Historia imperial e pos modernidade silvio cesar

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1 Sílvio César da Silva de Carvalho Alexandre Gilberto Sobreira (Orgs.)

História imperial e pós-modernidade (alguns elementos de discussão)

CAPA

COLONIA LEOPOLDINA – AL 2010


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COLEÇÃO - COLÔNIA LEOPOLDINA SÉRIE 1 – História e Filosofia

Volume 1 - História imperial e pós-modernidade (alguns elementos para discussão) Alexandre Gilberto Sobreira Sílvio César da Silva de Carvalho

SÉRIE 2 – Geografia Volume1 – COLÔNIA LEOPOLDINA (AL): situações político-ambientais. José Francisco de Melo Neto

Maria Betânia Alves dos Passos Marília Gabriela da C. Gomes


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APRESENTAÇÃO

No início deste ano, vários professores e professoras reuniram-se para conversar sobre a possibilidade de edição de seus trabalhos monográficos, trabalhos de conclusão de seus cursos superiores. A partir daí, avançou-se na conversa de tornar isso uma atitude permanente, no sentido de se utilizando, a posteriori, verbas públicas de um fundo de cultura, existente na cidade, dando a esses recursos disponíveis na Prefeitura uma aplicação acadêmica, a partir da produção de conhecimentos dos filhos da cidade ou até de conhecimentos sobre a própria Colônia Leopoldina. Dessa forma, a conversa alongou-se para algo mais ambicioso, ou seja, a criação de uma Coleção Colônia Leopoldina, com séries variadas, no campo das ciências humanas, ciências naturais e tecnologia. Com essa disposição, esses profissionais resolveram iniciar com a criação de duas séries, dentro da coleção: uma voltada à filosofia e história, e outra à geografia. Este é apenas um início para outras possibilidades de séries, a exemplo do campo da matemática ou da biologia, letras, química, enfim... aos demais campos do conhecimento. Com o seu próprio material inicial monográfico, o grupo resolveu organizar os dois primeiros livros das séries – filosofia e história e da série geografia. A vontade maior é que isto se torne realmente possível para os demais profissionais que já concluíram os seus cursos, podendo também mostrar aquilo que produziram em seus estudos - os seus trabalhos finais de cursos de graduação. Este livro representa o primeiro trabalho monográfico de conclusão de curso de graduação, mas a Coleção Colônia Leopoldina também vislumbra a produção de livros resultantes de pesquisas monográficas em nível de especialização, monografias de mestrado (dissertação) e monografias de doutorado (tese), superando as simples apresentações desses trabalhos diante das bancas de análises dos mesmos. Esta coleção mira a socialização dos produtos culturais acadêmicos, muito para além do destino da maioria desses trabalhos que é a prateleira de


4 escondidas e desconhecidas bibliotecas. O desejo é que a produção de autores de Colônia ou sobre a cidade, possam se espalhar na própria cidade, na região, no Estado e, quiçá, no país, mostrando que daqui também se é possível pensar e agir sobre o mundo. Esta coletânea é constituída de dois textos monográficos. O primeiro – Pós-modernidade: desconstrução ou continuidade? – tem como autores Sílvio Cesar da Silva de Carvalho, Paulo Roberto dos Santos e Maria de Fátima da Silva, promovendo uma análise de fundo teórico e filosófico sobre o sentido de moderno e pós-moderno, alinhando-se ao pensamento de que a modernidade ainda não se realizou completamente, e, portanto, distanciando-se do discurso dos pós-modernos. Seus autores perfilam-se a um ideário de modernidade que ainda procura cumprir as suas promessas. Aceitam um discurso de uma neomodernidade, mostrando que as conquistas que se têm, até o momento, foram conquistas modernas, no campo social, político e cultural. Todo algo novo que tem surgido continua imbuído da temática geral moderna. Portanto, deixa de ter sentido o discurso pós-moderno. O segundo texto – Mutações nas esferas sociais do Brasil - 1808, do professor Alexandre Gilberto Sobreira, e das professoras Manuela............ e Marília Pereira Silva, é uma produção no campo da história, particularmente na historiografia da Corte portuguesa no Brasil. Assume uma posição de que há muita importância dessa transferência para o Brasil, mostrando, inclusive, que esta foi uma atitude deliberada e não simplesmente ocasional, como defende alguns historiadores, condicionada pela conjuntura política da Europa, naquele momento. São trabalhos que merecem leitura, sim, podendo transformar-se em material de futuras pesquisas dos jovens estudantes e, de forma singular, aos estudantes leopoldinenses. Oxalá, que seja bem lido e discutido no ambiente da cidade e das escolas.

Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto Professor Titular da Universidade Federal da Paraíba - UFPB


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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

1. PÓS-MODERNIDADE: DESCONSTRUÇÃO OU CONTINUIDADE? Maria de Fátima da Silva Paulo Roberto dos Santos Sílvio César da Silva de Carvalho

2. MUTAÇÕES NAS ESFERAS SOCIAIS DO BRASIL – 1808 Alexandre Gilberto Sobreira Manuela da Silva Cobeu Marília Pereira Silva


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1 PÓS-MODERNIDADE: DESCONSTRUÇÃO OU CONTINUIDADE?

Maria de Fátima da Silva Paulo Roberto dos Santos Sílvio César da Silva de Carvalho

INTRODUÇÃO

Sentimos nos dias atuais mudanças em diversas áreas sociais e culturais, tornando a realidade e a existência em algo transitório e fugidio, já que o desenvolvimento tecnológico e científico avança a cada momento, rompendo as próprias noções de possível e impossível. Nos discursos universitários, ouvimos debates calorosos sobre a existência de uma pós-modernidade, caracterizada pela criticidade acerca da modernidade. Por falar em universidade, nosso interesse em pesquisar e escrever sobre o tema da suposta pós-modernidade nasceu durante as aulas no Curso de História pela FAMASUL1, onde grande parte de nossos professores utilizava o termo pós-moderno, às vezes sem o devido conhecimento do próprio, como algo natural nos dias atuais. Assim, foi nesse pano de fundo que iniciamos nossa pesquisa, procurando

entender

profundamente o porquê de grande parte de pessoas, em sua maioria inteligentes, utilizarem a idéia de pós-modernidade. No primeiro capítulo dessa pesquisa, apresentamos a definição de modernidade, baseada em Max Weber, para a qual a mesma representa a dessacralização do mundo religioso, possibilitando o surgimento de esferas

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FAMASUL – Faculdade de Formação de Professores da Mata Sul, Palmares, PE.


7 autônomas nos âmbitos social e cultural. Na esfera social, a modernidade fez surgir a economia capitalista e o Estado moderno, tendo variações temporais, como diferenciações no capital e na forma com que a política estatal se caracteriza. Na esfera cultural, a modernidade e a racionalização cultural fizeram surgir uma ciência autônoma, uma moral universal, uma arquitetura funcional e outras manifestações. Tanto a esfera social quanto a cultural são regidas, a partir da modernidade, ou seja, pela quebra da lógica da esfera religiosa das épocas pré-modernas. São baseadas no processo da racionalização, isto é, a razão torna-se o motor da história. A razão moderna ou iluminista promete a humanidade a liberdade, a isenção de julgamentos fundados em superstições e crendices, a legitimação de uma moral capaz de agir de maneira coerente e coesa, uma política democrática proporcionadora de melhores dias e de uma economia racional, que dependendo do grau de interferência do Estado, este baseado na profissionalização e na burocratização e não mais no poder da linhagem, traria a todos as condições de viver de forma satisfatória. No segundo capítulo, trabalharemos o conceito de pós-modernidade, onde, utilizando os pensamentos de Frederic Jameson, David Harvey, Michel Foucault e Jacques Derrida, definindo o conceito de pós-moderno. Para os defensores da pós-modernidade, ela se define como a crítica à modernidade, onde a economia é pós-industrial, baseada na predominância do setor terciário sobre o secundário, onde a política não é mais governada pelo grande personagem político e pelos partidos, mas por grupos micrológicos e segmentares. A ciência pós-moderna é caracterizada pelo dissenso e pela paralogia, sem fundamentação nas metanarrativas da filosofia especulativa moderna. A arte pós-moderna recorre ao pastiche, mesclando traços antigos com novos, dando importância à abstração e não mais ao artista genial, preocupado com o novo. A moral na pós-modernidade seria caracterizada pela descentralização em interesses particulares. No

terceiro

rouanetiano,

a

capitulo,

conceituação

abordaremos, de

baseados

neomodernidade,

no

onde

pensamento pela

mesma

discutiremos a apresentaremos que a atualidade não é movida por uma pós-


8 modernidade, mas por uma nova modernidade, não mais baseada na ingenuidade do Iluminismo, mas consciente de que a razão pode ser vítima da desrazão e da não-razão, num modelo de análise construído a partir de Karl Marx e de Sigmund Freud. Assim, será que estamos, apesar de reconhecermos as modificações sentidas nas esferas sociais e culturais, vivenciando uma pós-modernidade, ou estamos ainda na modernidade, mas sendo afetados por uma razão mais consciente de suas limitações? Em outras palavras, há uma real ruptura com a modernidade pela pós-modernidade, ou é uma falsa consciente, proporcionada pela tentativa de fugir das ocorrências funestas proporcionadas pela razão moderna?

1 A MODERNIDADE

1.1 Conceito de modernidade

Conceituar ou mesmo estabelecer um período para o início da Modernidade é algo que se coloca como necessário, pois falar de uma “suposta posterioridade moderna” exige ressaltar primeiro as perspectivas da própria Modernidade. Torna-se também indispensável a colocação de que existem diferenciadas determinações conceituais e temporais sobre a Modernidade. Assim, tomaremos como guia principal o pensador alemão Max Weber, que é considerado o principal formulador do conceito de Modernidade de acordo com a historiografia. Contudo, recorreremos a posteriori, a discurso de outros pensadores também importantes para a apreensão do conceito. Mesmo sabendo do risco de perioditizar o início de uma época, Weber estabelece o ano de 1784 como o momento do nascimento do discurso filosófico da modernidade: em 1784, Kant tornou público seu ensaio O que é o Iluminismo, no qual apresentou a filosofia interrogando-se sobre si mesma e sobre a atualidade, pois, até a divulgação do texto kantiano, o presente era visto somente em suas relações com o passado clássico. A partir daí a atualidade se transforma em objeto de tematização autônoma,


9 permitindo-se, à filosofia debruçar-se sobre o aqui e agora 2 abandonando as verdades eternas.

Historicamente o projeto civilizatório instaurado pelo Iluminismo afirmava a razão e o método científico como as únicas fontes de conhecimento válido, rejeitando qualquer concepção de mundo derivada do dogma, da superstição e da fantasia, sustentando-se em três ingredientes conceituais, quais sejam: a universalidade, a individualidade e a autonomia. O projeto visava todos os homens, enquanto pessoas concretas, independentemente de fronteiras nacionais, étnicas ou culturais, mas, ao mesmo tempo, tais pessoas deveriam agir por si mesmas, participando ativamente de um projeto público e adquirindo por seus próprios meios às condições de subsistência.3 Em

linhas

gerais,

enquanto

proposta

emancipatória,

estava

condicionada à determinação racional dos fins no debate e na efetivação de valores julgados belos, justos e verdadeiros. Na medida em que saudava a criatividade humana, a descoberta científica e a busca de excelência individual, em nome do progresso, acolhiam o turbilhão das mudanças, da transitoriedade e da fragmentação, sem as quais a modernização não poderia se realizar. A Modernidade, tal na perspectiva weberiana, um guia seguro de conceituação, é o resultado daquele processo de racionalização preconizada pelos pensadores iluministas – ligação do conhecimento patrocinado pelas ciências com valores universais de progresso social e individual – que redundou em enormes modificações não só na sociedade como também na cultura, caracterizando-a como um processo crescente de racionalização intelectualista, intimamente ligado ao progresso científico, que leva ao desencantamento do mundo. Vejamos o que Jürgen Habermas nos diz, comentando Weber: Max Weber caracterizou a modernidade cultural, mostrando que a razão substancial expressa em imagens de mundo religiosas e metafísicas se divide em três momentos (mediante a forma de fundamentação argumentativa) ainda podem ser mantidos juntos. Uma vez que as imagens de mundo se desagregam e os problemas ligados se cindem entre os pontos de vista específicos da verdade, da justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratados, respectivamente como uma questão de conhecimento, como questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos 2 3

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968, p. 30. Ibidem, p. 31.


10 tempos modernos uma diferenciação de esferas de valor: ciência, 4 moral e arte.

O conjunto de idéias e perspectivas que caracterizam a Modernidade constituiu um grande sonho que a humanidade elaborou para si mesma, ou ainda um ambicioso projeto da Razão como libertadora. O discurso iluminista de emancipação pela revolução, ou pelo saber, sustenta essa confiança na capacidade da Razão. Habermas chama a atenção para o que ele denomina de “projeto da modernidade”, e que tem sido amplamente discutido na atualidade, como demonstra David Harvey: embora o termo moderno tenha uma história bem mais antiga, o que Habermas chama de projeto da modernidade entrou em foco durante o século XVIII. Este projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas. A idéia era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livremente e criativamente em busca de emancipação humana e do 5 enriquecimento da vida diária.

A aplicação ampla da racionalidade na organização social prometia a segurança de uma sociedade estável, democrática, igualitária (incluindo o fim de Estados teocráticos, de perseguições sociais produzidas pela superstição, de abusos de poder por parte dos governantes, etc). A possibilidade de domínio científico representava o aceno de uma ambiciosa segurança, que nos afastaria dos infortúnios ligados a imprevisibilidade do mundo natural, desde condições climáticas e de relevo, a doenças físicas e mentais: a natureza deveria submeter-se ao poder da Razão humana. Assim,

a

modernidade

é

a

racionalização,

é o

processo

de

desencantamento do mundo que implicou a modernização da sociedade e da cultura, em detrimento da decadência do domínio da religião no final da Idade Média, proporcionando o surgimento de esferas sociais de valor próprio, que passaram a explicar, a dar valor a salvação no mundo de maneira especifica. A esfera política, a econômica, a estética, a erótica, a intelectual, ou seja, todas as esferas sociais e culturais de valor emergidas a partir da decadência do domínio religioso (pois todas essas esferas estavam embutidas 4 5

HABERMAS, Jürgen. Modernidade: um projeto inacabado. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 25. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 19.


11 em uma única esfera então dominante, a religiosa) passaram a ver o mundo de uma forma específica, racional, seguindo leis próprias, racionalmente formuladas, dando um sentido à vida através da salvação do mundo, do sucesso mundano, seja ele político, econômico, artístico, amoroso ou intelectual, produzindo uma tensão cada vez maior com a esfera religiosa, que foi sendo percebida cada vez mais como irracional pela crescente modernização e racionalização do mundo.6 Esse desencantamento do mundo, ou seja, a decadência do domino religioso, provocada pelo surgimento das esferas sociais racionalmente estabelecidas, causou uma tensão muito grande entre a religião e as esferas de valores mundanos. As religiões tiveram que se adaptar às mudanças sociais que estavam ocorrendo, ora rejeitando o mundo, ora negando-o. As religiões que rejeitam o mundo (Weber as chama de místicas) se colocam à parte de todo tipo de contato com as esferas sociais. Os fiéis acreditam que Deus está presente neles, o que torna desnecessária qualquer atitude em relação ao mundo e, por isso, eles assumem uma postura contemplativa e possessiva. Já as religiões que negam o mundo7 buscaram agir nas esferas sociais, pois para eles a salvação seria anunciada pelo sucesso no mundo ou pela tentativa de melhorá-lo. A diferença está, então, no terreno da ação. as religiões ascéticas se formaram no Ocidente, ou melhor, na Europa ocidental, são de extrema importância para a modernização, pois se por um lado só se formaram por causa da modernização do mundo, por outro a modernização do mundo só foi possível por causa dessa posição ascética. De acordo com Max Weber, o espírito do capitalismo, ou seja, a valorização das coisas mundanas, sejam elas o dinheiro, o lucro, o comércio, a exploração na esfera econômica, a formação de Estados nacionais, a luta pelo poder, a legitimação do uso da violência, a organização social seguindo leis racionais na esfera política, a valorização da forma em detrimento do conteúdo na esfera artística, o prazer sexual, que ao longo da história foi sublimado e consequentemente erotizado, sendo considerada a maior força irracional mundana na esfera erótica, a crescente cientificização do mundo, a explicação de fatos até então inexplicáveis, o desenvolvimento perigoso da esfera intelectual que jogava a esfera religiosa para o campo do irracional, só foram possíveis pelo desenvolvimento do ascetismo, que conseguia unir a 8 vida mundana e o desejo de salvação.

6

WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. São Paulo: Cultural, 1974, p. 16. Segundo Weber, o protestantismo foi a religião que manteve sua postura ascética correlacionada com o mundo material, com a intenção de alcançar a salvação da alma com ações no próprio mundo material. (C. f. WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. São Paulo: Cultural, 1974, p. 17). 8 WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. São Paulo: Cultural, 1974. p. 18. 7


12 Tais representações religiosas ainda rejeitavam o mundo, ou seja, viam a vida secular como uma passagem, mas também defendiam que para realizar a passagem seria preciso obter sucesso nesta vida. Weber, para demonstrar como ocorreu o processo de racionalização do mundo, distingue três tipos de racionalização: a da sociedade, a da cultura e a do sistema de personalidade. A

racionalização

da

sociedade

é

vista

por

Weber

como

a

institucionalização da economia capitalista – uma organização funcional orientada para os preços monetários que se originam nas lutas de interesses dos homens de mercado – e do Estado moderno – uma associação burocrática que pretende o monopólio do uso da violência. Já a racionalização da cultura significa um conjunto complexo de eventos que envolvem a progressiva diferenciação e formalização das esferas culturais de valor, que são a ciência, a moral, o direito, a filosofia e a arte. Já a racionalização do sistema de personalidade ocorre pela crescente necessidade de se adaptar a um estilo racional e metódico de vida.9 Segundo Luiz Bernardo Leite Araújo, podemos distinguir dois grandes impulsos de racionalização: a racionalização das imagens de mundo e a conversão da racionalização cultural em racionalização social. daí, as estruturas modernas de consciência passam do plano da cultura ao do sistema de personalidade, e, em termos de tipo ideal, encarnam-se em um agir racional com respeito a valores e simultaneamente racional com respeito a fins, um tipo de ação que se exprime num estilo metódico de vida. Este tipo completo de ação, que reúne as ações racionais de valores e fins, realiza amplamente 10 aquilo que Weber chama de racionalidade prática.

Ou seja, a racionalização cultural leva ao surgimento de três tipos distintos: a ciência moderna, a arte autônoma e os domínios do direito e da moral, que se convertem em racionalização social com o agir com respeito a valores e com o agir com respeito a fins. A união dessas duas formas de agir proporciona a racionalização da conduta de vida, que se exprime em um estilo metódico de vida, realizando o que Weber caracteriza de racionalidade em sua forma pragmática.

9

Ibidem, p. 18. ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. Religião e modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996, p. 122. 10


13 Entretanto, no século XVIII, com o iluminismo e com a teoria de Hegel, o conceito de modernidade muda um pouco seu significado. A conceituação profana de “tempos modernos” de Hegel expressa, segundo Habermas, a convicção de que o futuro já começou, a idéia de progresso e de desenvolvimento acelerado. Habermas escreveu em relação a esse ponto. um presente que se compreende a partir do horizonte dos novos tempos, como a atualidade da época mais recente, tem de reconstruir a ruptura com o passado como uma renovação 11 contínua.

É nesse aspecto que, no século XVII, o conceito de “movimento”, juntamente com as expressões “modernidade” ou “novos tempos” se insere ou adquire os seus novos significados, válidos até hoje, como revolução, progresso,

emancipação,

desenvolvimento,

crise,

espírito

de

tempo,

autocientificação, autofundamentação e autocompreensão. Essas expressões são palavras-chaves na filosofia hegeliana e lançam luz ao problema que põe à cultura ocidental com a consciência histórica moderna, isto é, a modernidade tem que extrair dela própria a sua normatividade, pois ela não pode tomar modelos de outra época, o que explica a suscetibilidade de sua autocompreensão, a dinâmica das tentativas de afirmar-se.12 É nesse sentido que David Harvey afirma a modernidade com aspectos da transitoriedade, do fugidio, do contingente, sendo uma metade da arte, onde a outra é o eterno e o imutável, onde elucida essa caracterização fragmentária da modernidade: há uma modalidade de experiência vital – experiência do espaço e do tempo, do eu e dos outros, das possibilidades e perigos de vida – que é partilhada por homens e mulheres em todo o mundo atual. Denominarei esse corpo de experiência de modernidade, ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo, e ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. Os ambientes e experiências modernas cruzam todas as fronteiras da geografia e da etnia, da classe e da nacionalidade, da religião e da ideologia; nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade está em toda a humanidade. Mas trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos 11 12

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Ática, 1998, p. 111. ___________________. Modernidade: um projeto inacabado. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 27.


14 arroja num redemoinho de perpétua desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser 13 parte de um universo em que tudo o que é sólido desmancha no ar.

Para David Harvey14, a vida moderna estava de fato tão permeada pelo sentido do fugidio, do efêmero, do fragmentário e do contingente, na medida que a modernidade não respeitava o seu passado, para não falar de qualquer ordem social pré-moderna, caracterizando assim implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes. Rompendo com o passado drasticamente, em linhas gerais, a modernidade esboça a formulação do eterno e do imutável na própria reprodução do poder humano alcançado pela racionalização social e cultural. Assim, o domínio científico da natureza prometia liberdade de escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais, onde o incremento de forças racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, de religião, da superstição, liberação do uso arbitrário de poder, bem como do lado sombrio da natureza humana.15 O

conceito

de

modernidade

em

Baudelaire

é

essencial

para

entendermos o que Hegel havia definido como modernidade. A obra de arte, para Baudelaire, não deve seguir influências do passado, ela tem que ser autêntica em todos os aspectos. Ela se autofundamenta, tira dela própria suas regras, seus conceitos e sua legitimidade. Nesse sentido, ela rompe ou pelo menos tenta romper com o passado, com as imitações dos modelos clássicos, ela tem seu olhar voltado para o futuro. A obra de arte é produzida pelos ditos artistas de vanguarda, que acreditavam caminhar no totalmente novo, quebrando todas as barreiras.16 Assim, por isso que a arte moderna radicalizada nos surrealistas, que causa, ou causava na época, tanto assombro, os surrealistas expressam essa

13

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 21. David Harvey aborda temas como cultura, arte, arquitetura, urbanismo, cinema, tempo e espaço, como também as novas formas de interações econômicas, buscando estabelecer uma reflexão acerca da pósmodernidade e seus reflexos na sociedade contemporânea. (C.f. HARVEY, David. Condição pósmoderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 16). 15 Ibidem, p. 22. 16 BAUDELAIRE, Carles-Pierre. O artista moderno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 24. 14


15 idéia de forma total, pois eles matam o clássico, mostrando na obra de arte qual é o conceito de modernidade da época. Contudo, como é possível produzir o totalmente novo, sem influências do passado, e como saber se este novo é melhor que o passado? De acordo com Baudelaire, a modernidade é capaz de produzir o novo e este novo é melhor do que o passado porque é fundamentado no princípio da subjetividade, que se subdivide em quatro axiomas básicos: o individualismo – a singularidade infinitamente particular que faz levar as suas pretensões; o direito à crítica – cada um só pode aceitar o que lhe parece justificado; a autonomia da ação – somos responsáveis por nossos atos; e a filosofia idealista – que apreende a idéia que a consciência tem dela mesma.17 O indivíduo moderno é livre para criar, para refletir, e assim pode estabilizar-se com base nas cisões por ele mesmo produzidas, pode possuir uma relação consigo mesmo, sem recorrer a influências passadas. Os tempos modernos são marcados por essa subjetividade, uma subjetividade racional e dialética, capaz de produzir o novo.18 Então, conforme vimos até aqui, o projeto moderno pode ser dividido em duas fases. A primeira é a da fragmentação e da descentralização do mundo provocada pelo desencantamento do mundo, ou seja, pela crise da esfera religiosa e pelo surgimento de novas visões de mundo. Já a segunda fase busca uma reunificação do mundo, não mais em bases religiosas, mas na razão, processando a história pela racionalidade. O iluminismo e a teoria hegeliana defendem que a história não pode ser sem sentido, não pode ser mudança sem direção e significado. A história é governada pela racionalidade e esta só pode gerar moralidade, liberdade, justiça e igualdade, reunificando o mundo, explicando-o e dando um sentido para a própria história. Ao contrário do discurso religioso, a racionalidade utópica acelera a história em direção ao futuro de liberdade. A salvação está no futuro, na realização de todas as possibilidades humana, predominando a idéia de progresso, onde todos os aspectos da vida caminham na direção da perfeição humana. A modernidade é uma liberação de toda referência ao passado, 17 18

Ibidem, p. 27. Ibidem, p. 28.


16 justificada por um processo histórico coerente, unificado e acelerado da humanidade em direção ao futuro racional.

1.2 A modernidade social

A modernidade é o processo de racionalização que desencantou o mundo ocorrido na Europa no século XV, que implicou a modernização social e cultural. A modernidade social, abrangendo a esfera econômica e política se caracteriza

por

complexos

de

ação

autonomizados

que

escapam

crescentemente ao controle consciente dos indivíduos, através de dinamismos anônimos e transindividuais, que é na essência o processo caracterizado pela burocratização.19 A economia moderna pode ser descrita em sua fase evolutiva de acordo com o desenvolvimento sucessivo do capitalismo. Num primeiro momento, o capital estava limitado a espaços nacionais, fundamentado no liberalismo econômico clássico. Segundo a doutrina do liberalismo econômico, o espaço econômico deve ser dominado pela liberdade de iniciativa econômica, na livre circulação da riqueza, na valorização do trabalho humano e na economia de mercado (defesa da livre concorrência, do livre cambismo e da lei da oferta e da procura), opondo-se assim ao intervencionismo do Estado e a adoção de medidas restritivas e protecionistas pela política-econômica do mercantilismo, próprio do Estado Absolutista.20 Num segundo momento, a economia moderna é eivada pelos princípios da economia keynesiana, destacando sua manifestação monopolista ou imperialista, que procura anexar outros mercados. Nesta fase do capital, a economia não se encontra livre das interferências do Estado, pois para a economia keynesiana torna-se necessária a existência da função reguladora do governo para dirigir as ações econômicas. A economia moderna, em suas duas fases de desenvolvimento de acordo com o capital econômico, apresenta particularidades próprias que marcam sua distinção das formas econômicas pré-modernas, como a

19 20

ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 149. COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 273.


