COLEÇÃO AUTORES ALAGOANOS
2a Série
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THÉO BRANDÃO
FOLCLORE DE ALAGOAS
Ofic. Graf. da CASA RAMALHO Maceió – Alagoas 1949 1
FOLCLORE DE ALAGOAS
Índice das matérias:
1 – Folclore – Uma palavra, uma ciência 2 – O Folclore na arte e na literatura 3 – Sistematização do Folclore Alagoano 4 – A Antiguidade dos remédios populares 5 – Os contos voam 6 – Adivinhas populares 7 – Contos Africanos no Brasil 8 – Ainda as Adivinhas Populares 9 – A viagem das trovas 10 – Paremiologia alagoana 11 – Romances velhos em Alagoas 12 – A Xácara do Chapim do Rei em Alagoas 13 – Estórias de Pai João 14 – O negro e a poesia popular 15 – Da Europa e do Egito ao Brasil 16 – As cheias de Alagoas e a literatura de cordel 17 – Agricultura popular 18 – O Cavalo no Folclore
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“Todos cantam sua terra, Também vou cantar a minhas; Nas débeis cordas da lira Hei de fazê-la rainha.” Casimiro de Abreu “Do mundo inteiro as paragens, Digam lá são todas boas; Não duvido, não contesto Mas só canto as Alagoas. Quem quizer que cante as outras Que eu cantarei ela só; Jaraguá e Pajussara, Bebedouro e Maceió. Água Branca, Limoeiro, As margens do Pratagy, Conceição das Alagoas... São terras todas daqui.” Ciridão Durval
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A Memória de Manoel Brandão Alfredo Brandão e Aloízio Branco
Aos Mestres Artur Ramos Câmara Cascudo e Renato Almeida Aos amigos Diegues Jùnior Ezechyas da Rocha Aurélio Buarque de Holanda Valdemar Cavalcanti Raul Lima Mendonça Júnior Aloízio Vilela e Sílvio de Macedo
Aos quais devo, em várias épocas de minha vida, o incentivo para os trabalhos que aqui se compendiam.
Homenagem de THEO BRANDÃO
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DO MESMO AUTOR: 1 - Higiene e Puericultura – (Discursos e conferências) – Maceió – 1933. 2 - Um ano de administração do Ensino de Alagoas – (Relatório) – Maceió – 1942.
Em preparo:
Folguedos populares de Alagoas (Reisados, Guerreiros, Caboclinhos, Pastorais, Chegança, Fandangos, Quilombo, Cavalhadas, Taiêras, Baianas). Dansas Populares de Alagoas (Côco, Rodas, Maracatús, etc.) em colaboração com J. Aloízio Vilela. PUERICULTURA E PEDIATRIA POPULARES DO BRASIL. FOLCLORE INFANTIL.
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Comquanto só uma parte dos trabalhos que aqui se enfeixam tenha tido publicação em jornais e revistas de Maceió ou do Rio de Janeiro, realmente nos demais ainda inéditos estava reservado idêntico destino. Reunidos agora em volume eles se ressentem por isso, além das insuficiencias próprias do autor, dos defeitos de uma obra sem unidade e da ligeireza com que foram redigidos. Embora retocados e corretos n‟alguns pontos, decerto n‟outros muitos permanecem ainda à espera da indulgência e da compreensão do leitor leigo ou especializado. Contudo, reivindica para si pelo menos o fato de ser a primeira obra exclusivamente dedicada ao folclore alagoano de vez que outras como as de Alfredo e Moreno Brandão tratavam de matérias diversas, as do Mestre Artur Ramos versaram todo o folclore brasileiro e a de Julio Campina, o precursor de nosso folclore incluia material colhido também no Estado de Pernambuco. Afóra alguns artigos de caráter geral, os demais versam exclusivamente o folclore alagoano e trazem achêgas pessoais ao assunto, com o estudo comparativo, em alguns, de nosso material com o recolhido em outras partes do Brasil e do Mundo. Deste modo, quando mais não seja, representam eles uma descosida mas pessoal contribuição ao FOLCLORE DE ALAGOAS.
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FOLCLORE – UMA PALAVRA, UMA CIÊNCIA
Comemora-se a 22 de Agosto o aniversário do aparecimento da palavra FOLCLORE, proposta pelo etnólogo inglês William John Thoms, em carta endereçada ao The Atheneum, de Londres, para designar aquilo que, então, na Inglaterra, era chamado de Antiguidades Populares ou Literatura Popualr. E atualmente, quando um vigoroso movimento de carácter para-oficial, centralizado no Rio de Janeiro, na COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE, do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, (Órgão regional brasileiro da UNESCO) e irradiado por todos os Estados do Brasil com as Sub-Comissões Estaduais, se desenvolve – pesquizando, coordenando, registrando e debatendo todos os aspectos do saber, da literatura, das artes, dos usos e costumes populares; nada mais oportuno que assinalar as vississitudes e abastardamentos por que tem passado a famosa palavra e, com ela, a ciência que batizou. A Ciência, essa tem sido das mais inditosas com seu nome e das mais incertas nos seus objetivos. Nomes, teve e tem até demais. Todavia, ou os foi perdendo para outras ciências que se formaram após, ou foi seu destino ver aquele que mais lhe durou e que se tornou mais universal constantemente abastardado, mal compreendido e peior empregado. Como grande número de ciências individualizadas ou batizadas modernamente, aquilo que hoje constitue o seu estudo já apontava, aqui e ali, em poetas, historiadores e pensadores antigos. Homero, na Odisséia; Heródoto, em sua História; Pausânias, na Descrição da Grécia; Plutarco, nas Questões Romanas e mais modernamente Rabelais, em Gargantua fizeram folclore, assim como Mr. Jourdain fazia prosa, sem o saber. Esboçada sua atividade com os Contos de la mère oye de Perrault mas só propriamente iniciada com as Lendas Domésticas e Infantís dos Irmãos Grimm e com as Cartas sobre os Contos de Fadas de Walkaener, começaram a aparecer os nomes de batismo para os novos estudos. Campe, em 1807, adota a palavra Etnografia como sinônimo de “descrição dos povos”, mas esta palavra comquanto ainda hoje usada em alguns países como Portugal, com a mesma significação de Folclore, foi depois deturpada por Wiseman para 7
“classificar as raças pelo estudo da língua” ou, nos tempos atuais, para significar “a descrição da cultura material dos povos”. Em 1839, surge o vocábulo Etnologia para exprimir, entre outras coisas, “o estudo das tradições históricas”. Mas, já em 1948, o termo é utilizado para o estudo dos diversos caracteres que servem para distinguir as raças humanas. É, então, que a 22 de Agosto de 1846, Thoms, sob o pseudônimo de Ambrose Merton, publica em The Atheneum sua célebre carta em que apresenta o vocábulo anglo-saxônio FOLCLORE para substituir o que na Inglaterra se denominava “Popular Antiquities”. Adotado nas Ilhas Britânicas, não logrou, comtudo, de imediato, a sua aceitação atual. Por muito tempo, em diversos países, denominações várias foram propostas e ainda hoje são usadas como sinônimos ou substitutas de Folclore. Na França, foi Traditions Populaires e Traditionalisme; na Itália, Tradizioni Populari; na Espanha, Saber Popular; em Portugal, Tradicionalismo Popular; na Alemanha, Volkskunde, Wolkslehre, etc. afóra uma multidão de nomes eruditos: Antropopsicologia,
Demótica,
Etnografia
Tradicional,
Demosofia,
Mitografia,
Demopsicologia, Antropologia Étnica, Demlogia, etc. Como se vê, nomes não faltam à ciência que Thoms, ha pouco mais de 100 anos atrás, batizou como Folclore e que, de 40 anos a esta parte, vem cada vez mais sendo empregada de preferência a qualquer outra palavra. Não obstante, embora hoje de emprego quasi universal, não tem o Folclore, bem marcada e compreendida, a extensão de seus domínios e, de outra parte, tem sofrido em certos meios leigos uma trágica deturpação. Ao ser criada a palavra pelo etnólogo inglês, o seu sentido era bastante restrito e dizia respeito tão só aos costumes, à literatura e aos usos populares. Posteriormente, os estudiosos estenderam suas vistas para além destas fronteiras, segundo suas orientações individuais. Certos folcloristas, como por exemplo Pierre Santyves (1) mantendo o ponto de vista de que o Folclore é a ciência das Tradições Populares, isto é, da tradição oral e das camadas populares (*) estenderam sua curiosidade à tudo que corresponde no povo à sua cultura material e social, a todas as atividades utilitárias e estéticas, a todos os conhecimentos e a artes populares. Definindo o folclore como ciência da Cultura *
Numa obra receentíssima – André Varagnac elimina do conceito de Folclore a noção do povo até aqui considerada essencial opinando que “essencial é a presença ou a ausência das noções e das aplicações científicas no comportamento”. (5)
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Tradicional, manifestam-se tais folcloristas contrários a etnografos como Aranzadi (6) para quem o folclore abrange tão sòmente o estudo da cultura intelectual das camadas populares embora estenda o domínio deste estudo tanto às camadas populares vivendo vida civilizada quanto a todos povos primitivos ou selvagens. Conciliando os dois pontos de vista, Joaquim Ribeiro (2) parece ter encontrado a verdadeira solução, reunindo os dois conceitos, de vez que não era logico separar, de um lado, em duas disciplinas, o estudo das culturas material e espiritual, e do outro, a tradição oral dos povos primitivos, da mesma tradição entre as camadas populares dos povos civilizados. É bem verdade que, deste modo concebido, o Folclore passou a atingir uma enorme área e um campo vastíssimo: tudo aquilo que não é aprendido na escola ou pela palavra escrita, tudo o que é perpetuado pela palavra falada e o exemplo.(**) Si assim, no campo propriamente científico parece fixada sua significação e seu objetivo de estudo, o mesmo não acontece nos meios leigos. E é com certa razão que Artur Ramos (3) afirma que, do mesmo modo que acontece com a palavra psicanálise ou com os vocábulos antropologia e psicologia experimental etc. “folclore é uma expressão mais ou menos desmoralizada, entre nós”. Compositor popular é folclorista, estrela radiofônica é “distinta interprete do nosso folclore”. E não é só isto. “Inventa-se” folclore. Faz-se música, dansa, poesia que é batizada por seus autores de folclórica e que nada têm a ver com a tradição e a usança populares. E nem se diga que são “motivos” apenas inspirados no Folclore. Longe está dos folcloristas defender o folclore à sua aplicação nas artes e nas letras. Muito ao contrário. A cada passo estamos a combater pelo seu aproveitamento. Mas uma coisa é o aproveitamento sincero, honesto, fundamentado, com base na pesquisa própria ou alheia, e outra é o abastardamento, a contrafação. A “invenção” de um dialeto, de um vocabulário, de uma música, de uma dansa, de uma literatura ou de uma poesia que não existem sinão nas cacholas das pessoas que nunca deixaram o Rio ou os paralepípedos das capitais e que têm o desplante de apresenta-los como “populares”, “regionais” ou “típicos”, só pode ser engulida como pilheria de filme americano.
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Segundo Varagnosc (5), no folclore não se deve encarar sinão “elementos culturais não elaboradas intelectualmente, elaboração que é a uma vez a condição e a consequência do ensino e da intervenção da escrita, da imprensa, ou dos meios recentes da difusão do pensamento: fonógrafo, rádio etc.”
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“Folclore, afirma ainda Artur Ramos, é disciplina científica” “nada tem que ver com essas contrafações e deformações criadoras”. Ninguém contesta que certas composições apresentadas como folclóricas tais as de Hekel (que tem, nos seus côcos, materiais folclóricos légitimos) sejam bonitas, que as canções de Dorival Caymmi (que também coligiu material folclórico autêntico em seu Cancioneiro da Baía) (4) sejam encantadoras a tal ponto que ele pode ser considerado a justo título como o nosso “clássico popularesco” ou que os versos de Zé da Luz e Zé do Norte sejam belos e apreciaveis quando passados para português. Mas nada disto é folclore. E, a se continuar considerando tais produções como folclóricas e a se permanecer chamando de folclore o que ele não é, mais vale que, apesar de já ter completado mais 100 anos, se torne a mudar para outra a denominação que William Thoms apresentou para a ciência das Tradições Populares.(***)
BIBLIOGRAFIA 1 – Pilerre Santyves – Manual do Folclore – Paris, 1936. 2 – Joaquim Ribeiro – Folclore Brasileiro – Zelio Valverde – Rio. 3 – Artur Ramos – A Aculturação negra no Brasil – Rio, 1942. 4 – Dorival Caymmi – Cancioneiro da Baía – S. Paulo 1947. 5 – André Varagnac – Civilization traditionalle et genres de vie – Paris 1948. 6 – Joaquim Ribeiro – Introdução ao estudo do Folclore Brasileiro – Rio.
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Ainda Varagnac chega a repudiar atualmente a palavra Folclore pelo menos no seu sentido primitivo: “Nós não nos serviremos dela, diz o tradicionalista francês, sinão de maneira acesesória por causa das palavras derivadas que é permitido crear: o único termo que convem verdadeiramente aos fatos que encaramos é bem o de Tradições e num sentido que nós teremos de precisar”.
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O FOLCLORE NA ARTE E NA LITERATURA (*)
Pela terceira vez estou entre vós, senhores e senhoras do Rotary Club, a encher quinze minutos de vossa reunião semanal com a minha desluzida palavra. Não vos venho, como das duas primeiras vezes, explanar assuntos de minha profissão – a pediatria e a puericultura. Venho, desta feita, convidado por vosso ilustre presidente Ismael Brandão, para falar a respeito de assunto de minha mais íntima recreação intelectual – o Folclore. Aliás, escolhendo matéria e tema, o vosso presidente mostrou que é um muito bom Brandão e um muito bom viçosense de Alagoas, mesmo quando não seja um folclorista, mesmo quando não estude e pesquize a riqueza de nossas tradições populares, não pode deixar de prezar e querer a música, a literatura, a poesia e a arte do povo. Entre nós já se falou, anos atrás, numa pretensa Escola de Viçosa, numa hipotética grei dos folcloristas viçosenses. De certo que ela não existe. Mas, sem ter o privilégio de amar e de pesquisar o nosso folclore, o que é certo é que Brandões e viçosenses: Alfredo, Moreno e Otávio Brandão, Brandão Vilela e Aloizio Brandão Vilela, Pimentel Amorim, José Maria de Melo – todos nós nos temos dedicado ao estudo dos fastos populares e só teremos, como tenho agora, satisfação e prazer em falar sôbre folclore. Mas que vos dizer, dentro do limite de quinze minutos, sobre assunto tão vasto? Folclore, segundo o mais recente conceito enunciado por André Varagnac é civilização tradicional,
isto
é,
engloba
todos
os
elementos
culturais
não
elaborados
intelectualmente, tudo aquilo que o homem, de qualquer nível social, aprendeu fóra dos livros, da escola e dos modernos meios de difusão cultural: o fonógrafo, o cinema ou o radio. Lendas e histórias, poesia e cantos, cerimônias e folguedos, dansas e bailados, jogos infantis e problemas populares, mitos, proverbios, “patois” – tudo isto é folclore. E ainda mais. O seu domínio avança para o terreno da etnografia material; e o estudo da cerâmica popular dos bonecos de barro, do teatro do “mamulengo” e do “cassimicôco”, da arquitetura dos mucambos ou da técnica das pescarias, dos artefatos de palha ou de madeira, tudo já hoje se encontra na obra dos folcloristas.
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(Palavras no Rotary Club, em Maio de 49, pronunciadas antes de uma audição de músicas folcloricas alagoanas).
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É bem verdade que, si não me falha a memória, vosso presidente procurou restringir o assunto: “A Influência do Folclore na arte e na literatura”. Mas, ainda assim, não conseguiu nem de leve o seu intento. O assunto é ainda tão vasto que se prestaria já não digo a um curso mas a uma suculenta e puxada conferência. Estudar a influência do folclore na arte e na literatura dos povos, é estudar a arte e a literatura dos povos, pelo menos nas suas fases iniciais. Homero, na Odisséia e na Ilíada, transporta para o verso as lendas e os mitos da antiga Hélade e Vergílio, na Enéida, as tradições romanas; como mais tarde Dante e Camões nos seus imortais poemas misturam genialmente as velhas mitologias clássicas – às novas lendas e às novas tradições dos povos cristãos. O romance, no seu próprio nome, é uma criação tradicional que produziu um gênero literário e gerou todo um movimento artístico. O romantismo de 1830 com Walter Scott, Vitor Hugo, Chateaubriand, Heine, Almeida Garret ou Gonçalves Dias como o modernismo de 100 anos depois, que já foi merecidamente chamado de neoromantismo, com Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Raul Bopp, Ascenço Ferreira, etc. são movimentos de volta às tradições nacionais, de valorização, de aproveitamento desta civilização tradicional que nos deu na Idade Média e na Renascença as canções de Gesta e os romanceiros peninsulares, que produziu, então, o ciclo da Távola Redonda e a Epopéia dos 12 pares de França, vividas na Gaia Ciência de trovadores e menestreis medievais, e que ainda agora nos está produzindo nesta Provença Brasileira que são os sertões nordestinos os romances do ciclo do Boi, as epopéias de Lampião, Antonio Silvino e do Valente Vilela e os desafios de violeiros e cantadores de côco. A arte dramática e sua irmã gémea – a dansa , já no seu nascimento na prátria de todos as artes, já no seu ressurgimento na Idade Média e na Renascença, não foram outra cousa sinão – nas orgias dionisíacas que iniciaram o teatro grego e abriram caminho a Esquilo, Sófocles e Eurípedes, ou nos Milagres e Moralidades medievais, nos “laudi” e “intermezzi” italianos que precedem Gil Vicente ou Lope de Vega, Shakespeare ou Tirso de Molina – puras manifestações da cultura popular e tradicional. E as próprias artes plasticas, quer na fase primitiva da arte no Egito, na Grécia, em Roma, nas Flandres, na Provença, quer nos tempos modernos onde ha uma marcada volta ou procura do “primitivo”, são a meu ver, aliás, a maior demonstração não só da influência popular nas artes, mas até exemplificação das únicas artes modernas feitas 12
para serem entendidas pelo povo, que não tem dificuldade em perceber as figuras de Portinari ou Lula Cardoso Aires, as esculturas de Brecheret ou Bruno Giorgi porque bem compreende os bonecos de Vitalino de Caruarú, os ex-votos e os desenhos da Sacristia da Igreja do Bomfim da Bahia e as figuras de Prôa das canôas do S. Francisco. Poderíamos restringir ainda mais o assunto e referirmo-nos apenas à música. Mas, ainda assim comquanto sejamos só folclorista e só como modesto apreciador possamos falar de música, quanta coisa haveria a dizer, quanto poderíamos mostrar a respeito da influência da música e das canções populares na obra de tantos compositores e na orientação de tantas escolas musicais! Weber, o fundador da escola romântica na música, empregando na sua opera “O Franco – Atirador” as canções populares da Alemanha; Schubert e Shumann elevando e enriquecendo com seus gênios as lieds populares germanicas; o próprio Chopin “a quem, segundo autorizado crítico, a compreensão da música popular não impediu de ser essencialmente um requintado”, indo à música popular eslava buscar a força e a vivacidade ritmicas que tão bem soube exprimir na música erudita; o grande Wagner, cujos temas são as lendas e as epopéias da Idade Média: Trannbauser, Nibelungen, Tristão e Isolda, Parsifal, etc. e cuja música “é o ponto culminante da arte romântica”; os russos a começar de Glinka e a continuar no grupo dos “cinco” entre os quais sobressaíram Borodin, Mussorgsky e Rimsky-Korsakff lançando as bases da música erudita russa, justamente na idéia romântica de “considerar o folclore como única base autêntica de inspiração”; o próprio Tschalkowski, embora procurando se libertar do gênero popular, mas ainda assim servindo-se frequentemente de cantos e dansas de seus países; os hespanhois Manuel de Falla, Granados, Albéniz e sobretudo Turina, bebendo sua inspiração no carater popular da música espanhola; e, por fim, entre nós, Lorenzo Fernandes, Luciano Gallet, Luiz Heitor, e principalmente o genial Vilalobos inspirandose na nossa música tradicional, nas canções de berço, nas rodas infantís, nas dansas dramáticas, e nas canções de trabalho, para composições que honram a cultura musical do Brasil; são bem um exemplo de que nenhuma arte tem sido e bem pode continuar a ser tão influenciada pelo folclore quanto a música. É que a riqueza musical de nosso folclore é enorme. Estes discos que aqui trago – uma pequena parte de minha coleção que iniciei há menos de um ano, e que é apenas infinitesimal porção do que há ainda por colher e registrar – só em passá-los, mesmo sem comentários, eu levaria talvez duas horas. 13
Não vos irei – perdei o medo – submeter a tanto. Eu vos vou apenas dar uma amostra rápida do que é música popular, do que é a nossa verdadeira música popular. E, fazendo-o, vos quero bem prevenir, a vós outros que tendes ouvidos bem educados, que só estais acostumados a Paganini ou a Beetoven, às deliciosas harmonias da Sonata ao luar ou da Palavra para uma Infanta Defunta. Certa vez, passando estes humildes discos colhidos entre violeiros e cantadores de côco, dansadores de reisados e de fandangos, para os ouvidos cultivados de jovem pianista e esperançoso musicista alagoano, ele teve para a ilustre maestrina que o acompanhava esta pergunta de espanto e decepção: E isto é música? E, então, eu tive que responder à sua incompreensão de musicista culto: Isto tambem é música. Não estão aqui certamente os brilhantes lapidados, engastados em aneis de ouro ou platina, polidos e multifacetados, entre filigranas de metais preciosos. Aqui a pedra está bruta, sem brilho nem facetas, encoberta por ganga ou misturada a minério sem valor, e só o olho do experto, ou o coração do apaixonado poderão ve-la e preza-la e só a mão do artista poderá transforma-la na joia capaz de brilhar nos escrínios das partituras e nas gargantas das “virtuoses”. Ás vezes, nem pedra é, mas simples calcareo ou mole argila, seixo ou mica que pode dar uma forma ou um brilho falso e que engana ao inexperto e ao apaixonado. Contudo, seja o que for, ela existe, como expressão da alma popular e ao folclorista – garimpeiro que bateia o cascalho ou colecionador que registra os espécimes – ha que recolher, registrar toda esta indecisa, bruta e multifária produção, até que um dia o artista de gênio, inspirado nela, sentindo-lhe a beleza rude, com ela construa a música da raça, a canção da terra.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 1 – Joaquim Ribeiro – Introdução ao Folclore Brasileiro – Rio. 2 – Joaquim Ribeiro – Folclore Brasileiro – Rio. 3 – A. Van Gennep – La formation de las leyendas – Trad. esp. Bs. Aires – 1943. 4 – André Varagnac – Civilization traditionelle et genres de vie – Paris – 1948. 5 – Luis de Freitas Branco – Hist. Popular de Música – Lisboa – 1943. 6 – Gino Saviotti – História do Teatro italiano – Lisboa – 1944. 7 – Javier Farias – História del Teatro – Buenos Aires – 1944.
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SISTEMATIZAÇÃO DO FOLCLORE ALAGOANO
A divisão do folclore em ciclos foi assunto de uma renhida polêmica entre dois dos maiores folcloristas brasileiros da atualidade: os srs. Gustavo Barroco e Joaquim Ribeiro, polêmica que se desenvolveu, como sempre tem acontecido em matéria de folclore, sobre questões de prioridade e primazia da classificação de um sobre a de outro. Inegavelmente cabe a Gustavo Barroso (1) o mérito de ter pela primeira vez proposto a idéia da classificação em ciclos folclóricos. Mas, ao ilustre folclorista mineiro Lindolfo Gomes (2) cabe a glória de haver organizado tais ciclos em 1914. Criticando a antiga divisão de Sílvio Romero, inteiramente baseada no critério racial (folclore negro, ameríndios, europeu e mestiço) propôs, é bem verdade que só para os contos populares, uma classificação temática: “reunião ao redor de certos personagens – dramatis personae – de uma série de temas a eles referentes”, como os ciclos de Pai João, de Pedro Malazarte, do Diabo, do Coelho e da Onça, do Jabotí, etc. Em 1921, Gustavo Barroso, concretizando suas idéias iniciais identificou os ciclos dos Bandeirantes, dos Vaqueiros, dos Cangaceiros, dos Caboclos, dos Animais e do Natal. (9) E, por fim, em 1929 (3) Joaquim Ribeiro, numa obra premiada pela Academia Brasileira de Letras – A tradição e as lendas apresentou uma nova classificação, baseada no método histórico-cultural, nas áreas etnográficas ou de civilização, doutrina posta em voga pelos cientistas do Museu de Colônia. Segundo esta orientação, ampliada em obra posterior (4), individualizou no Brasil os seguintes ciclos: Costeiro primitivo, Costeiro do Norte, Costeiro do Sul, Pastoril Sertanejo, Primitivo de mineração, atual de mineração, agrícola primitivo, agrícola do Norte, agrícola do Sul, agrícola dos imigrantes, platino e amazônico.* *
Em obra posterior a este trabalho (10) Joaquim Ribeiro reformou, embora ainda dentro do critério histórico cultural, a sua classificação que é atualmente a seguinte: IÁrea costeira com dois ciclos: a - costeiro do Norte ou da Jangada, b - costeiro do Sul ou dos Caiçaras, c - de colonização estrangeira ou dos Imigrantes. II Área agrícola com um ciclo primitivo – o dos engenhos e outro atual com três ciclos secundários:
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Um juízo imparcial sobre a questão há de concluir que: 1o a classificação de Lindolfo Gomes, muito restrita, é temática pura; 2o, a de Joaquim Ribeiro, bastante lata, é histórico-cultural; 3o, a de Gustavo Barroso, meio termo entre as duas, é temática por alguns ciclos e cultural por outros. Entre nós, Diegues Júnior, procurando organizar em ciclos o Folclore do Nordeste (5) propôs uma nova classificação, não mais baseada nos critérios antropológico, temático, geográfico – genético, mas no puro e exclusivo critério histórico. Individualizou assim os seguintes ciclos: caboclo, holandês, colonial, autonômico ou imperial e republicano trazendo a cada um deles uma interessante contribuição. Em trabalho ainda inédito que teve a gentileza de dar-me à consulta amplia ainda mais estes ciclos, individualizando o ciclo talássico ou marítimo que subdivide por sua vez em dois outros. A sua classificação apresenta grande valor e importância, quer pela originalidade, quer por trazer um novo elemento classificador. Sem ela não poderíamos, por exemplo, enquadrar bem as nossas emboladas relativas a sucessos, personagens e instituições dos primeiros dias da República, como aqueles que o “Evolucionista”, jornal de nosso confrade Luís Lavenère, publicou em 1902 e que ainda estão na lembrança de muita gente:
“Pedro Paulino, Diodoro, Floriano, Com a lei republicana, Formou a guarda locá; Nego danado bote a camisa prá dento, Quem manda é o seu sargento Da guarda municipá. Peixe, piaba, tubarão, baleia e serra, Quero vê tatú por terra, Eu vou tarrafá no ma; Aquidaban, Javary, Riachelo, É Custodio Zé de Melo
III IV -
VVI -
a - agrícola do norte ou do “Mimeso”, b - agrícola do sul ou do Café. Área pastoril: Ciclo do couro. Área de mineração com o ciclo primitivo das “bandeiras” e dois ciclos atuais: a - da mineração, b - da garimpagem. Área platina ou pampeana. Área Amazônica ou do “Seringueiro”.
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Da armada Federá.” ou como todas as poesias populares relativas a sucessos históricos:
“Pedro Paulino tem um “fio” que tá home Quando tem raiva não come, Pega as arma e vai brigá”; “O Costa Rego em Maceió pegou navio, Foi-se embora, foi pro Rio, Nunca mais vorta por ca; O povo diz: quem manda agora é Zé Fernande Mas em barulho de grande, Me faiz medo até falá”. (6) “Estava Euclides Malta No Rio de Janeiro faelando, Os sucessos de Alagoas Inda estava relatando, Quando ouviu batê na porta Uma pessoa chamando”. (7) “Deodoro da Fonseca, Homem de grande valia, Em menos de meia hora Derrubou a monarquia”. (8) Comtudo, esta classificação não pode, como as demais, englobar todos os aspectos da evolução de nosso folclore. Aliás, já o acréscimo de um ciclo talássico e de seus sub-ciclos é uma concessão ao critério histórico-cultural da classificação de Joaquim Ribeiro, com o abandono, portanto, do carácter histórico que tinha inicialmente proposto. Demais disto, em alguns pontos, ela não pode corresponder à sua finalidade sistematizadora porque localiza em certa época de nossa evolução histórica ciclos que ainda hoje fornecem material folclórico, como, por exemplo, o côco que ele inclue no ciclo colonial mas que ainda agora está a formar novas contribuições demológicas. Por isto, e baseado na orientação de Gustavo Barroso (1) ao propor em 1911 os ciclos folclóricos, segundo a qual se deveriam dispor “em primeiro logar os grandes ciclos do país, a vida pastoril, o contácto com o selvagem; depois, os ciclos médios em volta de cada tema particular; por fim, os pequenos ciclos em redor de cada elemento 17
dos ciclos secundários”, nos animámos a realizar uma classificação do folclore alagoano, tentando harmonizar todas as classificações até aqui proposta e na qual os grandes ciclos obedecem ao critério histórico-cultural, os ciclos médios ao critério antropológico e histórico e os pequenos ciclos ao critério temático. Assim, teríamos inicialmente em Alagoas três grandes ciclos: o Marítimo ou Costeiro, o Agrícola e o Sertanejo. O Marítimo teria dois sub-ciclos principais: o primitivo ou dos Navegantes que batizariamos como ciclo das Caravelas e que encerraria os folguedos populares da Chegança e dos Fandangos; e o sub-ciclo marítimo atual ou dos pescadores a quem melhor aplicaríamos o título dado por Joaquim Ribeiro ao ciclo costeiro do Norte, de ciclo da Jangada, com as lendas míticas dos pescadores, da Mãe d’água, da Moça da Bica da Pedra etc. O ciclo pastoril ou sertanejo apresenta três sub-ciclos principais: o sub-ciclo dos vaqueiros (ciclo do chapéu de couro) com as estórias e anedotas de fazendeiros e vaqueiros como a História do Boi Leição de José Maria de Melo (1) e as versões alagoanas dos romances do ciclo do Gado; dos Cangaceiros ou do Bacamarte, com os sub-ciclos secundários de Antonio Silvino, Lampião etc. e o sub-ciclo dos Romeiros ou ciclo do Padre Cícero do Joaseiro com as superstições, trovas, lendas, e romances, a respeito do célebre taumaturgo nordestino. O Ciclo Agrícola apresentar-se-ia com 08 sub-ciclos principais seguintes: 1o – o caboclo ou do tacape, com a dansa do toré e os contos ameríndios de animais; 2o – o das entradas ou dos colonizadores, com os autos peninsulares e jesuíticos do Natal em suas fórmas primitivas, com as lendas míticas etc.; 3o – o dos escravos ou da Senzala com os sub-ciclos secundários de Pai João, do Quibunbo, do Jaboti, com a Festa dos Mortos, com os autos dos Congos, e Cucumbí, as Taiêras, o auto dos Quilombos; 4o – o dos mestiços ou do banguê (**) com os sub-ciclos secundários do Natal, de S. João, de Pedro Malazarte, do Diabo, etc.; 5o – Do Holandês ou da Defêsa, com as lendas dos tesouros holandêses, como as do Sino, encantado, do Rio Mirim, etc. (12)
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Segundo a opinião do Prof. Luís Lavendre preferimios a grafia bangoê em vez de banguê para evitar a pronúncia errônea dada à palavra no sul do país.
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6o – o da Independência ou do Mata-Marinheiro, com as trovas alusivas ao acontecimento e depreciativas dos portuguêses como a seguinté ainda muito conhecida:
“Marinheiro pé de chumbo, Calcanhar de frigideira, Quem te deu a ousadia, De casar com brasileira!” (8) 7o – do Império com as lendas e trovas sobre a guerra do Paraguai e outros acontecimentos históricos dos dois reinados e 8o – o da República em que entrarão todas as peças alusivas aos sucessos dessa época de nossa história. Não sendo esta classificação cíclica, como frisâmos, nenhuma classificação nova, mas apenas um esforço de conciliação de todas aquelas até aqui propostas, cremos que por isso mesmo ela poderá englobar, pelo menos em Alagoas, todos os assuntos folclóricos, dentro de um método muito simples e claro de sistematização, permitindo mesmo a descoberta de novos ciclos e sub-ciclos. Como vemos, por ela, só no ciclo agrícola se aproveita o critério histórico-político que Diegues Júnior propôs. É que, ao nosso ver, sòmente a zona agrícola das matas, em Alagoas, participou e participa ainda de nossa história política. Fóra dela, nas zonas praieira e sertaneja quasi não se encontram reflexos dos acidentes históricos por que atravessou o país. O nosso sertão vive ainda a sua idade heroica, entre os seus cangaceiros, os seus vaqueiros, a sêca e os cantadores de viola. A zona praieira ainda é mais reduzida porque se restringe folcloricamente à uma pequena nesga de terra à margem do Atlântico, dos grandes rios, dos canais e das lagoas. As nossas cidades, mesmo quando à margem do Atlântico, como Maceió, pertencem inteiramente à zona agrícola pois que, como já o demonstrou o mesmo Diegues Júnior, elas não constituem sinão prolongamentos das senzalas, das bagaceiras e das casas-grandes de nossos engenhos. Maceió – Junho – 1942.
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BIBLIOGRAFIA 1 - Gustavo Barroso – “O ciclo dos Bandeirantes”, “Um estudo a fazer”, “Jornal do Comercio” 1911 apud. G. Barroso – Colunas do Templo – Rio. 2 - Lindolfo Gomes – Contos populares e cantigas de adormecer – 1914. 3 - Joaquim Ribeiro – A Tradição e as Lendas – Rio 1929. 4 - Joaquim Ribeiro – Introdução ao Estudo do Folclore Brasileiro – Rio. 5 - Diegues Júnior – Formação Histórica do Folclore do Nordeste – Revista GEGHP – Paraíba – Dezembro de 1933. 6 - Leonardo Mota – No tempo de Lampião – Rio 1930. 7 - Leonardo Mota – Vileiros do Norte. 8 - Moreno Brandão – A musa anônima – Rev. Inst. Histórico Alagoas – Vol. XVIII – 1935. 9 - Gustavo Barroso – Ao som da viola – 1921. 10 - Joaquim Ribeiro – Folclore Brasileiro – Zelio Valverde, editor – Rio. 11 - José Maria de Melo – História do Boi Leição – Gazeta Alagoas – 1938. 12 - Moreno Brandão – Contribuição ao Folclore Alagoano – Lendas – Jornal de Alagoas – Maio de 1933.
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A ANTIGUIDADE DOS REMÉDIOS POPULARES
Nihil novi sub sole, dizia o Eclesiastes, filho de Davi, Rei de Jerusalém. Não ha. Tudo é velho e revelho. A humanidade, parece, em nada mais se ocupa que repetir, plagiar, voltar às antigas idéias às velhas práticas, aos passados sistemas. Em Medicina Científica, por exemplo, ha uma constante repetição de velhas teorias étio-patogênicas e de antigos métodos terapêuticos. Um prolóquio latino, velho portanto, já o afirmara: “multa renascuntur quae jam cecidere”. As idéias constitucionalistas de Hipócrates, hoje retomadas pela escola italiana de Castellino, De Giovanni, Nicola e Pende, embora sob fórma diversa, representam o que ha de mais moderno no pensamento médico contemporâneo. A opoterapia de Brown-Séquard já estava em uso nos primeiros séculos de nossa era, ou na Idade Média, de modo empírico – é verdade – pelos Plínios, pelos Galenos, pelos Aldrovandos, pelos Marcelus e pelos Aetius de Amida. Si os conhecimentos científicos, revolucionários por sua própria natureza, não duvidam em repetir-se, em voltar às antigas fórmas e idéias, que não dizer dos conhecimentos populares, conservadores por essência, pois que oriundos da tradição, até certo ponto imutavel. Na ciência dos conhecimentos populares e tradicionais, o apoftegma de Salomão deverá ser como uma bandeira. Aliás, um ilustre folclorista mineiro, Lindolfo Gomes, já teve ocasião de arvora-la, fazendo de “Nihil novi” (1), o título de interessantíssima obra de demosofia. Quem quer que se dedique ao registro da etnografia espiritual corre sempre o risco de anotar assuntos já assinalados, já descobertos, já encontrados por outros autores, em outros povos e em idades diversas. A Terapêutica Popular não poderia escapar à regra. Em sua maioria, ela tem origem remota. Remotíssima mesmo, por vezes, como a daqueles ensalmos usados entre nós, para a cura da cefaléia, do engasgo ou do unheiro, cuja antiguidade bi-milenar, até, documentámos em nosso artigo: “Do Egito e da Europa ao Brasil”. A antiguidade, senão milenar, pelo menos bi-centenária, de alguns remédios populares de uso corrente em nossa terra, pode ser demonstrada igualmente.
