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Direitos autorais, venda e distribuição cedidos pelo autor à Planeta Azul Editora www.planetazuleditora.com.br | e-mail: planetazul2014@yahoo.com.br Copyright © 2014 by R. C. Paulabati Todos os direitos desta edição reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por qualquer processo eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização expressa do autor. ISBN: 978-85-8255-194-3

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...Minha pele ardia como num protesto. Não era minha pele que se impregnara dele, era minha mente, e eu não sabia como lavar sentimentos. Não quis me apaixonar para evitar a dor, agora morreria se não vivesse a paixão...

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Dedicatória

A meus filhos: Fernando, Felipe e Frederico, fonte constante de alegria em minha vida. Ao meu marido, Fernando Luiz, que durante todo o processo me incentivou, nos meus momentos de desânimo. À memória de meu pai, Édio, que amava ler, e me ensinou amar o fantástico universo dos livros.

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Agradecimentos

A Deus, que me capacitou e cuidou de mim, nos dias e noites desse longo processo criativo, provendo-me com ideias e sentimentos. A meus filhos, pelo apoio e confiança depositados em mim, em especial a Frederico, meu filho mais novo, que me incentivou, insistiu, e acreditou que eu poderia realizar meu antigo sonho: escrever um livro. A todos que se dispuseram a ler meu original, por suas críticas e incentivos. Obrigada, Ana Carla Lourenço Ximenes, Ana Maria Perente, Marinalva de França Holanda, Felipe Batista Emídio, Frederico Batista Emídio, que ocuparam parte de seu precioso tempo, nos capítulos desse livro. A todos com quem compartilhei ideias, discuti parágrafos, e me escutaram e incentivaram, fazendo com que eu prosseguisse com ânimo renovado rumo à finalização da obra.

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Sumário

Capítulo 1••••••••••••••••••••••••• 13 Capítulo 2••••••••••••••••••••••••• 27 Capítulo 3••••••••••••••••••••••••• 42 Capítulo 4••••••••••••••••••••••••• 56 Capítulo 5••••••••••••••••••••••••• 68 Capítulo 6••••••••••••••••••••••••• 82 Capítulo 7••••••••••••••••••••••••• 99 Capítulo 8•••••••••••••••••••••••• 111 Capítulo 9•••••••••••••••••••••••• 121 Capítulo 10••••••••••••••••••••••• 130 Capítulo 11••••••••••••••••••••••• 144 Capítulo 12••••••••••••••••••••••• 160 Capítulo 13••••••••••••••••••••••• 170 Capítulo 14••••••••••••••••••••••• 183 Capítulo 15••••••••••••••••••••••• 195 Capítulo 16••••••••••••••••••••••• 207 Capítulo 17••••••••••••••••••••••• 221 Capítulo 18••••••••••••••••••••••• 234 Capítulo 19••••••••••••••••••••••• 249 Capítulo 20••••••••••••••••••••••• 259 Capítulo 21••••••••••••••••••••••• 270 11

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Capítulo 22••••••••••••••••••••••• Capítulo 23••••••••••••••••••••••• Capítulo 24••••••••••••••••••••••• Capítulo 25••••••••••••••••••••••• Capítulo 26••••••••••••••••••••••• Epílogo••••••••••••••••••••••••••

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Capítulo 1

Antônia,

Célia e Alfredo eram alegres, inteligentes e confiáveis. Trabalhávamos juntos e com o tempo nos tornamos bons amigos. Gostávamos de sair e nos reuníamos sempre para conversar. Nesses encontros sempre encontrávamos um assunto novo ou um tema a ser discutido e isso transformava nossas reuniões em animados debates. Não conseguia parar de pensar no discurso do último encontro, todos queriam provar sua teoria sobre os sentimentos e suas variações. Apesar de cada um ter sua convicção ninguém conseguia explicar as armadilhas da convivência. Como as pessoas se encontravam? Vidas se uniam em laços tão fortes que definiam um novo rumo? Todos os argumentos usados para decifrar o mistério dos relacionamentos não foram bastante para uma definição satisfatória para o intrínseco universo sentimental. Andaria a amizade de mãos dadas com as grandes paixões? Eu particularmente não acreditava. Tinha por meus amigos um amor sereno e as paixões eram ardentes, em nada lembravam a delicadeza da amizade. Nunca me apaixonara por ninguém, minha paixão era pela vida e assim amava a todos, não apenas um. Meu amor era tranquilo e minha paixão me libertava. Ainda tentando encontrar entendimento para os conflitos da alma e do coração, eu caminhava pela rua abarrotada. Observava as pessoas, e tentava criar uma história para cada. Teriam essas pessoas anônimas facilidade para entender os sentimentos e suas armadilhas? Sempre tive a mania de tentar descobrir como 13