17 constituição de uma sociedade industrial e marcada pelo desenvolvimento tecnológico: a economia moderna pode ser caracterizada pelo desenvolvimento tecnológico de maneira consoante a periodização do capital econômico. Assim, na economia moderna clássica de cunho liberalista, o capitalismo de mercado, circunscrito a espaços nacionais, estar associado a produção tecnológica de motores a vapor a partir de 1848. Já na economia keynesiana, o capital se encontra associado a produção tecnológica de motores elétricos e combustão. Em síntese, a economia moderna, sintetizada na forma clássica e keynesiana, caracteriza a formação de sociedades industriais baseadas na produção de bens físicos, na utilização de energia, na organização hierarquizada da empresa, na força de trabalho desqualificada ou semidesqualificada, onde o padrão de existência de medido de acordo com a quantidade de produtos 21 oferecidos pelo setor secundário da economia.

Mesmo não sendo fácil descrever a evolução do Estado político moderno semelhante ao desenvolvimento da economia moderna, se pode correlacionar que ao primeiro estágio do capital correspondeu um Estado liberal clássico, com um mínimo de intervencionismo, enquanto ao segundo estágio do capital representou um Estado keynesiano com funções contracíclicas e de bem-estar social.22 Resultado do processo de racionalização social, o Estado político liberal moderno é fundamentado no liberalismo político do pensador inglês John Locke, contido em seu livro “Segundo Tratado do Governo Civil”, publicado em Londres em 1690, um ano depois da Revolução Gloriosa, que assinalou o triunfo completo do parlamento sobre o rei. Locke formulou uma teoria política dos direitos naturais, segundo a qual os indivíduos ao atingirem determinado estágio de evolução social, convieram em instituir um governo, cedendo-lhe certos poderes, de modo algum absoluto, sendo o principal o de executar a lei natural. O Estado político moderno surgiu como uma grande força libertadora, embora sua ação não beneficiasse igualmente a todas as classes sociais que então emergiram. Inicialmente sua grande força volta-se contra o poder dos Estados Absolutistas, obstáculos ao avanço do capitalismo liberal.

21 22

ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 235. Ibidem, p. 343.


18 Segundo John Locke, o homem nascendo livre de prerrogativas sociais, deve exercer sua liberdade na própria sociedade, fazendo com que a sociedade se desenvolva de acordo com a liberdade de cada pessoa: a liberdade natural do homem consiste em estar livre de qualquer poder superior na terra (...), tendo somente a lei da natureza como regra. Sendo os homens, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento (...) Se o homem no estado de natureza é livre, conforme dissemos, se é senhor absoluto de sua própria pessoa e posses, (...) por que abrirá ele mão dessa liberdade e sujeitar-se-á ao domínio e controle de qualquer outro poder? Ao que é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros (...); e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros para mútua conservação da vida, de liberdade 23 e dos bens a que chamo de propriedade.

Todo o pensamento político liberal clássico está fundamentado na aceitação da existência de uma ordem natural do universo. Assim, o Estado liberal moderno clássico acreditará que todas as atividades humanas eram regidas por leis imutáveis e universais, cabendo ao próprio Estado a tarefa de descobrí-las, por meio da Razão, e o dever de acatá-las e umedecê-las. No setor econômico o Estado buscou desvendar normas universais válidas, tendose chagado, por exemplo, à lei da oferta e da procura, à lei dos rendimentos decrescentes e outras, cuja descoberta e comprovação permitissem que o estudo das atividades econômicas fosse elevado ao nível de ciência. Por outro lado, a doutrina política liberal demonstrava confiança ilimitada nas possibilidades de o homem solucionar os problemas da vida em sociedade, na medida em que cada um seguisse suas próprias inclinações. Haveria, desse modo, segundo o Estado liberal clássico, total harmonia de interesses entre o indivíduo e a coletividade. Bastaria que cada um agisse de acordo com suas próprias aspirações para que a sociedade atingisse mais rapidamente o progresso e o bem-estar desejado por todos os seus membros. No Estado moderno liberal o indivíduo deveria ter inteira liberdade para usar como bem lhe aprouvesse, as propriedades que herdara ou que adquirira por meio lícitos. Assim, os direitos individuais só sofreriam as restrições 23

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1978, p. 43-82.


19 impostas pelo direito dos demais indivíduos pertencentes a uma coletividade, onde o liberalismo e o individualismo se constituiriam uma mesma realidade. Em conseqüência da crença numa ordem natural e numa comunhão de interesses entre os membros de uma sociedade, os pensadores liberais que se dedicaram à economia, como o próprio Locke e Adam Smith, condenaram, de modo radical, o intervencionismo do Estado nas atividades econômicas. O governo deveria limitar-se a fazer cumprir a ordem natural e a defender a propriedade privada, não interferindo no processo econômico. As funções do Estado ficavam, assim, reduzidas a um mínimo compatível com a segurança pública. Essa política não intervencionista do Estado, o laissez-faire, representava uma reação contra a regulamentação estrita do regime corporativista e do sistema de barreiras alfandegárias imposto pelo mercantilismo. o mercantilismo era baseado na intervenção do Estado na economia, que era considerado prejudicial à livre iniciativa econômica e ao desenvolvimento do capitalismo. Os pensadores liberais defendiam que a economia deveria ser dirigida pelo livre jogo da oferta e da 24 procura de mercado, explícito no princípio do laissez-faire.

Rompendo com a ordem hierárquica das corporações, dos laços sanguíneos e dos privilégios que caracterizavam as formas de Estado político pré-liberal, o Estado político liberal representou a criação de um poder político capaz de manter e ampliar suas conquistas de liberdade e igualdade para as atividades econômicas, recusando qualquer intervencionismo estatal na economia e, sob o aspecto estritamente político de sua existência, o Estado político liberal preconizava o liberalismo político, fundamentado na divisão montesquieniana dos poderes em legislativo, executivo e judiciário, de inspiração democrática, como também a representação individual de cada cidadão por meio dos grandes partidos políticos. Ao segundo estágio do capital da economia moderna, correspondeu um Estado político baseado nas teorias de John Keynes (1883-1946) com funções contracíclicas e de bem-estar social. O Estado keynesiano se destaca por

24

COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 270.


20 repudiar a teoria do laissez-faire25, onde que os negócios econômicos da sociedade acabam sempre por cuidar de si próprios, desde que o Estado político nem qualquer corporação armada de autonomia procure interferir como determinante das ações individuais, como pensava Adam Smith, quando afirmou que “os indivíduos agindo sozinhos nas atividades econômicas tendem a ser melhores”.26 O Estado keynesiano tem origem a partir da Grande Depressão econômica do ano de 1929, quando se preconizou que à economia não bastava o axioma do laissez-faire, onde a lei da oferta e da procura, regida pelo indivíduo, racional no processo econômico, possibilitaria o equilíbrio nas atividades econômicas, tendo o Estado a função de manter a liberdade nessas mesmas atividades. John Keynes postula assim um Estado que, passando de vitima dos ciclos econômicos, adquire o papel de ser um meio pelo qual a sociedade podia regular as crises e manter o pleno emprego, tomando nos momentos de depressão, políticas contracíclicas, permitindo defictis para financiar obras públicas produtivas (maior número de pessoal possível), salvando as dívidas nos períodos de expansão. na história da economia ocidental, o Estado keynesiano foi aplicado primeiramente nos EUA após a crise econômica de 1929, onde o governo adotou um conjunto de medidas com o objetivo de superar a crise, que ficou conhecido como New Deal. Esse programa econômico foi inspirado nas idéias do economista John Keynes, para quem os governantes precisavam tomar medidas econômicas que garantissem o pleno emprego dos trabalhadores. Keynes também defendia uma redistribuição dos lucros para que o poder aquisitivo dos consumidores aumentasse de forma proporcional ao desenvolvimento dos meios de produção. As idéias presentes no New Deal rompiam com os princípios tradicionais do liberalismo 27 econômico.

25

A expressão laissez-faire quer dizer, em português, não interferiam, representa um princípio defendido pelos economistas mais liberais e que defende que o Estado deve interferir o menos possível na atividade econômica e deixar que os mecanismos de mercado funcionem livremente. Assim, o papel do Estado devia limitar-se à manutenção da ordem e da lei, à defesa nacional e à oferta de determinados bens públicos que o setor privado não estaria interessado, tais como saúde pública, saneamento básico, educação, as infra-estruturas de transportes e outros. (C.f. COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 270). 26 Ibidem, p. 271. 27 Ibidem, p. 273.


21 Entre as principais medidas adotadas pelo Estado keynesiano estavam o controle governamental dos preços de diversos produtos agrícolas e industriais, concessão de empréstimos aos que se encontram arruinados pela crise para que pagassem suas dívidas e reordenassem a produção, realização de diversas obras públicas com o objetivo de criar postos de trabalho para milhões de desempregados, criação de um salário-desemprego para aliviar a situação de miséria dos desempregados, limitação dos preços e da produção às exigências do mercado para garantir os interesses dos industriais e fixação de salários mínimos e limitação das jornadas de trabalho em benefício dos trabalhadores. A aplicação do Estado keynesiano reajustava o capitalismo, mostrando que era necessário agir e abandonar a política liberal do laissez-faire da escola clássica, que contrariava uma possível intervenção do Estado na economia e do mercado, ao mesmo tempo preconizando um Estado intervencionista em benefício da economia, inovando com uma visão agregada, ou seja, com uma análise global ou macroeconômica. Caracterizado pela democracia-representativa de participação política, no Estado moderno, seja o liberal clássico ou o keynesiano, o anseio dessa mesma participação se encontra veiculada pelos partidos políticos com seus grandes personagens.

1.3 A modernidade cultural

Com a decadência do domínio da esfera religiosa, reguladora da esfera econômica, política, estética, intelectual e todas as outras esferas sociais e culturais, a modernidade possibilitou a emergência dessas mesmas esferas com autonomia própria, passando a ver o mundo de forma específica e com capacidade racional. A racionalização do mundo cultural significou um conjunto complexo

de

eventos

que

envolviam

a

progressiva

diferenciação

e

formalização das esferas culturais com valor próprio, que são a ciência e a filosofia, a moral, o direito e a arte. De acordo com Max Weber: com o processo de racionalização cultural são emersas da predominância religiosa a ciência e a filosofia moderna, a moral e a arte autônoma, proporcionando a própria racionalização da vida por


22 meio da pragmática da vida no aspecto metódico dessa mesma racionalização existencial. Nesse sentido, as esferas racionais da ciência, da filosofia, da moral e da arte tornam-se esferas axiológicas porque fazem com o homem moderno torne seu agir de acordo com 28 respeito a valores e com respeito a fins.

O conhecimento científico moderno recebe a finalidade de conceber narrativas legitimadoras para transformar o mundo em espaço coerente e melhor para a existência. Ou seja, a ciência moderna é inseparável das metanarrativas que justificam sua teleologia enquanto instrumento de conhecimento seguro e racional, como se percebe no discurso iluminista da emancipação do gênero humano pelo conhecimento científico racional. Nesse contexto, a ciência moderna é legítima porque serve aos fins emancipatórios do homem, que imbuídos da capacidade de racionalizar sua existência é ao mesmo tempo apto para melhorar a realidade, procurando torná-la compreensível na medida em que a razão e a ciência apreendem a capacidade humana de estabelecer a cognoscividade de si mesma. a ciência moderna nasce com o objetivo de se constituir em mecanismo racional que buscará proporcionará ao homem o conhecimento capaz de resolução de vários problemas, ultrapassando o conhecimento formulado na irracionalidade pré29 moderna das formas de pensamento e ação.

A ciência moderna busca pela racionalização de seus métodos o consenso de que a humanidade alcançaria a liberdade pela Razão e pelo conhecimento científico, ao mesmo tempo em que procura a eficácia funcional de uma sociedade tecnocrática.30 Enquanto a ciência moderna toma como legitimações de si as grandes narrativas emancipatórias de liberação humana pela razão, a filosofia especulativa tem a função de fornecer essas mesmas legitimações, permitindo ao homem racional estabelecer uma relação autônoma com o presente, em detrimento da procura longitudinal com relação ao passado. Assim, pelo uso da razão filosófica especulativa e pela ciência libertadora, o homem pode abalar as tutelas pré-modernas, religiosas e políticas, podendo alcançar a condição da maioridade racional.

28

WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. São Paulo: Cultural, 1974, p. 33. SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 24. 30 Ibidem. p. 26. 29


23 Com o advento da modernidade, a esfera moral também foi invadida pela

racionalização

e

secularização,

surgindo

uma

moral

ética

que

desencadeou a racionalização entre existência e modo de produção capitalista. Surgiu desse modo a tematização da universalização das normas morais, diferentemente das sociedades pré-modernas que eram regidas cada uma de acordo com as normas e leis morais próprias de cada clã ou tribo. a racionalização da esfera moral torna nos discursos iluministas um fator de polêmica, pois os pensadores iluministas tentam demonstrar que a moralidade também é encontrada e vivida fora do âmbito da esfera religiosa. A nova moral estar assim direcionada aos novos 31 aspectos surgidos na modernidade, como o econômico e o político.

Em outras palavras, a moral moderna surgiu em detrimento das paixões e desejos idiossincráticos, principalmente para assegurar a legitimidade da volição burguesa para o desenvolvimento capitalista e para efetivar a correlação entre ser capitalista e moralmente ético ao mesmo tempo. A arte moderna tem seu começo com os movimentos e manifestos futuristas no começo do século XX, sendo um não ao passado artístico, uma revolta ante o convencionalismo na arte, contra regras antigas e castradoras, o novo em liberdade de experimentação, sendo necessário destruir a estética (conjunto de normas e valores segundo os quais, numa dada época, o artista cria e o crítico julga) tradicional, que impunha a Representação realista da realidade, ou a ilusão do real.32 Segundo Jair Ferreira dos Santos: a arte moderna é a crise da representação realista do mundo e do sujeito na arte, pois a estética tradicional fracassa ao captar um mundo cada vez mais confuso e um indivíduo cada vez mais fragmentado. Novas linguagens (forma nova, não imitativa) deveriam surgir para que um sujeito caótico pudesse não representar, mas interpretar livremente a realidade, segundo sua visão particular. Surge aí o formalismo e o hermetismo da arte moderna, ficando a arte autônoma, liberando-se da representação das coisas, decretando o fim da figuração, usando a deformação, a fragmentação, a abstração, o grotesco, a assimetria, a 33 incongruência.

Deformando ou banindo o referente (o real), a arte moderna pelas vanguardas – futurismo, cubismo e expressionismo – significarão a quebra do 31

ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 246. SANTOS, Jair Ferreira dos Santos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 46. 33 Ibidem. p. 47. 32


24 universo racional fornecido pela ciência, criando novas formas a ponto de tornar-se auto-referenciada, contra o conformismo do público burguês. Os artistas modernos eram críticos, bizarros e boêmios, desejando o escândalo e criando grande tensão entre a arte e o público, levando ao absoluto suas emoções, suas visões subjetivas e declarando-se anjos condutores da humanidade, na medida em que a arte é um conhecimento superior da existência. O artista moderno é um sujeito dual, na separação entre arte popular, ou de massas, e a arte erudita, figurando no artista genial que se exprime em linguagens formais absolutamente inéditas, como a paródia, recurso cômico ou satírico. Na estética moderna, a arquitetura é representada pelo projeto arquitetônico funcional – que combatia o ecletismo do final do século XIX, com seus ornamentos e fachadas neoclássicas – iniciado pela escola alemã Bauhans, fazendo triunfar a racionalidade funcional, estilo arquitetônico que acreditava na harmonização dos fins estéticos com fins industriais, achando que essa nova arquitetura, baseada na razão e no ascetismo da forma, poderia contribuir para o surgimento de uma nova ordem social. A arquitetura moderna era imperialista, destruindo os vernáculos, símbolos e estilos tradicionais, acabando num estilo a serviço do capitalismo mais tecnocrático, formulador da utopia civilizatória. Na literatura, a modernidade implicou em características singulares a esfera literária. A literatura modernista inclui entre suas adjetivações a oposição à ordem burguesa, o que se manifesta, formalmente, na substituição do universo mítico pelo realismo, na manipulação consciente de paralelos entre o mundo antigo e o moderno, na ruptura do fluxo linear da narrativa, na frustração das expectativas do leitor quanto ao destino dos personagens, na oposição do discurso interior ao discurso público, objetivo, racional, no privilégio da técnica.34 uma das principais bandeiras dos arquitetônicos modernos é a rejeição dos estilos históricos, principalmente pelo que acreditavam ser a sua devoção ao ornamento, ou seja, uma arquitetura preocupada com o supérfluo e o superficial. O ornamento, por sua vez, com suas regras, estava ligado à outra noção combatida pelos arquitetos modernos: o estilo. Os modernos viam no ornamento um elemento típico dos estilos históricos, um inimigo a ser combatido, 34

Ibidem, p. 54.


25 produzindo uma arquitetura sem ornamentos torna-se assim uma bandeira, na medida que se defende a criação de espaços e objetos 35 abstratos, geométricos e mínimos.

Outra característica importante eram as idéias de industrialização, economia e a recém-descoberta noção do design. Os arquitetos modernos acreditavam que a representação do arquiteto era a de um responsável pela correta e socialmente justa construção do ambiente habitado pelo homem, carregando um fardo pesado, sendo os edifícios econômicos, limpos e úteis.

2 A PÓS-MODERNIDADE

2.1 Conceito de pós-modernidade

Para Frederic Jameson, o termo pós-moderno é um conceito apenas periodizante, cuja função é correlacionada a emergência de novos aspectos formais da cultura com a aparição de um tipo de vida social e com uma nova ordem econômica. Ele vê o pós-modernismo como um esvaecimento de algumas fronteiras do modernismo, como a valorização de aspectos que não eram valorizados no modernismo.36 Por ser marxista, Jameson não acredita na pós-modernidade. Ele só a define para depois questioná-la, dando ênfase ao aspecto econômico, ao fato de a economia capitalista, uma das principais características da modernidade, ainda prevalecer. Contudo, sua definição é muito útil por analisar todas as esferas sociais, fazendo assim um paralelo com o conceito de modernidade de Weber. A definição do conceito de pós-modernidade de Jameson indica que houve mudanças na cultura, na vida social e na economia, e em todas as outras esferas sociais. Torna-se então necessário analisar essas esferas, perceber se as mudanças ocorridas são suficientes para afirmar que vivemos em uma pós-modernidade. Partindo da definição de Weber da modernidade, 35

Ibidem. p. 57. JAMESON, Frederic. O pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996, p. 33. 36


26 analisaremos as esferas da economia, do Estado, da ciência, da moral e da arte. Na economia, Jameson distingue três momentos sucessivos do capitalismo. O capitalismo de mercado, limitado a espaços nacionais, o capitalismo imperialista, que visa anexar outros mercados, e o capitalismo multinacional, que se estende ao mercado mundial. Para Jameson, vivemos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, nessa terceira fase do capitalismo, em que o Estado perdeu o controle sobre as grandes indústrias, e em que um único produto pode ser fabricado em diversos países, buscando desde a mãode-obra mais barata ou o menor imposto sobre produção, até a especialização mais barata, para depois comercializá-la em todo o mundo. no capitalismo multinacional a publicidade é essencial, pois ela ganha uma importância maior até mesmo que a do próprio produto. Não se compra um produto, mas uma realidade virtual representada 37 por ele nos anúncios de televisão.

No Estado político, Paulo Sérgio Rouanet distingue três momentos sucessivos. O primeiro é o Estado liberal clássico, o segundo é o Estado keynesiano e o terceiro é o Estado neoliberal. Essa mudança no Estado afetou a sociedade civil, que deixou em segundo plano os grandes ideais e passou a se preocupar com interesses particulares ou grupais.38 É

uma

descentralização

do

próprio

Estado,

aliada

a

uma

descentralização de interesses. Na medida em que os grandes ideais modernos deixaram de mobilizar os grandes grupos sociais, o interesse individual ou de pequenos grupos tornou válido. A luta agora é particular, é uma característica do narcisismo pós-moderno. No

campo

da moral, Rouanet

percebe

na

modernidade uma

universalização do princípio moral racional. A moral universalizante é assim válida para todos os espaços e momentos, embasada na busca racional de agir.39 De acordo com Jair Ferreira dos Santos: na moral moderna, a vida pulsional está subordinada á razão. Porém, no pós-modernismo há uma valorização da espontaneidade, da própria vida regida pelos impulsos particulares. Há assim uma substituição estética da vida pela justificativa pulsional, percebendose que só o impulso e o prazer são reais e afirmadores da vida, isto 37

Ibidem, p. 39. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 243. 39 Ibidem, p. 244. 38


27 é, a moral não estar mais na razão universal, e sim nos impulsos 40 característicos da existência humana.

No que se refere à arte, Jameson apresenta o pastiche como princípio artístico pós-moderno. A arte criativa, estilística e inovadora do modernismo deu lugar a uma renovação estilística. A arquitetura se torna uma verdadeira mistura de estilos, uma mescla de citações. As artes plásticas não representam nada além de tela, é uma copia do real. O cinema e a literatura são manuais de citações, onde valorizam a nostalgia, são intertextuais, não passando de copias ou simulacros de estilos, de temas e de obras de outras épocas.41 Na ciência ocorre a mesma alteração de conceituação. Na modernidade, na medida que a ciência não se limita a enunciar regularidades úteis e que busquem o verdadeiro, ela tem legitimar suas regras, e para isso, recorre à filosofia especulativa, formando os metadiscursos. Assim, por ciência moderna entende-se a necessidade dos metadiscursos, explicitamente a algum grande relato, como a dialética do espírito, a hermética do sentido, ou a emancipação do sujeito racional. Segundo Jean-François Lyotard considera-se a atitude da ciência pósmoderna a incredulidade em relação aos metarrelatos, afirmando o seguinte: a ciência pós-moderna não acredita mais nas narrativas legitimadoras. Ela se legitima pela paralogia, pela diferença em relação ao que no momento passa por científico. Enquanto na ciência moderna o enunciado científico é singular e universal, na ciência pós-moderna existe uma flexibilização de enunciados, inclusive incompatíveis entre si, pois ela se baseia no dissenso, na desdogmatização do próprio conhecimento auferido pela ciência. O dissenso torna a ciência incrédula em relação às grandes narrativas legitimadoras do conhecimento e proporciona a geração de novas idéias impulsionando o processo criativo. A ausência de incerteza, de imprevisibilidade, implica também a supressão da novidade e da 42 criatividade.

A falta de flexibilidade, na ciência moderna, conduzia a uma instituição heteronômica da sociedade. Não era qualquer um que podia questionar suas verdades, e mesmo os iniciados só o podiam fazer se sua nova verdade suscitasse o consenso, o que colocava a ciência voltada para as narrativas legitimadoras. A ciência era determinista e trabalhava com enunciados rígidos, representando o paradigma da certeza, da simplicidade. Esse modelo 40

SANTOS, Jair Ferreira dos Santos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 63. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 251. 42 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. São Paulo: Ática, 1993, p. 49. 41


28 desenvolveu-se no âmbito das ciências naturais com base em regras metodológicas e princípios epistemológicos perfeitamente definidos. Dentro

desse

paradigma,

generalizou-se

a

multiplicidade

de

conhecimento, a proliferação de teorias, de correntes de pensamento, bem como de descobertas científicas e técnicas. Porém, os saberes acumulados não desenvolveram uma inter-relação entre si, e cada área se constituiu num fragmento isolado do conjunto do qual fazia parte. Mas a condição pósmoderna fez emergir as contradições do paradigma da certeza e com elas o reconhecimento de que a sociedade atual é fortemente marcada por ambigüidades. Na ciência pós-moderna, a flexibilidade possibilita-nos trabalhar com enunciados flexíveis e com a instabilidade no lugar do determinismo moderno. Dessa maneira, abre-se para novos lances, para novos jogos de linguagem, com a relativização do discurso científico tradicional e, conseqüentemente, para o questionamento das verdades sagradas, dos dogmas, da exposição da fragilidade de uma grande parte dos resultados da ciência moderna, enfim, da admissão de falibilidade.43

2.2 A pós-modernidade social

Até meados dos anos 60 do século XX o modelo econômico keynesiano vigorou plenamente estável nas sociedades industrializadas, principalmente nos EUA e nos países aliados da Europa Ocidental. No entanto, segundo David Harvey, o final da década de 1960 marcou o início da crise de hegemonia deste modelo em decorrência do aumento da demanda de produção por parte dos países da Europa Ocidental e do Japão.44 Estas regiões centrais do capitalismo experimentaram modernizações em seus parques industriais e passaram a oferecer produtos (gêneros manufaturados) a preços e custos mais competitivos pressionando a demanda em nível mundial. Assim, Ricardo Antunes descreve este novo cenário econômico:

43 44

ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 252. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 129.


29 em primeiro lugar, o grande deslocamento do capital para as finanças foi a conseqüência da incapacidade da economia real, especialmente das indústrias de transformação de proporcionar uma taxa de lucro adequada. O surgimento de excesso de capacidade e de produção, acarretando perda de lucratividade nas indústrias de transformação a partir do final da década de 1960, foi a raiz do crescimento acelerado do capital financeiro a partir do final da década de 1970. as raízes da estagnação e da crise do capitalismo moderno estavam na compressão dos lucros do setor manufatureiro que se originou no excesso de capacidade e de produção fabril, que 45 era em si a expressão da acirrada competição internacional.

David Harvey aponta ainda neste contexto de aumento de demanda uma rigidez do modelo econômico keynesiano: de modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo. Na superfície, essas dificuldades podem ser melhor apreendidas por uma palavra: rigidez. Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo invariantes. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos contratos de 46 trabalho, especialmente no chamado setor monopolista.

