O CEO Tatuado (Flores e Tatuagens - Livro 01) DEGUSTAÇÃO

Page 1


Mari Sales 1ª. Edição 2020


Copyright © Mari Sales Todos os direitos reservados. Criado no Brasil. Edição Digital: Criativa TI Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência. Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora. Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.


Dedicatória Em honra aos meus pais e a minha família atual. Aos que lutam contra as limitações causadas por medos inexplicados ou traumas, vocês dão conta.


Sinopse ATENÇÃO! Essa história contém cenas impróprias para menores de dezoito anos. Contém gatilhos, palavras de baixo calão e conduta inadequada de personagens.

Era para ser apenas uma sessão de tatuagem para Erik Bortolini, mas foi o início do seu interesse pela misteriosa Orquídea. O homem à frente da produção e distribuição dos Vinhos Bortolini era um CEO fora do padrão. Enquanto o seu terno e gravata indicavam o quanto ele parecia um homem responsável, as muitas tatuagens pelo corpo e espírito rebelde mostravam que havia um contraste na sua personalidade. Fugindo do passado que lhe marcou o corpo, Orquídea Safreid abandonou sua vida sob a sombra do ex-namorado para estar segura com seu irmão, o renomado tatuador Oton. Queria recomeçar, mas vivia o dilema entre querer sumir e estar próxima da sua família. Orquídea tinha muito para esconder, Erik não se intimidava com suas armaduras. Movido pela curiosidade, aproximou-se de Orquídea e lidou com a fúria protetora do amigo. Erik tinha todos os motivos para não se envolver nessa


confusĂŁo, mas quando mais tentava se afastar, mais se via enredados nos temores dela, afinal, ele tambĂŠm tinha seus prĂłprios medos.


Nota da Autora Abordo, nessa história, um tema delicado, o medo e a violência. Não faço um grande desenvolvimento sobre o assunto de propósito. O foco está na recuperação dos personagens e não no sofrimento do passado. Recomendo, para aquelas pessoas que se interessarem ou se sentirem tocadas com o assunto, buscarem informações com pessoas especializadas, psicólogos, terapeutas e assistentes sociais. Não é da minha competência julgar ou me aprofundar nessa questão, uma vez que busco, com essa história, despertar os mais variados sentimentos além do entretenimento. Trago para a ficção elementos da vida real para nos fazer questionar. Apenas isso.


Prólogo Orquídea Com lágrimas nos olhos, consegui uma passagem apenas de ida para a cidade do meu irmão. O rapaz da rodoviária se compadeceu do meu pânico e não chamou a polícia quando pedi que não envolvesse as autoridades. Eu só precisava de um lugar para recomeçar. Laerte tinha ido longe demais ao me pegar na madrugada e fazer uma sessão de tortura. Gostava da dor, estávamos acostumados a ter relações íntimas mais enérgicas, éramos movidos pelo sexo e as fantasias de luxúria, mas o que fez... era imperdoável. Sem avisar ou dar satisfação, como sempre foi nosso relacionamento de ambas as partes, quando acordei amarrada na cama para onde fui levada, soltei-me e agradeci que permanecia na mansão do meu namorado – que logo se tornaria ex. Em um dos quartos dos empregados, envolta de uma toalha, saí pelos corredores e fui até um dos vários quartos de visita que existia nela. Fiz uma mala rápida com o que dava e tomei banho, chorando ao ver o que tinha se tornado o meu corpo. Nunca mais teria outro homem.


Como sobreviveria? Sem profissão ou estudos, a única coisa que sabia fazer bem e com um toque de depravação, era transar. Vender meu corpo não era opção, por mais que poderia ter um bom rendimento com minha performance. Sonhadora e apaixonada, nunca me vi sem um homem ao meu lado e por isso, a única pessoa que pensei, quando me afastei do local que eu considerava meu lar, era Otávio. Meus

pais

não

eram

uma

opção.

