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Antes que o álcool te queime
- POR ANDREÍNA DE FREITAS, SOFIA MOREIRA, MARIANA NEVES E CAROLINA SILVA -
Com a chegada do mês de maio, entre tradições e bebedeiras, chega a tão esperada Queima das Fitas (QF). Litrosas, ‘happy hours’, metros de cerveja, ‘shots’ e promoções são os ‘packs’ que caracterizam os padrões do consumo de álcool nos jovens portugueses, em especial nas Semanas Académicas de cada cidade.
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A festa académica começou em meados do século XIX, na cidade dos estudantes, no Largo da Sé Nova, e consistia na queima das fitas de algodão que eram usadas pelos alunos para unir as páginas das sebentas. A QF é acompanhada ainda por uma série de eventos como o Cortejo dos estudantes, a Serenata Monumental e a Bênção das Pastas, entre outras tradições. No seio destas celebrações estão os concertos que ocorrem na Praça da Canção durante toda a semana. Além de todos estes costumes, o álcool também demonstra ser um dos principais companheiros de todos os jovens durante a emblemática Queima das Fitas.
A ciência e os números por trás do álcool Não só os estudantes, mas toda a população portuguesa gosta dos seus finos. De acordo com o relatório "Prevenir a Utilização Nociva do Álcool”, divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) em 2021, a média do consumo de álcool em Portugal está entre as mais altas dos seus estados-membros, com doze litros anuais de álcool puro, que equivale a pouco mais de quatro litros e meio de cerveja por semana, ou meio litro por dia. A pesquisa revela ainda que a perpetuação deste consumo exacerbado vai causar um decréscimo de um ano na esperança média de vida dos portugueses, nas próximas três décadas.
A perspetiva de uma vida mais curta, entretanto, não abala os universitários durante a mais clássica celebração académica do ano. Como indica o artigo científico “Consumo de álcool nos estudantes do ensino superior de Coimbra e o impacto das festas académicas”, publicado em 2022, estas comemorações aumentam o risco de consumo excessivo de álcool entre os jovens. Durante as festas universitárias, o aumento do consumo de bebidas espirituosas também se intensifica, em especial por parte do sexo feminino.
Segundo uma notícia no jornal Público, na semana passada, o subdiretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências reafirmou estes factos ao divulgar que Portugal é o país que, a nível mundial, consome mais vinho per capita. O representante afirma que esta bebida engloba 60 por cento das bebidas alcoólicas mais consumidas entre os portugueses, seguido do consumo de cerveja, que ronda os 30 por cento. No nosso país as bebidas espirituosas não são tão populares, já que representam apenas cerca de dez por cento da ingestão de álcool, refere. Segundo os dados revelados, 61,5 por cento da população geral consome álcool.
Paula Tavares, professora da Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra, esclarece que o álcool é uma substância psicoativa que estimula o sistema nervoso central e, quando consumido, gera, no início, uma sensação de desinibição, mas também uma perda da noção de perigo. A seguir, manifestam-se os efeitos depressores que, de acordo com a investigadora, são os mais graves porque afetam a coordenação motora, a ação neuronal, a capacidade de compreensão e também de reação. Acrescenta que, a longo prazo, o consumo de álcool provoca uma perda de neurónios, o que pode causar atrofia cerebral.
A docente ressalta o efeito aditivo do álcool, pois é “das drogas que mais habituação causa”. O consumo continuado desta substância “cria necessidade de doses cada vez mais elevadas”, constata. Realça ainda que o principal perigo com esta droga é o seu fácil acesso, pois “é vendida a maiores de 18 anos, em qualquer sítio”, refere. O alcoolismo entre os jovens é um problema que merece mais atenção porque muitos dos dependentes da bebida “começaram a consumir na sua juventude, em contexto social, até se tornarem alcoólicos”, alerta. Acrescenta que um dos sinais a ter em atenção é a passagem de bebidas com menor teor alcoólico para um teor mais elevado, como o caso de bebidas brancas. Segundo a professora, depois de um consumo excessivo desta substância, é normal sentir sintomas de ressaca, como desidratação e hipotermia. “A intoxicação alcoólica provoca a ressaca”, complementa. Para isso acontecer, tem que haver um abuso no consumo, ou seja, uma intoxicação do organismo com uma substância que tem efeitos nocivos, o que faz o corpo reagir para a libertar. Paula Tavares apela, de igual forma, a todos os estudantes para serem moderados no consumo de álcool, uma vez que “depois de chegar ao grau de intoxicação, não vão conseguir aproveitar a festa e o convívio".