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Não através de obra de folclorista ou charlatão de ha dois séculos, mas sim de autêntico representante da Medicina Oficial de então – o mui ilustre Dr. Francisco da Fonseca Henriquez, médico do Sereníssimo Rei de Portugal, D. João V, e autor de várias obras célebres, tais como: “Socorro Delphico aos Clamores da Natureza Humana”, Amsterdam – 1731), “Anchora Medicinal para conservar a vida com saúde” (2), etc. Esta última obra, por exemplo, que pretende ser um livro de Higiene, não passa, no fundo, de um verdadeiro compêndio de Medicina Supersticiosa. Aliás, pelas frequentes de citações de físicos e escritores médicos conceituados na época, tais como Krano, Ráfia, Zacuto, Plínio, Mangeto, Alexandre Benedito, etc., chega-se à conclusão que a obra do físico mirandês nada mais é que um reflexo dum estado próprio e característico da Medicina de antanho. Estado que Gilberto Freyre já havia reconhecido quando, em “Casa Grande e Senzala” (3) dizia que “nada autorizava a concluir que as comadres e curandeiros africanos coloniais excedessem à Medicina Oficial, isto é, européia, dos se´culos XVI, XVII, e XVIII, em porcaria e simulação”. Falando justamente deste mesmo fato: de a medicina popular atual ser igualsinha à medicina oficial antiga, o saudoso e culto Mário de Andrade, na sua obra “Namôros com a Medicina” (4) abordou a controversa questão da origem de tais preceitos médicos: “É muito difícil, diz êle, decidir se estas receitas são realmente vindas do povo e consagradas posteriormente pela erudição, ou si da farmacopéia erudita é que passaram para o uso das classes inferiores e se popularizaram”. Comquanto se mostre o citado demologista favoravel aos dois mecanismos, somos do parecer que a própria evolução das doutrinas médicas está indicando o processo inicial. Sabido que “o empirismo foi o berço da Medicina e sustentou-lhe os primeiros passos” que “a Medicina primitiva nasceu, desenvolveu-se e prosperou nos mistérios dos templos” e que “era imensa a importância das tradições antigas da Índia, no desenvolvimento da arte médica grega” (E. Boinet – Les doctrines medicales) (5), é fácil deduzir que os conhecimentos empíricos e supersticiosos sairam inicialmente do povo para os primeiros eruditos da Medicina; na Assíria, no Egito ou na Grécia. No caso do Físico de D. João V, porém, os conhecimentos médicos, parece, não foram bebidos no seio do povo, sinão, como já frizámos, nas obras de médicos antigos, até mesmo em Galeno, e sobretudo em Plínio, cuja célebre História Natural ostenta as 22
mais estapafúrdias mezinhas: excremento de lobo para cataratas, fél de urso para vista turva, beijo de nariz de mula, para peso na cabeça, etc. Deste modo, os remédios populares que fomos encontrar em letra de fôrma, aconselhados por uma autoridade como a de Fonseca Henriquez, não têm sòmente os duzentos e tantos anos da obra do médico português, mas provavelmente contam vários outros séculos, vindos até dos primeiros dias de nossa éra. Em todo o caso, tenham duzentos ou mil anos, não deixa de ser curiosa esta identidade, não só dos métodos gerais, mas até mesmo dos processos terapêuticos. Ezechias da Rocha, a quem devemos a oportunidade de manusear a obra do médico mirandês, foi aliás quem primeiro teve ocasião de assinalar num trabalho “Medicina Antiga – Medicina do Mato” (6) a identidade dos remédios do povo com os dos médicos antigos, muito antes que Mário Marroquim e Fernando São Paulo, em seus livros “A Língua do Nordeste” (7) e “Linguagem Médica Popular no Brasil” (8) mostrassem, em outros setores que os nomes das doenças empregadas por nosso povo, bem como sua gramática, são reminiscências da língua e da ciência médica oficial do seiscentos ou do setecentos português. O estudo comparativo dos nossos remédios populares com os preconizados por Fonseca Henriquez foi realizado com o material pertencente à nossa coletânea pessoal, ainda inédita; com o esplêndido formulário de Lages Filho: “A medicina popular em Alagoas” (9) e com a coleção de Leôncio Queiroz, publicada em seu livro: “vida Roceira” (10). Quinze foram os remédios populares encontrados em Fonseca Henriquez, dos quais dez pertencentes à nossa coleção, quatro à de Lages Filho e um à de Leôncio de Queiroz. Nuns, ha identidade de indicação; noutros, varia de modo muito ligeiro o nome da doença, por mera adaptação local. Vamos enunciá-los sem quaisquer comentários, seguindo-os apenas da transcrição do trecho similar da Anchora Medicinal. 1 – Ponta de veado tira veneno de cobra (Pessoal-Maceió). A ponta do veado crua he muy cordeal & absorvente; tem virtude contra todos os venenos e contra as lombrigas (Anch, Med. pag. 123). 2 – Semente de melancia cura congestão (Pessoal-Maceió). 23
As suas pevides (da melancia) refrigerarão o sangue e as entranhas nas febres ardentes (Arch. Med. pag. 309). 3 – Sangue de boi é bom para ferida dos pés (Pessoal-Maceió). O sangue da vaca suspende o froxo de sangue das feridas; lançando-o nelas (Anch. Med. pag. 103). 4 – Fel de boi serve para espinhas (Pessoal-Maceió). Da vaca se escreve que seu fel posto nas alporcas incipientes não as deyxa crescer (Anch. Med. pag. 101). 5 – O couro do veado, usado como cinto, serve para dôres nos quadris (PessoalMaceió). O seu couro (do veado) tem prestimo para os males do utero, trazendo-o uma cinta dele (Anch. Med. pag. 124). 6 – Cebola serve para tosse (Pessoal-Maceió). He peytoral, aproveyta nos catarros, rouquidoens, tosses e nas asmas, comendo-a cozida ou assada, ou bebendo a agua destilida em banho de Maria, com açucar (Anch. Med. pag. 296). 7 – Coentro é santo remédio para “cobreiro” (Herpes-zoster) (Pessoal-Maceió). Os coentros rezolvem as alporcas e os apostemas, pizando-os & pondo-os sobre elles como emprasto (Anch. Med. pag. 785). 8 – Vinagre faz emagrecer (Pessoal-Maceió). O vinagre não deyxa bem o corpo, mas antes he causa para não engordar (Anch. Med. pag. 265). 9 – Para facilitar a saída dos dentes, passa-se nas gengivas do menino a moela ou o miolo da primeira galinha que se mata para a mãe (Pessoal-Maceió). Os seos meolos (dos frangãos) fazem sair os dentes sem dor, fregando-lhes as gengivas com elles (Anch. Med. pag. 153). 10 – Para facilitar a dentição coloca-se ao pescoço dos meninos um cordão de retrôs preto, ou bolsa com dentes de aranha carangueijeira, dente de carangueijo, dente de jacaré etc. (Pessoal-Maceió). Os seos dentes (da lampreia( dependurados ao pescoço dos meninos lactantes, preservão-nos dos trabalhos da dentição, porque lhes saem os dentes sem tantas dores (Anch. Med. pag. 197).
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11 – Para amenorréia (falta de costume) – Partir uma cebola em cruz adicioniar aguardente, etc. (Lages Filho). A cebola é aperiente, attenuante e incidente & por isso move os mezes (Anch. Med. pag. 298). 12 – Para Asma (Estalicídio) – Usar o infuso da cebola cemcem (Lages Filho) – Vide n. 6 (Anch. Med. pag. 296). 13 – Para enxaquecas – Chá de cravo do reino (Lages Filho). O cravo robora o cérebro, conforta a memória, emenda a intemperança fria & humida do cérebro & das entranhas & ajuda a curar os males que della procedem (Anch. Med. pag. 374). 14 – Doenças dos olhos – Colocar neles cascas de sururú pisado (Lages Filho). A cinza dos mexilhoens lavada serve para as caligens & nevoas dos olhos (Anch. Med. pag. 245). 15 – Agrião cozido com açucar, em xarope, para tuberculose (Leôncio Corrêia). Para tísicos, os agrioens são prodigiosos, segundo alguas experienciencias... etc. (Anch. Med. pag. 279).
BIBLIOGRAFIA 1 - Lindolfo Gomes – Nihil novi – Juiz de Fora – 1927. 2 - Francisco da Fonseca Henriquez – Anchora Medicinal para conservar a vida com saúde – Lisboa Occidental – 1721. 3 - Gilberto Freyre – Casa Grande & Senzala – 1a Ed. – Rio – 1934. 4 - Mário de Andrade – Namoros com a medicina – Porto Alegre – 1939. 5 - F. Boinet – Les doctrines Medicales, leur evolution – Paris – 1920. 6 - Exechyas da Rocha – Medicina Antiga – Medicina do mato – Artigo no “Estado de Alagoas” – 1921. 7 - Mário Marroquim – A Língua do Nordeste – S. Paulo – 1934. 8 - Fernando S. Paulo – Linguagem médica popular no Brasil – Rio – 1936 – 2 vols. 9 - Lages Filho – A Medicina Popular em Alagoas – Arquivos do Inst. Nina Rodrigues – 1934. 10 - Leôncio Queiroz – Vida roceira – S. Paulo – 1919.
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OS CONTOS VOAM
Sob a epígrafe acima, publicou ha alguns anos o distinto folclorista Gustavo Barroso, em sua obra “Através dos Folclores” (1) um interessante estudo a respeito da viagem dos contos por continentes, séculos e raças distantes. Examinando as “Estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho”, de Cornélio Pires, assinalou a idêntidade de vários trechos da narrativa com lendas, contos ou narrações tradicionais de outros povos e de outras épocas. Esta viagem dos contos, como de outras espécies folclóricas, através do tempo e do espaço, possível de ser comprovada por qualquer folclorista que estude comparativamente as manifestações populares de sua região, é um fato sobre o qual não paira mais a menor dúvida. O que dá ainda motivos a divergências é a explicação do processo pelo qual se encontram manifestações tradicionais semelhantes em países às vezes antipódicos e de formação absolutamente diversa. Tem sido, aliás, ela própria a responsável pela criação das diversas escolas que têm dominado os estudos de folclore: a astronômico-meteorológica de Muller, De Gubernatis e Jacob Grimm; a histórica ou orientalista de Benfey e Gaston Paris; a antropologica de Tylor e Andrew Lang; a ritualística de Pierre Santyves; a psicanalista de Freud, introduzida entre nós por Artur Ramos; e a histórico-cultural, do Museu de Colônia, divulgada no Brasil por Joaquim Ribeiro. Do exame de todas elas, pode-se chegar à conclusão que, à parte umas tantas sutilezas e peculiaridades secundárias, todas se podem filiar às duas grandes e antagônicas idéias: da difusão ou do “self-repeating-process” e do autoctonismo, da “elementar gedanke” ou das coincidências acidentais. Dizer categoricamente qual a teoria verdadeira, seguir uma determinada escola no exame de todos os casos que se nos apresentem eis uma atitude perigosa e mesmo anticientífica porque baseada na adoção do “parti-pris” como método de trabalho. Por isto, parece-nos mais prudente e acertada a atitude de Gustavo Barroso, em outra obra sua (Colunas do Templo) (2), ao se referir à escola dos Ecléticos que, sem desprezar nenhuma das explicações aventadas pelas demais, aceita porém uma explicação para cada caso examinado.
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É, demais, a idéia já adotada por Bédier e da qual, numa obra recente (3) o conhecido etnógrafo Henri Junod se faz partidário: “Penso que nenhuma destas explicações possa excluir as outras. Cada uma contém provavelmente uma parte da verdade. A dificuldade está em definir esta parte”. Nos episódios examinados por Gustavo Barroso percebe-se bem que se trata de casos de “idéias elementares” surgidas aqui e ali, dada a semelhança entre os diversos povos e raças, durante a fase primitiva de seu desenvolvimento. A identidade de tais contos existe apenas em suas idéias gerais, podendo eles assim ter aparecido em povos diferentes, isolados uns dos outros. Noutros casos, comtudo, a identidade não é apenas de idéia, mas igualmente de fórma. Ha tamanha concordância entre eles que não poderemos deixar de recorrer à teoria da transmissão ou da migração para explicá-la. É o que acontece com um conto popular colhido por nós aqui em Maceió, e que também espalhado pelo Brasil afóra, como o demonstra a versão recolhida por Lindolfo Gomes (4) em Minas Gerais, sob o nome de “A historia do queijo”. A versão alagoana resa assim: “Diz que era uma vez um macaco muito sabido que andava em procura de trabalho. Vai daqui, vai dacolá, encontra-se um belo dia com a onça. Bom dia, comadre onça. Bom dia, compadre macaco. Que anda fazendo por estas bandas? Procurando trabalho, comadre onça. Será que é fácil a gente encontrar? Ora, muito fácil, compadre macaco. Eu trabalho o ano inteiro em casa do bichohomem; e agora mesmo ele está precisando de trabalhadores. Venha comigo que eu lhe arranjo uma vaga. Foram. E assim o macaco arranjou seu emprego, em companhia da onça. E juntos trabalharam um ano inteiro em casa do bicho-homem. Findo o ano, receberam sua paga em boa moeda corrente. Vai então o macaco e propõe à comadre onça: Ôu, comadre onça, vamos comprar um queijo com este dinheiro? Você dá uma metade, eu dou a outra e a gente compra um queijo grande e bom com que encher a pança. É mesmo, compadre macaco, combinou a onça.
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E compraram o queijo. Avistando, porém, uma árvore alta e frondosa, o macaco, de indústria, saiu-se com nova proposta: Ôu! comadre! Vamos pendurar este queijo aqui neste pé de pau? P‟rá que, compadre macaco? Ora, comadre onda, “mode” o queijo crescer... “Vosmecê” não está vendo estas “fruitinhas” tão miudinhas aqui? Pois daqui prá uns mêses mais elas estão “badéjas” de grandes. Si a gente dependurar o queijo com pouco ele ficará aumentado e olhe, então, o tamanho... A onça, seduzida pelas belas promessas do macaco, concordou: Tá certo, compadre. Pois então, comadre, disse o macaco, me amarre o queijo com estes cipós que eu vou subir no alto da galha. A onça prontamente obedeceu ao macaco que num pulo alcançou o olho da árvore onde suspendeu o queijo. Daí, foram-se embora, cada qual para seu rancho, a esperar que o queijo crescesse. Um belo dia, estava a onça à janela quando viu o macaco passar muito apressado. Chamou-o: Compadre macaco, para ode vai com tanta pressa? Entre aqui um instantinho pra conversar... Não posso, comadre onça, respondeu já de longe o macaco, tenho um negócio urgente para resolver. O “negócio” era, nem mais nem menos, sem que a onça o soubesse, trepar na árvore e comer boa lambada de queijo. Após o que, de pandulho cheio, tornou-se para casa. Ao passar, de volta, em frente ao rancho da onça, esta que o esperava anciosa, tornou a perguntar: Então, compadre, prá onde se foi com tanta pressa? Ora, comadre, fui ser padrinho de um menino. O compadre mandou me dizer que o “anjinho” estava mal e eu, mais que depressa, saí pra fazê o batizado. E como se chama o afilhado, compadre? Já principiei, disse o macaco. Que nome mais engraçado... 28
No outro dia, foi novamente à árvore e comeu mais um pedaço do queijo. Ao voltar, perguntou-lhe a onça: Já veio do batizado, compadre? Vim, comadre. E como se chama o afilhado? Está no meio, respondeu o macaco. Que nome engraçado... É. E amanhã ainda tenho outro para batizar. No dia seguinte, comeu o resto do queijo, amarrou em seu lugar uma pedra bem grande e pesada, e voltou para casa. Ao vê-lo, perguntou mais uma vez a onça: Então já veio do batizado, compadre? Já, comadre. E como se chama o afilhado de hoje? Já acabei, informou o macaco. Passaram-se alguns dias. Findos os quais a onça, lembrando-se do queijo, propôs ao macaco: Ôu compadre, vamos ver o nosso queijo? Será que ele já está grande? É bem capaz, comadre... Já de longe a onça avistou no alto da árvore a pedra que o macaco colocara no lugar do queijo. E logo começou a “maginar” um meio de passar um logro no sócio. “O melhor é eu matar o macaco e comer o queijo sósinha”... O macaco, esse já tinha o seu plano formado. Por isso, disse para engabelar a onça: Como está grande o queijo, comadre onça! Olhe, eu vou subir no pé de pau e você deite-se aí em baixo. Acenda as ventas, arregale os olhos, e escancare a boca que é pra quando o queijo cair você o engulir todo. E você compadre, não quer o queijo? “ „nhór‟ não” comadre. Ando com o estômago muito ruim estes últimos tempos e lhe dou a minha parte. A onça, satisfeita, fez exatamente como o macaco lhe recomendara: deitou-se de papo pro ar, abriu os queixos e esperou o queijo. 29
O macaco subiu ao tôpo da árvore e soltou a pedra que caiu bem em cheio no focinho da onça, esmigalhando-o todo. E como “sentinela” riu-se a noite toda da triste onça. E entrou por uma perna de pinto etc. etc.” Pois esta estória, recolhida da boca do nosso povo, existe com todos os seus episódios na França, onde foi recolhida por Arnold Van Gennep, em “Nantes-enRestier” da tradição oral remontando o século XIX sinão o século XVIII” e está incluída no 2o tomo do seu livrod: “Le Folk-lore du Dauphiné”, donde procuramos traduzi-la: (5) “Le haptême du Renard”
A raposa e o compadre lobo, estando muito apertados em sua antiga residência, resolveram fazer juntos uma nova casa. Escolheram o local e, antes de partir, depuzeram na antiga morada as provisões necessárias com que se restaurariam, uma vez acabado o trabalho. (Então começava o narrador a fazer a descrição agradável da copiosa refeição: Sopa de arroz, Perna de carneiro, Crême de chocolate, etc.). Foram-se, pois, o lobo e a raposa, para longe, e começaram a cavar os alicerces da nova morada. A raposa era, porém, muito vadia e gulosa. Desempenhava na vila as funções de sacristão da igreja. No início, fez menção de trabalhar algum tempo; depois, fazendo como quem escutava alguma coisa, exclamou: Oh! compadre lobo, parece que estão me chamando para fazer um batizado. Ao diabo teu batizado! Vai ligeiro e não te demores. A raposa foi à antiga morada, comeu a sopa de arroz e voltou em cima dos pés. O lobo perguntou-lhe: Muito bem, como se chama menino? A raposa, muito de indústria, respondeu: Sopa de arroz. Que nome besta tu botaste, disse o lobo. Foi o padrinho que assim o quiz. E duas vêzes mais a raposa deu o fóra para devorar, de uma, a perna de carneiro e, da outra, o crême de chocolate. E, de cada vez, o diálogo recomeçava, metade francês, metade “patois” até meio dia, quando o sol muito quente os obrigou a parar. O lobo, 30
fatigado e faminto, dirigiu-se rapidamente à antiga habitação afim de almoçar; a raposa que quasi nada havia trabalhado mas estava estoirando de cheia, caminhava atrás e distanciada. Cólera do lobo ao encontrar os pratos vasios... Quer vingar-se devorando a raposa, mas esta jura que não foi ela, invoca o testemunho de todos os santos e promete uma compensação”. Cremos ser inútil qualquer comentário para mostrar a identidade das duas fábulas. Não há por onde não se pensar que uma veio da outra ou que ambas vieram de versões ainda mais antigas e longínquas, no curso das migrações que as diversas culturas apresentaram no correr dos tempos.
BIBLIOGRAFIA
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Gustavo Barroso – Através dos folclores – S. Paulo – 1927. Gustavo Barroso – Colunas do templo – Rio. Henri Junod – Moeurs et coutumes de Bantous – Payot – Paris – 1936 – 2 vols. Lindolfo Gomes – Contos populares e cantigas de adormecer – S. Paulo – 2 vols. Arnold Van Gennep – Le folk-lore Du Dauphiné – Paris – 1932 – 2. vols.
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ADIVINHAS POPULARES
De todas as espécies sob que se nos manifesta a sabedoria, a literatura e a arte populares, nenhum tem sido menos explorada, no Brasil, que a dos enigmas e adivinhações. Trovas e contos, superstições e provérbios, mitos e danças, têm sido publicados a fartar pelos demólogos brasileiros, se bem que, ainda assim, esteja muito longo de se achar esgotado o nosso riquíssimo manancial folclórico. Mas como os enigmas e adivinhas populares, nenhuma. O número dos que se ocuparam do assunto, ou a soma do material recolhido, é reduzidíssimo. Apenas há a citar Leonardo Mota que em suas duas excelentes obras Cantadores e Sertão Alegre (5-6) registrou 05 dezenas de pitorescas adivinhas; Nestor Diogenes que em Brasil Virgem (2) trouxe a contribuição de trinta e tantos enigmas populares; Sílvio Romero e Gustavo Barroso que em suas obras Cantos Populares do Brasil (23) e Columnas do Templo (20) inseriram, cada qual, três adivinhações e J. Carneiro Monteiro e Alcides Bezerra, que, segundo Basílio de Magalhães, (O Folk-lore no Brasil) (3) se ocuparam também da questão na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (*) Afora estes colecionadores, ha a anotar sòmente o nome de três grandes exegetas de nosso folclore: Mestre João Ribeiro (4), que muito de largo tratou do assunto em seu livro O Folclore; o douto Alberto Faria no seu trabalho de literatura e folclore comparados Aérides (8), e Lindolfo Gomes, que abordou a etiologia de uma adivinha popular no erudito trab alho Nihil novi (7). E, ao que nos conste, só. (**) Artur Ramos, sempre tão bem informado e tão interessado em nossas coisas de folclore, lamentou a propósito, em sua obra O Folclore Negro do Brasil, a inexistência de uma coletânea brasileira que lhe permitisse apurar o grau de contribuição negra em nossas adivinhas.
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Só muito depois da primeira publicação deste trabalho, no n. 18 de Dezembro de 1939 da Revista do Brasil (Ano II – 3a fase), já em 1944, na Antologia do Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo (26) é que pudemos ler o excelente estudo de Alcides Bezerra, um dos bons trabalhos nacionais sobre a matéria, pela quantidade do material e pela documentação. Também só há pouco tempo nos foi dado obter e compulsar a obra de Daniel Gouveia – Folclore Brasileiro (27) em que o autor faz igualmente coletânea e estudo comparativo. ** O Prof. Joaquim Ribeiro publicou em 1939, na coletânea O Elemento negro, (26) que fez editar enfeixando vários trabalhos de seu pai e mestre. João Ribeiro, um interessante estudo de exegese sobre algumas adivinhas de origem africana.
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Por isso é que a publicação, feita pelo meu colega e amigo Dr. José Maria de Melo, na Folha de Viçosa (1), em Dezembro de 1938, de uma coleção de perto de 50 adivinhas populares, alagoanas (***), é um fato grandemente auspicioso para os apaixonados e estudiosos de nosso folclore, pois que representa mais um passo para a consecução de uma coletânea geral, como aquela que, segundo João Ribeiro, LehmanNItsche, da Universidade de La Plata, fez publicar sob o título de Adivinhanzas RioPlatenses. Pena é que o interessante trabalho de José Maria não tivesse tido uma maior divulgação no país, ficando assim do conhecimento apenas dos raros interessados no assunto e dos duvidosos leitores de província. Sem ter feito uma pesquisa sistemática, cuidadosa e intensiva da matéria, pudemos, entretanto, alinhar em nossa coletânea geral de folclore alagoano também cinco dezenas de adivinhas populares. Delas, algumas são inteiramente novas, outras se encontram sob variantes nas coleções de Leonardo Mota, Nestor Diógenes e Sílvio Romero. Nenhuma, porém, entre as adivinhações publicadas por José Maria; pelo que, juntas às anotadas por este último, representam a contribuição alagoana a tal espécie folclórica. O que é, o que é:
1 Sou redondo como a lua, Mas em ponto pequenino; Sou fêmea quando estou nua, Vestido sou masculino. O ovo (Com casca é ovo – masculino; sem casca é gema e clara – femininos).
2 Somos dois irmãos no nome, Mudados no parecer; Um serve para vestir, Outro serve de comer. Manga ***
Após esta publicação feita na Folha de Viçosa, em Dezembro de 1938, José Maria continuou a publicar em 1940 a sua coleção de adivinhas, ainda na Folha de Viçosa – coleção de que fez um resumo selecionado no seu discurso de posse do Inst. Histórico de Alagoas. (29-30)
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3 Uma bola bem feita, De bom parecer; Não há carapina Que saiba fazer. A lua (Na adivinha anotada por Nestor Diógenes, a solução é olhos, e o primeiro verso da quadra varia ligeiramente). 4 Sou tamanho de um cavaco, Puxo o boi todo do mato. Pente fino (Nestor Diógenes insere também uma variante em que a parte final do enigma é: tiro cem bois do curral. A nossa é muito mais característica: o cabelo dá muito mais idéia de mato que de curral).
5 Eu me chamo para tudo: Para o calor, para o frio, Causo alegria, faço mal, Com todo mundo arrelio. Aguardente 6 Curral grande, Gado miúdo, Moça bonita, Homem carrancudo. O céo, as estrelas, a lua e o sol. (Variantes em Nestor Diógenes e em Pereira da Costa). 7 No alto está, No alto mora, Todos o ouvem, Ninguém o adora. 34
O sino (Em Nestor Diógenes varia a pergunta, e a solução, que é côco de Flandres, de beber água).
8 Nós somos dois irmãos gêmeos, Mas tenho sorte mesquinha: Meu irmão serve na igreja, E eu sirvo na cozinha. Vinho e vinagre (Leonardo Mota apresenta uma variante em Sertão Alegre):
Somos dois irmãos no nome, Mudados no parecer: Meu irmão não vae à missa, Eu ão a posso perder; Pra festas e batizados A mim me convidarão, P‟ra negócios de cozinha, Isso é lá com meu irmão. 9 Nasce em pé, Corre deitada. Canoa 10 Planta-se com os olhos para cima, mas não nasce. Defunto 11 Uma besta ruça com dois cabrestos. Uma rede 12 Tem boca, não fala; Tem asa, não voa; Tem pé, não caminha. Pote de barro 35
13 Quanto maior, menos se vê. Escuridão 14 Altas torres, Bonitos penachos, Água na fruta, Flor no cache. Coqueiro (Nestor Diógenes insere-a na sua coleção, sob a forma de uma variante menos perfeita: água das flores, flores do cacho).
15 Altas torres, Bonitas janelas, Abrem e fecham Sem ninguém tocar nelas. Olhos (É igualmente menos perfeita a variante de Nestor Diógenes: Altas terras). 16 Curral grande, Gado miúdo, Ninguém o conta Senão seu dono. Céo e estrelas (Só o criador pode contar as estrelas).
17 Garças brancas Em campo ver4de, Com o bico n‟água Morrendo a sede. Barcaça
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(Está incluída em Cantos Populares, de Sílvio Romero). 18 Quanto mais se tira, mais fica. Buraco 19 Preta por fora, Vermelha por dentro, Arreganha a perna, P‟ra meter dentro. Bota (As botas finas eram forradas de vermelho).
20 Todos se vestem de verde Para passar o Natal; Só eu me cubro de luto Para tormentos passar. Genipapeiro (O genipapeiro perde as folhas pelo Natal).
21 Adivinhe, adivinhe, Por cima de uma linha: Qual é o peixe do mar Que não tem espinha? Polvo 22 Lambeu, lambeu, Torceu, torceu, No e... meteu. A linha e a agulha 23 Cabe numa casa, Não cabe numa mão. Botão 37
(Variante em Nestor Diógenes). 24 Trinca aqui, trinca acolá Sempre cai no buraquinho. Chave 25 Era um homem neste mundo, Quase sem culpa morreu, O pai ele nunca viu, A mãe nunca conheceu, A avó julgou-se em vida(?) Até que o neto morreu. Adão e a Terra (?) 26 São dos passos (pássaros): Um branco e outro preto; O branco espaia, O preto ajunta. O dia e a noite (De dia sai todo mundo para a rua, de noite junta-se toda gente em casa).
27 Um curral de pau a pique, Com um boi laranjo dentro Os dentes e a língua 28 Quatro na cama Quatro na lama Dois parafusos E um que abana. Vaca 29 Passa por cima d‟água e não faz sombra. O grito 30 Eu ia por um caminho 38
Encontrei um véio barbudo, Fui dá, um tapa, não pude. Um é de mandacaru 31 Geni tava no ninho, Caiu, quebrou o papo. Genipapo 32 Zigue, zigue está torcendo Com a boca para comer; P‟ra mastigar não tem dente, Engulir não pode ser. (Variante menos perfeita que a de Nestor Diógenes).
33 Com fogo, água e vento, Muita revolta se fez; Adespois dela acabada, Foi-se, e ficou quem a fez. Foice 34 Engole preto e obra vermelho. Espingarda (A pólvora é preta e o fogo é vermelho).
35 Eu me chamo meia, sem ser melão; Não é tão bom a casca como o coração. Melancia 36 100 meninas num castelo, Todas elas vestidinhas de amarelo. Um cacho de baenanas 37 39
Tamanho de um botão, Abre e fecha sem cordão. Os olhos 38 Subi num alto avistei o mar, Uma cabra, na baixa, dizendo mé, Dois negros falando dizendo lóa Duas pedras batendo, dizendo dá Marmelada 39 Mé sem sê de ingenho, Lã sem sê de carneiro, Cia (eilha) sem sê de cavalo. Melancia Variedade muito conhecida entre a meninada, são as adivinhas de solução muito fácil, mas que permite à criança que as propõe uma réplica, à maneira das pégas infantís. As três adivinhas seguintes, muito conhecidas entre nós, são desta natureza:
40 Uma casa caiada, Com uma lagoa dentro. É um ovo Uma banda p‟ra mim e outra p‟ra teu povo E o resto que sobrar dá ao teu cachorro. 41 Em casa está calado, No mato está batendo. É um machado Teu e... está inchado. (Nesta, como na seguinte, a resposta é dos domínios da escatologia, tão encontradiça no folclore infantil e que Mestre Mário de Andrade tão bem estudou no seu Namoros com a Medicina (22).
42 O que é, o que: 40
Salta p‟ra cima e faz bé? É uma cabra Você come o que ela c... 43 Plantei uma semente, Nasceu uma corda; Na onta da corda, Oie o broaba. Abóbora (Esta adivinha, contava-a meu finado avô como tendo sido proposta por um matuto besta a outro caboclo mais besta ainda. Passados os 15 dias do prazo, que tivera para resolvê-la, saiu-se o caboclo comi esta solução: “Oie, cumpade, só pode sê ou um arvado de foice ou um bôjo de alambique”).
44 Entrei por minha mãe, Fui ver meu pai. A Igreja e Jesus Cristo (A Igreja é a Santa Madre, e Jesus Cristo confunde-se, para o povo, com o Pai Eterno).
45 Tem pé, não caminha; Tem olho, não vê Tem barba, não rapa. Cana de açúcar 46 Por cima do pinho, o linho; Por cima do linho, a flor; Por cima da flor, o amor. A mesa, a toalha, os pratos, e a comida 47 Rapa, sem ser rapadura, Rapa, sem ser rapé; Quero que me diga que rapa é. 41
Rapaz 48 Estava gurupê de quatro pés, Comendo gurupê de um pé; Veio gurupdê de dois pés E tangeu gurupê de quatro pés P‟ra não comer gurupê de um pé. Um pé de milho, um boi e um homem 49 Tem braços, não move; Tem boca, não come. O pote 50 Caixinha pequena De bom parecer Não há carapina Que saiba fazer Só Deus do céu Tem esse poder. (Variante da de n. 3 da nossa coleção).
51 Branco por fóra, Amarelo por dentro. Ovo 52 G-i-gi, n-i-ni, Passou por aqui, Chegou ali adiante Fez pa-pú. Genipapo (Variante da de n. 31).
53 São três irmãs: O mais velho já morreu, 42
O do meio ainda vive, O mais moço não nasceu. Tempo passado, presente e futuro Como todas as espécies folclóricas, obedecem as adivinhas às duas grandes leis da antiguidade e da universalidade. Os enigmas e adivinhas são velhos como o mundo. Parece que a humanidade, em sua infância, fazia como ainda hoje fazem as criancinhas, que ocultam sob mistérios as mais tolas descobertas de seu engenho. Sob a forma de enigmas pronunciavam-se os oráculos da Antiguidade, Uma adivinha exatamente semelhante às de nossos matutos, conta a lenda, a Esfinge propôs a Edipo. Em enigmas Salomão disputava com a Rainha de Sabá e com o Rei de Hiram, mostrando sua sabedoria. E uma das páginas mais belas do povo judeu é um Enigma que ainda não foi decifrado – o Apocalipse de S. João. Nos povos primitivos, povos na infância, portanto, têm os enigmas e adivinhas um papel notável. Refere-nos Lowie (10) que as adivinhas existem em franca voga entre as populações asiáticas e africanas, sobretudo entre estas últimas, “onde constituem mesmo uma parte da literatura negra”. E ainda nos informa que elas existem também entre os polinésios, cujos poemas mostram sempre um vilão que se faz de Esfinge e que propõe enigmas para o herói resolver. Daí, não ser surpresa que a espécie folclórica, sob nomes vários, exista em tantas regiões pelo mundo em fóra, mesmo civilizadas e cultas. Indovinelli na Itália, devinettes na França, Acertijos na Galiza, endevinallas na Catalunha, cosadiellas nas Astúrias, Adjês entre os Fons (Dahorney) etc. elas existem por toda parte como manifestação da sabedoria popular e tradicional. E se encontram sob a fórma dos mesmos problemas, que se repetem de região a região, que permanecem através dos anos, quasi sem alterações e diferenças. Ao manusear uma coleção folclórica de adivinhas, o que primeiro nos vem ao pensamento é a admiração pelo espírito que estas adivinhas encerram, pelo seu engenho, pelo seu pitoresco. E, das adivinhas, a admiração passa áqueles que as pronunciaram-os velhos matutos ignorantes e simples – que não se sabe bem como as puderam engendrar. Mas o folclorista, que deve antes de tudo observar afim de não ser tomado de rápidos e fáceis entusiasmos, conclui que este saber que o matuto e o caipira repetem, na sua maioria não é original e que eles não mais fizeram que redizer, adaptar,
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transformar conhecimentos que lhes vieram, através do tempo e do espaço, na voz da tradição, pelo “self-repeating process” de Hendel Harris. Certas feitas os problemas são os mesmos, sem tirar nem pôr, quasi como tradições liberais que um poliglota tivesse espalhado pelos quatro cantos do mundo. Uma adivinha que está na coleção de José Maria de Melo é a seguinte:
Quatro na cama, Quatro na lama, Dois na cabeça E um que abana. cujo significado é vaca. (Quatro na cama são os bicos dos peitos, quatro na lama, os cascos; dois na cabeça, os chifres; e um que abana, o rabo). À primeira vista ninguém duvidará que esta adivinha não tenha saído do bestunto de um matuto alagoano ou de um caboclo do Nordeste, tão simples e exata, de expressão tão nossa ela é. Mas si correremos a vista pelo folclore dos países de língua latina, veremos a adivinha em todos eles:
Em Portugal: Quatro na lama, Quatro na cama, Dois que l‟assistas, Um que l‟abana. (Minho – Teofilo Braga, O Povo Português) (11) Na Espanha: Cuatro andantes, Cuatro mamantes, Uno quita – moscas, Dos apuntantes. (Rodrigues Marta – Cantos populaes espanoles) (11) Na Itália: Dui lucenti, Dui spannenti, Quatru zoculi, E uma scupa. (Leonado Vigo, Canti populari siciliani) (15) 44
Na França: Quatre allanta, Quatre fuants, Ras au cu, Et broc devant. (P. Sébillot – Traditions et supersticions de la Haut-Bretagne) (13) E, como estas, outras e outras: Nasce no mato, No mato se cria; Quando sai de casa, É chôro em demasia. Pau de rede de defunto (José Maria) Qual a coisa, qual é ela? Que no mato nasce e no monte se cria E da más tristezas du‟alegria? Caixão de defunto (Cardoso Martha. Folclore do Cadaval – Portugal) (16) En el campo fuy creado, En el campo fuy nacido, Donde quier que yo entre Todos lloran y suspiran. Caixão de defunto (Rodriguez Maria – Ob. cit.) *** Uma velhinha “eneriquiadinha” Num galhinho passa é. Besta é quem não dissé. Passa (José Maria) Uma velhinha, muit‟encurrilhadinha, Encostadinha num tranquillho? Passa, asno, passa é. Adivinha o que é isto? Passa (Teófilo Braga – Ob. cit.) 45
Una biejecita, muy arrugadita, Y en er eu Una tranquilla Passa (Rodriguez Maria, ob. cit.) *** Campo branco, Sementes pretas, Cinco arados, E uma chaveta. Papel, letras, dedos e pena (Nestor Diógenes – ob. cit.) Cinco arados E uma aradeta, Campo branco, Semente preta. Idem (Teófilo Braga, ob. cit.) Lianura blanca, Con flores negras, Y cinco bueys Aran en ella. Idem (Fernando Llorca, Lo que brincan los ninos) (12) 5 l‟annanti, Uno ‟u pucenti, Li terri bianchi, Niuri i frumenti. Idem (Leonardo Vigo – ob. cit.) Blanc est le champs, Noire la semence, L‟homme qui le sème Est de trés grand science. Idem (E. Rolland, apud Teófilo Braga, ob. cit.) Nós somos dois irmãos gemeos, Mas tenho sorte mesquinha: Meu irmão serve na igreja, E eu sirvo na cozinha. Vinho e vinagre (pessoal) 46
Nós semos dois irmões Ambos da mesma mãe nacidos: E‟ por ser o mais cristão Fui oivir a „nha missa; Mê irmão ficou em casa A quêim escandeliza. E sou o mais q‟rido Dos músecos da capela; Só o qu‟ê não sê é timp‟rar Com‟ó mê irmão timera. Idem (Cardoso Martha – ob. cit.) Dos hermanos son: El uno va a missa Y el otro no. El vino blanco y el tinto (Llorca – ob. cit.) *** Uma casinha branca, Sem porta nem tranca. Um ovo (José Maria) Qual é a coisa q‟al é ela: Que nun têim porta nim portal, E‟está atacado anté ó gargal? Idem (Cardoso Martha – ob. cit.) Una iglesia blanca, Sin puerta ni tranca, No entra em ella luz ninguna, Ni de vela, ni de sol, ni de luna. Idem (Marin – ob. cit.)
Ina granzita Plena di pastourita, Sin ancuna finistrita. Idem (Vigo, op. cit.) Qu‟est qui est plein Et n‟n porte, ni fenêtre? 47
Idem (Rolland, apud Teófilo Braga – op. cit.)
Outras vezes os problemas sofrem adaptações e alterações em seus termos ou variam em seu significado. Nesta adivinha da coleção de José Maria:
A‟ meia-noite canta o inglês Marca a hora mas não marca o mês Cava no chão, não acha dinheiro, Tem esporas, não é cavalleiro. O galo houve uma adaptação, de acordo com a preferência local do nosso matuto. **** A forma portuguesa que vem em Teófilo Braga (op. cit.) é a seguinte:
Á meia noite se ergue o francês, Sabe da hora não sabe o mês, Tem esporas, não é cavalleiro, Tem serra, não é carpinteiro; Tem picão, não é pedreiro; Cava na terra, não ganha dinheiro. O matuto substituiu o francês (gallus) povo que atualmente não conhece, pelo inglês, de mesma consonância final, e seu velho conhecido da construção da estrada de ferro da “Great Western”, comquanto ficasse por isso alterado o trocadilho encerrado no primeiro verso da adivinha. Aliás, esta referência ao francês só existe na língua portuguêsa, não se encontrando nem na variante italiana:
Nun é ré e havi la cruna, Nun é campeasi e havi spruna, Nun é sacristani e sona a matutini. (Leonardo Vigo, op. cit.) nem mesmo na francêsa:
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Realmente a adaptação houve, mas não no Brasijl ou em Alagoas mas sim no próprio Portugal, pois J. Leite de Vasconcelos (28) em Tradições Populares de Portugal, inscreveu uma varitate em que já se encontra substituído o francês pelo inglês.
