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Com grandes artistas, vêm grandes constrangimentos

Coimbra torna-se palco de grandes eventos neste mês de maio, com o concerto dos Coldplay e Queima das Fitas. Moradores da cidade afirmam que falta de comunicação foi dos principais lapsos na organização das atividades.

Os quatro concertos da banda britânica Coldplay, que vão trazer à cidade mais de 200 mil pessoas durante os dias 17, 18, 20 e 21 de maio, levaram a Câmara Municipal de Coimbra (CMC) a reunir com entidades de segurança para garantir a proteção da população e evitar conflitos na cidade. Este evento levou também à alteração do tradicional Cortejo da Queima das Fitas de 2023 (QF’23) para terça-feira, dia 23.

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Na passada segunda-feira realizou-se a Conferência de Imprensa - Operação Coldplay na Tribuna Presidencial do Estádio Cidade de Coimbra, com as entidades responsáveis pela organização do evento. Marcaram presença o presidente da CMC, José Manuel Silva, o vice -presidente da CMC, Francisco Veiga, a vereadora do Espaço Público, Ana Bastos, o subintendente da Polícia de Segurança Pública (PSP), José Nascimento, e o diretor de produção da promotora Everything is New, Pedro Viegas.

Na conferência foi discutido o plano de operações desenvolvido pela CMC, em conjunto com a Proteção Civil e a Everything is New, que visa garantir a segurança e o sucesso dos quatro concertos da banda. A CMC disponibilizou informação no ‘site’ oficial sobre as implicações dos concertos: condicionamentos, transportes públicos, parques de estacionamento, esplanadas e venda ambulante, interdição de estacionamento, recolha de resíduos, avisos e editais.

Face à questão da alteração da data do Cortejo da QF’23, o presidente da CMC afirmou que as datas dos Coldplay são internacionais: “ou eram aquelas ou nenhuma". Além disso, acrescentou que foram ouvidas as opiniões de todos os en- volvidos, mas ”quando há opiniões incompatíveis, tem de prevalecer a segurança das pessoas, não a festa”.

Ao Jornal A Cabra, o chefe do núcleo de Investigação Criminal, Operações e Informações do comando da PSP, Renato Neto, anunciou que muitos dos planeamentos para segurança durante os eventos já foram efetuados. "Foram tomadas medidas para fora desta área e da malha social onde vão ocorrer os eventos, para cuidar de todos os problemas que possam surgir”, completou o responsável.

A força policial já possui diversos perímetros montados para inibir a passagem de veículos e limitar a locomoção pedonal nas áreas próximas do estádio. Segundo Renato Neto, essa decisão garante que “quem for assistir aos eventos possa circular com tranquilidade e não exista qualquer tipo de problema para a integridade física das mesmas". Além da PSP, outras entidades vão contribuir para a proteção, como a Cruz Vermelha, o INEM, os bombeiros e as empresas de segurança privada.

Renato Neto recomenda ainda à população que “chegue com certa antecedência, para permitir que as entradas sejam feitas de maneira mais calma e sem qualquer tipo de problema”. O membro da PSP completa que a população deve evitar “circular a partir das 14 horas, quando existem já condicionamentos de trânsito”, além de não tentar “entrar nas zonas em que não tenham autorização para tal”.

O Jornal Universitário de Coimbra - A CABRA saiu também à rua e entrevistou pessoas sobre a realização dos diversos eventos no decorrer do mês de maio. Moradores e trabalha - dores de Coimbra mostraram a sua opinião ao afirmar que vão ser afetados pela afluência de pessoas na cidade, pelas alterações dos transportes e pelo corte de estradas durante os quatro dias de concertos, que ainda vão estar a decorrer aquando do início da semana da Queima das Fitas.

Um dos entrevistados é Ricardo Vaz, trabalhador da livraria Almedina, no Estádio Cidade de Coimbra, que declara que as entidades responsáveis pela organização "deveriam ter comunicado de outra forma” com os estabelecimentos que se encontram dentro do perímetro de segurança estabelecido. Acrescenta que compreende que a realização dos concertos é “uma mais-valia para a região”, mas declara que o estabelecimento vai ter de ser encerrado, o que é prejudicial, devido à dificuldade de acesso dos clientes ao espaço.

Outra das entrevistadas é uma trabalhadora no estabelecimento H3 no Alma Shopping. Ivana Veiga afirma que os próprios clientes da casa já reclamaram devido ao difícil acesso e às alterações nos transportes. Além disso, o aumento da afluência de pessoas ao centro comercial fora das horas dos concertos vai afetar o trabalho no restaurante.

Ainda que com limitações, Coimbra permanece pronta para celebrar a vida académica com a semana da Queima das Fitas, enquanto recebe os Coldplay. Quem não vai aos concertos da banda britânica tem a oportunidade de assistir à atuação de outros artistas internacionais no Parque da Canção, como Ivete Sangalo, Mc Kevinho, entre outros.

Coimbra não é exemplo na integração de pessoas trans, mas há quem queira construir portos de abrigo dentro da cidade. Sociedade, língua portuguesa, cuidados de saúde e meio laboral não acompanham evolução da legislação em vigor.

