Amor Interceptado - Degustação

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Mari Sales 1ª. Edição 2020


Copyright © Mari Sales Todos os direitos reservados. Criado no Brasil. Edição Digital: Criativa TI Revisão: Carla Fernanda Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência. Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios – tangível ou intangível – sem o consentimento por escrito da autora. Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.


Dedicatória Para Juliana Scaciota e Vivianne Ferreira, minhas Encantadas apaixonadas em NFL que me inspiraram a escrever essa história. Obrigada por compartilharem suas paixões comigo, tem um pedaço meu misturado com vocês nessas páginas.


Sinopse Um jogador de sucesso de futebol americano, com bons números na temporada, não deveria ter nenhuma preocupação, a não ser treinar. Luke Carlson, do Red Dragon, era o safety mais prestigiado do esporte e ninguém sabia sobre o seu passado, a não ser o impiedoso empresário, Cachemir, e o seu melhor amigo Theo, o quarterback do time. A culpa o corroía por dentro dia após dia, mas Luke sempre teve esperança de que um dia ele a veria novamente. Esse dia chegou. Cassandra estava em uma fase ruim de sua vida e não hesitou ao aceitar fazer um intercâmbio de dois meses para os EUA com sua amiga Maria Flor, para fugir dos problemas familiares. Cassy precisava manter distância do relacionamento tóxico que tinha com os pais, só não imaginava que trocaria uma confusão por outra. A amiga, que fazia parte do seu porto seguro, agora lhe apresentou um caminho sem volta para ameaças, segredos e muitos jogos de futebol americano. Luke fazia parte dessa nova vida e demonstraria ser um bom safety dentro e fora de campo.


Capítulo 1 Cassandra Deixei de me sentir indignada há muito tempo. Quando algo desse tipo acontecia, que era muitas vezes, apenas me sentia adormecida em meio a tanta injustiça familiar. Mais uma vez, eu teria que abandonar meus sonhos para cumprir com alguma missão imposta pelos meus pais. Dessa vez, uma centelha de senso de justiça quis emergir para a superfície, precisava contestar. Será que apenas eu via o quanto tudo isso era absurdo? Desde quando deveria arcar com despesas, que eram exclusivas do meu irmão? — Mãe, eu ando de ônibus para economizar. André deveria fazer o mesmo, já que não tem dinheiro para consertar o carro — meu tom foi neutro, porque me recordava muito bem do peso da mão da minha mãe no meu rosto quando a desrespeitei falando alto.


— Ele vai ter dinheiro, Cassandra. Quantas vezes já lhe falei sobre isso? Seu irmão está fazendo medicina, estuda dia e noite, não pode ficar andando de ônibus com os materiais caros na sua mochila. Você tem mais dinheiro do que necessita, então precisa ajudar. — E os estágios que ele faz? André também ganha dinheiro. O carro está no nome dele! — Abaixa essa voz comigo, mocinha. Seu irmão precisa da nossa ajuda e não estou perguntando se você pode ou não contribuir. Se tem dinheiro e não está aleijada, vai colaborar sim! Enquanto minha mãe fazia a sagrada janta para quem salvaria todo mundo da crise financeira que estávamos, eu ficava de pé, com os braços cruzados a minha frente e a indignação exalando dos meus poros. Aquela cozinha parecia ficar cada vez menor, abafada. Nossa casa era enorme, outro motivo para que eu ficasse contrariada com as escolhas dos meus pais. Se estávamos tão ruins de dinheiro, por que manter um alto padrão de vida? Ah! Não custava lembrar, a faculdade de medicina do meu irmão era particular e eu mesma tinha cota de contribuição na mensalidade. O trabalho de professora particular e auxiliar, que eu exercia no período da tarde e da noite, não era toda uma recompensa apenas para mim. Suspirei e controlei as lágrimas, porque não era forte o suficiente para sair de casa e ter minha própria vida longe dos meus pais. Por permanecer sob o mesmo teto que eles, o discurso era sempre o mesmo, que eles cansaram de me bancar, estava na hora de retribuir, como meu irmão fazia. Quando tudo isso começou? Não queria fazer relação com a minha escolha de graduação. Ser professora era algo que me tornava completa, mas não era meu foco quando escolhi Licenciatura em Letras para cursar. Meus horizontes estavam amplos, queria me especializar em revisão textual ou ministrar cursos de redação. Meus olhos brilhavam ao verem os professores do cursinho preparatório para o vestibular ensinando as maravilhas da construção de texto.