O início dos anos 70 agravou o quadro de instabilidade em decorrência da eclosão da Crise do Petróleo de 1973, a diminuição da oferta deste insumo energético fez aumentar os gastos com energia das nações industrializadas. Em médio prazo ocorreu o aumento dos juros em âmbito financeiro internacional o que contribuiu para o encarecimento dos empréstimos aos países pobres e especialmente, as nações emergentes ou em via de desenvolvimento. Em âmbito mundial, a segunda metade dos anos 70 do século XX marcou o início de um período de recessão, particularmente na economia norte-americana. A partir daí as bases da economia keynesianista foram questionadas, no setor da produção, a crise instaurada demonstrou que o keynesianismo era um sistema rígido que não conseguiu dar respostas rápidas para superar os obstáculos que se apresentavam naquele novo contexto. No Japão, ao contrário, onde a produção baseava-se no modelo do Toyotismo, a produção já adotava os princípios da flexibilidade produtiva, por conseguinte, um sistema produtivo mais ágil e capaz de responder de forma 45

ANTUNES, Ricardo. O sentido do trabalho: ensaios sobre a afirmação e negação do trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 24. 46 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 135.


30 mais eficiente às novas exigências de um mercado em crise e com profundas contradições. Dessa forma, comparando com o fordismo-keynesianista, Harvey assim delineia os traços da nova estrutura produtiva pós-moderna: a acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do keynesianismo moderno. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimentos de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, 47 tecnológica e organizacional.

Na economia pós-moderna o trabalhador adquire novo perfil em relação o período moderno. Enquanto na produção econômica moderna o perfil da mão-de-obra exigia um trabalhador especializado, geralmente semiqualificado e voltado para a execução de tarefas simples, parceladas e repetitivas, não se falando em conhecimento generalizante ou desenvolvimento de iniciativa de concepção ou geração de idéias referentes ao processo de gerenciamento ou planejamento da produção, na produção econômica pós-moderna (surgimento de desenvolvimento do sistema de acumulação flexível), o trabalhador torna-se polivalente, mais participativo e mais envolvido no processo de controle de qualidade e produtividade em seu ambiente de trabalho.48 no modelo econômico pós-moderno de estruturação produtiva flexível predomina o trabalhador com a prática da polivalência generalizada (fabricação, manutenção, controle de qualidade e gestão dos fluxos assegurada pelo mesmo trabalhador operário de produção) e de rodízio bastante amplo de tarefas, diferenciando-se, portanto, do modelo keynesiano em decorrência do envolvimento do 49 trabalhador no processo produtivo.

A economia pós-moderna, baseada na produção flexível exige assim novas atitudes e habilidades no processo de produção, requerendo um perfil diversificado de trabalhador, criando assim, novas demandas de formação e qualificação profissional. Se antes, na economia keynesionista, predomina o conceito de qualificação do emprego, já na economia pós-moderna de acumulação flexível

47

desenvolve-se

o novo

conceito de competência,

Ibidem, p. 140. Ibidem, p. 143. 49 OLIVEIRA, Ramom. A (des) qualificação da educação profissional brasileira. São Paulo: Cortez, 2003. p. 33. 48


31 intrinsecamente associado aos novos cenários de empregabilidade e flexibilidade. As mudanças decorrentes do processo de globalização e adoção de novos padrões de produção industrial, caracterizado, principalmente, pela flexibilidade, impõe a necessidade de reestruturar a educação profissional, visando sua adequação aos novos requisitos exigidos dos trabalhadores. O novo perfil de competência tem a ver com o aumento do desemprego, em particular o estrutural, e com ele, a crise da noção de postos de trabalho, onde a competência remete a um sujeito e a uma subjetividade.50 Portanto, no modelo econômico moderno keynesiano a qualificação estava intimamente ligada à lógica de produção baseada na relação intrínseca entre qualificação e trabalho especializado, havendo regras mais claras e objetivas de perfil de trabalhador, enquanto no modelo econômico pósmoderno de produção acumulativa flexível, há padrões de subjetividade, valorizando determinados atributos pessoais ligados a individualidade, tais como o espírito de liderança, capacidade de relacionar-se em grupo e espontaneidade, abrindo espaço para avaliações arbitrarias e apreciações baseadas em critérios nada objetivos que se referem à determinação de perfil do trabalhador para determinada realidade de empresa ou setor de produção. Já na esfera política pós-moderna predomina o Estado neo-ortodoxo, que diante dos impasses do Estado keynesiano (crise de legitimação resultante, seja do fracasso do Estado em promover o pleno emprego ou seja do acumulo de reivindicações dirigidas ao Estado e que este não tem os meios financeiros de atender), procura devolver ao setor privado uma parte de suas atribuições.51 No âmbito do Estado keynesiano, o aumento dos gastos governamentais e a crise fiscal decorrente de uma maior emissão de moeda resultaram nos Estados Unidos em uma crise de estagflação – estagnação econômica associada à inflação. As diretrizes econômicas do Estado keynesiano tornaram-se inflacionárias, sendo que as despesas públicas cresciam enquanto a capacidade fiscal estagnava.

50 51

Ibidem, p. 39. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 237.


32 E, em decorrência deste quadro de crise as idéias ligadas ao Welfare State passam a serem criticadas por intelectuais conservadores vinculados às idéias monetaristas e neoliberais. o ajuste neoliberal da crise preconiza a defesa do mercado livre, como pressuposto da liberdade civil e política, a desregulamentação da economia e administração, a configuração de um estado mínimo, subordinado às prerrogativas do mercado e, finalmente, oposição e crítica aos sistemas de proteção social. O neoliberalismo do Estado pós-moderno tem seus princípios expressos na economia de mercado, na regulamentação estatal mínima e na formação de uma 52 cultura que deriva liberdade política da liberdade econômica.

O final dos anos 70 e início dos anos 80 do século passado marcou a subida ao poder de Ronald Reagan e Margareth Tatcher, respectivamente nos Estados Unidos e na Inglaterra. O conservadorismo destes governantes deu início ao longo processo de estruturação de uma hegemonia ideológica de caráter neoliberal, ou seja, foi a confirmação do Estado político pós-moderno. A partir da crise da economia keynesiana e das modificações impostas pelas grandes corporações capitalistas, como demissões para enxugamento de pessoal, reestruturação na linha de produção, políticas de redução de salários e benefícios sociais, além das reformas governamentais com cortes nos gastos públicos, especialmente na área social, aumento de impostos de políticas antiinflacionárias, surgiu o Estado político pós-moderno ou neoliberal. No

Estado

político

pós-moderno

surgem

novas

formas

de

representações políticas. Enquanto a política moderna tinha como palco o Estado e visava a conquista ou a manutenção do poder estatal, a política pósmoderna tem como palco a sociedade civil e visa a conquista de objetivos grupais ou segmentares. Os sujeitos da nova política pós-moderna não são mais cidadãos, como no Estado moderno, mas grupos, e seus fins não são mais universais, visando o interesse geral, mas micrológicos, combatendo todas as formas de dominação explícitas e implícitas.53 Na modernidade havia atores políticos universais, representados pelos grandes partidos políticos agregando um leque amplo de interesses e posições, enquanto na pós-modernidade não há um poder centralizado no Estado, porém há um poder prolixo, estendendo sua rede capilar por toda a sociedade civil.

52 53

SANTOS, Jair Ferreira dos Santos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 63. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 237.


33 De acordo com Michel Foucault, a política do Estado moderno é passível de crítica na medida em que com seu advento, surgiu a liberal-democracia, com seu quadro jurídico formalmente igualitário, e o estabelecimento das instituições representativas, mas que ao lado dessa codificação jurídica sob a forma

da

soberania popular,

surgiu

uma

nova

instância do

poder,

essencialmente extrajurídica que é a disciplina: a forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários tinha como substrato esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, esses sistemas de micropoder essencialmente não-igualitários e dissemétricos que constituem as disciplinas. E se formalmente o regime representativo da democracia moderna permite que direta ou indiretamente, com ou sem mediações, a vontade de todos forme a instância fundamental da soberania, as disciplinas garantem, na base, a submissão das forças e dos corpos. As disciplinas reais e corporais constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas. As disciplinas se manifestam em sua forma pura e originária na prisão, e especialmente na utopia de Bentham da prisão perfeita, o panoptikon, edifício anular em que cada prisioneiro ocupa uma cela, totalmente visível, e que tem no seu centro uma torre, ocupada por observadores que vêem tudo e 54 não são vistos por ninguém.

O funcionamento da sociedade moderna era baseado na produção do indivíduo disciplinar, influenciado por uma distribuição espacial pelo qual o mesmo era localizado em espaços celulares, sendo controlado diariamente seu corpo, com prescrições exatas para a maneira correta de segurar uma ferramenta, uma pena ou uma arma, como também o controle por uma prática sistemática de adestramento, destinada a automatizar exaustivamente gestos e comportamentos. A sociedade moderna, principalmente pelo Estado político, é uma rede de instituições disciplinares, como a escola, a fábrica, a caserna, o hospital, onde habita o indivíduo disciplinar, o sujeito de práticas disciplinares, constituído, como sujeitos, pelas disciplinas, pelos procedimentos de individualização

disciplinar,

como

a

observação,

a

classificação,

o

esquadrinhamento, a normatização e o adestramento. A sociedade como um todo é constituída sobre o modelo carceral. que a prisão celular, com suas cronologias bem escandidas, seu trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação, com seus mestres em normalidade, que assumem e multiplicam as funções do juiz, tenha se transformado no instrumento moderno da penalidade. O que há de surpreendente nisso? O que há de 54

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p. 233.


34 surpreendente que a prisão se pareça com as fábricas, as escolas, 55 as casernas, os hospitais, que se parecem todos com as prisões?

Em suma, a política do Estado pós-moderno é exercida por grupos particulares, como o feminista, o homossexual e o ambiental, destinados a combater o poder instalado nas formas cotidianas da vida social.

2.3 A pós-modernidade cultural

A esfera axiológica da ciência pós-modernidade é caracterizada pela crítica da própria razão científica. Ela é incrédula com relação às narrativas legitimadoras do posicionamento científico moderno. a legitimação da ciência pós-moderna é a do próprio discurso científico, ao contrário da ciência moderna que se legitimava nos metadiscursos ou metanarrativas emancipatórias que tencionavam libertar a humanidade das irracionalidades pré-modernas ou tradicionais. De acordo com Rouanet: com efeito, a ciência pós-moderna não busca o consenso, incorporado na narrativa iluminista de uma humanidade capaz de transformar o mundo, mas busca o dissenso. O pensamento pósmodernista científico também não busca a eficácia de uma sociedade tecnocrática embasada na racionalidade libertadora, porém a invenção do novo, o contra-exemplo, o impensável, o 56 ininteligível e o paradoxo.

Neste ambiente, a ciência pós-moderna é legitimada pela paralogia, que é a utilização de uma palavra normal com o sentido diferente do comum, ou seja, pela diferença com relação ao que num momento passa por científico. O enunciado científico pós-moderno é legitimado pela comunidade científica quando for argumentável e verificável, quando comportar em si uma assimetria com relação ao já conhecido, e quando proporcionar novas idéias. em suma, enquanto a ciência moderna se legitimava com relação a grandes sínteses homogeneizadoras, a ciência pós-moderna se legitima pelo heterogêneo, pelo inesperado, pela diferença e pela paralogia assimétrica. Não busca a homogeneidade da unidade discursiva, mas premissas enunciatórias diferenciadas das já 57 constituídas.

55

Ibidem, p. 256. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 263. 57 Ibidem, p. 263 56


35 A pós-modernidade desembarcou na filosofia em fins dos anos 60 com uma mensagem demolidora, que foi a desconstrução do discurso filosófico ocidental, da maneira como o Ocidente pensava e agia. Do grego Platão, no século 4 a. C, até a década de 1960, os filósofos ocidentais disseram as coisas de determinado modo, com certas atitudes e pressupostos. A desconstrução pós-moderna do discurso filosófico moderno pretende pôr a nu o não-dito por trás do que foi dito, buscar o silenciado e reprimido sob o que foi falado. Com os pensadores pós-modernos, a filosofia e a própria cultura ocidental caíram sob um fogo cerrado de críticas. O pós-modernismo filosófico está associado à decadência das grandes idéias, valores e instituições ocidentais, como Deus, Ser, Razão, Sentido, Verdade, Totalidade, Ciência, Sujeito, Consciência, Produção, Estado, Família e Revolução, dentre outros. Pela desconstrução filosófica da pós-modernidade, a filosofia é uma reflexão sobre si mesma em relação a sua queda no niilismo, pretendendo a desconstrução pós-moderna revelar o que estava por trás desses ideais maiúsculos. desde a Grécia antiga, as filosofias são discursos globais, totalizantes, que procuram os primeiros princípios e os fins últimos para explicar ordenamente o Universo, a Natureza, o Homem. A pósmodernidade é o adeus ou o declínio das grandes filosofias explicativas, dos grandes textos esperançosos como o Cristianismo e sua fé na salvação, o Iluminismo com sua crença na tecnociência e no progresso, o marxismo com sua aposta numa sociedade comunista. Neste ambiente de pensamento pós-moderno, os 58 discursos globais e totalizantes não atraem ninguém.

Os filósofos pós-modernos lutam em duas frentes de ação. A desconstrução dos princípios e concepções do pensamento ocidental, promovendo a crítica da tecnociência e seu amalgamento com o poder político e econômico nas sociedades avançadas, que resultou no Poder Sistêmico, enquanto outros pensadores pós-modernos procuram desenvolver e valorizar temas antes considerados menores e marginais no campo filosófico, como o desejo, loucura, sexualidade, linguagem, poesia, sociedades primitivas, cotidiano, que são elementos que abrem novas perspectivas para a liberação individual, acelerando a decadência dos valores ocidentais modernos.

58

SANTOS, Jair Ferreira dos Santos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 72.


36 Cronologicamente, a crítica filosófica pós-modernidade tem início com Friedrich Nietzche. Sua filosofia preconcebia o niilismo, a desvalorização dos valores supremos da modernidade e o desencanto com a vida moderna, pois a razão, o Estado, a ciência e a organização social da modernidade domesticaram o homem, anulando seu instinto e criatividade.59 Três conceitos e valores ocidentais vão ser desmascarados pela crítica nietzcheniana desconstrutiva, quais eram o Fim, a Unidade e a Verdade. para Nietzche a própria criação de valores supremos significou niilismo, decadência, pois se trocou a vida carnal, instintiva e concreta por modelos ideais inatingíveis, como O Belo, o Bom e O Justo. Mas vendo-se abandonado no universo, o homem ocidental projetou valores supremos que lhe acalmassem a angustia, justificando sua existência. Assim, o conceito de Fim surge para garantir um sentido, enquanto o de Unidade serve para assegurar que o universo é um todo conhecível pela ciência, e o conceito de Verdade é utilizado para guiar o ser, o conhecimento real das 60 coisas.

Nietzche observa que o niilismo será a fonte para uma transvaloração de todos os valores, surgindo novos valores em bases mais sólidas. A supressão do niilismo será um renascimento cultural, culminando com a chegada do Super-Homem e sua vida instintiva, na intensificação dos sentidos e do prazer. Com sua crítica, Nietzche abalou três pilares da cultura ocidental, isto é, o Fim do Cristianismo, a Unidade do conhecimento científico e a Verdade da razão filosófica e moral. A pós-modernidade filosófica é o momento em que tais valores, ainda atentos e fortes durante a modernidade industrial, entram em decadência acelerada. Nietzche afirmou que: o Cristianismo negou a vida concreta e com ela o corpo, o prazer, a alegria e o presente, ao propor uma outra vida, lá no Céu. Além disso, um Deus punitivo plantou no coração do homem a culpa. A suposta Unidade do cosmos levou a ciência a opor o homem, o conhecedor, à natureza, o conhecido. Ao mesmo tempo fragmentou a mesma natureza em campos de conhecimento, pela Física, Química e Biologia, e decretou, pela Matemática, a quantificação do mundo natural e social para tornar as coisas previsíveis, isto é, programáveis, matando assim a eterna novidade do futuro, o movimento sempre incerto com que jorra a vida. Escravizando-se à Verdade, enfim, o homem ocidental quis governar sua existência só pela razão, que supostamente mergulha no ser das coisas, traçando uma moral racional, quando na realidade a vida é também instinto e 61 emoção, força e imaginação, prazer e desordem, paixão e tragédia.

59

Ibidem, p. 75. Ibidem, p. 76. 61 Ibidem, p. 81. 60


37 Para superar o niilismo, a transvaloração de todos os valores perseguida por Nietzche ergueria uma cultura voltada para o prazer na alegria, o corpo integrado à imaginação poética, à arte. Nem religião, nem a ciência, nem a filosofia, mas a arte, com sua embriaguez dos sentidos, enraizada no presente, mas aberta ao futuro, a arte seria o fio condutor para um novo estilo de vida. Nesse estilo novo de vida, quanto aos Fins, nada de Deus nem de Estado, mas cada um vivendo sem sobreviver, realizando o melhor de si como obra de arte no presente vivido. Quanto à Unidade, nada de conhecimento científico, de programação, pois o cosmos, como a vida, é um jogo indefinido, aberto, sem direção e pluralista, isto é, diferenciada em formas. Quanto à Verdade, nada de conceitos universais e eternos, mas a sabedoria do corpo, o valor do erro e da ilusão, a afirmação segundo a perspectiva de cada um, o sujeito deixando-se rolar pelo tempo guiado pelo pragmatismo dos instintos, num ego a flutuar de experiência em experiência, sem se preocupar com uma identidade fixa. Na trilha aberta por Nietzche, o filósofo pós-moderno Jacques Derrida, que inventou a palavra desconstrução, atacou o Logocentrismo ocidental. Segundo ele, o Ocidente só sabe pensar pelo Logos, que em grego significa palavra, razão, espírito. Derrida é um pensador pós-moderno porque foi préestruturalista. O estruturalismo nas ciências humanas é a corrente que, nos últimos 50 anos, recebeu grande impulso na Lingüística e na Semiologia, analisando os fenômenos sociais e humanos como se fossem textos ou discursos.62 A moda, o casamento e o sonho, por exemplo, podem ser lidos como se fossem frases de uma língua, signos com uma significante e um significado, ou seja, no sonho as imagens são significantes cujos significados o analista descobre. Com o estruturalismo pós-moderno na Antropologia, na Psicanálise e na Sociologia, vários aspectos do homem passam a serem explicados, o que antes era apenas de incumbência da filosofia moderna, onde após o estruturalismo, a filosofia volta-se sobre si mesma, a pensar a sua própria história, investigar o seu próprio discurso.

62

Ibidem, p. 83.


38 com a desconstrução derridiana do Logocentrismo, a filosofia pósmoderna desmascara a transformação das coisas em conceitos universais. Na filosofia moderna, o conceito cadeira, por exemplo, expresso pela palavra cadeira, produz um modelo universal para esse objeto, apagando as diferenças entre as cadeiras reais, que são construídas em diferentes formas. Com Derrida o pensamento logocêntrico, que acaba com as diferenças entre as coisas reais ao reduzi-las a identidades no conceito, é descoberto e questionado 63 como instrumento de repressão a vida.

Jacques Derrida diz ainda que, pelo Logocentrismo o Ocidente pensa e age, quando, por exemplo, os jesuítas convertiam as diferentes tribos a uma idêntica religião, ou seja, ao Cristianismo. Os brancos europeus submeteram vários povos, de diferentes raças, a uma idêntica economia, qual seja, o capitalismo. Para Derrida, embutida no Logos há uma cadeia dos grandes conceitos universais que atravessa toda a cultura ocidental. Dessa forma, Logos é Espírito, que dá em Razão, que faz Ciência, que promove a Consciência, que impõe a Lei, que estabelece a Ordem, que organiza a Produção Social. No entanto, a cadeia desses conceitos só se promoveu reprimindo e silenciando como inferiores os termos de uma outra cadeia, como corpo, emoção, poesia, inconsciente, desejo, acaso, invenção. Além de reprimir as diferenças em identidades, o Logo moderno hierarquiza esses elementos, valoriza, torna uns superiores aos outros. Assim, a filosofia pós-moderna se realiza pela desconstrução do discurso moderno de uma filosofia universal, totalizante, desmascarando um mundo tecnocientífico que combinou o saber com o poder, em detrimento da liberdade individual do homem. A pós-modernidade moral tem início no começo do século XX, quando se delineia uma certa mutação no âmbito da moralidade, quando a psicanálise devassou os mecanismos da repressão imposta pela moral moderna, passando a caracterizar a pós-modernidade moral com crescente anarquismo, invertendo a supremacia da razão para as paixões, isto é, a inteligência tornase secundária em relação aos desejos pulsionais. a moral pós-moderna subordinou a racionalidade moral dos princípios universais e homogêneos da modernidade à vida pulsional, colocando ênfase nos valores intrínsecos da vida espontânea. A vida não é mais justificada pela estética moderna da 63

FREITAG, Bárbara. Habermas e a filosofia da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 24.


39 razão dominante, mas pela pulsionalidade, sendo que, só os impulsos e o prazer são reais e afirmadores da vida, enquanto o 64 resto é neurose e morte.

Pelo pós-modernismo ético, o hedonismo substituiu a austeridade e o autocontrole que caracterizavam o modernismo moral, ao mesmo tempo que possibilitou uma regressão ao particularismo moral, havendo não mais uma moral moderna universal, mas várias morais, repartidas nas diferentes subculturas, como a dos jovens, das seitas, dos movimentos ecologistas, dos homossexuais e dos pacifistas. No campo da estética, a pós-modernidade significa o distanciamento do modernismo artístico, através da pintura pop de Andy Warhol65, pela música de John Cage e pelo rock punk ou new wave66. Na estética pós-moderna, deixa de existir a separação entre arte erudita e popular, como também a do artista genial incumbido de criar inéditas formas de expressão artísticas. Ele recorre ao passado e ao pastiche de obras anteriores, imitando-as não por uma padronização, mas pelo ecletismo próprio do presente compreendido pelo historicismo. Já em relação à arquitetura, Jair Ferreira dos Santos, nos diz que: rompendo com a arquitetura moderna do funcionalismo estético e político, a arquitetura pós-moderna é historicista, apropriando-se da estilística heterogênea do passado, combatendo a crença da fusão da arte e da indústria como instrumento de progresso social e 67 urbano.

Ao contrário da arquitetura moderna, os estilos arquitetônicos do pósmodernismo são contextualistas, integrando-se as paisagens urbanas dos motéis e cadeias de fast food68, que constituem o cotidiano das grandes

64

SANTOS, Jair Ferreira dos Santos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 84. A pintura pop ou art pop se destacou nos anos da década de 1990 como crítica irônica do bombardeamento da sociedade capitalista pelos objetos de consumo em massa, operando com signos estéticos de cores inusitadas massificados pela publicidade e pelo consumo, ao mesmo tempo que usava figuras e ícones populares como temas de pintura. (Citações e referências a documentos eletrônicos. Banco de dados. Disponível em: http: // www. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pop_art. Acesso em 24 de maio de 2009). 66 O rock punk ou new wave foi um estilo musical derivado do rock and roll onde combinava uma grande variedade de desenvolvimentos musicais, onde seus representantes tinham como características a utilização de ombreiras, glitter gel, jeans rasgados e cabelos punk como assessórios estéticos. (C. f. Citações e referências a documentos eletrônicos. Banco da dados. Disponível em: www. http://pt.wikipedia.org/wiki/Punk_rock. Acesso em 24 de maio de 2009). 67 SANTOS, Jair Ferreira dos Santos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1991 , p. 86. 68 Fast food em inglês significa comida rápida. Assim, é o nome genérico dado ao consumo de refeições que podem ser preparadas e servidas em um intervalo pequeno de tempo, caracterizando, no contexto pósmoderno, símbolo de um estilo de vida estressante próprio da modernidade. (C. f. Citações e referências a 65


40 cidades contemporâneas. Ela é ainda regionalista, procurando respeitar a especificidade dos estilos locais, sem com isso recusar a contribuição das novas linguagens arquitetônica, sendo populista, isto é, está próxima da cultura de massas.

3 A NEOMODERNIDADE

3.1 O conceito de neomodernidade

Paulo Sérgio Rouanet elaborou o conceito de neomodernidade com o objetivo de demonstrar a não-existência de uma ruptura com a modernidade pela pós-modernidade, ao mesmo tempo que tenta resgatar o projeto iluminista moderno. em seu livro “Do Pós-Moderno ao Neomoderno”, ele define que a neomodernidade é a busca pelo sentido autentico e legítimo da modernidade, contestando o moderno atual em prol do moderno virtual que caracterize as esperanças do projeto moderno iluminista.69 A

neomodernidade

é

a

favor

das

melhorias

trazidas

pelo

desenvolvimento industrial e tecnológico, como a informatização. Entretanto, não vislumbra como algo positivo a sociedade do vídeo, que idealiza a coisificação do homem em ser autômato, considerando a crítica foucaultiana perspicaz na medida que desloca do macropoder repressivo seus olhar para as formas disciplinares de dominação imbuídas na razão dominadora da subjetividade existencial. num processo conciliador com a essência da modernidade social estatal e política, ao mesmo tempo em que afirma ser possível a política e o Estado moderno original, a neomodernidade ver como importante a extensão da representação política por meio de grupos segmentares, que organizando a sociedade pode reclamar vários direitos não atendidos pelo Estado e pela política moderna 70 autentica.

Em relação ao desencantamento do mundo pela modernidade cultural, a neomodernidade se coloca ao lado de todas as formas dessacralizadoras que

documentos eletrônicos. Banco de dados. Disponível em: www. http://pt.wikipedia.org/wiki/Fast-food. Acesso em 24 de maio de 2009). 69 70

ROUANET, Paulo Sérgio. Do pós-moderno ao neomoderno. São Paulo: Cia das Letras, 1986, p. 24. ______________________As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 281.