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Je ne suis pas cavalier, et j‟ai des éperons; J‟ai une couronne, et je ne suis pas roi; Je déclare la guerre, et já signe la paix. (Sébillot – op. cit.) Noutros casos, a alteração deu margem ao aparecimento de uma solução diversa da primitiva. A adivinha da ceroula, por exemplo, que tem as seguintes fórmas nas línguas portuguêsa, hespanhola, italiana e francêsa:
Branca por fóra, Branca por dentro, Alço a perna, Meto-lhe dentro. (Teófilo Braga – op. cit.) Pêlo de fóra, Pêlo de dentro, Ergo-m‟a perna, Meto-la dentro. (Demophilo, Galiza apud T. Braga – op. cit.) Pelosa di fora, Pelosa di dentro, Alza la gamba E mettela dentro. (Ginandreia, apud T. Braga, op. cit.) Poil dehora, Poil dedans, Lève la jambe, Fourre la dedans. (Rolland – apud T. Braga, op. cit.) foi modificada, permitindo como solução uma bota:
Preto por fora, Preto por dentro, Chega meu compadre, Zápute dentro. (José Maria de Melo) 49
A adivinha n. 3 de nossa coletânea, cujo significado é a lua, e que na variante de Nestor Diógenes tem como solução os olhos, apresenta nas fórmas portuguêsa e espanhola o significado de nozes:
Armadinha nova De bom parecer, Nenhum carpinteiro A pode fazer, Só Deus do céo Tem este poder. (Teófilo Braga, op. cit.) Arquita Chiquita De buen parecer, Ningun carpintero La ha podido hacer, Solo Diós del Cielo Con su gran poder. (Fernando Llorca, op. cit.) A adivinha do fumo, que se encontra na coleção de José Maria:
Meu nascimento foi verde, Depois de luto me cobri Para dar luzes ao mundo Em fumaças me consumi. aproxima-se, pelo sentido, muito mais da fórma italiana:
Virdi nasci, Niuri pasci, Russu spice, Biancu mori. Il legno (Leonardo Vigo, op. cit.) do que das fórmas portuguêsa e espanhola:
Verde foi meu nascimento E de luto me vesti, 50
Para dar luzes ao mundo Mil tormentos padeci. Azeitonas (Teófilo Braga, op. cit.) Verde fué mi nacimiento Y de luto me vesti, Las ruedas me tormentaron Y oro fino me volvi. Aceitunas (Fernando Llorca, op. cit.) Mais interessante é adaptação feita em outra adivinha que vem na coleção de Nestor Diógenes e, sob variante, na nossa:
Zigue-zigue vae voando Com denes para morder; Mastiga, bota fora, Engulir não ode ser. Caetetú (Caetetú – explica Nestor Diógenes – instrumento de casa de farinha, cilindro dentado, movido – zigue-zague – por uma roda de mão e o qual móe a mandioca e atiraa triturada ao cocho). Esta adivinha, a gente jura que é original, que nasceu nas matas e brejos do Nordeste, tão precisa, tão exata, tão expressiva ela é. No entanto, passando os olhos na coletânea de adivinhas de Teófilo Braga, deparamos com as duas fórmas de que a acima transcrita indubitavelmente deriva:
Uma senhora mui assenhorada Asseada no comer, Mastiga e bota fora, Engulir não pode ser. A serra Estou aqui no meu cantinho, Onde todos me podem ver, Mastigo e boto fora, Engulir não pode ser. Moinho 51
Deste exame comparativo que acabamos de fazer, parece à primeira vista que a maioria de nossas adivinhas não é nossa, que o seu valor e interêsse como demonstração do patrimônio intelectual de nossas gentes sejam nulos ou negativos, e que o tão falado interêsse nacionalista do folclore não passa de uma ficção. A um exame mais atento não é assim, porém. A maioria das manifestações da arte, da ciência e da literatura populares não é privilégio de uma raça ou país, mas, muito ao contrário, é um patrimônio comum às várias civilizações, mesmo às mais afastadas no tempo e no espaço. A outros propósitos, já o demonstraram os distintos folcloristas Gustavo Barroso (O Sertão e o mundo, Através dos folclores e Colunas do Templo) e Lindolfo Gomes (Nihil novi) para não falar em Mestre João Ribeiro, que iniciou no Brasil estes estudos de folclore comparado. Pelo fato de se ter originado de países e raças diferentes não quer dizer que o nosso patrimônio folclórico perca a sua significação e o seu sentido nacional. Para empregar uma imagem da Biologia – a albumina humana que compõe nossas células e tecidos não é menos humana e específica por se ter originado da albumina de outros animais ou de vegetais. Apenas, afim de perder o caráter de albumina estranha e passar a ter as propriedades de albumina humana, ela deve de sofrer um prévio e demorado processo de adaptação, de decomposição pelos sucos digestivos e de ulterior recomposição na intimidade das células vivas. É exatamente o que acontece no folclore. É pela adaptação através do tempo no seio das massas populares que um determinado tema ou assunto perde o seu caráter de estrangeiro e se nacionaliza. Sob certo ponto de vista, quanto maior a alteração ou deturpação, mais antiga a introdução da peça folclórica e maior o processo de adaptação. As nossas adivinhas, já mostramos, vieram na sua maioria através de Portugal. E esta transmigração foi realizada já nas primeiras épocas coloniais, pelo que sua adaptação pode ser quase perfeita. Pelo menos é o que podemos deduzir da existência, entre nós, de adivinhas que fazem parte da coleção de José Maria de Melo, semelhantes e positivamente derivadas de adivinhas que estão numa velha coleção do século XVII. Esta obra, que por um feliz acaso possuímos, intitula-se Passatempo honesto de enigmas & adivinhações (17), e foi escrita por Francisco Lopes. A primeira impressão é de 1603, pelo que, nos diz Teófilo Braga (op. cit.), que a considera uma “obra extremamente rara”, “se pode inferir 52
que a tradição nela contida pertence toda ao século XVI em que a literatura se inspirou nas fontes populares”. Três adivinhações pertencentes à coleção de José Maria e que são comuníssimas entre nós – adivinhas estas que não se encontram, nem mesmo sob a forma de vagas variantes, na vasta coleção portuguesa de Teófilo Braga – apresentam-se sob forma erudita, no livro de Francisco Lopes: (*****)
N‟água nasci, N‟água me criei; Se n‟água me botarem, N‟água morrerei. O sal (José Maria – Alagoas) Sem ser carne, nem pescado, Sou dentro n‟água nascido; E se depois de criado For á minha mãe tornado, Serei logo consumido. E sem tanger, nem cantar, A todos dou tanto gosto Que sem mim não há gostar Mas escondido hei de andar Noutro traje descomposto. O sal (Francisco Lopes – op. cit.) *** Indo eu por um caminho, Encontrei uma donzela; Antes de correr de mim, Eu corri com medo dela. Uma cobra (José Maria) Por um verde e fresco prado Passa uma dama formosa Com um vestido bem lavrado Com obra mui curiosa, E sem ser sala nem manto *****
Ainda aqui laborámos n‟outro engano: em Teófilo Braga (op. cit.) se encontram realmente adivinhas semelhantes às da obra de Francisco Lopes.
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Não mostra ponta de pé E sua natureza é Por muitas vezes espanto A quem de repente a vê. A cobra (Francisco Lopes – op. cot.) *** O meu princípio foi cinza, De meu viver ninguém se espanta; De sete irmãs que tive, A derradeira foi santa. Quaresma (José Maria) Phenix na cinza nascida, Mostro ser no meu começo: Estou de negro vestida E de mais dias pareço Do que sou, pela má vida. Do ser triste me não pejo Nem quem o sabe se espanta. De sete filhas desejo Saúde e vida a mais santa Que sempre endoenças vejo. Quaresma (Francisco Lopes – op. cit.) Teófilo Braga, dizendo que “nas adivinhas que se leem nesta coleção erudita acham-se por vezes formas que se dissolveram ou provieram de versões orais ainda persistentes no povo”, lança-nos no difícil problema de resolver si as adivinhas passaram da forma erudita para a popular, ou se da popular é que saíram as eruditas. Problema semelhante ao que Mário de Andrade tentou enfrentar com as rezas e remédios populares em Medicina dos Excretos (22) e Sílvio Júlio com o trovário popular em Fundamentos da Literatura Brasileira. (21) Não temos autoridade para opinar nos outros setores; mas, em relação às adivinhas, por este confronto de textos populares do Brasil e eruditos de Francisco Lopes, não há negar que os primeiros derivam nitidamente dos segundos (******) O que não inhibe que por sua vez a forma erudita já tivesse sua origem em formas portuguesas ou hespanholas ainda mais antigas. ******
Não estamos bem seguros atualmente sobre o rigor desta opinião.
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De qualquer modo, o de que não resta dúvida é que tais adivinhas existam já há quatro séculos, e nessa época ou pouco depois passaram para nós, sofrendo a necessária adaptação e tornando-se, ao menos pela forma, senão pelo sentido, em peças folclóricas verdadeiramente brasileiras.
BIBLIOGRAFIA 1 - José Maria de Melo – Adivinhações – Folha de Viçosa – Dezembro de 1938. 2 - Nestor Diógenes – Brasil Virgem – Recife – 1924. 3 - Basílio de Magalhães – O Folclore no Brasil – 1a Ed. – Rio – Quaresma – Ed. 4 - João Ribeiro – O Folclore – Rio – 1919. 5 - Leonardo Mota – Cantadores – Rio – 1921. 6 - Leonardo Mota – Sertão Alegre – Belo Horizonte – 1928. 7 - Lindolfo Gomes – Nihil novi... – Minas – 1927. 8 - Alberto Faria – Aerides – Rio – 1918. 9 - Artur Ramos – O Folclore Negro no Brasil – Rio – 1935. 10 - Roberto Lowie – Manuel d’Antropologie culturelle – Payot – Paris – 1936. 11 - Teófilo Braga – O povo português nos seus costumes, crenças e tradições – Lisboa – 1885. 12 - Fernando Llorca – Lo que cantam los ninos – Valencia – 1934. 13 - Sebillot – Traditions et superstitions de la Haute – Bretagne – Paris – 1882. 14 - Pereira da Costa – Folclore Pernambucano – Rio – 1908. 15 - Leonardo Vigo – Canti popolari siciliani – (Vol. da Biblioteca Nacional). 16 - M. Cardoso Martha – Folclore de Cadaval – Espozende – 1934. 17 - Francisco Lopes – Passatempo honesto de enigmas & adivinhações – 2a impressão – Lisboa – 1793. 18 - Gustavo Barroso – O Sertão e o mundo – Rio – 1923. 19 - Gustavo Barroso – Através dos folclores – Rio. 20 - Gustavo Barroso – Colunas do templo – Rio. 21 - Sílvio Júlio – Fundamentos da poesia brasileira – Rio – 1929. 22 - Mario de Andrade – Namores com a medicina – Porto Alegre – 1939. 23 - Sílvio Romero – Cantos populares do Brasil – Rio – 1897. 24 - Maximilien Quenun – Au Pays des fons – Paris – 1938. 25 - Joaquim Ribeiro – Adivinhas de origem negro-africana – in João Ribeiro – O elemento negro – Rio – 1939. 26 - Alcides Bezerra – Demospsicologia – Adivinhas – in Antologia do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo – S. Paulo – 1944. 27 - Daniel Gouveia – Folclore Brasileiro – Rio – 1926. 28 - J. Leite de Vasconcelos – Tradições populares de Portugal – Porto 1882. 29 - José Maria de Melo – Adivinhações – Folha de Viçosa n. 101-103-104-105-106107-108-109 – (1990). 30 - José Maria de Melo – Discurso de Posse – Rev. Instituto Histórico de Alagoas – Vol. XXIII – Ano de 1944.
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CONTOS AFRICANOS NO BRASIL
Catalogando, em seus “Contos Populares do Brasil” (1) as fábulas e estórias, de acordo com o conceito puramente antropológico de raça, foi Sílvio Romero o primeiro a indicar a contribuição do africano ou do mestiço afro-brasleiro ao nosso fabulário. Fêlo, comtudo, deixando-se levar muitas vezes por meras aparências, incluindo entre a contribuição de uma raça aquilo que um estudo mais aprofundado viria posteriormente demonstrar a outra pertencer. Depois, João Ribeiro, no “Fabordão” (2) mostrou que o conto “Jabotí” e o “Teiú”, incluído por Sílvio entre os contos de origem ameríndia, era ao contrário africano e tinha não só o seu similar no conto “O Elefante e a Rã”, recolhido por Heli Chatelain em sua obra “Folk-tales of Angola”, como pormenores do mesmio ainda se encontravam no conto “O Elefante e a Lebre” recolhido por Stukman de uma tribo Niam-Uezi e transcrito na coletânea alemã de Seidel: “Das Geistesleben der Afrik Noegerwolker”. No mesmo “Fabordão” mostra ainda João Ribeiro que a fabula “O Jaboti e o Viado”, recolhida por Hartt ou a versão “O Jabotí e a Onça” coligida por Couto de Magalhães, tidas por seus coletores como indígenas eram realmente africanas, segundo se podia notar através de versões várias recolhidas em África, umas pertencentes à coletânea de René Basset “Contes populaires d’Afrique” (3) e outras à já citada estória do “Cão com o gato” como de origem africana, citando uma versão angolense publicada na “Revista do Minho”. Coube, após, a Gustavo Barroso em “Columnas do Templo” (5) elucidar a origem africana de outros contos recolhidos no Brasil. Examinando a coleção de Silva Campos, recolhida da tradição oral no Recôncavo Baiano e publicada na segunda parte da obra “O Folk-lore no Brasil” de Basílio de Magalhães, mostrou que os contos: “A onça e o macaco”, o “Gavião e o Urubú”, “D. Helena” e “O Macaco do MatoGrosso” apresentavam semelhanças com várias fábulas recolhidas nos sertões africanos e constantes da citada coleção de Basset u da de Blaise Cendrars: “Anthologie Negre”. Também Nina Rodrigues, em “Africanos no Brasil” (6), obra publicada em 1932 mas efetivamente escrita antes de 1906 (data da morte do grande africanólogo), muito antes portanto das pesquisas de Gustavo Barroso e de João Ribeiro, evidenciou a origem 56
africana de diversos contos e fábulas das coleções de Sílvio Romero e Couto de Magalhães, considerados indígenas ou portuguêses, como “Canta, canta meu surrão”, “A madrasta”, “O Kágado e o Teiú”, baseado em versões colhidas pelo Coronel Ellis na Costa dos Escravos. (*) Demais disso, individualizou o ciclo do “Kibungo”, apresentando várias estórias colhidas pessoalmente tais como: “O Kibungo e a Cachorra”, “O Kibungo e o homem”, ao lado de mais duas fábulas de nítida procedência africana. Artur Ramos, o grande discípulo e continuador de Nina Rodrigues, em seu notável “Folclore Negro do Brasil” (7) trouxe também o seu apreciável contingente à identificação africana de contos brasileiros coligidos por Silva Campos e Basílio de Magalhães, como “O Kágado e a Fruta” “O Sapo Saramuqueca”, “O Rei dos Pássaros”, “Beija-flor” e “Beija-florzinha”, nos quais se evidenciam claros elementos africanos ou como os do ciclo do “Kibungo”: “Kibungo e o filho Janjão”, “Menina e o Kubungo”, “O Kibungo e a menina do Saco de Penas” e “Aranha caranguejeira e o Kibungo”. Além disso, mostrou uma versão africana (O Peixe e o homem” de Ladislau Batalha) do conto “O Pau-piá” por ele próprio recolhido entre nós, em Alagoas, e anteriormente reputado como de origem ameríndia, assinalando, por fim, a existência de versões africanas dos conhecidos contos de Perrault e de Grimm: “Pequeno Polegar”, “Barba-Azul”, “Riquete de Crista”, etc. Câmara Cascudo, retomando recentemente o assunto, nos comentários eruditos que borda após cada um dos seus “Contos Tradicionais do Brasil” (8), trouxe por sua parte diversas e preciosas achêgas ao assunto. Deu notícia de uma versão do conto “O Jabotí e o Teiú” de Sílvio Romero na Serra Leôa (“A tartaruga e o veado”) e da longa bibliografia do Prof. Stith Thompson entre negros africanos, dos Estados Unidos e das Antilhas; confirmou a origem africana do conto “A Aranha Caranguejeira e o Kibungo”, já aventada por A. Ramos; deu uma versão brasileira “O Sapo com medo d’água” do conto afro-negro “O homem e a tartaruga”, assinalando a existência de versões nas Bahamas e no Sul dos Estados Unidos; registrou a existência na África (Frobenius – Kabyl Folk-tales) da fábula “A Rolinha e a Raposa” recolhido no Pará por José Carvalho, embora informe da presença do mesmo na Espanha; publicou o original e a versão africana do conto: “As testemunhas do Valdevino”, também existente na França; mostrou a origem africana da estória “A onça e o bode” de Silva *
Câmara Cascudo na extraordinária coletânea “Contos Tradicionais do Brasil” transcrevendo a versão de Nina “Canta, canta, meu surrão”, assinala uma versão portuguesa, outra espanhola e uma africana.
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Campos através de uma versão de Leo Frobenius e, por fim trouxe a versão negra de “O compadre da morte”, bem como variantes portuguesa e francesa. Ao lado dos acima enunciados pesquisadores há ainda que incluir o nome de Amadeu Amaral Júnior que, segundo Joaquim Ribeiro noticia em “Elemento Negro” (9), realizou igualmente pesquisas mostrando a influência afro-negra nos nossos contos populares em trabalho que infelizmente até hoje não nos foi possível consultar. Em Alagoas, coube ao Prof. Luís Lavenère trazer achegas à matéria com o conto “Nigumba, Nigumba”, recolhido da tradição oral em Maceió e cuja origem africana ele pôde perfeitamente comprovar através da lenda recolhida por H. Junod na região do Conog “Ngoumba, Ngoumba ou l’ogre et les trois guerriers”. (10) Apesar, assim, de já ter sido o terreno bastante palmilhado por numerosos folcloristas, muito ainda há a elucidar na questão dos contos africanos no Brasil. Nem é possível mesmo que tendo sido o fabulário um gênero tão cultivado entre os negros d‟África, a relativamente tão pouco ficasse reduzida a contribuição de nossos “Akpalôs”. Quem quer que se muna de um pouco de paciência e de alguma bibliografia pode ainda hoje contribuir para a identificação dos nossos contos africanos. Foi o que nos aconteceu ao examinar também algumas coleções de contos negros. Através da própria coletânea de Basset (3) é ainda possível a identificação de outros contos africanos no Brasil. Assim, por exemplo, o conto “Le Singe et le Bucheron”, colhido por Rochemonteix, na Nubia, região Dongola, reproduz grande número de passagens e peripécias da nossa conhecida estória do macaco que fez o amo tornar-se rico e poderoso, casando-se afinal com a filha do Rei-estória que se encontra com o nome de “Dr. Botelho” nos “Contos Populares do Brasil” de Sílvio Romero e que José Lins do Rego também recolheu na Paraíba e nos contou nas “Histórias da Velha Totonha” (11). Aqui, o Dr. Botelho era marceneiro; na África, “et pour cause”, era simplesmente lenhador. Havia, em ambos os contos, o casamento com a filha do Rei, a visita ao castelo do qual o macaco se apossara para o lenhador etc. Episódios, aliás, semelhantes a certas passagens do conhecido conto de Perrault: “O Gato de Botas”. Outro conto bastante conhecido nosso é o “Macaco e o Moleque de Cera” que Sílvio Romero recolheu em Sergipe (1), Lindolfo Gomes (12) encontrou em Goianá sob o nome de “O macaco e a velha” e Silva Campos na Baía (“O Macaco e a negrinha 58
de cera”) – estória que não é necessário relembrar pois anda perfeitamente na memória de todo mundo. A passagem está no conto africano recolhido entre os Bari, nas margens do Nilo Branco, por Mittelrutzmer. “A lebre” como se pode comprovar por este trecho que traduzo da obra de Basset (3): “Ele fabricou, de goma, uma imagem de moça e colocou-a na árvore. À noite, a lebre e a raposa foram comer frutas. Viram a moça trepada na árvore. A lebre subiu e a moça não se mexeu. Deu ponta-pés, mas estes ficaram colados à boneca de goma. Gritou: solta-me, solta-me... Mas a moça, nem nada... Então, chamou a raposa. Mas esta, ao segurar na moça de goma, ficou por sua vez grudada. No dia seguinte, o proprietário do pomar chegou e encontrando-os na árvore, nela subiu e tangeu-os a pauladas”. Há mudanças apenas nos personagens: entre nós, o macaco; na África, a lebre e a raposa. Aqui, a isca é o moleque de cera; na África, a moça de goma. Aliás, em nota ao mesmo conto, Lindolfo Gomes, embora sem apresentar razões, diz não haver dúvida sobre a origem africana da estória que teria passado, no Brasil, por muitas modificações.** Maior identidade que a das estórias acima citadas se observa entre o conto etiológico que Lindolfo Gomes colheu em S. João del Rey (12) e a estória que Jeannest, apud Basset (3) recolheu do dialeto Fiote – “L’origine dos blancs et des negres”. Resa assim a versão de Lindolfo Gomes: “Dizem que antigamente todos os homens eram negros. Vai, então, Deus viu, um dia, três irmãos lamentando com muito pranto a morte de seu pai. Deus ficou penalizado e resolveu consolá-los, de algum modo, em tanto sofrimento. Disse-lhes que havia uma fonte de água muito pura e cristalina, da qual, se nela se lavassem, poderiam sair tão brancos quanto a neve. Um dos irmãos atalhou: Não acredito em tal maravilha. Nem sequer tentarei experiência! O segundo disse: Irei ver essa fonte maravilhosa. O terceiro disse: Irei lavar-me nessa fonte e, quando dela sair, estarei branco e perfeito. E, dizendo isto, foi atirar-se no meio da fonte, donde saiu com a pele inteiramente branca. Vendo-o o segundo correu a imitá-lo, mas encontra a água já alterada, de maneira que após o banho, ficou ele com o corpo apenas avermelhado. O primeiro, já não **
Contudo, Cascudo informa (op. cit.) a opinião do Prof. Aurelio Espinosa recusando a fonte africana ao conto e mostrando a origem oriental através de suas 31‟1 versões, começando na Índia e terminando no Brasil e na América Espanhola.
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duvidando do milagre, correu também à fonte, mas já havia muito pouca água, de modo que apenas pode tocar nela a planta dos pés e a palma das mãos. E assim foi que apareceram as três raças – a branca, a vermelha e a negra”. O conto africano diz: Há muito tempo o Mani-pouta teve dois filhos: um que se chamava Mani-congo e o outro Zonga. Um dia, Mani-pouta ordenou que eles, ao cantar do galo, fosse tomar banho na lagoa próxima. Zonga chegou primeiro e otou com admiração que, à medida que entrava na água, ficava branco. Mani-congo acompanhou logo o irmão, mas ficou inteiramente negro. Daí Zonga foi para além do oceano – foi o pai dos brancos; Mani-congo ficou, foi o pai dos pretos”. João Ribeiro (4) refere-se a uma variante da coleção de Dahardt, a seu parecer tomada da obra de Santa Anna Nery (Folk-lore Bresilien) e transcreve ainda outra de Medeiros e Albuquerque na série de conferÊNICAS: “Em voz Alta”, dando a ambos como contos brasileiros. (***) Mais outro conto podemos ainda elucidar, quanto à sua origem africana, e este recolhido por nós próprio aqui em Alagoas. Nada leva a crer a princípio que se trate de conto negro conquanto nos tenha sido contado, ainda adolescente, por nosso velho avô materno que o aprendera, em menino, de uma negra escrava de meu tetravô. Ei-lo: “Diz que uma vez um homem ia por uma estrada quando encontrou, à beira do caminho, uma caveira. Tocando-a com a ponta de sua bengala, resolveu perguntarlhe: Caveira, quem te matou? A caveira, como era de se esperar, não respondeu. O homem, não satisfeito, repetiu mais duas vezes a pergunta até que na última, ante sua própria admiração, ouviua responder: Foi a língua. Admirado, prosseguiu viagem e ao chegar à cidade contou o fato a várias pessoas. Dentro de poucas horas, estava ela cheia da notícia de que um homem ouvira uma caveira falar. E a nova logo chegou também ao Rei que, incrédulo, resolveu apurar o fato. Mandou chamar a palácio o homem que ouvira a caveira falar, o qual repetiu direitinho tudo o que se passara. Ordenou-lhe, então, o Rei que fosse buscar a caveira e
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Cascudo (op. cit.) registra versão negra americana de Chandler Harris e informa que Tastevin (Les idées africaine) transcreve alguns elementos deste conto.
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que a fizesse falar. E se não o conseguisse, manda-lo-ia degolar. Trouxe o homem a caveira para palácio, colocou-a sobre uma mesa e perguntou-lhe, como da primeira vez: Caveira, quem te matou? Repetiu a pergunta mais duas vezes e apesar de tudo a caveira se conservou muda. O rei, então, (Palavra de Rei não volta atrás) não teve dúvidas: mandou degolá-lo. No momento exato em que o cutelo do carrasco batia na nuca do homem e sua cabeça caía ao chão, a caveira pulou da mesa abaixo e falou: Eu não disse que quem tinha me matado tinha sido a língua!...” Posteriormente, encontramos na coletânea “O livro dos Fantasmas” editado pela Livraria Quaresma e coligido por Viriato Padilha (13) a mesma estória sob o título de “A resposta da caveira”. O coletor enfeitou a estória que apresenta um final diverso da que anotamos. E assevera: “não temos certeza se a história que para aqui vamos transportar foi ocorrida em Portugal ou no Brasil. Sabemos unicamente que ela é velha e muito conhecida”. Nem no Brasil, nem em Portugal. Pelo menos, lendo a notável obra de Henri JUnod “Moeurs et coutuanes des Bantous” (14) deparamos com um conto “Le crane” cuja tradução aqui fazemos: “Um homem estava de viagem e um dia chegou a uma cidade em ruínas. Olhou e viu um velho crânio no chão. Então fez-lhe esta pergunta: Hé, crânio, como é que os outros se foram e só tu ficaste? Fez a pergunta três vezes até que, vendo sua obstinação, o crânio respondeu: Pois que eu morri por causa de minha boca, tu também morrerás por causa da tua!... O homem muito se admirou de ter-lhe o crânio respondido, porque o crânio é incapaz de falar. Saiu e, ao chegar na cidade do chefe, espalhou a notícia. Ouvi um crânio falar. O povo não acreditou e disse: É mentira! “O homem, então, confirmou o que disse e ajuntou: “De certo que ele me falou e se não me acreditais que venham duas testemunhas e me matem se o crânio não falar”. Saiu o homem com as duas testemunhas e chegando à cidade em ruínas perguntou ao crânio: Hé, crânio, como é que os outros se foram e só tu ficaste?
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Mas o crânio não respondeu. Cansou-se o homem de perguntar, desde a manhã até a tarde. Então seus companheiros disseram: “Estamos cansados de esperar e nada; vamos te matar”. Quando acabaram de o fazer, o crânio abriu as maxilas e falou: Eu bem lhe havia dito: Eu morri por causa de minha boca, tu também morrerás por causa da tua”. O conto é de uma semelhança tão perfeita com a nossa versão que não resta a menor dúvida que são uma e mesma estória. Mas, e aqui surge uma questão importante: a presença de um conto como de qualquer outra peça folclórica, na África, é suficiente para que se possa afirmar ser tal conto, superstição, adivinha ou provérbio, oriundo desse continente? Não poderá ser que aí exista justamente levado pelo nosso colonizador comum – o português? São sem conta os provérbios, as adivinhas, as estórias encontradas em África, semelhantes a formas nossas, mas igualmente semelhantes às formas primitivas portuguesas. Não se dará o caso no conto em apreço? Não podemos ter absoluta certeza, a menos que tivéssemos podido consultar todo o fabulário português. Entretanto, queremos crer não seja aqui o caso. E isto pelas próprias palavras de Junod, ao falar do valor etnográfico dos contos que recolhera entre os Ba-Thonga. Diz ele: “Quando se pergunta a origem de seus contos, os Thonga respondem invariavelmente: São velhas estórias que aprendemos de nossos pais; ninguém pensaria em inventar um conto hoje. Isto é, de certo modo, verdade: os contos bantús são muito antigos. Não é sem boa razão que os narradores, quando temem ser responsabilizados pelas cenas terríveis evocadas, culpam a Couambé Dzabana, o primeiro homem e a primeira mulher”. Antigas, assim, as estórias que Junod recolheu, não há como não se afirmar ter a estória que a velha escrava contara a meu avô, vindo com ela ou seus companheiros da contra-costa Africana, das selvas do Moçambiqu8e ou de Lourenço-Marques para os engenhos de açúcar de Pernambuco e de Alagoas.
BIBLIOGRAFIA
1 - Sílvio Romero – Contos populares do Brasil – 2a ed. – Rio – 1897. 2 - João Ribeiro – Fabordão – Rio. 3 - René Basset – Contes populaires D’afrique – Paris – 1903. 62
4 - João Ribeiro – O Folclore – Rio – 1919. 5 - Gustavo Barroso – Colunas do Templo – Rio. 6 - Nina Rodrigues – Africanos no Brasil – Rio – 1932. 7 - Artur Ramos – Folclore negro do Brasil – Rio – 1935. 8 - Câmara Cascudo – Contos Tradicionais do Brasil – Rio – 1946. 9 - Joaquim Ribeiro – in João Ribeiro – O Elemento negro- Rio. 10 - Luís Lavenère – Nigumba-Nigumba – in Rev. do Inst. Histórico de Alagoas – Vol. XVIII – 1935. 11 - José Lins do Rego – Histórias da velha Totonha. 12 - Lindolfo Gomes – Contos Populares do Brasil e Cantigas de adormecer – S. Paulo – 2 vols. 13 - Viriato Padilha – O Livro dos Fantasmas – Rio – 1925. 14 - Henri Junod – Moeurs et coutumes des Bantous – Payot – Paris 1936 – 2 vols.
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AINDA AS ADIVINHAS POPULARES
Em 1939, num artigo publicado na Revista do Brasil (3a fase, Ano II, n. 18) metime pela primeira vez numa seara que então já começava a ser trabalhava pelo espírito pesquisador do meu brilhante confrade e querido amigo José Maria de Melo: As Adivinhas Populares. A minha intromissão nos domínios da Enigmática Popular fora motivada pelo próprio José Maria. Entusiasmado, no início de suas pesquisas sobre as adivinhas, ele as exibia como uma patente demonstração da inventiva, do espírito criador, da genialidade do nosso matuto. Tive ocasião de opinar sobre tais peças considerando-as em sua maioria, menos como invenção exclusiva ou predominantemente nossa, que como modificações de formas vindas de povos mais antigos e afastados, através de portugueses, nossos colonizadores e antepassados. Não possuía, nessa época, ao despejar a água fria de minha opinião no entusiasmo ardente de José Maria, nenhum documento comprobatório da assertiva e me estribava apenas numa lei de antropologia cultural e folclore: o “self-repeating process”. Tendo tido ocasião, logo depois, de passar dois meses no Rio de Janeiro e impossibilitado de gozar, por motivo de saúde, das distrações com que um provinciano se desforra, na metrópole da monotonia da vida em sua terra, tive, para matar o tempo, que me encerrar na Biblioteca Nacional, a folhear livros roídos de traças e das páginas amarelentas que me relatavam os velhos cantos populares da Sicília e de Nápoles, as tradições da Espanha das touradas e das castanholas, os brinquedos e as rimas infantis do povo francês, os usos tradicionais e os costumes do velho Portugal. E, entre outros assuntos, enchi meus cadernos de notas com as indovinelli, devinettes, acertijos e adivinhas dos povos de além-mar, entre as quais bastantes se mostravam parecer com as nossas, com as que José Maria colhera em minha querida e decadente Viçosa. Conseguindo reunir, de minha parte, 52 adivinhas em uma pequena pesquisa realizada em Maceió, elaborei o artigo “Adivinhas Populares” que Aurélio Buarque, então secretário da Revista do Brasil, houve por bem dar à publicidade. Esperava, após ele, não voltar mais ao assunto, conquanto minha coleção se tivesse enriquecido com mais cinquenta peças colhidas da tradição oral na zona dos 64
canais e das lagoas e se fizesse necessário corrigir uma ou duas afirmações menos exatas do meu citado trabalho. É que, diante das quinhentas e tantas adivinhas que a paciência e o amor à pesquisa demonstrados por José Maria de Melo tinha conseguir reunir minha minguada coleção desaparecia quase por completo. Demais, pesquisas noutros setores do folclore ou trabalhos noutros setores de minhas atividades solicitavam mais urgentemente minha atenção. Contudo, ainda agora, é Jose Maria que me vai fazer voltar mais uma vez ao assunto, desenterrando as cinquenta adivinhas que dormiam há dez anos no fundo de minha gaveta. Indo editar, por fim, sua obra Enigmas Populares do Brasil, deve ele não só dar publicidade à sua vasta coleção – a maior que já se fez no país, talvez só equivale à que Lehmann-NItsche coligiu na Argentina – como incluir o material até hoje publicado em todos os estados do Brasil; fazendo, deste modo, uma obra de conjunto em que se encontrará o registro de cada peça nas diversas regiões do país, no par do confronto de tais adivinhas com similares estrangeiras, através da vasta bibliografia da matéria de que ele é agora possuidor. Ignorando quais, entre as adivinhas inéditas de minha coletânea, as que ele também recolhera em Viçosa – mais como uma pequena contribuição à sua obra, qual a que pela Gazeta de Alagoas e por sugestão minha já fizera Gastão Souza (1) – resolvi dar à publicidade, sem qualquer estudo comparativo que a ele caberá agora de direito, o restante de minha coleção, toda ela recolhida à beira do Canal, entre pescadores da Massagueira e da Rua Nova e tiradores de coco do Assovio e da Ribeira. E, assim procedendo, espero só voltar agora ao assunto no dia em que tiver de fazer o registro da esperada obra do denodado e estudioso folclorista patrício. Por isso mesmo, antes de transcrever a série dos 50 adivinhas, quero daqui dar notícia de três trabalhos sobre adivinhas que me foram enviados por seus autores e aos quais, embora tardiamente, presto o meu preito de admiração e envio meus calorosos agradecimentos. O primeiro, mais antigo, publicado pouco tempo depois do meu citado trabalho, e, segundo confissão do próprio autor por ele inspirado, é devido à pena de Sebastião Almeida Oliveira, de Tanabí, membro do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, da Sociedade de Etnografia e Folclore do mesmo Estado e atualmente da Sub-Comissão
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Paulista de Folclore, e consagrado autor da obra Expressões do Populário Sertanejo. (2) Os dois últimos são mais recentes. Um, também de S. Paulo, publicado pelo Departamento Estadual de Informações, constante de adivinhas e trovas colecionadas pelo Prof. Rossini Tavares de Lima, do Centro de Pesquisas Folclóricas Mário de Andrade, centro que vem de maneira brilhante continuando a obra iniciada por seu sempre lembrado patrono. (3) O terceiro, por fim, do Rio Grande do Norte, do confrade Veríssimo de Melo (4), nome já conhecido através de uma frequente e interessante colaboração, nestes últimos tempos, nos suplementos literários do Diário de Pernambuco e da Folha da Manhã e no jornal literário “Nordeste”. O livro Adivinhas de Veríssimo de Melo contém 168 adivinhas populares e está prefaciado pelo nosso velho amigo e mestre Câmara Cascudo – uma das mais brilhantes figuras da pesquisa e dos estudos folclóricos no Brasil – e faz, ao lado de um estudo introdutório, o confronto entre suas adivinhas e as variadas versões nacionais e estrangeiras. O que é, o que é:
1 Quando um sai, outra sai, Passa um pelo outro, Quando um chega outro chega? Os pés 2 Qual o vivente neste mundo Que se cobre com um fato? O fogo (O fato do fogo é a cinza, explica-me o informante).
3 Um vivente de cinco passarinhas? O cavalo 4 Antes de nascer o filho já está aí? Cajú e castanha 66
São duas irmãs no nome, Diferentes no viver, Uma serve de remédio, Outra serve de comer. Batata doce e batata de purga 6 Eu vim de longes terras Para ser vosso criado; A todos dou de comer, Para mim não guardo nada, Descaído da fortuna Eu não sirvo para nada. Prato 7 Me chamo anzo, Meu direito é ser torto, Me visto em traje de morto P‟ra poder pegá-lo vivo. Anzol (A isca é o trajo de morto).
8 É um velho alto e seco, Do chapéu agaloado; Não há festa nem novena Que não seja convidado. Coentro 9 Somos dois irmãos no nome, Na cor somos diferentes; Um mora na mata virgem, Outro no rio corrente. Urú e aruá (Ignoro porque são irmãos no nome).
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10 Não tem “figo”, nem moela, Nem bofe nem coração, Ainda de boca p‟ra baixo, O fato não cai no chão, Tem dois chifres na cabeça E nas costas mais um surrão. Caramujo 11 Qual o animal que faz três coisas duna vez? É o cachorro que corre, late e fareja. 12 Deus nunca viu, nem há de ver. Quatro Deus 13 Quem não tem, não deseja ter; Quem tem, não deseja perder. Questão 14 Antes de nascer, já fala. O pinto no ovo 15 Uma negra seca com um dente na cabeça. Guiada ou ferrão 16 Uma cerca de estaca com uma vaca braba dentro. Língua e dentes 17 Entre tábuas e taboleiro, Ela aqui, ela acolá. Língua 18 Cada instante, cada hora, vai ao céu. A língua 68
19 Deus formou, mas não acabou. Cabaça 20 Deus quer fazer mas não pode. Um oiteiro com uma baixa no meio 21 A casa mais respeitada do mundo. Casa de maribondo 22 O que entra feme e sei macho. Ficho de pé que entra pulga 23 Procura com precisão e pede a Deus que não ache. Buraco em gereré 24 Quais são as barcas que navegam com uma só pessoa? Um par de sapatos 25 Uma cova bem cavada, Com dez mortos estendidos. Cinco passando por cima, E cinco botando sentido. Viola e dedos 26 O que se pega e não se vê. Sono 27 Quem a faz não a quer, Quem a quer não a vê, Quem a vê não a deseja Por mais bonita que seja. Catacumba 28 69
Não tem asa, Não tem perna, Não tem bico; Depois de fazer corocócó Não tem perna, Não tem bico; Depois de fazer corocócó Tem asa, temi perna, tem bico. Pinto 29 Grande como o Má, Pobre como Jó. Major 30 Tem pescoço, não tem cabeça; Tem braços, mas não tem mão; Tem peito, não tem coração. Camisa de peito duro 31 A mulher limpa, O homem suja. Lixa e lixo 32 Somos dez irmãos, E só um usa chapéu. Dedal e dedos 33 Eu, nú, não danso, Me vestem para dansar; Mas me arrancam a camisa Para me verem brincar. Pião 34 Verde foi meu nascimento, Em ferros duros passei, Eu entrei de mar adentro, Fui à presença de El Rei. 70
Açúcar de cana (Esta é uma das mais belas adivinhas com que já nos deparamos e que nos seus quatro versos sintetiza todo o processo econômico do açúcar: no primeiro verso a agricultura, no segundo a indústria, no terceiro o transporte, e no quarto por fim o antigo processo de distribuição que era privilégio da Coroa Portuguesa).
