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Direitos autorais, venda e distribuição cedidos pelo autor à Planeta Azul Editora www.planetazuleditora.com.br | e-mail: planetazul2014@yahoo.com.br Copyright © 2015 by Valdemiro Severiano Filho Todos os direitos desta edição reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por qualquer processo eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização expressa do autor. ISBN: 978-85-8255-201-8
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Dedico esta obra à minha filha Sophia, por quem tenho muito amor e carinho.
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Agradecimentos
Meus sinceros agradecimentos aos meus pais, Valdemiro Severiano e Maria Tavares de Araújo Severiano, à minha esposa, Karla Lydiana Santos da Silva e, ainda, à minha irmã Mariêta Miranda Severiano Neta, pelo auxílio no presente trabalho e pelo que representam em minha vida. Agradeço ao meu orientador, professor Dr. Alessandro Dozena, por ter acreditado em minha competência e por haver me assistido nesta pesquisa, de modo a contribuir em grande parte para o sucesso deste trabalho. Sou grato aos amigos e colegas do curso de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobretudo àqueles do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia – PPGE e do Programa de Educação Tutorial de Geografia – PETGEO. Demonstro minha gratidão aos geógrafos: Janny Suênia, Pablo Raniere, Gervásio Hermínio, Daniel Nunes, Jeyson Ferreira, Eduardo Nascimento, Gomes Neto e Fábio Nunes, que me acompanharam nesta caminhada. Presto meu reconhecimento aos professores: Dr. Carlos Maia, Dr. Paulo César C. Gomes, Dr. Anelino F. da Silva, Dra. Rita de Cássia Gomes, Dr. Aldo Aloísio Dantas, Dr. Celso Donizete Locatel e Dra. Maria Helena Braga e Vaz da Costa, Dra. Flávia de Sá Pedreira, Dra. Julie Antoinette Cavignac e Dr. Luiz Carvalho de Assunção. Enfim, digo o meu muito obrigado a todos que, de forma direta ou indireta, apoiaram para a realização deste trabalho, em peculiar, ao Grande Geômetra.
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Apresentação
A cidade de Natal/RN apresenta-se como palco para múltiplas manifestações culturais, entre as quais se encontram as tribos de índios carnavalescas. O presente estudo procurará compreender a produção do carnaval destas agremiações enquanto uma manifestação de lazer e trabalho. Pautado numa visão pluralista, percebemos que os vários usos do espaço implicam em territorialidades que envolvem as dimensões política, econômica e simbólica, intermediadas pela cultura. Sob a análise proposta, pretendemos desvendar as dinâmicas espaciais e os vários agentes sociais que engendram relações de poder, trabalho e sociabilidades, mostrando neste “mundo” carnavalesco seus aspectos culturais e suas práticas sociais, guardando, em seu cerne, o caráter popular e ordinário do cotidiano. A pesquisa mostra que, para além da racionalidade hegemônica, existem outras racionalidades, manifestadas em microterritorialidades, que acionam mecanismos e táticas cotidianas, valorizando-se o fenômeno do estar-junto, existentes no interior dos centros urbanos, nos bairros e nas ruas.
