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ESTRATÉGIA Ali usou a tática de cansar Foreman. Ao final, golpeou-o sem piedade
Em outubro de 1974, no Congo, Muhammad Ali e George Foreman protagonizaram o maior confronto do mais nobre dos esportes de combate. Quatro décadas depois, em meio a uma brutal guerra civil, GQ visita o palco daquele espetacular confronto Por YAN BOECHAT, de Kinshasa
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Na velha Mercedes que nos leva do centro de Kinshasa ao estádio Tata Raphael, Habibou Bangré, uma jornalista francesa nascida em Burkina Faso, repete a cada cinco minutos: “Bem, eu já lhe expliquei, queria apenas reforçar que é bastante provável que eles tentem tirar algum dinheiro de você, mas vou tentar evitar isso”. Habibou faz bicos de intérprete para aos parcos jornalistas estrangeiros que decidem ir à República Democrática do Congo em busca de histórias. Estava preocupada que eu a considerasse parte de algum esquema para me extorquir. Enquanto o carro cruza linhas de trens inoperantes, imensas favelas de casas de barro e áreas abertas repletas de pessoas sem ter muito o que fazer, Habibou repetia seu outro mantra: “Por favor, só faça fotos de pessoas as quais eu pedir autorização antes, podemos ter problemas”. De longe, temos a impressão de que o Tata Raphael é uma construção em ruínas, uma vaga lembrança de quando a República Democrática do Congo se chamava Zaire. Como boa parte dos antigos edifícios de Kinshasa, a capital deste que é o país com o pior IDH do planeta, o Tata Raphael tem um ar de decrepitude, como se o tempo tivesse passado mais rápido por ali do que em outros lugares. Em volta do estádio, campos de futebol reúnem os típicos jogadores africanos: muita força, alguma técnica, nenhuma tática. Sob a sombra das mangueiras, cabeleireiros expõem os modelos de corte em fotos coladas em placas de isopor, amarradas nas árvores. Junto ao portão do estádio, dezenas de homens vestindo luvas de boxe simulam uma luta imaginária. Alguns usam apenas faixas nas mãos, outros têm, até, as sapatilhas típicas dos boxeurs. Em meio ao lixo, a lama e os restos do que foi um dos maiores palcos esportivos do Congo, eles são a última lembrança da histórica noite em que Muhammad Ali derrotou George Foreman no coração da África e reconquistou o título de campeão do mundo. Parecem crer que, por estarem perto de onde ocorreu aquela que é considerada a maior e mais espetacular luta de boxe de todos os tempos, terão acesso a al-
Em 1974, o mundo olhava para o Congo.
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guma energia especial armazenada em uma noite úmida e quente de 40 anos atrás. “Eu estava aqui, eu vi e aquela noite mudou minha vida. Desde então a única coisa que faço é tentar ser como Ali. Ele é o meu modelo de vida”, conta Maboma Del Pierre, um dos boxeadores que todas as manhãs vão para a frente do estádio se exercitar. Assim como ele, que diz ter sido um dos maiores boxeurs do país no fim dos anos 80, qualquer um com mais de 40 anos que circula pelo Tata Raphael garante ter estado nas arquibancadas nas primeiras horas do dia 30 de outubro de 1974. Ali e Foreman subiram no ringue montado no centro do gramado deste estádio construído em 1952 pela iniciativa de um padre belga para disputar o título de campeão mundial dos pesospesados. Foi uma batalha épica não só pelo que aconteceu naquela madrugada. Tudo que envolveu esse evento his-
reira no início dos anos 70. Nascido como Classius Clay, ele se tornou um fenômeno do mundo do boxe ao se tornar campeão mundial dos pesospesados quando derrotou Sonny Liston em uma luta arrasadora em 1964, quando tinha apenas 22 anos. Ali, ao contrário de boa parte dos lutadores de sua geração, engajou-se politicamente no movimento negro americano e converteu-se a uma seita baseada no islamismo chamada Nação do Islã, quando adotou o nome que carrega até hoje. Sincrética e com fortes doses racistas, a Nação do Islã pregava a supremacia negra, o antissemitismo e teorias exóticas, como a que pregava que a