35 A gente tendo, procura; E não tendo, não quer achar. Pulga 36 Redondinho, redondão Abre e fecha sem cordão. Olhos 37 No balaio de costura, C-o-co, r-o-ró, Arremeda a criatura. Espelho 38 Preto por fora, Amarelo por dentro, Arreganha a perna, Sacode dentro. Botinas 39 Negra velha e engilhada: Nas salas é desprezada, Nas cozinhas é estimada. Pimenta do reino 40 Estando em um jardim, Vi rosas numa roseira; Não tirei rosas, não deixei rosas, Como foi a brincadeira. 71
Viu duas rosas
41 Era uma bolada de cem bois, No caminho morreram quarenta. Quantos ficaram? Os quarenta que morreram 42 São quatro frutas no mundo Que soletra a letra lê: Laranja, lima e limão. Qual a outra deve ser? ? (Não houve jeito de o informante nos dar a solução que até hoje não conseguimos). (*)
43 De penca em penca Preto por fora, Amarelo por dentro. Bananas 44 Estava um drome-drome, Debaixo de um pene-pene, Chegou o come-come, P‟ra comer o drome-drome; Mas caiu um pene-pene, E matou o come-come, Acordou o drome-drome, Que carregou o come-come E foi comer o pene-pene. (Esta e as seguintes são uma variedade de adivinhas conhecidas entre nós com o nome de estórias-adivinhas, sendo chamadas de contos de adivinhas em Portugal e Ratheselmachen na Alemanha. A solução da adivinha é uma estória ou caso. Nesta um *
Há uma fruta chamada Iixia ou Iichia originária da Chiina mas muito pouco conhecida no Brasil, mesmo no Sul e que, portanto não pode ser aquela a que se refere a adivinha.
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homem (drome-drome) fora dormir debaixo de uma fruteira (pene-pene) quando chegou uma onça (come-come) para comer o homem. Caiu a fruta (com certeza um coco) sobre a onça, matando-a. O homem acordou, carregou a onça e foi comer a fruta).
45 Já fui filha, hoje sou mãe, Criando filhos alheios, Marido de minha mãe. (A filha para salvar o pai preso e condenado à morrer de fome, durante as visitas à prisão, dava-lhe de beber leite de peito. Depois de vários dias, para obter o perdão do pai, propôs ao juiz a adivinha).
46 Topei que não gostei Com ruim matei peior, Tirei o bem do melhor, Susto, parede, gravatante, terra, Oh! que pé de árvore bom de dormir e sonhar! Si bom é a folha, melhor é a raiz, Saberá o vivo o que o morto diz. (Havendo notícia de que a filha do Rei prometera casar com a pessoa que lhe propusesse uma adivinha e ela não respondesse, um amarelo deixou a família para arriscar a vida, pois a outra condição era que se a princesa adivinhasse mandaria matar o candidato. Ao sair de casa, deu o amarelo uma topada numa pedra e formou o primeiro verso da adivinha. Adiante encontrou uma cobra que matou com o facão que levava, acrescentando o 2o verso. Depois encontrou uma vaca dentro de um mandiocal. Retiroua e fez o 3o verso. Indo após descansar junto a uma parede tomou um susto por causa de uma lagartixa que se mexia perto de um sabiá que esgravatava o chão. Proferiu o 4o verso. Mais adiante, viu umas laranjeiras onde teve vontade de deitar-se e dormir (5o verso). E, então, sonhou que debaixo da árvore havia uma botija, sonho inspirado pela alma que a havia enterrado. Concluiu o 6o verso. Chegando ao palácio apresentou a adivinha à princesa que não conseguindo adivinhar casou com o amarelo).
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Saí de casa com massa e pita, Massa matou Pita, Pita matou sete, De sete escolhi o melhor; Atirei no que vi, matei o que não vi, Com madeira santa assei e comi, Bebi água sem ser do céu e da terra Vi um morto carregando um vivo, Água na ponta, riqueza no pé, Me diga princesa o que é? (Mesma estória da princesa adivinha. O amarelo sai de casa com uma cachorra chamada Pita e uns bolos. Mas os bolos estavam envenenados. Desconfiado, o amarelo deu os bolos à cachorra para comer morrendo ela incontinenti. Ai, encontra-se com sete bandidos que estavam com muita fome e que resolveram comer a cachorra, morrendo todos os sete também envenenados. O amarelo escolhe entre as sete espingardas dos bandidos a melhor e atira numa veada. Como estivesse prenha, morreu também a veadinha. Para assa-la procurou lenha e só encontrou uma Santa Cruz da beira de estrada. Como estivesse com sede e não encontrasse água pegou num burro que ia passando e montou, galopando nele até que o suor caia em bicas. Apanhou o suor e bebeu. Aí, viu um burro morto descendo um rio com um urubu trepado em cima. Deitou-se ao pé de um coqueiro sob o qual estava enterrada uma botija. Propôs a adivinha à princesa que não adivinhou, por isso casando com o amarelo).
48 É cutes, sem pintes, rapantes; Alegre e mortes, cantantes; É de ates, pates, É de fusse, fusse; Fui em casa de meu mestre Encontrei meus inimigos de testa; Fui na casa de minha Mestre, Fun-fun no meu nariz. (Pintos comendo capim rasteiro; urubus comendo cavalo morto; patos e porcos; encontrou colegas na casa do mestre; a mestra estava fazendo fritada de camarão que rescendia no nariz). 74
49 Uma meia, meia feita, Outra meia por fazer; Diga-me senhor doutor Quantas meias vêm a ser? Metade de uma meia 50 Eu vou lhe dar uma conta Muito boa de fazer, Um boi de 14 arrobas Morto pra aribú comer Cada um com uma quarta-feira Quanto aribú vem a ser? ? BIBLIOGRAFIA
1 - Gastão Souza – Adivinhas populares – Gazeta de Alagoas 28 – Nov. – 1948. 2 - Sebastião Almeida Oliveira – Adivinhas populares – Rev. do Arquivo Municipal – S. Paulo (separata) – 1941. 3 - Rossini Tavares de Lima – Poesias e Adivinhas – S. Paulo – 1948. 4 - Veríssimo de Melo – Adivinhas – Natal – 1948.
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A VIAGEM DAS TROVAS
Verba volant... E com as palavras, as ideias que elas exprimem. As trovas, palavras e ideias condensadas em quatro versos, atravessam idades e transpõem longínquas fronteiras. Quando julgamos ter uma delas nascido recentemente ou em determinada região, logo somos obrigados à evidência do contrário: nasceu em distantes terras e veio de longes datas. É um fato comprovado para a maioria das espécies folclóricas e ao qual não poderia fugir o trovário popular. Só aqueles que não lidam com tais assuntos poderiam estranhar, como o fez Antonio Torres na “Revista de Ariel” (1) a semelhança ou identidade entre um conto francês do Século XVIII, registrado por Albert Cim, nas “Nouvelles Récréations Litteraires et Historiques” e a célebre estória “O Soldado e o Baralho” de Leandro Gomes de Barros, que Leonardo Mota transcreveu no seu conhecidíssimio “Cantadores” (2) e Rodrigues de Carvalho, no seu “Cancioneiro” do Norte”. (3) Não seria preciso, como aventou o autor de “Pasquinadas Cariocas”, que Leandro Gomes soubesse francês, nem que tivesse lido o “Larousse Mensuel”, para que o racont do baralho que servia de livro de orações viajasse da França do Século XVII para Nordeste do Século XX. Câmara Cascudo, um douto no assunto, explicando o fato, na mesma “Revista de Ariel” (4) com a verdadeira e única explicação: a viagem das trovas através das raças e dos tempos, trouxe à propósito uma contribuição pessoal à matéria, registrando trovas e quadras brasileiros com ideias, senão com palavras, já enunciadas por Vitor Hugo, Carlina de Michaelis, etc. Joaquim Ribeiro, erudito folclorista e merecido herdeiro das glórias paternas, tomando a conhecida quadrinha:
“No ventre da Virgem Mãe, Encarnou Divina Graça, Entrou e saiu por ela Como o sol pela vidraça.”
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e estudando-lhe as variantes brasileiras e portuguesas (Revista Nova) (5) como já tinham, com a mesma, feito os não menos eruditos Alberto Faria e Lindolfo Gomes, descobriu a origem da bola imagem poética numa composição latina de Forunatus, no século VII da era cristã. Trovas populares brasileiras descobertas em suas formas originais ou sob o aspecto de variantes, em Portugal somam-se aos montes. Leonardo Mota, Alberto Faria, Afrânio Peixoto, Carlos Góes, Gustavo Barroso, etc. têm-nas recolhido a fartar. Por isso, não será ousado supor, que muitas de nossas quadras populares, como a do erudito estudo de Joaquim Ribeiro, tenham igualmente vindos de longe e passado, senão pelos antípodas, pelo menos em outras gentes da Península. Esta possibilidade, já a mostrara Gustavo Barroso, em “Colunas do Templo” (6) ao transcrever e comparar sete trovas espanholas da obra do grande folclorista castelhano Rodriguez Marin – “El Alma de Andalucia em sus mejores coplas amorosas”, com quadras dos cancioneiros do Brasil e de Portugal. Através de outra coletânea de trovas castelhanas: “Las mejores coplas espanholas” de Garcia Calderon (7) é possível comprovar mais uma vez tal possibilidade, identificando trovas populares de sentido semelhante ou de forma perfeitamente idêntica a quadras registradas nos principais cancioneiro se trovários populares do Brasil. Muito conhecidas e cantadas são as redondilhas que se iniciam com o verso: “Atirei um limão verde...”, como, por exemplo, estas que Sílvio Romero registrou nos “Cantos Populares do Brasil” (13):
“Atirei um lindo verde Na janela de meu bem, Deu na clara e na morena E na mulata também.” “Atirei um limão verde Lá na torre de Belém; Deu no ouro, deu na prata, Deu no peito de meu bem.” “Atirei um limão verde Na mocinha da janela; 77
Ela me chamou de doido, Doidinho ando eu por ela.” Como as variantes acima, contam-se outras que seria fastidioso transcrever das coletâneas de Carlos Góes, Americano do Brasil, João Goix, Afrânio Peixoto, etc. Devem abundar, igualmente, as variantes no cancioneiro castelhano. Na coletânea de Garcia Calderon há uma quadra idêntica nos seus dois primeiros versos:
“De tu ventana a la mia Me tiraste un limon, Y el limon caió en el suelo, Y el agrio en mi corazon.” que possui uma variante colombiana que Gustavo Munoz registra em seu livro: “La literatura colonial y popular de Colombia” (8):
“Ayer pasé por tu puerta Y me tiraste un limon; El agrio dió en los ojos Y el golpe en el corazón.” Outro grupo de quadras igualmente conhecidas são aquelas que utilizam trocadilhos, como a seguinte:
“Eu fui lá não sei aonde, Visitar não sei a quem, Saí assim não sei como, Morrendo não sei por quem.” (Sílvio Romero – op. cit.) A copla espanhola de Garcia Calderon emprega o mesmo jogo de palavras, conquanto sobre assunto diferente: “Tengo un dolor non sé donde, Nascido nou sé de quien, Sanaré yo non sé cuando, Si me cura non sé quien.” 78
Numa terceira trova é, não mais a forma, porém a ideia que se assemelha. E assemelha-se a uma redondilha que está na coletânea de A. Peixoto, sob a seguinte versão: (10)
“No coração moram sonhos Como pombas nos pombaes, Mas os pombos vão e voltam; Eles vão, não voltam mais.” que como facilmente se percebe encerra em resumo a mesma ideia do famoso soneto de Raimundo Correia. A história desta trova, como de outra que resume o “Mal Secreto” e que Carlos Góes incluiu em sua coleção com a nota de que tinha inspirado o poeta: (9)
“De muita gente que existe E que julgamos ditosa, Toda ventura consiste Em parecer venturosa.” parece estar hoje mais ou menos bem elucidada. As quadras, diz-se, foram forgicadas por Medeiros e Albuquerque, não se sabe se com o só intuito de afligir o poeta ou por mero exercício intelectual. Aliás, a quadra de Medeiros e Albuquerque difere um tanto da de Afrânio e diz:
As pombas partem mas voltam Voltam de tarde aos pombares; As ilusões quando soltas Ao vento, não voltam mais.” Qualquer das duas, contudo, apresenta a mesma ideia da copla espanhola: “La nochebuena se viene, La nochebuena se vá; Y nosotros nos iremos Y no volveremos jamás.”
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Mais duas quadras da coleção de Garcia Calderon, são traduções quase literais das nossas, expressas a uma vez na mesma forma e dentro de igual ideia. Uma é a trova n. 784 da coletânea de Carlos Góes, a qual também Sílvio Romero registrou:
“Quem espera, desespera, Quem espera sempre alcança, Não há maior alívio Que viver na esperança.” e que tem sua correspondência perfeita na trova de “Las mejores coplas espanholas”, vasada provavelmente em dialeto galego: “Ex que espera, desespera, Y er que no espera no arcansa, Por eso es bueno esperar Para temer esperanza.” A outra é a popular quadra que tantos folcloristas têm registrado:
“Primeiro Deus fez o homem E a mulher em seguimento, Primeiro se faz a torre E depois o catavento.” e que concretiza também a ideia da volubilidade da mulher, tão bem estudada por Alberto Faria, em “Acendalhas” (11), através de quadras, frases e versos célebres entre os quais sobressaem aqueles que Verdi musicou no “Rigoleto”:
“La donna é mobile Qual piuma al vento, Muta d‟acento E di pensiero.” A quadra já foi registrada em Portugal, mas, de certo, vem de mais longe pois há uma copla espanhola absolutamente idêntica, na qual nem uma só palavra deixa de existir:
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“Primeiro hizo Diós al hombre, Y después a la mujer; Primero se hacen las torres Y las veletas después.” Mas, não só através da citada coleção se podem descobrir semelhança entre os cantares de língua espanhola e os de língua portuguesa. Na já citada obra de Munoz (8) há uma quadra popular da Colômbia:
“Una muchacha bonita Con un camison de fula, Hace meter a cualquiera En las patas de una mula.” que lembra alguma coisa da quadra que está entre as “Trovas Brasileiras” (10) de Afrânio Peixoto e é muito conhecida entre nós:
“Um laço de fita verde, Com três dedos de largura, No corpo de uma morena Mata qualquer criatura.” Na obra de José Carlos de Luna, “De Cante Grande y Cante Chico” (12), há outra quadra espanhola:
“Si me volviera paloma Que gustoso viveria! Porque dentro de tu pecho Mi nido yo formaria.” que recorda ainda melhor duas redondilhas que há 20 ou 30 anos passados foram muito cantadas com o estrebilho: “pois é”:
“Eu quisera ser a rola, A rolinha do sertão Para fazer o meu ninho Na palma de tua mão.
pois é pois é pois é assim que é 81
Não precisas ser a rola A rolinha do sertão Pois teu ninho já está feito Dentro do meu coração.
pois pois é pois é
Na “Antologia de la lírica galega”, de Alvaro de las Casas (14) há a copla:
“O anel qui ti me deches Era de vidro e crebóu; Tan mala guia te leves Qu‟al o meu anel levou.” que em Portugal se transformou nas seguintes:
“O anel que tu me deste Era de vidro, quebrou; Tanto dure a tua vida Como o anel que me durou.” (Augusto Pires de Lima – Folclore de Vila Real) (15) “O anel que tu me deste, Era de vidro quebrou; O amor que tu me tinhas O anel o demonstrou.” (Fernando Pires de Lima – Cantares do Minho). (16) e no Brasil deu a popularíssima quadra:
“O anel que tu me deste Era de vidro, quebrou; O amor que tu me tinhas Era pouco e se acabou.” a qual inspirou tantos poemas na fase que poderíamos chamar de neorromântica do modernismo, como a “Canção de rua” de Menotti del Picchia (17):
“O anel que tu me deste... Dentre dele meu destino se fechou... Tu nem sabes do bem que me fizeste! 82
O amor que tu me tinhas... Esperava este amor que te encontrou, Ai! Como as outras almas são mesquinhas! Elas são como cantam as criancinhas: O amor que tu me tinhas Era pouco e se acabou.” ou como o belíssimo “Anel de vidro” de Manoel Bandeira (18):
“Aquele pequenino anel que tu me deste, Ai de mim – era vidro e logo se quebrou... Assim também, o eterno amor que prometeste, Eterno! era bem pouco e cedo se acabou. Frágil penhor do amor que me tiveste, Símbolo de uma afeição que o tempo aniquilou Aquele pequenino anel que tu me deste, Ai de mim – era vidro e logo se quebrou. Não me turbou, porém, o despeito que investe Gritando maldições contra aquilo que amou. De ti conservo na alma a saudade celeste... Como também guardei o pó que me ficou Daquele pequenino anel que tu me deste.” Por fim, os seguintes versos populares de Espanha, colhidos por Rodrigues Marin (“La copla – bosquejo de un estudio folk-lorico”) (19):
Si la noche haye escura, Y tan corto es el camino, Como venda, amigo? La media noche es passada Y el que me pena no viene: Mi desdicha lo detiene; Que nasci tan desdichada...” e ainda os da “Celestina” de Fernando Rojas, poeta quinhentista, citado pelo mesmo Marin:
“Papagayos, ruisenores 83
Que cantays al alborada, Llevad nueva a mis amores Como espero aqui asentada. La media noche es pasada Y no viene: Sabedeme si hay otra amada Que l‟detiene.” que se reúnem em duas redondilha que Sílvio Romero (13) e Gustavo Barroso (20) registraram:
“Suspiros que vão e voltam Deem-me novas de meu bem: Si ele é vivo, si ele é morto, Si anda nos braços de alguém? Não é vivo, nem é morto Nem anda em braços de alguém; Deitado em sua rede Está só sem mais ninguém.” Como teriam vindo para o Brasil estas trovas da pátria de Cervantes? Teria algum desconhecido bardo brasileiro lido a coleção de Garcia Calderon e de Rodriguez Marin ou, pelo menos, manuseado a coletânea “Trovas de Espanha” (21) que Afonso Celso publicou, traduzindo ou parafraseando as coplas que D. Melchior Palau recopilara nos seus “Cantares Populares y Literarios”? Positivamente, não. Ou nasceram do mesmo modo, entre nós, segundo a lei das coincidências acidentais que Rodriguez Marin e o não menor mestre espanhol Mendez y Pelayo (citados por G. Barroso – ob. cit.) esposam e o último explica: “la mente y el corazon humanos, a una misma temperatura afectiva, han de produzir iguales ideias y sentimientos, expressados en igual o muy parecida forma, ya que el pensamiento nunca nace desnudo sino, de sus palabras próprias, lleguen o nunca a articular-se”; ou mais plausivelmente viajaram como tantas outras peças folclóricas, através dos tempos e dos continentes, na voz e na tradição do povo.
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BIBLIOGRAFIA
António Torres – Pequeno problema de Folclore – Boletim de Ariel n. 7. Leonardo Mota – Contadores – 1921. Rodrigues de Carvalho – Cancioneiro do Norte – Paraíba – 1928. Câmara Cascudo – Versos – Boletim de Ariel – Junho de 1932. Joaquim Ribeiro – Folclore e Literatura – (Uma comparação sacra) – Revista nova – 1933. 6 - Gustavo Barroso – Colunas do Templo – Rio. 7 - Garcia Calderon – Las mejores coplas espanholas – Imprensa de la Casa Editora – Franco-Abero-Americana – Paris. 8 - Gustavo Munoz – La LOiteratura colonial y popular da Colombia – La Paz – Bolívia – 1928. 9 - Carlos Góes – 1000 quadras populares brasileiras – Rio – 1916. 10 - Afrânio Peixoto – Trovas Brasileiras – Rio – 1919. 11 - Alberto Faria – Acendalhas – Rio – 1919. 12 - José Carlos de Luna – De cante Grande y de Cante chico – Madrid – 1926. 13 - Sílvio Romero – Cantos populares do Brasil – 1897. 14 - Alvaro de las Casas – Anthologia de la Lírica Galega. 15 - Augusto Pires de Lima – Folclore de Vila Real. 16 - Fernando Pires de Lima – Cantares do Minho – Barcelos – 1937. 17 - Menotti del Picchia – Poemas de Amor – S. Paulo – 1927. 18 - Manoel Bandeira – Poesias completas – Rio – 1940. 19 - Rodriguez Marin – La copla – bosquejo de un estudio folclorico. 20 - Gustavo Barroso – Ao som da viola – Rio – 1921. 21 - Afonso Celso – Trovas de Espanha – 2a Ed. – S. Paulo – 1922. 12345-
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PAREMIOLOGIA ALAGOANA
Anos antes de morrer, quase que em cheiro de santidade, após haver abandonado o folclore e a boemia para dedicar-se à história eclesiástica do Ceará, Leonardo Mota, o grande, saudoso e incomparável Leota, andou a publicar pelas colunas dos “Diários Associados” uma série de trabalhos versando a paremiologia. Com aquela abundância de material, com a segura documentação e inconfundível encanto que já nos tínhamos acostumados a apreciar em Cantadores, Violeiros do Norte, Sertão Alegre e No Tempo de Lampião, esperávamos que ele enfeixasse num último volume de folclore os interessantes artigos em que estudava os nossos provérbios e as parémias estrangeiras. Felizmente para sua alma, mas desgraçadamente para a etnografia brasileira de que era uma das maiores e mais bizarras figuras, a obra nunca chegou a sair compendiada em volume e por isso temos de nos contentar, nós que ainda hoje lemos com a mesma antiga sofreguidão e nos dedicamos em outros estados às mesmas atividades de que ele foi mestre, com as páginas fragmentárias e naturalmente incompletas que ele nos deixou pelos jornais e pelos seus livros, sobre os provérbios e adágios do Brasil. Contudo, ainda assim, vindas de quem vieram e englobando pesquisas em todo o Nordeste e quiçá em todo o país, são elas repositório dos mais preciosos e originais sobre o gênero e será difícil, numa coleta exclusivamente regional, chegar de longe sequer à soma de material conseguida pelo mestre cearense. Sobretudo no que se refere aos provérbios exclusivamente nossos, autóctones (toponímicos, onomásticos ou gerais) onde sua documentação era abundante (Pequeno florilégio de adágios brasileiros) (1) atingiindo à soma de mais de cinquenta, todos saborosíssimos pelo pitoresco da expressão, pela irreverência das imagens, pelo colorido dos conceitos. Muitos deles são correntes entre nós, quer sob a forma original:
1 - Em terreiro de galinha, barata não tem razão. 2 - Mulher de bigode, nem o diabo pode. 3 - Pinico de barro não cria ferrugem. 4 - Mulher de cabelo na venta, nem o diabo aguenta. 86
5 - Matapasto florou, cupim de asa voou, curimatã desovou, inverno acabou. 6 - Em três coisas ninguém se fie: e em doido sem juízo, tempo de inverno e bunda de menino novo. 7 - Em duas coisas ninguém se fie: é em saco de estopa e negro barbado. 8 - Desculpa de amarelo é friagem. 9 - Desgraça de pote e caminho de riacho. 10 - Quem apanha de mulher não se queixa ao delegado.
quer sob forma de variantes:
1 - Amarra-se o burro onde o dono manda. 2 - Mulher e bolacha, em toda parte se acha. 3 - Homem pequeno só serve para soltar “traque” em samba e catar carrapato em barriga de jegue. 4 - Casar não é casaca, casaca não é matraca, nem matraca é berimbau. 5 - Luar de Agosto, doi no rosto. 6 - Macaco não olha para o rabo, só olha para o da cotia. 7 - Névoa na baixa, sol que racha; névoa no oiteiro, chuva o dia inteiro. 8 - Quem vai à Baía, fecha a “barguia”, quem vem do Pará venha “abotoá”. 9 - Cachorro que morde bode, Mulher que erra uma vez, Homem que beber cachaça, Não há remédio pros três. 10 - Cavalo de cara branca, Homem chamado Messias, Mulher de quarto empinado, Tibi, Vôte, Ave-Maria.
Tendo certa vez passado em Penedo, onde também colheu trovas populares que publicou em sua obra “No tempo de Lampião” (2) teve oportunidade de recolher um provérbio: Jacaré é pra quem é e não pra quem quer.
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Mas nem este, nem certamente os quinhentos e tantos de minha pequena coleção posso dizer que são exclusivos de Alagoas. Alagoano autêntico, formado exclusivamente entre nós, sem nenhuma imitação ou decalque, só, com certeza, um provérbio do qual aliás Leonardo Mota parece não ter tido notícia pois não consta de seu “Adalgiário Toponímico” (3): Maceió, um dia só. provérbio de excelente formação, curto, rimado e infelizmente, em que pese o nosso amor à terra e o nosso orgulho de alagoanos, profundamente verdadeiro. Os outros são, do mesmo modo que os acima citados de Leonardo Mota, peculiares ao Nordeste ou comuns a outras zonas do Brasil, como os seguintes, variantes de provérbios de Pernambuco (Pereira da Costa, Nestor Diógenes, Getúlio Cesar) (4-5-6) e de S. Paulo (Amadeu de Queiroz) (7) e Baía (Afrânio Peixoto). (8)
1 - Amigo que não serve, faca que não corta, se se perde pouco importa. 2 - Barco parado não ganha vintém. 3 - Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. 4 - Cada louco com sua mania. 5 - Cesteiro que faz um cesto faz um cento, havend cipó e temo. 6 - Cachorro cotó não passa em pinguela. 7 - Em boca fechada não entra mosca. 8 - Fui em casa de meu vizinho me envergonhei, em casa mesmo me emendei. 9 - Mais vale um gosto que cem mil reis. 10 - Ninguém gabe o seu boi antes de passar o rebentão. 11 - Não deixes atalhos por rodeios. 12 - Não há como um dia depois do outro e uma noite no meio. 13 - O que é do gosto, regala o peito. 14 - Pedra que rola não cria bolor. 15 - Quem corre cansa, quem caminha alcança. 16 - Quem não se arriscou, nem perdeu nem ganhou. 17 - Quem cospe pra cima, cai-lhe na cara. 18 - Quando a esmola é grande o pobre desconfia. 19 - Festa acaba, músicos a pé e convidados a ponta-pés. 20 - Pancada grande é que mata cobra. 88
21 - Quem caminha por atalhos, nunca sai de trabalhos. 22 - Quem se mata, morto fica; quando quer viver, não pode. 23 - Quem come sem conta, morre sem honra. 24 - Urubu quando está caipora o de baixo e... o de cima. 25 - Quem vai ao vento, perde o assento. 26 - Quem vai ao ar, perde o lugar. 27 - Dor de barriga não dá uma só vez. 28 - Quando o negro não quer fava, fava no negro. 29 - Panela em que muitos mexem ou sai salgada ou insossa. 30 - Negro quando pinta, três vezes trinta.
Mesmo alguns que, à primeira vista, ou pela forma ou pelo assunto enunciado, parecem brasileiros legítimos não passam de adaptações locais de parémias estrangeiras: 1 -Onde mija o banheiro, mija o mundo inteiro.
ou como pode ser ouvido ainda: Onde mija o “marinheiro”, mija o mundo inteiro. é encontrado em Portugal (Ladislau Batalha – História dos Adágios) (9):
Mija o português, mijam dois ou três.
e também na França:
Un bon breton ne pisse jamais seul.
E, como este, vários outros:
2 - Sol de inverno, chuva de verão, choro de mulher, palavra de ladrão, ninguém caia não (Brasil). Em céu que limpa de noite e mulher, não há que fiar (Port). Cojera de perro y llanto de mujer, no hay que creer (Esp.). Pleur de femme, crodocile semble (França). 89
A dona que planze, caval che sua e obreo che zura, no crederghe (Veneza). An der Hunde hinken, an der Weiber Zahren, soll man sich nicht kehren (Alemanha). 3 - Vermelhão pro sertão, velhas ao fogão; Vermelhão para o mar, velhas a lavar (Brasil). Vermelho pra serra, chuva na terra. Vermelho para o mar, calor de rachar (Portugal). Arreboles en Castilla, viejas en la cocina; Arreboles en Portugal, viejas a solejar (Espanha). Nuages brulés au couchant, aménent beau temps pour l‟en derman; Nuages brulés au levant, sera pluie pour l‟en deman (França) (10). 4 - Amigo, vinho e café, o mais antigo melhor é (Brasil). Vinho e amigo, o mais antigo (Port.). Amico viejo, tocino y vino anejo (Esp.). Ami or et vin vieux, sont bons en tous lieux (França). Amici, oro e vino vecchio, sono buoni per tutto (Itália). Alt Freund, alt Wein, alt Gelde Erhalt den Preis in aller Welt (Alemanha). 5 - Missa e maré, ao pé (Brasil). Tiempo ni hora on se ata con soga (Esp.). Le temps et la marée – N‟attendent personne (França). Zeit, Ebbe und Flut wartet auí niemand (Alemanha). 6 - Quem vai ao Pará, parou; bebeu Assaí, ficou (Brasil). Mirandella, mira-a de longe e foge dela; Mira-a bem, bem mirada; quem a mirar nela há de ficar (Port.). 7 - Quem dá e torna a tomar, vira a “cacunda” pro ar (Brasil). Quem dá e torna a pedir, no Inferno vai cair (Port.). Chose donnée ne se doit pas redemander (França). Chi dá e retoglie, il diavolo lo reccoglie (Itália). Quae recte data runt, non licet rursus eripi (Roma antiga). Give a thing and take a thing. Is the devil, gold ring (Inglaterra).
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8 - O homem se conhece pela palavra, o boi pelo chifre, a mulher pela língua (Brasil). Al buey por el cuerno y al hombre por la palabra. Comme les boeufs par les cornes on lie. Aussi les gens par leurs mots ou follies (França). L‟uomo per la parola e il bue per la corna (Itália).
9 - Abril, águas mil (Brasil). Abril, águas mil coadas por um mandril (Port.). En Abril, água poco y nubes mil (Esp.). Aprile, ogni glorno un barrile (Itália). S‟il tonne en Avril, vigneron prepare ton barril (Fr.). 10 - Sapo que não anda, não engole cobra (Brasil). A raposo durmiente no le amanece la gallina en el vientre (Esp.). Volpe che dorme, vive sempre magra (Itália). Renard qui dort la matinée. N‟a pas la langue enplumée (França).
Então, os outros, a grande maioria, são universais, difundidos em todas as grandes línguas vivas e mesmo entre as línguas mortas como o latim e o grego. Basta dizer que dos 1483 provérbios que se encontram nas línguas italiana, francesa, latina, espanhola, inglesa, alemã e grega antiga no exaustivo Dixionario comparado di Proverbi e Modi Proverbiali de Augusto Arthaber (11) pudemos, num rápido inventário, descobrir 193 com formas correntes em Alagoas, pertencentes à nossa coleção. Seria demasiado transcrever todos. Como amostra, porém, aí vai uma dezena, em certos casos com seus correspondentes portugueses bebidos na obra do Padre Delicado – Adágios Portugueses (12).
1 - Em casa de enforcado não se fala em corda (Bras.). Em casa do enforcado não nomeies buraco (Port.). En casa de ahorcado no se debe mentar la soga (Esp.). Il ne faut pas parler de corde dans la maison (d‟un pendu (Fr.). Non nomnar la fune in casa dell‟impiccato (Ita.). 91
2 - Coices de garanhão, pra égua carinhos são (Brasil). Coices de égua, amores para rocim (Port.). Jamais coup de pied de jument ne fit mal a cheval (Fr.). Coces de yegua, amoes para el rocin (Esp.). Calcio di cavallo non fece mai male a poledro (Ital.). 3 - Praga de urubu não mata cavalo gordo (Brasil). Oracion de perro no va al ciclo (Esp.). Maudisson de veille truie ne passe le talon (Fr.). Raglio d‟asino non arrivó mai in cielo (Ital.). 4 - Quem não arrisca, não petisca (Brasil). Quen no arrisca, no aprisca (Esp.). Qui ne risque rien, n‟a rien (Fr.). Chi no risica, no rosica (Ital.). Wer nicht wagt, gewinnt nicht (Alem.). 5 - Cão que lada não morde (Brasil). Perro ladrador, nunca buen mordedor (Esp.). Chien qui aboie, ne morde pas (Fr.). Can che abbaia non morde (Ital.). Barding dogs, seldom bite (Ing.). 6 - Em terra de cego quem tem um olho é rei (Brasil). En tierra de ciegos el tuerto es rey (Esp.). Au royaume des aveugles les borgnes sont rois (Fr.). In terra di ciechi chi ha un occhio é signore (Ital.). Inter caecos luscus rex (Roma antiga). 7 - Uma andorinha só não faz verão (Brasil). Uma andorinha não faz verão, nem um dedo só faz mão (Port.). Ni un dedo hace mano, ni una golondrina verano (Esp.). Une hirondelle ne fait pas le printemps (Fr.). Une rondine non fa primavera (Ital.). Ein finger macht keine hand Ein Balken keine wand. Ein Schwalbeinlein keinen Sommer (Alem.). 8 - Madrasta, o nome abasta (Brasil). 92
Madrasta, el nome le basta (Esp.). Qui a marátre, a le diable en l‟âtre (Fr.). Chi ha matrigna, di dietro si signa (Ital.). 9 - Pedra que rola não cria bolor (Brasil). Pedra modiça não ajunta musgo (Port.). Piedra movediza, nunca moho la cohija (Esp.). Pietra mossa, non fa muschio (Ital.). Pierre souvent remuée, de la mousse n‟est vellée (Fr.). 10 - “A mulher e a galinha, Não se deixam passear, A galinha o bicho come, A mulher dá que falar” (Brasil). A mulhoer e a galinha, por muito andar se perdem asinha (Port.). La mujer y la gallina, per mucho andar se pierde sina (Esp.). Femmine e galline per girellar tropo si perdono (Ital.). Poule ou femme qui se ecart, se perd (Fr.).
De nossa coleção, somente uns setenta não pudemos encontrar registrados em nossa bibliografia paremiológica que inclui, além das obras anteriormente citadas, os Cantos Populares de Sílvio Romero (13) e sobretudo a copilação de Mário Lamenza – Provérbios (14) coletânea por ordem alfabética de mais de dez mil parêmias retiradas de obras brasileiras e portuguesas. Alguns deles traem indubitavelmente, pela maneira por que são expressos, sua origem portuguesa; outros devem de existir igualmente em outras regiões do Brasil. Aí se inscrevem eles, alagoanos somente até segunda ordem, enquanto não se registrar e verificar sua presença em outras regiões e estados do país:
1 - Alma ruim é que puxa lençol. 2 - A única coisa do mundo que não é falsa é pimenta; bem cedo de dia e de tarde, toda hora ela arde (apud Aloizio Vilela – Folclore Viçosense) (15). 3 - As cadeiras descem, as tripeças sobem. 4 - Brasileiro só fecha a porta depois de roubado. 5 - Cavalo que não dá pra sela, dá pra cangalha. 93
6 - Carreira de velho não levanta poeira. 7 - Cavalo castanho escuro – carga segura. 8 - Cavalo de beira de Rio, Mulher pequena chamada Maria, Cachorro cotó, Tudo é uma coisa só. 9 - Cavalo de pé branco não atravessa riacho. 10 - Caça de bolso na bunda Paletó lascado atrás, Mulher chamada Henriqueta, Na minha casa não vai. 11 - Cavalo esquerdo, dia sim, dia não. 12 - Cachorro só rói o osso porque não sabe engolir. 13 - Caboclo não sabe nem o que é cavalo bom, nem laranja azeda. 14 - Devotas de S. Raimundo, os olhos em Deus e as unhas no mundo. 15 - Desgraça do homem é falar fino e esmorecer (apud. A. Vilela). 16 - Dia de S. Luzia, toda água é fria. 17 - Em aldeia de índio não se fala de caboclo. 18 - Em negócio de branco, negro não se mete. 19 - É melhor engolir do que cuspir. 20 - Festa, feira e trovoada, leva tudo na enxurrada. 21 - Faca só areada, Cavalo só rudado, Morena só bonita, Do cabelo cacheado. 22 - Festa no céu, chuva na terra. 23 - Galinha que muito anda, raposa come. 24 - Guariba quando se remexe quer chumbo. 25 - Mulher alegre, desgraça certa. 26 - Menos vê quem não quer ver do que quem é cego. 27 - Muito trovão é sinal de pouca chuva. 28 - Mulher só morena, dinheiro só trocado, cavalo só rudado (apud. A. Vilela). 29 - Meio dia, 94
Macaco assovia Panela no fogo Barriga vazia. 30 - Na casa deste mau homem, quem muito trabalha não come. 31 - Na boca de quem não presta o que é bom não tem valia. 32 - Não comas sem ter vontade, nem mesmo do que te agrade. 33 - Por apressado, o cachorro nasceu com os olhos fechados. 34 - Não há quem não tenha medo de faca de ponta, cachorro doido e ponta de boi (apud. A. Vilela). 35 - O amor enquanto é novo come do pão e do ovo; Quando vai ficando velho, come do fel amargoso. 36 - O costume é que mata o corpo. 37 - O que a boca não fala, o diabo não sabe. 38 - O alheio chora, o seu dono. 39 - O boi sabe onde arromba a cerca. 40 - O que há mais no mundo é pau torto, estrada comprida e vontade perdida (apud. A. Vilela) (15). 41 - Por causa de camarada, caranguejo ficou sem cabeça. 42 - Paciência é bom pra vista. 43 - Pimenta do reino não é pra caitetú. 44 - Peru calado ganha um cruzado, peru falando sai apanhando. 45 - Quem quer bem, três coisas tem: deseja ver, diz o que sabe, diz o que tem. 46 - Quem vai a tudo, não enche o fuso. 47 - Quem com um não pode, com dois cai, quanto mais com três que pesa mais. 48 - Quem faz gente, de cão; fica com a cauda na mão. 49 - Quem anda atrás de um coxo um ano, ao cabo de um ano fica coxo também. 50 - Quem quer ser melhor do que é, fica pior do que está 51 - Quem é coxo, parte cedo. 52 - Querer e não poder, é cegar e não ver. 53 - Quem não tem paciência, não se salva. 54 - Quem não quer se molhar, não vai à chuva. 55 - Quem nasceu pra lacaio, não aspire a senhor. 56 - Quem tem um olho só não brinca com areia. 95
57 - Quem traças não sabe, viver não pode. 58 - Quem mal aos outros deseja, a si lhe chega. 59 - Quem vive em tudo tocando, suja as mãos de vez em quando. 60 - Quem morre de véspera é peru. 61 - Quem arroja muito, diverte pouco. 62 - Segredo em boca de mulher é manteiga em nariz de cachorro. 63 - Sujeito caipora cai de costas e quebra as ventas. 64 - Trabalhos tomados por gosto, são alegres de sofrer. 65 - Não há doce ruim, nem “cabra” bom. 66 - Fazer feira, em lugar grande; tomar banho, em água corrente; e falar com quem estende (apud. A. Vilela). 67 - Trabalhar em terra frouxa, Nem que seja rrancadô, Casar com mulher viúva, Comer o que o besta deixou (apud. A. Vilela). 68 - Quem quiser que a morte o deixe, coma carne e depois peixe. 69 - Há quatro coisas no mundo Que em minha casa não vai: Mulé chamada-se Brisa, Home chamado-se Braz, Carça de borso na bunda, Paletó lascado atrás.
E, para finalizar, os seguintes provérbios e ditos relativos ao negro, originais ou variantes de outros registrados por Pereira da Costa (op. cit. Rodrigues de Carvalho (16).
