Entre guerra
Atleta-mirim da ginástica artística treina no complexo esportivo Dynamo, em Donetsk. Crianças são as únicas que permanecem no local, uma vez que os esportistas de ponta foram obrigados a se mudar para Kiev, longe dos tiros que viraram rotina no leste do país
texto e fotos yan boechat, de Donetsk
mísseis Nas ruínas da guerra separatista no Leste da Ucrânia, atletas, técnicos e dirigentes resistem e tentam manter viva a esperança de disputar os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro
e tiros, o esporte istoÉ2016 abril/maio 2015
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O som abafado dos morteiros e das metralhadoras já não chama mais a atenção de Denys Yurchenko. Sentado em um banco de metal simples à beira da pista de atletismo da Arena Atlética de Donetsk, na Ucrânia, ele está totalmente alheio aos estrondos dos projéteis disparados a poucos quilômetros dali. “Estão atirando de novo?”, pergunta. “A verdade é que já nem percebo mais quando estão distantes assim”, diz ele, com indisfarçável enfado. Vencedor da medalha de bronze no salto com vara na Olimpíada de Pequim-2008, Yurchenko está concentrado, nesta tarde chuvosa de março de 2015, em contar como a guerra que já matou mais de seis mil pessoas no Leste da Ucrânia matou também seu sonho de ir para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. “Estava me preparando para um novo momento em minha carreira e o Rio seria o grande teste”, diz. “Agora, se eu conseguir ver pela televisão, já será muita sorte”, continua, enquanto dois jovens atletas tentam quebrar a modesta barreira dos quatro metros de altura. Yurchenko se preparava para estrear como técnico da seleção olímpica de salto com vara da Ucrânia nos Jogos do Rio. Estava havia um ano à frente de uma equipe que contava majoritariamente com atletas de Donetsk. A principal cidade da região leste da Ucrânia, conhecida localmente como Donbass, se transformou em uma potência do esporte nas últimas décadas. Tudo por causa das centenas de jovens e crianças que, como ele, sonhavam em ser um novo Sergey Bubka, a maior estrela desta região colonizada por cossacos e que se transformou em um importante centro da indústria metalúrgica no último século. “Estávamos bem, nossos meninos estavam bem, tínhamos chances reais de trazer uma medalha”, diz ele, em um raro momento de empolgação. “Mas aí veio a guerra e tudo se acabou”. Em agosto de 2014, logo após os separatistas próRússia terem sido acusados de abater o Boeing 777 da Malaysia Airlines e agravar ainda mais o conflito no Leste da Ucrânia, Yurchenko foi demitido do cargo. Desde então, ele passa as tardes treinando jovens garotos que sonham um dia conseguir, como ele, disputar quatro Olimpíadas. “Me tiraram porque eu sou daqui”, diz. “Aconteceu com todos os técnicos da região e só não impediram os atletas de disputar os Jogos porque eles não têm ninguém melhor”. Oficialmente, o Comitê Olímpico Ucraniano afirma que a saída do time não teve relação direta com o fato de Yurchenko ser natural do principal polo separatista do país. Mas em uma guerra civil em que acusações mútuas de fascismo e terrorismo são a tônica, os ânimos exaltados pelas máquinas de propaganda contaminaram de forma profunda o esporte. 62