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Prefácio
Logo quando cheguei a Natal soube da existência de um carnaval de tribos de índios o que, imediatamente, fez-me conhecê-lo. E ainda ouvi de moradores antigos e alunos na universidade: Existe desfile de tribos de índios em Natal? Que história é essa? Assim que o conheci, subitamente me encantei com esse folguedo, marcado pelo som ritmado, lento e expressivo, e pela representação performática que ritualiza a cultura indígena em ruas públicas da capital potiguar durante o carnaval. Trata-se como afirma o autor, de uma manifestação que atua na contramão do carnaval frenético e espetacularizado, cuja receita de sucesso atrai milhares de pessoas e de investimentos públicos e privados direcionados ao Carnatal no mês de dezembro. O carnaval, como inspiração, não tem território específico, é uma festa que acontece em todo o país, e como manifestação cultural está profundamente ligada à prática de certas comunidades, fortalecendo o atrelamento identitário a bairros, fato que Valdemiro aqui constata. Conforme os levantamentos por ele realizados, as tribos de índios vêm participando do carnaval natalense há muitos anos, não sendo possível aferir com exatidão a data inicial de seu surgimento nos desfiles carnavalescos, devido à divergência existente entre os relatos dos entrevistados e as matérias jornalísticas, sobretudo as publicadas no jornal A República. O que se sabe é que Augusto Brasil, morador do bairro da Ribeira e fundador da Tribo de Índio Potiguares, foi um de seus primeiros incentivadores. Segundo Raimundo Brasil, filho do precursor das tribos de índios carnavalescas e atual pajé dos Potiguares, a origem se deu impulsionada pelas conversas de seu pai com Câmara Cascudo, também morador do bairro portuário da Ribeira. Valdemiro demonstra que esta manifestação carnavalesca teve seu surgimento na primeira metade do século XX, em meio aos entrudos já existentes na capital potiguar desde o século XIX, tendo sido bem aceita pela população natalense; ainda que com certo desconhecimento por grande parte dela. Motivado pela difícil tarefa de perseguir as suas questões centrais de pesquisa e rodeado por ricas fontes históricas, Valdemiro as associam Índios Carnavalescos: juntos e misturados na folia natalense
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com reflexões geográficas que guardam uma enorme originalidade na medida em que demonstram que para além da racionalidade hegemônica, existem outras racionalidades, configuradas em microterritorialidades, que acionam mecanismos e táticas cotidianas valorizadoras da experiência do estar junto existentes no interior dos centros urbanos, em seus bairros e ruas. Nesse sentido, o livro acompanha um movimento etnogeográfico que vem se adensando nos últimos anos, voltando-se para a descrição e explicação dos significados espaciais de ocasiões festivas ou rituais coletivos – dialogando, entre outros, com os trabalhos de Carlos Maia, Felipe Ferreira, Flávia de Sá Pedreira, Maria Laura de Castro Cavalcanti, Maria Pereira Cunha, Roberto DaMatta; além de meus próprios estudos. Indo em direção contrária a preocupação geográfica hegemônica com relação ao espaço enquanto objeto de estudo primordial da Geografia, Valdemiro busca na dimensão espacial da festa carnavalesca o desvendar de seus arranjos e práticas espaciais, o que lhe possibilita discutir, para além dos significados da própria festa, as formas de territorialização e conformação de identidades com base espacial; contando-nos a própria história de Natal sob essa ótica festiva. Parece que a Geografia brasileira, ainda tão preocupada com os temas convencionais e hegemônicos, anda prestando pouca atenção à sua história e à clássica discussão de autores sobre as dimensões culturais (Carl Sauer, Friedrich Ratzel, Paul Vidal de La Blache, Otto Schuter, Karl Ritter; entre outros). Igualmente, é grande o desprezo pelas manifestações culturais que em seus rebatimentos espaciais acompanham o processo de globalização e reforçam o particular, o local (a exemplo da proeminência do discurso representativo sobre a região cultural do Seridó potiguar). O autor se insere no debate vigoroso posto desde o “giro cultural” na década de 1980, tanto no plano nacional quanto internacional (produção de livros, grupos de pesquisa e influência das temáticas culturais nos encaminhamentos presentes em livros didáticos). Aos conservadores apegados aos temas tradicionais na Geografia, o livro que aqui apresento mostra que vale o esforço de interpretar os discursos e códigos espaciais de nosso tempo a partir de reflexões geográficas empregadas em perspectivas arrojadas e originais. A obra evidencia a necessidade da diversidade temática, metodológica e conceitual como um contraponto ao conjunto de ideias intolerantes apregoadas pelo conservantismo acadêmico; por vezes fechado ao diálogo necessário para a compreensão da complexidade do mundo contemporâneo e dos novos processos que a acompanham. 12