1 - Em negócio de branco, preto não se mete. 2 - Quando o negro não quer fava, fava no negro. 3 - Negro quando não suja na entrada suja na saída. 4 - Rapaz é negro de padre. 5 - Negro d‟angola não tem fortuna. Bota o côvo n‟água o caxito fura. 96
6 - Negro d‟angola não tem fortuna. Bota a mandioca n‟água, sericora come. 7 - Abelha preta é arapuá, Tempêro de negro é manguá. 8 - Negro não morre, se some. 9 - Negro não nasce, vem a furo. 10 - Negro não tem alma, tem zumbi. 11 - Negro não casa, se junta. 12 - Negro não toma banho, se espoja. 13 - Negro não tem perna, tem cambito. 14 - Negro não viaja, se envulta. 15 - Negro não tem roupa, tem mulambo. 16 - Negro não tem sovaco, tem recanto. 17 - Negro não monta a cavalo se escancha.
BIBLIOGRAFIA
1 - Leonardo Mota – Pequeno florilégio de adágios brasileiros – Diário de Pernambuco. 2 - Leonardo Mota – No tempo de Lampião – Rio – 1930. 3 - Leonardo Mota – Adágio Toponímico – Jan. de 1938. 4 - Pereira da Costa – Folclore Pernambuco – Rio. 5 - Nestor Diógenes – Brasil Virgem – Recife – 1924. 6 - Getúlio Cesar – Crendices do Nordeste – Rio – 1941. 7 - Amadeu de Queiroz – Provérbios e ditos populares – Rev. Arquivo Municipal de S. Paulo – N. XXXVIII – 1937. 8 - Afrânio Peixoto – Missangas – Rio. 9 - Ladislau Batalha – História dos Adágios – Paris – Lisboa 1924. 10 - Arnold Van Gennep – Folclore du Dauphiné – Paris – 1933. 11 - Augusto Arthaber – Dizionario Coparato di Proverbi e modo proverbial – Milano – 1929. 12 - António Delicado – Adágios Portugueses – Lisboa – 1923. 13 - Silvio Romero – Contos populares do Brasil – 1897. 14 - Márcio Lamenza – Provérbios – 1938. 15 - Aloizio Vilela – Folclore viçosense – Álbum do Centenário de Viçosa – Viçosa – 1931. 16 - Rodrigues de Carvalho – Cancioneiro do Norte – Paraíba – 1928.
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ROMANCES VELHOS EM ALAGOAS
Um dos gêneros folclóricos que se estão a extinguir completamente entre nós, em face mesmo das transformações porque vem passando nossa idade – idade do rádio, do jazz, do samba e da bomba atômica – gênero que só chega a reviver ainda nas exumações quase arqueológicas dos folcloristas e nas já embotadas memórias das raras velhinhas octo e nonagenárias, é o das canções épico-narrativas oriundas da Península, conhecidas pelos nomes de Romances e Xácaras. Certamente transplantadas para o nosso meio, desde o início de nossa formação, como o assinalaram Renato Almeida (1) e Câmara Cascudo (2), não só aqui permaneceram como se transformaram, adaptando-se às características de nosso gênio poético popular, inspirando ao mesmo tempo e gerando por sua vez os romances novos nacionais: dos Cangaceiros, as histórias do Ciclo dos Romeiros, afora toda a vasta e sempre crescente literatura novelesca dos “folhetos” das bancas de feira ou das vendas de beira de estrada. Não resta a menor dúvida, porém, observa igualmente Renato Almeida (op. cit.) que “si vivem ainda em vários pontos do Brasil, em outros desaparecem rapidamente”. O próprio nome de romance aplicado a uma composição poética deve causar até estranheza às novas gerações para as quais romance é uma narrativa emprosa. O de Xácara (*), então, deve produzir ainda maior admiração. Já á 20 anos atrás, ainda doutorando, numa roda de médicos e estudantes de Medicina, no Rio de Janeiro, quase não fomos acreditados ao afirmar a existência de uma palavra xácara, escrita com x e não com ch, significando o gênero poético-musical a que nos estamos referindo. O romance peninsular, ibéro ou galaico-português, também chamado por vezes de Rimance, Xácara ou “Cantiga de Antiguo Rimar”, apesar dos debates a respeito de sua origem autóctone na Península ou sua importação provençal e até mesmo às influências orientais ou árabes, parece ter tido origem nas Canções de Gesta
*
Segundo a lição de Garrett, xácara é uma variedade de romance de caráter inteiramente dramático: “o poeta falla pouco ou nada, não narra elle, senão os seus interlocutores que apenas indica, e nem sempre claramente etc”. emquanto o romance propriamente dito era puramente épico, isto se comtudo, por vezes, e deram: o romance-xácara em que predomina a narrativa épica, sem exclusão do drama, e a xácararomance em que o diálogo “é auxiliado de breves ou brevíssimas iindicações, quase rubricas ou direções ainda o solão “canto épico ornado em que as efusões líricas acompanham a narrativa de tristes sucessos mais para chorar e gemer sobre eles do que para os contar ponto por ponto”.
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medievais(**) ou melhor, como o admite Mayer (3) “senão imitado do francês ou do provençal, concebido conforme um tipo tradicional comum às diversas populações românicas sem que se possa determinar em qual delas foi criado”. De fato, a própria palavra é expressão comum das línguas nascidas do latim – as línguas “romance”; e Hard, numa obra de 1763, Carta sobre a Cavalaria e os Romances (3) asseverava que o nome era primitivamente dado a qualquer composição extensa em língua romance, mas cujo sentido se restringiu posteriormente à narração de aventuras fictícias. Romances deviam ser assim, primitivamente, tanto as Canções de Gesta (Canções que celebravam façanhas, como as do Ciclo Carlovíngio ou da epopeia bretã da Távola Redonda) quanto todo o restante da Gaya Ciência com que trovadores e jograis, “trouvéres” e “minnesinger” inundaram a Aquitânia, a Normandia, a Ibéria e a própria Germânia com a poesia e a música da “chansó” provençal, do “trovar” galaicoportuguês, das “tenções”, dos “descort”, das “pastourellas”, das “endeixas” e dos “vilancicos”. A existência, no Romanceiro da Península e das colônias íbero-portuguesas, dos mesmos temas das epopeias carlovíngias e do Ciclo do Rei Artur, mostra bem que o romance peninsular, como o afirma com razão o douto Menendez Pidal (4) apresenta íntimas relações com as Canções de Gesta da Idade Média. “Por esto, el inmediato y fuerte entronque con las gestas heroicas medievales es el carácter más profundamente distintivo del Romancero, ya que tal entronque no se dá o no se dá apenas en la cancion narrativa tradicional de los otros pueblos. (***) E estes caracteres assinalados pelo erudito investigador literário espanhol são um fenômeno quase exclusivo das criações poético-musicais da Península. Na própria França, os motivos e as formas dos cantares de Gesta desapareceram completamente do seio do povo após a Idade Média. A Itália, esta nem teve epopeia nacional própria e a mesma Inglaterra com suas “baladas” – forma que mais se aproxima dos romances ibéricos – esqueceu completamente os nomes de Boewulf, Maldon e Finn, personagens da epopeia anglo-saxã. Nem mesmo as “viser” escandinavas e os “Eddas” germânicos,
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“O romance nasceu em Castela, dos cantares de gesta, democratiados pelos Jograis; lá teve o seu mais alto grau de vitalidade, irradiando para todos os lados”. Estudos sobre o Romanceiro Peninsular – Carolina Michaelis de Vasconcelos, apud Prado Coelho. (18). *** A própria forma do romianceiro, afirma ainda Menendez Pidal, “uma tirada de versos de sete sílabas com assonância monorrima é em substância a mesma verificação da gesta medieval” (4).
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relativamente pouco numerosos, chegaram à pujança, à diversidade, à abundância e à beleza do Romanceiro Peninsular. Cantando, ora episódios históricos verídicos ou fictícios de heróis ou personagens lendários; ora sucessos novelescos quase sempre oriundos de ficções, raramente extraídos de acontecimentos reais; o Romanceiro se bifurcou nas suas duas grandes divisões: os romances históricos e os romances novelescos. Os primeiros englobam os romances estrangeiros do Cielo Carlovíngio: Roldão e a célebre Durindana, Oliveiros e o Arcebispo Turpin, Guarim de Lorena, “o almirante do mar” , e o nobre D. Beltrão, Dom Gaiferos e a formosa Melisenda; os espanhóis da queda do Império Visigótico pelos quais passa a figura trágica de D. Rodrigo, o Rei vencido e pecador e a não menos trágica e ultrajada Cava Florinda, a filha do traidor D. Julião, Conde de Ceuta; o Ciclo notável da Reconquista com seus reis e seus heróis lendários: Bernardo Del Carpio, Ruy Diaz de Bivar – o famoso Cid Campeador , o Conde Fernão Gonzalez, o Rei Sancho Ordonez, os Sete Infantes de Lara e todos os episódios das lutas fronteiriças – Moriana, Abenamar e o Rei D. João. A conquista de Alhama, etc.; e, por fim, até mesmo a história de personagens bíblicos ou do agiológico cristão, das lendas e da história greco-romana: Romance de Santa Maria Egipciaca, de Policena, do Incêndio de Roma, do julgamento de Páris. O romance do segundo grupo, os novelescos, são em parte autóctones, emp arte oriundos ou imitados de narrações de outras terras: O ciclo bretão do Rei Artur com seus cavaleiros e heróis-Lancelote, Tristão, Parsival, etc. e com suas fadas e feiticeiros – Viviana, Morgana e Merlin; os do Ciclo Mourisco recordando a civilização árabe – Gazul, Conde de Flores, Zaíde, Cristão Cativo, etc.; e os romances comuns à novelística universal com os temas da Bela Mal Maridada, da Donzela que vai à Guerra, do casamento à hora da morte, das esposas fieis e das adúlteras – Bernal Francês, D. Duardos, Bela Infanta, Conde Iano, Conde Daros, D. Carlos de Além Mar, etc. São estes últimos romances, talvez por isso mesmo – porque ternas universais – e à exceção dos pertencentes ao ciclo carlovíngio que assim mesmo se transformaram, perdendo sua forma poética tradicional, passando para a prosa e depois para as sextilhas e as décimas características no Brasil e que constituem propriamente o nosso romanceiro de origem peninsular.
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É possível, como afirma Menendez Pidal (4), que as colônias espanholas da América conservem ainda hoje, muito melhor que no centro da Península as versões dos romances castelhanos. No Brasil, contudo, após as pesquisas de Celso Magalhães (****) (5) e as coletâneas de Pereira da Costa (6) e Sílvio Romero (7) que datam de mais de 40 a 50 anos atrás, outras versões quase não foram registradas. Apenas João Ribeiro (8) estudou o romance da Bela Mal Maridada, Amadeu Amaral (9) uma versão paulista do Conde Iano de Garrett, e recentemente Câmara Cascudo registrou a xácara da Bela Infanta e um fragmento da Xácara do Chapim do Rei (2). Há 10 anos atrás, procurando o gênero em Alagoas conseguimos colher versões de 03 xácaras: Delgadina, D. Carlos de Monte-Alvar e Conde de Flores bem como ligeiros fragmentos das xácaras do Ceguinho e de Claralinda (variante temática de D. Carlos de Monte-Alvar) e do Chapim do Rei. Outrossim, pudemos obter notícia da existênica, em Alagoas, há 50 anos atrás dos romances da Donzela que vai à Guerra (Dama Guerreira), de Frei Joanico e de D. Lisarda. A informante foi nossa genitora, atualmente com 75 de idade que as ouvira e aprendera em sua mocidade, em Viçosa, de sua prima – a velha Sinhá Chiquinha Mingó – que ainda chegamos a conhecer os seus últimos dias de vida, sem suspeitar então a preciosidade que ela era como sabedora de nossa quase desparecido romanceiro. São pois esses, afora os romances da Nau Catarineta que se veio a enxertar no Folguedo dos Fandangos (*****) e um fragmento da xácara da Bela Pastorinha que se transformou na cantiga de Entrada do Boi nos Reisados Alagoanos, os únicos documentos até agora registrados do gênero poético-musical em Alagoas. A xácara da DELGADINA, somente registrada no Brasil por Pereira da Costa (6) em versão algo diversa da nossa e ainda menos completa, pois lhe falta o início do raconto, é a seguinte:
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“Declaramos que temos unicamente coligidos por escrito os romances do Bernal Francês, Nau Catarineta e D. Bardo, e que os outros que houvermos de comparar, foram ouvidos, é verdade, mas não podemos tê-los por escrito, por causa da grande dificuldade que encontramos nas pessoas que os sabiam, as quais somente podiam repeti-los cantando, e quando paravam, não lhes era possível continuar sem recomeçar”. “Trabalhos 31 Maio de 1873 – Recife, apud Sílvio Romero (5). ***** Amadeu Amaral a propósito de um “Romance Tradicional” (9) diz que é o único exemplo por ele conhecido da conservação do termo tradicional “romance” para as xácaras no seio do povo. A este exemplo podemos acrescentar outro de Alagoas. Aqui também o termo conserva seu antigo significado no seios do povo. Durante as “festas” de Natal 48-49, na Nau Catarineta da Praça Sinimbú, ao inquirirmos do mestre o que se iria cantar àquela noite, respondeu-nos: Hoje cantaremos o romance da Nau Catarineta”, isto é, xácara portuguesa a respeito da nau que “Sete anos e um dia” andou nas ondas do mar.
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DELGADINA Delgadina, minha filha, Queres ser minha namorada? Quer de noite, quer de dia, Quer seja de madrugada? .............................................. Baixas torres, altas torres, Naquela torre tão alta, Olhava, via sua mana, Em cadeirinha de prata. Oh! mana, senhora minha, Mandai-me dar um copo d‟água, Que a boca já tenho seca, E o coração já me abala. Como darei-te água, Peste desavergonhada, Ainda tinhas mãe viva, Já querias ser madrasta. Altas torres, baixas torres, Naquela torre tão alta, Olhava via sua mãe, Em cadeirinha de prata. Oh! Mãe, senhora minha, Mandai-me dar um copo d‟água, Que a boca já me seca E o coração já me abala. Como darei-te água, Peste desavergonhada, Ainda tinhas mãe viva E já querias ser madrasta. Baixas torres, altas torres, Naquela torre tão alta, Olhava, via seu mano, Em cadeirinha de prata. Oh! mano, senhor meu, Mandai-me dar um copo d‟água, Que a boca já me seca E o coração já me abala. Como darei-te água, Irmã de meu coração, Que meu pai trancou a porta Anda com a chave na mão. Oh! meu pai, senhor meu, Mandai-me dar um jarro d‟água Que depois d‟água bebida Serei tua namorada. Venham quatro cavaleiros Para dar água a Delgadina, O primeiro que chegar, 102
Com prêmio ganhará, E o que chegar por último: Marcha vai te degolar. Cavaleiros não chegam, Delgadina definhava. Morre, morre, Delgadina Para tua alma descansar; A tua vai para o céu E a minha vai penar. O corpo de Delgadina, De Anjos foi rodeado, E a cadeira de seu pai Pelo diabo arrebatada. A xácara, como se vê, versa o escabroso e detestável tema do pai que queria casar com a filha (******) e está em todo o romanceiro peninsular, em versões muito mais completas que a nossa e a de Pereira da Costa. (6) Em Portugal, foi inicialmente recolhida por Garrett sob o título de Silvaninha e, inspirado nela, compôs o mestre do Romantismo português o seu poemeto Adozinha que abre o primeiro volume de seu Romanceiro (10): a parte que ele chamou impropriamente de romances da Renascença. A versão garreteana fornece-nos a primeira parte da xácara, inexistente em Pereira da Costa e apenas iniciada em nossa versão:
SILVANINHA Passeava a Silvana Pelo corredor acima; Viola de ouro levava, Oh! que tão bem a tangia! E, se ela bem a tangia Melhor romance fazia. A cada passo que dava Seu padre a cometia: “Fora uma, fora duas; Fora, meu pai, cada dia; Ma las penas do inferno Quem por mim las penaria?” Pená-las-ei, eu, Silvana, Que las peno cada dia. Foi-se dali a Silvana ******
De tema antipático, diz Carolina Michaelis de Vasconcelos (apud – Romanceiro Minhoto) (11) é o romance da Silvaninha: o amr incestuoso de um pai brutal e tirano, e o cruel martírio da filha, presa numa torre e morta de fome e sede, sem que nenhum dos irmãos, nem a própria mãe, lhe possa valer”.
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Mui agastada que ia; Foi-se encontrar com sua madre Lá no adro da ermida: Que tens tu, ó filha minha? Oh! Quem tal pai não tivera Quem não fora sua filha! Que me acomete de amres, Ó minha mãe, cada dia”. “Vai, filha, vai para casa, Veste uma alva camisa, Que o cabeção seja de ouro As mangas de prata fina; Deitar-te-ás no meu leito, Eu no teu me deitaria... E há de valer-nos a virgem, A virgem Santa Maria”. Lá junto da meia noite Seu padre que a cometia Se eu soubera Silvana, Que estavas tão corrompida, Oh! Las penas do inferno Por ti las não penaria. .............................................. Manda-a meter numa torre Que nem sol, nem lua via. Dão-lhe comida por onça, E a água por medida, Ao cabo de sete anos, Veis a torre que se abria. Assomou-se a Silvana A uma ventana mui alta Foi-se encontrar com su madre Lavrando numa almofada. ................................................ Por ela fica restabelecido o raconto incompleto das versões brasileiras. Antes de Garrett, informa-nos Caralina Michaelis (11), a mais antiga versão, pelo menos do verso inicial, se encontra no Fidalgo Aprendiz de D. Francisco Manuel de Melo e também na Comiédia de Rubena, de Gil Vicente. J. A. Pires de Lima e Fernando Pires de Lima (11) que recolheram duas versões com o título de Valdevina e Aldininah em S. Simão de Novais, dão notícias de outras versões portuguesas do romance, recolhidas por Ataíde de Oliveira, Firmino Martins, Leite de Vasconcelos, Gonçalo Sampaio, e A. C. Pires de Lima, sob os títulos de D. Silvana, D. Claudina, Conde Albano, Aldininha, Baldebina, e Gualdina, em regiões 104
diversas de Portugal. Na Ilha da Madeira foi recolhida tabém uma versão por R. Azevedo. (2) É interessante notar que o título de Dalgadina não se encontra em nenhuma das versões portuguesas, pelo menos das que tivemos notícia. E é ainda mais interessante assinalar porque, ao contrário, têm o mesmo nome que as versões brasileiras as que foram recolhidas em terras de Espanha. Menendez y Pelayo (12) estudou em sua “Antologia” as versões espanholas da Delgadinha e confessava que as recolhia em alvoroço “por lo mucho que abundan” (2). A versão asturiana de António Slalinde (13) e que começa: “El buen rey tenia tres hijas Muy hermosas y galanas; Lá más chiquitita de todas Delgadina se llamaba. Un dia sentada a la mesa Su padre la reparara Delgadina, Delgadina, Tu has de ser mi enamorada, etc.” tem o mesmo título de Delgadina, bem como as versões de La Plata, colhida por Lehmann-Nitsche e do Chile de Vicente Cifuentes (12). A lição portorriquenha de Maria Cadilla de Martinez (14) leva o nome de Angelina, mas a autora informa que, por vezes, se diz o romance com o nome de Delgadina, bem como de Silvaninha, nas versões mais antigas. Sem ter o desenvolvimento detalhado da versão garreteana, a versão de Porto Rico apresenta uma sequência lógica:
Pues senor, este era un Rey Que tenia tres hijitas, Y la más chiquitita Angelina se llamaba. Quando su madre iba á missa Su padre la enamoraba Como ella no queria En un cuarto la encerraba; En un cuarto muy oscuro Donde los moros cantaban. Un domingo por la tarde Angelina en la ventana Vió su madre y hermanos 105
Jugando juegos de damas. Mi madre, por ser mi madre Me darás un poco de água Que del hambre y de la sed A Dios entrego mi alma. Segundo Câmara Cascudo “os eruditos explicam a gênese do romance com a lenda de S. Bárbara, vítima dos desejos paternos. Menendez y Pelayo (14) crê que o tema se deriva de uma novela bizantina escrita por Apolônio de Tiro nos primeiros séculos da era cristã e divulgada na Espanha por uma adaptação, no século XIV. Contudo a folclorista portorriquenha Cadilla Martinez informa haver suspeita de que a introdução do tema possa ter-se dado muito antes pois aparece em textos do século XIII: em França, no poema Manekine de Felipe Beaumanoir e na literatura arábico-aragonesa com o nome de “Racontamiento de la doncella Carcayona, hija del rey Nacharab y la Paloma. (*******) Outra origem do tema pode ser também a lenda de “La doncella de las manos cortadas o Historia de la filla del rey de Hungria”. (14). Na Toscana e na Umbria, Gianini e Mezzatinta fixaram poemas populares dentro do tema. (2) No Brasil, Rodrigues de Carvalho (15) registrou um romance nordestino: o Pai que queria casar com a filha em que, segundo Cascudo, “ha deturpação e convergência, mantendo o assunto primitivo e secular”. (2) Possuímos também um romance de “folheto” sob título idêntico: O pai que quis casar com a filha (sofrimentos, aventuras e vingança) da autoria do poeta popular alagoano Manoel de Almeida Filho (16) mas no qual só persiste o motivo temático, sem nenhum ponto de contato, todavia, com o romance velho peninsular: “O mundo não tem mais geito Segundo o que me parece Cada dia que se passa Somente a miséria cresce Mas no decreto de Deus Só se paga o que merece. Conta a história passada Que conheço toda a trilha De um pai muito malvado *******
O argumento desta última versão diz: “O rei Aljafre tinha uma filha muito bela chamada Acayona a qual foi criada numa fortaleza com todo explendor; porém ao chegar a sua mocidade o Rei se enamorou dela e como seus desejos amorosos fossem repelidos pela filha, o cruel pai a obrigou a duras provas das quais foi salva por sua fé e por meio de um anjo em figura de pomba. (Apud Cadilla Martinez) (14).
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Que quiz casar com a filha Pois na fase da malícia Nunca a consciência birlha.” O segundo romance coligido em Alagoas e do qual ainda foi possível conseguir a música, tem o título de Conde de Flores e assim resa:
CONDE DE FLORES Saíra o Conde de Flores Para uma romaria, E a condessa como nobre Vai em sua companhia. Oh! Mouro que vais à guerra Trazei-me uma cativa Que não seja das mais nobres E nem também mana minha, Que seja das escolhidas Que em Castilhas havia. Saindo de barra afora Viagem de muitos dias Avistou uma nau de guerra Que cativa-los queria. Matei o Conde de Flores Cativei Alexandria, Para trazê-la de mimo A Rainha da Turquia. Aqui estou minha senhora, Que grande desgraça a minha; Inda hontem fui senhora, Hoje, escrava de cozinha. A criada estava prenha E a senhora se sentia, Ao cabo de nove meses Ambas partiram um dia. Como vais, minha cativa, Como vais, cativa minha? Como escrava da senhora, Dona de sua cozinha. Si estivesses em tua terra, Que nome punhas em tua filha? Botava de Floresbela, Nome de uma mana minha, Que os mouros a roubaram No tempo de pequenina. Si tu visses Floresbela Tu a reconhecerias? Sim, por um lirio roxo, 107
Que tdo o peito cobria. Oh! Mouro que me feriste Com uma dor tão desumana, Que mataste meu cunhado E cativaste minha mana. Si eu matei teu cunhado Outro melhor te daria; Farei da mana senhora, Dona de toda Turquia. Eu não quero ser senhora, Dona de toda Turquia, Quero ir para minha terra Lá onde eu assistia. Mandei ver embarcação Para embarcar Alexandria. Adeus, adeus, Floresbela... Adeus, adeus, mana minha, Dai as minhas lembranças A minha parentaria, Eu estou metida em mouros, Estou feita mouraria.” Desta xácara, Pereira da Costa transcreve duas versões (6) sob título idêntico, de uma das quais (a de Pajehú das Flores) a nossa mais se aproxima. Sílvio Romero (7) coligiu igualmente uma versão do Ceará – o Romance da Floresbela – também semelhante à nossa e registrou um pequeno fragmento de Recife intitulado BrancaFlor. Em Portugal, registraram-na Almeida Garrett (A Rainha e a Cativa) (10) e Teófilo Braga (O Romance de Branca Flor) (6). A versão garreteana é mais completa que as brasileiras talvez porque o fundador do romantismo português tivesse o mau vezo de condensar numa só as versões colhidas em fontes diversas. Aliás, Garrett afirmva que “nem os romanceiros castelhanos nem escritor algum faz menção do belo romance da “Cativa e da Rainha”. Contudo, num dos autores que compulsámos – Solalinde (13) a mesma xácara se encontra sob o título de “Las dos Hermanas” e com desenvolvimento e forma absolutamente iguais às versões brasileiras e portuguesas:
LAS DOS HERMANAS Moro, si vas a la Espana, Traerás una cautiva, No sea blanca ni fea, 108
Ni gente de villania. Ve venir el Conde Flores Que viene de la capilla, Viene de pedir a Dios Que le dé un bijo o una hija. Conde Flores, Conde Flores, Tu mujer será cautiva. No será cautiva, no, Antes perderá la vida. Cuando partió el Conde Flores Su mujer quedó cautiva. Aqui traigo, reina mra, Una cristiana muy linda, Que no es blanca, ni fea, Ni gente de villania, No es mujer de nungun Rey, Lo es del Conde de Castilla. De las escravas que tengo, Tu serás la más querida, Aqui te entrego mia liaves Para hacer la mi cocina, etc.” A terceira xácara que colhemos em Alagoas é a de D. Carlos de Monte Alvar:
D. CARLOS DE MONTE ALVAR Estava D. Claralinda Com D. Carlos a brincar, Foi passando um caçador Que não devia passar. Isto que estou vendo agora Ao Rei eu irei contar. Vindo cá meu caçador, Meu caçadorzinho real. Darei-te terras França Para ires governar, E minha prima carnal Para contigo casar. Não quero terras de França Nem tua prima carnal, Eu irei contar ao Rei Que mais ele ha de me dar. Volta cá mexiriqueiro, A meu pai não vai contar, Darei-te muito dinheiro Quanto possas carregar. Deus vos salve, Senhor Rei, Sua Justiça Real! Eu vi D. Claralinda 109
Com D. Carlos a brincar. De boquinhas e de abraços Não se podia falar. Si me contasses oculto Eu saberia pagar; Mas como contasses à vista Marcha vai te degolar. Chamem dois guardas De minha Casa Real Para ir á prender D. Carlos de Monte-Alvar. Deus vos salve, Claralinda, Rainha de Portugal: Ide defender D. Carlos Para não ir a enforcar. Arrede-se minha justiça, Minha justiça real, Pela c‟rôa de meu pai A todos irei matar. Si no meu reino tivesse Outra filha que reinasse A vos mesmo Claralinda Eu mandava degolar. Mas a palavra foi dita, Chega o padre pra casar. Que ganhaste, mexiriqueiro, Em meu pai a ir contar? Ganhei a morte, senhora, A vida bem pode me dar A vida bem posso dar. A quem minha mão estiver; Mas isto sirva de exemplo P‟ra outro não vir contar. O primeiro a coligir no Brasil o romance foi Celso de Magalhães numa versão que tanto Pereira da Costa quanto Sílvio Romero transcrevem sob o título de D. Carlos de Monte-Albar. Este último, por sua vez trouxe uma versão do Lagarto (Sergipe) sob o mesmo nome e Pereira da Costa deu-nos a lição pernambucana intitulada: Claralinda. Como se poderá apreciar pelo início da xácara que passamos a transcrever é da versão de Celso Magalhães que mais se aproxima a alagoana:
Linda cara tem o Conde Para comigo brincar. “Mais linda tendes, senhora, Para comigo casar. 110
Veio um caçador e disse: A El Rei irei contar, Que apanhei a Claralinda Com D. Carlos a brincar. Vem cá meu caçador, Caçadorzinho real, Darei-lte vilas de França Que ão possas governar Darei-te prima carnal, Para contigo casar. Não quero vilas de França Nem sua prima carnal Para com ela casar. A el Rei irei contar, Mais tem ele que me dar. “etc.” Em Portugal, Garrett recolheu versões várias as quais como de costume (mau costume, já vimos) englobou numa só cópia – Claralinda (10). Por sua parte, Teófilo Braga (6) coligiu versões do Porto e da Beira Baixa sob o mesmo título da versão alagoana: D. Carlos de Monte-Alvar. Na Espanha o romance é tradicional e suas versões, digo melhor, as versões que compulsámos: a transcrita por Garrett do Romanceiro Geral de Duran e do Tesouro de Romanceiros de Ochoa (10) e as de Solalinde (13) e Dámaso quase absolutamente iguais entre si e muito mais extensas e complexas que as versões de língua portuguesa. Aliás, segundo Garrett o romance é tradicionalmente espanhol e é um daqueles que ficaram imortalizados nas citações e alusões de Miguel de Cervantes em páginas do “Engenhoso hidalgo D. Quijote de la Mancha”. Deste mesmo romance há um variante temático registrado no Brasil sob o nome de D. Branca (P. Costa e S. Romero) e em Portugal com a denominação de D. Carlos de Além-Mar e D. Lisarda (Garrett e Teófilo Braga – ops. cits.) que também foi conhecida em Alagoas mas da qual só conseguimos obter o seguinte fragmento: “Mande chamar o Doutor Para curar Claralinda O Doutor já vem chegando Claralinda está pejada, Numa coivara de fogo Claralinda foi queimada.”
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Os últimos fragmentos de xácaras peninsulares que conseguimos desencavar foram a do Chapim do Rei (vide este trabalho) e a do Ceguinho. O nosso fragmento desta última corresponde exatamente à parte final da versão de Sílvio Romero, com a última redondilha assim redigida:
Que palácio é aquele Que vejo acolá, É o palácio de Ana Que ela vai morar. e que não se encontra nem nas versões brasileiras de S. Romero ou P. da Costa nem nas portuguesas de Garrett (O ceguinho) ou de Pires de Lima (O cego) (11). É bem possível que existam ainda outros romances peninsulares entre nós. Mas, decerto, não é fácil tarefa nem desprezível trabalho recolhe-las enquanto ainda é tempo e não se apagam as memórias, nem se calam as vozes dos últimos sabedores das maravilhosas narrativas medievalescas.
BIBLIOGRAFIA
1 - Renato Almeida – História da Música Brasileira – 2a Ed. – Rio – 1942. 2 - Luís da Câmara Cascudo – Vaqueiros e cantadores – Porto Alegre – 1939. 3 - Cesar Cantú – História Universal – Tomo IX – Cap. XI – Trovadores, XII – Lendas, novelas, romances. 4 - R. Menendez Pidal – flor nueva de Romances viejos – Argentina – 1939. 5 - Sílvio Romero – A poesia popular no Brasil – Rev. Brasileira – Ano I – Tomos 1o, 2o e 3o – 1878. 6 - Pereira da Costa – Folclore Pernambucano – Rio. 7 - Sílvio Romero – Contos populares do Brasil – 2o Ed. – Rio – 1897. 8 - João Ribeiro – O Folclore – Rio – 1919. 9 - Amadeu Amaral – Tradições Populares – S. Paulo – 1948. 10 - Almeida Garrett – Romanceiro – 1o vol. – 5a Ed. – Lisboa – 1900; 2o vol. – 3a Ed. – 1901; 3o vol. – 3a Ed. – 1901. 11 - Joaquim Alberto Pires de Lima e Fernando Pires de Lima – Romanceiro Minhoto – Porto – 1943. 12 - Ramos Menendez Pidal – Los Romances de America y otros estudios – Argentina – 1939. 13 - Antonio Solalinde – Clea romances escogidos – Argentina – 1940. 14 - Maria Cadilla de Martinez – Juegos y cancines infantiles de Puerto Rico- San Juan de Puerto Rico – 1940. 15 - J. Rodrigues de Carvalho – Cancioneiro do Norte – Paraíba – 1928. 112
16 - Manuel de Almeida Filho – O Pae que queria casar com a finha – Folheto – impresso em Maceió. 17 - Damaso Alonso – Poesia de la Edad Media y Poesia Tradicional – Buenos Aires – 1942. 18 - A. Prado Coelho – “O Romanceiro” de Garrett – Lisboa – 1943.
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A XÁCARA DO CHAPIM DO REI EM ALAGOAS
Câmara Cascudo em Vaqueiro e Cantadores (1) e nos Contos Tradicionais do Brasil (2), obras que justamente sagraram o Mestre como um dos maiores folcloristas contemporâneos, publica uma versão fragmentária da antiga xácara do Chapim do Rei, que Almeida Garrett recolheu há 100 anos atrás em Portugal e com a qual, no primeiro volume do Romanceiro (3) elaborou o poema inspirado na tradição popular: O Chapim de El-Rei ou Parras Verdes. Estudando a velha xácara peninsular, transformada em conto ou estória, no Brasil, o mestre papa-gerimum com aquela documentação farta e exposição erudita que encontramos sempre em seus trabalhos, cita as várias versões brasileiras e estrangeiras do raconto: a baiana de Silva Campos, a portuguesa de Teófilo Braga, a argentina de Rafael Cano, a porto-riquenha de J. Alden Mason, a sírio-libanesa de Musa Kuraliem, as italianas de Brantôme ensinando-nos ainda, através de Teófilo Braga, que o “episódio se teria passado com o Imperador Francisco II e Pierre de Vignes, provindo daí a alusão às vinhas, parras e uvas da narrativa. Em Assembleia (ex-Viçosa), da tradição oral, tivemos oportunidade de recolher também uma versão-fragmento da antiga xácara na qual só estão versificados, como aliás acontece com toda as versões anotadas por Cascudo, a exclamação da moça, a resposta do marido e a conclusão ou explicação do namorado. Contudo, os fragmentos em versos diferem inteiramente das aludidas versões, aproximando-se muito mais, como se verá, da versão de Almeida Garrett: “Já fui vinha bem cuidada, Bem querida, bem tratada Como eu medrei. Ora não sou, nem serei, O porque não sei, Nem n‟o saberei.” “Minha vinha tão guardada, Quando nela entrei; Rastro de ladrão achei, Si ele me roubou não sei; Como o saberei?” Eu fui que na vinha entrei, 114
Rastros de ladrão deixei, Parras verdes levantei, Uvas belas, nelas vi, E assim Deus salve a mi Como delas não comi.” Não obstante, aproxima-se um pouco da lição de Silva Campos por não haver alusão mais ao chapim perdido e sim rastro no chão. Note-se também a deturpação da palavra parra absolutamente incompreensível para o nosso matuto que a substituiu por Barras. Eis a versão:
A MOÇA, O MARIDO E O NAMORADO
Era uma vez uma moça muito bonita casada com um homem muito ciumento. Tão ciumento que toda vez que tinha que sair de casa para viajar espalhava areia pelo chão, para descobrir se alguém, na sua ausência, tinha andada por ela. Ora, acontece que a moça, antes de casar, tinha tido um namorado. Justamente numa ocasião em que o marido da moça estava viajando, o antigo namorado passou pela cidade e soube que ela estava casada. Por isso resolveu visitá-la, sem saber naturalmente que o marido era um homem tão ciumento. Chegou à porta da casa e encontrando-a aberta, sem ninguém que o viesse atender, entrou corredor adentro até que alcançou exatamente o quarto onde a namorada se encontrava a dormir a sesta, numa cama de docel, cerrada por cortinados de renda. Aproximou-se, levantou as cortinas e olhou, de certo que com os mesmos olhos antigos de namorado, a moça que não devia estar, na intimidade de seu quarto e de sua cama, a horas cálidas do dia, inteiramente composta. Satisfez-se, contudo, com a só contemplação do doce espetáculo e retirou-se. Eis senão quando chega o marido e descobre as fatais pegadas na areia. Interroga a mulher mas esta, de fato inocente, nada pode explicar. Não se conformando, o ciumento marido expulsou-a de casa. E ela, para viver, teve de empregar-se, como criada de servir, na residência de pessoa abastada da localidade. Ora, nessa casa, houve certo dia uma grande festa à qual, por coincidência compareceram, tanto o marido quanto o antigo namorado da moça, os quais não deixaram de reconhecê-la nas vestes de criada. Após os comes e bebes, glosava-se na mesa que ela servia quando lhe pediram para que
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também fizesse uns versos. Depois de muito relutar, por reconhecer seu lugar de criada, decidiu-se e apresentou sua glosa: “Tão bem nascida, Tão bem criada, Tão malfadada Que hoje me vejo.” O marido, ouvindo a glosa, compreendeu aquilo a que ela se referia e respondeu incontinente: “Por causa do rastro de um ladrão que eu lá encontrei...” O namorado, percebendo tudo, por sua vez respostou, esclarecendo: “Ladrão, não. Quem lá entrou fui eu; Barras brancas levantei, Cachos de uva, vi e mirei, Minhas mãos sejam queimadas Se nelas toquei.” Tudo assim explicado, o marido pediu perdão à moça que regressou novamente para sua companhia, nunca mais voltando o marido a desconfiar dela. E entrou por uma perna de pinto, etc.”
BIBLIOGRAFIA
1 - Câmara Cascudo – Vaqueiros e Cantadores – Porto Alegre – 1939. 2 - Câmara Cascudo – Contos Tradicionais do Brasil – Rio – 1946. 3 - Almeida Garrett – Romanceiro – 1o vol. – 5a Ed. – Lisboa – 1900.