41 libertaram a humanidade do irracionalismo pré-moderno e dos fundamentos políticos e religiosos. À esfera axiológica da ciência diferencial da modernização cultural, o pensamento neomoderno é a favor da participação da sociedade nas linhas da pesquisa científica. Ao mesmo tempo, a filosofia neomoderna é racionalista, reconhecendo que o irracionalismo é conformista, incapaz de analisar a realidade corretamente. Entretanto, é um racionalismo diferente do iluminista, pois sabe, pelos pressupostos marxistas e freudianos, que a razão pode ser vítima da não-razão, seja pelo não-dito do processo discursivo ou pela desrazão presente no inconsciente.71 De acordo com Rouanet: a racionalidade neomoderna tem pleno conhecimento que a razão pode estar a serviço da mentira ou do poder, isto é, da racionalização ou da ideologia, deturpando a razão que liberta o 72 homem das forças irracionais que tentam sabotar sua legitimidade.

No campo da moral, a neomodernidade fica ao lado das éticas universalistas, não vinculadas a qualquer concepção de mundo ou religião, onde as mesmas possam ser vistas como transformáveis, de acordo com a discussão coletiva sobre elas. Porém, essa universalização ética é embasada na pragmática da forma do discurso moral, ou seja, a ética neomoderna é válida quando todos os interesses legitimarem como pragmática em relação ao contexto de cada um. Quanto a arte, a neomodernidade é a favor de uma arte como mecanismo de formação e educação do gênero humano, contrariando o desejo de colocar a arte sob a banalização de si ou a serviço de uma moral, religião ou política, enfim a concepção de arte neomoderna é opositora a sua domesticação.

3.2 A neomodernidade social

Nos capítulos anteriores, abordamos histórica e filosoficamente os conceitos de modernidade de pós-modernidade, isto é, trabalhamos os pressupostos históricos e filosóficos do moderno e do pós-moderno. Neste terceiro capitulo, tomaremos, principalmente, como guia conceitual o 71 72

ROUANET, Paulo Sérgio. Do pós-moderno ao neomoderno. São Paulo: Cia das Letras, 1986, p. 33. Ibidem, p. 34.


42 pensamento de Paulo Sérgio Rouanet, para quem a consciência de ruptura com relação à modernidade não corresponde de fato à uma cisão real, sendo assim, a pós-modernidade uma consciência falsa. O próprio Rouanet indaga no sentido de que: porque tantos críticos e artistas perfeitamente inteligentes estão convencidos de estarem vivendo uma guinada histórica comparável à que introduziu a modernidade, há quase 200 anos, correspondendo a uma nova época na história humana, 73 caracterizada por diversas mudanças?

Ele afirma que as experiências atribuídas ao mundo moderno, como duas guerras mundiais, os campos de concentrações, a experiência das bombas atômicas, o ressurgimento de fanatismos políticos e religiosos e a degradação ambiental, tornaram o homem contemporâneo desejoso de romper com a modernidade.74 Nessa perspectiva, a atitude pós-moderna é uma fadiga do homem moderno, um mal-estar com a própria modernidade, correspondendo a uma falsa consciência de ruptura de paradigma, porque a ruptura real não ocorreu ou não estar ocorrendo. fantasiando uma cisão com a modernidade, o homem atual cria uma pós-modernidade fictícia, querendo despojar-se de um mundo moderno doente, caracterizado pelas esperanças traídas, pela libertação que não se realizou, pela razão que transformada em poder aprisiona o homem, pela reificação da consciência no mundo industrializado e pela tirania política que imprime a pobreza para 75 várias regiões do planeta.

Não estamos vivendo ou mesmo transitando para uma pós-modernidade social na economia porque, a tese que a passagem de uma economia industrial moderna para uma pós-industrial, não reconhece o fato que ainda permanecemos no mesmo modo de produção capitalista, baseada na apropriação do excedente privado. Outro erro analítico da tese econômica pósmoderna é a confusão entre o decréscimo do setor industrial com o declínio do sistema industrial, pois o processo de racionalizar a produção na indústria pela utilização de novas tecnológicas, como a informática, reduz necessariamente o

73

ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 268. Ibidem, p. 268. 75 ANTUNES, Ricardo. O sentido do trabalho: ensaios sobre a afirmação e negação do trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 64. 74


43 número da mão-de-obra no setor secundário, em proveito do aumento do setor terciário na promoção de serviços. a redução de trabalhadores na indústria pode ser entendida como lógica imanente do modo de produção capitalista, pois o aumento da produtividade pela informatização da sociedade torna mais eficiente o sistema industrial, não chegando a abolí-lo. Ou seja, desde o seu nascimento, o capitalismo tem como objetivo modificar a composição orgânica do capital através da alteração do capital variável pelo capital constante, da mão-de-obra pela máquina, pretendendo 76 acrescentar a aquisição da mais-valia relativa.

Apesar da premência do capital em sua forma multinacional na economia mundial nos dias de hoje, onde se aplica tecnologia de ponta para o aumento da produção, esse fato não prova em nada a existência de uma economia pós-moderna, já que estamos ainda no modo de produção capitalista com a aplicação tecnológica pelo capital constante. Rouanet também apresenta argumentos contra a afirmação de que o Estado e a política atual são pós-modernas. O Estado e a política pós-moderna representam para os teóricos pós-modernos um retrocesso do Estado em direção a formas pré-keynesianas de atuação, de um lado, e pela ação de grupos particulares e segmentares, substituindo os partidos convencionais, por outro.77 a suposta mudança do Estado é mais o resultado de uma certa filosofia de governo, que a manifestação de um corte qualitativo com relação ao modelo moderno de Estado. O posicionamento socialdemocrata de confiar ao Estado certas tarefas de regulamentação econômica e de bem-estar social e a posição neo-conservadora de transferir essas funções de regulamentação ao setor privado são simétricos e complementares, ou seja, são mecanismos intercambiáveis do Estado moderno, que se alternam, procurando combater as incongruências do sistema social, quando num caso promovendo o Estado para possibilitar o pleno emprego e de implementar políticas previdenciárias, ou quando desonera o Estado de obrigações sociais que ele não tem mais condições de cumprir, por causa de insuficiência de recursos, liberando-o de críticas que 78 abalaria sua legitimidade.

Essa tendência de alternação momentânea quanto ao Estado em momentos cruciais, pode ser verificada quando da depressão européia do início dos anos 80 com a crise do petróleo, quando a mesma situação levou duas opções diferentes, isto é, um governo conservador na Alemanha e um 76

Ibidem, p. 67. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 260. 78 Ibidem, p. 261-262. 77


44 governo de esquerda na França, caracterizando assim que uma opção quanto outra é parte da posição moderna de alternação governamental em momentos propícios. Em relação à política micrológica e segmentar pós-moderna, Rouanet não entende que o aparecimento de movimentos como dos homossexuais, das mulheres, dos ecologistas ou dos pacifistas, possa caracterizar uma ruptura em relação a forma política moderna, já que o surgimento desses atores políticos é a realização do liberalismo moderno, que com sua doutrina de direitos humanos inalienáveis concedeu um espaço para a criação de novos direitos políticos defendidos por novos atores sociais.79

3.3 A neo-modernidade cultural

Utilizando o paradigma da neomodernidade, Rouanet afirma também que não estamos vivendo uma pós-modernidade cultural. Os pressupostos teóricos da pós-modernidade dizem que a ciência moderna seria determinista, enquanto a ciência pós-moderna é probabilística, indeterminista, baseada na incerteza e na incredulidade em relação às grandes narrativas e na sua forma de legitimação por meio da própria pragmática do discurso científico, circunscrito na diferença, no novo e na paralogia, principalmente de acordo com a visão de Lyotard.80 Em relação ao critério da aceitabilidade do enunciado científico, Rouanet considera que a ciência contemporânea não pode ser denominada pósmoderna, pois: desde o nascimento da ciência moderna, com Galileu, a finalidade do enunciado da ciência é produzir o novo em relação ao que já se sabe, na medida que esse mesmo enunciado é aceito pelos cientistas quando pode ser controlado experimentalmente, servindo de objeto de argumentação para a formulação de algo novo ou em 81 direção de um novo paradigma científico.

Já em relação ao ponto de vista da legitimação, a ciência hodierna não pode ser também caracterizada como pós-moderna porque as grandes narrativas, que são os instrumentos de legitimação da ciência moderna, 79

Ibidem, p. 262. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras. 1987. p. 273. 81 Ibidem, p. 275. 80


45 enquanto libertadora do gênero humano ou como parte imanente de seu autoconhecimento, não estão ausentes. Isto é, os cientistas de hoje ainda invocam o valor humanista e libertador da ciência, sendo sua legitimação embasada na posição de ser a ciência um campo de conhecimento completo. Assim, em relação à ciência, não podemos, de acordo com Rouanet, pensar numa ciência pós-moderna, já que tanto a aceitabilidade dos enunciados científicos quanto suas pretensões de legitimidade são os mesmos desde o nascimento da ciência moderna extraída da esfera religiosa.82 No tocante a filosofia, se o fator que caracteriza a pós-modernidade filosófica é a crítica da razão moderna, nada mais moderno que a posição crítica da própria pretensão pós-moderna, já que a filosofia moderna já nasceu numa crise de contestação sobre a razão. ao refletir filosoficamente a modernidade em seu nascimento, Hegel estava refletindo uma modernidade já em crise, pois tentando responder os dilemas da razão moderna por via de uma razão reconciliadora, ele reage á fragmentação do homem culturalmente por meio do próprio instrumento racional moderno, ou seja, a razão 83 iluminista.

Neste contexto, as críticas da modernidade de Nietzche, Derrida e Foucault, afirmando que a razão moderna é o principal mecanismo de repressão e reificação do homem, são tão modernas quanto o pensamento de Hegel. Assim a crítica derridiana não se dirige à razão em si, mas à razão que marginalizou o corpo, o inconsciente e a vida, o mesmo aplicando-se a crítica foucaultiana, que era voltada à uma razão cínica, que se coloca ao lado do poder, asfixiando todas as potências humanas. De acordo com Rouanet: nem em Derrida ou em Foucault aparece a glorificação da nãorazão, da intuição, da ignorância ou do não-saber, pois o suposto irracionalismo que professam, em nome da não-racionalidade, é na verdade o mais puro ato moderno de problematizar racionalmente a própria modernidade, não havendo nenhum pós-modernismo em 84 Foucault ou em Derrida.

Na esfera axiológica weberiana da moral, não há evidências de que a moral mais livre e mais pluralista da atualidade representa uma cisão 82

Ibidem, p. 275. BARBOSA, Ricardo José Correa. Filosofia prática e modernidade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006, p. 24. 84 ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 277. 83


46 fundamental com a modernidade. Apesar da ética calvinista ligada à religião, preocupada com a justificação do mundo do trabalho, não se correlacionar com a rejeição ao trabalho e com os pressupostos valorativos hostis à família e ao Estado das subculturas jovens de hoje, não prova a caracterização de uma moral pós-moderna, pois necessariamente, pela automatização da esfera ética em esfera axiológica própria, a moral moderna tinha que perder seu rigorismo pela secularização e pelo hedonismo ao consumo. Na perspectiva de Rouanet, não há ruptura com a arte moderna, já que se tivéssemos numa pós-modernidade estética a esfera axiológica da arte teria perdido sua autonomia, sendo novamente acoplada ao tradicionalismo simbiótico da religião e do Estado, como também se essa autonomia fosse absorvida pela vida, perdendo sua validade de se manter negativamente contra os

modelos

concretos

de

organização

social,

pelo

processo

de

dessublimação.85 Assim, segundo Ricardo José Correa Barbosa: apesar da arte contemporânea estar mais próxima do mundo ou espaço comercial, das mercadorias, não se pode generalizar com isso que a arte seja em si a própria hedonização pelo consumo 86 cultural.

O ecletismo da arte atual, seu historicismo recorrente ao pastiche de obras do passado, não simboliza uma ruptura com a arte moderna, pois tomando como exemplo a arquitetura contemporânea: a arquitetura do início do século XXI, por exemplo, não sabendo aplicar os novos materiais proporcionados pela indústria, como o vidro e o ferro, volta-se para ao passado, construindo estações 87 ferroviárias com colunas de ferro que imitavam colunas gregas.

Nesse sentido, a arquitetura contemporânea, quando coloca num mesmo espaço símbolos do passado com características do presente, não estar rompendo com o modelo de arquitetura moderno, mas realizando-o. Em suma, na concepção rouanetiana, o conceito de pós-modernidade estar vinculado mais a uma consciência ilusória de ruptura com a modernidade

85

De acordo com a aplicação no contexto conceitual de Rouanet, dessublimação significa a desapropiação da luta de classes como espaço próprio para a transformação social, ensejando a hegemonia da libido e do corpo, como moderno estereótipo a ser seguido como arte na existência moderna. (C.f. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 279). 86 BARBOSA, Ricardo José Correa. Filosofia prática e modernidade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006, p. 53. 87 ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 282.


47 do que a existência real dessa ruptura na realidade, propondo dessa forma a cunhagem do termo neo-modernidade ou neo-moderno para a situação em que a humanidade vive, isto é, a crítica da modernidade com o desejo de ultrapassar a mesma para uma existência melhor. Logo, a neomodernidade simboliza a crítica da modernidade em suas estruturas características, porém não com o objetivo de ultrapassá-la, mas no sentido de corrigir o projeto libertador da modernidade.

CONSIDERAÇÕES

A Modernidade é conceituada por diferentes determinações conceituais. Entretanto, de acordo com Marx Weber, o ano de 1784 marca o nascimento do discurso filosófico da modernidade, ou seja, a partir das especulações de Emmanuel Kant a modernidade estabelece uma relação não mais embasada na comparação com o passado, mas se relaciona consigo mesma. Em outras palavras, por meio da filosofia kantiana a modernidade pensa sobre si mesma. O projeto moderno afirma que as únicas fontes de conhecimento seguras para o homem são a razão e o conhecimento científico proporcionado pela mesma racionalidade, desprezando qualquer forma de conhecimento que se funde no dogma, na superstição ou mesmo na fantasia, objetivando para toda a humanidade a independência mundial, onde as pessoas agiriam ativamente na construção da sociedade por suas próprias convicções. O discurso iluminista de emancipação pela revolução ou pelo saber, sustenta a confiança na capacidade da razão, onde o processo de racionalização redundou em modificações nas esferas da cultura e da sociedade, tornando a vida baseada na razão e no método científico. Marx Weber chama o processo moderno de racionalização do mundo vivido, onde antes era dominado pela esfera religiosa. Isto é, antes do surgimento de esferas como a cultura e da sociedade, pensando com autonomia, as mesmas estavam imbuídas na esfera da religião, onde nessa perspectiva a modernidade torna-se o processo de racionalização do mundo ou mecanismo de desencantamento do mesmo mundo pelo domínio da razão. Pelo processo de racionalização da esfera social surgiu uma economia capitalista completamente institucionalizada e um Estado político embasado na


48 burocratização. Enquanto isso, o mesmo processo de racionalização na esfera da cultura fez surgir âmbitos com autonomia de ação, que antes eram regidos pelo amplo domínio da esfera religiosa, como a ciência moderna, a moral moderna, a filosofia moderna, o direito e a arte moderna. A modernidade social, abrangendo a esfera econômica e política se caracteriza

por

complexos

de

ação

autonomizados

que

escapam

crescentemente ao controle consciente dos indivíduos, através de dinamismos anônimos e transindividuais. A economia moderna é evolutiva de acordo com o próprio desenvolvimento do capitalismo. Assim, num primeiro momento, quando o capital estava limitado a espaços nacionais, a economia moderna foi baseada no liberalismo clássico, enquanto num segundo momento, quando o capital torna-se monopolista, procurando anexar outros mercados, a economia moderna rege-se pelo keynesianismo, onde o Estado interfere nas ações econômicas. Em ambos os momentos, a economia moderna é caracterizada pela crescente industrialização social e pelo desenvolvimento tecnológico. Correlacionando-se com o desenvolvimento da economia moderna, o Estado moderno acompanhou a evolução do desenvolvimento do capital. Assim, ao primeiro momento do capital, correlacionou-se um Estado liberal clássico, com um mínimo de intervencionismo, enquanto ao segundo estágio do capital representou um Estado keynesiano com funções contracíclicas e de bem-estar social. Com a decadência do domínio da esfera religiosa, reguladora das esferas sociais e culturais em si imbuídas, possibilitou a emergência de modificações também no mundo cultural, surgindo esferas com autonomia própria, passando a ver e compreender o mundo de forma específica e com capacidade racional. No contexto da racionalização cultural, a ciência recebe a finalidade de conceber narrativas legitimadoras que justificam sua própria teleologia enquanto instrumento de conhecimento seguro e racional. Segundo David Harvey: a ciência moderna nasce com a finalidade de racionalizar o mundo, sendo assim que acredita-se na melhoria existencial pela capacidade segura e lógico-matemática advinda da esfera científica, buscando


49 fazer com que a razão seja o mecanismo funcional da sociedade 88 moderna.

A esfera moral também foi invadida pelo processo de racionalização. Nas sociedades pré-modernas a moral era diferenciada em cada clã ou tribo, enquanto na modernidade ela se torna universal e tematizada, surgindo uma moral ética racionalizada no modo de produção capitalista. A arte moderna tem seu começo no início do século XX, sendo uma crítica ao convencionalismo e as regras castradoras, destruindo a estética tradicional. Na modernidade, enquanto a literatura se opõe a ordem burguesa, alternando o espaço mítico pelo realista, na manipulação consciente de paralelos entre o mundo antigo e o moderno, a arquitetura levanta a bandeira de rejeição dos estilos históricos, objetivando construir um modelo arquitetônico geométrico e abstrato, sem utilizar do ornamento supérfluo. A pós-modernidade se caracterizaria por mudanças na cultura, na vida social e na economia, e em todas as outras esferas sociais da modernidade. A economia pós-moderna é caracterizada pela globalização do capital, onde com a perda do controle econômico pelo Estado, a esfera econômica retorna ao liberalismo, sob o epíteto de neoliberalismo. Acompanhando a trajetória do capital econômico, o Estado político hodierno, para alguns pensadores, pode ser considerado pós-moderno, já que a política atual é configurada nas relações de interesses particulares ou grupais, e não mais baseada no discurso do grande partido com sua ideologia, como também no grande personagem político. No que se refere à arte, a pós-modernidade apresenta o pastiche como principio artístico, enquanto a arquitetura se define pela mistura de estilos, numa mescla de citações. Já a ciência pós-moderna não aceita nem acredita mais nas grandes narrativas justificadoras, pois ela justifica-se pela paralogia, pela diferenciação e pela assimetria, apoiando não mais no consenso, mas no dissenso. Contudo, não estamos vivenciando uma pós-modernidade, apesar das transformações sentidas nas esferas sociais e culturais, mas estamos em uma nova modernidade, onde tais modificações são formas ou maneiras de atualizar o próprio projeto iluminista moderno. Ou seja, estamos em uma 88

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 133.


50 neomodernidade, termo cunhado por Paulo Sérgio Rouanet para designar a não-existência de uma ruptura com a modernidade, aceitando ao mesmo tempo as críticas propostas pelo pensamento autodenominados pós-moderno. A

neomodernidade

é

a

favor

das

melhorias

trazidas

pelo

desenvolvimento industrial e tecnológico, mas é contra a coisificação do homem em ser autômato, como também é a favor da participação da sociedade nas linhas de pesquisa científica, com base no racionalismo não mais ingênua como no Iluminismo, já que a razão neomoderna reconhece, pelos pensamentos de Karl Max e de Sigmund Freud, que a própria a razão pode ser vitima de não-razão discursiva ou pela desrazão inconsciente. A moral neomoderna é eticamente universalizante, onde possam ser transformáveis de acordo com o debate coletivo. Já a arte neomoderna se apresenta como instrumento ou mecanismo de formação e educação do gênero humano, contrária ao tipo de arte banalizada a serviço de uma moral, religião ou política que domestique o homem. Em suma, para Paulo Sérgio Rouanet89, a consciência defendida pelos autodenominados pensadores pós-modernos, em relação a uma cisão real com a modernidade, é uma consciência falsa, onde a causa desse sentimento forçado inconscientemente são fatores reais, práticos que marcaram a modernidade, como duas grandes guerras mundiais, campos de concentração humana, experiências atômicas e outros fatores. Não estamos em uma pós-modernidade econômica baseada na passagem de uma economia industrial para uma pós-industrial, já que ainda estamos no mesmo modo de produção econômica, onde somos afetados pelo mesmo, e onde ainda ele é baseado na sistemática expropriação do excedente privado, e, mesmo declinando o setor industrial em proveito do setor de serviços, não prova em nada a existência de uma pós-modernidade na economia atual, isso porque desde os primeiros teares ingleses a lógica é a aplicação da tecnologia no setor terciário, em detrimento do setor secundário. A neomodernidade ainda diz que o Estado político não é pós-moderno, mesmo com alterações sofridas na forma de fazer política nos dias atuais. Enquanto no pós-modernismo o Estado tem uma volta ao modelo pré-keynes

89

ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 273.


51 de ação e pela importância de grupos segmentares, a neomodernidade afirma ser natural mudanças estruturais no paradigma governamental, enquanto a política micrológica e segmentar não significa uma ruptura com a modernidade política, mas confirma a teoria moderna dos direitos humanos, nascida no contexto da modernidade. A ciência atual também não pode ser caracterizada como pós-moderna, baseada na atitude probabilística da mesma, fundada também na incerteza e na incredulidade dos grandes metadiscursos científicos que legitimavam a ciência moderna, já que a finalidade da ciência, desde os trabalhos de Galileu, é produzir o novo em relação ao que já se sabe, como também, porque, mesmo criticando a ação da filosofia especulativa, os cientistas hodiernos invocam o valor humanístico e libertador do conhecimento científico. A filosofia atual não representa uma ruptura com o pensamento filosófico moderno, pois este mesmo pensamento já nasceu numa crise epistemológica, já que pensar filosoficamente sobre si mesma já possibilitava a razão filosófica moderna o entendimento objetivo de aporias de si mesma, como demonstram as críticas de Niestzche, Derrida e Foucault. Não há ainda evidências de que a moral mais livre e mais pluralista da atualidade represente uma ruptura com a modernidade, já que, com a automatização da esfera ética em esfera axiológica própria, a moral moderna tinha

necessariamente

que

perder

seu

rigorismo,

pelas

forças

da

secularização, do hedonismo e do consumismo. A arte atual é neomoderna porque não perdeu sua capacidade de ser autônoma, a ponto de retornar ao tradicionalismo dual da religião e da Estado, sendo em si historicista, como é também a arquitetura neomoderna, recorrente a utilização de traços antigos e novos no mesmo espaço físico. Nestas condições, a pós-modernidade é uma criação, um contexto histórico fictício que representa a fadiga mental e corporal, ideológica e estrutural das vicissitudes da modernidade, objetivando condicionar a mente para uma hipotética realidade nova, sem as deformações psíquicas e materiais próprias da modernidade baseada na ingenuidade iluminista.


52 REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. O sentido do trabalho: ensaios sobre a afirmação e negação do trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. Religião e modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996, p. 122. BARBOSA, Ricardo José Correa. Filosofia prática e modernidade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006. BAUDELAIRE, Carles-Pierre. O artista moderno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 273. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. FREITAG, Bárbara. Habermas e a filosofia da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1993. HABERMAS, Jürgen. Modernidade: um projeto inacabado. São Paulo: Brasiliense, 1995. __________________O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Ática, 1998. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2005. JAMESON, Frederic. O pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. São Paulo: Ática, 1993. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1978. OLIVEIRA, Ramom. A (des) qualificação da educação profissional brasileira. São Paulo: Cortez, 2003. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987. ______________________Do pós-moderno ao neomoderno. São Paulo: Cia das Letras, 1986. SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1991.


53 WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968, p. 30. ____________Rejeições religiosas do mundo e suas direções. São Paulo: Cultural, 1974, p. 16.

Documentos eletrônicos

Citações e referências a documentos eletrônicos. Banco de dados. Disponível em: http: // www. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pop_art. Acesso em 24 de maio de 2009 Citações e referências a documentos eletrônicos. Banco de dados. Disponível em: www. http://pt.wikipedia.org/wiki/Punk_rock. Acesso em 24 de maio de 2009


54

2 MUTAÇÕES NAS ESFERAS SOCIAIS DO BRASIL: 1808

Alexandre Gilberto Sobreira Manuela da Silva Cobeu Marília Pereira Silva

Introdução Exatamente neste ano de 2008, em vários pontos do Brasil se fizeram comemorações ao Bicentenário na instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, ocorrida no ano de 1808, que modificou profundamente a história do país. Incapaz de enfrentar Napoleão Bonaparte em seu próprio país, D. João, como personificação do Estado absolutista lusitano, deixa claro mais ainda dois fatos importantes, sendo ambos conhecidos de longas datas: explicita a fragilidade do Estado no jogo político europeu, ao mesmo tempo em que reforça a dependência desse mesmo Estado para com a Inglaterra. O primeiro legitima o segundo! Desejo antigo, porém, realizado ás pressas, a fuga da Corte e sua instalação nos Trópicos, apesar de permanências estruturais quanto a governabilidade, se desencadeará em processo mutacional das esferas sociais do Brasil a partir de 1808, sob o ponto de vista dos habitantes da até então de facto Colônia. O presente trabalho é um convite ao leitor a conhecer as mutações sociais nas mencionadas esferas coloniais proporcionadas pela Corte portuguesa, caracterizando relevantes aspectos na formação a posteriori do Brasil quanto Estado de facto e principalmente de direito, sob a égide da autonomia administrativa. O nosso percurso analítico vai se dividir em três momentos. No primeiro, pretendemos levar o leitor a conhecer a conjuntura político-econômica, como também

ideológica,

da

Europa

no

inicio

do

século

XIX,

marcada,

especialmente, pelos efeitos de Napoleão Bonaparte. Assim, conheceremos a


55 posição do Estado português sem seu aspecto político, fator este determinante para o desfecho que levou à fuga para o Brasil da Corte. Prosseguindo, determinaremos o desenvolvimento próprio da fuga em si, mostrando que, desde o século XVI havia anseios a formação de um Grande Império nas águas mornas dos Trópicos. No capítulo seguinte, abordaremos os três séculos do Brasil Colônia, precisamente nas esferas econômica, política e cultural, mostrando que a economia, praticada nos ditames do Mercantilismo (parte da engrenagem do Sistema Colonial) ainda não se inserira, mesmo como dependente do contexto internacional, no capitalismo. Assim, enquanto o Brasil foi Colônia, o Poder, consequência inerente da Esfera Político-Administrativa, foi praticado por diferenciadas formas e “centros decisórios” (Público e privado), até que, com a instalação do aparelho burocrático trazido por D. João, estabeleceu-se uma racionalização homogênea na formação de Órgãos Institucionais alocados para o exercício do Poder na mesma Esfera. A cultura colonial é representada neste trabalho, em lacônicas manifestações das inúmeras existências, englobando traços materiais e não-materiais, como a literatura do século XVII, imbuída pelo cultismo e pelo conceptismo, diferentemente da do século XVII, marcada pelo arcadismo. Socialmente, as relações se davam nas principais festas comemoradas no ano, acentuando-se características de uma cultura dominada não pelo “aperfeiçoamento” dos hábitos, de acordo com a nobreza lusa, porém, pela permanência na prática dos discursos moralistas, principalmente, os religiosos. A partir desse ponto, no terceiro capítulo, analisaremos as mutações ocorridas nas três Esferas mencionadas. Ou seja, pelos decretos e fundações de D. João, apreenderemos como transformações alteraram todo o conjunto material e mental, buscando compreender as características de uma “nova” economia fazendo parte do capitalismo internacional. Enquanto que, com a Corte, a Esfera Política homogeneíza-se por meio de uma burocracia estatal, dando viabilidade e condições teórico-pragmáticas para os projetos de transformações de si. Por fim, a maior característica cultural oriunda da Corte, em termos de mutações, é o surgimento do “refinamento” de hábitos pela política do projeto “civilizador”, onde, embasado na variante européia presente em todas as


56 Cortes do Velho Continente, representou por via de instituições próprias o “polimento” de conditas antigas, por meio de novas formas culturais, tentando asfixiar a mentalidade colonial considerada “atrasada” sob a interpretação do etnocentrismo português.