Assim que me matriculei no curso, fui obrigada a pagar a conta de luz de casa como punição. Tudo bem, eu morava no mesmo lugar que eles, não custava nada me esforçar e contribuir. O problema foi que meu irmão mais velho, André, não teve a mesma responsabilidade que eu. Ele estava se matando de estudar para passar em uma faculdade federal, não poderia ter esse peso nas costas. Quando concluí minha Licenciatura, meus pais optaram por pagar uma fortuna e o matricularam em uma universidade particular. Esse foi o segundo compromisso adicionado aos tantos que já suportava: ajudar na mensalidade. Minhas costas viviam doendo e, quanto mais me indignava e contrariava meus pais, mais era vista como ingrata, egoísta ou injusta. Odiava ser tachada como tal, uma vez que amava ensinar os outros, me doar. A última coisa que eu precisava como peso era que meus próprios pais não me amassem por só verem meu lado ruim. Deveria ter me acostumado, ou lutado contra tudo isso, mas cedia e chorava no ombro da minha amiga Maria Flor. Meu apoio, até hoje, foi minha colega de faculdade e hoje, melhor amiga. Ninguém era tão compreensiva e não julgadora como ela. Ao invés de me incentivar a mudar ou ficar indignada com minhas atitudes submissas, ela me dava carinho e um pouco de leite quente com achocolatado. Eu a sentia muito mais como minha família do que a que tinha meu sangue nas veias. — Mãe, por favor, eu te imploro. Esse dinheiro está sendo economizado para que eu faça intercâmbio. Eu já pago tanta coisa... — Nossa, coitada de você, que não lava as roupas todos os dias, não limpa a casa ou lava os banheiros. Eu faço comida, cuido do pagamento das contas da casa e ainda levo o carro para arrumar. Quer que eu descreva tudo para você ver que eu faço muito? — minha mãe rebateu indignada, ergueu a colher de pau que estava na mão, mexendo alguma comida que eu não comeria e me intimidou.


Poderia ter 23 anos, estar formada há mais de dois anos, uma vez que saí do ensino médio e fui para a universidade, mas tinha medo dos meus pais. Recuei um passo e pressionei os lábios para não chorar na sua frente. Ela odiava que eu fazia isso e ainda me acusava de estar tentando coagi-la com meu sofrimento exagerado. — Eu também ajudo — falei baixo e ela voltou a mexer na comida. — Com toda certeza, você também se beneficia. Agora, faça o favor de transferir até amanhã, pois a oficina está esperando para executar o serviço. — Cheguei, mãe! — André passou por mim, abraçou e beijou minha mãe, causando uma inveja em mim sem tamanho. Nem me lembrava há quanto tempo, eu não agia com tanto carinho e abertura com meus pais, a nossa única interação era cobranças e mais cobranças. O maldito dinheiro, que estava sendo guardado por mim por tanto tempo, deixando de ter luxo para que eu pudesse dar o primeiro passo para o meu grande sonho. Finalizar o curso de inglês abriria as portas para que eu trabalhasse com tradução de textos. Quando meu irmão virou o rosto em minha direção, não manteve o olhar, sentou-se à mesa e ficou como um cachorro adestrado olhando minha mãe fazer sua janta. Eu pagaria seu carro e nem recebia um mísero cumprimento. Não que eu buscasse me comunicar, cada dia mais eu o excluía da minha vida. — Não se preocupa, filho. Já demos um jeito para pagar o custo do conserto do seu carro. Sei o quanto você precisa. — Obrigado, mãe. Não aguentava mais andar de carona, é meio humilhante. Sentia como se eu fosse alguém de fora desse ninho de amor e eu queria machucar, todos eles. — O jeito foi pegar o dinheiro da minha poupança para te bancar, bebezão! — cuspi com rispidez e minha mãe me encarou com raiva. — Eu