- POR FÁBIO TORRES -

Afalta de espaços seguros, os comentários transfóbicos, a ineficácia do sistema de saúde público e a discriminação laboral são algumas das hostilidades que continuam presentes no quotidiano da comunidade trans em Coimbra. Por não se identificarem com o género atribuído à nascença e demonstrarem a sua identidade, estas pessoas são vítimas da “árvore liberal, capitalista, conservadora e patriarcal” presente na sociedade. Quem o diz é Lexy Narovatkin, membro da Rádio Universidade de Coimbra (RUC). “Apresentar com pronomes femininos no ar, com uma voz masculina, causa dúvidas a alguns ouvintes”, comenta. A mesma assume que nem sempre consegue aguentar o tratamento social.

Lexy assume-se como “não-binária”, por não se “conformar com características de género atribuídas” a si mesma. “Foi algo intrínseco e é algo que está em continuação perpétua”, ressalva a também estudante na licenciatura de Antropologia na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), sobre a forma como se identifica. O termo não-binário remete para pessoas que não se consideram masculinas ou femininas, embora a mesma assuma pronomes neutros e femininos, pelo que transgénero “acaba por ser mais abrangente para qualquer identidade que saia de constrangimentos binários”, explica Lexy.

Uma lei não chega

Ainda depois de despenalizadas, a homossexualidade e transexualidade foram consideradas doenças mentais durante décadas. A lei n.º 38/2018, de 7 de agosto de 2018, que ficou conhecida como a lei da autodeterminação de género, foi um marco, a nível legislativo, da luta das pessoas e associações Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, ‘Queer’, Intersexo, Assexuais e mais (LGBTQIA+).

A lei em vigor é considerada progressista a nível europeu, mas “ainda há muito trabalho para fazer”, acredita Daniela Bento, membro da direção da associação portuguesa de Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo (ILGA Portugal). Uma das críticas apontadas é a falta de integração de pessoas imigrantes, dado que só inclui quem tem cidadania portuguesa. “Muitas pessoas vêm à procura de refúgio e afinal não podem fazer a sua transição de forma legal”, lamenta Skye Espadinha, membro da rede Ex-Aequo, uma associação LGBTQIA+ com foco nos jovens.

O nome é uma das principais identificações de qualquer pessoa, contudo, mesmo a escolha de um novo “é difícil”, confessa Skye. “Todas as conservatórias estão obrigadas a fazê-lo, mas a ignorância ou transfobia dos funcionários” acaba por ser um entrave, segundo o mesmo. Relembra ainda que “quando uma pessoa transiciona, tem que escolher um nome presente numa lista, o que limita muita gente”.

Para Laura Rendas, da TransMissão, uma associação com sede em Almada, alguns dos problemas que a comunidade trans enfrenta “são sistémicos”, pois existem leis que não são do conhecimento de todas as pessoas. Considera também que “não há uma estrutura para educar os profissionais que tratam as pessoas em primeira mão”.

A qualidade dos serviços de saúde Para algumas pessoas, a autodeterminação da identidade não é suficiente para viverem a sua vida. A disforia de género continua a ser negligenciada pelos cuidados de saúde públicos. Laura Rendas afirma que “há situações de saúde complicadas em que são necessários tratamentos médicos, mas, mesmo que seja urgente, o processo prolonga-se porque não há resposta a pessoas trans”. Para além da fragilidade do próprio sistema de saúde, a mesma considera que “falta educação dos profissionais para lidar com pessoas que não têm os cromossomas que estão à espera”. A demora do sistema leva a que haja “problemas de saúde que pioram porque não há tratamentos”, conclui.

A solução para muitas está nos serviços de saúde privados, que não são viáveis para a maioria da comunidade. “São pessoas precarizadas e com uma alta taxa de desemprego”, explica Daniela Bento.

A Unidade de Reconstrução Genital-Urinária de Saúde de Coimbra (URGS) foi promovida a centro de referência em Portugal para cirurgias de afirmação de género, mas “neste momento não está a dar a resposta que deveria”, critica Daniela Bento. “Não é só em tratamentos específicos à transexualidade", recorda a mesma, que afirma que “também rapazes trans que pedem consultas de ginecologia têm as consultas canceladas porque do outro lado não percebem que eles podem precisar de ter esse serviço”.

A necessidade de a língua evoluir

A forma como cada pessoa quer ser mencionada é importante para a sua identidade. Perguntar quais os pronomes da pessoa e utilizá-los da devida forma constitui um passo na inclusão de qualquer pessoa, não apenas trans.

A língua portuguesa, tal como as outras, está em constante evolução, mas contém ainda alguns incómodos. Um deles, segundo Daniela Bento, é o de que a língua portuguesa “foi construída com base em género”. Ao mesmo tempo, e também numa perspetiva feminista, outro dos entraves acontece pelo plural das palavras estar mais orientado para ser escrito e falado com pronomes masculinos. Os pronomes neutros, por não valorizarem um género acima do outro, como refere Skye Espadinha, conseguem ser mais representativos.