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Em seu trabalho, Valdemiro nos mostra que para entender tais processos torna-se decisivo compreender como os seres humanos percebem, concebem e constroem seus territórios. Teoricamente, o autor desvenda a inserção das escolas de samba de tribos de índios em Natal, introduzindo, em uma perspectiva dialética, os espaços dos índios no tempo da folia. O estudo também revela como essas tribos de índios carnavalescas dialogam cotidi¬anamente com seus múltiplos segmentos sociais e com o poder público. Tendo como uma de suas preocupações básicas a de analisar a problemática que envolve o espaço e a cultura, o autor não se deixa levar somente pela questão do carnaval potiguar enquanto uma festa presente no sentimento popular, mas procura cartografar roteiros específicos no interior da cidade de Natal. Ao mesmo tempo em que o livro revela o encanto do carnaval natalense, realiza um resgate histórico de suas origens, traçando um paralelo entre o surgimento do carnaval de tribos e a presença das tribos em bairros natalenses. A territorialidade carnavalesca não é uma alusão abstrata, faz parte do método da análise do autor, que se expressa utilizando-se de mapas originais sobre os fenômenos pesquisados, que não só aparecem como ilustrações mas como representações do diálogo entre as tribos de índios carnavalescas e a cidade. Essa simples apresentação não seria capaz de dar conta da plenitude da obra, uma vez que o autor teve a coragem de enfrentar um tema tão instigante e desafiador para as Ciências Humanas. O que posso, certamente, é afirmar que Valdemiro realizou uma pesquisa transdisciplinar, sendo sensível às nuances presentes na capital potiguar. Esse debate, com sua porosidade entre acadêmicos e populares, é de vital importância e por isso só me resta saudar a publicação desta obra, tendo a impressão de que ela fazia falta no conjunto das análises das manifestações culturais potiguares. Estou certo de que esse livro fará “dançar” os pensamentos dos leitores. Deixo, então, os meus parabéns ao autor e um “viva” ao carnaval de todos os tempos e espaços! Natal, maio de 2014. Alessandro Dozena
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Lista de Ilustrações
Mapas Mapa 1 – Localização espacial das tribos de índios do carnaval de Natal/RN.......................... 23 Mapa 2 – Barracões e os agenciamentos socioespaciais......................................................... 103 Mapa 3 – Configuração espacial do desfile e a des(ordem) do carnaval natalense................... 111 Mapa 4 – Representação espacial dos ensaios da Tribo de Índios Gaviões-Amarelo............... 131 Mapa 5 – Representação espacial do “assalto” carnavalesco dos Apaches............................. 132 Mapa 6 – Trajetória ritualizada da Tupi-Guarani..................................................................... 133 Mapa 7 – Redes socioespaciais da tribo de índios Tabajara.................................................... 148
Figuras Figura 1 – “Ritual” de entrega da subvenção estadual para o carnaval de 2012...................... 101 Figura 2 – Territorialidades da economia informal no desfile carnavalesco. ............................112 Figura 3 – O espaço normatizado para o consumo..................................................................114 Figura 4 – Montagem da alegoria da tribo Tabajara na manhã do desfile.................................117 Figura 5 – Discurso do presidente da tribo de índios Guaracis.................................................119 Figura 6 – Ensaio da tribo de índios Tapuias e o “desrespeito” do veículo.............................. 129 Figura 7 – Limites da Tribo de índios Gaviões-Amarelo.......................................................... 130 Figura 8 – Quarto: de dormitório a depósito de fantasias........................................................ 152 Figura 9 – Copresença: Gaviões-Amarelo e o entorno............................................................ 157 Figura 10 – Homens construindo as alegorias da agremiação................................................. 161 Figura 11 – Mulheres confeccionando as fantasias da agremiação.......................................... 162
Tabelas Tabela 1 – Investimento Público para o Carnaval/2012............................................................ 89
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Lista de Abreviaturas e Siglas AESTIN
Associação das Escolas de Samba e Tribos de Índios
de Natal FUNCARTE
Fundação Capitania das Artes
GPS
Global Position System (Sistema de Posicionamento Global)
ONG
Organização Não Governamental
RMN
Região Metropolitana de Natal
SEMOB
Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana
SEMTAS
Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social
SEMURB
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo
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Sumário
Apresentação.............................................................................................. 9 Prefácio....................................................................................................... 11 Lista de Ilustrações...................................................................................... 15 Mapas................................................................................................ 15 Figuras.............................................................................................. 15 Tabelas. ............................................................................................. 15 Lista de Abreviaturas e Siglas.............................................................. 16 1. Introdução.............................................................................................. 19 1.1. Procedimentos Teórico-Metodológicos. ...................................... 24 1.2. Uma Etnografia dos Territórios e Lugares das Tribos. .................. 31 1.3. De qual Cultura Estamos Falando?.............................................. 38 1.4. A Figura do Índio no Carnaval: Como Surgiu? ........................... 44 1.5. Apresentando os Capítulos. ......................................................... 50 2. A Origem e o Atual do Carnaval Natalense............................................ 52 2.1. Revisitando o Carnaval na Cidade de Natal.................................. 