lua era um pedaço desgarrado da terra. A seita atraiu também Malcolm X e, recentemente, o rapper Snoop Dog. Os três deixaram a seita anos após a conversão. Por causa da Nação do Islã, Ali se recusou a ir para a Guerra do Vietnã, em 1967, ANTES E DEPOIS Em 1974, a poucos quando foi convocado pelo dias da luta, meninos Exército. De forma bempobres do então Zaire posam para -humorada, explicou sua a foto em frente decisão: “Eu não tenho proao outdoor da luta entre Ali e Foreman. blema algum com qualquer Abaixo, imagens vietcongue, nunca um deatuais dos vestiários les me chamou de ‘negão’”. do Tata Raphael, que pouco mudaram Como resultado, perdeu a desde então licença para lutar por quase quatro anos e foi ameaçado embrenhara nas selvas congolesas na de ser mandado para a prisão. Voltou tentativa de depor o ditador e ajudar a a ter o direito de lutar no fim de 1970 instalar um governo comunista no país. e, no ano seguinte, sofreu uma dura Em 1974, após ter eliminado todos os derrota para Joe Frazier ao tentar reinimigos, Mobuto chefiava o Zaire em tomar o título de campeão dos pesos-pesados. Ali passou três anos fazenrelativa estabilidade. E queria mostrar do lutas menores até ter a chance de isso para o mundo. tentar novamente reconquistar o cinDo outro lado do Atlântico, um ex-presidiário que havia deixado as grades turão. Enfrentar Foreman em 1974, poucos anos antes iniciava a carreira de que havia derrotado Frazier de forma promotor de boxe. Com 43 anos, Don humilhante anos antes, era tudo ou King havia passado boa parte da vida nada para Ali. trabalhando como agenciador ilegal de apostas. Fora preso duas vezes por Propina oficial com recibo Enassassinato e deixara a prisão em 1970 trar no Tata Raphael é como se embredecidido a usar suas conexões no munnhar em um labirinto de pequenas salas do do boxe para se tornar um promotor escuras e úmidas, corredores abarrotade sucesso. King estreitou os laços com dos de todo tipo de entulho e esbarrar Ali em 1972, quando o convenceu a parem todo tipo de gente. O subsolo do ticipar de uma luta beneficente para um estádio parece ser uma pequena cidahospital de sua cidade, Cleveland. de habitada por funcionários públicos Assim como Don King, Ali tame suas famílias. Sob o gramado, há uma bém estava reconstruindo sua carigreja católica, bares improvisados, áre-
Além da luta, havia a Guerra Fria tórico teve um ar de grandiosidade, de dramático, de absurdo. A começar pela localização da luta, um país no coração da África controlado de forma impiedosa por um típico ditador sanguinário colocado no poder com a ajuda da CIA e apoiado pelo governo americano. Em 1974 o Congo não se chamava Congo. Por decisão única e exclusiva do presidente Mobuto Sese Seko, o país criado na segunda metade do século 18 como uma colônia pessoal do rei belga Leopoldo II passou a se chamar Zaire. Mobuto chegara ao poder em 1965, após uma série de golpes e contragolpes de Estado, sempre com o apoio dos Estados Unidos, que o viam como um instrumento importante no combate às ameaças comunistas na região, e do governo belga, interessado na exploração mineral. Ainda nos anos 60, Mobuto chegou a combater o líder revolucionário argentino Che Guevara, que se
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as destinadas às mulheres que fazem bruxarias para os times de futebol que jogam no Tata e até um ambulatório improvisado de atendimento básico de saúde. Há também uma infinidade de salas ocupadas por dezenas de pessoas que parecem fazer nada ou muito pouco. “Aqui também funciona uma parte do Ministério do Esporte”, explica Abdelaziz Saliboko, uma espécie de faz-tudo do estádio, enquanto nos guia por este Dédalo congolês até a sala do “chief ” do Tata Raphael. Sem a benção dele, nada de fotos, nada de entrevista. Em um país com a economia destruída por duas décadas de guerra, pobreza extrema e expectativa de vida que mal chega aos 50 anos de idade, o serviço público é uma das poucas fontes de emprego no Congo. Como o Estado