pago tanta coisa para estar nessa casa, agora terei que arrumar um carro que nem ando. Com toda a sua fúria materna, ela veio até mim, segurou o meu braço e me beliscou como sempre fazia quando eu era criança. Minha vontade era de revidar, mas meu coração sangrava só de pensar que eu teria mais olhares reprovadores ao invés de carinho. — Sua ingrata, deveria te expulsar de casa por ser tão invejosa do seu irmão! Consegui me livrar do seu aperto, coloquei a mão em cima de onde doía e com as lágrimas escorrendo sobre meu rosto, não consegui segurar minha mágoa: — Vou para a rua mesmo, lá eles me amam mais. — Por que não vai morar com eles? Acha que é fácil assim, que os amigos vão te dar um lar como seus pais te dão? — ela gritou enquanto eu pegava minha mochila, que estava perto da porta de entrada para sair. Não sabia onde seguir, só não queria ficar sob o mesmo teto que eles. — Você tem compromisso aqui, Cassandra Barcelos! — Não se preocupe, o dinheiro do seu filhinho vai estar na sua conta — finalizei com o rosto virado para trás, saí pela porta de frente de casa e corri, como se minha vida dependesse disso. Depois de andar sem rumo pelo bairro, pelas avenidas da cidade e vendo as horas passarem, enquanto o movimento baixava por conta de ser tarde da noite, gritos de vitória chamaram minha atenção. Havia muito tempo que não tinha forças para vibrar por mim mesma, imagine por outrem. Aproximei do bar onde havia poucas pessoas, mas todas estavam focadas na televisão. Não pude deixar de sorrir, mesmo sofrendo demais, Maria Flor, a única pessoa que parecia se importar comigo, era viciada no esporte que estava passando. Futebol americano era tão estranho que nunca me prendeu a atenção, mas, quando dava, assistia com ela, para lhe fazer companhia.


Será que ela poderia me acolher essa noite? Não sabia com que cara iria voltar para casa. A bronca do meu pai, por querer humilhar meu irmão, seria muito pior do que a da minha mãe. — Cassandra? — alguém falou meu nome e percebi que era minha amiga e seus pais em uma das mesas do bar. Ela correu para me abraçar e fiz o mesmo, me permitindo chorar e atrapalhar sua noite em família, porque ela me deixava sempre confortável o suficiente para ser eu. Amava como ela cruzava comigo nos piores momentos da minha vida e me resgatava.


Capítulo 2 Cassandra — Nunca fomos acionados, pai. Nosso afastamento nunca foi combinado de ser eterno. É seguro, tenho certeza! — escutei Maria Flor falar baixo enquanto acordava na sua cama grande e confortável. Minha amiga tinha a mesma idade que eu e seus pais eram muito ricos. Agradecia que ela nunca quis interceder na minha vida me dando dinheiro, porque esse era um problema meu e não queria criar um problema para nós. — Ela tem razão, Beto. Não podemos ir, mas ela sim. Vão! Será uma forma de você matar a saudade de nós três e dar um pouco de conforto para a sua amiga. Eu não aguento mais ver essa menina sofrendo nas mãos dos pais — dona Isabela, mãe de Maria Flor, falou baixo também e apertou meu coração. Ela tinha dó de mim. Por que minha própria mãe não tinha?


— Vou providenciar o que for necessário. Serão apenas dois meses, entendido? Você não poderá ficar por lá mais tempo, Mary. É minha condição — seu Roberto falou com preocupação. Gostava do apelido americanizado que ele tinha dado para ela, uma vez que seu sotaque era forte. Eu também tinha um, era como se eu estivesse em uma dimensão paralela ou outro país na casa da minha amiga. Sentei-me na cama e peguei o celular, pronta para cancelar as aulas particulares que daria no dia de hoje. Parecia que um rolo compressor havia passado por cima de mim, não estava bem emocionalmente nem fisicamente. — Tenho boas notícias, dorminhoca! — Maria Flor entrou no quarto pulando animada e me preparei para recusar sua proposta. Ela já fazia muito me dando um ombro amigo e agora, uma cama. Nunca ofereceu e muito menos pedi, não seria agora que aceitaria seu dinheiro. — Me dê um minuto, vou cancelar minhas aulas. — Faça isso por dois meses, Cassy, porque iremos para os EUA! — Ela colocou as mãos para o ar e fez movimentos de líderes de torcida. Sorri para sua alegria, porque Maria iria, mas não eu. Contei tudo o que tinha acontecido no dia anterior, era capaz de precisar entregar toda a minha poupança para os meus pais, para reaver meu quarto de volta, por exemplo. — Esqueceu a minha história, amiga? Não posso mais, mas quero muitas fotos suas de lá. Ela correu sentar-se na cama a minha frente e me encarar com os olhos brilhando. Ignorei por um momento, enquanto enviava as mensagens de cancelamento do dia e deixava meu coração pular de falsa alegria. Também fiz a transferência bancária da minha conta para a minha mãe. Agora sim meu sonho tinha recuado grandes passos. — Não me olhe assim, Maria, eu estou prestes a chorar novamente — revelei sem a encarar. — Que seja de felicidade, porque achei a solução de todos os problemas. — Ela pegou meu celular e saiu da cama, me fazendo encará-la. —