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vive ou o que sente qualquer um que me chamasse a atenção. Isso me rendeu algumas amizades e algumas confusões. Olhava o burburinho da avenida, e não tinha como não lembrar da calmaria que era minha pequena cidade no interior. Não que eu não gostasse desse movimento, desse pulsar nervoso da cidade grande, mas a grande diferença sempre trazia as lembranças. Gostava dessa diversidade, divertia-me com comparações, observando vitrines, imaginando coisas. Apesar de todo movimento, toda pressa, todas as pessoas em seu eterno ir e vir, a confusão diária em minha volta, conseguia administrar minha solidão. Em meio à turbulência das ruas ainda conseguia ser eu mesma, com meus sonhos e convicções, e olhar a cidade em sua efervescência como quem olha uma tela, e dela tira suas conclusões. Sempre senti prazer em observar, comparar o outro, que eu não conhecia, mas se mostrava tão igual a mim e a todos. As pessoas, com suas histórias, passavam por mim, e eu as via como a mim mesma, e eram no dia a dia como uma companhia nesta grande cidade. Eu era só, mas não estava só. Não era solitária, estava em meio a uma multidão e interagia com essa ou aquela pessoa em algum momento. Este estado de solitude me fazia bem e me protegia de envolvimentos que pudessem me ferir, dando-me alegria e me trazendo amigos desinteressados. E eu era feliz com meus amigos. E a cidade corrida, turbulenta e curiosa, era também fascinante. Era uma tarde quente e tranquila, estávamos na primavera, mas a temperatura era uma mostra do verão que viria. Acabara de sair do serviço e caminhava pela galeria. Ia sem pressa. Aproveitando o fim da tarde, observando as pessoas. Havia um senhor de idade tomando café e uma criança birrenta lutando pelo carrinho na vitrine. Imaginei que o homem poderia ser um avô tranquilo acostumado aos desmandos de uma criança mimada. Uma mulher caminhava à frente apressada, mas a banca de revistas lhe freou a pressa. Era divertido todo aquele movimento e tentar decifrar cada rosto era um deleite para minha mente curiosa por desvendar segredos. Andei pelas vitrines. Aspirei o perfume das flores à venda na banca pintada de cores fortes, e o cheiro de deliciosos doces 14