Os comportamentos dos estudantes na QF Também a coordenadora do local de emergência da Cruz Vermelha de Coimbra, Sofia Peixoto, e o chefe da equipa de eventos na atuação na QF, Diogo Marques, corroboram as afirmações de Paula Tavares. Responsável pelo serviço na cidade há 10 anos, Sofia Peixoto coordena a ligação de apoio entre a QF e a instituição humanitária para assistir todos os estudantes da cidade: “criámos um Posto Médico Avançado, onde estabilizamos a vítima, seja etilizada ou de trauma”.
De igual forma, Diogo Marques apoia a urgência de um posto de emergência na QF como resposta rápida de socorro, uma vez que é “frequente existirem vítimas em coma alcoólico”. Em 2019, os impactos deste consumo atingiram de forma agressiva os jovens, mas com o confinamento os números decresceram, revela a equipa da Cruz Vermelha. Desta maneira, o ano de 2022 ainda não atingiu os resultados anteriores, visto que não houve uma recuperação total no regresso à normalidade na fase do pós-pandemia, completa.
Apesar da atuação eficaz dos membros do posto de urgência, Sofia Peixoto e Diogo Marques reconhecem o aumento do consumo de álcool entre os jovens, que parte pela falta de pré-prevenção das organizações dos eventos. "Podiam tentar fazer ações de prevenção ao longo do ano, como distribuir ‘flyers’ ou a partilha de informação nas redes sociais", explica o chefe da equipa de eventos da Cruz Vermelha na QF. O grupo responsável alerta ainda que, com o acesso aos malefícios do alcoolismo, “seria positivo os jovens moderarem os comportamentos no consumo desta e de outras substâncias”.
A poucos dias desta semana tão aguardada, o Jornal Universitário de Coimbra - A CABRA saiu à rua para saber os hábitos de consumo de alguns estudantes da Academia. A grande parte dos entrevistados, que não se quis identificar, refere que consome álcool todas as semanas, mas acrescentam conseguir divertir-se sem álcool, apesar de alguns revelarem que “não é a mesma coisa”. Quando questionado sobre o porquê, um estudante de 22 anos do terceiro ano da Licenciatura em Contabilidade e Gestão Pública, afirma que “pode correr descalço, mas com sapatilhas é mais rápido, e com o álcool é igual”. Este tipo de consumo permite “aguentar a noite até mais tarde e estar mais à vontade”, confessa uma aluna de 19 anos do segundo ano da Licenciatura em Ciências Bioanalíticas.
Quanto à ingestão de bebidas com maior percentagem de álcool, todos os estudantes assu- miram consumir ‘shots’, porque muitas vezes “sai mais barato” e “acelera mais (a intoxicação)”. Uma jovem de 20 anos do terceiro ano da Licenciatura em Engenharia Química partilha que basta “dois shots, 1,5€, e está a andar”. Os estudantes que não consomem álcool referem divertir-se como os seus colegas. Uma estudante de Medicina de 20 anos acredita que "consegue divertir-se mais porque eles (estudantes que bebem em excesso) chegam a um ponto da noite em que já não aproveitam”.
Durante a Semana Académica, a maioria dos estudantes refere que a sua rotina se altera e que trocam o dia pela noite. Um aluno de 22 anos do quarto ano da Licenciatura em Enfermagem, afirma que nessa semana não faz mais nada “senão dormir e ir para a queima”. O consumo de álcool e as saídas até de madrugada têm impacto no cansaço físico da maioria. Depois da semana da QF, um estudante de 20 anos do terceiro ano da Licenciatura em Ciências do Desporto confessa que “fica destruído” e alguns estudantes relatam precisar de “dois dias para recuperar”.
Em pleno 2023, o álcool é, desta forma, um tema que preocupa cada vez mais os profissionais de saúde. Como afirmam os especialistas, deveriam existir pré-prevenções que pudessem chegar aos jovens e, dessa forma, os fizessem ter a devida prevenção em relação ao consumo excessivo de álcool. Apesar de todos os seus malefícios, a QF não se esgota com ele, uma vez que muitos dos estudantes ainda fazem a festa ao gerir o que bebem, de forma a aproveitarem o que de melhor as noites do recinto têm para dar.
O mês de maio não é, assim, só feito de festas e bebedeiras, mas também de lágrimas e orgulho no momento da despedida, partilhado entre todas as famílias e finalistas. A QF, que vai ocorrer de 19 a 26 de maio na Praça da Canção em Coimbra, vai priorizar a preferência dos jovens pelo álcool, desde a cerveja aos shots, mas como se diz na cidade dos estudantes: “Queima é em Coimbra, o resto são finos”.
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