdadeiro eu’”. Marjorie, que vive em Miami (Flórida), onde se especializou, afirma ser importante que cada um se autoavalie para só assim tornar o “eu desejado” mais realista e menos inatingível. Portanto, procurar inspirações e tendências é natural desde que não interfira na saúde mental, nem física. Segundo ela, quanto mais distante o “eu

Jennipher Marques

Lais Moser

com o celular na mão conectado àquele blog de dicas e tendências, você está fazendo escolhas. Está procurando novidades, querendo saber o que os outros usam para usar também ou para não usar e se destacar.


CONFORTO Para as mulheres, os anos de 1910 também foram um marco de liberdade. De acordo com a professora Paula Linke, foi nesse período que o estilista Paul Poiret aboliu definitivamente o espartilho do vestuário feminino, dando liberdade e conforto às mulheres. Hoje, usar roupas confortáveis também é um desafio. Tem quem aguente usar

salto o dia todo, mas também quem se sinta presa a uma calça jeans justa. O marco de liberdade e conforto nos anos 2000 pode ser definido pelo estilo fitness [roupas de academia]. Samile Chaves, 29, bacharel em direito, estilista e dona de uma marca de roupas fitness, conta que sempre gostou de andar bem vestida e, ao mesmo tempo, confortável. Para ela, a liberdade na moda está intimamente ligada ao conforto. “Adoro moda, mas gosto mais de me sentir bem. Até alguns anos era ‘brega’ usar roupas fitness na rua ou apenas para chamar a atenção. Crio minhas coleções pensando nas mulheres que querem se sentir confortáveis e ao mesmo tempo elegantes. Acredito na máxima ‘moda é o que faz você se sentir bem’.” “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser.” Esse era o slogan de uma campanha publicitária de jeans que fez sucesso em 1976. Todos cantarolavam a tal da liberdade. O País, em plena ditadura militar, respirava o desejo de liberdade, não apenas na moda, mas de pensamento, do voto e do ir e vir. Desde que a calça velha, azul e desbotada foi sinônimo de liberdade muitas mudanças aconteceram. O fato é que hoje existem outras centenas de calças. Desbotadas ou com muita cor, velhas, novas, novas que parecem velhas, velhas que nunca foram usadas e parecem novas. As opções de liberdade, na moda, são muitas, cabe a cada um de nós decidir o look do dia.

EU TENHO LIBERDADE - ANO 2015

Lais Moser

como um importante negócio-. Isso porque a indústria nacional movimentou US$ 58 bilhões de dólares em 2013, além de ser responsável por mais de 1 milhão de empregos diretos no mesmo ano. Maria Aparecida Pagotto, 44, formou-se em moda em 2013, mas já trabalhava como estilista há 15 anos. De acordo com ela, esse “boom” do mercado da moda se deve principalmente à facilidade de acesso a esses conteúdos. Antes, as pessoas compravam determinada roupa porque viam na vitrine e gostavam, usavam plenamente a liberdade de escolha. Contudo, o processo não é mais assim. “Hoje, é diferente, todos têm acesso às semanas de moda internacionais, às roupas de celebridades, às novelas. Se você desenha e produz uma roupa que não está aparecendo nessas mídias, não adianta, não vai vender.” Ainda segundo a estilista, a moda é produzida em grande escala e a padronização é quase inevitável. Ela diz acreditar que a liberdade na moda existe, mas dentro do estilo de cada um as escolhas são mais padronizadas. “Quem gosta de usar camisa vai usar a camisa que está na moda. Quando era moda a ‘camisa da delegada’ da novela [Salve Jorge, Globo], não adiantava produzir outro tipo de camisa, as pessoas só queriam aquela. Isso é padronização.”

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