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e petiscos pelo ar. O calor me fez entrar na choperia, precisava de um refrigerante. Enquanto escolhia as guloseimas notei que estava sendo observada por um homem parado junto ao balcão. Aproximou-se e me cumprimentou muito gentilmente, comentou sobre o calor e perguntou se poderia me fazer companhia. Olhei para o estranho que rapidamente se explicou, dizendo que estava há pouco tempo na cidade, não conhecia muita gente e só queria conversar um pouco, enquanto tomava uma coca bem gelada. Achei uma maneira simpática de tentar se aproximar e seria interessante partilhar um refrigerante gelado na tarde quente com alguém, que apesar de estranho se mostrava gentil. — Tudo bem. — Disse àquele estranho, que já pedia duas cocas, dois salgados e me convidava a sentar. — Olá. — Disse sorrindo. — Meu nome é Pedro. E o seu? — O meu é Catarina. — Respondi observando aquele rosto, que ao sorrir formava duas aspas em volta da boca. Falamos sobre o tempo, comentamos sobre o lugar, e sobre o sabor delicioso dos salgados. Pedro tinha uma voz grave, forte. Era agradável e falava de um jeito cativante, arrastando os erres das palavras. Falou da sua vinda para São Paulo. Estava aqui há pouco tempo, era músico e pretendia expandir sua carreira. Fazia shows noturnos e estava negociando com a administração da galeria. Durante o dia dava aulas num conservatório. Enquanto falava, eu o analisava. Era alto, suas pernas eram bem definidas, vestia um jeans justo e uma bata fina estilo indiano, que lhe dava um ar despojado. Tinha os cabelos longos até os ombros, amarrados na nuca, e um belo rosto com grandes olhos escuros e expressivos, marcado por um tom azulado da barba feita. Usava também delicados brincos. Trazia um estojo que guardava um instrumento. Eu que sempre amei a música, fiquei a imaginar a trajetória daquele belo músico pelos caminhos delicados dos acordes. Os músicos, para mim, tinham uma beleza diferente, como se absorvessem a sutileza das canções e se tornassem encantadores em sua natureza musical. O homem diante de mim era delicado, tinha um jeito especial de olhar, e senti um estranho 15

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formigamento na pele quando, por um momento, ele me observou cuidadosamente, como se eu fosse um código a ser decifrado. Meu estranho companheiro tinha um charme especial que me prendia o olhar, tinha uma aparência máscula, sem deixar de ser delicado, quase feminino, e certo requinte no modo de falar. Conversamos durante algum tempo. Ele falou de suas expectativas de trabalho, de fazer amizade, da coragem para continuar sua busca nesse lugar estranho, sorrindo de um modo tão simpático, que me senti como se aquele homem fosse um velho conhecido. E foi como tal que nos despedimos, satisfeitos pela companhia naquele fim de tarde. Fui para o ponto do ônibus. Apesar de sua demora, ainda preferia o ônibus ao metrô. No ônibus ainda era permitido um movimento mínimo naquele horário, enquanto no metrô não tinha espaço para respirar. Fiz o percurso pensando naquele jovem que buscava começar uma nova etapa de sua vida, numa cidade grande como essa. Esperava que ele conseguisse atingir com sucesso seus objetivos. Certamente conseguiria, tinha um ar sério, decidido, determinado. Aqueles momentos agradáveis, conversando com o até então desconhecido músico, fizeram-me esquecer o cansaço do dia na loja de departamentos, onde trabalhava como gerente. O dia não tinha sido fácil. Meus pés reclamavam por relaxamento, mas ainda tinha um bom trecho a percorrer, e o trânsito como sempre não ajudava. Era um emaranhado de carros brigando por um espaço no rotineiro horário de pico, quando todos tentavam chegar o mais rápido possível em casa depois de um longo dia de trabalho. Quando me via parada em meio a esse transito caótico, sentia saudade da vida no interior. Lá, andava-se a pé ou de bicicleta. Os serviços geralmente eram próximos das residências, as avenidas eram sempre tranquilas. Engarrafamentos não existiam, eram conhecidos de ouvir dizer. As pessoas caminhavam longas distâncias sem estresse, e toda essa calmaria contribuía para que todos se conhecessem, se cumprimentassem cordialmente chamando uns aos outros, muitas vezes, pelo nome. O inverso daqui, 16