Afastados

fisicamente

e

emocionalmente, o único que tinha contato era meu irmão mais velho. Com sua esposa, filha e um estúdio de tatuagem, com certeza me ajudaria a encontrar algo que eu gostasse de fazer que não fosse relacionado ao meu lado sexual aflorado. Por que não segui os conselhos dos pais das minhas amigas de colégio? Por que não fui em busca da minha independência financeira e emocional? Flashes de imagens do meu passado, quando pré-adolescente, tentaram dominar minha mente querendo responder meus questionamentos, mas afastei, sentindo a dor do presente queimando a minha pele. Precisava focar no que importava hoje, já que estava sem documentos ou algum pertence meu. Como não fui até o meu closet resgatar a bolsa e celular, peguei carona com um dos motoristas que se simpatizavam comigo até a rodoviária, consegui uma passagem de forma clandestina e embarquei no ônibus na poltrona mais ao fundo. Precisava descansar minha mente e dormir, mesmo ainda sendo manhã. Quanto mais rápido chegasse, melhor. Eu precisava fugir. Mudar de vida. Encontrar uma força em mim, se é que era possível. Sentia-me perdida e a única culpada era apenas eu mesma. Ninguém me contou que as pessoas que confiamos poderiam abusar da nossa ingenuidade. Não me aconselharam que meu mundo poderia ruir e tudo o que era ou conhecia seria jogado no lixo, eu precisava me preservar. O que iria fazer?


Quase um dia inteiro para chegar até a cidade do meu irmão. Com a ajuda das pessoas na rodoviária, encontrei o número do seu estúdio de tatuagem e liguei do telefone fixo de uma lanchonete, informando minha chegada. Recebi sua acolhida com muitos palavrões, questionamentos, mas também, sua proteção sem esperar respostas. Tive a recepção da calma de Samira, sua esposa, e a paz angelical da minha sobrinha, Sâmia. Ganhei uma cama, um teto sobre a minha cabeça, comida... um lar. Precisei de um mês para perceber que meus valores estavam distorcidos, que nem tudo na vida era sexo, por mais que sentia falta de me relacionar e praticar o ato. Ansiava pelas dores, a loucura do momento e a adrenalina nas minhas veias, mas tudo conseguia ser abafado quando buscava Sâmia na escola e a ajudava com sua rotina. O lúdico, a inocência e sua alegria resgatavam algo bom em mim, eu tinha algo em mim que valia à pena. Sentia que era o caminho para prosseguir com minha fuga. Havia apenas um anseio que não conseguia ofuscar, minha necessidade de fugir, mesmo não achando que Laerte se esforçaria para me encontrar. Focado no trabalho, sempre fui terceira ou quarta opção, nunca a primeira. Era bem capaz de ser substituída no segundo seguinte que não me encontrou na sua mansão. Precisava reaprender a viver, a ser gente, antes que outro homem surgisse para mexer com o meu mundo. E, para meu desespero, essa pessoa veio muito antes do que imaginava, era a tentação em forma de terno, tatuagem e um olhar desafiador. Ele enxergava minha alma e tinha medo de me perder, mais uma vez, submersa na minha pior parte.


Capítulo 1 Erick Bortolini Franzi a testa quando a agulha acertou a região do osso do meu pulso. Oton sorriu para minha tentativa frustrada de ocultar a dor e não parou de trabalhar na tatuagem no meu antebraço. Apertei os dentes para não soltar um palavrão mais alto que a música que tocava nos alto-falantes que tinha na sua sala. Five Finger Death Punch soava com a música Bad Company e não aplacava nem um pouco meu sofrimento.

“Com uma espingarda nas mãos Por trás da arma Eu vou deixar minha marca”

Essa música representava bem o homem que fazia arte na minha pele, ele sempre deixava sua marca. E pensar que teria mais uma sessão depois dessa.


— Isso que dá demorar demais para fazer outra tattoo, véio. Foram o quê? Um ano? — Oton resmungou, passou a gaze em cima da tatuagem e voltou a me torturar na mesma região. — Por mim, eu faria uma tatuagem por mês, você sabe — minha voz soou estrangulada. — Esse último semestre foi estressante demais, porém, não posso reclamar. É o que paga sua sessão tortura. — Se chorar, te tiro daqui a chutes e não termino o caralho desse desenho — falou sério, ergueu a pistola de tatuagem e esperou alguns segundos para me recompor. Se não o conhecesse o suficiente, diria que estava me intimidando. Ergui minhas sobrancelhas em desafio e ele voltou para meu pulso. Faltava pouco para esse sombreamento, que dor dos infernos. — Anda logo, vai atrasar meu compromisso da noite — entrei na brincadeira. — Com o travesti da rua de cima? Sempre soube que você não era da mesma turma que eu. — Bateu no meu ombro e se virou para o seu balcão, para repor a tinta na pistola. Era um idiota, ninguém perdia para a zoação desse tatuador. — Pode ficar tranquilo, não tenho preconceito. É lindo de se ver a diversidade. — Pau no cu — resmunguei rindo baixo e depois xingando. Não lembrava que doía tanto essa região. — Para quem tatuou o peito, estar reclamando do antebraço é muita frescura. — Deixou um pouco de lado a parte mais dolorida e seguiu para outra parte do desenho, para meu alívio. — Qual é a vez da noite? Tomou vergonha na cara e vai até o restaurante do Diogo? — Tomar no cu — rebati irritado na hora, meu humor havia azedado. — Vai escolher um partido agora? — E você, não tira o cu da boca? — Sorriu como um maníaco e ergueu a pistola, para poder respirar um pouco. — Vocês são praticamente sócios e