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ESTÓRIAS DE PAI JOÃO
A escravidão negra e a imigração africana deixaram, e não podia ser de outra forma, marcas profundas na civilização brasileira. No populário, esta influência tem sido primordial e, a cada passo, nas danças dramáticas, na música, nos cantos, nas artes populares, na linguística, ou fabulário – deparamos a impressão frisante do escravo negro, a contribuição decisiva do africano e de seus descendentes. Há um campo, contudo, em que esta influência assume um aspecto absolutamente próprio e característico; é em certos contos ou estórias populares, burlescos ou faceciosos, em que a figura do escravo surge em todo o seu vigor e plenitude a retratar fielmente a época e sistema escravagista. Referimo-nos aos contos que o douto folclorista mineiro Lindolfo Gomes (1) englobou num ciclo temático sob o nome de “Ciclo de Pai João” e que chega mesmio a transbordar do simples anedotário – o Folclore de Pai João, como o queria Artur Ramos (2). No dizer deste eminente antropólogo e folclorista, Pai João é um símbolo. É o negro velho dos engenhos, alter ego brasileiro do Uncle Remus do folclore norteamericano e do Oncle Bougie e da Ti Malia do anedotário haitiano. “É o negro velho dos engenhos, de figura trôpega, de fala engrolada e olhos mansos”. E seu folclore “cantou, no Brasil, não apenas as tradições africanas, mas toda a longa e odiosa história da escravidão, da opressão e martírio; os castigos do escravo, a perseguição do branco, a saudade das terras livres”. No anedotário, Pai João é o personagem burlesco, enganado, boçal, atoleimado, e por isto mesmo audaciso na maioria das vezes; mas, noutras feitas, astucioso, matreiro e sabido. Daí que seu nome, mas não seu tipo, se modifique frequentemente. Agora é Pai Gonçalo; depois, Pai Mateus; outras vezes, Pai José; tudo conforme os episódios e as ocasiões. E, a acolitá-lo, surgem outras figuras secundárias do mesmo drama: Mãe Maria – a mulher, negra ainda moça e “esperta”; Moleque José – metido a D. Juan e a conquistador, etc. Nos episódios de que é o personagem central, aparecem e repontam, ao par dos costumes e usos do tempo da escravidão: o “quingingun” – serviço noturno obrigatório; 117
os castigos de mesa de carro, a peia de couro cru e o “bacalhau” de três pernas; as mostras da raça que sofreu o longo martírio da escravidão; a paciência, a liberdade dos costumes, o desejo de libertação e de mudança social, a astúcia, a velhacaria, etc. Lindolfo Gomes, único (*) folclorista que colheu, ao que sabemos, estórias do ciclo que individualizou, fez o registro em seu livro: “Contos Populares e Cantigas de adormecer” (1) de cinco contos: “A pedra de diamante”, “Pai João e Mãe Maria”, “O que os outros não querem”, “Pai João e a fritangada”, “Pai João e Sinhá Moça”. Entre nós, da tradição oral, em Assembleia (Viçosa) conseguimos colher dez estórias, isto sem falar em várias outras, pertencentes ao domínio do “Gabinete secreto do Folclore” (como chamava a este gênero o grande folclorista francês Pierre Santyves (3), que me foram relatadas pelo velho amigo Castro Azevedo, anos atrás, enquanto bebericada a dulcíssima água de coco verde da Lagoa do Pau e apreciava a paisagem belíssima do Pontal de Coruripe. São, a nosso ver, inteiramente inéditas as dez estórias que passamos a transcrever, procurando grafar a pronúncia de gíria africana, de fala de negro da costa, que os contadores de tais estórias ainda hoje empregam na narrativa. 1o – CÃO DE CINZA Mãe Maria, mulher de Pai João, negro velho e “besta”, estava de namoro com Moleque José. Certo dia, quando se encontravam mesmo na lua de mel, combinando um lugar seguro onde se pudesse namorar, sem sustos nem perigos; inesperadamente, Pai João, que naquele dia tinha sido dispensado do “Quingingun”, surgiu em casa. Mais que depressa, não tendo encontrado outro esconderijo, Jãe Maria meteu Moleque José dentro de um coxo, onde costumava juntar cinza para fazer barrela, recobrindo-o depois, por segurança, de roupas sujas. E, para se ver livre da “enrascada” e continuar fora de casa o colóquio interrompido, pediu a Pai João para botar o coxo de cinza na cabeça afim de transportálo para fora. Pai João assim o fez. Sentindo, porém, a demasia do peso da carga, reclamou a Mãe Maria:
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José Maria de Melo forneceu-nos uma cópia de um conto recolhido por ele no Engenho Baixa Funda – Assembleia e ainda inédito – S. Benedito de Roma, estória de um negro tolo, de uma negra sabida e de um moleque conquistador – que, embora não enuncie o nome de Pai João e de seus sequaes Mãe Maria e Moleque José, é tipicamente um conto pertencente ao ciclo de Páe João.
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Ih! Qui pexo gande, Mãe Malia!... É nada, não, Pai Zuão... É roupa munta qui tá pezano... procurou “tapiar” a negra. Conformou-se Pai João e saiu com o pesado coxo na cabeça. Mas, passos adiante, não aguentando com a carga, tropeou e afrouxou com o coxo no chão. Moleque José, todo recoberto de cinza, pulou fora e tratou de passar azeite às canelas, enquanto Pai João, sem saber mesmo que diabo era aquilo, perguntava a Mãe Maria: Qui é ixo, Mãe Maria? E esta proferindo a desculpa que no momento lhe ocorreu, gritou, aproveitando para dar um recado a Moleque José, sem que Pai João percebesse: É cão de cinza, Pai Zuão. Dou-te figa, condenado... Vai prá cacimba de baxo qui a de cima tem zente... 2o – PAI JOSÉ E O FAZENDEIRO
Certo fazendeiro, possuidor de muitas terras e de muitos escravos, tinha nos serviços de casa um negro de muita “fiança” chamado Pai José. Por ele, o fazendeiro era capaz de botar a mão no fogo. Vai, porém, um dia, o fazendeiro, que fabricava queijos, começou a notar que estavam desaparecendo as natas de suas coalhadas. Indagou daqui, perguntou dali, enterrou um negro, “espiculou” de outro, e nada de descobrir o fim que estavam levando as suas preciosas natas. Chegou, por fim, até mesmo a Pai José que respondeu, alvitrando uma pista: Quem xabe, mê zinhô, ixo xó pode sê armada de zibarata... De barata ou não, o fazendeiro resolveu botar tudo em pratos limpos e apurar direitinho o mistério. De noite, escondido na camarinha onde se guardavam as panelas de coalhadas, ficou de tocaia. A meia noite, oculto em seu esconderijo, viu o senhor entrar sorrateiramente um vulto, um negro velho, levando na mão direita uma colher e na esquerda uma cuia de farinha. Procurou bem distinguir as feições do vulto e, imagine-se o seu espanto, reconheceu Pai José. O senhor ficou “pasmo”. Seria possível!? Pai José, seu negro de mais “fiança”?... Não quis contudo precipitar-se e resolveu observar o intento do negro. 119
Este, aproximando-se das panelas de coalhadas, levantou a tampa de uma delas e falou: “Têze preza, ziá coaiada Pur orde desta cuié; Qum li prende é esta farinha, Quem li come é Pai Zuzé. O senhor, “bufando” de raiva, tudo viu mas disse para consigo: Deix‟ tá, negro ladrão, que tu amanhã me pagas o novo e o velho!... E na noite seguinte, munido de uma peia de amarrar cavalo, tornou a se esconder na camarinha das coalhadas à espera do ladrão das natas. Meia noite em ponto, lá surge Pai José, cuia de farinha e colher nas mãos, a repetir a lenga-lenga: Têze preza, ziá coainda Pur orde desta cuié; Quem le prende é esta farinha, Quem li come é Pai Zuzé. Aí, o senhor não esperou mais. Saltou em cima do negro e, cortando-lhe as costas com a peia, parodiou: Teje preso, seu ladrão, Por ordem desta correia; Quem lhe prende é teu senhor, Quem lhe dá é nó de peia. 3o – PAI JOÃO E A VIÚVA DO SENHOR
Tendo morrido o senhor do engenho, entendeu Pai João, velho escravo da fazenda, de se casar com a viúva do falecido senhor. Não fez segredo de suas pretensões; antes até, espalhou-as entre os companheiros de escravidão, agastando-se mesmo quando o tratavam de Pai João: Pai Zuão, não; Zinhô Ruão. Nas suas horas de folga, cantava trovas em que seus desejos se expandiam: 120
Vou vendê o meu cacête Feito de pau de rucá; Vendo pur meia pataca Pra casá com minha iáiá. Sinhá vai tirá côco Cum saia de babadão, Sinhá trepa no coquêro, Nêgo apanha côco no chão. Dias após, porque precisasse de um escravo para determinado serviço, mandou a senhora chamar Pai João. Aí é que este criou macaquinhos no só tão, logo se julgando casado com a sinhá e sinhô ele próprio. Todo “ancho” saiu-se para a Casa-grande, cantarolando:
Sinhá tá me chamano Lá dentro na camarinha, Pensava qui era pa outa coisa: É pa me dá a buquinha. E quando lá chegou, sem que a Senhora lhe dissesse o que dele queria, foi logo perguntando: Iáiá, cando inhô véio vinha de ziriviço, zinhô nun mandava perpará banho? Mandava, bondosamente respondeu a Senhora. Poixe Pai Zuão quere tomá banho. E, logo após: E cando zinhô véio tava cansado num deitava in perna de zinhã mode catá cafuné? Catava, retrucou a Senhora já meio agastada. Poize Pai Zuão qué qui Zinhá cate cafuné... Com aquilo a senhora terminou se agastando. Contou aos filhos, já rapazes, oq ue acontecera e estes mandaram chamar o negro velho audacioso. Vendo a coisa ruim para seu lado, Pai João procurou arranjar uma saída, saudando humildemente os moços: Deide qui zinhô moreu Nunca maize tive alegria; 121
Hôze vêzo zinhô moço N. Zinhô lhe dê bom dia. Mas os moços não foram no “pacote”. Trancaram o negro no quarto e munidos de “bacalhaus” de três pernas começaram a coçar o pelo ao preto. E, enquanto o couro batia, este cantava:
Ai, iáiá Dêxa dessa ingratidão, Pai Zuão num guenta maize O peso de tua mão. E a peia comendo, nas costas do negro:
Dêxa-te disso iáiá, Me sôrta sinão eu môro; Pai Zuão nun grita maize, Zá gane qui nem cazôro. E o “bacalhau” cortando:
Zá tou desconfiado, Zá tá me ardendo o sentido: Isso é armada tua, Mandado de teu malido. O negro já não aguenta mais. A peia continua a bater e ele, em triste situação implora:
Abra a porta, iáiá, Dêza Pai Zuão corrê; Já tou cum a carça, cheia Maiz nun te digo de que. Desesperado, pulou uma janela, bem em cima de um lameiro de porcos com os quais se misturou pedindo: Cala a boca, paricêra, pá zinhô nun vê maize. Agora nois todo somo zum.
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4o – PAI JOÃO E A MOÇA DO SOBRADO
Pai João passava todos os dias em frente de um sobrado, a uma de cujas janelas se encontrava, quase sempre debruçada, uma moça bela e elegante. Não medindo bem sua condição, Pai João, negro velho, mas enxerido, não perdia oportunidade para tirar “prosa” com a moça, soltando-lhe invariavelmente, todas as vezes a via, o galanteio: Adeuzi, minha roza... Todos os dias, a mesma coisa: a moça ouvia da janela do sobrado o “adeus, minha rosa” de Pai João e naturalmente os olhares e trejeitos apaixonados do negro velho. Por causa disto resolveu queixar-se aos irmãos que com ela combinaram uma boa lição para o negro enxerido. Quando Pai João também “adeus, meu cravo”, aconselharam eles, responda-lhe também “adeus, meu cravo”. Assim fez a moça. No outro dia, à hora de costume, Pai João chega-se à janela do sobrado e solta o indefectível: Adeuzi, minha roza... A moça, conforme o combinado, respondeu-lhe no mesmo tom: Adeus, meu cravo... O negro, em vez de desconfiar da “parada”, aí é que se “influiu” com a atenção da moça e, enxerindo-se ainda mais, perguntou: Minha roza onde e qui me qué? Tá mi agradando, iáiá!... Aqui em cima no sobrado, meu cravo... O negro não teve dúvidas: subiu mais que depressa as escadas do sobrado. Mas em cima, em lugar de rosa, encontrou foi cacête muito nas costelas, que os irmãos da moça, prevenidos, estavam de tocaia bem no alto da escada. Apanhou até dizer basta; e, ainda por cima, foi levado para a engenhoca dos irmãos da moça, amarrado à almanjarra e obrigado a tirar, em lugar das bestas, como suplemento de castigo, toda uma meladura. Dias depois, ainda amassado pelas pancadas e pelo serviço da almanjarra, passou Pai João em frente à janela da moça do sobrado.
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E desta vez, a moça, rindo-se às bandeiras despregadas da peça inflingida ao negro, não esperou que Pai João falasse e saudo-o em tom de troça: Adeus, meu cravo... Aí, Pai João nã se conteve e estourou: Adeuz, minha m... Si seus rimão quizé cavaro pa puchá manjarra, compre um qui Pai Zuão num serve pa isso não. 5o – PAI JOÃO E A VIÚVA DO SENHOR
(Variante das precedentes)
Pai João era escravo numa fazenda onde, havia pouco, morrera o Senhor, deixando viúva bonita mas muito tola. Pai João, sabendo disto, e querendo se aproveitar, começou a pedir: Zinhá, mi dá a roupa de sinhô?... Dou, respondeu a Senhora, pra que eu quero a roupa do finado?... E Zinhá mi dá tamem o cavaro de zinhô? Zinhá pra que qué cavarod?... Dou, sim, Pai João. E, assim, valendo-se da inexperiência e do coração aberto da Sinhá, dela obteve tudo o que bem quiz: móveis, baús, chapeus, etc. Diante disto, Pai João começou a crescer de importância e não se acontentando mais só com as dádivas da Sinhá, resolveu por fim propor casamento à patroa. Todas às vezes que passava em frente à varanda da “Casa Grande”, avistando a senhora, saudava-a com o galanteio: Adeuzi minha roza... E ficou de tal modo impertinente que um dia a viúva não se conteve e resolveu contar o fato aos irmãos que tinham ido visitá-la. Tem nada não, irmã, quando Pai João disser: adeus, minha rosa, responda-lhe: adeus, meu cravo... Assim fez a moça. No outro dia, vem Pai João todo pachola e solta a habitual: Adeuzi, minha roza... E a Sinhá, conforme fora combinado, respondeu: Adeus, meu cravo. 124
Aí, é que o negro todo se “influiu” e retrucou: Maize, minha zinhá, cravo só chêra perto da roza... Então venha pra cá, convidou, de indústria, a sinhá. O negro foi. O que encontrou, porém, foram os irmãos da Sinhá que o prenderam, amarraram na mesa do “carro”, de barriga para baixo e “sapecaram” nos costados do n egro as três pernas do “bacalhau” de ouro cru. Pai João, enquanto o chicote batia, mal podendo falar cantava arrependido:
“Are com todos diabo Que caro ficou pra boi; Pru causo de casamento Minha rabada se foi, Ai, ai, ai, oi.” 6o – PAI MATEUS E A MOÇA ROUBADA Pai Mateus, negro velho do mato, roubou certa vez uma moça casada, moça branca e bem bonita. Dias após, foi Pai Mateus a uma festa em casa de um conhecido onde se dançava um animado samba. Na festa, por coincidência, se encontravam também não só o marido da raptada, mas igualmente seus irmãos, cunhados e demais parentes que se esconderam no mato logo que viram Pai Mateus, decidindo aproveitar a ocasião para tomar uma vingança em regra do negro velho e ousado. Sem maldar em nada do que estava sendo preparado, meteu-se Pai Mateus no samba, acompanhado da moça que roubara, a cantar e a dançar:
Moça: Pai Mateus, Negro atrevido; Sou casada Tenho meu marido Pai Mateus: Olêlê, valha-me Deus Muita fortuna tem o Pai Mateus Moça: Pai Mateus 125
Negro desconfiado, Sou casada, Tenho meu cunhado Pai Mateus: Olêlê, valha-me Deus Muita fortuna tem o Pai Mateu E assim folgaram, dançando e cantando, até que o marido e os parentes da moça, escondidos no mato descarregaram suas espingardas de chumbo nas costelas do negro velho, vingando-se assim da afronta do audacioso preto. 7o – PAI GONÇALO E AS GALINHAS
Pai Gonçalo, negro manhoso como ele só, deu, depois de velho, pra roubar galinhas no quiintal do Senhor. Mas, um belo dia, depis de ter limpado uma família completa de galináceos: galo, galinha e pintos do terreiro do patrão, foi pego com a boca na botija, dando o fora do galinheiro com o saco cheio de “criações”. Preso pelo feitor e levado à presença do Senhor, Pai Gonçalo tentou se desculpar, procurando negar tivesse roubado as aves. Não roubou, negro danado? Então como é que as criações estão no seu saco? disse o Senhor. Ah! Zinhô, nun lhe conto. Pai Gonçalo foi passando pelo ciquêro e viu galo falá: CA-ca-ra-cá, ca-ca-ra-cá, Pai Gonçalo eu fico cá? Entonce Pai Gonçalo nun teve zeito sinão botá falo no saco: Oi, si você qué ficá cá, fique. E a galinha, negro safado? quiz saber o patrão. As galinhas viro galo entrá no saco e gritaro: “Cô, cô, rô, cô, cô, Pai Gonçalo eu também vou? que é que ia fazê: “Si seu marida veio pro saco, vocêis tamem pode vi”. E os pintos, Pai Gonçalo, perguntou por fim o Senhor, começando a achar graça na lábia do negro velho. Tamem gritato: “Qui, qui, ri, qui, qui, qui, ri, qui” Pai Gonçalo eu fico aqui? Oh, si seu pai e sua mai ficaro, vocêis tamem pode ficá. O Senhor riu-se muito da facécia do n egro e perdoou-o, mando-o embora, mas não sem o ameaçar com uma “novena” na mesa do carro si a coisa ainda se repetisse. 126
8o – PAI JOÃO, JULIANA E O MOLEQUE JOSÉ Juliana, mulher de Pai João, negro já velho e quasi “brôco”, namorava com o Moleque José. No roçado, atrás de casa, à noite, Moleque José, munido de um chocalho e urrando como boi, chamava: Oh, Juliana, Juliana... Juliana, acordando Pai João dizia-lhe: Acorda, Pai Zuão. Ole o ziboi comendo o ziroçado, Pai Zuão... Pai Joião, enfadado, com aquele sono profundo que ficou célebre nos anais do catibeiro, virava-se para o outro lado e mandava Juliana tanger os bois. Isso mesmo era o que a negra queria. Ganhava a roça e lá ficava o resto da noite, namorando com o moleque José. Mas uma noite, Pai João desconfiou e foi atrás de Juliana. A tempo, porém, Moleque José percebeu o negro velho e escafedeu-se, deixando com a pressa, contudo, o facão que usava. Qui custo danado foi esse, Zuliana? perguntou Pai João. Foi nada não, Pai Zuão, tava tapano ziburaco de cerca mode ziboi nun passá. Pai João “enguliu” a história. No outro dia, moleque José dando pela falta do facão e não sabendo onde tinha deixado, foi até a casa do Pai João a ver se Juliana dava alguma notícia dele. Como, porém, Pai João estivesse presente, para que de nada desconfiasse, pegou no molequinho novo, filho de Juliana e agitando-o nos braços, começou a brincar com ele: Ziquitin, dando, ziquitin, dandou, onde tá mê zifacão, onde tá mê zifacão. A negra, “escolada”, entrendendo tudo tomou o molequinho nos braços e fazendo o mesmio que o moleque José fizera, respondeu: Nêgo maxo nun sabe brincá cum minino. Se faize é assim: Ziquitin, dandou, ziquitin, dandou, alfacão tá no pé de jibobêra. O besta do Pai João percebeu e o moleque José de posse da informação despediuse e saiu em busca do facão. 9o – NEGROS FUGIDOS
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Conta-se que fugiu, certa vez, de uma senzala um negro velho conhecido pelo nome de Pai João acompanhado de sua mulher – Mãe Maria. Andaram, andaram até que se esconderam numa serra esquisita onde fizeram um rancho para morar. Mas, com pouco tempo, o rancho foi se enchendo de negros fugidos de toda a parte, tanto negro que os próprios capitães de campo já tinha medo de cercar o coito. O negro velho, pela manhã, dava ordens: Muleque Zuzé, vá caçá ziviado baranco. Muleque Dumingo, vá caçá zipeca de conchas. Muleque Zuaquim, vá caçá zitatú gordo pa pai Zuão cumê maize Mãe Maria. E os negros iam. Foi quando a negra velha engravidou e teve um molequinho que colocou no oco de um pau onde foi sendo criado. Quando o molequinho já estava falando o velho chegava na boca do buraco do pau e dizia: Zuão, ha, Zuão Hê Zuão CAngá crioulo; Fala cumigo Mane do Campôlo. O moleque botava a cabeça de fora e dizia: Abença, Pai? O negro velho respondia: Pega a batata, mureque... Diz-se que assim viveu por muito tempo esta colônia de negros fugidos, roubando e matando o que encontrava até que um dia se reuniram muitos capitães de campo e acabaram com a aldeia de negros, matando muito se prendendo o resto. 10o – MOLEQUE JOSÉ E O SENHOR (**)
Moleque José foi um dia cortar o capim que o Senhor tinha mandado. Mas, lá chegando, tanto demorou que o Senhor resolveu sair-lhe atrás para ver se descobria a causa da demora. **
O raconto é uma versão da célebre fábula de La Fontaine – La femme au pot au lait, cuja exegese já foi feita no Brasil pelo ilustrado folclorista Lindolfo Gomes (4).
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Foi encontrar o moleque em frente a um coelho que dormia, monologando: Pego cuêlo, vendo por dois zivintem; compro zôvo, zôvo tira pinto, pinto vira zicapão; vende zicapão, compro porco; vende porco, compra besta; besta pare cavaro, vende cavaro, compra vaca. É tempo que zinhô more e Zinhá caza com mureque. Moreque fica com tudo de zinhô manda nêgo trabaiá e fica em caza maize mia Zinhá. Quando ingenhu tivé muendo, moreque vai si zentá no sóto. Nisso minini de Sinhô vai tirá uma cana pensando que ainda é de pai dères, aí eu digo: “Bota a cana aí, moreques”. E ao dizer as últimas palavras deu tal grito que o coelho acordou e foi embora. O Senhor que escontido tudo ouvira pegou no “bacalhau” de três pernas e meteu-o no moleque que além de perder todas as riquezas ainda por cima ficou apanhado.
BIBLOIGRAFIA
1234-
Lindolfo Gomes – Contos populares e cantigas de adormecer – S. Paulo. Artur Ramos Folclore negro do Brasil – Rio – 1935. Pierre Santyves – Manuel de Folclore – Paris – 1936. Lindolfo Gomes – Nihil novi- Juiz de Fora – 1927.
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O NEGRO E A POESIA POULAR
Os negros africanos importados para o Brasil, conhecidos geralmente entre nós pelo nome genérico de “negros da Costa” e mesmio seus filhos já nascidos em nossas plagas, mas ainda de sangue negro puro, nunca foram muito chegados à produção poética. Enquanto os indígenas, segundo o testemunho dos cronistas da descoberta e dos primeiros dias da colonização, sempre foram excelentes improvisadores e dizedores de trovas, os pretos d‟África geralmente foram péssimos versejadores e poetas. O que tinham de magníficos contadores de estórias e de músicos exímios perdiam como poetas e repentistas. Suas estrofes, quer se trate de poesia religiosa ou recreativa quer se examine sua poesia repentista ou dramática, são de uma acentuada pobreza. Alfredo Brandão (1), além de autores de outros esdados, já tinha assinalado o fato: “O negro da Costa não possuía a sua veia poética muito desenvolvida. São encontrados poucos versos entre os africanos”. As peças poéticas de africanos puros, de negros de “fala atravessada” que ainda nos têm sido dado assinalar comprovam perfeitamente o estado primitivo em que se encontrava a arte poética entre os negros afro-brasileiros. De nossa obra em preparo: Folguedos populares de Alagoas podemos como amostra da produção poética negra transcrever as seguintes peças de reisados, congos e caboclinhos (*) todas incluindo palavras africanas autênticas ou supostamente negras, mas de feitura rudimentar e primitiva:
“Toipei num vi, ô dalipá Caramundêlo, zumbi, mamãe ô lá.” “Ô saião, ô saião, ô mamãe ê, Zumbi ô saião é de lá.” “Catolé, meu Reis catolé, Catolé, mandou me chamá; *
Como pretendemos demonstrar em nossa obra em preparo “Folguedos populaes de Alagoas” – o auto dos Cabocolinhos de Alagoas, (não confundir com a dança dos Caboclinhos de outros estados) é um folguedo da origem negra, talvez forma atual, no Estado dos Antigos Cucumbis.
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Olêlê, curupê, boa china, É de marambirê, é de marambirá.” “Mamãe ô, zumbí, ô saião, Pega no quimbambê, grandaião.” “Zundê, rundê, rundau Ei de quingana, nanau, Rau, rau, rau.” “Queba cupiá, queba, quebô Dona Maria auê.” “Caia, caia, caia no cangulêlê, Ajuê.” “Tratá marambira, luandê Cabôco de ardêia, quero v.” “Ganga rião, ajuê Folga meu Reis pra se vê.” “Diretum, diretum, deruá, Diretum de fazenda riá Cabôcos e nêgos nun tem que falá Meu sinhô pegae o nêgo manda p‟ro Pará.” De outra obra, também em preparo, Danças populares de Alagoas que estuda o maracatú, o coco alagoano e outras danças típicas do Estado é possível separar as seguintes peças, igualmente no mesmo estilo e com caracteres idênticos de simplicidade:
Maracatús: 1 - Saruenda, qui atenda, atenda, É sarundê, qui tenda ronhá 2 - Alô, alô Massangana, ê Aroanda Os pretinho de guine ê Aroenda Manda dizê nosso reis ê Aroanda Dansa de ponta de pé ê Aroanda. 131
3 - Mestre preto que vem buscá Camondá. ô mestre cadê a pá Aqui „stá. 4 - É de maiá, é de dendê Pai João tá duente pra se vê. 5 - Urou, urou mas não deu, Em terras de Mina quem tirou morreu. Côcos: 1 - Olelê, olelê A curuca morreu; É de banga, lá banga João Gome comeu. 2 - Ô bambá, ô bambá, Ô bambá de querê; Sou querido das moças E também de você. 3 - Catarina ru bana, Fôgo, sinhá. 4 - Olêlê, olêlê Sambigolê, Você gosta de mim E eu de você. 5 - Catarina mumbamba Mandou me chamá Bota azeite na candeia P‟ra não se apagá. O mesmo acontece com os versos cantados nas cerimônias religiosas dos xangôs, como se poderá ver no trabalho de Gonçalves Fernandes (2) O Xangô resado baixo ou nos seguintes cantos de xangôs colhidos no ano p. passado num “terreiro” do Poço:
1 - Invocação aIemanjá: Diê no caiaubê É Paramanjá. 132
2 - Pa-la-ê, ê, ô É de bodê 3 - Nanan eu á, Nanan eu á, Tôtô Eu sou boá, totô. 4 - Tou eu malá Tou eu malaruê, Tou malá Nananbrucú Tou ou mularuê. 5 - Já, já, manjobê Manjobê çapatá Bulua-ê Outros versos, um possivelmente africano anotado por Brandão Vilela (3):
“Kamonô, kumoná Estrangeiro má; Mariri, marirá, Olê, olô, olá.” o outro, afro-negro sem sombra de dúvida, porque ouvido por meu Tio Alfredo Brandão da preta Josefa velha, escrava de meu Tetravô Pedro José da Cruz Brandão: “Quilumí Tapa lambolá; Num tá luminando Tá tudo luminando.” corroboram a assertiva. “Já não se deva o mesmo, acrescenta Alfredo Brandão (op. cit.) com os seus descendentes crioulos e principalmente os mulatos e mestiços, aos quais, pode-se dizer, devemos quase toda nossa poesia popular, cujo acervo, já é enorme”.
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A esses mestiços quase negros é que devemos a maioria de nossas poesias tidas como de negros puros. Eles também é que vão ser propriamente os representantes negros de nossa poesia repentista. Os cantadores de coco, os tocadores de viola, embora de pele negra eram e são quase todos mestiços e à mestiçagem, antes de tudo, é que deviam e devem seus dotes de improvisadores. Entre nós, cantadores negros mestiços, houve-os e habilidosíssimos. Aloízio Vilela, a nossa maior autoridade em Poesia Popular, informa-nos em seu trabalho Reminiscências negra (4) os nomes dos nossos principais cantadores de coco de pele de azeviche: Chico Moirão, Cândiod Lino, Jacinto Tigre, Saturnino Caé, Joaquim Pueirame, Casimiro de Cavaco, Sabino do Gurjaú, João Luzia do “Bom Nome”, José Veneranda e Jacú do “Barro Branco”. Do folclorista viçosense são algumas estrofes que bem definem alguns deles. Joaquim Pueirame, um dos mais afamados cantadores negros, costumava apresentar-se com as seguintes sextilhas:
“Este é o Joaquim, O Joaquim Pueirame, Negro feio e malcriado, De bigode de arame; Quem duvidá do que eu digo, P‟ro meu lado se derrame. Este é o Joaquim, O Pueirame falado Nêgo do meio do mundo, Cantadô intitulado; Quem duvidá do que eu digo Se balance p‟ra meu lado.” De Jacú do “Barro Branco”, outro célebre cantador de coco, há duas quadras que lhe servem de “cartão de visita”:
“Joaquim Salustiano, Filho de véio Salu; Esse “passo” tão falado Que o povo chama Jacú. 134
Agora trincou-se o jogo, Pego no primeiro arranco, As péda faisca fôgo: Sou Jacu do “Barro Branco”. Dos cantadores de viola, negros, em Alagoas, tivemos notícia apenas dos seguintes: Joaquim Carapina, do Lagêdo (Palmeira dos Índios); João Mergulhão de Souza, de Lagoa de Ferro (Pão de Açúcar); Sizino Peito Pardo, de Igreja Nova; Chico Zeferino e Elsiano Tigre, de Ingazeira (Assembleia) e Miguel Turquia. Do penúltimo, cantador célebre em seu tempo, nada conseguimos recolher entre os que os conheceram. De Chico Zeferino, Sizino Peito Pardo, e de João Mergulhão de Souza conseguimos as rimas abaixo, através do cantador Júlio Ferreira Lima que os conheceu:
“Eu sou Chico Zeferino, Nêgo da bola entançada, Tenho rima de poeta, Bem cedo ou de madrugada; Cantadô que vim a mim Terá que comê ruim Na rima da embolada.” “Toda vida fui assim, Cantadô atitulado, Dérna de pequenininho Que canto bem aprumado, Tenho rima legativa Sou Sizino Peito Pardo.” “Quem quizé se chegue a mim Na vorta de meu repente Qe eu sou um nêgo pretinho De arvo só tenho os dente, Mas na vorta de cantá O poeta que eu pegá Tem de encontrá a serpente.”
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De Joaquim Carapina e de Miguel Turquia é que conseguimos as melhores estrofes, através de desafios travados com o grande cantador cabôclo Manuel Nenen. O desafio de Carapina com Nenen foi-nos por este último relatado e quase terminou em briga por se ter agastado o negro com os remoques do cantador caboclo:
Joaquim Carapina: Sou eu Joaquim Carapina, Cantadô deste sertão, Na função qu‟eu chego e canto Em uma reunião Todos fica satisfeito E alegre meu coração. Manoel Nenen: Seo Joaquim Carapina, Nos verrsos tenha cuidado Não passe o pé pela mão, Não se faça adiantado, As véia quem segue na frente, Para o fim chega atrazado. Joaquim Carapina: Seo Nenen eu sou um preto Mas um preto singulá, Sou doce que nem a cana, Cheiro igualmente a ananá, Sou calunga de loiça fina, Das menina vadiá. Manoel Nenen: Joaquim não diga assim, Coidado em sua carreira, Coidado no seu jardim Que não atraze a roseira, Repare bem no que diz Pra não marchá na lexeira. Joaquim Carapina: Sou preto mais sou querido, Gosto bem de namorá, Sou um boneco de loiça Das menina vadiá, 136
Sou cravo branco cheiroso, Das moça branca beijá. Manoel Nenen: A moça que beija nêgo, P‟ra doida não farta um grau; O nêgo não beija moça, Nêgo beija é “bacalau” Nêgo beija é outra nêga Que´e cunha do mesmo pau.” Já com Turquia não se saiu tão bem o Manoel Nenen. Turquia revidou a todos os seus ataques na mesma altura e lembrou a sua condição de mestiço faiodernmo, como bem se pode ver por este fragmento de desafio que travou no “Engenho Boa-Sorte” (Assembleia) e que Aloizio Vilela registrou:
Nenen: Ôu negro Miguel Turquia, Preto da cor de urubu, Tenha coidado na vida Que hoje eu faço com tú: O que faz herva de rato Nas tripas de um gabirú. Turquia: Negro é conversa mavú, É coisa que não tem fim, Você não pode falar, Deixe quem pode, isso sim, Não arreclame de negro, Que seu cabelo é ruim. Nenen: Todo negro é mesmo assim E nenhum valor não tem; É a figura do cão Que anda pelo mundo além; E se o diabo é ruim O negro e ruim também. Turquia: 137
Nenen é um “cabra” e tem A cabeça arrepiada, Não é branco e nem é preto, É uma mistura danada; Antes ter a cor segura, Do que ter embaraçada. Nenen: O cativeiro acabou-se Mas vai voltar, não sei quando; Você que é negro fujão, Vá logo de hoje marcando: Pode um capitão de campo Pegar você cochilando Turquia: Sou preto mas sou querido, Em toda a parte eu me arranjo, As moças olham prá mim E deixam qualquer marmanjo Eu namoro, eu brinco, eu danso Sou negro mas sou um anjo. Nenen: Turquia agora eu lhe tanjo Porque você é cruel, É um anjo, na verdade, Mas é um anjo infiel, Você é aquele anjo Lá dos pés de S. Miguel.” Outro cantador de viola negro que embora não tenha nascido em Alagoas merece ser incluído neste estudo porque longo tempo aqui viveu e aqui morreu foi Pedro da Catingueira, sobrinho do famanado Inácio da Catingueira de quem dizia Manoel Nenen:
Eu vou falar num poeta Que tinha nessa ribeira, Um repentista de fama, Cantador de regra inteira, Meu camarada querido: O Pedro da Catingueira. 138
Dele eram as apresentações seguintes: “Colega deu-te meu nome E também minha morada, Sou Pedro da Catingueira, Que não recebe pancada, Cavalo que não afronta Com dez léguas de jornada. Si não souber de meu nome, Sou Pedro da Catingueira, Cantador do Piancó, Moleque bom na madeira, Cavalo que não afronta Com dez léguas de carreira.” Ainda entre estes cantadores alagoanos cabe incluir o simpático ceguinho Otavio Ferreira, de União dos Palmares, cantador de toadas e posteriormente de viola e companheiro de cantoria do cego caboclo Antonio Limeira de Boa Sorte (Assembleia). Deles conseguimos gravar em disco cerca de quinze toadas legítimas do sertão entre as quais a interessantíssima Ei, Belinha que relembra as fainas dos engenhos:
“ Ei, Belinha Dona vá trocá dinheiro... Ei Belinha, O caixeiro arrecebendo... Dona vá trocá dinheiro. Dois no bagaço, Treis na muenda, Cana quebrando Garapa descendo, Mé cuzinhando Paró ajudando, Mé na bacia, O meste batendo. Ei Belinha...”
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Na seguinte toada, surge o desprezo do cangtador caboclo pelo negro, já por tantos autores (Rodrigues de Carvalho, Alfredo Brandão, Pereira da Costa e Artur Ramos) bem assinalado:
Estrebilho: Quem tá dizendo sou eu, Eu „tou falando de véra; Um ferrêro se dana e nun tempera Um martelo tão duro igual ao meu. Otavio: Mais certo cantô pra mim So faiz a cumparação Parece cum „a rolinha No bico dum gavião. Limeira: Nun quero cantá cum nêgo, Cum esse nêgo inxirido, Pode sê argum escravo Que ande pur aqui fugido.” Sobre este último tema: inimizade de negro com caboclos, que não é poesia de negros, mas versa sobre negros cabe anotar inúmeros desafios, quadras, etc. como os seguintes também colhidos em Alagoas: “Cansei-me com uma negrinha Pretinha como Guiné; Cega de um olho, Manca de um pé.” “Eu agora vou falá De um amô que já foi meu, Bonitinho como um cravo, Pretinho como um Mateu.” “Mestre de pau é carpina, Mestre de barro é oleiro, Mestre de boi é cambão, Mestre de ferro é ferreiro, Mestrte de negro é chicote, Mestre de vaca é vaqueiro.” de que há uma variante colhida por Aloizio Vilela (op. cit.): 140
“Nêgo modere a pancada Que eu pizo no teu cangóte, Levá surra é tua sina, Vivê no tronco é teu dote, Meste de burro é vaqueiro, Meste de nêgo é chicote.” Manoel Nenen, o grande cantador alagoano, na sua qualidade de caboclo, apesar de ter sido amigo de um cantador preto, pelo menos ao versar, não perde a oportunidade de detratar o negro como acontece nestas décimas que ele nos improvisou sob o mote: Negro deitado é um tôco.
Nêgo de perto é tição, É preto qui nem anun, Nêgo nun teim nem só um Que nun se pareça ao cão; No beiço, no pé, na mão, Tem parença e não é pouco Com um macaco de ôco, Ou com um grande sauim Veja a prole de Cáim Nêgo deitado é um tôco. Urubu preto também Assim como nêgo é; Perante os home de fé O preto que valô tem? Ainda tendo vintém Para os outros é um louco, Nas festas demora pouco Porque dos brancos é mangado, E o que está afigurado: Nêgo deitado é um tôco. Sempre tem a perna manca, A curva da perna torta; Casa dele não tem porta, Em vêiz de porta tem tampa. Parece um morcego vampa; Si ele fala é tato ou rouco, (outros parece mais pouco) De si próprio dá cavaco; Vei‟ de Cáim com macaco: Nêgo deitado é um tôco. Nêgo desgosto que tem É eterno e não tem fim, 141
Que a culpa de Cáim „ta sobre ele também; Si a condenação lhe vem Foi deus quem deu-lhe esse trôco, Para ele não é pouco A mancha da maldição: Nêgo correndo e o cão, Nêgo deitado é um tôco”. Recebendo mesmo outro mote que lhe dava oportunidade para condoer-se dos negros “Triste do negro cativo”, ainda assim, aproveitou-se Nenen do motivo pra desfazer da infeliz raça, só ao fim, nas duas últimas glosas, tendo relatado alguma coisa do sofrimento porque passaram os escravos pretos: “Naquele tempo de outrora Que o cativeiro existia, Nêgo sempre obedecia Ao Sinhô e a Sinhóra; Porém os nêgo d‟agora São afoito e muito altivo Gosam um tanto linitivo Pela ousadia que têm; Mas cativeiro inda vem: Triste do nêgo cativo. Os nêgo agora se estira Deitado, alisando os banco; Passa pelos home branco Que nem o chapeu lhe tira; Mais deix‟ „tá que o tempo virá, Eu vejo si eu fô vivo E boto no meu arquivo O tempo da escravidão Pra vê se é verdade ou não: Triste do nêgo cativo. No tempo da parmatória, Do chicote e o bacalhau, Os nêgo não era mau, Como esses nêgo d‟agora! A nêga qué sê sinhóra, E o nêgo que sê artivo; Estou calado e me privo, Deixemo o tempo corrê, Quero vê nêgo dizê: Triste do nêgo cativo. 142
Quando o nêgo só fazia O que seu sinhô lhe mandava E a benção lhe tomava Quasi todo santo dia, O seu Sinhô lhe dizia: Nêgo seja mais ativo; E o nêgo diz: eu me esquivo De agravá a meu sinhô, Já que eu fórro não sou: Triste do nêgo cativo. Domingo numa senzala, Ali deitado no chão Um lençozin de argodão, Ninguém não via um afala; Era um baú sua mala, Apanhava sem motivo, E já mais morto que vivo Não saía do trabalho, Um rancho por agasalho; Triste do nêgo cativo. Assim que rompia o dia Ia cumprí seu devê, Ia depressa sabê O que seu sinhô queria; Caladinho não sorria Ainda vendo motivo, Dizia: bem eu me privo De meu sinhô me odiá... Tinha medo de apanhá Triste do nêgo cativo. Às vezes era motivo de troiça a exagerada fermentação das secreções cutâneas, dando em resultado quadras anônimas como as que seguem: “Na beira do Paraíba Uma preta se banhou, Distância de meia légua, Os peixe se embebedou. Outra feita ela banhou-se Na beirada do Poti, Acabou-se na crumatãs Não ficou um só Mandá.”