55 2.1.1. Nos entrudos do carnaval natalense: tudo junto e misturado. ........56 2.1.2. A institucionalização e a suposta decadência do carnaval natalense......................................................................... 69 2.2. A Atual Configuração Espacial da Festa Momesca em Natal.......... 81 3. O Carnaval das Tribos de Índios: Arranjos e Práticas Espaciais............... 87 3.1. Os Aspectos Econômicos do Carnaval das Tribos. ........................ 88 3.2. Os usos Políticos do Território no Carnaval das Tribos............... 98 4. As Tribos de Índios e suas Projeções no Espaço Citadino..................................................................................... 106 4.1. A Configuração Espacial e a (Des)Ordem da “Avenida”................. 109 4.1.1. O espaço do carnaval e seus agentes..................................... 110 Índios Carnavalescos: juntos e misturados na folia natalense
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4.1.2. O acontecer da tribo na “avenida”: atos preparatórios e o desfile carnavalesco.................................................................... 116 4.2. A Rua das Tribos e a Refuncionalização do Lugar........................ 122 4.3. Agenciamentos Espaciais: o Cotidiano do Bairro. ......................... 136 4.3.1. A tribo de índios Tabajara e o bairro Felipe Camarão............. 141 4.3.2. O lugar da tribo de índios Gaviões-Amarelo: as táticas socioespaciais. ................................................................ 150 5. Considerações Finais............................................................................... 164 6. Referências Bibliográficas....................................................................... 169
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1. Introdução
A contemporaneidade vislumbra-se como um espaço-tempo de transformações diante do estabelecimento de novas relações sociais, potencializadas pelas redes de sociabilidade1 e pela dinâmica das transformações culturais, de onde emergem discursos e práticas que valorizam a diversidade cultural e se contrapõem à ideia de homogeneização da sociedade. Neste cenário, encontram-se as tribos de índios do carnaval de Natal. O estudo procurará compreender o processo de produção do carnaval das tribos de índios2, enquanto manifestação de lazer e trabalho, desde a preparação – os ensaios e a confecção das fantasias e alegorias – até o desfile na “passarela do samba”, acionando as dimensões política, econômica e simbólica e discutindo o cotidiano3 como uma prática geradora de sociabilidade. Seguimos de perto o entendimento de Cavalcanti (1984), para quem o carnaval “não designa, portanto, a festa simplesmente, mas todo o processo que nela desemboca. E, do ponto de vista de uma escola, a totalidade do carnaval pode ser dividida em duas realidades distintas: ‘uma coisa é o contexto do carnaval’, tudo o que é exterior à escola e decorre da existência do desfile; ‘outra coisa é o samba’ que remete à interioridade da escola” (CAVALCANTI, 1984: 176-177). Partilhamos da ideia de sociabilidade enquanto associação que expressa vontades humanas e mantém múltiplas relações compostas de “exigências, ajuda, assistência e de suas forças. O grupo formado por esse tipo positivo de relação, concebido enquanto objeto ou ser que age de forma unitária interna e externamente, é denominado associação” (TÖNNIES, 1995: 231). A sociabilidade é, pois, os laços pessoais estabelecidos pelas pessoas se relacionando. 1
Este folguedo, marcado pelo som ritmado, lento, expressivo e pela representação teatral, cujas raízes, acreditamos estar nos negros africanos, representa uma manifestação que resgata e ressignifica a presença indígena. As tribos de índios carnavalescas encontram-se presentes no espaço como uma manifestação cultural subdominante e emergente, codificados na paisagem e aguardando estudos geográficos (COSGROVE, 1998). 2
É pela análise do cotidiano e sua dimensão espacial que poderemos compreender a coexistência dos tempos, ao que Santos (1996a) considerou de quinta dimensão do espaço banal. No cotidiano – enquanto “categoria de análise” (SANTOS, 1997: 184) – verificamos as cooperações e conflitos dos agentes sociais. 3
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O interesse surgiu da ausência de estudos geográficos acerca da temática na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ademais, os trabalhos acadêmicos sobre o carnaval pesquisados não tinham como objeto de estudo as tribos de índios carnavalescas. Partindo-se do questionamento sobre como as tribos carnavalescas apropriam-se do espaço, entendemos que os usos territoriais das tribos constituem relações político-econômicas e momentos de realização do lazer – subjetiva e objetivamente. Neste sentido, o leitmotiv do estudo encontra-se na visão pluralista em se perceber os vários usos do espaço, tendo como pressuposto a noção de que os encontros sociais verificados nas agremiações são mediados por relações culturais, que englobam lazer, sociabilidade, reprodução do capital e consumo: Todavia – e é isso que, especificamente, nos interessa –, o efeito-emprego do lazer não é exclusivo das formas organizadas e burocratizadas de uso do tempo livre, praticadas nas sociedades industriais e pelas camadas superiores e médias dos países menos desenvolvidos. Nestes, há também um lazer popular, rebelde às estatísticas, produzindo, de baixo para cima, formas ingênuas de distração coletiva, provindas do exercício banal da existência, criadas na emoção e geradoras de solidariedade e de trabalho. Sua espontaneidade é, na base da sociedade, a garantia de sua permanência, criatividade e renovação (SANTOS, 2000: 34).