ficam igual comadres brigadas por conta de fofoca. Os dois precisam acordar para a vida. — Tenho minhas razões e não vou discutir com quem se acha invencível. Quem precisa ir pessoalmente a um restaurante para ser sócio? Entrei com o dinheiro, nossa amizade é de anos, ele deveria levar em consideração. — Neguei com a cabeça e suspirei. Quem me via de terno ou apenas expondo minhas tatuagens, acharia que sou um homem sem medos. Poderia até ser, se não fosse um deles me fazer recuar de muita coisa, inclusive da inauguração do restaurante que ajudei a construir, no terraço de um dos prédios comerciais mais ilustres da cidade. — Então, já que quer mudar de assunto, fale um pouco das mulheres da sua vida. — Tem certeza? Conheço sua mulher e tenho certeza de que ela cortará seu pau fora se imaginar que está escutando sobre as minhas fodas de final de semana. — Desafiei-o com o olhar quando fez uma careta antes de continuar a tatuar. — Quem manda em casa sou eu, rapaz. Já que não falaremos sobre a amizade colorida que você tem com Diogo, que seja suas beldades sem tatuagem. — A música havia terminado e sua voz pode ser ouvida por todo o estúdio. Ele se fodeu. — Estou escutando daqui, Oton! — Samira falou alto da recepção, para desespero do tatuador. — Erik é uma má influência, amor! — gritou em resposta e parou tudo o que fazia, para acionar a música novamente. — Posso por minha playlist? — perguntei divertido. — Quer fazer a tatuagem em você mesmo também? — As piadas com seu rosto sério eram um show à parte. — O estúdio é meu, quem manda na música sou eu.


— Mas em você, quem manda é Samira. — Abri a boca para chamar sua mulher, mas parei quando escutei o barulho da porta de entrada, indicando pessoas entrando no estúdio. — Papai! — A pequena Sâmia, de olhos azuis e cabelos loiros entrou correndo na sala e abraçou Oton. Com seus cinco anos, ela era o equilíbrio entre tanta tinta e rebeldia que os pais exalavam. — Olha quem está aqui, filha. O tio Erik. — Ele a ergueu, virou-a de ponta cabeça antes de me mostrar. — Ele está chorando, o que a gente deve fazer com ele? — Coloca música dos Beatles! — a criança falou animada para o pai, mas quando me encarou, demonstrou constrangimento. Ela estava enorme e acompanhei seu crescimento desde a gestação de Samira. — Está linda, princesa. E seu pai é um bobão, quem está chorando é ele. — Minha brincadeira a deixou assustada, mas antes que respondesse, uma mulher entrou na sala focada na criança. Morena e com cabelos longos ondulados, sem tatuagens aparente e com uma roupa recatada, a mulher mais parecia a mãe de Sâmia do que Samira, que costumava pintar o cabelo de preto e usava decote expondo a arte do marido. Grande parte das suas tatuagens foram feitas por ele. — Vamos tomar um lanche. Deixe o papai trabalhar. — Tirou a menina do colo de Oton, virou seu rosto para mim e ficou alguns segundos piscando os olhos antes da sua bochecha ganhar tons de vermelho. — Desculpe, Otávio. Você está com cliente. — Ele é de casa, não precisa ter vergonha não. — Beijou a filha e foi trocar as luvas pretas de látex. — Além do mais, ele nem gosta da fruta. Fica tranquila. — Otávio? — questionei enquanto encarava a mulher sair da sala com a filha do tatuador. Nem me importei que desprezou minha masculinidade para a mulher mais linda que já tinha visto na minha vida, porque nunca imaginei que o nome dele não fosse Oton.