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onde andávamos sempre apressados. A convivência aqui era mais difícil, todos sempre muito ocupados e a confiança era muito frágil. As pessoas pareciam sempre contidas. Apesar de tudo isso, aprendera a amar essa cidade grande, que pulsava como um grande coração, com seu movimento constante noite e dia. Apesar da correria, do grande vai e vem, aprendi a gostar de viver aqui, em meio a essa turbulência urbana. O trânsito continuava lento, parando e andando, serpenteando pela avenida. Sempre que isso acontecia, para não me estressar, dedicava-me a repassar o dia, a observar pessoas. Revia os clientes, uns apressados, outros caminhando tranquilos observando detalhes ou simplesmente olhando desinteressadamente, como se a vitrine fosse um ponto de fuga. Para cada um eu criava uma rotina, imaginando o seu dia a dia. Pensava na mulher que não sabia combinar as cores e não gostava do que via no espelho, tinha um conflito com a silhueta, era uma mãe que não conseguia se libertar dos afazeres domésticos e enfrentava cobranças quanto à maneira de se vestir. Precisava de ajuda. A mocinha que não decidia pela cor do batom, este estava escuro, aquele claro demais, não conseguia gostar de nenhum. Teria um encontro com aquele garoto da faculdade, o tempo passava, não poderia se atrasar, mas antes precisava decidir pelo batom certo. Voltei para o trânsito que finalmente fluía, e logo estaria em minha rua antecipando o prazer de entrar num reconfortante banho. Morava numa rua tranquila do Tatuapé. Numa casa pequena e aconchegante, onde eu cultivava, num pequeno espaço, alguns vasos de flores e alguns temperos perfumados. Tinha pouco tempo para fazer com que permanecesse sempre organizada, mas de algum modo criei um ambiente com certo charme e personalidade. Entrei e liguei a luz, tirei os sapatos e me senti abraçada pelas minhas coisas. O relógio marcava vinte e uma horas, e os botões de rosas no jarro sobre o aparador estavam abertos e perfumados. Fiquei feliz por ver minhas rosas abertas e lindas. Gostava das flores no aparador, combinavam com os dois quadros na parede, duas cópias de um jardim impressionista. Sempre coloca17

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va flores ali, pareciam completar os quadros. Larguei a bolsa no sofá branco que ocupava grande parte da pequena sala e liguei a TV. Meu estômago reclamava, precisava comer alguma coisa. Tomei um longo banho. Enquanto sentia a água morna do chuveiro retomei minhas lembranças do dia. Pensei em Pedro e em sua conversa agradável que me deixou tão curiosa por saber sobre sua vida. Era delicado, e tinha uma elegância sedutora. Mais do que nas histórias criativas dos meus devaneios, eu queria conhecer mais sobre aquele jovem perdido no burburinho da cidade. Talvez fosse mais uma viagem da minha estranha diversão, mas eu havia ficado impressionada com o companheiro casual do meu fim de tarde. Era bem provável que nunca mais o visse, ou talvez o encontrasse um dia qualquer por acaso. Senti-me frustrada com esse pensamento. Então eu não encontraria mais aquele rosto simpático? Aqueles olhos escondiam um universo de acordes e uma natureza musical. Havia um grande leque de possibilidades para a construção de sua história... Em minha cabeça ouvi minha própria voz dizendo que agora sim era um devaneio e não tinha nada de criativo, um desconhecido ocupava meus pensamentos e eu gostaria muito de poder conversar com ele novamente. Para mim, era um fato novo e curioso. Nunca pessoas ocuparam tanto tempo minha mente em minhas viagens criativas. Nunca ocupava meus pensamentos com elas, simplesmente passavam, uma após outra, como os carros fluindo na avenida. Sempre achei divertido criar um enredo para cada uma. Cada pessoa tinha uma história que não me importava. Apenas me divertia imaginado coisas para enfrentar demoras no trânsito. Simplesmente passavam, cada uma em uma direção. Viravam uma esquina, atravessam um farol, e outras tomavam seus lugares na minha imaginação. Pedro foi o único que ficou na lembrança, talvez por ter se dirigido a mim. Tinha identidade, voz. Isso fez com que eu ficasse muito curiosa. Olhei o espelho, embaçado pelo vapor da água, passei a mão desenhando rabiscos e encarei meu rosto limpo me olhando. Gostei do que vi refletido, sentia-me bonita aos trinta anos. Para 18

