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"Sérgio, o Mercado está destruído"

Por Sérgio Martins | Jornalista

“Sérgio, o mercado está destruído”. A queixa não parte de um artista independente, mas sim do integrante de uma banda pop de alta patente, cujo nome prefiro não revelar – e que tem visto sua receita minguar devido à falta de shows. Desde que o flagelo do século XXI chamado Covid-19 aportou no país em março (ou fevereiro, segundo estimativas mais alarmistas), que o ramo do entretenimento sofreu golpes pesados. O palco foi o primeiro local a ser esvaziado. Fernanda Takai viajou do interior de São Paulo para Belo Horizonte por causa do cancelamento da turnê do álbum O Tom da Takai; o compositor Moacyr Luz interrompeu o show de lançamento de O Samba do Trabalhador, no Circo Voador (Rio de Janeiro), e se enfurnou em seu apartamento no bairro do Flamengo. Agendas inteiras foram parar no lixo, temporadas de concertos eruditos e populares – nacionais e internacionais, diga-se – ficarão apenas no sonho de espectadores e agências especializadas em entretenimento dispensam boa parte de seu quadro de funcionários. E quando voltarem, será com apenas 30% de ocupação anterior. O problema é global. Não há previsão de retorno dos musicais da Broadway americana e do West End inglês, orquestras como a Sinfônica de Nashville deram licença não remunerada para músicos e bandas como Iron Maiden decretaram 2020 como um ano “perdido”.

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“Sérgio, o mercado está destruído”. Ah, sim, voltemos ao Brasil depois de uma breve explicação da crise global. Em meio à esse cenário de uma produção de ficção-científica ruim (ou até filme de terror de baixo orçamento, visto que o vilão de A Máscara Vermelha, de Roger Corman, se assemelha a um governante de certo país latino-americano), as performances através do YouTube se tornaram um alívio para quem deseja matar a saudade de shows e uma fonte de renda extra para os artistas. Segundo uma pesquisa realizada online pela plataforma em junho, elas foram assistidas por 85 milhões de pessoas, ou seja, 71% da população digital do país. Desses, 38% assistiu à mais de seis performances e 24% assistiu à mais de dez apresentações. Oito das dez lives mais assistidas no mundo inteiro são de artistas nacionais – sendo que Marília Mendonça é a campeã, com mais de 3,3 milhões de espectadores. Trata-se, claro, de uma fórmula contestada e com prazo de validade. Empresários como Rommel Marques, responsável por momentos grandiosos da carreira da dupla Zezé di Camargo & Luciano e Anitta, e Stephen Mark Altit, produtor de shows internacionais, acreditam que o público certamente irá se cansar de se deparar com problemas de conexão e a falta do aparato de um grande show. A publicidade, contudo, viu uma maneira de anunciar produtos de seu interesse através da boca e da vestimenta de seus artistas prediletos – que vendem de chinelo e pijamas a uma determinada marca de arroz.

“Sérgio, o mercado está destruído”, continua o mantra, tão forte e implacável quanto o personagem principal de O Corvo, poema do americano Edgar Allan Poe (1809-1949). De fato, o público irá se cansar do excesso de lives e está privilegiando os artistas de popularidade nas alturas – leia-se os sertanejos e alguns nomes da axé music e da MPB. Mas há projetos de beleza tão rara que alimentam a alma.

Monica Salmaso, intérprete paulistana, criou o Ô de Casas, no qual recria o cancioneiro nacional com participação de grandes nomes da MPB – e aqui a lista vai do pianista André Mehmari a Chico Buarque. Não é uma live, visto que as participações são gravadas, editadas e levadas ao ar com uma precisão incomum. Mas são uma ambrosia para os ouvidos cansados e almas desesperadas. A cantora Teresa Cristina, por seu turno, faz uma live diária às 22h, no qual interpreta músicas de sua preferência ou recebe convidados como Gilberto Gil, Marisa Monte e a própria Monica Salmaso. Gil, Milton Nascimento, Lulu Santos, Skank, Jota Quest e Caetano Veloso deram um tempo no isolamento através de suas lives. E se as agências de publicidade pensam somente em nomes que possam agregar valor às marcas das quais elas detêm a conta, é de se louvar a atitude da secretaria de Cultura do estado de São Paulo que patrocina performances de artistas que estão fora do grande circo midiático. Há até quem aposte que essas lives poderão se tornar fonte constante de renda enquanto o nosso mundo não volta ao normal. “O futuro será a transmissão remunerada”, diz Marcinho Bertolone, da Lab3, uma das principais empresas que organizam esse tipo de evento. Por enquanto, uma das alternativas são os shows em drive-in, que receberam de Jota Quest ao cantor de heavy metal Edu Falaschi – que exibiu em primeira mão seu DVD ao vivo, mas sem show.

“Sérgio, o mercado está destruído”, continua frase a me assombrar. Os tempos atuais, embora duros, às vezes podem se tornar uma fonte de inspiração. A Sétima Sinfonia, do compositor russo Dmitri Shostakovich (1906-1975), foi criada em 1941, durante a invasão da União Soviética pelo exército alemão. Os músicos que lá estiveram contam de companheiros que “faltaram” ao ensaio porque entraram para a estatística de vítimas do embate sangrento. O atual flagelo levou seu quinhão de soldados (e oficiais graduados, como o compositor Aldir Blanc), mas é hora de resistir. Moacyr Luz, parceiro de Blanc, criou 30 composições em meio ao seu cativeiro particular; Teresa Cristina lançou um disco dedicado a Noel Rosa; o bandolinista Hamilton de Holanda se lançou em projetos ao lado de João Bosco e do sanfoneiro Mestrinho; Fernanda Takai apressou as gravações de seu álbum Será que Você vai Acreditar, que traz composições inspiradas no período da pandemia; a produção independente se anima com novos projetos de Rômulo Fróes, Tatá Aeroplano, Filipe Catto, Arthur Nogueira, Ana Mametto; Joyce e Zé Renato nos brindam com pequenos musicais caseiros e Zélia Duncan usa suas redes sociais para falar de poesia e fazer manifestos tocantes.

“Mas, Sérgio, o mercado está destruído”... Sim, há muito o que se reconstruir. Mas o momento pede solidariedade, o que o showbiz, muitas vezes criticado e acusado injustamente de viver à base de leis de incentivo, tem mostrado de sobra. Lives de artistas têm sido utilizadas para arrecadar alimentos. A Associação Brasileira de Música e Artes, Abramus, organizou uma campanha para amparar músicos e técnicos de som e de palco, esses sim os mais afetados pelo isolamento provocado pela pandemia. TV Maldita, do baterista Aquilles Priester, reúne nomes importantes das baquetas do universo musical brasileiro e internacional em entrevistas reveladores (Claudio Infante e Kadu Menezes, ex-Kid Abelha, André Jung, ex-Titãs e Ira!) com renda revertida para as equipes técnicas. O projeto Primeiro Abraço é outro ato de solidariedade que merece destaque: uma coleção de duetos improváveis (21 ao todo) cujo encerramento está marcado para o Solar de Botafogo, tradicional reduto artístico do Rio de Janeiro.

Sim, o mercado está destruído. Mas vai se levantar.

(Foto: DR - Direitos Reservados)

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