1 Contexto histórico – início do Século XIX na Europa

O final do século XVIII e o início do XIX foram uma época de crises para os velhos regimes da Europa e seus sistemas econômicos, onde suas últimas décadas estiveram cheias de agitações políticas, às vezes chegando a ponto de revolta, às vezes movimentos coloniais em busca de autonomia. A quantidade de manifestações é tão considerável e peculiar que, segundo Hobsbawn (2006, p. 85): [...] alguns historiadores mais recentes falaram de uma era da revolução democrática, em que a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora o mais dramático e de maior alcance e repercussão.90 Apesar da existência de variadas ações políticas que eram contrárias ao Velho Regime europeu, foi a Revolução Francesa e suas consequências diretas e indiretas que, politicamente, influenciaram todo o mundo. No final do século XVIII e início do XIX, a filosofia política que imperava como contraideologia em oposição à ideologia do Absolutismo era o Iluminismo, que pregava a necessidade de libertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam, do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra pelo mundo, da superstição das Igrejas, da irracionalidade que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixa e mais altas de acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. Mesmo sob a tentativa do Despotismo Esclarecido, onde por meio do qual as monarquias européias pretendiam petrificar a ordem política e social vigente nos Anciéns Regimes, a apaixonada crença no progresso que professava o típico pensador do Iluminismo, a confiança na razão e no talento individual, já demonstrava seus resultados práticos, refletindo os aumentos 90

HOBSBAWN, Eric. J. A Era Das Revoluções: Europa 1789-1848. Editora Paz E

Terra, 20ª Edição, Tradução de Maria Lopes e Marcos Penchel. São Paulo, a p 85, 2006.


57 visíveis no conhecimento e na técnica, na riqueza, no bem-estar e na civilização que podia ver em toda a sua volta e que, com certa justiça, atribuía ao avanço crescente de suas idéias. Apesar da Revolução Francesa não ter sido feita ou liderada por um partido ou movimento organizado, no sentido moderno, nem por homens que estivessem tentando levar a cabo um programa estruturado, um surpreendente consenso de idéias gerais de um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário uma unidade efetiva. O grupo era a Burguesia, baseado nas idéias do Liberalismo Clássico, conforme formuladas pelos filósofos e economistas e difundidas pela maçonaria e associações informais. As exigências burguesas foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no mesmo ano da Revolução. Sendo este documento um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, ao mesmo tempo não se tornou em um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária, pois, enquanto dizia que os homens nascem e vivem livres perante as leis, confirmava a existência de distinções sociais, ainda que somente no terreno da utilidade comum. A propriedade privada era um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável, ao mesmo tempo em que as profissões estavam abertas ao talento. A Declaração afirmava – contrária a hierarquia absolutista – que todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das leis, mas pessoalmente ou através de seus representantes, sendo que a Assembléia Representativa uma assembléia democraticamente eleita, ou seja, uma República Democrática, mas uma Monarquia Constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras que confirmasse os ideais burgueses. Neste cenário, enquanto vários Estados se libertavam do Absolutismo, proporcionando avanços em todos os seguimentos da sociedade, o Estado português parecia não ser afetado por todas as rupturas e convulsões políticas. Três séculos depois de ter inaugurado a era das grandes navegações e descobertas, Portugal nem de longe lembrava a metrópole cheia de energia e empreendorismo dos tempos de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, sendo Lisboa, ultrapassada por suas vizinhas européias como núcleo irradiador de idéias e inovações.


58 As causas da decadência portuguesa encontram-se explicitadas em duas ordens. A primeira era demográfica e econômica, segundo Gomes (2007, p. 57): Com uma população relativamente pequena, de três milhões de habitantes, Portugal não tinha gente nem recursos para proteger, manter e desenvolver seu imenso império colonial, dependendo cada vez mais de escravos para a 91 exploração de sua economia.

Sendo sua economia embasada nos ditames do extrativismo e do mercantilismo, Portugal não possuía capital, pois toda a riqueza produzida por suas colônias, principalmente a brasileira, não se fixava em seus territórios, onde a metrópole era apenas um entreposto comercial, de onde partiam para outros países europeus. Por sua vez, a segunda causa da decadente situação lusitana era política e religiosa. De todos os países europeus, Portugal continuaria sendo, em 1807, o mais católico, o mais conservador e mais avesso às idéias libertárias que produziram revoluções e transformações em outras nações. A Igreja Católica mantinha submissos o povo, os nobres e reis, a ponto de, por escrúpulos religiosos, a Ciência e a Medicina serem atrasadas ou praticamente desconhecidas. Portugal foi o último país que destituiu a utilização da Inquisição, na qual pessoas que ousassem criticar ou se opor à doutrina da Igreja, incluindo infiéis, hereges, judeus, mouros, protestantes e mulheres suspeitas de feitiçaria, eram julgadas e condenadas à morte na fogueira. Portugal era a nação européia mais opositora à modernidade dos costumes e das idéias. A junção desses dois fatores – escassez de recursos ou capitais e baixo índice demográfico, com o escamoteamento da modernização social, principalmente política e cultural – deixava o Estado lusitano em uma posição estática em comparação aos avanços sociais verificados no início do século XIX.

1.1 Portugal e a conjuntura política européia - 1807

91

GOMES, Laurentino. 1808. Editora Planeta, São Paulo. a p. 55, 2007.


59 Na manhã de 29 de novembro de 1807, os portugueses sentiram a amalgação dos sentimentos de desamparo e traição, depois, de medo e revolta, quando circulou a notícia de que a Rainha, o Príncipe Regente e toda a Corte estavam fugindo para o Brasil sob a proteção da Marinha britânica. Este fato revelava a inaudita situação em toda a história de qualquer outro país europeu, pois, em tempos de peleja bélica, reis e rainhas haviam sido destituídos de seus tronos ou compelidos a se refugiar em territórios alheios, porém, nenhum deles tinha se deslocado tão longe a ponto de cruzar um oceano para viver e reinar do outro lado do mundo. Em relação a fuga da Monarquia portuguesa para o Brasil, Gomes (2007, p. 30), afirma que: Embora os europeus dominassem colônias imensas em diversos continentes, até aquele momento nenhum rei havia colocado os pés em seus territórios 92 ultramarinos para uma simples visita, muito menos para ali morar e governar.

Para entendermos os significados dos sentimentos acima mencionados, em relação aos portugueses, temos que recorrer às noções de Estado, Governo e Identidade Nacional, características do início do século XIX. Duzentos anos atrás, essas noções não possuíam o sentido que a determinam atualmente. Em Portugal, no ano de 1807, ainda perdurava – que em si determinava seu posicionamento ideológico e pragmático atrasado, em relação às idéias e reformas políticas, como a representabilidade política por grupos parlamentares – o Regime Absolutista, sendo o Rei a máxima expressão do poder. A própria conceituação histórica da Monarquia Absolutista, serve para compreendermos que, ao Rei, caberia não apenas criar as leis, mas também executá-las e interpretá-las da forma que julgasse mais adequada, sendo que, juizes e Câmaras Municipais existentes funcionavam como extensões políticas do próprio Rei. Assim, com a fuga da Corte, Portugal deixava de ser Portugal, uma nação independente, com governo próprio, passando a ser um espaço geográfico vazio e sem identidade, já que sem o Rei, o país ficava sem orientação política, pois dele dependiam todo o desenvolvimento econômico, a

92

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 30, 2007.


60 sobrevivência das pessoas, o governo, a independência nacional e a própria razão de ser do Estado português. Ainda, segundo Gomes (2007, p. 31): Sem a direção administrativa da Monarquia portuguesa, o próprio país e seus habitantes, entregues aos interesses e à cobiça, ficava disposto a qualquer ·93 aventureiro que tivesse força para invadir suas cidades e alocar o trono.

O motivo em si, da fuga da Corte portuguesa para o território brasileiro, foi resultante da conjuntura política européia do fim do século XIX, conjuntura esta oriunda da ação do maior vulto militar que o mundo havia conhecido desde a época dos Imperadores Romanos, qual seja, Napoleão Bonaparte. A esse respeito, Gauvard (2003, p. 63), faz esta afirmação: “[...] Napoleão Bonaparte, Imperador francês, conseguiu realizar façanhas que deixariam o próprio Carlos Magno suspenso em uma atmosfera de admiração”.94 No ano de 1807, o Imperador da França, Napoleão, se constituía o senhor quase absoluto da Europa, onde seu exército havia destituído quase todos os reis e rainhas do continente, numa sucessão de vitórias. A exceção foi a Inglaterra. De acordo com Gomes (2007, b p. 33): Protegidos pelo Canal da Mancha, os ingleses tinham evitado o confronto direto em terra com as forças de Napoleão. Ao mesmo temo, haviam se consolidado como a senhora dos mares na batalha de Trafalgar, em 1805, quando sua Marinha de Guerra, sob os auspícios de Lord Nelson, destruiu, na 95 entrada do mediterrâneo, as esquadras combinadas da França e da Espanha.

Em

conseqüência,

Napoleão

decretou

o

Bloqueio

Continental,

ordenamento que determinava o fechamento portuário dos países europeus ao comércio de mercadorias inglesas. Contudo, apesar do poderio militar do exército bonapartista, Portugal relutou em cumprir as ordens do Imperador. Como era um país pequeno e desprotegido, a relutância portuguesa não caracterizava um ato de coragem, mas o prolongamento histórico e econômico com a Inglaterra, já que, desde a assinatura do Tratado de Methuen, em 1703, os dois países haviam reafirmado antigos laços diplomáticos.

93

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 31, 2007.

94

GAUVARD, Claude. Era Moderna. História Viva, São Paulo, nº33, a p 41, 2003.

95

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 33, 2007.


61 Ameaçado pelas duas maiores potências econômicas e militares de sua época, D. João, o Príncipe Regente português, futuro D. João VI, tinha que escolher uma entre duas alternativas excludentes. A primeira era ceder as pressões de Napoleão e participar do Bloqueio Continental. A segunda, aceitar a oferta dos aliados ingleses e embarcar para o Brasil, levando junto a Família Real, a maior parte da nobreza, seus tesouros e todo o aparato do Estado. Para Monteiro (1981. a p. 20): Aparentemente era uma oferta generosa; na prática, tratava-se de uma chantagem, pois, se, D. João optasse pela primeira escolha e se curvasse às exigências da França, a Inglaterra repetiria em Portugal o que já havia feito, meses antes, concomitantemente na Dinamarca [...] Na manhã de 1º de setembro de 1087, os habitantes de Copenhagem, acordaram sob uma barragem de fogo despejada pelos navios ingleses ancorados em seu porto, 96 apoderando-se de seus navios, materiais e munições.

No caso português, os efeitos provavelmente seriam piores, pois os ingleses não bombardeariam apenas Lisboa, porém, talvez conquistariam suas colônias ultramarinas, das quais o país dependia consubstancialmente para sobreviver, sendo o Brasil a principal dessas colônias. A possibilidade de permanecer em Portugal, enfrentar as tropas napoleônicas ao lado dos aliados ingleses, sequer foi levada em conta por D. João, decidindo fugir. Monteiro (1981. a p. 21), explica que: Preferindo abandonar a Europa, D. João procedeu com exato conhecimento de si mesmo, pois, sabendo-se incapaz de heroísmo, escolheu a solução pacifica de encabeçar o êxodo e procurar no morno torpor dos trópicos a tranqüilidade 97 ou ócio para que nasceu.

A objetividade teleológica do pensamento de Monteiro encontra-se em consonância com a maior parte do acervo historiográfico escrito acerca do chefe de Estado português no início do século XIX, ou seja, o principal traço da personalidade de D. João era a indefinição de escolhas, sendo que alocava tais responsabilidades para seus ministros, descaracterizando o comportamento do típico rei europeu. O contexto em que ocorre a fuga da Corte portuguesa, o que diretamente irá determinar as mutações nas esferas sociais da Colônia 96

MONTEIRO, Tobias. História do Império: A Elaboração Da Independência. Belo

Horizonte, Itatiaia, a p 20, 1981. 97

MONTEIRO, Tobias. Op Cit, b p 21, 1981.


62 brasileira, é marcado por mudanças sociais, principalmente na forma de legitimação política. Isto é, na época em que o Imperador Napoleão dominava o continente europeu, a própria representatividade do poder de maneira monarquista, vinha perdendo seu direito de existência, sendo que, foram por meio das guerras napoleônicas que as estruturas políticas européias modificaram-se paulatinamente. Ainda segundo Monteiro (1981. b p. 55): Se lançarmos os olhos para a Europa de 1807, veremos um extraordinário espetáculo[...] o rei da Espanha mendigando em solo francês a proteção de Napoleão; o rei da Prússia foragido de sua capital ocupada pelos soldados franceses; a Escandinávia prestes a implorar um herdeiro dentro dos moldes 98 dos marechais de Bonaparte[...]

Em

suma, foi neste

contexto

histórico,

extremamente

agitado,

conturbado politicamente, que a Família Real portuguesa, no ano de 1807, se desloca, para o outro lado do Atlântico a fim de preservar sua legitimidade como realeza e governar, ao mesmo tempo em que estimulou as alterações nas esferas sociais do Brasil, principalmente na economia, na política e na cultura, alocando em si, os foros de criação da identidade nacional brasileira.

1.2 Concretização de um desejo antigo

Historicamente, desde a Época dos Descobrimentos, Portugal dependia, de forma inquestionável, economicamente da colônia brasileira. A balança comercial entre os dois pólos não era favorável para Portugal, nem tão pouco entre o Estado lusitano e a Inglaterra. Como a Monarquia portuguesa foi a última nação que deixou o Absolutismo como representação do poder político e econômico, compelida pela sinergia das alterações oriundas do cenário europeu, a relação comercial com o Brasil, no início do século XIX, era de importância capital para a sobrevivência do Reino – embora essa relação não proporcionasse a si a acumulação de capitais – sendo o ouro, o fumo e a canade-açúcar, produzidos na Colônia, as principais mercadorias que fomentavam a ligação de suas relações comerciais. De acordo com Maxwell (2005, p. 42):

98

MONTEIRO, Tobias. Op Cit, a p 55, 1981.


63 O volume de bens e mercadorias importados da colônia chegou a ser quase duas vezes superior às exportações [...], onde 61 % das exportações portuguesas para a Inglaterra, em 1807, seu principal parceiro econômico na época, saíam do Brasil, sendo que, trezentos navios lusitanos que atracavam por ano no porto de Lisboa, um terço se encontrava estritamente 99 correlacionado ao comércio com o Brasil.

Com essa necessária dependência econômica de Portugal em relação ao Brasil, as propostas de mudança da Monarquia lusitana para a Colônia brasileira, acompanharam a própria historicidade do Reino, notadamente caracterizadas pelo reconhecimento da decadência de si e sempre que achava ameaçado por seus vizinhos territoriais. As primeiras anotações, propondo a mudança da Corte para a América são de 1580, ano em que, o Rei Felipe II, da Espanha, assumiu o trono português, devido ao desaparecimento do Rei lusitano, D. Sebastião, numa cruzada contra os mouros no Marrocos. Durante sessenta anos, Portugal foi administrado pela Coroa espanhola, ficando esse período conhecido como União Ibérica. Em 2001, Shultz (2001, p. 17), escreveu: Em 1640, um grupo de Conselheiros Reais preocupados com as constantes ameaças à autoridade de Portugal, incluindo o Padre jesuíta, Antônio Vieira, propôs a criação de um império nas Américas, para onde seria transferida a sede da Monarquia. Vieira tinha uma visão messiânica, pois, segundo ele, Portugal estava destinado a recriar nas Américas o Quinto Império, um reino 100 bíblico previsto pelo profeta Daniel no Velho Testamento.

Décadas mais tarde, em 1736, o embaixador português em Paris, Luiz da Cunha, em memorando secreto a D. João V, reproduzido por Maxwell (2005, p. 17) dizia que: [...] Portugal não passa de uma orelha de terra, onde o Rei jamais poderia dormir em paz e em segurança... sendo necessária mudar a Corte para o Brasil, onde o mesmo Rei assumiria o título de Imperador do Ocidente [...]101

99

MAXWELL, Kenneth. A Devassa Da Devassa – A Inconfidência Mineira: Brasil E

Portugal (1750-1808). Editora Paz e Terra. São Paulo, a p 42, 2005. 100

SHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles: Empire, Monarchy, And The Portguese

Royal Court In Rio De Janeiro (1808-1821). Nova York: Routledge, a p 17, 2001. 101

MAXWELL, Kenneth. Op Cit, a p 17, 2005.


64 Em 1762, diante de mais uma ameaça de invasão, o então Marquês de Pombal propôs que o Rei, D. João I, tomasse as medidas necessárias para sua passagem ao Brasil. Citada por Lima (1996, p. 45), D. Pedro de Almeida Portugal, terceiro Marquês de Alorna, escreveu em 1801, após derrota portuguesa para a Espanha, reconhecendo a fragilidade do reino lusitano: Vossa Alteza Real tem um grande império no Brasil, sendo necessário que ordene armar com toda a pressa todos os seus navios de guerra e todos os de transporte que se acharem na Praça de Lisboa, e que meta neles a Princesa, 102 seus filhos e os seus tesouros.

Gomes (2007, p. 48), cita que, em 1803, após avaliar geopoliticamente a Europa, D. Rodrigo de Souza Coutinho, então chefe do Tesouro Real, o mesmo envia um relatório ao Príncipe Regente, afirmando que a monarquia portuguesa corria perigo, necessitando a partida para o Brasil: Portugal não é a melhor parte da Monarquia, nem a mais essencial, sendo que, após as consequências da longa e sanguinolenta guerra, ainda resta ao seu Soberano, ir criar um poderoso império no Brasil, onde quaisquer que sejam os perigos que acompanharem uma tão nobre e resoluta determinação são sempre muito inferiores aos que certamente hão de seguir-se à entrada dos 103 franceses nos portos do Reino.

Mesmo sendo todas rejeitadas estas propostas de mudança da Corte lusitana para o Brasil ao longo da história de Portugal, em 1807 o plano foi colocado em movimento, comprovando a própria delimitação factual de fuga, porém não tão apressada nem tão pouco improvisada como geralmente se imagina, do ponto de vista teórico. Em 1807, duas facções políticas tentavam influenciar as decisões do Príncipe Regente. O partido francês, liderado pelo Ministro das Relações Exteriores, Antônio Araújo de Azevedo, dizia-se favorável a uma composição com Napoleão e seus aliados espanhóis. O partido inglês, que acabaria triunfando, tinha como seu principal defensor, D. Rodrigo de Souza Coutinho, que, desde 1790, achava que o futuro e a sobrevivência da Monarquia portuguesa dependiam de sua Colônia brasileira. No dia 19 de agosto de 1807, na reunião do Conselho de Estado para discutir a conjuntura e crise política, D. João leu os termos da intimidação de Bonaparte. 102

LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI No Brasil (1808). Topbooks. 3ª Edição, Rio

de Janeiro. a p 45, 1996. 103

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 48, 2007.


65 Assim reproduziu Schwarez (2002, p. 199): Portugal deveria aderir ao Bloqueio Continental, declarar guerra á Inglaterra, retirar seu embaixador em Londres, expulsar o embaixador inglês de Lisboa e fechar os portos portugueses aos navios britânicos, prender todos os ingleses 104 em Portugal e confiscar suas propriedades.

O Conselho de Estado aceitou as imposições de Napoleão, discordando das duas últimas, enviando a resposta ao governo francês no dia 26 do mesmo mês. Mas era tudo fingimento por parte de Portugal, pois enquanto fingia aceitar as ordens do Imperador francês, negociava com a Inglaterra uma saída diferenciada para o impasse, ao mesmo tempo em que pedia à Coroa britânica para que seus exércitos não invadissem suas colônias, nem atacassem os seus navios mercantes. Ao receber os termos da contraproposta portuguesa, Napoleão mandou avisar que, se D. João não concordasse com suas exigências, Portugal seria invadido e a Dinastia Bragança destronada. Diante disso, finalmente o Conselho Estatal português recomendou que o Príncipe Regente preparasse seus navios para partir, porém, a própria concepção da partida seguiu uma evolução peculiar. Ou seja, inicialmente, pensou-se apenas em enviar para o Brasil o filho mais velho de D. João. Aos oito anos, o futuro Imperador do Brasil, D. Pedro, era o herdeiro natural do trono português, chegando seu pai, a assinar, em 2 de outubro de 1807, uma proclamação ao povo brasileiro, pedindo que recebesse e defendesse o Príncipe, porém, o plano progrediu para algo mais ambicioso: transferir a Corte inteira com o governo, os funcionários e o aparato do Estado, isto é, toda a elite portuguesa. Nas vésperas da partida, mantendo seu plano de fingimento para ganhar tempo, D. João chegou a proclamar a proibição da entrada de navios ingleses nos portos lusitanos, como também a aceitação de todas as exigências de Napoleão. Ao mesmo tempo, enviou um embaixador à Paris, prometendo total capitulação aos franceses, e em nome do Príncipe Regente português, deu de presente uma caixa de diamantes, como idem sugeriu que D. Pedro, casasse com alguma princesa da família de Napoleão. O embaixador foi preso na capital francesa e o Governo enviou um recado de Napoleão, afirmando que, 104

SCHWAREZ, Lília Moritz. A Longa Biblioteca Dos Reis. Editora Companhia das

Letras. São Paulo, a p 199, 2002.


66 se a Casa de Bragança não fizesse o que ele queria, Portugal não existira mais dentro de dois meses. Lima (1996, p. 51), esclarece que: “Nesta altura, o exército francês já se encontrava á caminho de Portugal, em 1 de novembro de 1807, percorrendo a fronteira da França com a Espanha”.105 Passado cincos dias apareceu na voz do Rio Tejo, em território português, uma esquadra inglesa com 7.000 homens, sendo que seu comandante, o Almirante Sir Sidney Smith – o mesmo que bombardeou Copenhague dois meses antes – tinha duas ordens aparentemente contraditórias. A primeira, e prioritária, era proteger o embarque da Família Real portuguesa e escoltá-la até o Brasil, e a segunda, caso a primeira não acontecesse, era bombardear Lisboa. Foi neste cenário agitado que se efetivou a inaudita fuga de um governante real europeu para uma de suas colônias de além-mar.

1.3 A partida e a viagem

O historiador português Martins (1997, p. 43), escreveu sobre a partida da Família Real portuguesa para o Brasil: Em 1807, o espírito de aventura, que lembrava os tempos heróicos, quando a esquadra de Vasco da Gama partiu do mesmo cais[...] e descobriu terras distantes, dera lugar ao medo, onde em vez de empreender e conquistar, a elite portuguesa fugia sem ao menos tentar resistir aos invasores 106 franceses.

Uma viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro, nessa época, além de demorada, em média dois meses e meio, era uma aventura arriscada, devido a tempestades, calmarias e ataques de corsários que infestavam o oceano Atlântico, ao mesmo tempo em que doenças, naufrágios e piratarias, cobravam e exigiam um alto preço dos poucos passageiros que se arriscavam a ir tão longe. Todos esses problemas que caracterizavam tais viagens eram conhecidos pelos 105

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 51, 1996.

106

MARTINS, Joaquim Pedro de Oliveira. História De Portugal. Edição Brasileira.

Editora Brasiliense, Tradução de Ribomar Souza. São Paulo, a p 43, 1997.


67 portugueses. Embora o plano de transferência do poder português fosse antigo, a viagem foi decidida ás pressas e de forma improvisada, em relação a necessidade de planejamento que precisava. A esperança de encontrar uma solução para que Napoleão não invadisse Portugal foi derrocada no dia 24 de novembro de 1807, quando chegou a Lisboa a última edição do jornal parisiense, Le Moniteur, órgão oficial de Napoleão, afirmando que a Casa de Bragança havia cessado de reinar sobre a Europa, ocasionando pânico na Corte. Gomes (2007, p. 70), confirma pânico ao afirmar: [...] os palácios reais de Mafra e Queluz foram evacuados às pressas, onde camareiras e pajens varavam noites trabalhando sem parar na retirada de tapetes, quadros e ornamentos das paredes [...] roupas, faqueiros, jóias e 107 objetos pessoais, despachando setecentas carroças para as docas.