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mim era normal olhar no espelho e gostar, era comum a todas as pessoas. Quem é que não se ama e se admira? Quem nunca fez caretas para um espelho? Todo espelho é mágico. Procurei uma marca de expressão, sempre tinha alguma para me lembrar de que o tempo passa e é implacável, o que também é normal. Pensei em muitas coisas a serem feitas e vividas, como ter filhos por exemplo, e me apaixonar... Quem sabe um dia. Tudo poderia acontecer. Escutei meu estômago reclamar. Passei óleo pelo corpo, aspirei seu perfume delicado, e me senti confortável, cuidada, segura, perfumada. Vesti o pijama e organizei o banheiro rapidamente. Troquei a toalha pendurada sobre a pia, arrumei o tapete no chão, desliguei a luz e saí para a cozinha. Meu estômago impaciente, cobrava uma refeição ainda que pequena. Inspecionei a geladeira e peguei tudo que podia ser transformado em um lanche rápido. Duas fatias de queijo e um resto de salada dentro de duas fatias de pão viraram um banquete, acompanhados de um gelado copo de leite. Pronto. Estava alimentada, meu estômago agradecido e eu pronta para dormir. Minhas refeições em casa eram sempre rápidas, sempre comia alguma coisa ao sair do serviço. Mas, às vezes, convidava amigos do trabalho para um jantarzinho em casa, geralmente quando as folgas coincidiam. Nessas ocasiões tomava coragem e entrava na cozinha disposta a fazer uma refeição completa. Voltei ao banheiro, escovei os dentes, fiz uma careta para o espelho e fui para o quarto. Precisava descansar para mais um dia de trabalho. Antes de dormir, voltei a pensar no músico que conhecera no final da tarde. Pela manhã olhei no relógio e ainda tinha algum tempo a meu favor. Tomei sem pressa o café da manhã, escolhi calmamente uma roupa para sair e me preparei para mais um dia na loja. Gostava de trabalhar ali. Era uma grande loja, atendia vários departamentos. Sempre gostei de movimento, era divertido observar o vai e vem das pessoas com seus variados interesses. Cada uma reagindo de um modo ao ver as roupas coloridas, os belos sapatos nas vitrines, o brilho do balcão das bijuterias. Havia os bons momentos na grande lanchonete da loja com guloseimas 19

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irresistíveis. Enquanto me arrumava, tentava deixar tudo em ordem do melhor modo possível. O telefone tocou. Era Alfredo, aflito, avisando que não poderia trabalhar. — O que aconteceu? Acalme-se Alfredo. — Meu irmão. Acabei de encontrá-lo caído no quarto. Está disfórico, febril e seus batimentos estão aumentados. Estou saindo para o hospital. — Vá Alfredo, depois dê notícias. Tudo ficará bem. Vá sossegado. Não era a primeira vez que isso acontecia. Alfredo vivia às voltas com as crises do irmão. Seu maior medo era que sofresse uma crise irreversível, cada vez o garoto ficava pior. Depois de observar se tudo estava mais ou menos organizado, saí para a rua. O dia estava abafado, um belo dia de céu sem nuvens e muito sol. Uma manhã radiante. Dias assim me enchiam de esperança, sentia-me forte, corajosa. Atravessei a rua, cumprimentei um homem que caminhava com seu cão e pensei em como gostaria de ter um cachorrinho. Infelizmente não tinha espaço, e passava muito tempo fora. Animais precisavam de cuidados, companhia, mimos. Eu gostava de cães, eram sempre amáveis, saltitantes, felizes, carinhosos, bons companheiros. Não teria como cuidar de um como merecia ser cuidado. Melhor não sacrificar o bichinho. Contentava-me com os poucos vasos da minha pequena área de serviço. O homem me sorriu gentil, o cãozinho balançou o rabo como se dissesse bom dia, e foi assim que me senti, cumprimentada por um cachorrinho. Andei rápido, para o ponto do ônibus esperando que não estivesse muito cheio; com o calor, um ônibus cheio seria bastante desconfortável. Durante o percurso planejei um modo de organizar o dia sem Alfredo. Resolvi ligar para Antônia. — Alô. Bom dia, Catarina. Algum problema? — Atendeu animada. — Bom dia querida. Está tudo bem. Estou a caminho. Alfredo ligou avisando que não vai. Está indo para o hospital nova20