muitas vezes não tem dinheiro para pagar os salários, congoleses em qualquer posição de poder – guardas de rua, fiscais de trânsito, chefes de repartição – usam de seus cargos para conseguir alguma renda. Quando entramos na sala decorada com móveis escuros e um sofá que parecia já ter servido como banco em algum ônibus de tempos distantes, Habibou me olhou como se quisesse dizer: “É agora, prepare-se”. Apertos de mãos calorosos, água gelada sobre a mesa e uma oferta de café depois, Patrice nos informa que qualquer foto, filmagem, entrevista ou visita ao Tata Raphael, infelizmente, tinha uma taxa a ser cobrada. Para jornalistas estrangeiros ela sofria um pequeno acréscimo, mas nada exagerado: “São apenas US$ 400”. Cheguei a engasgar enquanto Habibou iniciava um longo
discurso em lingala e conseguia reduzir o preço para US$ 200. A batalha ainda estava em seus estágios iniciais, pensei, e decidi ser ousado, me recordando dos dados do Banco Mundial de que mais de 70% da população congolesa vive com menos de US$ 2 ao dia. Após uma cantilena triste sobre as diferenças entre o Brasil e os países ricos do mundo, ofereci US$ 100, mas com uma condição: eu queria um recibo. Ingenuamente imaginei que aqueles funcionários públicos teriam medo de me dar um comprovante da propina. Ledo engano. Mal Habibou terminou de traduzir, Patrice sacou um bloco de notas. Preencheu rapidamente, assinou, carimbou e pediu para Abdelaziz buscar as outras três assinaturas de outros diretores do estádio e mais um carimbo necessário para que o recibo tivesse validade.
“Ali, bomaye!”, diziam os congoleses. A expressão significa
music celebraria a cultura negra em sua terra natal, a África. De repente, astros mundiais do esporte, da música, jornalistas, enfim, o circo completo do show business chegava em uma Kinshasa pobre, violenta e, pela primeira vez, orgulhosa de seu destino. Ali foi o primeiro a desembarcar. Chegou como um astro mundial. Já na pista uma multidão aguardava o homem que dizia lutar pelos negros, pelos pobres, que se recusava a guerrear contra um país de terceiro mundo. Nas semanas de preparação, manteve contato estreito com a população. “Vou dar uma surra nele aqui, na terra do negro,
na nossa casa, porque aqui é também o Ali em 1973. Além disso, Foreman tinha meu país”, dizia, nas entrevistas. A poapenas 25 anos, contra os 32 de Muhampulação local respondia gritando “Ali, mad Ali. O veterano treinava a maior bomaye! Ali, bomaye”, a expressão em parte do tempo recebendo pesados golpes de seus sparrings, enquanto Folingala para “Ali, mate-o”. Apesar da fanfarronice típica e de reman socava um pesado saco de areia todo apoio popular, pouca gente no com tanta força que, ao final da sessão, mundo do boxe acreditava que Ali puo equipamento estava envergado, como desse ser capaz de derrotar Foreman, se fosse feito de um material flexível. então um jovem boxeador que tinha “Ali sabia que Foreman era mais como principal característica a força forte, mais preparado e melhor que física, um soco destruidor e uma incríele”, relembra no documentário When vel movimentação no ringue. No ano We Were Kings o escritor e jornalista anterior, Foreman havia massacrado americano Norman Mailer, autor do o então invicto campeão mundial, Joe livro A Luta, no qual descreve aqueles Frazier, e, no início de dias de 1974. “Ele falava 1974, precisou de apenas que ia dar uma surra em dois rounds para nocauForeman, mas, como toTREINO Imagens da época tear Ken Norton, o resdos nós, sabia que aquela (acima e abaixo) ponsável pela façanha de seria uma tarefa muito, mostram a preparação de Foreman quebrar a mandíbula de muito difícil.” e Ali para a luta do século. Foram quase dois meses no Congo antes da luta. Abaixo, à esquerda, jovens treinam diariamente em frente ao estádio Tata Raphael
“Ali, mate-o”
A luta histórica
