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REPORTAGEM DE CAPA
Venezuela, uma rotina de privação Venezuelanos enfrentam filas longas para comprar produtos básicos e crianças desmaiam na sala de aula por má alimentação. Por Yan Boechat, para o Valor, de Caracas 6
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Sexta-feira, 12 de agosto de 2016
O
rapaz alto de cabelos loiros escorridos e camisa com as cores da bandeira venezuelana aproximou-se sem muita discrição. Sorriso aberto e caminhar solto, passou perguntando: “O que quer, amigo? Arroz, açúcar, farinha?”. Antes de ouvir a resposta, afastou-se. Voltou e ouviu o pedido. “Um tubo de pasta de dentes. Grande.” Sumiu novamente e, como havia chegado, retornou: mesmo sorriso aberto, mesmo caminhar solto. Parou, levantou a camisa larga tricolor e tirou de dentro do calção azul um tubo de 150g de creme dental, ainda na embalagem de papelão, mas já um pouco amassada. Contou ali mesmo as 15 notas de 100 bolívares que recebeu e, antes de partir, entregou uma sacola plástica ao cliente. Pela etiqueta do mercado negro venezuelano, não fica bem andar pelas ruas com um tubo de pasta de dentes nas mãos, sem embrulho. O artigo anda escasso na Venezuela e naquela tarde quente e ensolarada certamente chamaria
Pai descansa com sua filha enquanto alguém guarda seu lugar na fila para compra de alimentos no supermercado: na Venezuela há escassez de 80% dos produtos básicos
atenção na feira livre de Cátia, um dos maiores complexos de favelas da América Latina, com cerca de meio milhão de habitantes. Depois de percorrer uma longa cadeia de ações ilegais, a pasta de dentes finalmente encontrou seu destino nas mãos de Nelson Alvarez, motorista particular de Caracas que, aos 43 anos, já é avô. Para manter a higiene bucal da família em dia, Alvarez aceitou pagar um ágio de quase 1.000% sobre o preço tabelado do creme dental. De acordo com as estritas regras de controle de preços impostas no país, ninguém na Venezuela pode vender um tubo de pasta de dentes de 150 g por mais do que exatos 158,98 bolívares, algo como US$ 0,15. “A esse preço é impossível, não se encontra em lugar algum. O jeito é vir aqui e comprar com os ‘bachaqueros’. Parece que estamos comprando drogas, mas é só pasta de dentes mesmo”, diz Alvarez. Desde que a crise venezuelana passou a ganhar contornos de tragédia cubana pós-débâcle soviético, os “bachaqueros” se transfor-
maram em figura central da economia do país. Batizados em referência a uma saúva muito comum na região de fronteira com a Colômbia, eles são os responsáveis por suprir o mercado negro com os itens básicos que estão em falta. Com eles é possível encontrar de tudo: desde o simples e básico papel higiênico, passando pelo desejado açúcar, até a marca de ketchup americana adorada pelos venezuelanos, hoje artigo de puro luxo. São os “bachaqueros” que também escancaram a hiperinflação que assola a economia venezuelana há quase um ano e que o governo finge não ver. Para este ano ela está estimada em mais de 700% pelas contas do Fundo Monetário Internacional (FMI). Por isso, raramente é possível encontrar um dos 160 produtos que têm os preços regulados pelo governo com ágio inferior a 1.000%. Os “bachaqueros” não são figura nova na Venezuela. Desde que Hugo Chávez (1954-2013) assumiu o poder em 1999 e adotou uma controvertida política de con-
trole de preços, eles têm feito parte do cotidiano venezuelano. Primeiro das classes mais abastadas, que encontravam no mercado negro uma saída eficaz para driblar o desabastecimento eventual de alguns produtos. Mas, desde que a crise começou a se agravar após a morte de Chávez e o início do declínio dos preços do petróleo nos anos seguintes, eles passaram a ganhar cada vez mais espaço na economia do país. Neste ano assumiram papel protagonista e simbólico de um ambiente econômico absolutamente desequilibrado. Na Venezuela de hoje compra-se 200 litros de gasolina com o mesmo valor usado para se adquirir uma garrafa de meio litro de água mineral em um camelô do centro de Caracas, algo como US$ 0,20. Nessa mesma Venezuela, com um salário mínimo compra-se menos do que 5 kg de açúcar. Ou dez tubos de pasta de dentes de 150 ml. Não é simples entender como o país com a maior reserva de petróleo do mundo pos-
sa estar se aproximando perigosamente de uma catástrofe humanitária por falta de alimentos e remédios. E as respostas não se encontram simplesmente em um modelo econômico que afastou o capital externo, tratou de regular todos os passos do processo produtivo e deu pouca importância ao controle da inflação e das contas públicas. Trata-se de uma conjunção de fatores que tem na origem a fartura petrolífera venezuelana que, ao longo do último século, fez com que o país vivesse momentos de extrema abundância e crises profundas. A indústria petroleira venezuelana comemorou um século em 2014. Passou a florescer com vigor a partir do fim da Primeira Guerra. Com uma vasta reserva de fácil acesso, já em 1928 o país havia se tornado o terceiro maior produtor — atrás apenas dos Estados Unidos e da União Soviética — e o maior exportador de petróleo do mundo. Em 1935, quase 92% de suas exportações estavam concentradas na indústria petroleiSexta-feira, 12 de agosto de 2016
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