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mente com o irmão. Gostaria que você ou a Célia observassem o setor dele até eu chegar, e organizar o atendimento. — Meu Deus, Catarina, será que ele está muito mal? — Perguntou aflita. — Não sei. Alfredo ficou de dar notícias. Estava muito nervoso. Daqui a pouco a gente conversa. Logo estarei aí. Desliguei o telefone e fiquei pensando no jeito repentinamente aflito de Antônia. Ao entrar na loja encontrei Antônia separando umas blusas no setor feminino. Veio ao meu encontro com ar preocupado. — Bom dia, Catarina. — Bom dia, Antônia. Alfredo não virá e preciso organizar o pessoal para que ele não faça muita falta. Ela me seguiu curiosa querendo saber o que estava acontecendo e não largou do meu pé, perguntando por detalhes que eu não sabia. Fomos até a lanchonete, tomamos um suco e então ligamos para Alfredo, mas ninguém atendeu. Preocupadas, tomamos o resto do suco e iniciamos nossa rotina. Antônia passou a manhã calada, pensativa, até mesmo desatenta. Visivelmente preocupada. Normalmente era muito falante, fazia a alegria do setor. Trabalhava na loja há pouco mais de dois anos. Logo que chegou, conquistou a todos com seu riso fácil, sua tagarelice. Almoçávamos no mesmo horário e desde então nos tornamos amigas. Aprendi a conhecer sua personalidade forte e seu jeito apaixonado de ver as coisas. Estive do seu lado quando rompeu um namoro de três anos. Não foi fácil fazer com que ela superasse o desânimo. Finalmente, um dia ela chegou toda animada, dizendo que havia deixado para trás a maré de fossa, e que daquele momento em diante ia aproveitar a vida. Não queria saber de mais ninguém, homem nenhum valia uma lágrima sequer. Nunca mais iria se apaixonar. Gostei de ver que ela havia conseguido superar a fase e fomos comemorar num barzinho à noite. Lá, entre outros amigos, conhecemos Alfredo, um jovem, magro, alto, de grandes olhos castanhos com sobrancelhas grossas que lhe davam um ar severo. Tinha um sorriso aberto que lhe marcava o canto da boca. Cabelos curtos e repicados que 21

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pareciam sempre atrapalhados, e lhe davam um charme especial. Era simpático e gentil. Encantador sem ser exatamente um belo rapaz, possuía um charme especial, que chamava a atenção e conquistava a simpatia das pessoas. Sempre que estava no bar se aproximava de nossa mesa e logo já fazia parte do grupo. Certa noite, estávamos falando de trabalho quando ele disse estar desempregado. Falamos sobre algumas vagas na loja e duas semanas depois lá estava Alfredo, fazendo parte do quadro de funcionários. Desde então, estávamos sempre juntos. Antônia se tornou muito próxima dele, transformou-se em uma espécie de confidente. Como eu, Alfredo morava no Tatuapé, vivia com os pais e um irmão mais novo, dependente químico, motivo de todas as suas preocupações. Seu pai era funcionário público aposentado e a mãe dava aulas à noite. Havia concluído seu curso de prótese e esperava conseguir montar seu próprio negócio. Até agora seu pai o ajudara, sabia que sempre poderia contar com ele, mas queria conseguir suas coisas por seu próprio esforço. Há alguns dias vinha tentando arrumar um espaço para montar seu laboratório. Acabara de vender seu carro, apesar dos protestos de sua mãe. Não quis aceitar a ajuda dos pais, eles já viviam gastando muito com o irmão, e já tinham ajudado muito durante o curso. Agora, conseguiria as coisas com seus próprios recursos. Se tudo caminhasse bem, logo estaria com o laboratório montado e sairia da loja. Tinha conhecimento com alguns dentistas com os quais teria uma parceria. Torcíamos por ele, ainda que fôssemos sentir muito sua falta. Sua companhia animava qualquer ambiente, estava sempre animado, gostava de música e de dançar. Para reforçar o orçamento, tocava piano num barzinho na zona Sul. Sempre o acompanhávamos nestas ocasiões, afinal estávamos sempre juntos. Dávamos a maior força para que montasse seu laboratório de prótese e obtivesse sucesso, mas esperávamos que não se afastasse de nós. Sempre teria que haver um tempinho para nossos encontros. O relógio marcava onze horas e o movimento havia aumentado. O setor de crédito fervilhava. As filas cresciam no caixa e Célia estava atarefada ao telefone fazendo cadastros de novos 22