Enquanto os mais ricos sabiam o que se passava, a maioria do povo observava o movimento de cavalos, carruagens e funcionários do governo nas imediações do porto, sem entender o que ocorria. Quando a notícia se espalhou, a reação foi de indignação, havendo choro e demonstrações de desespero e revolta. Azevedo (2003, p. 60), esclarece: Lisboa encontrava-se num estado de tristeza tão sombria que era terrível em demasiado para ser relatado[...]onde bandos de homens armados e desconhecidos eram vistos vagando pelas ruas, no mais completo silencio, sendo que, tudo indicava que, se o Príncipe Regente não embarcasse imediatamente, a partida seria atrasada por tumultos populares até que se 108 tornasse irrealizável pela chegada do exercito francês.

A travessia do oceano Atlântico exigia cuidado por causa de sua periculosidade, sendo planejado evitar alocar na mesma embarcação todos os herdeiros do trono português. Porém, pela pressa da partida, tal planejamento não foi realizado, de acordo com as colocações da Família Real nas naus. Os Infantes D. Pedro, de oito anos, e D. Miguel, de seis anos, os herdeiros diretos do trono, foram acomodados na nau Príncipe Real, em companhia do pai, D. João, e da avó, D, Maria I. Carlota Joaquina e quatro filhas – Maria Teresa e

107 108

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 70, 2007. AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina Na Corte Do Brasil - Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira. Editora Ática. Rio de Janeiro, a p 60, 2003.


68 Maria Isabel, de dez anos, Maria da Assunção, de dois anos, e Ana de Jesus, de onze meses – viajaram na nau Alfonso de Albuquerque. As outras duas Infantes, Maria Francisca, de sete anos e Isabel Maria, de seis anos, viajaram, por sua vez, no Rainha de Portugal. Às 7 horas da manhã, do dia 29 de novembro de 1807, foi dada a ordem de partida. Wilcken (2005, p. 28), escreveu o seguinte: “Por volta das três horas da tarde, a esquadra britânica saúda, com uma salva de 21 tiros, a nau que conduzia o Príncipe Regente que, naquele momento, deixava a barra do rio Tejo para entrar no oceano Atlântico”.109 Arcaicas e mal-equipadas, as naus e fragatas portuguesas, viajavam apinhadas de gente. Muitos passageiros e tripulantes dormiam ao relento, no tombadilho. Enquanto estavam no Hemisfério Norte, ondas fortes despejavam água gelada sobre os convés superlotados, onde os marinheiros trabalhavam em meio ao nevoeiro e às rajadas de vento frio, fazendo gemer não apenas tripulantes, mas também os madeirames, ao mesmo tempo que ocasionava uma quase histeria nos passageiros não habituados aquelas circunstâncias. Já na altura da Linha do Equador, o frio do inverno europeu deu lugar ao calor insuportável, agravado pela ausência de ventos numa região famosa pelas calmarias do Atlântico. O excesso de passageiros e a falta de higiene e saneamento nas naus lusitanas favoreciam a proliferação de pragas e doenças, como piolhos, ratos, baratas, bactérias, fungos e a peste bubônica. Gomes (2007, p. 89), diz: [...] uma das maiores ameaças nas longas travessias era o escorbuto, doença fatal provocada pela deficiência de vitamina C. Enfraquecida, a vítima queimava de febres e sofria dores insuportáveis. A gengiva necrosava. Os 110 dentes caíam ao simples toque.

No dia 8 de dezembro, ao se aproximar do Arquipélago da Madeira, um denso nevoeiro cobriu tudo. Durante a noite uma violenta tempestade castigou as naus, enquanto os marinheiros tentavam manter as velas consolidadas aos mastros das mesmas. Compelidos a parar e esperar que o tempo melhorasse,

109

WILCKEN, Patrick. Império À Deriva: A Corte Portuguesa No Rio de Janeiro, 1808

– 1821. Editora Objetiva. Rio de Janeiro, a p 28, 2005. 110

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 89, 2007.


69 quando amanheceu, os comandantes da esquadra perceberam que uma parte da referida tinha sido dispersada pela força dos ventos. Com o mar calmo, Carlota Joaquina e as filhas decidiram visitar D. João e a Rainha D. Maria I a bordo do Príncipe Real, sendo o translado feito em um pequeno barco içado pelos marinheiros sobre a amurada das naus portuguesas. Este seria o último contato da Família Real antes de chegar ao Brasil, a cinco semanas de viagem. Foi também nessa circunstância que D. João decidiu ir para a Bahia em vez de seguir para o Rio de Janeiro como se encontrava a priori traçado desde Lisboa. Após 54 dias de navegação, D. João aportou em Salvador, enquanto o restante do comboio tinha chegado ao Rio de Janeiro uma semana antes, no dia 17 de janeiro de 1808. Durante o trajeto, não houve acidentes fatais ou alguma morte registrada, sendo que, a única vítima conhecida da travessia foi D. Miguel Caetano Álvares Pereira de Melo, o Duque de Cadaval, que já havia partido doente da capital lusitana e teve seu quadro agravado pelos infortúnios que passou a nau D. João de Castro, uma das mais castigadas pelas tempestades, morrendo ele logo após chegar a Salvador.

2 Historicidade das esferas coloniais

Apesar das barreiras alfandegárias presentes na Colônia brasileira, o Sistema Colonial português não conseguia por completo conter a entrada de produtos e mercadorias que não correspondiam à sua economia. Quantos comerciantes não realizaram o sonho de mulheres que deslumbravam-se com os utensílios franceses e mesmos britânicos, sob a clandestinidade? Concêntrico no Sistema Colonial, as ações econômicas não ultrapassavam os ditames do Sistema. No início do século XIX, apesar da centralização do Poder por meio das instituições pombalinas, a Esfera Política era determinada pela nãohomogeneidade do exercício desse mesmo Poder, pois, o Público e o Privado – como centros de emanação ou irradiação do Poder – se confundiam em sua execução. Dessa maneira, a política administrativa esteve durante os três


70 séculos em que o Brasil foi Colônia dividida entre os agentes do Privado e do Público. A Cultura colonial na época da instalação da Corte era representada por inúmeras manifestações próprias, características imanentes de fusão das etnias formativas da população colonial. Mesmo as elites brasileiras da Colônia, de acordo com a conceituação européia, eram atrasadas em relação as principais concepções de etiquetas vislumbradas nas Cortes européias, assumindo a simbólica posição de irradiação de modernidade. Neste contexto, quando da chegada da Corte em 1808, surgirá uma nova mentalidade em torno da sociabilidade imposta pela Corte. Abordaremos as três Esferas Sociais abordadas nessa pesquisa, viajando em torno de um universo prático e mental que seria completamente transformado pela instalação da Corte de D. João.

2.1 A esfera econômica colonial: hegemonia mercantilista

A historicidade das atividades econômicas do Brasil colonial foi fortemente condicionada pelo chamado Sistema Colonial e pelo Mercantilismo. A primeira expressão assumiu uma conotação pejorativa quando, no século XIX, as lideranças que participaram do processo de Independência passaram a referir-se assim aos três séculos coloniais. Falar em Sistema Colonial supunha – para esses adeptos do liberalismo econômico e político embasado na prerrogativa de permanência da estrutura vigente, ou seja, assimilação do liberalismo as idiossincrasias da elite que tomou o poder – privilégios, monopólios, ineficiências e, sobretudo, exploração da Colônia pela Metrópole. Mais tarde, ainda o século XIX e também no século XX, o conceito foi incorporado pela comunidade acadêmica sempre que se referia à colonização européia das Américas entre os séculos XVI e XIX, ressaltando assim, a distinção entre essa e outras formas de expansão, como a do imperialismo anterior à Primeira Guerra Mundial ou a ocorrida na África e Ásia na própria era colonial americana. As interpretações sobre o Sistema Colonial e o Mercantilismo podem ser classificadas em dois grandes grupos: o daqueles que privilegiam seus fundamentos econômicos e o dos que vêem como uma conseqüência da


71 política de poder dos Estados Absolutistas. Entre os primeiros, os autores marxistas discutem a natureza do Sistema Colonial, ou seja, se é derivado de um outro modo de produção, feudal ou capitalista, se é uma terceira estrutura ou se corresponde a uma transição em que os elementos anteriores se diluíram gradativamente a favor dos capitalistas. Outras correntes, mas que também privilegiam a explicação econômica, preferem ver o Sistema Colonial como uma consequência da ampliação do comércio europeu no século XVI, tornada possível graças ao surgimento de um capitalismo comercial que ainda convivia com o padrão dominante da economia tradicional, de autoconsumo. Para ambos, o Mercantilismo foi um fenômeno secundário, ou seja, a política dos Estados Absolutistas nada mais fazia do que seguir e servir aos interesses da burguesia capitalista. Para os adeptos da interpretação baseada na política de poder, o Sistema Colonial e o Mercantilismo submeteram-se aos desígnios e necessidades das potências absolutistas, no momento em que estas conseguiram atingir formas eficientes de centralização política e administrativa. Seriam, na verdade, meros instrumentos econômicos do objetivo maior, o poder, explicando dessa forma o intervencionismo do Estado na economia através de regulamentos, monopólios, isenções e incentivos. Este ponto de vista, como se vê, inverte a relação Sistema Colonial-Mercantilismo, isto é, o primeiro é apenas uma das modalidades – para os países que possuíam colonias – de atingir os fins definidos pela política do Estado. Em qualquer das vertentes explicativas, é evidente que a Colônia existia para atender aos interesses da Metrópole, resultando daí uma permanente drenagem de rendas para o exterior, que reduzia ou anulava a capacidade de investimento local. Assim, de acordo com Monteiro (1981, p. 63): A Colônia existia em função da Metrópole e do mercado europeu, sendo seu grau de prosperidade dependente das altas e baixas, no mercado internacional, de produtos nativos [...]. O Brasil se inseriu na economia mundial criada a partir do século XVI, quando começaram a estabelecer-se as redes comerciais interoceânica, mas numa posição periférica, dependendo das decisões políticas e econômicas de homens públicos e negociantes que atendiam aos 111 interesses de Portugal.

111

MONTEIRO, Tobias. Op Cit, a p 63, 1981.


72 Analisando as palavras de Monteiro, percebemos a definição dos contornos de uma economia, em relação a economia colonial, exportadora de produtos agrícolas e de metais, na qual o mercado interno era escasso ou inexistente e onde o autoconsumo garantia a subsistência a duras penas. Torna-se oportuno mencionar o fato de que, em relação a dependência ao mercado internacional, é questão indiscutível a própria composição econômica, mas tomá-la ao pé da letra seria simplificar excessivamente o que ocorreu na história de um país continental como o Brasil ao longo da supremacia das particularidades econômicas coloniais. Dessa forma, a inexistência de um mercado interno é duvidosa. Nos séculos XVI e XVII, sobretudo, existiu produção de alimentos, enquanto na região mineradora, no século XVIII, houve o melhor momento do mercado interno colonial, sendo que, além de um mercado regional, em que se trocavam produtos agrícolas e artesanais ali produzidos, Minas centralizava um ativo comércio intercolonial, que ligou várias regiões da Colônia. Houve, assim, principalmente no século XVIII, não só a retenção no Brasil de uma parcela do excedente produzido pela exportação, como também a geração de rendas em função do consumo, embora escasso, na própria Colônia, permitindo um mínimo de circulação monetária e de bens, bem como a formação de bolsões de um mercado interno embrionário. Mas tais fatores, positivos para o eventual surgimento de uma economia menos dependente, eram frágeis e sensíveis às oscilações do mercado internacional, embasado nos produtos de exportação – açúcar, algodão, diamantes, couros – e importados – manufaturas e escravos. Em linhas gerais, as regras de funcionamento do Sistema Colonial eram fundadas nas relações econômicas em que a Colônia fornecia produtos agrícolas, como metais para a Metrópole, que os consumia ou revendia, ao mesmo tempo em que importava, à Colônia, manufaturados e outros artigos que não podia produzir, por força da própria política mercantilista, sempre inibidora, por exemplo, de instalação de fábricas ou da extração de sal. Quanto ao comércio colonial, tornou-se desde a segunda metade do século XVI monopólio da Metrópole. Tais procedimentos caracterizaram o que se chamou, com impropriedade, Pacto Colonial, pelo qual caberiam á Metrópole, respectivamente, determinadas contrapartidas, como a manutenção e defesa da Colônia. Não houve, na realidade, Pacto, mas a imposição unilateral de uma


73 política econômica que visava à garantia do exclusivismo metropolitano e cujo traço mais característico foi o monopólio do comércio. A história econômica colonial girou ao redor de três eixos: a dependência externa – a qual já abordamos, influenciando, de acordo com as nuances do mercado internacional, as atividades econômicas na Colônia – o latifúndio e a escravidão. O latifúndio se caracterizou economicamente pela monocultura e socialmente pela mentalidade aristocrática do proprietário rural, especialmente o senhor de engenho. Ainda, em consonância com Monteiro (1981. p. 91): Alguns fatores gerais explicam a existência dessa grande propriedade, tanto canavieira quanto pecuarista: a abundância de terras, permitindo integrar às primitivas sesmarias novas áreas, com relativamente pouca dificuldade (obstáculos físicos pequenos, baixa resistência indígena; agricultura e pecuária extensivas, tecnicamente atrasadas, exigindo áreas cada vez mais amplas tornando impossível alcançar uma boa produtividade em certas áreas, por causa das insuficiências técnicas; a necessidade de os engenhos terem grande produção e boa produtividade para viabilizar os preços dos produtos no mercado externo, o que não ocorreria caso o sistema adotado permitisse a 112 pulverização em pequenas unidades produtivas.

Apesar da coexistência de outras formas de propriedade de extensão variável dedicadas a produtos também variáveis, não elimina a existência dominante do latifúndio. Outra matriz da economia colonial e do próprio latifúndio foi a escravidão. A mão-de-obra indígena escravizada foi a principal força de trabalho em São Vicente e no Rio de Janeiro nos séculos XVII e XVIII e no Estado do Maranhão nos séculos XVII e XVIII. Esteve presente, secundariamente, em Pernambuco, na Bahia e no restante do Nordeste nos séculos XVI e XVII. Porém, a escravidão mais importante, entretanto, foi a dos africanos e de seus descendentes. Milhões de escravos entraram no Brasil, até o século XIX, vindos da Guiné, Angola e Moçambique, em três grandes levas ou ciclos, de acordo com a procedência predominante: da Guiné no século XVI (entre 50 mil e 100 mil), de Angola no século XVII (cerca de 600 mil) e da Costa da Mina no século XVIII (cerca de 1,3 milhões). Tais quantidades devem ser instrumental para apontar apenas a dimensão e a tendência do tráfico e de suas correntes, devido a imprecisão dos dados relativos ao trafico legal. Lima (1996, p. 116), esclarece: 112

MONTEIRO, Tobias. Op Cit, a p 91, 1981.


74 O trafico de escravos foi, do ponto de vista econômico, um dos principais empreendimentos comerciais do mundo atlântico, passando de atividade isolada de comerciantes no século XVI, chegou a organizar-se em sofisticadas 113 sociedades comerciais no século XVII.

O escravo foi utilizado em quase todas as atividades econômicas do Brasil, a ponto de identificar-se, na Colônia, trabalho manual com trabalho escravo, agravando um preconceito que o colono já trazia de Portugal. A escravidão colonial desestimulava os investimentos e a renovação tecnológica na produção, além de proporcionar um vasto contingente populacional sem poder aquisitivo, dificultando a formação ou incipiente progressão do mercado interno. Ainda, por via de Lima (1996, p. 124): O escravo trabalhava nos canaviais, tratando dos roçados, do plantio e da colheita; nos engenhos, em atividades mais especializadas, sob a orientação do mestre do açúcar; na lavoura do tabaco; nas minas de ouro e nas lavras de diamantes; nas fazendas de gado e nas charqueadas; e nas casas, como escravo doméstico [...] também era alugado pelo seu senhor, especialmente se tinha alguma especialidade, ou era escravo ao ganho, realizando tarefas 114 durante o dia e entregando a féria ao proprietário.

A preferência pelo escravo negro em detrimento do indígena, baseada na tese tradicional que afirmava ser o índio inimigo do trabalho sedentário e rotineiro, não se adaptando às atividades econômicas necessárias aos colonos, turva a compreensão da questão. A escolha pelo escravo africano é nitidamente de natureza econômica e utilitária. Em outras palavras, os africanos tinham em geral, um padrão cultural mais próximo às necessidades dos portugueses, pois conheciam melhor do que os índios a agricultura e possuíam maiores habilidades para a utilização de metais e artesanato. Eram, além disso, fisicamente mais resistentes do que os indígenas. Também a ampliação do trafico e sua organização em sólidas empresas permitiram criar um mercado negreiro transatlântico que deu estabilidade ao fluxo de mão-de-obra, aumentando a oferta, ao contrário das oscilações no fornecimento de indígenas, ocasionadas pela dizimação das tribos mais próximas e pela fuga dos remanescentes. Concomitantemente, contribuíram para a preferência pelo africano, apesar de mascaramento ideológico, a 113

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 116, 1996.

114

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 124, 1996.


75 atuação da Igreja Católica, particularmente os Jesuítas, e do Estado a favor dos indígenas, condenando e reprimindo sua escravização, em certas épocas, com sucesso, aliás, apenas relativo. Finalmente, e mais importante, omite-se na explicação tradicional o fato de que extensas regiões da Colônia, por mais de um século, utilizaram mão-deobra indígena escravizadas, pois sendo realmente mais barata do que a negra tornou-se preferida nas regiões de baixo poder aquisitivo, impossibilitadas de importar o africano e excluídas por isso das rotas do tráfico. Embora os escravos, indígenas e negros – este último com maior extensividade – tenham sido as mãos e pés dos senhores de engenho e de quase toda a economia colonial, o trabalho livre também esteve presente em todas as atividades, em graus diversos. Nas regiões produtoras de açúcar, pertencem a esta categoria os lavradores de cana, que compreendiam dois tipos: os que trabalhavam nas terras do senhor com recursos próprios, pagando em açúcar ou cana uma percentagem pelo aluguel de terra e a utilização do engenho, e aqueles que recebiam, além da terra, os recursos necessários para cultivá-la, inclusive escravos cedidos ou alugados. Além destes, existiam os assalariados do engenho, como técnicos na moagem e refino do açúcar, englobando o mestre do açúcar, os purgadores açúcar, os caixeiros do engenho e os feitores canaviais. Eventualmente, as atividades no engenho eram executadas por escravos, o que ocorreu com mais frequência nas épocas de retração de preços. Entretanto, nas áreas pecuaristas, nos projetos de criar, o trabalho do vaqueiro era livre. Gauvard (2003, p. 139) afirma: [...] nos primeiros anos, o vaqueiro não recebia remuneração, mas após quatro ou cinco ganhava algumas cabeças de gado, que lhe permitiam montar fazendas em terras arrendadas ou mesmo próprias [...] estando abaixo dele os 115 cabras, ou vaqueiros comuns, que para ele trabalhavam.

Na região mineradora do século XVIII, entretanto, a presença do trabalho livre foi mais evidente, pois, a própria concentração urbana, provocada pela mineração, ocasionou o aparecimento de atividades profissionais diversificadas, ligadas ao trabalho livre. Os ofícios se multiplicaram e surgiram várias irmandades civis e para-religiosas que mantinham um fluxo de 115

GAUVARD, Claude. Op Cit, a p 139, 2003.


76 encomendas a ferreiros, carpinteiros, marceneiros, serralheiros, entalhadores e escultores. No âmbito do comércio também predominava o trabalho livre de representantes comerciais, escriturários e caixeiros. No interior, além dos mascates, surgiu a figura do tropeiro, que em consonância com Lima (1996, p. 198): Os tropeiros, formando um conjunto, normalmente, entre quatro ou cinco de mesmo oficio, com suas dezenas de mulas, comportavam fundamental atividade econômica no século XVIII, principalmente em relação ao transporte de mercadorias do interior ao litoral, em movimentos notadamente de 116 importação, tendo como referência o próprio interior.

Nos cargos da burocracia real que não eram objeto de venda, os vários ramos – Casa dos Governadores, Administração Fazendária e Civil, Eclesiástica, Militar e Judiciária – eram preenchidos por um exército de pequenos e médios funcionários assalariados, podendo ser afirmado o mesmo em algumas Câmaras Municipais. Forma intermediária entre o trabalho livre e escravo assumiu a exploração do trabalho indígena, particularmente das aldeias e Missões Religiosas do Norte. Funcionando muitas vezes como mãode-obra reserva para atividades periódicas, como colheita e coleta de produtos das florestas, este trabalho compulsório poderia ser obtido através de requisição, aos chefes das aldeias ou superiores das Missões, pelas autoridades ou por particulares com sua autorização, de certa quantidade de indígenas. Outro fato que merece destaque na economia colonial é a atuação do Estado, por meio de sua política comercial e finanças, pois o Estado foi uma peça importante na vida econômica, atuando de dois modos: como captador dos recursos de que necessitava e como protetor, fomentador ou indutor da atividade econômica. No primeiro caso, o Estado português retirava uma parte da renda líquida colonial através do fisco, por meio de uma extensa lista de tributos, como dízimo, quinto, sina e pedágios. No segundo caso, o Estado atuava impedindo a execução, por dívidas, dos engenhos de açúcar, concedendo monopólios ou estimulando diretamente o cultivo de determinado produto.

116

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 198, 1996.


77 Os monopólios principais, ao longo dos três séculos de colonialismo, foram os do pau-brasil, abolido em 1823, da pesca de baleia, de 1603 a 1798, do tabaco, de 1624 a 1820 e do sal, de 1658 a 1801, sendo nesses casos, a exploração e comercialização arrendadas a particulares em arrematações, nas quais os contratadores ofereciam à Fazenda Real determinada quantia, em geral paga em prestações anuais. Cabe ressaltar que, embora o Estado intervindo na economia, sua política econômica não impedia o contrabando de certos produtos, chegando a rivalizar com o comércio legal. O andamento da economia colonial sempre esteve condicionada às pressões internacionais, regendo dessa forma as várias etapas pelas quais passou a política metropolitana para o comércio brasileiro. Entre 1500 e 1571 permitia-se, sob o controle, a presença de comerciantes e mesmo investidores estrangeiros na Colônia. Numa segunda fase, entre 1571 e 1640, proibiu-se a presença de comerciantes, política tornada mais rígida pelo Governo espanhol em 1605, eliminando quaisquer exceções. A partir da Restauração da independência portuguesa, em 1640, e até cerca de 1680, fizeram-se diversas concessões ao comércio holandês, inglês e francês no Brasil, principalmente por motivos políticos, por causa do conflito entre Portugal e Espanha, de 1640 até 1668. A última fase dessa política que revela as oscilações de si mesma, estende-se de 1608 até 1808, quando voltaram a vigorar as proibições à presença de navios estrangeiros, reiteradas várias vezes pelo Governo português, depois da descoberta dos metais preciosos nas Minas Gerais. Após a abordagem do funcionamento do Sistema Colonial, do Mercantilismo, da atuação do Estado na economia colonial, das características da monocultura, do latifúndio – com variações acentuadas em outras atividades – da dependência externa, da escravidão e das outras formas de trabalho desenvolvidas no Brasil colonial, torna-se imperativo analisarmos a economia do final do século XVIII e início do século XIX, visto que foi neste contexto histórico que ocorreram as transformações na esfera econômica com a chegada da Monarquia portuguesa e todo o aparato propício para tal finalidade. Anteriormente constatada com a descoberta do ouro na região da província de Minas, ocorre a polarização da economia na mesma região. Porém, esse fato não pode ofuscar a compreensão do que acontecia nas áreas agrárias, pois, nelas predominava a produção do açúcar, cuja renda anual, de


78 menos de 2 milhões de libras, representava quase a metade do século anterior, embora o volume produzido fosse praticamente o mesmo. O motivo foi a queda do preço da referida mercadoria, vindo a se recuperar nos últimos anos do século XVIII e experimentando nova queda no início do século seguinte. Embora a produção colonial se beneficiasse circunstancialmente desta recuperação, as deficiências estruturais permaneciam, como a baixa tecnologia e produtividade e, sobretudo, a heterogeneidade de grande número de pequenos engenhos, denominados de engenhocas. Gauvard (2003, p. 220), comenta que: “O fenômeno foi tão significativo que a produção media por engenho no início do século XVIII era de 2.500 arrobas/ano, passando ao final deste para 511 arrobas/ano”.117 Enquanto isso, outros produtos geravam renda de exportação, como o tabaco produzido em Pernambuco e na Bahia, chegando a cerca de 100.000 libras anuais, sobretudo no comércio africano, ou seja, no escambo entre o mesmo e os escravos. Quanto ao comércio no final do século XVIII e início do século XIX, pode-se dizer que ele ocorria em três planos: o atlântico, por onde circulavam açúcar, ouro, diamantes, escravos, tabaco, aguardente e couros, tendo como pontos básicos Portugal, o litoral africano e os portos da Colônia; o comércio, mesmo incipiente, inter-regional, ligado por variadas rotas comerciais e o comércio local, que podia assumir as formas de simples autoconsumo, normalmente não monetário, por via da prática do escambo ou de abastecimento aos poucos núcleos urbanos mais prósperos. A estes três planos correspondiam diferentes tipos de comerciantes, conforme a riqueza, bem como alguns que já podiam denominar-se empresários. Os mais bem-sucedidos entre estes possuíam terras, além de capitais e casas comerciais. Sua riqueza, entretanto, não derivava em geral de atividades modernas, mas de situações que perpetravam o caráter dependente e periférico da economia colonial, como o tráfico de escravos. Para intensificar esse comércio, principalmente nos dois últimos aspectos, concorriam positivamente as feiras, sendo as mesmas plausíveis instrumentos para se entender a conjuntura do mercado colonial. Dessa forma, o contexto que D. João encontrou em 1808, caracterizava-se pelo imediatismo 117

GAUVARD, Claude. Op Cit, a p 220, 2003.


79 agrário da Colônia, sendo necessárias mutações de natureza econômica e política, como também mental, para que essa conjuntura deixasse seus aspectos estritamente culturais.

