Sexta-feira, 25 de agosto de 2017 - Ano 18 - Nº 875
EU& FIM DE SEMANA
AS MARCAS DO TERROR
Apesar de derrotas militares, Estado Islâmico permanece forte, atrai jovens para a causa e diversifica alvos e táticas em busca de impacto midiático
REPORTAGEM DE CAPA
O terror renovado O Estado Islâmico sofre derrotas no Iraque e na Síria, mas isso pouco mudou o cenário: o grupo terrorista segue ativo e diversificando alvos, como ocorreu em Barcelona. Texto e fotos: Yan Boechat, para o Valor, de Mossul e Aleppo
Casal caminha pelos escombros da cidade antiga de Aleppo, destruída pelos bombardeios dos caças russos e sírios nas batalhas contra grupos ligados a Al-Qaeda e o Estado Islâmico
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bdulah Abdulah, um senhor septuagenário de cabelos ralos e uma vistosa barba branca, ainda se lembra bem de quando viu a grande fila de pickups trazendo homens armados com rifles AK-47 e bandeiras negras cruzar as avenidas de Mossul. Era um dia quente de junho de 2014 e a temperatura chegava perto dos 50°, como de costume nesta época do ano nas planícies do deserto de Nínive. Ele, como boa parte da população da segunda maior cidade iraquiana, foi para as calçadas observar a chegada dos combatentes que haviam, horas antes, ex-
pulsado as Forças Armadas Iraquianas da cidade com inesperada facilidade. “Foi um dia feliz, me lembro bem de todos comemorando. Estávamos nos sentindo livres novamente, a vida sob o domínio do exército foi muito difícil”, diz. Dentro de sua barraca em um dos inúmeros campos de refugiados instalados ao redor de Mossul, ele parecia recordar com prazer aquele dia que ficou marcado na história. “Foi um dia feliz”, repete. Abdulah diz que, aos poucos, foi percebendo o caráter fascista e opressor do grupo que tomara o poder em Mossul. As execuções em praças públicas, os castigos físicos Sexta-feira, 25 de agosto de 2017
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por delitos tão pequenos quanto fumar ou deixar de ir à mesquita em uma das cinco orações diárias, conta ele, foram mostrando que os mossulis estavam apenas sob uma nova forma de tirania. Ele, como praticamente todas as centenas de milhares de pessoas que agora vivem nos campos de refugiados no Norte do Iraque, garante jamais ter apoiado o Estado Islâmico (EI). Diz, até, que atuou nas sombras para enfraquecê-lo quando a guerra para expulsá-lo de Mossul se aproximava, no fim do ano passado. “Eu e meus amigos passávamos informações escondidos para o exército”, afirma, temeroso de que possa dar a impressão de que um dia foi simpatizante do grupo terrorista. Apesar disso, o senhor, que até o início da guerra era dono de um pequeno mercado de materiais de construção, tem dificuldade em determinar qual o momento mais duro vivido pela população de Mossul na última década. “Quando os soldados do exército chegaram em 2008 com os americanos para lutar contra a Al-Qaeda foi um período muito duro”, afirma. “E quando os americanos se foram e ficaram apenas os soldados xiitas, as coisas pioraram. Matavam, roubavam, nos extorquiam, torturavam sem limite. Por isso as pessoas foram para as ruas comemorar a chegada do Daesh”, afirma Abdulah , sob o olhar assustado da mulher, usando o acrônimo em árabe para se referir ao Estado Islâmico. Após um silêncio e trocas de olhares com a mulher, Abdulah chega a um veredicto. “O Daesh foi pior, e agora as coisas são diferentes, o exército nos respeita, nos trataram muito bem quando chegaram ao meu bairro”, diz, repetindo a máxima defendida por Bagdá de que, agora, o exército, majoritariamente xiita, e a população local de Mossul, primariamente sunita, veem-se apenas como iraquianos, sem divisões. A propaganda estatal, no entanto, não foi suficiente para evitar que as tensões sectárias que marcam o Iraque desde a queda de Saddam Hussein (1937-2006) transbordassem para a barbárie que assolou o país nos anos que se seguiram à invasão americana, em 2003. Enquanto as batalhas ainda ocorriam nos últimos bolsões dominados pelo Estado Islâmico (EI), no mês passado, corpos de civis executados com tiros na cabeça e com as mãos amarradas para trás eram vistos com frequências nas ruas da cidade. Durante os primeiros meses da guerra, cadáveres semidevorados por cães eram pendurados nos postes para aterrorizar a população e bandeiras xiitas continuam espalhadas por esquinas e prédios da cidade, apesar dos protestos dos moradores. Denúncias de tortura, extorsão, estupro por 6