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clientes. De vez em quando eu observava Antônia, e mais de uma vez a vi tentando falar ao telefone. Há muito não a via tão ansiosa, ela que levava tudo na brincadeira e estava sempre tranquila. A impressão que dava, é que tinha algo a mais acontecendo ela sabia e não queria comentar para não atrapalhar. Na hora do almoço eu iria tentar descobrir. No departamento masculino o movimento não era tão grande o que me deixou tranquila; assim, Alfredo não faria tanta falta. Estava tudo sob controle. Célia conseguiu se desvencilhar do crediário, e veio até a mim especular sobre o que estava acontecendo com Antônia. — O que houve que deixou Antônia tão aflita? — Perguntou olhando desconfiada para a amiga. Expliquei que estava preocupada com Alfredo, ele estava às voltas com o irmão. O garoto sofrera outra crise devido às drogas, e dessa vez a coisa havia sido bem assustadora. Alfredo não viria, estava no hospital, e não estávamos conseguindo notícias. — Nossa, que situação! Ele não tem sossego. Além do trabalho na loja, das apresentações no bar nos finais de semana para completar o orçamento, ainda tem que viver correndo com esse menino. Morro de pena dos pais dele. Alfredo anda com o tempo muito apertado e isso é desgastante. — Acho que é isso que preocupa Antônia, mas parece que tem algo mais que está deixando ela assim. — Precisava ficar assim tão angustiada? — Desde que falei sobre Alfredo, ficou assim. — Acho que ela está gostando dele — comentou Célia. — Será? — Tenho quase certeza; observe quando estamos juntos, só tem olhos para ele. Pode prestar a atenção. Ela pode não querer admitir, talvez por medo de sofrer tudo outra vez. Você se lembra do último relacionamento que teve? Mas alguma coisa tem. Vê como ela está angustiada, sem notícias dele? Fiquei pensando no que ela disse. Célia era muito centrada, parecia estar sempre vigiando, sempre atenta a todos que a rodeavam. Era como se conhecesse a fundo cada um de nós, 23

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percebia quando as coisas não estavam bem, só de olhar. Era solidária, companheira e apesar de parecer estar sempre de vigília, conseguia ser discreta e sabia bem o momento de abordar um assunto. Vivia um eterno conflito amoroso com um primo. Desde adolescentes se gostavam, mas o parentesco os impedia de ficarem juntos, e viviam às turras por isso. Fiquei imaginando se ela não tinha razão. Antônia estaria mesmo se apaixonando por Alfredo? E ele? Estaria também envolvido? Saíamos juntos de vez em quando e nunca observei nada que pudesse dar a entender que havia um namorico começando. Mesmo sendo tão espevitada Antônia nada deixou escapar dessa suposta paixão. Como Célia comentou, ela deveria estar mantendo isso escondido para se proteger de uma nova decepção. Mas e Alfredo, como se sentiria em relação a isso? Todo mundo tinha percebido que os dois estavam muito próximos. Às vezes, trocavam longas confidências, Antônia disse que ele confiava tanto nela que compartilhava todos os seus problemas. Aliás, os dois passavam muito tempo juntos, toda folguinha na loja, lá estavam os dois tomando um suco ou um café. Fiquei ansiosa pela hora do almoço. Gostaria que Célia estivesse conosco nessa hora, observadora como era, talvez percebesse se Antônia deixasse escapar algo. Voltei a me concentrar no trabalho, havia muito que fazer. Dei uma olhada para onde Célia estava. Ela entendeu e seguiu meu olhar até Antônia, que acabava de deixar de atender uma cliente, que se dirigia a outra vendedora. Pegou o celular e correu para o banheiro. Seria Alfredo ao telefone? Nem eu nem Célia podíamos sair para acompanhá-la estávamos presas ao telefone e ao computador. Olhei para o relógio. Ainda faltava um tempo para o almoço, olhei para o fundo da loja e nada de Antônia. Definitivamente naquela manhã as coisas não estavam indo bem, havia uma ansiedade no ar. Dias assim pareciam não ter fim. Observei que Antônia ainda não havia voltado. Alguma coisa deveria estar acontecendo. Consegui um momento livre, corri até o banheiro. Abri caminho entre clientes e atendentes, dei uma olhada de relance para Célia, mas ela andava ocupada com um homem que se atrapalhou com os documentos necessários para o crediário e não viu quando tentei lhe dar um sinal. 24