2.2 A esfera política colonial: o poder no público e no privado

Ao longo dos três séculos em que o Brasil foi Colônia portuguesa, o Poder, consequência inerente da Esfera Político-Administrativa, foi praticado por diferenciadas formas e centros decisórios, até que, com a instalação do aparelho burocrático trazido por D. João, em 1808, estabeleceu-se uma racionalização homogênea na fomentação dos Órgãos Institucionais alocados no exercício daquele poder. “[...] o ano de 1808, logo, suas conseqüências em termos da formulação no nível político, estabelece, por meio da criação de instituições joaninas, uma administração mais coesa”.118 A priori, deve ser ressaltado que, o Poder na Colônia não deve ser confundido com a ação apenas do Estado português, visto que, existiam diversas fontes do Poder, bem como diferenciados agentes desse mesmo Poder, tanto no nível Público como no Privado, sobretudo, num país onde as distâncias e os obstáculos físicos constituíram barreiras adicionais para as ações centralizadoras do Governo. Logo, para reconstruir, de forma aproximada, o que foi o Poder na Colônia, é preciso considerar essas múltiplas fontes e suas respectivas agências. Não há comum acordo entre os historiadores sobre a questão do Poder na fase colonial brasileira. Para uns, o Poder Público, por meio do Estado, sempre foi maior que a sociedade, tendo por isso prevalecido o interesse estatal sobre o privado. Há dois os argumentos principais utilizados por essa vertente histórica: o primeiro é a secular tradição portuguesa de um Estado forte e de grupos sociais intermediários, enquanto o segundo argumento é a precoce instalação do Poder Público no Brasil, com a fundação da Vila de São Vicente e o estabelecimento das Capitanias antes mesmo do início da colonização. O próprio Lima (1996, p. 216) é defensor dessa vertente, afirmando:

118

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 203, 1996.


80 Quando em 1532, Martim Afonso de Souza funda o primeiro núcleo colonial no Brasil, a vila de São Vicente, no litoral do atual Estado de São Paulo, devemos reconhecer que foi o Estado que se colocou a frente das necessidades econômicas lusitanas, apesar da participação de comerciantes, por meio da 119 política de distribuição de terras, as conhecidas sesmarias.

Em outras palavras, de acordo com o resultado dessa tipologia de análise, o Brasil teve Estado antes de ter povo, visto que os regulamentos formalistas de cartas de doações, forais, regimentos e outros instrumentos do Poder Público, dão a impressão de uma onipresença do Estado, como se a colonização fosse um mero subproduto da ação do Estado. Em posicionamento contrário, alguns historiadores afirmam que o Poder Privado ou local, constituído a partir do Latifúndio e da Família Patriarcal, foi maior e mais forte do que o Estado, diluindo a autoridade deste, a ponto de fragmentá-lo por completo. Nesse sentido, Gauvard (2003, p. 273), coloca-se nesse linha de pensamento, dissertando: Durante o período colonial no Brasil, o Estado, isto é, o poder institucional da Coroa, foi fragmentado, disperso, restando aos déspotas locais, ou seja, os proprietários rurais, principalmente os senhores de engenho, por meio de mandonismo, como ocorreu com sucessivas gerações da família Garcia 120 d‟Ávila, a prática do poder.

As generalizações para situações dispares e muito extensas no tempo, como a colonização brasileira em sua conjuntura, geralmente são desmentidas pelos

fenômenos

particulares

estudados,

embora

sejam

úteis

como

interpretação global, conjuntural. Dessa forma, passaremos, em seguida, a descrição e análise dos Centros de Poder durante o período colonial, estabelecendo suas extensões, causas, relações, tanto no nível estatal quanto privativo, determinando a reprodução do próprio Poder Político-Admnistrativo, primordialmente em sua correlação com a Metrópole, ao mesmo tempo alocando-se na coexistência dos Centros de Poder, isto é, aqueles presentes nos níveis Público e privado. Uma terceira abordagem histórica coloca a questão da Política Administrativa, logo, o uso do Poder, no período colonial como coexistente em

119

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 216, 1996.

120

GAUVARD, Claude. Op Cit, a p 273, 2003.


81 diferenciados agentes do Poder, nos níveis Público e privado. A fundação da Vila de São Vicente, em 1532, por Martim Afonso de Souza, é resultante de incursões francesas no litoral brasileiro, malogrando a política metropolitana da implantação do Mare Clausum, ao mesmo tempo que reestruturava o Mercantilismo lusitano, afetado pela próprias incursões francesas e pela crise no Oriente em relação a distribuição da pimenta. Martim Afonso ainda se encontrava no Brasil quando D. João III decide impulsionar a colonização da Nova Terra, lançando mão do expediente que os Reis de Portugal tradicionalmente usavam para atingir seus objetivos de povoamento: a distribuição de terras. Em Carta escrita a Martim Afonso, ainda no ano de 1532, transcrita por Lima (1996, p. 224), onde El-Rei elogia a ação contra os “corsários franceses, tão bem feito, como se de Vós esperava”, comunica a decisão de dividir as terras de Vera Cruz: Depois de Vossa partida se praticou se seria meu serviço povoar-se toda a costa, e alguns me requeriam capitanias em terras dela [...]; depois fui informado que de algumas partes faziam fundamento de povoar a terra do dito Brasil [...] determinei demarcar de Pernambuco até o rio do Prata cinqüenta léguas de costa a cada capitania, e antes de se dar a nenhuma pessoa, mandei apartar para Vós cem léguas, e para Pêro Lopes, Vosso irmão, 121 cinqüenta, nos melhores limites dessa costa [...].

As Capitanias, imensos tratos de terras, foram distribuídas entre fidalgos da pequena nobreza, já que os grandes se interessavam mais pelas Índias ou por terras no Reino e suas ilhas adjacentes, como também entre funcionários da burocracia monárquica. Dois documentos básicos, conforme a tradição do povoamento de terras no Portugal da Reconquista regiam o sistema de Capitanias: a Carta de Doação e o Foral, que garantia os direitos dos capitãesdonatário e suas obrigações frente á Coroa. O capitão-donatário tinha o senhorio, conforme o costume medieval, das moendas d‟água, engenhos de açúcar e das marinhas de sal, cujo acesso obrigava os colonos ao pagamento de direitos. Tinha também o direito de escravizar e mandar vender, em Portugal, 24 peças de índios apresados por ano. Ele ficava ainda com a vintena, ou seja, cerca de 5% sobre o valor da exploração do pau-brasil, metade da dízima do pescado, a redízima das rendas da Coroa e os direitos de passagens em rios, portos e outras águas.

121

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 224, 1996.


82 Mais importantes, entretanto, eram os amplos poderes de que dispunham os capitães no tocante à Administração Pública, pois, usufruíam da prerrogativa monopolista da baixa e da alta justiça, ressalvando a morte natural ou retalhamento de membros em pessoas de condição nobre, mas com alçada até da morte sobre escravos, gentios e homens livres de menor qualidade, além do direito de impor degredo de até dez anos aos homens de qualidade e a morte, sem apelação ao Rei, nos casos de traição, heresia, sodomia e moeda falsa. Tinham o direito de doar sesmarias, conforme o Regimento de D. Fernando (1367-1383) e as Ordenações Manuelinas, de 1521, sem ônus para o sesmeiro, porém, com a obrigação de cultivá-la no prazo máximo de cincos anos, sob pena de perda das terras, como também, tinham o comando militar e o direito de alistar os colonos e formar milícias. A aparente descentralização do poder político-administrativo e a transferência das prerrogativas tinham limites estreitos e a atuação dos capitães-donatários eram, para as condições da época, bastante bem vigiadas pelos Funcionários Reais, submetidas diretamente à Coroa. Toda a obra político-administrativa portuguesa foi feita conforme o estabelecimento nas Ordenações Manuelinas, de 1521, mandadas organizar, com nítido sentido centralizador e absolutista [...] nenhum Alvará, Regimentos ou Provisões deixava de fazer referência á necessidade de se observar as 122 minhas Ordenações e estabelecia a impossibilidade de inovar.

Além disso, o Rei nomeava um feitor ou almoxarife, para cuidar dos seus impostos, um provedor, para fiscalizar as atividades dos capitães e dos colonos, além de inúmeros tabeliões. Contava o Monarca, ainda, com um ouvidor, com alçada sobre o cível e o crime, com direito a um meirinho e escrivãos, tudo conforme o costume do Reino. Mais importante, enviava regularmente um juiz de fora parte, nomeado pelo Rei e frente a quem cessavam as atribuições de outros. Como podemos auferir, pela constituição estrutural descrita, os Centros de Poder encontravam-se tanto no nível Privado, com influxos do público, pelas atribuições e direitos das Capitanias e logo dos engenhos de açúcar, quanto no espaço público, onde por meio da rígida fiscalização estatal dos funcionários reais, demonstra-se ao mesmo tempo a presença do Estado. Em outras palavras, mesmo possuindo autonomia na produção agrícola, baseado na agro-manufatura açucareira, com uma 122

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 229, 1996.


83 diversificação paralela de produtos, como o algodão e o tabaco, além de produção de alimentos ou exploração do pau-brasil e busca visionária de metais preciosos, o Estado se fazia presente pela própria legislação e fisicamente, pelos funcionários reais. Entretanto, na presença do Estado e das Capitanias, o poder encontra enormes

dificuldades

seja

na

própria

tentativa

de

homogeneizar

a

administração ou mesmo de se consolidar o processo de povoamento. Assim, conflitos com os indígenas, dificuldades em tornar coesa a administração, aumento de incursões francesas e discórdias entre colonos são os motores de nova fomentação no tocante a implantação de um Centro de Poder capaz de sanar tais dificuldades. O ano de 1548 foi o estopim para essa tomada, visto que, no mesmo ano, o donatário da Bahia, com grande parte de seus colonos, é morto por um levante dos índios tupinambás. Reconhecendo o fracasso das Capitanias em relação à aplicação dos ordenamentos estatais, o Rei resolve intervir, comprando a Capitania da Bahia e nomeando um Governador-Geral, Tomé de Souza, no ano de 1549. A Sede do Governo-Geral do Brasil torna-se a Bahia, com o objetivo de dar ajuda aos esforços colonizadores dos donatários do Norte. Linhares (2000, p. 60), determina os objetivos do Governo-Geral, implícito no Regulamento do próprio Tomé de Souza: “Os principais problemas a serem enfrentados eram a pirataria, sobretudo francesa, e os ataques indígenas, as disputas entre comerciantes e lavradores, entre autoridades e colonos e entre colonos [...]”.123 Por meio do Governo-Geral, o Estado português procura centralizar ainda mais, na figura de Tomé de Souza, muitos dos poderes dispersos pelo nível particular, isto é, pelos donatários. Assim, cria-se a figura do ouvidorgeral, como instância de apelação da justiça local e, em alguns casos, como primeira instância, limitando os poderes de alta e baixa justiça dados anteriormente aos donatários. Surge também o provedor-mor, responsável pelos impostos e taxas correspondes aos direitos da Coroa e um capitão-mor da costa responsável pela defesa. 123

LINHARES, Maria Yedda. História Geral do Brasil. Editora Campus, São Paulo, a p 60, 2000.


84 Tomé de Souza ergue a Vila de São Salvador, primeira com foros de cidade, visando assentar os colonos, transformando-os em moradores, e para isso incentiva a implantação de engenhos, o aldeamento dos índios mansos juntos aos povoados e vilas dos brancos, o estabelecimento de feiras semanais e a distribuição de terras sob formas de sesmarias, para a formação de pastos, como, concomitantemente, a intensificação do trafico negreiro, já importante em 1550. O poder privado dos senhores de engenho, apesar do programa centralizador da Coroa é estendido da dimensão latifundiária para o espaço urbano nas Câmaras Municipais. Essas eram compostas por até seis membros, chamados de Oficiais da Câmara, escolhidos por uma assembléia de senhores de engenhos ou lavradores, os também chamados de homens bons. Tinham funcionários à sua disposição, como escrivãos, almotacés – encarregados da limpeza da cidade, do controle dos preços e da saúde pública – o alcaide, o juiz de órfãos, além de outros. Ainda de acordo com Linhares (2000, p. 63): [...] as funcionalidades da câmaras municipais estendiam-se por vários setores da vida econômica, social e política da Colônia [...], a) administração colonial, regulamentacão das feiras e dos mercados; b) administração dos bens das próprias câmaras e suas receitas; c) obras públicas, como estradas, pontes e calcadas; d) conservação das ruas, limpeza da cidade, arborização; e) construção dos edifícios; f) regulamentação dos ofícios e do comércio; g) 124 abastecimento de gêneros e cultura da terra.

Para fazer face a essas atividades, a Câmara conta com as rendas provenientes das terras municipais, normalmente pastos que eram arrendados, de prédios alugados e com os impostos sobre o consumo e as multas aplicadas pelo almotacé, decorrentes das infração do Código de Posturas. Outra característica das Câmaras Municipais era a pureza de sangue para ser oficial da mesma, ou seja, não ter mancha de sangue negro, judeu ou mouro, de acordo com a legislação do Reino. A ordenação administrativa, como sua composição social das Câmaras levava, frequentemente, a posições opostas, de um lado, aos interesses da burguesia mercantil lusa, principalmente no tocante a preços dos produtos de exploração, armação de navios, créditos e liberdade de comércio e, de outro, dos pequenos produtores independentes de

124

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 63, 2000.


85 cana-de-açúcar, tabaco e algodão, premidos pela arrogância dos senhores de engenhos. A instituição político-administrativa do Governo-Geral perdurou até 1580, sendo Tomé de Souza, sucedido por mais quatro governadores-gerais. Com o desaparecimento e suposta morte do jovem Rei, D. Sebastião, na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, no Marrocos, na tentativa de expulsar os mouros, o trono português é ocupado durante dois anos por D. Henrique. Com a morte deste, em 1580, ao mesmo tempo em que não havia nenhum descendente da dinastia Borgonha para ocupação do trono, o mesmo é declarado vago. Após hesitações, a nobreza portuguesa, com profundas ligações não apenas econômicas, porém, de linhagens, e a burguesia lusa com a ânsia de ter maior acesso ao mercado espanhol na América, aclamam Filipe II da Espanha (Filipe I de Portugal), da Casa de Habsburgo, como Monarca português. Do ponto de vista institucional, duas medidas são de grande importância durante o período de União Ibérica, compreendido de 1580 a 1640, quais foram, a publicação das Ordenações Filipinas e a criação do Estado do 125 Maranhão e Grão-Pará [...].

As ordenações do Reino, mandadas organizar por Filipe I, tinham o objetivo de coordenar e sistematizar a legislação vigente que, desde a publicação das Ordenações Manuelinas, em 1521, avolumava-se, muitas vezes,

de

forma

contraditória.

Apesar das

Ordenações de

Filipe

I

compreenderem nova autonomia político-administrativa, o caráter será tipicamente português. O medo espanhol ante a possibilidade dos holandeses penetrarem pelo Amazonas até o Peru, junto às minas de prata, irá determinar a criação da cidade de Santa Maria do Belém do Pará, no Amazonas, capital do Estado do Maranhão e do Grão-Pará, em 1621. Dessa forma, durante a União Ibérica, permanecem, no nível Privado, as formas de poder políticoadministrativo, enquanto no nível público, o Estado e seu poder estão encerrados na bipolarização apenas geográfica - entre o Estado do Maranhão e do Grão-Pará, e do Brasil, com capital na Bahia, estendendo-se até as Capitanias. Quando, em 1640, se efetiva a Restauração, representada pela representatividade monarcal da família Bragança, D. João IV, senhor da mais 125

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 237, 1996.


86 importante Casa Ducal do Reino, esforça por criar mecanismos ágeis e competentes na administração, pois, o funcionamento, estruturação e extensão dos órgãos do Governo se mostravam relativamente ineficientes. Linhares (2000, p. 87) explicita que: O caos imposto às administrações governamentais públicas e formalmente as estruturas das capitanias, denotam a ineficiência, em certo sentido, das diretrizes políticas planejadas [...]; exemplo dessa estado, principalmente, 126 mostra-se pelo Quilombo dos Palmares [...].

Assim, são criadas, o Conselho de Guerra, em 1640, o Conselho Ultramarino, em 1642 e o Conselho ou Junta dos Três Estados, ainda em 1641. Fundamentados, virtualmente, em um novo princípio de governação, limitando e controlando o Poder Régio, o Poder da Coroa torna-se mais eficaz. Esse processo de centralização do Poder na Coroa e não na figura do Rei possuía por detrás uma doutrina baseada no conceito do bem comum e do bom servir. A visão tradicional do Reino enquanto patrimônio régio, vigente desde o século XVI, sofreu uma cesura, pelas Cortes de 1641 e pela consulta do Conselho de Estado, em 1656. Em ambos os momentos se distingue o Público ligado à governação, do Privado, concernente aos domínios do Rei enquanto senhor de uma Coroa e de um título. A idéia básica reside na universalização da distinção entre privado e o público, não só na vida política, mas, acima de tudo, no domino do cotidiano, no mundo dos negócios e, na administração civil. Em sua dimensão social, o Estado português procurará impor a ordem do útil e do bem comum, visando a gerir e cuidar das contradições, já evidentes, entre os diversos grupos sociais. Neste contexto, o principal Foro de elaboração e execução da política colonial passou a ser o Conselho Ultramarino, que ainda fazia às vezes de Tribunal de alçada superior para dirimir conflitos na Colônia. As incongruências administrativas entre os setores público e privado, onde várias vezes as ordens emanadas do Conselho Ultramarino para o âmbito de produção econômica eram resolvidas, de acordo com a profundidade das questões, através do instituto da ab-rogação, que se tratava da suspensão do cumprimento de uma lei ou decisão por parte das Câmaras, como também pela

126

LINHARES. Op Cit, a p 87, 2000.


87 sub-rogação, quando se transpunha um preceito jurídico de Portugal, para um outro uso e efeito na Colônia. Uma das conseqüências mais importantes na política administrativa colonial, por parte do Conselho Ultramarino, foi, segundo Linhares (2000, p. 103): As disposições saídas da autonomia do Conselho Ultramarino demonstram que, não estimulavam a permanência e reprodução da monocultura e do escravismo apenas, mas, onde principalmente em épocas necessárias, exigiam com insistência o plantio de cereais da terra [...] milho, mandioca e feijão, e incentivava a vinda de colonos pobres que se aplicassem em prover em bastar, o Brasil de alimentos, criando mesmo um excedente que sustentasse o abastecimento das colônias da áfrica, do Santíssimo Sacramento, as naus da 127 Índia, e que, pudesse ser exportado para a metrópole [...].

Prosseguindo a análise colonial das formas com que o Poder, seja ele derivado do nível público ou privado, era exercido e aplicado até a chegada de da Era de Pombal, que durou de 1750 a 1777. O Poder estatal, representado, com mão de ferro, por Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e depois Marquês de Pombal, resultou na política administrativa caracterizada pela retomada, pela Metrópole, dos mecanismos comerciais e fiscais do mundo colonial, desmantelamento econômico, administração sobre os silvícolas, controle e depois expulsão dos jesuítas. Caracterizando o poder público pombalino, Linhares (2000, p. 121) mostra: Um mercantilismo de tipo clássico, tardio, mas ajustado á defasagem da sociedade lusa, adequado ao absolutismo reformador que dele se serve como instrumento de aceleração de mudanças. Insere-se, então, como problemático mais profunda, a da transição do feudalismo ao capitalismo. Ilustração numa sociedade periférica, longamente fechada sobre si mesma, na qual o movimento ilustrado foi fatalmente alguma coisa vinda de forma, do estrangeiro; em conseqüência, diversidade de discursos, ecletismo das formas de pensamento, redefinição das práticas ao sopro de uma realidade que se dobra, mas continua a resistir. Encontro, teoricamente inexplicável, de dois fenômenos que deveriam em princípio repelir-se um ao outro: o mercantilismo e a ilustração; entretanto ali estavam eles, juntos, articulados durante todo o 128 período pombalino.

No Brasil, a tentativa de Pombal, vinculando-se aos dois conceitos que, inicialmente deveriam se repelir, por causa de seu aspecto ideológico, foi no sentido de integrar os grandes comerciantes das mais importantes praças coloniais como sócios menores de suas companhias de comércio, embora, 127 128

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 103, 2000. LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 121, 2000.


88 sem dúvida, tenha havido nesse campo consideráveis dissensões e descontentamentos. O centralismo marcou a administração. O Conselho Ultramarino viu diminuir os seus poderes; o sistema de Capitanias hereditárias foi extinto, com a absorção pela Coroa das que ainda existiam, em número de onze, excetuando-se unicamente São Vicente, que perdurou até 1791. Pombal nomeou seu próprio irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador do Grão-Pará. Mas nem a este, nem aos outros talentos administrativos coloniais que escolheu, como o Morgado de São Mateus em São Paulo, dois Marqueses do Lavradio, e vários outros, concedeu ele autonomia de ação. Pelo contrário, tentou tudo controlar estreitamente e decidir até no detalhe, pelo menos na medida em que as condições de navegação da época e as enormes distâncias o tornassem possível. A justiça colonial foi ampliada, sobretudo com a criação de um novo Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, em 1751, e reformada. Multiplicaram-se as fundações dos municípios, processo que, na Amazônia, correspondeu ao desmantelamento do sistema das Missões Religiosas, transformadas em vilas e lugares. Na tentativa de melhorar a qualidade dos produtos coloniais, assunto sobre o qual abundavam as reclamações de fraudes e de regular os seus preços, foram estabelecidas nos portos Mesas de Inspeção. Nas diversas divisões territoriais, inúmeras reformas no sistema contabilístico e de cobrança de impostos foram realizadas, como também adotadas medidas para coibir ou prevenir o contrabando, especialmente o do ouro. Os jesuítas, trazidos em 1549, por Tomé de Souza, sofreram as consequências da política-administrativa centralista de Pombal, sendo seu ponto central a desamortização dos bens dos mesmos na década de 1760, após sua expulsão, efetuada em favor de militares e outros particulares, por doação ou venda em hasta pública. Várias grandes fazendas anteriormente jesuíticas foram transformadas em vilas, dividindo a terra e as cabeças de gado entre os habitantes. Em 1755, Pombal institui a Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, onde por meio da referida, o poder público estatal dinamizou a produção agrícola de cacau, café, arroz e relativa produtividade açucareira, e introduziu em pouco mais de duas décadas, 14.749 escravos no Grão-Pará, tornando a economia da região amazônica relativamente ativa.


89 Lima (1996, p.261) afirma: O marquês de Pombal, personificando a lógica instrumental da veiculação dos axiomas da Ilustração, admitidos como necessários, com a política do Estado, marcado pelo mercantilismo racionalizado, caracterizou o andamento, em certos setores sociais do Brasil, de mudanças essenciais para o conhecimento 129 da história colonial.

Em suma, o poder exercido na Colônia, diferenciando-se nos mecanismos político-administrativos, executados por agentes funcionais do Estado (público), representado por diversas instituições, e das variadas formas no nível do setor não-público (privado), também caracterizado por micropoderes regionais ou mesmos locais, assumindo roupagens ideológicas de acordo com o momento histórico de atuação, principalmente determinado pela infra-estrutura econômica, demonstra a não homogeneidade em torno do mesmo poder. Dessa forma, podemos auferir que, de maneira com a historiografia mais recente em relação ao estudo da temática definida pela coexistência de poderes paralelos, afetando toda a conjuntura social, entre 1500 e 1700, ou seja, século XVI e fins do século XVII, o poder foi exercido, majoritariamente, pela dominância dos Poderes Micrológicos. Porém, as nuances estabelecemse nos centros irradiadores da autoridade metropolitana, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, onde a presença do Estado foi sempre forte, diluindo-se em círculos concêntricos na direção do interior. Já a partir de 1700, ocorre uma reação centralizadora, tornando o poder estatal dominante. Por sua vez, as nuances ou variações verificam-se por algumas autoridades estatais submissas à pressão dos grupos sociais, política e economicamente dominantes. Esse período, tanto quanto o inicialmente afirmado, além dessas nuances dentro da lógica histórico-interpretativo do Poder político-administrativo colonial, é notado como o tempo-espaço onde as ideologias, quando não se sobrepunham umas as outras, relativamente, fundiam-se em acordos políticos, econômicos e, depois de 1700, por via de casamentos e comércio entre os membros da burocracia estatal e as elites locais. Com a fixação da Corte lusa nos trópicos, a política administrativa ganhará mais homogeneidade por via da instalação de órgãos burocráticos que

129

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 261, 1996.


90 tornaram o governo mais coeso na implantação de medidas que alteram o status da Colônia.

2.3. A esfera cultural colonial: diferenciadas sociabilidades

Não poderíamos deixar de mostrar as mutações em torno da Esfera Cultural propiciadas a partir do ano de 1808, visto que, economia, política e cultura, são, de acordo com a dimensão histórica escolhida, manifestações, mesmo em forma de facetas, de uma mesma ideologia pensante. Neste momento, descreveremos e analisaremos os principais traços culturais fomentados e executados ao longo dos séculos XVII e XVII, pois, segundo Linhares (2000, p. 56): Tratando-se exclusivamente do século XVI, não haveria razão para se falar numa cultura colonial, quer no sentido de produção intelectual e artística das elites, quer no de uma cultura popular, quer no mais amplo, em que se articulam e interpenetram ambos os pólos da sociedade. No primeiro século da colonização, as formas culturais autóctones das várias comunidades indígenas, bem como as transplantadas dos portugueses e negros, ainda guardavam seus vínculos originais [...]; apenas quando e onde a colonização portuguesa se firmou, foi que suas formas culturais se impuseram, eliminando as demais, incorporando alguns de seus traços ou, menos, freqüentemente, adaptando-se 130 a eles.

A sociologia apresenta o termo Cultura como sendo empregado, geralmente, em dois sentidos: num primeiro, significando conjunto de refinamentos de espírito, de educação e de modos. É neste sentido que se aplica o predicado culto ao sujeito homem, na construção da frase, possuindo como sinônimos os “conhecimentos vários ou profundos ou ainda o conjunto de maneiras”. Já em seu segundo sentido, científico, antropológico ou sociológico, Cultura adquire uma acepção sensivelmente diversa, caracterizada como “totalidade de bens não-materiais e materiais de uma determinada sociedade”. Dessa forma, não há sociedade, por mais simples (a própria denominação de simplicidade manifesta um grau de abstração do etnocentrismo empregado, logo, cultural) nem indivíduo, por mais humilde que seja, destituído de Cultura: toda sociedade, tendo um certo modo de existência, tem Cultura e todo ser humano é culto como portador que é, em maior ou menor proporção, da Cultura de seu tempo. 130

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 56, 2000.