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Noutras vezes ao lado de remoques há elogios como nestas quadras que ouvi cantadas num côco: Quem qué, quem qué Uma nêga daquela, por Lídia Santana, a cabocla cantadora de côcos e rodas da Fazenda São Luís (Campo de Sementeiras do Estado) em Assembleia: “Os ôio da nêga É uns ôio de gaia, Arretira a nêga, Não me atrapaia. O cabelo da nêga É de carrapicho, O pé da nêga É cheio de bicho. A nêga é preta Que alumeia, Mas assim mesmo Não é tão feia. Ela é bonita, Ela é dengosa, Ela é faceira Ela é chêrosa. O defeito da Nêga É a cor de carvão; Si fosse arva, Era um peixão. Olha o geito da nêga, Olha o geito dela; Uma cara preta Que nem panela. “Você me chegou de nêga Assim mesmo diz, Diz que ele é bela; Quem qué, quem qué Uma nêga daquela. Nem sempre, porém, deixam os negros estas troças sem respostas. Às vezes tomam suas “revanches” como no caso do cantador Miguel Turquia com Manoel Nenen ou como se pode notar nestas estrofes anônimas:
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“Você me chamou de nêga, Do cabelo pixaim; Sou nêga, dou-me a respeito Não amo cabra ruim.” Do cabelo pixaim, Das canela de tição, Dos pés de mata-capim; Leva eu p‟ra tua casa P‟ra tirá raça de mim.” Caboclo: Nêgo não vai a pagode Nem de dento, nem de fóra, Diverte no mei‟ do carro, Onde o bacaiau labóra. Negro: Cabôco não vai a pagode Nem diverte que dá gosto Diverte com o pé no tronco Cá corrente no pescoço.” Não só com os caboclos disputam os negros: com os brancos também. Num “folheto” editado por Manoel Xavier, músico do R. P. M. descreve-se A briga do preto com o branco (5). Nas sextilhas que aí vão e que termina com a vitória do negro; selecionadas do referido folheto, se pode observar este outro aspecto da nossa diluidíssima “linha de cor”:
1 Senhores preste atenção veja bem o m eu arranco lheia o livro com cuidado assentado no seu banco que conta toda lambança do preto com o branco 2 O preto disse para o branco você não venha me ensultar Que homem branco de mais não tem corage de brigar Se eu lhe der um tabefe Vejo o sangue espirrar. 3 O branco áhi respondeu 145
negro preto atrevido mando meus cabra pegalo e papocar-lhe os ouvido para você convenser-se Que toudo negro é cativo 4 Elle ao branco respondeu sou preto mais sou pusitivo voceis fiado em ser branco pensa que negro é cativo commigo branco é no páo e só dou no pé do ouvido 5 Muleque você me respeite Que eu não sou do seu panno me trate com muiot geito se não lhe arranco o tutano Que negro é como urubu Que vive no mundo sem dono. 6 Sou preto mais sou liberto Senhor de minha venta Branco na minha volta Eu sei que não agoenta Que eu estando zangado dez de vocês não sustenta. 7 Moleque deixe de abuzo vá procurá seu lugar veja que sou teu senhor si não lhe mando amarrar Que negro só veio ao mundo Para dos branco apanhar 8 É isto que os branco pensa Que todo negro é cativo Mais é emgano de todos que todo negro é pusitivo branco na vorta do preto temque achar é serviço. 9 Com isto o branco zangou-se mandou o negro sahir que não queria questão 146
com negro preto ruim dos cabellos miudinhos da cabeça de cupim. 10 O preto ahir levantou-se ficou na ponta do pé Já disse que branco commigo não anda que Deus não quer questão de branco com preto os branco decha a mulher. 11 Com esta o branco cacou-se não pode mais responder o preto tomou-lhe o folego E teve então que vencer o branco ficou calado sem ter mais o que dizer. 12 Senhores me desculpe esta minha narração que vou agora terminar porque findou-se a questão o preto saiu sorrindo e o branco ficou na mão. 1 - Alfredo Brandão – O negro na História de Alagoas – 1o Congresso AfroBrasileiro de Recife – Estudos Afro-Brasileiros – Rio – 1935. 2 - Gonçalves Fernandes – O sincretismo religioso – 1941. 3 - Brandão Vilela – Litteratura Viçosense – in Almanaque de Viçosa – 1920. 4 - Aloizio Vilela – Reminiscências negras – in Gazeta de Alagoas de Outubro de 1938. 5 - Manoel Xavier – A briga do preto com o branco – Folheto.
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DA EUROPA E DO EGITO DO BRASIL
No estudo do tradicionalismo popular, uma das tarefas mais interessantes é a análise comparativa de determinados temas folclóricos, tais como lendas, superstições, contos, cantigas ou brinquedos infantís, de uma região ou8 época, com temas semelhantes de civilizações, idades, países ou culturas diferentes. Constituindo, na Euroipa, grande parte da tarefa dos folcloristas tal estudo somente foi tentado no Brasil em 1910, por João Ribeiro que, em seu livro O Fabordão (1), realizou a exegese dos nossos contos de apostas, tais como o Cágado e o Taiú ou o Jaboti e o Veado, demonstrando suas origens africanas e não ameríndias como queria Sílvio Romero, pela simples comparação com histórias africanas semelhantes, colhidas em África por René Basset, Heli Chatelain, Stuhlmann, Forstl, etc. Tal atividade demográfica, logo seguida, entre outros, por Alberto Faria, Gustavo Barroso, Lindolfo Gomes, etc., veio a formar, segundo Joaquim Ribeiro (2), a chamada Escola de João Ribeiro ou dos pesquisadores, diversa da de Sílvio Romero que foi a dos colecionadores puros. Por tal estudo comprova-se que a maioria das manifestações populares e tradicionais, conquanto representem características notáveis de uma raça ou região, são no fundo universais, visto que frequentemente se encontram determinadas e idênticas ideias, sob formas e expresões variadas, em povos os amis longínquos e em idades as mais avançadas. Tal fato tem dado ate motivo para a criação das mais contraditórias doutrinas no campo da ciência das tradições populares, como por exemplo, a doutrina astronômica ou mitológica de Jacob Grimm, Max Muller e De Gubernatis, que afirma serem todas as tradições populares oriundas de uma fonte única – os povos arianos – e representativas simbólicas de fenômenos naturais, na sua maioria celeste; a doutrina histórica ou orientalista de Gastom Paris, Gedeon Huest, Benfey, etc., divergente da anterior porque admite a Idade Média como data de transmissão das primitivas lendas arianas; a doutrina antropológica de Andrew Lang, Tylor, Bastian, Bédier etc. baseada na existência de Ideias Elementares (Elementar Gedanke), comuns a toda humildade e aparecendo em diversos povos por meras coincidências acidentais; e, por fim, a doutrina psicanalista de Freud em que os grandes complexos sexuais, parentais e de medo 148
explicam a formação de mitos, contos, superstições etc. e em que a simbologia subconsciente do Mestre de Viena substitui a simbologia mitológica de Grimm. Entre nós, quatro distintos folcloristas: os srs. Alfredo Brandão, Diegues Júnior, Luís Lavenère e Lages Filho, têm tentado a exegese folclórica. O primeiro, num artigo intitulado: Uma questão de folclore (3) abordou o tema cíclico do “animal vingador” comparando o conto O homem e o Veado de Couto de Magalhães com as lendas europeias de S. Julião Hospitaleiro, de Flaubert; de Santo Hubert, do agiológio cristão; e da Dama Pé de Cabra, de Alexandre Herculano. Diegues Júnior comparou num artigo – Um brinquedo infantil (4) as versões brasileiras do “Dedo Mindinho”; Lavenère trouxe, com uma versão (6) alagoana do Conto Nigouba-nigouba, elementos bibliográficos estrangeiros que positivavam a procedência africana do conto; e finalmente Lages Filho, em seu trabalho – a Medicina Popular em Alagoas (5) estudou comparativamente vários remédios usados entre nós com mezinhas similares da Europa. Como eles e como todos os que no Brasil tentam tão interessante estudo, é sempre possível a qualquer pesquisador deparar, de quando em vez, em qualquer das formas sob que se nos apresenta o folclore, semelhanças flagrantes entre o material recolhido em uma região ou época e em países e idades diferentes. É, por exemplo, o que nos aconteceu ao catalogar e estudar a coletânea original de Medicfina Poipular que recolhemos em Alagoas. Em três rezas e processos populares de curar que coligimos, fomos descobrir a rovável origem em ensalmos usados no Egito do grande Rei Sesóstris e no Império Romano dos últimos Césares. O primeiro diz respeito ao processo de cura da dor de cabeça (cefaleia), tão comum no sei ode nossas camadas populares, e que se conegue pelo processo denominado de “tirar o sol da cabeça”. Segundo a versão que recolhemos em Assembleia (ex-Viçosa) isto se obtém do seguinte modo: “Senta-se o paciente ao ar livre, em hora de sol aberto, numa cadeira ou tamborete. Põe-se sobre a cabeça do doente uma pequena rodilha, e, sobre esta, uma garrafa branca, cheia d‟água até o gargalo. Arrolha-se bem a garrafa e vira-se o fundo da mesma para cima de tal modo que aboca fique em contato com a rodilha. Com o reviramento da garrafa, o ar que se achava no gargalo, agora em baixo, desloca-se para 149
cima, em direção ao fundo, formanod bolhas o que se dá com um ruído de gorgolejo especial. Diz-se, então, que saiu o sol da cabeça, ficando ou devendo ficar curado o paciente”. Sílvio Romero, nos Cantos Populares do Brasil (7) informa que tal processo é uma reminiscência da trepanação pré-histórica, segundo a descreveu Broca, e relata outra versão: “O modo de curar cefaleias é colocar uma toalha dobrada sobre o crânio do indivíduo afetado e sobre a toalha um copo d‟água emborcado. Rezar o seguinte: Jesus Cristo nasceu, Jesus cristo morreu, Jesus Cristo ressuscitou. Se estas três palavras são verdadeiras vos fará sarar desta enfermidade. (*) Numa versão paulista de Brito Broca – Como o Piraquara se livra de seus males (8) o processo é o seguinte: “O paciente expõe-se aos raios dos astros benignos, às nove horas da manhã, num dia em que eles brilhem com todo o esplendor. Outra pessoa, tomando um copo cheio d‟água, coberto com um lenço bem comprido, deverá invertê-lo sobre a cabeça do paciente. Depois de esgotado a água se forma algumas bolhinhas de ar no lenço, é sinla de êxito absoluto. As bolhas indicam que o sol saiu do crânio do doente.” *
Semelhante ao processo e ensalmo de Sílvio Romero é o seguinte, colhido após a 1 a publicação deste trabalho na Rev. do Inst. Histórico (Vol. XX), em Viçosa (Assembleia): “Encha-se uma garrafa branca de água corrente bota-se uma toalha limpa bem dobrada na cabeça do doente e sobre esta emborca-se a boca da garrafa, dizendo: Deus é o sol, Deus é o sereno, Deus é a claridade: Assim, sol, sai da cabeça de Fulano E vai para onde foste criado 3PN-#AM – para as 5 chagas de NSJC”. fórmula e processo por sua vez variantes dos que registra Leite de Vasconcelos – (Tradições populares de Portugal) – 1882): “põe-se um guardanapo nos olhos, dobrado, sobre um copo meio d‟água na cabeça do doente, com a água para baixo, ao sol diz-se três vezes a oração: O sol é luz O sol é claridade. São 3 pessoas da SS. Trindade, O sol nasce no nascente, E põe-se no poente. Assim comoi isso é verdade Assim vá-se este mal daqui para fora para empre.” Outra fórmula colhida em Maceió, reza assim: Dina é mãe de Ana. Ana é Mãe de Maria, Maria é mãe de Jesus: Com estas palavras são ditas e certas Sai-te sol da cabeça de Fulano, pelo amor de Deus. 3PN – 3AM – 3CDP.
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Pois bem, os egípcios contemporâneos dos Ramsés e dos Totmés tinham também o seu processo ou reza para curar a dor de cabeça no qual o sol parecia, como ainda hoje, representar um importante papel. Pelo menos é o que se pode deduzir da fórmula exposta no Papyrus de Leyde e que César Cantú em sua História Universal transcreve (9): “A parte anterior da cabeça é dos chacais divinos, a parte posterior é um porco de Râ. Coloca-se sobre um braseiro; quando o humnor que dela sair tive chegado aos céus, cairá dele uma gota de sangue sobre a terra.” Ora, Râ é o Sol na Mitologia Egípcia. Ou mais propriamente, segundo Mayer (10), “Râ é o soberano eterno, inacessível que por meio do brilho do sol pode exercer uma influência benéfica ou terrível”. Na fórmula egípcia só a parte posterior da cabeça pertencia-lhe. Nas nossas, todo o crânio sofria-lhe as más influências. Em todas elas há qualquer coisa (humor ou bolhas) que sobe (Ao céu ou ao fundo da garrafa). E até mesmo a ideia da ebulição se encontra expressa, aqui como lá, no brasileiro ou nas bolhas d‟água. Outra reza muito conhecida entre nós e que tem igualmente origem remota é a indicada para engasgos ou espinhas na garganta. Lages Filho (5) anota a seguinte versão: “Homem bom, Mulher ruim, Esteira de cangalha, Espinha de camorim.” O Barão de Studart (11) dá uma variante: “Homem bom, Mulher má, Esteira Velha, Não há que ceiar.” Uma de nossas versões colhidas em Assembleia (Viçosa) reza assim: “Homem bom, Mulher má, Casa velha, Esteira de palha, 151
Engasgo assobe p‟rá cima, Ou desce p‟rá baixo.” Em outra versão, recolhida por nós em Mar-Vermelho (Apadia) a reza é a seguinte: “Homem bom, Mulher má, Esteira velha, Casa varrida, Mandou dizer Senhor S. Braz Que o ensasgo de Fulano, Ou desça ou suba.” Ainda noutra versão, também de Mar-Vermelho, é este o ensalmo: “São Braz, Bispo Confessor de N. S. Jesus Cristo; Para cima ou para baixo, Escorregai isto.” Muito semelhante a estas duas últimas fórmulas é a versão de Sílvio Romero (7): “Homem bom, Mulher má, Casa varrida Esteira rôta: Senhor S. Braz Disse a seu moço, Que subisse ou descesse A espinha do pescoço.” (**) No século VI, depois de Cristo, conheciam-se rezas mais ou menos semelhantes. Numa compilação organizada por Aetius de Amida (12) existem duas rezas que lembram de perto as acima enunciadas e que eram utilizadas para idêntica finalidade:
**
Outras variantes e fórmulas com o mesmo fim são as seguintes, colhidas posteriormente à publicação deste trabalho: “homem bom, mulher ruim, esteira velha, saia espinha de camorim” ou “homem bom, mulher ruim, esteira velha, espinha de camurupim”, “Bater nas costas da pessoa engasgada dizendo: “São Braz, São Braz”, “Chamar por S. Braz e virar um tição”, todas colhidas em Maceió.
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“Para livrar a faringe de um corpo extranho, deve-se tocar no pescoço do doente dizendo: Como Jesus tirou a Láaro do túmulo e a Jonas do ventre da baleia, do mesmo modo sai tu, osso ou escama; ou, então: Sai ou desce, o mártir Braz e o servo de Jesus Cristo t‟o ordenam”. Encontra-se nas fórmulas latinas a mesma o rdem para subir ou descer, a mesma referência ao Mártir Braz e a seu moço (servo de J. C.). Semelhança ainda mais frisante que as precedentes é, no entanto, a que existe entre nosso processo popular de curar unheiro e panarício, registrado sempre do mesmo modo por tantos folcloristas brasileiros (13-14-15-16) e que se consegue colocando o dedo na parede e dizendo: “Nunca vi unheiro verde, Em buraco de parede.” e o processo que Marcelus Empyricus, de Bordeus, médico de Theodosius, registra em sua “Coleção de Receitas Físicas e Filatéricas” (17). Segundo ele, para curar-se um panarício, deve-se tocar três vezes numa parede, proferindo as seguintes palavras: “Pu, pa, pu, nunquam ego te videam; Per parietem repare”; que apesar talvez de algo truncadas podem ser mais ou menos traduzidas por: “Pu, pa, pu, nunca mais que eu te veja; Some-te parede a dentro.” A identidade não carece aqui de outros comentários. Mais uma vez, portanto, confirma-s ea assertiva de que as práticas populares e traidicionais que reputamos mais nossas, vieram através de tempos e terras variadas, de épocas e regiões longínquas.
BIBLIOGRAFIA 1 - João Ribeiro – O Fabordão – Rio – 1910. 2 - Joaquim Ribeiro – Introdução ao estudo do Folclore Brasieiro – Rio – 1934. 3 - Alfredo Brandão – Uma questão de folclore – Jornal de Alagoas – Out. – 1933. 153
4 - Diegues Júnior – Um brinquedo Infantil – Gazeta de Alagoas – 1936. 5 - Lages Filho – A Medicina Popular em Alagoas – Arquivos do Inst. Nina Rodrigues – 1934. 6 - Luís Lavenérq – Nigouba, uigoub a – Rev. do Inst. Histórico de Alagoas – 1935. 7 - Sílvio Romero – Cantos Populares do Brasil – 2a edição – Rio – 1897. 8 - Brito Broca – Como o piraquara se livra de seus males – Publicações Farmacêuticas – 1935. 9 - Cesar Cantú – História Universal – Tomo 1o livro II – pag. 493. 10 - Mayer – in História Universal de Ontem (CAp. VI – pag. 95). 11 - Barão de Stoudart – Usos e superstições Cearenses – Revista da Academia Cearense – 1910. 12 - Cesar Cantú – História Universal – Tomo VII – Livro VIII – Pag. 309. 13 - Krugs – A superstição Paulista – 1910. 14 - Nestor Diógenes – Brasil Virgem – Recife – 1924. 15 - Afrânio Peixoto – Missangas. 16 - Gonçalves Fernandes – O Folclore mágico do Nordeste – 1938. 17 - César Cantú – História Universal – Vol. VI – Livro VII – Pag. 398.
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AS CHEIAS DE ALAGOAS E A LITERATURA DE CORDEL
Um dos mais vivos e interessantes documentários do espírito popular se enocntra naquilo que os folcloristas denominam de “literatura de cordel”. Esta irmã humilde das Bleas Letras, humilde quer pela feição gráfico-material com que é posta à lume, quer pelo púbico a que se dirige, aí não se estende em sentido vertical como a verdadeira literatura, possui, contud, muito mais que esta, uma extensão horizontal, sendo como é, uma literatura destiinada a 75% de nossa população: toda nossa vasta população rural e grande maioria das classes e rofissões das zonas urbana e suburbana. Visitem-se as feiras e mercados do interior, e, mesmo aqui em Maceió, num dia de domingo, procure-se a célebre “Feira de Passarinhos”. Lá sob modestas tendas e barracas de lona, ou mesmo espalhada por sobre a negra e húmida areia do Canal da Levada, aglomera-se uma freguesia das mais diversas (operários, empregados domésticos, meninos, habitantes dos bairros proletários) a adquirir o pão espiritual destas modestas e conc orridas livrarias de cordel. Edições populares e baratas dos poetas e romancistas que ficaram como os representantes máximos da raça: Castro Alves, José de Alencar, Casemiro de Abreu, Bocage, Alvares de Azevedo, etc. nas obras de maior preferênicas popular: Ubirajara, Iracema, Espumas Flutuantes, Noites na Tavaerna, Anedotas e Poesias, etc. fazem o nível mais alto destas curiuosas livrarias. Pode-se mesmo dizer que a inclusão de um romancista ou poeta nas coleções populares das Livrarias Quaresma ou Antunes – as maiores editoras do gênero no Brasil – representa uma maior sagração, no conceito do povo, que os prêmios e galardões conferidos pela Academia Brasileira de Letras. Vêm depois, ainda lançadas pelas editoras populares acima enunciadas, as velhas narrações históricas ou sentimentais da Peníncula ou da Europa: as histórias de heróis e bandidos, de donzelas e princesas, de guerreiros e conquistadores; as histórias chorosas, incrivelmente ingênuas e intermináveis de amorosos e sacrificados de amor: A história da donzela Teodora, da Imperatriz Porcina, da Princesa Magalona, de João de Calais, do Imperador Carlos Magno, de Inês de Castro, de João Brandão, etc.
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Por vezes, sobretudo antigamente, edições portuguesas, editadas “com todas las licenças necessárias” de seu velho romanceiro – das primeiras expressões literárias e poéticas da língua: Marquês de Mântua, Bernardo Del Carpio, Amádis de Gaula. Esta literatura veio indubitavelomente do velho Portugal. De lá, para nossa tradição e para nosso próprio sangue de mestiços de lu8sos, fluiu o costume de registrar em prosa e, principalmente em verso, todos os acontecimentos sociais e históricos que atingem o fundo da alma popular. “O sertão, diz o grande mestre Câmara Cascudo, em páginas de seu Vaqueiros e Cantadores (1), (nós o diríamos: O Nordeste todo) recebeu e adaptou ao seu espírito as velhas histórias que encantaram os rudes colonos nos serões das aldeias minhotas e além-tejanas. Floresceram, noutra indumentária, as tradições seculares que tantas inteligênicas rudes haviam comovido”. Mas, não só eles – os romances europeus – formam o lastro desta profunda e divulgadíssima literatura. Traduzindo-os por sua vez em sextilhas, o homem do povo nordestino aprendeu e se acostumou a transcrever suas próprias histórias, os romances nascidos em terras do Brasil; as vidas e as proezas de seus heróis e bandidos, de seus “santos” e fanáticos; as pelejas e debates de seus violeiro se cantadores, os romances do ciclo do Gado ou as histórias amorosas, os ABC e os Padre Nossos em versos, as lendas e os mitos, os sucessos políticos ou sociais – A história completa de António Silvino, A Chegada de Lampião ao Inferno, Os milagres do Padre Cícero do Joazeiro, A vida e os milagres do menino Petrúcio, O Sacrifício de Amor, o ABC de Romano, A discussão de Catuaba de Flexeiras com Jacú do Barro Branco, a Moça que viveu cachorra, etc. Com razão afirma ainda Mestre Cascudo que todos os acontecimentos históricos foram e são registrados em versos. Entre nós, aquilo que escapou do improviso dos violeiros, dos cantadores de coco e de toada, dos “mestres” de Baíanas e de Guerreiros, penetra na memória popular através dos “folhetos” que, de Pernambuco, João Martins de Ataíde espalha em profusão para todo Nordeste e que em Alagoas tiveram cultores do prol do renomado Pacífico Pacato Cordeiro Manso e têm atualmente representantes de idêntico quilate: Amaro Quaresma, Manoel de Almeida, José Pacheco, António Pauferro, José Pequeno, José Carlos, etc. Estes poetas e historiadores populares, muitos fazendo a nossa verdadeira história social, conquanto trabalhem quase só em “gabinete” e não produzam suas obras de improviso, no arrojo de um coco e de um “pagode” ou no calor de um desafio à viola; 156
estes poetas que o grande repentista alagoano Manoel Nenen chama de poetas “versistas” para os distinguir dele e de seus colegas que eram poetas “Organistas”, têm também o seu merito e, como naqueles, podemos igualmente neles encontrar os “feitiços da psicologia brasileira, o fastígio idiomático, saboroso de regionalismos expressivos, de construções gramaticais curiosas, de sinonímia exdrúxula e nova ou simplesmente arcaica”. E também imagens, pensamentos, observações, ironias, sugestões tão interessantes quanto os que se encontram nos repentistas e alguns superiores mesmo aos dos que fazem a grande literatura. Da pena destes poetas humildes são os versos pitorescos e realistas noticiando e comentando a enchente de junho de 1948 e a pavorosa “tromba d‟água” deste ano. Calamidades que por dois anos consecutivos vêm desabando sobre Alagoas, desta última vez com intensidade redobrada e envolvendo o Estado num manto de tragédia que repercutiu em todo o Brasil numa comovente demonstração de solidariedade humana – as cheias de junho de 48 e de maio do corrente ano, como acontece com todos os sucessos que têm importância para o povo, não podiam deixar de ser versificadas pelos nossos poetas dos “folhetos”. Sobre as cheias do ano p. passado ocuparam-se dois poetas populares: Manoel Campina e Pedro Jararaca. O primeiro é eliás antigo repentista e tocador de viola de quem tive ocasião de tomar conhecimento através de um pitoresco folheto de cordel “A inundação de 48” (2) em que ele registra em versos toscos e incorretos, mas originais e saborosos, com um espírito de observação e sátira de cronista e repórter dos melhores, os sucessos das cheias que ocorreram em Alagoas em junho de 1948. O segundo, nunca foi cantador de viola; e conquanto não faça profissão da poesia popular não perde oportunidade de, vez por outra, dar à lume suas produções de poeta “veranista”. Aliás, Pedro Jararaca não é senão pseudônimo de um parente nosso até, inculto e de pouca instrução, mas que é um compêndio vivo de folclore e tem sido mesmo uma das mais copiosas e seguras fontes de informações não somente para nós próprios, como também para outro folclorista viçosense: José Maria de Melo. No seu folheto “Discrição da grande cheia de 23 de junho de 48 que inundou a nossa cara Assembleia” – A calça que descendo n’água falou” (3) editado em Assembleia (exViçosa) e que teve uma finalidade de crônica mais local que a de Campina, não fica muito atrás deste último no sabor e no pitoresco.
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Destas duas obras selecionadas algumas estrofes, como amostra das qualidades apontadas por Cascudo a tais produções populares que aqui vão transcritas, respeitandose inteiramente a ortografia e sintaxe originais:
I A INUNDAÇÃO DE 48 Manoel A. Campina 1 Desta grande inuncação Padre Antonio nos avisou Porém tem gente que diz Ele no céu não andou Nem Jesus também a ele Um telegrama mandou 2 Esse dito já vai tarde E é chiando na hora Quem cantou no Carnaval Quer ir mais eu vambora Essa foi a recompensa E breve chega a piora 3 Levou mesmo de caprixo O rio do mandaú De União e Muriel Deixou cabra rico nú Veio deixar a roupa dele Na terra do sururú 4 É triste se tomentar De Maceió o estado A água envadiu a praça E embocou no mercado Quarenta e cinco centímetro Por quem viu foi calculado 5 A linha de Grestuestre 158
Essa disapareceu De Palmeira e Maceió Nunca mais o trem correu Condotor nesses trez meses Não corta belhete meu 6 O paraíba em Quebrangulo Essa fez estrago feio Pegou vaca, bode e porco E aguentou no paleio Quebrangulinho também Partiu a rua no meio 7 Na casa de seus Moisés Esse foi o mais caipora Levou todo sal que tinha Aí nessa mesma hora Bacalhau saiu dizendo Quem quer ir mas eu vambora 8 A rua da Cachoeira Foi um grande desmantelo Pegou casa em bom estado E dela fez um nuvelo Foi um dia de juízo Pra todos um atropelo 9 Levou a linha de eito Da casa d‟água abaixo O rio fez uma curva E nela deu um escraxo E disse vocês conheçam Que “Praíba” é rio macho 10 Na casa de um barbeiro Fez um estrago qualquer Dos objetos de casa Ficou ele e a mulher 159
Pegou no braço da sogra E disse vai se puder
11 Na estrada de rodagem Ele aí tirou direto Pegou a linha de geito Que só ficou o projeto A mangueira do catecismo (*) Dessa vez vioru inceto 12 Casas do Major Leonardo Essas foram uma porção Entrou dentro de Assembleia Fazendo destruição O rio levando um bucado A chuva outro quinhão 13 A rua do calçamento Essa virou a maré O posto da igiene Dele já perdi a fé Carnaúba perdeu mil contos Para ele é um café 14 A serra de dois irmões Uma da outra é amiga Arriou grandes barreiras Quem passar por lá piriga Deixou a linha em estado Que não passa nem furmiga 15 De Capela e de Atalaia Foi mubilia pra Manguaba A cidade do Pilar *
Mangueira do Catecismo. Chama-se ou melhor chamava-se, segundo noticia o poeta, uma mangueira muito frondosa, à margem esquerda do Paraíba, no Sítio Mata Escura, perto da cidade de Viçosa (hoje Assembleia) onde certa vez foi pregada uma Santa Missão. Daí para cá ficou com tal nome.
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Dessa vez quasi se acaba Junto a porta da matriz Inda pegaram piaba 16 Nos avisa o Padre Antonio (**) Aquele que for cristão Que levante o pote d‟água Procure com atenção Que encontrará na terra Trez pedrinhas de carvão 17 Farra dito e corrução Hoje é que se vê mais Não dão valor a doutrina Só dão crença a satanás Essa agora foi começo Outra maior vem atráz II A CALÇA QUE DESCENDO NAGUA FALOU Pedro Jararaca 1 O Padre Cícero dizia Em sua consagração Que o mundo se acabava Numa noite de São João Feliz do que acreditar No Padre Cícero Romão Há vinte e três de junho A‟s cinco horas da tarde Viçosa se viu em aperto Que fazia piedade Inundando toda rua Com uma grande tempestade 3 **
Realmente, ainda, em Maio de 1948, corria entre a meninada e a população crédula da Capital e do Estado a profecia das Cheias e a recomendação do Padre Antonio que o poeta reproduz para evitar os prejuizos e perigos da mesma.
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Lá na frente do Fomento A água fazia dó Dr. Arruda apertado Que só rato no quixó Salú esse coria Que largou o mocotó 4 Moça, mulher e menino Na rua andava nadando Pelo nome de Jesus Em alta vós emplorando Somente Zé Cavaquinho Se houvia ele cantando 5 Na casa de Zeca Moura Entrou água na cozinha Quando ele chegou na sala A enchorrada já vinha Ele sem poder saí Chamava pela visinha 6 A mangueira do catecismo A enchente carregou O Pedro sabendo disso Muitas lágrimas derramou E disse para os meninos Nossa Egreja se acabou 7 Já houviu falr na calça Que passou n‟água falando Uma mulher curiosa Que a água estava olhando Perguntou pela camisa Ela respondeu chorando 8 Eu vou lhe dar a resposta Do que está me perguntando O palitó e a camisa 162
Vem aí atraz chiando Você quer ir mas eu, vamos Já é tarde vá furando 9 Credo em cruz Ave Maria Marte São Sebastião São coisas do fim do mundo Bem diz Frei Bastião Valei-me meu São Lucas São Pedro e São João 10 Afinal caros leitores Meus versos vou terminar Si alguém não achou bom Queira me desculpar Que não sou moeda de ouro Prá todo mundo agradar Da cheia atual conseguimos até esta data dois documentos: um do poeta José Martins dos Santos, de Bebedouro, ainda desconhecido para nós mas que se revela à altura de seus predecessores num interessante folheto “O grande Dizastre em Maceió” (4) que ostenta na capa uma xilogravura que não faria vergonha a Cícero Dias; outro do poeta José Pequeno já nosso antigo conhecido e ele próprio proprietário de uma banca de quinquilharias e folhetos no pátio interno do mercado público “A Cheia de 1949” (5). Através dos dois folhetos percebe-se bem a diferença entre ambos: um suburbano ou rurla, outro citadino; um cometendo constantes erros ortográficos e sintáticos mas de expressão característica, outro de vocabulário mais selecionado mas sem tanto relevo e encanto.
III GRANDE DIZASTRE EM MACEIÓ OU A CHEIA DE 49 José Martins dos Santos 1 No ano quarenta e oito A chêia foi horroroza Agora em quarenta e nove 163
Eu achei mais perigosa Vamos cuidar em rezar Ninguém queira anarquisar Com Jesus ninguém não proza 2 Na cidade do Pilar Muita gente está atôa Empreza d‟água quebrou-se Não se bebe água bôa Só se for mais corajouzo Aquele mais preguiçozo Bebe mesmo da lagôa 3 Para Palmeira dos Índios O trem não pode passar Quem gosta de andar a trem Muito tem que esperar O rio que acha arranca A ponte de Estrada Branca Virou de perna pró ar 4 Barra de Canhoto, esta? Sofreu grande impurrão O rio sahiu soprando Para o lado de União E disse quem quer cantar Trago água pra fartar A cede de alazão 5 De Rio Largo a Utinga O rio fez um contrato As casas que encontrar De não deixar lá no mato Disse, hoje a palha avôa E o transporte é mais barato 6 De Satuba a Fernão Velho Toda água se espelhou 164
Uma grande tromba dagua Uma barreira arriou Com um grande aguaceiro A rua do Cajueiro Quaze toda derrubou 7 Que sofrimento tirano Daqueles pobres coitados Morreram sem esperar Por debaixo dos telhados Uns na cama outros nas rêdes No acouxo das parêdes Morreram muitos imprensados 8 Dezabou uma barreira Para a rua do banheiro Na Granja da Conceição Só se via o aguaceiro Na porsiga do estado Ainda tem porco infincado Por dentro do atoleiro 9 O Pinheiro também sofreu A água deu de “magote” Eu vi as casas cobertas De fora só o capote Talvez lá ninguém se arrume Na estrada do betume Não se fazia transporte 10 De Santa Rita prá baixo Para o lado da Favela Uma barreira arriou Nunca vi uma d‟aquela Uma casa que tinha imbaixo Jogou dentro do riacho Com tudo que tinha nela 11 165
O rêgo do Reginaldo Sempre foi criminôzo Quando elle recebe água Fica todo furiôzo Com elle é que eu não brinco Desta vez foi mais de cinco Mora lá quem é teimôzo 12 Do Reginaldo ao Pôço Difunto fazia monte Disse a água, o que eu matar Talvez não tenha quem conte Ella sabe o que é que faz E na Avenida da Paz Com raiva arrancou a ponte 13 Jaraguá Ponta da Terra Horrores foi mais de cem O mercado São José Este reclamou também Quem nos castiga é Jesus Companhia força e luz Nunca mais ganhou vintem 14 Se via monte de mortos Na pedra do Hospital Eu não contei os que tinham Por causa do pessoal Disse o doutor vão embora Voceis verem outra hora Quando sahir no jornal IV A CHIEA DE 49 José Pequeno 1 Segunda feira, 16 De Maio ano corrente Começou as seis e meia 166
Chuver torrencialmente Esse aguaceiro macabro Que hoje comove a gente
2 A noitfe toda chuveu Um minuto não parou Terça feira dia e noite No mesmo continuou De quarta feira prá quinta-feira A derrota começou 3 A noite de quarta feira Pra quinta foi pavorosa Que trouxe a pesada chuva A fragil e tempestuosa Mensageira da tremenda Calamidade horrorosa 4 As aguas se avolumaram De modo descomunal Invadindo logradouro Do suburbio a capital Produzindo projuízos A todo povo em geral 4 Somente em Pontal da Barra Duzentas casas cairam Na Ponta Grossa e no Prado Diversas também ruiram Em Vergel do Lago muitas Nas águas se consumiram 5 Trapiche Poço e Levada O Mercado também encheu Reginaldo, nem se fala Foi um que mais padeceu Pois tem gente que ficou 167
Pior do que quem morreu 6 Finalmente em todos bairro O flagelo foi desumano Bebedouro esse ficou Num verdadeiro oceano Pois as águas que tem lá Não secam por este ano 7 Enquanto ao interior É triste a situação Serra Grande Barra e Lage Nincho Branquinha União Sofreram amargosamente Sem um meio de salvação 8 De Muriel a Atalaia Ficou de se lamentar Conceição do Paraíba Manguaba antiga Pilar Esse está submergido Completamente num mar 9 Nesse ponto Maceió Já estava dominado Não existia um só bairro Que não estivesse alagado Quando o peor dos conflitos Já estava aproximado 10 Já incalculaveis horas De chuva estava a cair Quando uma nevoa funebre Começou a encobrir O aspecto da cidade Que não deixam de sentir 11 168
Quinta-feira as trez e meia Foi a quadra do horror Ouviu-se por toda parte Um estrondo insurdecedor Quando rubr a barreira Protagonista da dor 12 E espetacularmente Deixou a sua aterrada A Barão de Atalaia Fatalmente sinistrada Junto a dezenas de vida Que foram enfelicitadas 14 No retirar dos destroços Fazia perder assuntos Em cada casa encontravam Quatro cinco seis defundos Dez horas ao necroterio Tinha dezenove juntos BIBLIOGRAFIA
1 - Câmara Cascudo – Vaqueiros e Cantadores – Porto Alegre – 1944. 2 - Manoel A. Campina – A Inundação de 48 - ? – 1948. 3 - Pedro Jararaca – Discrição da grande cheia que inundou a nossa cara Assembleia – Assembleia – 1948. 4 - José Martins dos Santos – O grande dizastre de Maceió – Maceió – 1949. 5 - José Pequeno – A cheia de 1949- Maceió – 1949.
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AGRICULTURA POPULAR
Se o campo é, sem dúvida, por efeito mesmo de seu isolamento e de um mais baixo nível cultural, o último baluarte das tradições do povo, o derradeiro refúgio das cerimônias das práticas, dos conhecimentos empíricos e das superstições populares; nada é de estranhar seja tão avultado no Brasil o “corpus folclorico” relativos às fainas campesinas e aos trabalhos agrícola-pastoris. (*) Contudo, não tão rico quanto o foclore agrícola português em que só a paremiologia constitui um verdadeiro tratado prático de agronomia e zootécnica, tratado que, vamos e venhamos, às vezes se apresenta, pelo seu caráter eminentemente prático, muito mais eficiente que os próprios conselhos científicos ministrados pelos técnicos agrícolas e agrônomos diplomados. Na coletânea do padre Antonio Delicado (1), por exemplo, há todo um capítulo, contendo 269 parêmias, que constitui por si só um excelente compêndio de agricultura popular das gentes portuguesas, como bem se pode observar por estas amostras dela selecionadas:
1-
“A par de rio, nem vinha, nem olival, nem edifício.
2-
A vinha onde pique, a horta onde regue.
3-
A terra que não cobre a si, mal cobrirá a mim.
4-
A terra, posto que fértil, se não descansa, faz-se estéril.
5-
Casa, vinha e potro, façam outro.
6-
Janairo molhado, si não é bom para os pães é bom para o gado.
7-
Lenha de figueira, rija de fumo, fraca de madeira.
8-
Mais vale água do céu que todo o regado.
9-
Mato e rio, Deus ra‟o dê por vizinho.
10 -
Minguante de Janeiro, corta o madeiro.
11 -
Não hei medo ao frio, nem à geada, senão à chuva porfiada.
12 -
Não farás horta em sombrio, nem edifiques a par de rio.
*
Diz André Veranac em sua recente e revolucionária obra (6): “Dissemos porque o povo e particularmente o povo dos campos apareceu no Occidente, após o século XIX como o verdadeiro guardião das tradições nas sociedades occidentais”. “As tradições campesinas constituem verdadeiramentre um mundo e seria difícil a um único pesquisador apresentar o conjunto de tais tradições no curso de sua carreira científica, mesmo limitando os seus estudos a uma só nação”.