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Casos como o de Barcelona, Londres, Paris e outras cidades europeias atacadas pelo Estado Islâmico recentemente tendem a aumentar parte dos militares xiitas contra a população sunita se acumulam às centenas. Em um estudo divulgado no mês passado, a Anistia Internacional concluiu que havia fortes indicativos de que as forças governamentais iraquianas tenham cometido crimes de guerra contra a população civil em Mossul. De acordo com o levantamento, soldados iraquianos teriam violado repetidas vezes as leis humanitárias internacionais. “O número de civis mortos pelas ações do exército iraquiano em Mossul talvez jamais sejam conhecidos”, conclui o levantamento. A Anistia Internacional estima que apenas em ataques aéreos realizados pela coalizão internacional liderada pelos EUA e pelo uso de artilharia pesada ao menos 5,8 mil civis foram mortos na parte Oeste da cidade entre fevereiro e junho. “Os números podem ser maiores por causa das dificuldades em se monitorar o número de vítimas civis nesta batalha”, diz o estudo “A Qualquer Custo: A Catástrofe Civil em Mossul”. Nos dias que antecederam o fim da guerra contra o EI, tanto o exército iraquiano quanto a coalizão americana adotaram a estratégia de bombardear áreas densamente povoadas. O objetivo era reduzir o número de baixas que certamente ocorreriam em um ambiente de ruelas estreitas, becos e casas amontoadas umas entre as outras, além de outros obstáculos urbanos que dificultariam a conquista de posições. Como resultado, a cidade antiga de Mossul, na margem direita do rio Tigris, já não existe mais. Transformou-se em amontoado de destroços, crateras, e ruínas, onde centenas, senão milhares de pessoas, a maior parte delas civis, perderam a vida. “Por que estão fazendo isso conosco? Não apoiamos o Daesh, apenas fomos dominados por eles”, dizia Fatimah, uma mulher de 32 anos que conseguiu escapar dos franco-atiradores do EI e das bombas iraquianas. “Estão todos mortos lá, as bombas
caem dia e noite, sobrevivemos porque nosso porão é forte, mas estão matando a todos”, dizia ela, com um filho de 10 meses no colo e mais duas crianças a lhe seguir. Sem o marido, passou a ser vista com desconfiança pelos soldados que recepcionavam os civis que conseguiam fugir das áreas ainda dominadas pelo EI. “Esta é mulher de um Daesh, consigo sentir pelo cheiro”, dizia Mahmoud Salman, capitão da 9 a Divisão do Exército Iraquiano e responsável por levar os refugiados a centro de triagem, a centenas de metros dali. “O statu quo político e socioeconômico que permitiu o nascimento e o florescimento do Estado Islâmico não foi alterado. Permanece e me surpreenderia se esse movimento não retornar com força ou evoluir para algo ainda mais extremado”, diz Kamran Bokhari, professor do Departamento de Segurança e Política da Universidade de Ottawa, no Canadá, e analista sênior da consultoria Geopolitical Futures. Autor do livro “Political Islam in the Age of Democratization” (O Islã Político na Era da Democratização), Bokhari diz acreditar que as vitórias militares apenas servirão para que o EI deixe de ser um protoEstado, controlando vastas áreas no Iraque e na Síria. “O apoio local e a capacidade de se integrar à sociedade permanecerá. Isso não tem relação apenas com a religião”, diz. “A religião é a questão menos importante nessa equação, e o EI continuará capaz de atrair jovens não só no Oriente Médio, assim como em outras partes do mundo, como na Europa e na Ásia.”