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Assim como Yurchenko, outros técnicos, alguns com fartas conquistas nas carreiras, estarão fora dos Jogos do Rio. Aos atletas que se preparavam para disputar a Olimpíada de 2016 nesta região separatista, o Comitê Olímpico Ucraniano fez uma dura exigência: todos precisariam abandonar seus centros de treinamento e se mudar para Kiev, a capital, se quisessem disputar a Olimpíada. Hoje, áreas de excelência como a Arena Atlética de Donetsk contam apenas com atletas amadores ou jovens que ainda estão sendo preparados para o futuro. “Todos se foram”, lamenta o medalhista olímpico. A estimativa do Departamento de Preparação Olímpica de Donetsk é de que 50 atletas da região componham a delegação ucraniana que irá ao Rio no ano que vem. A maior parte deles estará nas equipes de ginástica, levantamento de peso e atletismo. Nos Jogos de Londres-2012, Donetsk enviou 39 atletas, que voltaram com cinco medalhas, todas de bronze. “É uma pena que a guerra interfira no esporte”, diz Andrey Aramenko, diretor do departamento. “Foi como se tivessem tirado nossas crianças de nós. Estávamos trabalhando com esses atletas por 10, 20 anos, e eles simplesmente se foram”, diz ele, que também ficará de fora dos Jogos do Rio no ano que vem. “Esta será a primeira vez em 20 anos que não estarei na vila olímpica.” A situação é a mesma para Svetlana Dubova. Coreógrafa da equipe de ginástica feminina de Donetsk, ela foi uma das três treinadoras da super campeã Lilia Podkopayeva, vencedora de duas medalhas de ouro e uma de prata em Atlanta-1996. Lilia é a equivalente feminina de Bubka nesta região da Ucrânia. “Ela foi o nosso maior tesouro até hoje, mas trabalhamos todos os dias, mesmo sob as bombas, para encontrar outra como ela”, diz. Sem as atletas em nível olímpico para treinar, Svetlana e a equipe que transformou Lilia em multicampeã concentram forças em ensinar os primeiros saltos da ginástica artística para jovens meninas de Donetsk. “Não podemos parar: mesmo nos dias em que os bombardeios eram mais intensos, as meninas estavam aqui. Como podemos desistir delas?”, pergunta, sentada nas dependências do complexo de esportes Dynamo, mesmo local em que Lilia começou a carreira, no início dos anos 1990. “Tivemos sorte até agora”, afirma Vitaly Kobrik, vicediretor do Dynamo. “Apenas tivemos as janelas destruídas por um míssil que caiu aqui do lado, mas nada de pior aconteceu.” O míssil incendiário disparado pelas forças ucranianas que combatiam os milicianos da República Popular de Donetsk, como essa região é chamada agora pelos separatistas pró-Rússia, atingiu um restaurante
A menos de 10 km do local onde as meninas treinam, os bombardeios deixam um cenário de terra arrasada (abaixo)
um míssil disparado pelas forças ucranianas que combatiam os milicianos da república Popular de donetsk atingiu um restaurante ao lado do clube de ginástica, destruindo as janelas do ginásio
guerra Svetlana Dubova (ao lado), que treinou a campeã da ginástica artística Lila Podkpayeva, pergunta: “Como podemos desistir dessas crianças?” À esquerda e abaixo, os treinamentos das meninas em Donetsk e patrulhas militares em meio aos escombros da guerra
Denys Yurchenko (à esq.), bronze no salto com vara em Pequim-2008, viu se desmanchar o sonho de treinar a seleção ucraniana. Oleg Stepanov (acima, à esq.) assumiu na base do rifle a direção do Complexo Esportivo Shakkter quando a revolução começou
A Ucrânia ganhou 20 medalhas (6 ouros, 5 pratas e 9 bronzes) nos Jogos de Londres-2012 e terminou a competição em 14o lugar na classificação geral. Para efeito de comparação, o Brasil foi apenas o 22o, com 17 pódios flutuante que fica bem ao lado do clube. “Foi uma grande explosão, todas as janelas se quebraram e nossas meninas não se feriam por muito pouco”, conta Svetlana. Antes de a guerra começar, o Dynamo funcionava como uma espécie de centro de formação de atletas olímpicos. Só podiam treinar lá aqueles selecionados por uma equipe de olheiros que mantinham uma rede de informação com as escolas das 52 cidades da região. Com as duras batalhas de artilharia que têm marcado este conflito, um grande número de cidades simplesmente perdeu toda a infraestrutura de esportes em que jovens atletas treinavam. “Costumávamos ter 1,5 mil jovens aqui e éramos rigorosos, só entravam os que tinham claro potencial olímpico”, conta Kobrik. “Mas agora aceitamos qualquer criança que queira vir aprender. Temos 800 delas neste momento, em todos os nossos departamentos, e não vamos parar mesmo que os bombardeios mais intensos na cidade voltem a ocorrer.” Após um inverno sangrento, com batalhas que dei64