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13 -
Nem vinha em baixo, nem trigo em cascalho.
14 -
O cabrito de um mês, o queijo de três.
15 -
O melão e a mulher, maus são de conhecer.
16 -
Planta muitas vezes transposta, nem cresce, nem medra.
17 -
Quem quiser colher asinha, plante devagar e sem fadiga.
18 -
Semeia cedo, colhe tardio; colherás pão e vinho.
19 -
Sol e boa terra fazem bom gado, que não pastor afamado.
20 -
Vinha entre vinhas, casa entre visinhas.
Já no Brasil a paremiologia agrícola é muito menos farta apesar da pujança e vigor da paremiologia em geral. Leonardo Mota que a ela se dedicou em dois artigos: Adagiário Meteorologico (2) e O Adagiário e os Vegetais (3) nao inscreve mais de cem provérbios sobre agricultura que, contrariamente aos adágios gerais, são em sua maioria autóctones, nacionais, de formação nossa, como se concluirá pela leitura dos seguintes, conhecidos em Alagoas, uns sob a forma original, outros sob variantes:
1-
Em capoeira de sertão, não se planta maxixe.
2-
Quando a cana abaixa, o dono se levanta.
3-
Janeiro não choveu, o tempo se perdeu.
4-
Entre António e João, planta teu feijão.
5-
Em três coisas ninguém se fie: é em doido sem juízo, tempo de inver4no e bunda de menino novo.
6-
Céu pedrento, ou chuva ou vento.
7-
Em Fevereiro, foice ou fumeiro.
8-
Matapasto florou, cupim de asa voou, curimatã desovou, inverno acabou.
9-
Pinto de Janeiro e que enfeita o terreiro.
10 -
De pendão a grão, trinta dias são (diz-se do milho).
Explica-se perfeitamente bem este fato, à primeira vista estranho. É que o clima, e por isso mesmo as culturas do Brasil, mormente do Nordeste, difere inteiramente do de Portugal. Enquanto lá os provérbios se referem à cultura da vinha, do trigo, da oliveira, do linho etc. aqui as culturas características de nossa zona são completamente diversas:
171
não poderia opinar a sabedoria tradicional portuguesa. Mesmo o próprio calendário agrícola poular luso:
1-
Janeiro geoso, Fevereiro nevoso, Março mulinhoso, Abril chuvoso, Maio ventoso, fazem o ano formoso;
2-
Dia de S. Matias, começam as enxertias;
3-
Por Santa Marinha, vai à tua vinha: e tal a achares, tal a vindima.
4-
Junho, Julho e Agosto, senhora, não sou vosso.
5-
Por Santa Ireia, toma os bois e semeia.
não poderia ser absolutamente aplicado às nossas estações climáticas. Igual fenômeno se observa com grande número de superstições e regras populares agrícolas, não enunciadas sob forma de provérbios. Na sua maioiria, quando não são de feitura exclusivamente nossa, serão pelo menos adaptações de espécimes portugueses. Aliás, cabe dizer que tais regras populares, por uns consideradas sem exceção como supersticiosas e indignas de crédito, já começam a ser levadas em linha de conta e a transitar até pelos livros técnicos de agricultura, explicadas cientificamente. Tomemos por exemplo o caso das madeiras. Sabemos, de acordo com a informação popular corrente que: 1 – Madeira não se corta em noite de lua, que dá bicho.
É a discutida influência da lua sobre animais e plantas, ridicularizada por uns, acreditada piamente por outros e que se estende também a várias culturas e diferentes gêneros de criação:
2-
Na lua minguante não se deve plantar nada.
3-
Milho não se vira no claro que dá bicho.
4-
A maniva deve ser plantadas 3-4 dias após a lua nova.
5-
Não se deve plantar melancia no minguante.
6-
Para castrar animais, deve-se fazê-lo três dias angtes da lua nova, senão o animal “cai dos quartos”.
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7-
O animal deve nascer na lua nova para poder aumentar logo; se nascer na cheia, fica enfesado.
8-
Boi cruzado na lua nova dá bezerro; na lua cheia, bezerra.
9-
O leite de vaca aumenta na lua crescente e diminui na minguante.
10 -
Quando se castra um aniimal no crescente, quando a lua está bem no meio do céu, os quartos da frente darão o mesmo peso que os de detrás.
11 -
Não se deve matar porco à hor ada lua nova.
Pois bem, um livro técnico, escrito pelo Dr. Raul de Farias – Horticultura para todos (4) edição da conhecida revista agrícola Sítios e Fazendas, diz textualmente: “Muito tempo, pareceu a muita gente, que não havia nenhuma base nas afirmativas de nossos roceiros, quando indicavam as épocas de plantio pelas fases da lua. Estudos modernos vêm provando a verdade. A fotoperioidicidade, a sucessão dos períodos de iluminação, tem influência nos órgãos vegetativos e reprodutores das plantas. É lógico admitir que ao chegar uma noite de lua nova, não havendo mesmo a fraca luz do luar, a seiva para, depois do movimento que lhe impôs a luz solar. A planta descansa, “dorme”, e no dia seguinte, além do tempo que perdeu não vegetando, gasta reservas para “se por em movimento” novamente. O luar (luz atenuada) faz uma ligação, pelo menos entre os dias solares. Não permite a treva, pelo menos. É o que diz o roceiro, mas esclarece agora a ciência: a alface semeada no minguante dá folhagem linda, enquanto que no crescente dá folhagem parca e grana logo. Para todas as hortaliças se verifica o mesmo “mutatis mutandis” e consoantre o que se deseja, deve-se escolher época de plantio, pelas fases lunares”. E envia, após, para maiores esclarecimentos sobre o assunto, à obra de Azzi – O meio físico e a produção agrária – que mostra ser dupla a ação da lua: 1o – sobre o movimento da seiva, como foi exposto acima e 2o – sobre a vida dos insetos e fungos que atacam as plantas, promovendo o desencontro ou encontro da época em que a planta está em condições de abrigá-los, com o estado vital dos mesmos. E o citado Dr. Raul Farias, técnico em assuntos agrícolas, com várias outras obras publicadas: Fruticultura para todos, Pintos de um dia, Citricultura Prática, não
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vacila, num capítulo especial de sua obra em transcrever 40 provérbios e regras populares, das quais tomamos as seguintes:
1-
O lavrador que vive na cidade, cedo ou tarde perde a propriedade.
2-
Terreno descoberto, celeiro deserto.
3-
Em solo frio não semeie fundo.
4-
O que no mercado não conversa levar, é tolice rematada semear.
5-
O estudante, a cinza e a cal, temperam a terra como a penela o sal.
6-
Chega terra à tua planta, que ela cresce e se levanta.
7-
Horta e celeiro, não querem companheiro.
Como acontece com as superstições médicas, aos remédios e às prescrições populares de higiene alimentar, à parte aqueles que são absolutamente estapafúrdios, ridículos ou nocivos; é preciso não considerar todas as regras práticas populares como supersticiosas e desprezíveis. Silva Melo, na sua grande obra Alimentação, Instinto e Cultura (5) afirmando que a inexistência atual de uma explicação científica para uma prática ou oubservaç~/ao popular não é motivo bastante para que ela seja rejeitada, assinala muiot bem que a ciência moderna, apesar de todo o seu intenso e rápido desenvolvimento, não tem mais de um século de existência enquanto que o saber popular tem milênios a seu favor. Como a influência da lua e dos meteoros, cuja importância é hoje reconhecida inteiramente pela própria medicina, quantas outras, ignoradas e atualmente sem explicação não poderão vir a sê-lo de futuro. (**)
**
Pode citar-se ainda a superstição (como ainda é considerada por muita gente) a respeito da ação perniciosa da mulher “incomodada”, sobre plantas, vegetais e seus produtos (vide coletânea) muito conhecida e acreditada entre nós. Pois bem, conta-nos o Dr. Emil Novak num estudo aliás sobre “A superstição e o folclore da menstruação” (7) as observações surpreendentes obtidas pelo Dr. Bela Schlck, cientista muiot conhecido através do teste que leva seu nome – Teste de Schick para diagnóstico dos indivíduos imunes ou não à difteria: “Uma mulher, assistente do laboratório de Schick, tinha por hábito, todas as manhãs, colocar flores sobre sua mesa. Notou o Dr. Schick que em certas épocas as flores em questão murchavam muiot depreswsa. Com o espírito de observação peculiar ao cientista exercitado, não tardou ele a verificar que o fato coincidia com os períodos em que a referida assistente estava menstruada. Mas, quando, seguindo as suas instruções, ela punha luvas de borracha antes de tratar das flores estas conservavam a frescura e o viço habituais. Em suma, valendo-se de várias experiências desta natureza acabou ele por concluir que as secreções orgânicas tais como o suor, e a saliva contêm na fase de menstruação uma substância nociva à vida dos vegetais”. Por onde se vê mais outra observação empírica popular controlada e explicada pela ciência oficial.
174
Afora as nitidamente prejudiciais há que se considerar bem as proposições da sabedoria popular e tradicional que dão, tantas vezes, melhor resultado que as oficiais e científicas, sobretudo num terreno como este de nossa agricultura e de nossa criação onde os fatores regionais e locais influem a tal ponto que nem é mesmo possível copiar e transplantar os ensinamentos dos tratados agrícolas e zootécnicos, feitos para a Europa ou para o Sul do país; devendo-se antes, criar com observações locais, com a experimentação cuidadosa, com os conhecimentos empíricos e tradiconais do povo, a verdadeira agricultura do Nordeste. A coletânea que se segue, colhida aqui em Alagoas nos municípios de Maceió, Assembleia (ex-Viçosa) e Manguaba (ex-Pilar) englobando superstições e regras de saber popular, das quais algumas podem ser encontradas noutras partes do Brasil (***) e algumas vezes em Portugal (****) não é senão uma tentativa para compendiar o vasto, pitoresco e às vezes aproveitável populário agrícola de Alagoas. Para maior facilidade, a coletânea foi dividida em seções, de acordo com os assuntos. 1 – CHUVA E SECA
1 - Quando a flor do mentrasto (peltodon radicans) cair, é sinal de verão. 2 - Quando o sapo canta no verão, é sinal de chuva. 3 - Em dia de chuva, para estiar, coloca-se uma pele de fumo detrás da porta. 4 - Também se manda um menino pagão fazer careta. 5 - Varrer terreiro no verão, é chamar chuva. 6 - Quando o assentamento do engenho começa a fumaçar muito é sinal de chuva. 7 - Rã cantando, anúncio de chuva. 8 - Também quando o bode espirra. 9 - Quando os bois do cercado se deitam pelo chão é sinal que vai chover. 10 - Quando está chovendo muito, se os galos cantarem até meio dia, a chuva para; do contrário, choverá o dia inteiro.
***
Getúlio Cesar (8) e Pereira da Costa (9) em Pernambuco. Sebastião Almeida Oliveira (10) em S. Paulo e Câmara Cascudo (14) no Rio Grande do Norte são alguns dos que registram a matéria no Brasil. **** Em Portugal, consulte-se sobretudo Leite de Vasconcelos (11) Teófilo Braga (2) e Jaime Lopes Dias (13) para um estudo comparativo com as nossas superstições agrícolas.
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11 - Quando a bica do engenho baixa, é sinal de chuva. 12 - Quando o acauã canta empau verde, é sinal de chuva; quando em pau seco, é sinal de verão. 13 - Lagartixa da mata anuncia chuva. 14 - Caboré cantou, é sol. 15 - Caranguejo em grande quantidade fora dos buracos é sinal de trovoada de Janeiro.
2 - FRUTEIRAS
1 - Bananeira só se deve plantar levando o filho às costas. 2 - Quando a pessoa planta o coqueiro de cócoras ou de joelhos e ele custa a crescer. Deve-se fazê-lo de pé. 3 - Não é bom pessoa que tem ferida subir em fruteira pois que ela arruinará. 4 - Fruteira plantada por pessoa idosa custa a crescer. 5 - A pessoa que tira os cocos de um coqueiro deve sempre ser a mesma para não arruiná-lo. 6 - A lua roi os cocos do coqueiro. Cocos estragados são roídos da lua. 7 - Mulher “incomodada” não deve subir em mangueira pois esta ficará ruim. 8 - Quando a fruteira não produz enterra-se um prego virgem no tronco. 9 - Para o mamoeiro dá logo, ao plantá-lo deve-se enfiar a semente no chão com o dedo em posição perpendicular à superfície do solo. 10 - Para o mamoeiro produzir logo, deve-se plantá-lo dançando. 11 - Quem plantar bananeiras em terreno alheio não comerá dela, pois se mudará antes de a mesma frutificar. 12 - Para fazer com que uma laranjeira frutique pega-se de uma foice dia de sexta-feira, e dão-se talhos rasos ao longo do tronco, de cima para baixo e diz-se três vezes: Eu te corto. Depois diz-se: Não te corto porque você agora bota. Faz-se a mesma coisa três sextas-feiras seguidas. 13 - Véspera de S. João serrando o olho do mamoeiro macho ele se transforma em mamoeiro fêmeo.
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14 - Para o mamoeiro produizr logo, deve-se plantá-lo misturando um pouco de farinha às sementes. 15 - Para transformar o mamoeiro macho em fêmea, cortar o olho com a unha. 16 - Coqueiro onde o urubu faz “serviço” está desgraçado, não dá mais. 17 - Coqueiro deve ser plantado por pessoa moça para nascer logo. 18 - Genipapo cai somente na lama, não cai no seco. 19 - Para fazer com que uma fruteira que não produz comece a frutificar, devese surrá-la com vara no dia de S. João, pela manhã. 20 - Laranjeira quando se planta dois dias antes da lua nova, ficará dando com dois anos. 21 - Ao plantar o mamão, bota-se na cova açúcar e farinha para ele sair carnudo e doce.
3 - ROÇAS
1 - Ao plantar o inhame, deve-se colocar cinza na cabeça dele para não apodrecer. 2 - Para conservar feijão, mistura-se com mel. 3 - Para que o fumo colhido seja bom é preciso que a mulher não pegue nele. 4 - No lugar onde mora amancebado, fumo não dá. 5 - Chão de casa velha é lugar bom para plantar fumo. 6 - Não se deve apontar a melancia ou a abóbora com o dedo senão ela não “vingará”. Deve-se fazê-lo com a mão fechada, dando “figa”. 7 - Quando se planta o milho com raiva ele sai banguelo. Para nascer “cheio” é preciso que a pessoa esteja alegre e cantando. 8 - Mandioca ou macacheira plantada na segunda ou na sexta-feira não “vigam”. 9 - Abóbora (gerimum) plantado de manhã não produz, nquanto que de tarde dá muito. 10 - Quando os gerimuns não seguram, põe-se um dos que caíram em cima da cabeça d eum toco que fique no roçado e seja visto por todos. 11 - Ou coloca-se a “figa” (fruto verde) em cima da cabeça de uma pessoa.
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12 - Ao enrolar as folhas de fumo nenhuma mulher “incomodada” deverá chegar perto para não arruinar o fumo. 13 - Roçado plantado dentro de outro, formiga não destroi. 14 - Para conservar o feijão mistura-lo com barro, banha, pimenta ou mercúrio. 15 - Contra olhos grandes no roçado, colocar uma caveira de boi espetado num pau. 16 - Ao se plantar melancia não se deve falar com ninguém. 17 - Melancia só se planta de tarde para não ramar demais e dar boa produção. 18 - Feijão semeado na segunda-feira só dá folhagem. 19 - Se se encontrar uma espiga de milho com 15 carreiras a pessoa que plantou enriquecerá. 20 - Para não dar gorgulho no milho colocar no meio do saco uma garrafa cheia d‟água e bem arrolhada. 21 - Para a lagarta na rokça reza-se a estrela do céu. (Reza muito conhecida que começa: Estrela do céu que salvou o Senhor, etc.). 22 - Ou então vê-se o rastro do amancebado e coloca-se nos três aceiros do roçado, deixando-se um sem botar. A lagarta desaparece. 23 - Feijão e milho, plantados sexta-feira da paixão à tarde dá melhor. 24 - Para o gerimum segurar, corta-se um miudinho e diz-se que se vai vender na feira. 25 - Fumo deve ser semeado dia da Hora e se arranca para plantar de S. João para Santana (Julho). 4 – HORTALIÇAS, VERDURAS E FLORES
1 - Plantar alho no quintal faz mudar o dono da casa. 2 - Alho – abril não veja nascer. Maio não veja plantar. 3 - Quando se planta a pimenteira de cócoras ela fica chata e ruim; quando se planta de nádegas para o sol a pimenta é grande e boa. 4 - Para a pimenta ficar ardosa é preciso urinar no pé da pimenteira. 5 - Plantando dente de alho na véspera de S. João ele nasce no outro dia. 6 - Para evitar passarinhos nas sementeiras, colocar um pano branco numa vara. 178
7 - Quando se planta dente de alho na véspera de S. João e ele não nasce, a pessoa não casa. 8 - Plantar sabugueiro na horta é bom porque livra do mau olhado. 9 - Plantar coentro faz também a pessoa se mudar. 10 - Para uma roseira florar deve-se surrá-la com uma vara. 11 - Noite de S. João, o cacto bota flor.
5 - FORMIGAS
1 - Para acabar com as formigas, mandar celebrar uma missa em sua intenção (*****) 2 - Para acabar com um formigueiro, enterrar junto dele um animal morto. 3 - Para o mesmo fim, colocar um sapo morto no formigueiro. 4 - Ou plantar nele uma bananeira. 5 - Também com a mesma finalidade, matar um gato preto e infincá-lo no formigueiro. 6 - Para que a formiga não toque numa roça, deve-se dizer ao plantá-la: Eu vou plantar mandioca e macacheira para a formiga. 7 - Para as formigas abandonarem uma propriedade, deve-se assistir todo o dia 1o de Agosto de cada ano uma missa em homenagem a S. Pedro Advincola. 8 - Faz o mesmo efeito rezar a “Estrela do Céu”. 9 - Para não dar formiga num roçado planta-se em três aceiros do mesmo uma maniva ou três caroços, deixdando o último aceiro sem nada. 10 - Para não dar formiga numa roça reza-se uma Salve Rainha até a palavra “desterro”. 11 - Para acabar com formiga enterra-se uma cobra morta no formigueiro. 12 - Também se usa aterrar os buracos com areia ou cinza. 13 - Ou enterrar gordura no formigueiro. 6 – VACA E BOI
*****
Na Nova Floresta, do Padre Manuel Bernardes conta-se um episódio que justifica a superstição ou uso popular das missas para acabar com as formigas.
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1 - Quando mais largo é o “escudo” da vaca, melhor leiteira ela é. 2 - Quanto mais o “paridor”, também melhor leiteira será. 3 - Quando uma vaca dá parto gemelar é agoiro para a fazenda. 4 - O chifre de boi colocado no alto da porta dá felicidade. 5 - Deiar o leite secar ao fogo faz secar o úbere da vaca. 6 - Para evitar que cobra morda o gado, colocar uma mochila com arsênico no chifre das reses. 7 - Para livrar de “olhos grandes” na vacaria colocar um chifre na porta. 8 - Também uma “figa”. 9 - Para que a criação aumente prega-se no batente superior da porta uma cruz. 10 - Para envenenamento de herva, dar de beber ao animal água de lavagem das partes da mulher. 11 - Para evitar boi bravo, coloca-se uma folha de capim debaixo da língua, não havendo mais perigo. 12 - Quando se tange um boi e ele não quer andar, corta-se a seda (cauda) do boi e bota-se no bolso. Sai-se na frente puxando o boi e ele seguirá sem trabalhos.
7 - GALINÁCEOS
1 - Galinha que canta como galo, é sinal de desgraça em casa. 2 - Para os ovos não gorarem por causa das trovoadas deve-se colocar um pedaço de ferro nos ninhos. 3 - Ou então um pedaço de carvão. 4 - Quando dois pintos amanhecem brigando, chega visita em casa. 5 - Ao se deitar ovos, não se deve colocar 15 no ninho porque assim não saem. 6 - Para que nasçam pintas, deve-se colocar um pedaço de roupa de homem no ninho. 7 - Quando se mata uma galinha e ela não tem fel, é que foi deitada numa sexta-feira.
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8 - Quando a casca da moela da galinha é dura, é que é sovina a dona da galinha. 9 - Para evitar a “morrinha” no galinheiro, corta-se o pescoço da galinha que morreu e enterra-se debaixo do poleiro. 10 - Para que os pintos se criem fortes deve-se defumá-los queimando as cascas dos ovos de onde nasceram. 11 - Para apressar a saída dos pintos de uma ninhada, queima-se a casca do 1o pinto que tiver saído. 12 - Quando o galo canta fora de hora é sinal de moça roubada. 13 - Os ovos pequenos, que contêm somente clara são tidos como postos pelos galos quanod ficam velhos. 14 - As almas que saem a penar à noite se recolhem quando ouvem o canto do galo preto romanisco que é o último que canta. 15 - Também quando galo canta fora de hora é agouro para o dono da casa. 16 - Quando se deitam 20 ovos da mesma galinha pode-se saber quais sairão machos e quais fêmeas, os de ponta comprida, serão machos. 17 - Para criar peru é preciso alimentá-los na mão, fazendo com esta um movimento de elevação a fimd e que os perusinhos cresçam depressa. 18 - Quando o galo preto romanisco (preto com os pés e bico vermelho) canta, o diabo não daça no terreiro. 19 - Para os pintos romperem depressa a casca do ovo é bom salpicá-los com álcool no momento da eclosão. 20 - Para castar o pinto, tira-se o “azeiteiro” e passa-se cinza. 21 - Ao castrar frango se a pessoa passar a mão na virilha é fatal, o frango morre. 22 - Para acostumar uma galinha em casa pega-se da mesma e passa-se em cruz ao fogo, dizendo: tua casa é esta. 8 – OUTROS ANIMAIS 1 - Para habituar cabras num lugar, cortar a ponta do rabo e dizer: “Pega, cabra, teu chiqueiro”. 2 - Criar capote dá desgraça. 181
3 - Criar pombos atrasa o dono da casa. 4 - Quando os pombos começam a morrer, é melhor acabar a criação. 5 - Não se deve chamar pato pelo nome, mas pelo nome de “cão”. 6 - Quando se olha para o céu e se veem nuvens escamadas é sinal de ano de camarão. 9 – DOENÇAS DE ANIMAIS EM GERAL
1 - Para diarreia de bezerra dar leite de bananeiras. 2 - Para expulsão de placenta demorada amarra-se no pescoço do animal uma tira de camisa de mulher. 3 - Para gogo de galinha dar maná, azeite doce, angico ou buxa na água. 4 - Para bezerro com diarreia – dar café com sal. 5 - Para reumatismo de animal passar banha de camaleão, de giboia ou cascavel. 6 - Para diarreia de bezerro (Curso branco ou preto) colocar 01 colher das de sopa de cal num litro d‟águaq renovando-a uma vez. Dar uma chícara ao bezerro. 7 - Para mal de anca e tuberculose do gado, dar o velame pisado em clister. 8 - Quando a galinha está ameaçada do “triste” corta-se a unha e deixa-se o sangue correr. 9 - Para bicheira, vira-se o rastro, isto é, apanha-se uma pedra onde o animal tenha pisado em três logares diferentes e sacode-se acima da cabeça para trás, dizendo: Ave-Maria, 03 vezes. 10 - Ou então tira-se um pedaço de embira, e dá-se um nó. Depois sacode-se para trás dizendo: Ave Maria, 03 vezes. 11 - Tomar três pés de erva qualquer e apanhar com elas um pouco de terra que cobre o rastro, sacudindo para trás. 12 - Colocar nas bicheiras a batata tarará. 13 - Rezar: Assim como os padres, os oficiais de justiça, os pedreiros livres, os livreiros seguem para o inferno assim bicho de mosca, hás de cair de 01 em 01, de 02 em 02 etc. de 09 em 09 com os poderes de Deus, bicho nenhum. 182
10 – INDÚSTRIAS RURAIS
1 - Se a pessoa que tirar barro de um barreiro, para fabrico de tijolos ou telhas, enquanto estiver dentro dele soltar um “traque” o barreiro arruina e nunca mais dá telhas ou tijolos bom. Sai tudo “estrelado”. 2 - Se numa caeira de tijolos que estiver para queimar se colocar um talo verde entre dois tijolos, todos eles ficarão pretos. 3 - Se na fabricação do azeite de “carrapato” uma pessoa cuspir junto do azeite a ferver, ele queimará todo. 4 - Mulher “incomodada” não deve trabalhar na fabricaão do azeite. 5 - Para o azeite sair bom, faz-se uma cruz com vassourinha de botão verde e coloca-se dentro da vasilha onde se o fabrica. 6 - Óleo de carrapato ou qualquer azeite só se faz à meia noite na lua cheia, para ficar bom. 7 - Se uma pessoa gritar, durante a fabricação de azeite: Vamos nos embora, o azeite acaba. 8 - A mulher que estiver fazendo louça, se ficar “incomodada” a louça toda lasca ao sair do fogo.
BIBLIOGRAFIA
1 - Padre Antonio Delicado – Adágios Portugueses – Lisboa – 1923. 2 - Leonardo Mota – Adagiário Meteorologico – Jornal de Alagoas – 1908. 3 - Leonardo Mota – Adagiário e os vegetais – Jornal de Alagoas – 1908. 4 - Raul de Farias – Horticultura para Todos – Edição Sítios e Fazendas – S. Paulo. 5 - Silva Melo – Alimentação, Instinto – Cultura – Rio. 6 - André Varagnac – Civilisation traditioinnelle et geares de vie – Paris – 1948. 7 - Emil Novak – O que a mulher pergunta ao médico – Tradução – Rio – 1938. 8 - Getulio Cesar – Crendices do Nordeste – Rio – 1941. 9 - Pereira da Costa – Folclore Pernalbucano – Rio. 10 -
Sebastião Almeida Oliveira – Expressões do populário sertanejo – S. Paulo. 183
11 -
J. Leite de Vasconcelos – Tradições Populares de Portutal – Porto – 1882.
12 -
Teófilo Braga – O Povo Português – Lisboa – 1885.
13 -
Jaime Lopes Dias – Etnografia da Beira – 1o – 3o e 5o vols. – 1826-1929-1939.
14 -
Padre Manuel Bernardes – Nova Floresta.
15 -
Câmara Cascudo – Informação de história e etnografia – Recife – 1944.
184
O CAVALO DO FOLCLORE
Conquanto tenha sido o cão o primeiro animal a ser domesticado pela raça humana (e há ossos de cães nos resíduos do neolítico, há 8.000 anos antes de Cristo) foi o cavalo aquele cuja domesticação marcou para o homem uma etapa semelhante à que já fora assinalada pela descoberta do fogo e que mais veio a influir na história do universo. O seu papel, desde a época primitiva em que apareceu, foi domesticado e transformado em animal de tiro, carga e montaria até os tempos modernos em que a máquina a vapor, os motores atômicos – só pode ser bem avaliado se o pesquisador entrar no estudo das causas que tornaram vitoriosos tantos domínios de impérios, tantas migrações de povos, tantas conquistas guerreiras. Salomão, o sábio, só o foi e conquistou na sua época o apogeu para o império israelita porque resolveu desobedecer os preceits da lei mosaica e criou uma cavalaria, reunindo 52.000 animais em suas coudelarias. Maomé, como anteriormente os cartagineses, compreendeu que sem o cavalo não poderia estender suas doutrinas e aconselhou aos seus fieis o cuidado com o nobre animal: “pelos corceis que com seus cascos, ao golpear da terra, arrancam chispas”, diz o profeta do Islam no centésimo Capítulo do Corão. (1) E, como ele, todo os conquistadores: César dominando as Gálias e levando as águias romanas para além do Reno; Átila, o açoute de Deus, devastando a Europa com as patas de seu ginete, sob as quais nem a grama era capaz de medrar; Gengiskan levando suas horas até os confins da Ásia; Cortez conquistando o império de Montezuma com uma centena de homens e algumas dezenas de cavalos. Se o homem e a chamada civilização ocidental chegaram a todos os recantos da Europa, se várias vezes foi modificada a estrutura deste continente, se europeus vieram à América conquistando o vasto Far-West e dominando os pampas; tudo isto só foi possível com o auxílio do cavalo. Cavaleiros em Roma como na Idade Média eram parte da classe dominante e era privilégio, então, como até pouco tempo no Brasil, possuir-se um bom cavalo:
“Já sou velho, tive gosto, 185
Mrro quando Deus quizer; Duas coisas me acompanham: Cavalo bom e mulher.” E não só a espécie passa à história. Individualmente vários representantes do “Equos Cavallus” penetram na lenda e na própria história: Pégaso, o cavalo alado, que de uma patada fez brotar a fontre de Hipocrene que Camões celebrou; Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, que tinha medo da própria sombra; Sleipnir, o cavalo de Odin que deixou pela Europa Nórdica, nas rochas e pedras, as marcas de suas patas; e até mesmo Incitatus, o cavalo de Calígula, feito senador e consul do povo romano. Mixtos de homens e cavalos eram os Centauros, da Tessália, dos quais um – Chiron – foi um dos grandes médicos lendários da antiguidade. Não poderia, pois, o nobre bruto deixar de penetrar no folclore, tão íntima é a sua história, a sua vida, a sua marcha, através do tempo, com a marcha e a evolução de seu domesticador e senhor – o homem. E de tal forma que há certamente uma ciência popular concernente aos cavalos, ciência de que são conhecedores ciganos e trocadores de animais, especialmente aqueles indivíduos de “galvões”, ciência que por isso poderíamos chamar de ciência de “galvão”. (*) É na caracteriológica equiina que se inicia tal ciência. O conhecimento de um bom animal se faz, antes de tudo, pelos sinais. Há a regra famsa: “Um é bom, dois é melhor, três não presta, quatro é um gato, cinco é um brinco, seis é um reis, sete é uma peste e oito é uma flor; e o que bom for não terá sinal nem cor”. Particularizando, há outros sinais:
1 - Cavalo argel (pé direito branco) é manhoso (Gustavo Barroso diz que tras desgraça para si e para o dono (2). 2 - Cavalo cacete (sem sinal no membro) também. (Seg. G. Barroso não atravessa água). 3 - Se é cacete e argel, então é uma desgraça. 4 - Cavalo careta vê alma de noite. 5 - Igualmente é manhoso e bebe em branco. 6 - Cavalo bronzeado sem sinal é bom; tira o homem do perigo. 7 - Cavalo rudado que tem no pescoço espada até a orelha, é forte. *
“Galvão” ensina Gustavo Barroso (2), é um alveitar ou alquilador lendário que deixou aos sertanejos a célebre regra para reconhecer os sinais do cavalo.
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Afora estes sinais, é pela cor que se percebem os defeitos e qualidades como nestas parémias que se enocntram tanto em Alagoas quanto em todo o Nordeste como o documentaram Leonardo Mota e Mario de Andrade (3-4):
1 - Cavalo cardão rudado, nunca pode estar parado. 2 - Cavalo castanho andrinho sem sinal, tira o homem do perigo. 3 - Cavalo melado caxito, tanot é bom como é bonito. 4 - Cavalo gazeo-sarará, nunca prstou nem prestará. 5 - Cavalo cardão pedrez, prá carreira Deus o fez. 6 - Cavalo alasão, carga no chão. As indicações de cor não se encontram só nestas parémias criadas nos sertões, matas ou brejos do Nordeste. A paremiologia lusa já nos indicara outras:
1 - Cavalo rosilho, ou ditoso ou mofino. 2 - Cavalo fouveiro, ou à porta do alveitar ou do bom cavaleiro. forma que se transformou entre nós em:
Cavalo fouveiro, deixa o dono no terreiro. 3 - Cavalo alasao muitos o querem, poucos o hão. 4 - Cavalo ruço, corre o mole e o duro. que é o nosso:
Cavalo castanho escuro pisa no mole e no duro (Cavalo castanho escuro carga segura, no Ceará, seg. L. Mota. 5 - Alasão tostado, antes morto que cansado. 6 - Seja ruço o cavalo e seja qualquer. Saindo fora propirmente desta ciência tradicional tão útil aos trocadores de animais como àquela outra espécie de aficionados de que nos falou Mendonça Júnior numa de suas belas crônicas (5) “Os ladrões de cavalos”, é ainda a paremiologia que nos vai mostrar, atrvaés dele, a sabedoria multi-milenar dos povos.
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“Praga de urubu não mataq cavalo gordo” diz-se no Brasil. No mesmo sentido se exprimem os hespanhoes: “oracion de perro, no va al cielo” como italianos: “raglio d‟asino non arrivó mai in cielo” e franceses: “Prière de fou n‟est pas ecoutée”. E assim por diante, diz-se no Brasil, repetindo opiniões de povos vários da estranja; através do Pe. Delicado (7) e de Arthaber (6).
2 - Cavalo que vos não quer espora (Br.). Caballo que vuela, no quiere espuela (Esp.). Caval che corre non ha bisogno da sprone (It.). Cheval bon et trotier, d‟eperon n‟a pas metier (Fr.). Weeliches pferd sollman nicht spornen (Al.). 3 - Cavalo formoso, de potro sarnoso (Br.). De potro sarnoso caballo hermoso (Esp.). Di puledro scabioso, talvolta hai cavallo rezioso (It.). De poulain rogneux ou farcineux. Vient beau cheval et precieux (Fr.). 4 - Morar em casa que os outros fazem. Montar em cavalo que os outros amansam (Br.). Mulher e potro, feito por outro (Port.). Meglie e ronzino, pigliali dal vecino (It.). 5 - A cavalo dado não se abre a boca (Br.). A cavalo dado não olhes o dente (Port.). A caballo de presente, non se le mira el diente (Esp.). A cheval donné on ne regarde pas á la dent (Fr.). A caval donato non si guarda in bocca (It.). Noli equi dentes inspicere donati (Roma antiga). Einan geschenkten Gaul, Sieht man nicht ins Maul (Al.). 6 - Coices de garanhão, para égua carinhos são (Br.). Coices de égua, amores para rocim (Port.). Coces de yegua, amores para el rocin (Esp.). Calcio di cavallo non fece mai male a poledro (It.). Jamais coup de pied de jument ne fit mal á cheval (Fr.). 7 - Quem quer viver socegado Tenha mulher feia e cavalo capado (Br.). Quien buen caballo y bela mujer tiene, justo es que recele (Esp.). Chi ha buon caval e bella moglie non istá mais senza doglie (It.). 188
Qui a belle femme et chateau en frontière, jamais ne lui manque débat, ni guerre (Fr.). Ainda sem sair da paremiologia há que registrar os seguintes ditados em versos que nos parecem característicos de nossas plagas (si em tal assunto é possível acreditar em algo de característico) e que não encontramos registrados pelo saudoso e documentadíssimo Leota (10):
1 - Faca só armada, Cavalo só rudado, Morena só bonita, Do cabelo cacheado. variante da versão registrada em Viçosa por Aloizio Villa (11):
Dinheiro só trocado, Cavalo só rudado. 1 - Cavalo de beira de rio Mulher pequena chamada Maria, Cachorro cotó; Tudo é uma coisa só. que lembra a lição de Leota:
Cavalo rosio, Mulhé de beira de rio, Mandioca de leira, Tubida de aroeira, Tudo na enfieira, O diabo que queira. 3 - Cavalo de cara branca, Homem chamado Messia Mulher de quarto empinado, Tibi, vôte, Ave Maria. Embora o seu forte seja realmente o adagiário, não ficam a ele reduzidas as referências ao cavalo. 189
Na poesia e no trovário se diz:
Cavalo grande é trangola, Pequenino é perereco, Mulher grande é gamelão, Pequenina é uma boneca. Ouvi tropel d cavalo, Ouvi cancela bater; Meu lindo amor é iáiá, Meu lindo amor é você. De quatro coisas no mundo, Já ando muito abusado, Trocá cavalo na feira, Fazê negocio fiado, Andá com gente ruim, Dá murro em cabra safado. Há quatro coisas no mundo Que aperreia um cristão: É uma casa gotejante, É um cavalo chotão, É uma mulher ciumenta, É um menino chorão. Mas pra tudo isso há geito: A casa se arretêia, O menino se acalenta, O cavalo se negocéia, E a mulhé ciumenta Se emenda passando a pêia. No domínio das superstições anotamos as seguintes para evitar que os cavalos se assombrem nas estradas:
1 - Puxa-se o punhal e coloca-se entre as orelhas do animal ou 2 - Faz-se uma cruz nos beiços do cavalo. e entre os remédios supersticiosos para os animais: 190
1 - Para dor de barriga de cavalo, passa-se uma mão de pilão em cruz na barriga. 2 - Ou dá-se clister de cozimento de feijão de corda pisado. Na mística, ele nos aparece sob a forma de Zumbi de Cavalo, mito até hoje só registrado em Alagoas por nós próprios e constantes das notas sobre mitos alagoanos que se encontram na obra de Câmara Cascudo – Geografia dos Mitos brasileiros (8): “No lugar onde tenha morrido um cavalo não passa ninguém à meia noite porque se passar aparece o zumbi (alma dos bichos) do cavalo, que vai crescendo, crescendo, até matar o indivíduo.”
crença que Cascudo, nos eruditos comentários que apõe às citadas notas, informa que espíritas e metapsiquistas procuram explicar. No Golclore infantil, também se encontra referência ao cavalo na conhecida cantiga de Garibaldi que entre nós se transfrormou num brinquedo:
Garibaldi foi à missa Num cavalo sem espora, O cavalo escorregou, Garibaldi saltou fora. estrebilho:
Um, dois, três Quatro, cinco seis, Sete, oito, novembro Para doze faltam três Garibaldi foi à missa Num cavalo alasão; O cavalo escorregou, Garibaldi foi ao chão. estrebilho:
Um dois, tres, etc.
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E por fim vem o anedotário que é fértil em “casos” em que aparece o cavalo como no célebre “cavalo do inglês” que se não tivesse morrido teria se acostumado a passar sem comer, o cavalo que quando deu três “topes” fez o caboclo morrer (Alfr. Brandão) (9) ou a anedota do breve para o parto, conhecida em outros estados, mas que aqui em Alagoas estava assim redigido:
“Coma eu e o meu alazão, E a mulher que para eu não.” e, para finalizar estas notas, a anedota do cavalo que era “esquerdo”. “Todo cavalo esquerdo isto é, todo cavalo que tem as crinas pendidas para o lado esquerdo, é manhoso”. Ora, havia num engenho um vaqueiro que era “galvão”, conhecedor profundo de tudo quanto era cavalo, sinais, defeitos e bondades possuiam os equídeos. O senhor de engenho querendo por à prova a competência do vaqueiro, acostumou, desde novinho um potro esquerdo que possuía, mandando desde então virar a crina para o lado direito. Quando já era cavalo, com a crina acostumada para a direita, entregou, o senhor de engenho, o cavalo ao afamado vaqueiro. Este passou a perna no animal, andou, correu um pouco, chegou-lhe as esporas e as rédeas e voltou para o amo com a opinião:
“É bom cavalo, capitão...”
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