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s atentados em Barcelona e na Rússia, no dia 17, mostram que o EI não só segue atraindo integrantes para a causa como permanece com capacidade de articulação internacional complexa. Com as derrotas militares em Mossul, sua capital de fato, e a eminente queda de Raqqa, na Síria, sua capital simbólica, o grupo deixará de ter as características de uma organização que tinha objetivos de criar um Estado, segundo analistas. “Ainda haverá batalhas no Iraque e na Síria para podermos afirmar que o EI não é mais um protoEstado”, diz o ex-coronel das Forças Especiais Americanas e professor da Universidade de Norwich. “A tendência é que eles se tornem um movimento clássico do terrorismo, muito semelhante ao que era a Al-Qaeda”, diz ele, ex-consultor militar do Exército Iraquiano. Isso significa, sobretudo, diversificação de alvos e operações em menor escala militar, mas com apelo midiático. Por isso, casos como o de Barcelona, Londres, Paris e outras cidades europeias atacadas pelo EI recentemente tendem, na verdade, a
crescer. Bem articulado e utilizando maneiras mais simples de infligir pavor, com armas tão simples quanto um automóvel, os ataques têm se mostrado virtualmente impossíveis de serem evitados. Principalmente porque há mão de obra vasta para realizá-los nos países ocidentais. E isso não ocorre apenas porque muitos europeus que foram para o Oriente Médio retornaram à Europa dispostos a realizar ataques. Nas grandes cidades repletas de imigrantes ou filhos e netos de imigrantes de antigas colônias, há enorme quantidade de jovens que vivem à margem da sociedade e têm se mostrado alvos fáceis dos extremistas. Os ataques, no entanto, não são apenas um problema europeu ou ocidental, de forma mais ampla. Apesar de não ganharem o mesmo destaque, as áreas que um dia foram dominadas pelo EI também têm sido vítimas sistemáticas de ataques terroristas. Pesquisa do Centro de Estudos no Combate ao Terrorismo da academia militar americana de West Point catalogou 1,5 mil ataques terroristas clássicos em apenas 16 cidades em que o EI foi expulso no último ano. “Apesar das conotações positivas da liberação de cidades no Iraque e na Síria, isso não significou uma melhora nas condições de segurança para aqueles que vivem nessas regiões”, diz o estudo. O surgimento do EI e sua rápida expansão no Norte do Iraque e na Síria está ligado a dois acontecimentos cruciais e desestabilizadores no Oriente Médio, ocorridos em momentos distintos do último século. O mais recente deles é a invasão americana do Iraque, que alterou de forma profunda e abrupta o equilíbrio das forças no país. Até 2003 o país era comandado por um ditador que representava a minoria religiosa do país. Saddam era sunita e o seu centro de poder orbitava exatamente em Mossul, o epicentro do enclave sunita em um país onde cerca de 65% da população é xiita. Ao longo dos quase 40 anos que Saddam esteve efetivamente no poder, os sunitas foram largamente favorecidos. Saddam fez parte de uma geração de ditadores que tentaram suprimir o islã político e reforçar a ideia de identidade nacional e pan-arabismo, colocando, com extrema brutalidade, as diferenças sectárias em segundo plano. Ser iraquiano, ao longo de seu governo, era mais importante do que ser xiita, sunita ou cristão. Quando algum grupo tentava destacar-se por suas características, como os curdos, Saddam foi implacável. A mesma lógica foi aplicada com maior ou menor intensidade em países como a Líbia, o Egito, a Síria e a Tunísia, principais representantes do movimento Baath, que dominou a região até recentemente. São os países que vivem os momentos mais turbulentos nesta segunda década do século XXI. “Apesar do discurso nacionalista, a maior par-
Família de sírios retorna a Aleppo pela primeira vez em três anos para checar as condições de sua casa, destruída pela guerra