Atribuímos ao espaço das tribos de índios uma construção social que engendra e correlaciona elementos (i)materiais, com vistas a não negligenciar nem valorizar as lógicas político-econômicas e a dimensão simbólica, pois na interpretação do espaço, compreendemos que os homens não vivem “sem dar um sentido àquilo que os cerca[m]” (CLAVAL, 2001a: 293). Ao contrário do pensamento popular, que imagina as tribos carnavalescas enquanto uma aglomeração de pessoas vestidas de índios e fazendo batuques, o presente livro vem demonstrar que estes grupos se organizam e instituem relações sob complexos laços de solidariedade e vizinhança, numa malha de deveres e funções. Essa visão heterotópica, caracterizada por um estudo que aborda uma visão não dicotômica e não polarizadora nos desautoriza submetermos a um colonialismo intelectual4, já tradicional na academia, espe Duncan (2000) traz uma importante crítica ao que convencionamos chamar de “colonialismo intelectual”: “O que quero dizer é que a concepção de geografia cultural enquanto heterotopia epistemológica é a melhor, e que devemos aceitar as implicações desta condição cada vez mais comum na academia. Uma parte importante desta aceitação é se dar conta de que um discurso 4
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cificamente no caso brasileiro em que certos objetos são considerados como propriedades de algumas disciplinas (RATTS, 2003). É neste sentido que Duncan (2000) assinala que a Geografia Cultural hodierna se transformou em heterotopia: Estou sugerindo que concebamos a geografia cultural como um único espaço disputado de poder/conhecimento, mas como uma espécie de heterotopia epistemológica, que, segundo Foucault (1986, 25), “é capaz de justapor vários espaços num só lugar real, vários espaços que são em si mesmos incompatíveis” (DUNCAN, 2000: 64-65).
É necessário ultrapassarmos algumas dimensões totalitárias dos paradigmas científicos e disciplinares, que, por vezes, adotam uma postura despótica, constituindo-se em verdadeiras tiranias paradigmáticas (AMORIM FILHO, 2007). Utilizar uma corrente epistemológica de forma dogmática traz danos para a evolução do pensamento geográfico e limita a pesquisa à reprodução dos conhecimentos existentes, não deixando os pesquisadores tomarem “consciência das possibilidades que teriam de produzir, por si mesmos, elementos de um saber novo” (LACOSTE, 2006: 86). Acreditamos que a presente discussão não deve ser “encaixada” em determinado segmento da ciência geográfica que separa e, por vezes, dicotomiza. Pretendemos analisar as tribos de índios de carnaval, enquanto manifestação cultural presente na realidade urbana e, portanto, realizada no espaço. O livro se filiará a uma abordagem teórico-metodológica que reconhece a dimensão concreta do espaço inseparável da subjetividade, enquanto duas faces de um mesmo fato, realizados no espaço e intermediados pela cultura. Para a problemática proposta, partiremos do pressuposto do espaço enquanto instância social (SANTOS, 1985; 2005), indissociável do sistema que compõe a sociedade, imbricando-se com eles. Assim, não devemos compreender o sistema social disposto em camadas estruturais, onde, conforme Althusser (1979), ao discutir as instâncias através da metáfora arquitetônica do edifício, considera a sociedade composta por três níveis, onde a instância econômica – infraestrutura – se encontra na base da estrutura social, tendo uma importância maior que os níveis jurídico-político e ideológico, que consistem a superestrutura. Santos (1986) critica a exclusão do espaço ao enfatizar: ‘dominante’, capaz de estabelecer uma unidade intelectual, é ilusão. Não podemos propor um método ou uma estrutura taxonômica como parâmetros para toda a geografia cultural; o que temos, na realidade, são ‘lugares de diferença’, cada um dos quais com seu próprio discurso, ligados a outros lugares semelhantes dentro das ciências sociais e humanidades” (DUNCAN, 2000: 82). Índios Carnavalescos: juntos e misturados na folia natalense
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Os que consideram a sociedade como um sistema ou uma estrutura (ou mesmo como uma totalidade) quando tratam de definir-lhes as instâncias excluem o espaço. Nesse particular e por mais incrível que pareça, teóricos marxistas fazem boa companhia aos pensadores “burgueses” (SANTOS, 1986: 141).