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xaram centenas de mortos, as coisas foram relativamente tranquilas em Donetsk durante o mês de março. Com o cessar-fogo acordado no fim de fevereiro, a cidade deixou de ser bombardeada com frequência. Apesar disso, a frente de batalha continua ativa e está a menos de 10 km do centro. Os confrontos têm se concentrado na área do Aeroporto de Donetsk, reformado para a disputa da Euro-2012 e hoje completamente destruído. Diariamente, as forças rebeldes e o Exército ucraniano trocam tiros de canhões, metralhadoras de grosso calibre e até disparos feitos com tanques. Também diariamente, homens dos dois lados morrem. Da região central da cidade é possível ouvir o som dos disparos e dos mísseis e morteiros atingindo alvos ou partindo em direção à frente inimiga, no vilarejo de Pesky, a apenas 2 km do aeroporto. Apesar da aparente tranquilidade, com um cessarfogo tão violento, pouca gente na cidade tem dúvidas de que os combates agressivos voltarão.
É por isso que Oleg Stepanov anda excitado. Ex-soldado do Exército Vermelho da União Soviética, ele divide seus dias no comando do Complexo Esportivo Shakkter e de uma unidade de milicianos que dirige desde que a guerra começou. Assim como muitos moradores desta região da Ucrânia, Oleg, de 54 anos, se sente muito mais russo do que ucraniano. Como uma parte considerável da população mais velha, também tem saudades dos tempos soviéticos. “Está nos meus genes, sou um ser soviético, esta revolução foi como um respiro, estávamos sufocados”, conta ele, que, no lugar dos botões tradicionais do uniforme militar, colocou insígnias com a foice e o martelo. No coldre, carrega sempre uma pistola Makarov, um dos símbolos militares da extinta união de repúblicas comunistas. Oleg aproveitou o início da guerra para fazer sua revolução particular no Complexo Esportivo Shakkter, um centro de preparação olímpica para ginástica masculina, boxe e levantamento de peso, do qual já saíram ao menos 10 medalhistas nos últimos 60 anos. “Meu pai dirigiu este lugar por 40 anos e há dois anos o aposentaram porque queriam fazer desse centro um ginásio para futebol de salão”, diz ele. “Meu pai, eu e todos os que amam o esporte éramos contra. Este é um exemplo para Donetsk, mas o poder do dinheiro falou mais alto e conseguiram tirar meu pai.” Quando os rebeldes tomaram o prédio da Administração central da cidade, ainda em julho de 2014, Oleg não teve dúvidas: pegou seis amigos, colocou um AK-47 na mão de cada um deles e marchou em direção ao edifício de quase 70 amos anos que abriga o centro esportivo. “Não precisamos dar nem um tiro sequer. Entramos e assumimos o controle”, diz ele, entre gargalhadas. “A revolução é para todos e agora ninguém mais nos dirá o que fazer. Um dia estaremos disputando os Jogos Olímpicos como qualquer país.” Oleg, no entanto, não sabe bem o que fará se a frente de batalha avançar em direção ao Oeste, como ele acredita que acontecerá. “Se nos deixarem, vamos até Kiev. Mas aí precisarei decidir se vou junto combatendo ou se fico aqui, tomando conta desta joia”, diz, soltando mais uma gargalhada barulhenta enquanto alguns garotos treinam nas argolas. istoÉ2016 abril/maio 2015
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