Tem havido tentativas de criar uma linguagem mais inclusiva. O “X” ou o “@” ficaram populares na escrita, mas a complicada leitura dos símbolos fez com que caíssem em desuso. Na sua vez, palavras como “elu” ou “eli” têm ganhado lugar na língua popular, enquanto pronomes neutros. A linguagem passiva é outra forma de escapar à utilização de pronomes binários. Dizer “estar com atenção” invés de “estar atento/a” é um dos exemplos dados por Daniela Bento de como é possível falar de forma mais inclusiva.

O nascer e o pôr do Sol em Coimbra e no país Desde a Sé Velha até à Praça da República, Coimbra contém diversos estabelecimentos de consumo noturno. Contudo, a quantidade de locais LGBTQIA+ ‘friendly’ dentro da cidade são insuficientes. “A vida noturna está muito aquém do que as pessoas gostam”, confessa

Lexy. O pouco ambiente inclusivo que há acaba por acontecer na Festa Fora do Armário, organizada pela PathCoimbra, ou em Repúblicas.

Convívios com grupos de amigos em casa de alguém, em que todos se juntam num espaço mais inclusivo, ou ir a um dos sítios em que não se sentem discriminados, acaba por ser a pouca escolha que a Lexy e os amigos têm. Mesmo assim, a “homogeneidade do público nos espaços inclusivos”, de acordo com a estudante da FCTUC, acaba por não diferenciar as noites do ano, pois “toda a gente que se vê todos os dias vai aos mesmos sítios”.

Seja pela sua expressividade na roupa e na maquilhagem ou pela constituição física, a comunidade trans é um alvo fácil de comentários discriminatórios. “Continua a haver muito conservadorismo e continuam a haver pessoas menos simpáticas à noite”, assume Lexy, que acredita que Coimbra não é de todo “um ponto de conforto ‘queer”.

“De dia, o desconforto é diferente do noturno, pois as pessoas são diferentes”, confessa a estudante de Antropologia. O panorama não se altera pelo nascer do sol, pelo que a mesma refere que a discriminação durante o dia acontece “no habitual comentário homofóbico ou transfóbico”. Mesmo num grau menor, a falta de tolerância durante o dia leva a que os espaços diurnos, como cafés e esplanadas, sejam escolhidos a dedo, o que leva a que haja sítios “preferidos por serem mais resguardados”, reitera a estudante de Antropologia.

O trabalho das associações LGBTQIA+ com a comunidade trans

A contínua necessidade de pessoas transgénero em conseguir ajuda faz com que o trabalho das associações, que têm crescido ao longo dos anos, continue imprescindível. Entre as suas atividades e funções, estão presentes espaços de partilha, como é o caso da Rede Ex-Aequo no Instituto Português de Desporto e Juventude, que permite aos intervenientes aprenderem uns com os outros. Além disso, as associações providenciam as pessoas com acompanhamentos psicológicos e terapêuticos, para facilitar a integração e ajudar a mente de cada um.

Para Lexy, falta às associações, em especial as de Coimbra, “serem pragmáticas nos aspetos que defendem”. Segundo a mesma, é necessário “criar redes de apoio que não existem”, como por exemplo, a existência de um reencaminhar “acompanhado para a URGS”.

A estudante de Antropologia reforça que “não é só a realização da Festa Fora do Armário que é o apoio a uma vida e a um corpo trans”. A integrante da RUC apresenta a Associação Existências, que “faz testes grátis para Doenças Sexualmente Transmissíveis e têm consultas para pessoas LGBTQIA+ no ramo da sexologia”, como um exemplo.

Apropriações sociais e questões laborais Todos os anos, desde 2010, no dia 17 de maio, a PathCoimbra organiza a Marcha Contra a Homofobia e Transfobia. Instituições públicas e empresas assinalam de forma mediática o dia ao hastearem bandeiras arco-íris, como é o caso da Associação Académica de Coimbra. “As estruturas tradicionais na Coimbra universitária vêm, às vezes, ao desencontro da integração”, refere Lexy, pelo que a mesma considera que existe “ambiguidade com o uso da simbologia” LGBTQIA+ e que mesmo que possa ser “um gesto de solidariedade”, não a “aquece nem arrefece”.

A apropriação de lutas sociais para fazer publicidade e ganhar reconhecimento “é uma fachada pouco transparente que acontece no mundo, porque enquanto as grandes estruturas capitalistas fazem esse fingimento habitual, as pessoas continuam a ser marginalizadas”, argumenta Lexy. A estudante da FCTUC finaliza que “há muitas pessoas com dificuldade em arranjar um emprego”, pelo simples facto de serem quem são: “trans, ‘queer’, não-binárias ou intersexo”.

A existência de marchas como a que a PathCoimbra e outras associações organizam permite dar visibilidade à vida que as pessoas trans e LGBTQIA+ enfrentam todos os dias. Para Daniela Bento, não é só nestas marchas ou durante o ‘pride month’ que a sociedade tem que olhar para estas questões: “o direito à existência é um direito fundamental humano”.

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