No início de 1974, Don King não tinha muito dinheiro. Mas possuía contatos, alguma influência e uma capacidade de convencimento rara. A luta entre George Foreman, o campeão mundial invicto, e Muhammad Ali, que buscava reconquistar o título com uma obsessão quase cega, era inevitável e King queria promovê-la. Prometeu a cada um US$ 5 milhões – algo como US$ 25 milhões em preços atuais –, mesmo não tendo nem 1% desse valor. Com a assinatura de Ali e Foreman, saiu em busca de patrocínio. Encontrou o ditador Mobutu. A data do combate foi marcada para o dia 25 de setembro, no Tata Raphael. Antes, um festival de música com James Brown, B.B. King, The Spinners, The Crusaders e outros astros da soul 140 II
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HISTÓRIA Às 4 da manhã de uma À esquerda, na típica madrugada úmida do primeira sequência, Foreman castiga Ali; final de outubro em Kinshaabaixo, a reação de sa, Muhammad Ali saiu de Ali. À direita, imagens atuais do Tata Raphaseu vestiário e se dirigiu ao el. De camisa colorida, ringue montado no meio do Ferdinand Ngondo, gramado. Cerca de 100 mil conta histórias do estádio. Abaixo, boxcongoleses espremidos em eadores que treinam todos os cantos possíveis do lá sob a lembrança da luta do século Tata Raphael gritavam em êxtase: “Ali, bomaye! Ali, bomaye!”. Mas não demorou muito para que seus apoiadores se calassem. Já no primeiro assalto Foreman mostrou força, encurralou Ali nas cordas e passou a golpeá-lo sem misericórdia. Foi assim por cinco rounds seguidos. Ali, o eterno campeão, estava nas cordas, sendo castigado por um lutador mais forte, mais jovem e, aparentemente, mais determinado. Foram poucas as
segundos para o final, Ali iniciou uma sucessão de socos
FOTOS
A F P - I M A G E F O R U M ; G E T T Y I M A G E S ; C O R B I S / L AT I N S T O C K ; A P/G L O W I M A G E S ; YA N B O E C H AT
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tentativas de contra-ataque. Parecia ser questão de tempo até que Foreman acertasse um soco certeiro. A cada novo golpe, a cada fim de assalto, Ali chegava ao ouvido dele e gritava para que todos na plateia ouvissem frases como “Vamos lá, George! Me disseram que você tem a mão pesada, isso é tudo que você tem?”. Foi no quinto round que Foreman começou a demonstrar cansaço. De repente, Ali saiu das cordas e, pela primeira vez na luta, passou a atacar. Era como se por todo o tempo ele estivesse ali, aguardando as forças do jovem lutador se esvaírem. A estratégia ficou conhecida como “rope-a-dope”, algo como dopado nas cordas, e consistia em usar a elasticidade das cordas do ringue para absorver os impactos de Foreman. No oitavo assalto, Foreman estava exausto. Tentava atacar, mas seus golpes atingiam o ar ou as luvas de Ali. Faltando 12 segundos para o final Muhammad Ali iniciou uma sucessão de socos. O último deles acertou em cheio o queixo de Foreman. O lutador ainda tentou se agarrar a Ali, mas não havia mais o que fazer. Desabou sobre o tablado para só se levantar anos depois, acometido por uma profunda depressão que quase lhe custou a carreira e a vida. Muhammad Ali era novamente, após dez anos,
campeão mundial de pesos-pesados e o vencedor da mais espetacular luta de boxe já realizada na história.
Nostalgia
Ao menos uma vez por mês Abdelaziz abre o vestiário que recebeu Muhammad Ali 40 anos atrás a alguns dos boxeadores que passam o começo das manhãs treinando em frente ao Tata Raphael. “Eu estava aqui naquela noite, meu pai era um coronel de Mobutu e ele me levou para a tribuna de honra. Eu sei o significado que Ali tem para esses rapazes”, diz ele, em francês. Maboma Del Pierre e seu grupo são frequentadores assíduos. Sempre que podem, correm para o vestiário. O local, como o resto do estádio, já viu dias melhores. Vazamentos mancham as paredes e criam grandes poças de água no chão. Há uma mistura de cheiro de mofo, fezes e urina que parece vir da parte de fora, tomada pelo mato e usada como banheiro da população que circula pelos arredores do estádio. Mas ainda guarda a mística daquela noite. “Nós entramos aqui e sentimos a força de Ali”, diz Mabona. “Tudo o que eu queria é que ele voltasse aqui um dia, viesse apenas para ver o estádio, relembrar a história, mas acho que isso nunca vai acontecer.” NOVEMBRO 2014 II
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