Você foi interceptada, Cassy, não há como fugir de mim agora! Estou te contratando para ser minha professora particular no curso de inglês avançado que iremos fazer. — Se você esqueceu, cursamos a mesma faculdade, além de ter conhecimento sobre o diploma do seu curso de inglês avançado. Seus pais sabem o idioma também, vale lembrar. — Ela revirou os olhos e dei de ombros. — Agradeço seu empenho, às vezes te sinto mais família do que qualquer outra pessoa, mas tenho que assumir minhas responsabilidades. — Bancar seus pais e seu irmão folgado? — Colocou as mãos na cintura, indignada, e depois voltou a se sentar na cama, na minha frente, devolvendo o celular. — Sabe que só critico seus pais quando estou de TPM. — Eu sei, você é minha melhor amiga. — E você é a minha. Por isso, eu preciso de companhia; e se precisar pagar, eu farei. — Maria Flor pegou nas minhas mãos e apertou. — Preciso de um curso para me reciclar. Não quero viajar desacompanhada, ficar em um país desconhecido sozinha. Você tem parte do dinheiro, certo? Eu vou conseguir um desconto e farei acontecer para nós duas. Vá comigo nesse intercâmbio, por favor. — Não é certo. — Te prometo apresentar um clube de motociclistas, ir em uma festa de fraternidade universitária e assistir um jogo da Liga. — Prefiro estar no meu canto revisando texto, você sabe. — Meu coração se enchia de amor, mesmo sabendo que nunca se tornaria minha realidade. — E você vai fazer essas coisas chatas que também amo fazer, mas se permitir. Por favor, vá comigo. — Fez bico. — Terá que esperar eu conseguir esse dinheiro novamente. Além do mais, tenho que tirar passaporte, os vistos...


— Se eu conseguir tudo isso antes de você adquirir o dinheiro, você vai comigo — decretou me olhando com malícia, minha amiga não costumava ser mandona e não consegui reagir a toda essa ordem. Ela se levantou, pegou o próprio celular e começou a mexer na minha bolsa, erguendo no final minha carteira. — O que você está aprontando, Maria Flor? — Levantei quando ela tirou foto da minha identidade. Ela se afastou e começou a dançar vitoriosa. Será que seus pais tinham algum contato especial com o governo? Nunca soube a profissão deles, uma vez que me declararam como sendo autônomos. Maria Flor também não trabalhava, mas fez Letras comigo e se aperfeiçoou muito mais em línguas do que eu, já que não precisava trabalhar. — Não me deixa no escuro. — Nunca! — Ela me abraçou e depois me empurrou para o banheiro. — Tome um banho e vamos planejar nossa visita ao país do Tio Sam. Você também precisará aprender sobre futebol americano, chega de só observar as coxas e bundas dos jogadores. — Não custa nada sonhar. — Tentei parar sua euforia, mas ela continuou me empurrando para o banheiro. — Já te falei que não vou sem pagar, você não tem que me bancar. — Essa é a forma de finalmente poder te agradecer pelo passado. Ela voltou para o quarto e fiquei no banheiro olhando-a arrumar a cama, despreocupada. Não comentava daquele dia e nem ela há tanto tempo, que precisei de um segundo para respirar fundo e voltar a me mexer. Maria Flor estava embriagada e na cama de uma república onde acontecia uma festa. O rapaz que estava em cima dela iria fazer algo que nenhum dos dois iria lembrar, mas eu sim, porque entrei no quarto no momento que ele tinha tirado toda a roupa e começaria o que não deveria. Éramos apenas conhecidas, Maria Flor nunca deu abertura para ninguém se aproximar, não para mim, depois desse dia. Não pensei duas vezes em pegar um violão que estava largado no chão, acertar as costas do homem e vestir minha amiga com pressa para ir embora.