— Não espalhe, vai estragar minha reputação. Além do bullying. — Ligou a pistola e voltou para o meu braço. — Como nunca soube que você tem outro nome? — É o mesmo nome de sempre, porra! Esqueça que escutou algo diferente. — Nunca, preciso saber mais. — Ergui meu pescoço, para espiar a porta, para desgosto do tatuador. — Quem é ela? — Minha irmã e você estava me falando sobre seu compromisso da noite. Aquela ali é freira, se for necessário, vou por cinto de castidade nela. — Babaca! — soei irritado, Oton tinha ido longe demais. Como sempre, ele deu de ombros e focou no seu trabalho. — Sabe que brinco, ainda mais quando sei que vai irritar quem está escutando — confessou baixo. — Ela está com alguns problemas e não precisa de outro macho nas costas dela. Só isso. — Encarou-me com seriedade. — Confio em você. — Tenho certeza de que não fui o primeiro a reparar. Seus clientes vão voar nela igual urubu em cima da carniça. — Não, porque esse horário só estou atendendo pedidos excepcionais. E, como sei que vai fazer o que estou mandando, não fechei a porta para a proteger. — Ela está em perigo então? — questionei voltando a olhar para a porta, curioso para saber mais sobre ela. — Qual seu nome? — Lembre-se que estou com a agulha, filho da puta. — Não xingue minha mãe — reclamei irritado, ele riu, porque esse era Oton, que se chamava Otávio e escondia uma irmã a sete chaves por tanto tempo. — E vou continuar blasfemando até sua décima primeira geração se não tirar o olho da porta de entrada esperando que minha irmã passe. Esqueça, ela não é para o seu bico.


— E quem é, senhor sabichão? — O travesti da rua de cima. Dê uma chance, você vai amarar o fio terra. — Ai! — gritei, porque ri, mexendo meu braço e o fazendo escorregar. Não deveria ser engraçado, mas a gargalhada que dei tinha tudo a ver com o que eu gostava de fazer com as mulheres e não o que eu apreciaria receber. — Vai para casa, não vou mais terminar essa merda hoje — resmungou realmente chateado, limpou a região e comecei a rir ainda mais. — Para quem não quer que eu veja sua irmã, você até que está indo contra a maré, aumentando o número de sessões para terminar a tatuagem. — De costas para mim, ele negou com a cabeça e falou alguns palavrões baixos. Levantei-me e peguei a pomada para passar no local onde ele trabalhou, já era de casa. — Volto daqui uma semana? — Ano que vem — falou como se fosse uma criança emburrada. Bati nas suas costas e coloquei apenas um braço da minha camisa social. Preferia não ter nenhum tecido branco por perto, porque a tinta já havia manchado muitas roupas. Segurei o paletó e esperei que me olhasse antes de falar: — Você confia em mim. Eu não sou um babaca. — Não sei qual dos dois é pior, ser ou não ser. — Levantou-se, bateu na minha mão e me puxou para um abraço de um braço. — Vai lá, Samira marca um horário para você daqui dez dias. — Valeu, irmão. — Sem desvios! — falou alto quando passei pela porta e olhei para os dois lados do corredor, um levava a cozinha e outro para a recepção. Mostrei-lhe o dedo médio e fui até Samira, que revirou os olhos assim que me aproximei sorrindo. — Não falei nada sobre minhas noitadas — brinquei entregando-lhe meu cartão de crédito.


— Ele acha que vai proteger a irmã como se fosse a Sâmia. A menina já está assustada por conta das merdas que aconteceu, ainda aparece o Oton com essas coisas. Sabe que ele não mede as palavras, certo? — Você sabia que o nome dele era Otávio? Estou chocado — mudei de assunto, porque não seria dessa forma que descobriria mais sobre a tal irmã. Afinal de contas, por que estava interessado? — E o dela é Orquídea, mas no final das contas, quem arranjou um apelido foi ele, que sempre teve um nome normal. — Abri a boca em choque e ela me passou a máquina de cartão para colocar a senha. Piscou um olho quando continuei chocado e assimilando que aquela mulher doce tinha o nome de uma flor mais delicada ainda. — Prontinho, Samira. — Falando nela, a irmã de Oton apareceu na recepção

com

Sâmia

ao

seu

lado.

Ela

se

aproximou,

novamente

envergonhada, desviou seu olhar do meu. — Posso fazer a tarefa com ela? — Eu adoro estudar com a tia Orquídea. — A herdeira do estúdio de tatuagem pulou animada. — Faça isso, querida. Você está quebrando um galhão enquanto eu termino de fechar a contabilidade do estúdio. — As duas saíram da recepção, mas não sem antes da mulher me direcionar uma última espiada. Encarei Samira, que segurou o sorriso enquanto me dava a via impressa do cartão de crédito junto com ele. — Vá embora, antes que você perca mais um amigo — falou em tom de brincadeira, mas doeu como se fosse uma direta certeira no meu estômago. Sim, tinha perdido um amigo por ele não compreender minhas restrições quanto a não ir presencialmente no seu restaurante na cobertura de um edifício comercial. Também falhei por nunca buscar um tratamento para tratar o problema real, que me impedia de lidar com a altura. Era uma merda ter um ponto fraco difícil de lidar, essa era a verdade.