Soldado das Forças Especiais Iraquianas reza na Grande Mesquita de Mossul
Soldado com máscara na retomada de Mossul Sexta-feira, 25 de agosto de 2017
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te desses governos tentou impor suas identidades sectárias nos Estados-nação nascidos após o fim do Império Otomano”, diz o professor Ihsan Yilmaz, chefe do Departamento de Estudos Islâmicos e Interculturais da Universidade de Deakin, na Austrália. “Saddam não foi diferente.” Na tentativa de conquistar rápido apoio popular, os EUA trataram de elevar ao poder no Iraque a maioria xiita. Em 2006, apenas três anos após a invasão, Nouri Al-Maliki foi eleito o primeiro presidente iraquiano após Saddam. Com o país envolto em guerra sectária entre xiitas, que agora dominavam o país, e os sunitas, que haviam perdido os postos-chave de poder e recursos, Maliki adotou políticas mais desestabilizadoras, ampliando as diferenças sectárias. “Nesse momento as fundações para o surgimento de movimento como o EI já estavam colocadas”, diz Kamran Bokhari. “O mais impressionante é imaginar que foi um sujeito obscuro no mundo do terrorismo, com pouca influência na Al-Qaeda, e limitado conhecimento religioso quem criou os alicerces para o que viria a ser a maior organização terrorista do mundo”, diz o professor da Universidade de Ottawa. Bokhari se refere a Abu Musab al-Zarqawi, um pequeno delinquente jordaniano que se radicalizou na década de 80 em uma prisão de Amã e que se transformou no líder da Al-Qaeda no Iraque em um golpe de oportunismo e sorte. Fascinado por Osama Bin Laden após o 11 de Setembro, Zarqawi buscou aproximar-se do líder da Al-Qaeda ainda no Afeganistão, sem sucesso. Bin Laden, naquele momento, o considerava apenas mais um fanático despreparado a lhe seguir. Com as ameaças de invasão americana no Iraque, Zarqawi seguiu para o Norte do país, onde montou um campo de treinamento. Sem sucesso em recrutar iraquianos ou receber financiamento para a causa jihadista, sua operação era vista como amadora tanto por Bin Laden como pela própria CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos. Foi o então secretário de Estado americano Colin Powell quem elevou Zarqawi ao estrelato no mundo do terror. Em seu discurso na ONU defendendo a invasão americana sem o apoio do Conselho de Segurança, Powell citou o pequeno campo de treinamento do jordaniano no Norte do país como prova de que Saddam tinha ligações com a Al-Qaeda. “Quando assistimos à fala na TV, tomamos um susto, jamais havíamos afirmado aquilo nos relatórios enviados à Casa Branca”, disse, anos depois, Nada Bakos, a então analista da CIA responsável por abastecer Powell com as informações sobre o grupo de Bin Laden. Zarqawi explorou, como ninguém no mundo islâmico, as tensões sectárias que permaneciam latentes na região. A guerra, a partir daquele momento, não era mais ape8
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O Centro de Estudos no Combate ao Terrorismo catalogou 1,5 mil ataques terroristas em 16 cidades em que o EI foi expulso no último ano nas entre fiéis e infiéis, muçulmanos ou cruzados. Para conquistar força, para expandir sua causa, ele levou ao extremo os ensinamentos wahabitas. Aquele que não seguir estritamente os ensinamentos de Maomé, ou a interpretação wahabita dos ensinamentos do profeta, é um inimigo. Os xiitas se transformaram, claro, em seu alvo preferencial. “Zarqawi é o grande arquiteto da guerra sectária que varreu o Iraque nos anos que se seguiram à queda de Saddam”, disse Nada. Musab al-Zarqawi é o elo com o segundo e mais antigo dado fundamental para o surgimento do Estado Islâmico: o domínio da península arábica pelos sauditas e a expansão global de sua interpretação do islã. A Arábia Saudita é um país novo, foi criado oficialmente