Todos na festa pareciam alheios ao que poderia ter acontecido. Maria Flor ainda é e continua virgem depois disso. Fomos embora em um táxi, entramos na sua casa e seguimos para o seu quarto de forma sorrateira. Relatar o que aconteceu para ela no outro dia foi uma tortura, como também o início da nossa amizade. Havia males que vinha para o bem... só não na minha vida.


Capítulo 3 Luke Interceptação! É uma muralha ambulante! É ele, Luke Carlson, o número 83, sinônimo de segurança para os Red Dragons.

No momento em que o jogo terminou 75 a 12 para o meu time, fomos até o vestiário com o mesmo entusiasmo de sempre quando uma partida tinha um resultado tão desequilibrado. Nós estávamos a caminho de conquistar o campeonato. Muitos dos pontos que o adversário faria, foi com meu corpo e minha agilidade que os impedi. A mídia e os jornalistas amavam os quarterbacks, o que deveria ser ruim para mim, mas não. Ser a exceção à regra era parte do meu sucesso, eu era o safety mais prestigiado da liga.


Amava o esporte, a adrenalina da competição e as dores que ficavam no corpo pós-partida. Mesmo sem família e com um peso gigantesco nos meus ombros, para que eu sempre vencesse os jogos, eu aproveitava cada segundo. Com tantos bons resultados, quando algo não saía a meu favor, não era tão penalizado. Theodoro Fenning, o quarterback do Red Dragon, bateu no meu ombro para me parabenizar e me fez acordar de algum devaneio qualquer que estava ao ficar olhando fixo para o meu armário. — Troque de roupa logo, o pessoal vai comemorar na casa de Simas — ele falou para me incentivar e claro que sorri, aceitando o convite. Uma festa com mulheres, música e jogos de mesa era tudo o que eu precisava para encerrar a noite. Tomei um banho, vesti uma roupa casual, coloquei a mochila nos ombros e estava prestes a guardar o celular no bolso quando ele vibrou anunciando a chegada de uma mensagem de texto. Estava há tanto tempo sozinho nesse universo de prestígio e farra que me esqueci de que havia algo a mais na minha vida, um segredo que apenas meu amigo Theo conhecia. Ou, pelo menos, acreditava que sim, já que havia contado há muito tempo, no início da minha carreira. Eu não deveria falar para ninguém a minha história, a verdade por trás dela, mas aconteceu e tive sorte da pessoa que escutou ser meu parceiro. Apertei o botão que exibia a mensagem e lá estava algo que ansiava mais do que qualquer título do campeonato. “Você acabou de ganhar uma passagem para a Flórida. Venha conhecer os parques e se divertir como há muito tempo não fazia.” A vontade de ler e reler a mensagem era grande, mas excluí rapidamente, porque era perigoso para nós. Essa nota era um aviso de que alguém muito especial para mim estava vindo. Será que viria sozinha? Caramba, já se passaram mais de dez anos, como estará? Como farei esse encontro acontecer com segurança?


— O que foi, cara? Está tudo bem? — Theo perguntou com preocupação ao meu lado, segurando meu ombro, e o encarei com intensidade. O vestiário estava cheio, não dava para dizer nada a ele agora, ou melhor, eu deveria ficar na minha e ver como me encontraria com ela. — Acho que vou para casa relaxar a mente. A festa ficará para a próxima — respondi forçando um sorriso e seguindo para fora do vestiário como tantos outros do time. Deveria saber que meu melhor amigo não deixaria uma recusa sem explicação plausível passar em branco. Ladeado por seguranças do time, seguimos para os nossos carros e Theo entrou no banco do passageiro do meu quando larguei a mochila, na parte de trás da minha caminhonete, e me sentei para dirigir. — Sei que algo está errado. Fale comigo, Luke. — Você nunca me deixou sozinho, Fenning. Estou achando que gosta de mim. — Vá se foder! Vamos para sua casa e me fale qual é o enrosco da vez. Cachemir está te importunando? Neguei com a cabeça e senti o gosto amargo desse nome e tudo o que trazia com ele. Um mafioso, que controlava as apostas em jogos de futebol, me tinha nas mãos. Era impossível não jogar sem pensar que o resultado do meu desempenho engordava o bolso de pessoas cruéis, me fazendo ter culpa. Tentava compensar com meu lado humano, que eu fazia minha parte e não poderia controlar as consequências, ainda mais quando eles destruíram a minha família. Se hoje eu tinha apenas Theodoro Fenning como amigo, era culpa de Cachemir. Ele destruía tudo e todos que estavam em seu caminho. Acabar com minha carreira ou minha vida seria muito simples. — Fala comigo, irmão! — pediu com desespero e suspirei ao pensar que poderia levá-lo comigo nesse mundo de mentiras. Meu destino já estava selado, o dele não precisava. Disfarçávamos muito bem a profundidade da nossa relação.