Estiquei meu corpo para dar um beijo no rosto de Samira, saí do estúdio e o encarei antes de entrar no carro e seguir meus planos para a noite... ou pelo menos tentar. Orquídea... ela não sairia tão cedo da minha mente.


Capítulo 2 Orquídea Deixei Sâmia na escolinha e fui caminhando até no mercado de bairro onde trabalhava no período matutino. Meu irmão tinha costume de dormir até muito tarde e sua mulher a acompanhava. Minha vinda até sua casa, por mais que me sentia um empecilho, também era visto como útil, já que meu horário acompanhava o da minha sobrinha. Sentia-me importante ao cuidar de uma criança, ainda mais quando falavam que se parecia muito comigo. Na verdade, ela era a cara do pai, mas por conta das tatuagens e cabelo rebelde, muita das características foram camufladas. Minha sobrinha era uma menina especial e delicada, com o gênio do pai. Não sabia como ela não xingava tanto, já que meu irmão não conseguia dizer uma frase sem deixar de colocar esses adjetivos de intensidade promíscuos no meio. Estava acostumada, ainda mais por nosso pai ter sido assim e meus ex-namorados seguirem a mesma linha. Só de lembrar no meu passado, meu corpo inteiro se arrepiava de medo. Toquei meu braço coberto pela blusa de manga comprida e senti a


pontada da dor, que ainda me acompanhava. Minha roupa habitual se tornou essa e não conseguia mostrar para ninguém como meu corpo realmente estava. Sentia vergonha e culpa. Otávio me mataria ao saber qual foi a única tatuagem que existia no meu corpo, mesmo contra minha vontade. Se algum dia eu fizesse por minha vontade, com certeza confiaria apenas no meu irmão para isso. Laerte soube usar minhas próprias fraquezas contra mim, de forma sádica, nem um pouco afetuoso como demonstrou um dia. Ele me tinha em suas mãos, mesmo estando longe. — Bom dia, seu Gerônimo — cumprimentei o dono do mercadinho que levava o seu nome. Estava abrindo as portas do local, cheguei junto dele. — Oi, menina. Me ajude com as verduras que chegarão daqui alguns minutos — comandou e sorri pronta para o trabalho. Ele era um senhor de meia idade, que me ajudou quando eu precisava de emprego, mesmo não tendo documentos comigo para oficializar. — Estou pronta. Como não usava bolsa, tinha apenas o celular no bolso de trás da calça jeans, fiquei na parte da frente esperando o entregador. Mais dois colegas de trabalho chegaram, um no caixa e outro do estoque, continuei na minha posição. Logo o caminhão das verduras chegou. Ele costumava flertar e eu ignorava, ainda mais quando meu objetivo era juntar um pouco de dinheiro para ir embora, o mais longe que eu pudesse. Fugir se tornou uma obsessão, meu objetivo de vida para poder respirar sem pensar que, em qualquer momento, Laerte descobrisse onde eu estava e viesse me torturar mais uma vez. — Tenho certeza de que fez algo com o cabelo. Está mais brilhante hoje — Jorge comentou quando me deu a última caixa com as verduras. Demorei para o encarar, primeiro conferi os produtos, contei, recontei e depois sorri forçado para ele.


— Está tudo certo. Muito obrigada e tenha um bom dia. — Sou paciente — falou piscando um olho e voltando para o caminhão. Dei-lhe as costas e fechei a cara. Por que só atraia homens problemáticos? Jorge era insistente, não entendia uma rejeição e se achava no direito de invadir meu espaço pessoal e emocional. Continuei meu trabalho com tranquilidade, pelo menos os colegas e os clientes não eram tão intrometidos. Tirando o questionamento da minha opção de blusa de manga comprida, se eu não estava com calor, minha rotina era tranquila. Mais tarde, iria ajudar Samira com a limpeza do estúdio, buscaria Sâmia na escola e a ajudaria com a tarefa de casa. Enquanto dava uma folga para os pais, eu estreitava os laços com minha sobrinha, já que estava longe quando nasceu e se transformava na criança linda que era. — Um horror! — escutei alguém falar enquanto finalizava meu expediente, organizando as laranjas e maracujás. Olhei por cima do ombro e vi uma senhora no caixa com uma garrafa de vinho. — Nem vinagre tem gosto tão ruim. Quero meu dinheiro de volta e não vou recomendar essa marca para ninguém!


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.