em 1932, quando os sauditas, um clã familiar historicamente baseado na região central, desértica e pobre da península, finalmente consegui unificar, ao custo de muitas guerras, a região. A história da Casa de Saud está intrinsecamente ligada ao wahabismo, uma corrente do islamismo extremamente conservadora e intolerante surgida na metade do século XVIII na região central da península, muito perto de onde hoje fica Riad, a capital do país. Ela nasceu a partir das interpretações de um clérigo chamado Muhammad ibn Abd al-Wahhab, que acreditava ser necessário que os muçulmanos voltassem a viver como Maomé, no século VII. A aliança com os sauditas permanece até hoje e, a partir da década de 50, com a entrada de bilhões de dólares nos caixas do país por conta das exportações de petróleo, o wahabismo, até então confinado a uma região muito pequena da península, passou a ser difundido no mundo sunita com o financiamento de mesquitas, escolas, universidades e bolsas de estudo. “Em última análise, o ressurgimento do islã político em sua forma mais extrema é resultado do fracasso do pan-arabismo e do nacionalismo árabe”, diz o professor Juame Castan Piños, da Universidade do Sul da Dinamarca, que tem se
especializado em estudar a formação e desintegração de Estados e a construção de identidades nacionais. “O sectarismo sempre esteve ali, mas resumir o Estado Islâmico apenas por isso é simplificar demais, há questões muito mais profundas que necessariamente não estão ligadas à religião ou etnia”, diz. O escritor e pesquisador sírio Talal El-Atrache é outro que tenta reduzir a importância das tensões sectárias como causa prioritária para o surgimento do Estado Islâmico e processo de desintegração por qual passam os países do Oriente Médio. “É preciso lembrar que o conceito de identidade nacional nos países do Oriente Médio, em especial no levante, é algo muito novo”, diz. “Ela só vai surgir com o fim do Império Otomano e a criação artificial dos países que existem hoje, como a Síria, o Líbano, a Jordânia e o Iraque, pela França e pela Inglaterra no tratado de Sykes-Picot”, diz, do Canadá, onde atua como pesquisador na Universidade de Toronto. “Mais do que tudo, o sectarismo está sendo usado como ferramenta para dividir os países, para enfraquecê-los, de acordo com interesses específicos e, em geral, externos”, diz ele, referindo-se às crescentes intervenções sauditas e iranianas tanto nas guerras no Iraque quanto na Síria. Fazia frio e uma chuva fina caía sobre Mossul quando o motorista e tradutor Makeen Mustafá entrou nos escombros da mesquita do profeta Jonas pela primeira vez, há quase uma década. Conta a história que ali estava os restos mortais do homem que passou três dias e três noites no estômago de um grande peixe ao se recusar a cumprir uma tarefa divina. Apesar de ser uma figura importante para os muçulmanos, assim como quase todos os profetas do Velho Testamento da Bíblia, os seguidores do wahabismo consideram adoração obras arquitetônicas ou pictóricas que venerem qualquer figura humana. Sobre os escombros da antiga mesquita, Makeen chorou. “Esses árabes sunitas são uns animais, deviam todos morrer, destruíram tudo”, dizia, ao relembrar os dias de infância que passara em Mossul. Makeen é fruto dos tempos em que o sectarismo tinha papel secundário na cultura iraquiana. Seu pai é curdo e sunita, sua mãe árabe e xiita. Em meio ao caos que assola o país, tudo o que quer é desvencilhar-se das tensões sectárias que marcam tão profundamente o Iraque neste momento e que tem o potencial de desintegrá-lo. “A saída é nos separarmos desses animais, ficarmos livres deles, o Iraque não existe mais”, dizia, a observar a cidade destruída. Ele, como boa parte dos iraquianos que vivem no enclave curdo no Norte do país, quer a separação e a criação de um novo Estado na região, o Curdistão.