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Continuei rumo ao corredor. Empurrei a porta vai e vem e andei apressada para o sanitário feminino. Ao entrar, encontrei Antônia sentada, segurando a cabeça entre as mãos, o celular no colo. Na tela uma mensagem: “está tudo bem, meu irmão já foi medicado. Quase teve uma overdose. Agora está em observação. Depois te ligo”— Antônia estava paralisada como se estivesse em choque. — O que está acontecendo? — Perguntei. Ela me olhou e desabou a chorar. — A falta de Alfredo não é só pelo irmão. Ele está aproveitando o resto do dia para resolver os assuntos do laboratório. — Disse. Percebi que estava transtornada. Tudo caminhava para que ele conseguisse, em pouco tempo, arrumar o lugar apropriado para montar o laboratório e ela ficava daquele jeito. — O que é que tem de errado nisso? — Perguntei. — Todas nós sabemos que esse é o objetivo dele e se tudo está dando certo o que a preocupa tanto? — Na hora do almoço falaremos sobre isso. — Disse se levantando, lavando o rosto, retocando o batom e seguindo para a porta. — Não se preocupe, está tudo bem, depois a gente conversa. Não. Não estava, tinha alguma coisa acontecendo. Falei para mim mesma, parecia que Célia estava certa, Antônia estava gostando mesmo dele e estava em pânico. Precisávamos mesmo ter uma conversa, essas coisas aconteciam e simplesmente não podíamos evitar ou ignorar. Se realmente confirmasse o que imaginávamos teríamos que descobrir se Alfredo também sentia o mesmo, e eu esperava sinceramente que sim, pois a pobre Antônia não merecia mais uma decepção amorosa. Poderia ser que ele também sentisse o mesmo por ela, mas não tivesse coragem de se abrir, devido à posição dela quanto a um novo relacionamento. Ele nunca falou sobre seus romances. Quando o assunto era esse, sempre desconversava, mostrava-se um tanto tímido. Eu gostaria de saber o que realmente estava acontecendo com ele, além da correria estressante da montagem do laboratório. Afinal, éramos 25

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R. C. Paulabati

amigos e amigos se ajudavam, compartilhavam preocupações. A atitude angustiada de Antônia deixou-me preocupada, tanto com um quanto com o outro. Retornei ao trabalho e tentei segurar a ansiedade até a hora do almoço. O movimento da loja no momento estava fraco, então aproveitei para combinar com Célia uma maneira de abordar o assunto com Antônia durante o almoço e, se nossas suspeitas se confirmassem, daria um jeito de me encontrar com Alfredo e descobriria se ele sentia algo diferente de amizade em relação a ela. — Teremos que ter muito tato — disse Célia. — Se formos diretas demais, ela vai se fechar; depois do que já passou, acho que vai relutar em assumir que está gostando de alguém. Afinal, havia se decidido a não se envolver mais com ninguém. Pensei nisso até a hora do almoço. Imaginando como Antônia estava se sentindo, tentando controlar seus sentimentos. Essas coisas aconteciam quando menos esperávamos. Alfredo era muito delicado e gentil e a tratava com muito cuidado, fazia-lhe muitos mimos e com todas essas sutilezas acabou quebrando a resistência dela. Gostaria que ela não deixasse passar a oportunidade de ser feliz, mais cedo ou mais tarde se apaixonaria novamente e precisava se sentir bem com isso.

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