Procedendo desta forma, não isolaremos qualquer dimensão, de modo a prejudicar o trabalho empreendido, visto que a “consistência, a lei e a ordem que se revelam em cada aspecto contribui, simultaneamente, para a construção de um todo coerente” (MALINOWSKI, 1997: 25). Essa orientação abrangente que a abordagem cultural nos proporciona – relacionando as variáveis concretas e simbólicas na “leitura” do espaço – encaminha a “um outro” olhar da dimensão espacial dos fenômenos. Gomes (2001) sinaliza que procedendo dessa forma, poderemos “compreender este jogo complexo entre as dimensões física e simbólica, entre signo e sentido e, desta forma, pode vir a se constituir como a oportunidade ideal para aprofundar esta discussão epistemológica que comumente nos tem escapado” (GOMES, 2001: 95). As tribos de índios encontram-se compreendidas em cinco municípios da Região Metropolitana de Natal, pertencentes à mesorregião do leste potiguar. Nesta área distribuem-se onze tribos carnavalescas na zona urbana da Região Metropolitana de Natal, englobando os municípios de Natal, Ceará-Mirim, Macaíba, São José de Mipibu e São Gonçalo do Amarante. Fazendo um recorte na capital potiguar, verificamos um espraiamento destas agremiações pela cidade. Não há uma concentração nos bairros conhecidos pela sua efervescência carnavalesca, sobretudo o bairro Rocas, que já congregou inúmeros grupos carnavalescos, entre tribos de índios e escolas de samba, e Alecrim. Não obstante as primeiras tribos – Guaranys e Potiguares – tenham surgido nestas duas localidades, estes grupos, atualmente, encontram-se distribuídos em seis bairros da capital, com presença na Zona Norte – Tapuias da Redinha e Gaviões-Amarelo de Igapó, Zona Leste – Potiguares das Rocas, Tupinambás de Santos Reis e Guaracis de Mãe Luiza, e Zona Oeste – Tabajara de Felipe Camarão. É interessante observar que não existe tribo de índios na Zona Sul de Natal, tampouco há registros de que já houve qualquer manifestação carnavalesca indígena nesta Região Administrativa. Não obstante, é no Bairro Ponta Negra que existe, há oito anos, o bloco “Poetas, carecas, bruxas e lobisomens”, organizado pelo atual vereador natalense Hugo Manso, e, no ano de 2012, recebeu a presença do prefeito em exercício Edivan Martins, do vice-Governador Robinson Faria, da deputada 22
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Federal Fátima Bezerra e do secretário de Políticas Culturais do Governo Federal Sérgio Mamberti. O bloco é aberto ao público e bastante frequentado, principalmente pela classe média e a elite natalense que residem na localidade, mas também tem participantes provenientes da Vila de Ponta Negra, onde se encontra as camadas mais populares, e de outros bairros da cidade.
Mapa 1 – Localização espacial das tribos de índios do carnaval de Natal/RN
Fazendo uma cartografia cultural, a disposição espacial das tribos de índios sugere uma leitura do cotidiano a partir dos “de baixo”, pois estas agremiações se localizam nos bairros menos abastados dos municípios onde se encontram compreendidas, os quais alguns registram um alto índice de violência e pobreza, contudo dispostas a se organizarem por meio de redes de sociabilidade e consciência do seu espaço vital que os conduzem a “fruir, gozar, ampliar a cultura territorializada, onde se dá a fusão entre tempo e lugar, como expressão da vida em comunhão, na solidariedade e na emoção” (SANTOS, 2000: 35-36).
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