No dia 25 de setembro os cerca de 5 milhões de curdos, Makeen Mustafa incluído, vão às urnas votar em um referendo para saber se querem ou não separar-se em definitivo do Iraque. O resultado já é conhecido antes mesmo de a votação acontecer, mas o apoio popular à independência não terá efeito prático neste momento. Estados Unidos, Irã, Rússia e Turquia se opõe à ideia, assim como o próprio poder central de Bagdá. “É algo pouco provável que aconteça, mas, se eles conseguirem separar-se, o Iraque irá se desintegrar e novamente teremos uma guerra sangrenta na região para definir qual território ficará com os xiitas e os sunitas”, diz William Scott Lucas, professor da Universidade Birminghan. A dissolução iraquiana pode ser uma possibilidade remota, mas as divisões sectárias que permitiram a criação de um protoEstado do tamanho do EI mostra que a ideia de Estado nacional está absolutamente enfraquecida em um Oriente Médio em colapso. “O Estado Islâmico, ao fim e ao cabo, mostra algo mais profundo, uma negação dos movimentos islâmicos aos Estados nacionais criados após o Sykes-Picot. Eles estão em crise profunda, nunca estiveram tão em crise como agora”, diz Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC de São Paulo. Ele, no entanto, não vê o Estado Islâmico como resultado de um sectarismo religioso. “É um sectarismo ideológico.” David Witty, o ex-coronel das Forças Especiais americanas, concorda com essa tese. Para ele, o avanço do Estado Islâmico e seu discurso — extremamente sedutor nas áreas mais pobres do Oriente Médio e entre jovens que não conseguiram se integrar aos países europeus para onde seus pais imigraram — têm uma relação mais política do que religiosa. “O sectarismo sempre esteve presente, e não acredito que ele seja a questão principal aí”, diz. “O que vimos foi um crescimento de formas mais conservadores do islã, como o wahabismo, que acabaram ganhando musculatura como uma forma de reação aos movimentos imperialistas ocidentais”, diz. Um levantamento publicado pelo Departamento de Contra Terrorismo das Nações Unidas publicado no início de agosto embasa, de certa forma, as opiniões de Nasser e Witty. De acordo com o estudo, a maior parte dos jovens que deixaram a Europa para lutar no Iraque e na Síria tinham pouco conhecimento do islamismo e vinham de famílias pobres e desestruturadas instaladas em bairros das periferias de cidades com grande número de imigrantes. A maior parte deles estava desempregada quando decidiu se juntar aos jihadistas e poucos haviam chegado ao ensino superior. “As questões religiosas parecem ter tido um papel pequeno na decisão
Idosa conta com a ajuda de populares para conseguir atravessar ponte destruída por ataque aéreo americano em Mossul
Soldados iraquianos descansam após batalha perdida para o Estado Islâmico
dessas pessoas em se juntar ao Estado Islâmico”, concluiu o estudo. Nos campos de refugiados que abrigam mais de 600 mil pessoas no entorno de Mossul, ninguém tem o direito de sair das áreas demarcadas por altas cercas de arame farpado. Para tarefas extremas, como enterrar um parente, dar a luz à uma criança ou ser levado ao hospital em estado de emergência, são necessárias diversas autorizações, em vários níveis. “Veja, não queremos criar um campo de concentração, mas como saberemos quem aqui é do Estado Islâmico ou não”, dizia Muhamad Al Tamin, gerente de um dos campos instalados dentro do território curdo, a pouco mais de 30 km de Mossul, no fim de maio, diante de um
Morados andam pelos destroços de Aleppo
grupo de mulheres que protestavam por não ter médicos para atender os filhos doentes. “Essas pessoas viveram com eles por três anos, muitos sofreram lavagem cerebral. Essas ideias não somem assim”, diz. Mesmo que tenham direito a sair, boa parte dos refugiados de Mossul não terão para onde ir. A cidade está destruída e ninguém sabe ao certo quem e quando casas, ruas, escolas, hospitais, enfim, tudo será reconstruído. “As pessoas estão cansadas, somos tratados como animais aqui”, dizia uma das mulheres, que protestavam na porta do campo de Hasan Shan. Difícil imaginar terreno mais fértil para que um discurso messiânico volte a florescer. (Colaborou Thaís Freire) I Sexta-feira, 25 de agosto de 2017
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