— Fica tranquilo, não há nada de errado, é apenas uma notícia que recebi. Deixei meu coração acelerar ao imaginar o reencontro. Mesmo que a internet existisse, não trocamos informações durante esses anos por conta do risco. Havia apenas um aparelho celular com ela, para que, no dia em que viesse me ver, enviasse uma mensagem e depois o destruísse. Eu o reporia e torceria para que nossa situação mudasse. Cheguei ao meu condomínio de casas, estacionei o carro ao lado de outros, além de duas motos, e saímos para o fundo da casa, meu único local seguro, onde tinha certeza de que não poderia ser vigiado. Fui até o freezer pegar um isotônico para mim e outro para o meu convidado, fui até próximo da piscina, onde ele estava estirado no chão e olhando as estrelas. — Sabe que pode confiar em mim. Nunca te pressiono, porque você já lida com isso todos os dias, com sua consciência. Mas hoje foi intenso, havia algo diferente no seu celular. — Pegou a garrafa que lhe dei e deixou ao seu lado. Sentei-me no chão ao seu lado e tomei todo o líquido da minha própria garrafa antes de revelar: — Preciso dar um jeito de fazer acontecer o encontro com segurança. Ela está vindo. — Quando? Aqui? — Ele se sentou e me encarou com os olhos arregalados pela surpresa. Ele sabia exatamente de quem eu estava falando e tudo o que se passava pela minha cabeça. O filho da mãe não esquecia de nada, era leal a mim e não havia como retribuir tanta amizade que me oferecia. Não dava para questionar ou entrar em detalhes. Mesmo que me sentisse seguro perto da piscina, continuaria falando por partes com ele. Não poderia perder pessoas importantes na minha vida mais uma vez. — Se ainda existe um pouco dela de quando éramos crianças, sei que estará em um dos meus jogos, talvez invada o vestiário...


— Ou uma festa! — Ele finalmente abriu sua garrafa e começou a tomar o isotônico. — Simas pode fazer algo aberto ao público e, de lá, iremos procurar quem você quer. — Há sempre pessoas de Cachemir nesses eventos. Eu não sei. — Olhei para o céu e pedi um sinal para as estrelas. — Você estará comigo. Eu não estou na mira do mafioso, mas você sim. Eu a acharei para você. — Como? Não tenho fotos recentes e nem quero, sabe que até o espirro que dou é registrado. Theo sorriu com malícia, ergueu as sobrancelhas e ficou bebericando sua bebida enquanto deixava a mente funcionar. Quando éramos pequenos, eu e ela prometemos nos rever. Foi exigência dela não me preocupar, pois daria um jeito de fazer tudo acontecer. Muitos anos se passaram, não dava para saber se ela continuava com a mesma garra ou havia mudado. Eu mesmo era outra pessoa. Sem amizades, postura impecável fora de casa e concentrado em fazer o meu melhor nos jogos que disputava. Se isso era bom ou ruim para o crime organizado, não pensava a fundo sobre o assunto, porque não perderia de propósito. Meu consolo era que um jogo não se fazia com apenas um jogador, então, não poderia carregar o peso dos atos de Cachemir nas minhas costas. Bem, elas doíam de vez em quando e minha consciência também. No momento em que acontecia, eu me agarrava à esperança de que tudo valeu a pena, porque não só ela, mas eles estavam seguros em algum lugar. — Eu também irei conhecer a peça — Theo me provocou, sorrindo divertido, e se levantando para jogar a garrafa vazia fora. Idiota, queria me perturbar, mas não conseguiria tirar minha paz, não hoje! Fechei os olhos e fiz uma breve oração: Venha com segurança, Mary.


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