91 Em relação a sua natureza, cultura se divide, convencionalmente, em material (todas as objetivações materiais ou instrumentais) e não-materiais (todas as maneiras de agir, pensar e sentir padronizadas e socialmente aprovadas seja no âmbito da legitimação oficial ou como representação nãolinear de um padrão buscado ou desejado). Assim, nosso intuito é buscar, a partir do ano de 1808, mutações na Esfera Cultural, a ser destacada. Em outras palavras, a indagação: quais mutações culturais se apresentaram, dentro do padrão ideológico colonial, como constituintes da mentalidade monarcal, atingindo os espaços do público e do privado, com a chegada da corte lusitana? A partir do século XVII, podemos perceber os condicionamentos da cultura colonial que devem ser observados. Primeiramente, o referencial religioso e político. A cultura poderia ser classificada em letrada e popular, mas certamente não caberia distinguí-la como religiosa e leiga, pois, as normas fixadas desde o Concílio de Trento, estabeleciam o claro primado do religioso sobre o leigo, este absorvido naquele, como se a laicidade fosse um pecado a ser corrigido pela penitência e simplesmente pela religião. Reproduzidas e aprofundadas como elementos de estado cultural da época colonial, observa Linhares (2000, p. 61) que as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, texto básico sobre a atuação religiosa e civil do clero e dos fieis do século XVIII, já afirmavam: Proibimos sob pena de excomunhão que, nenhuma pessoa secular, ainda que seja douta e de letras, se intrometa a disputar em público ou particular sobre os mistérios de nossa Santa Fé e Religião Crista [...]. leigos, não comunguem 131 cada dia, senão de oito em oito dias.

O referencial político era a do Absolutismo. A obediência a Deus e ao Rei era pressuposto indiscutível, embora seus agentes pudessem ser criticados em prosa e verso, desde que sua responsabilidade fosse dissociada de seus superiores. Havia também um condicionamento social e político na cultura colonial. Uma sociedade agroexportadora e mineradora, voltada para fora, valorizando a cultura européia como padrão a atingir, proibida de possuir imprensa e universidade e com o mínimo de renovação tecnológica na economia, gerou uma cultura literária voltada para a simples reprodução e, 131

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 61, 2000.


92 sobretudo livresca, na qual se desprezavam a realidade circundante e a experiência, a favor do que diziam os livros portugueses, vinculados a posições escolásticas e aristotélicas dissonantes do movimento majoritário da cultura européia que apontava para as idéias de Bacon, Descartes e Newton. Era um saber literário controlado, nas suas manifestações filosóficas, teológicas e estéticas desde o fim do século XVI por uma tríplice censura, conforme Lima (1996, p. 274): Enquanto no Velho Mundo os filósofos, persuadidos pela própria evolução cultural de seu tempo, buscavam diferenciadas maneiras de saber, o Brasil Colônia ficava restrito às proibições eclesiásticas, exercidas pelos bispos, as inquisitoriais, controladas pelos dominicanos, e as regras, de forte influência 132 jesuítica.

A ausência de Imprensa e universidade também influenciou o meio cultural da Colônia. A proibição à Imprensa no Brasil colonial prendia-se ao temor da influência de idéias estrangeiras e da presença de heresias que pudessem solapar a mentalidade ideológica, como também a possibilidade de eclodirem movimentos separatistas. A inexistência de universidades, por outro lado, caracterizava-se como tentativa de Portugal manter uniforme a formação da elite político-administrativa e intelectual. O abuso dos estudos superiores só serve para manter nutrir o orgulho próprio dos habitantes e destruir os laços de subordinação política e civil que devem 133 ligar os habitantes das colônias às metrópoles. (Fernando Antônio Noronha. 1795. Governador de Pernambuco á época da Revolução Francesa).

Fatores diversos contribuíram para a lenta afirmação da cultura portuguesa ao longo do século XVII. Havia maiores recursos à disposição, com o desenvolvimento do açúcar e da pecuária, consolidando núcleos urbanos, como Olinda, Recife, Salvador e Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que intensificou-se o caldeamento das etnias e suas diferenciadas formas culturais. Criavam-se, assim, as bases materiais indispensáveis ao surgimento de manifestações intelectuais e estéticas mais expressivas e refinadas. Apesar das dificuldades de conceituar o termo Barroco, devido aos inúmeros pontos de vista metodológicos, pode-se afirmar que o século XVII foi o Século Barroco por excelência na Colônia, expressando a supremacia do 132

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 274, 1996.

133

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 69, 2000.


93 Poder Real pela suntuosidade e magnificência, da engenhosidade humana para criar formas rebuscadas, tortuosas, de difícil concepção e acabamento, estabelecendo o primado da cultura como uma arte não natural, muito menos simples, porém, refinada, orgulhosa de si, preocupada em brilhar pela grandiosidade da forma. Na literatura colonial do século XVII, torna-se comum o cultismo, em que a hipertrofia da forma e o abuso de metáfora chegam a obscurecer o sentido, e o conceptismo, no qual, ao contrário, haveria uma preocupação em preservar a objetividade do conteúdo. Nesse clima, o Padre Antônio Vieira, Manuel Botelho de Oliveira e Gregório de Matos Guerra, foram os grandes nomes da literatura no Brasil, no espírito do século XVII. Além de uma extensa atividade política, o Padre Antônio Vieira, foi escritor prolixo, autor de um extenso sermonário e obras de pensamento político como o V Império e a História do Futuro. Sua influência no pensamento literário colonial foi de cunho moralista, defendendo a Monarquia portuguesa, apropriando-se da clareza, simplicidade e precisão. [...] defenderei os princípios reais não com o gosto da afetação e pompa de palavras, mas com a clareza; assim, serei ouvido e compreendido.134 Manuel Botelho de Oliveira não teve, em suas obras, preocupações políticas e sociais, preferindo o estilo comediográfico e poético. Sua poesia, de estilo cultista, apresenta-se como uma movimentação literária superficial e formalizante, sem maior penetração psicológica ou interesse pela sociedade que o cercava. Apesar de alguns desacordos em torno de suas obras, Gregório de Matos Guerra, foi um satírico que retratava as fraquezas humanas e a sociedade de seu tempo. Ocupou vários cargos públicos, indispondo frequentemente com seus superiores. Condenado a degredo em Angola, retornou ao Brasil, onde morreu, justificando até o final a alcunha de Boca do Inferno. Embora existiam exemplos de pintura e artes menores, como ourivesaria e mobiliário, o século XVII teve na arquitetura sua expressão mais significativa, destacando-se as Casas-Grandes dos engenhos, térreas e avarandadas, e os primeiros

sobrados

urbanos.

Os

principais

exemplos

arquitetônicos

seiscentistas eram encontrados, naturalmente, nas cidades litorâneas, onde os

134

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 74, 2000.


94 elementos dominantes desta arquitetura eram as influências religiosas, os interiores muito ornamentados, o exterior sóbrio e retilíneo e as esculturas com motivos humanos, da flora e da fauna, alegoricamente representados. As Igrejas eram construídas tanto pelas Ordens Religiosas como pelas Confrarias e Irmandades, sendo os templos destas últimas geralmente mais ricos que o das Ordens, pelo auxílio que lhes prestavam senhores-de-engenho e comerciantes. Sua sacristia era muito ampla, pois nos dias de festas religiosas, batizados ou simplesmente aos domingos, era lá que se reuniam as pessoas. A dispersão da vida colonial tornava a Igreja (católica) o ponto de encontro para quebrar a monotonia da vida rural. A literatura e a arte no século XVIII apresentaram diferenças sensíveis em relação ao século anterior. A nova riqueza, propiciada pela descoberta do ouro e dos diamantes, a interiorização e o surgimento de cidades nas zonas auríferas fizeram com que se deslocasse para o Centro-Sul também a incipiente vida cultural brasileira. Autores como Cláudio Manoel da Costa (Obras, 1768; Vila Rica, 1773), Basílio da Gama (O Uraguai, 1769) e José de Santa Rita Durão (Caramuru, 1781), que eram os mais lidos na época, eram até certo ponto, influenciados pelo Iluminismo filosoficamente e pelo Arcadismo, em seu plano estético, onde a arte deveria imitar a natureza, identificada com a vida bucólica do campo. O padrão estético a ser seguido, mas sem servilismo, era o dos clássicos, porque havia imitado melhor a natureza, tendo a literatura um fim moral, edificante e equilibrado, condenando tanto o cultismo quanto o conceptismo. O Barroco do século XVIII, principalmente o mineiro, foi acentuadamente de base religiosa, com interiores rebuscados e fachadas sóbrias, diferindo do anterior – aquele do litoral do século precedente – por ser uma arte urbana, onde as construções civis, como Palácios e a Sede da Câmara, tem em geral um relevo maior do que no litoral. As Igrejas, mais do que às Ordens religiosas e paróquias, pertenciam às Confrarias e Irmandades. Daí a rivalidade entre as diversas associações, cada qual procurando superar as demais em suntuosidade, sobretudo na decoração dos interiores. Em Minas Gerais, o Barroco, embora continuasse associado ao Absolutismo, assumia feições livres em relação ao Poder, conduzindo a obra de arte à busca do esplendor artístico e não à demonstração ao poder.


95 A originalidade do barroco nas Minas Gerais, deveu-se, sobretudo, a dificuldade para a importação de materiais da metrópole, como a ausência de azulejos que provocou prodígios de improvisação nas decorações. Também a quantidade de artífices locais, como brancos, mulatos e negros africanos, 135 favorecia as inovações e a utilização de material da terra.

A cultura colonial também se manifestava na sociabilidade das relações das pessoas entre si e intergrupos, cristalizando-se em momentos importantes como visitas, batizados, casamentos, enterros, festas religiosas e profanas. Naturalmente, marcada pelas condições da época e lugar, a mentalidade religiosa e do predomínio das tradições portuguesas era dominante, apesar da influente presença indígena e africana. Os primeiros cronistas impressionaramse com a riqueza e o fausto do grupo social mais rico da Colônia, o dos senhores de engenho, até pelos menos, às primeiras décadas do século XVII, ou seja, até a crise do açúcar causado pelas invasões holandesas. Festas ocorriam durante vários dias com a abundância de bebidas e comidas, musica, danças e torneios equestres, como as cavalhadas. Além das comemorações familiares, as reuniões e festas ocorriam nas datas dos padroeiros, de São João e principalmente no chamado Ciclo de Natal. Nas reuniões, após o jantar, era uma constante o jogo de cartas. Outro divertimento comum nestas reuniões eram as adivinhações de origem portuguesas, causando entusiasmo nos escravos e libertos, quando se encontravam no final do dia de trabalho e aos domingos. Linhares (2000, p. 111), citando o Soneto Varia Idéia Estando Na América E Perturbado No Estudo Por Bailes De Bárbaros, do autor seiscentista, D. Francisco Manuel de Melo, transcreve uma parte do mesmo: “Não pude dormir toda a noite; com o estrondo dos atabaques, pandeiros, canzás e castanhetas, com tão horrendos alaridos, que se me representou a confusão do inferno”.136 As mais importantes festas do período colonial eram as do Ciclo do Natal, que era um conjunto de celebrações, reuniões, representações teatrais e procissões que se estendiam de meados de dezembro a 6 de janeiro, Dia de Reis, e que, geralmente, eram realizadas nas Paróquias ou nas Igrejas das Irmandades. Nesse ciclo, havia muitas comemorações e atividades, uma delas, as lampinhas, envolviam canções e louvações diante do presépio de Natal,

135 136

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 87, 2000. LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 111, 2000.


96 quando também se faziam representações com pastores sobre a chegada dos Reis Magos em Belém. Os pastoris (autos maiores em que a representação teatral evoluía para a sátira social ou política) e as cheganças (autos populares com músicas e danças, proibidas em vários momentos por serem consideradas lascivas, constituíam-se em manifestações culturais no Brasil colonial. Após a noite de Natal, os preparativos continuavam para a noite de AnoBom e para o Dia de Reis, em geral muito animados, tanto nas cidades e vilas como no interior. Vizinhos e parentes visitavam-se, faziam refeições juntos e trocavam presentes, inclusive escravos. Os autos fundiam cantos, dos pastoris, toadas populares e louvações, destacando aspectos cômicos e satíricos. Os reisados do Dia de Reis consistiam em grupos populares que dançavam e cantavam nas ruas. Fora do ciclo natalino, eram ainda relevantes festas como a do Divino e a de São João. A primeira tinha como base religiosa os milagres atribuídos ao Espírito Santo. Nas Províncias, grupos organizados nas Paróquias e Irmandades, percorriam o interior com estandartes e bandeiras, recolhendo donativos para a festa. Esses grupos faziam a Folia do Divino, com cantos e músicas animadas por pandeiros, violas, tambores e pratos. O Divino entra contente Nas casas mais pobrezinhas Toda a esmola ele recebe: Frangos, perus e galinhas.

O Divino é muito rico Tem brasões e tem riqueza Mas quer fazer sua festa Com esmolas da pobreza.

137

Trecho recolhido por Linhares de Trova do século XIX. Autor anônimo.

Por seu turno, a véspera de São João era festa comemorada tanto no meio urbano como nas fazendas, assumindo, entretanto, caráter menos

137

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 116, 2000.


97 religioso. Era uma festa que transcorria à noite, com música, danças, pratos típicos, queima de fogos e muitas superstições, que quase sempre tinham como objetivo prever o futuro. Essas festas tinham como funções, cristalizar antigas atitudes mentais e sentimentais, expressas na própria música, nas danças, como, concomitantemente, buscar, no caso das festas religiosas, estimular a proteção de Santos e entidades mágicas e de Deus para cada um e sua família, exorcizando os demônios e as influências nefastas. Elas ainda firmavam como quebra da rotina de trabalho e do marasmo da vida colonial, geralmente organizadas em comunidades semi-isoladas, ligadas umas às outras, no litoral, pelos navios e no interior pelos tropeiros, valorizando a hierarquia social e o luxo. Em suma, o conjunto cultural colonial expressava o pensar, sentir e agir da época, onde, de maneira objetiva, caracterizava uma sociedade estamental, porém, com manifestações culturais ricas e subjetivas. Com a instalação da Corte, esse quadro mental não será, por completo, desestruturado, mas, irá se desenvolver uma nova sociabilidade urbana, eivada nos axiomas de civilização.

3 Mutações nas esferas sociais da Colônia

A transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, é, em geral, apontada pela historiografia como o marco inicial do processo de independência política, consolidação do liberalismo econômico e mutações dos setores culturais da Colônia. A corte lusitana permanece no Brasil durante 13 anos, tempo em que foram tomadas as medidas e decisões que caracterizam, mesmo de forma incipiente, porém consubstanciais, o início da modernização das esferas sociais do país. O recorte, de fato, justifica-se, embora Gorenstein (1993, p. 33), acentue também aqueles condicionantes externos e estruturais de fundo, situados na longa duração, relacionados à crise do Antigo Sistema Colonial: A crise do Antigo Sistema Colonial resulta do desenvolvimento do capital industrial, da expansão dos mercados, das demandas livre-cambistas, da difusão das idéias políticas iluministas e liberais, da desagregação do Estado


98 Absolutista, da Independência das Treze Colônias americanas e da Revolução 138 Francesa.

Seja como for, o fato é que, o Brasil só passaria por mudanças substanciais na sua condição de Colônia após a fuga e chegada da Corte portuguesa, sendo não apenas resultante pela circunstancia da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas – em represália à recusa daquele país em aderir ao Bloqueio Continental – mas também em função da existência, desde o século XVI, de um projeto reformista ilustrado de construção no Brasil de um poderoso Império Luso-Brasileiro. A partir de então, o Rio de Janeiro, até aquele momento, resumindo-se a uma simples Sede de um Vice-Reino, cujas capitanias entendiam-se melhor com a Metrópole de além mar do que com o centro administrativo da Colônia, torna-se a importante capital de um vasto império mundial que, além de Portugal e Brasil, compreendia também possessões em mais dois continentes, como a África e a Ásia. Uma série de instituições político-administrativas do Estado português foi instalada na nova sede do Império ultramarino, como o Ministério e o Conselho de Estado, o Desembargo do Paço, a Casa Régia, o Conselho Real de Fazenda, a Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação, o Banco do Brasil, a Real Academia Militar e a Real Academia dos Guardas-Marinhas. Além dessas, instituições Científico-Culturais foram também introduzidas como a Biblioteca Real, o Museu Real, a Imprensa Régia, responsável pela publicação de livros, de folhetos e o primeiro jornal introduzido no Brasil, ainda em 1808, no Rio de Janeiro, o Observatório Astronômico, o Real Jardim Botânico, as Academias Médico-Cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahia e a Academia Real de Belas Artes. Pelo exposto, percebemos a diversidade institucional durante o governo joanino que, mesmo em algumas circunstancias não proporcionou melhorias para o Brasil como um todo, adquire a relevância histórica em relação as transformações sociais – em diversos setores – que iniciaram o próprio processo de modernização social. Assim, e como as inerentes mutações são de enormes consequências enquanto fatos, nos alocaremos nas esferas da 138

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 96, 2000.


99 economia, da política e do conhecimento – esta última entendida no campo da impressa –, com algumas notações históricas em outras áreas.

3.1 Mutações na esfera econômica: passagem do mercantilismo para o capitalismo

No dia 28 de janeiro deste ano (2009), reuniram-se, em Salvador, à época, Gilberto Gil, Ministro da Cultura, e Pedro Brito Nascimento, Ministro da Secretaria Especial de Portos. Também estavam presentes, o Embaixador de Portugal, Francisco Seixas da Costa, o Governador da Bahia, até então, Jaques Wagner e o prefeito de Salvador, reeleito no último dia 26 de outubro, Henrique Dias, dentre outras autoridades convidadas. A cerimônia oficial foi realizada às 18h:00 e fazia parte das comemorações ao Bicentenário da Declaração de Abertura das Alfândegas e Portos Brasileiros ao Comércio Internacional. Durante a solenidade, houve o lançamento pelos Correios do Selo Comemorativo aos 200 Anos da Abertura dos Portos às Nações Amigas e a apresentação do Coral Boca do Porto, formado por 30 funcionários da Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba), dentre outras atividades culturais. Embora

notória

e

plausível,

na

maioria

dos

historiadores

e

pesquisadores, o posicionamento afirmativo de que, pela Abertura dos Portos às Nações Amigas, o comércio brasileiro tenha sido inundado pelos artigos ingleses, cabe ressaltar que, nossa pesquisa, não se limita apenas à esse fato, mas, sobretudo, às possibilidades tornadas concretas, na esfera econômica, da entrada do comércio brasileiro ao mercado internacional capitalista, mesmo que de maneira dependente, como também, na constatação de que, ao mesmo tempo legitima a afirmação sobre os tecidos ingleses, quanto seus artigos de luxo, serem as mercadorias em maior número no mercado brasileiro, outras medidas tomadas por D. João foram de importância inconteste para o alargamento de uma economia até então colonial para a participação no comércio

mundial,

como,

concomitantemente,

o

não

todo

depurado

pejorativamente na Abertura dos Portos. Ou seja, mesmo os ingleses constituindo-se, por meio de seus produtos e capitais, a parcela que mais lucrou com a nova economia, não se pode deixar de anotar que, também, o


100 Brasil foi beneficiado com a Abertura dos Portos e demais medidas tomadas no âmbito econômico. Eis o que iremos analisar. Até recentemente, acreditava-se que a escalada de D. João em Salvador, em 1808, fosse consequência da tempestade que dispersou a esquadra entre os dias 8 e 10 de dezembro de 1807, na altura do arquipélago da Madeira. Uma parte da mesma esquadra, incluindo as naus onde viajavam a Rainha D. Maria I, o Príncipe Regente D. João e a Princesa Carlota Joaquina, teria ficado à deriva e seguida na direção Noroeste, enquanto o restante da frota continuaria na rota original, rumo ao Rio de Janeiro. Ao descobrir que estava nas imediações do litoral baiano, D. João teria ordenado que os navios atracassem em Salvador. Essa é uma visão equivocada, segundo Gomes (2007, p. 107), em relação ao objetivo da escalada em Salvador: [...] no dia 21 de dezembro de 1807, o Príncipe Regente comunicou ao Capitão James Walker, comandante do Bedford, da esquadra inglesa, que havia decidido ir para Salvador [...] isso aconteceu onze dias depois da 139 tempestade.

Outra prova de que a mesma escalada não foi resultado do acaso, encontra-se na historicidade da navegação portuguesa que, desde a época dos descobrimentos, tornou-se referencial de conhecimento do Oceano Atlântico, sendo dessa forma, a teorização de que foi obra das inconstâncias da natureza a escala em Salvador, algo infundada. A medida mais importante, tomada por D. João, que proporcionou a modernização da esfera econômica brasileira, embora sob a égide do capital europeu, principalmente inglês, e que notadamente é conhecida pela historiografia, seja a tradicional ou as mais recentes abordagens, foi sem dúvida a Abertura dos Portos às Nações Amigas, rompendo o exclusivo metropolitano, erroneamente identificado na forma do Pacto Colonial. No dia 28 de janeiro, de 1808, apenas uma semana depois de aportar em Salvador e mais uma cerimônia do Te Deum, D. João foi ao Senado da Câmara assinar seu mais famoso ato em território brasileiro: a Carta Régia de abertura dos portos ao comércio de todas as nações amigas.

139

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 107, 2007.


101 O historiador Lima (1996, p. 280), declara: “[...] a partir dessa data, estava autorizada a importação de todos e quais gêneros, fazendas e mercadorias transportadas em navios estrangeiros das potencias que se conservam em paz e harmonia com a Real Coroa”.140 Até recentemente, havia dois mitos propagados por alguns livros de História a respeito da Abertura dos Portos. O primeiro atribui a decisão pela influência do funcionário público baiano José da Silva Lisboa. Discípulo do liberalismo econômico, do autor escocês Adam Smith e autor do livro A Riqueza das Nações, Lisboa teria convencido D. João, por meio de um estudo estatístico, a necessidade de liberação comercial do Brasil para o desenvolvimento econômico da Colônia. O segundo mito é que a decisão teria sido um gesto de simpatia de D. João para com os brasileiros, libertando-os do monopólio português e do isolamento comercial. Entretanto,

pesquisas

recentes,

com

abordagens

historiográficas

diferenciadas da ortodoxia histórica, principalmente acerca da conjuntura econômica e política, demonstram a inevitabilidade da abertura dos portos. Com Portugal e o porto de Lisboa ocupados pelos franceses, o comércio do Reino se achava estagnado [...] assim, abrir os portos do Brasil era, portanto, uma decisão óbvia e necessária, tanto política, quanto economicamente. Econômica pelo fato de que, o comércio do Reino precisava escoar sua produção colonial, fonte principal de recursos e finanças, e, política, pelo cumprimento do acordado com os ingleses que, escoltaram a nobreza com o interesse econômico no mercado brasileiro, concretizado na abertura dos 141 portos do Brasil.

Esta medida, revelada como inevitável, sem seus aspectos econômicos e políticos, implicou na quebra do monopólio comercial de Portugal no Brasil, o que representou um duro golpe, pois os comerciantes portugueses passaram a concorrer, em condições muito desvantajosas, com comerciantes e armadores de outros países, particularmente com os ingleses, após a assinatura dos Tratados de 1810 com a Inglaterra. As concessões econômicas que, afinal, acabaram resultando na crescente dependência de Portugal em relação à Inglaterra, foram derivadas logo após a Restauração, no ano de 1640, pois, sem o apoio inglês, Portugal não obteria sua autonomia ante a dominação dos Hamburgos da Espanha. Os 140

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 280, 1996.

141

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 223, 2000.


102 Tratados de 1641, 1654 e 1661, com a Inglaterra, foram ampliados pelo Tratado de Methuem, assinado em 1703, onde, pelo mesmo, estimulou, em síntese, a compra do vinho português, por parte dos ingleses, enquanto os lusitanos adquiriam os tecidos britânicos. Tal relação econômica constituiu-se altamente nociva para Portugal porque, em primeiro lugar, importava-se mais tecido do que se exportava vinho, tanto em termos de quantidade como em valores, e sem segundo lugar, as manufaturas portuguesas foram eliminadas pela concorrência inglesa. Nessa perspectiva, os Tratados de 1810 podem ser classificados como continuidade da relação econômica entre o Reino português e a Cora inglesa. Os Tratados de Aliança e Amizade, como o de Comércio e Navegação, teriam validade por 14 anos. Do conjunto dos dispositivos, destacavam-se alguns artigos que feriam frontalmente os interesses econômicos de Portugal e do Brasil, além da humilhação política que outros itens impuseram a Soberania lusitana. Em um artigo do segundo Tratado, por exemplo, a Inglaterra exigiu o Direito de Extraterritoriedade. Isso significava que os súditos e comerciantes ingleses radicados em domínios portugueses não se submeteriam às leis portuguesas, elegendo os mesmos, quando do surgimento de interesses contraditórios, seus próprios juízes que os julgariam conforme as leis inglesas. D. João, o Príncipe Regente, aceitou, resignadamente, a reconhecida Equidade da Jurisprudência Britânica e a singular excelência de sua Constituição, não tendo como retorno o mesmo direito em domínios ingleses. Entretanto, o mais escandaloso – ao mesmo tempo que colocou de vez o mercado brasileiro em contato com o comércio internacional, embora de forma dependente, foi o direito assegurado à Inglaterra de colocar suas mercadorias no Brasil mediante a taxa de 15% ad valorem, enquanto os produtos portugueses pagavam 16 % e os demais países 24%. Linhares (2000, p. 241) explica que: A brutalidade dos Tratados de 1810 impostos pela Inglaterra não foi obra do acaso, mas, derivou-se da pesada pressão econômica que o bloqueio napoleônico exerceu sobre a mesma, tornando premente a necessidade de abrir novos mercados, sob a pena de sucumbir às pressões da conjuntura européia [...], portanto, a quebra do pacto colonial era inevitável, pois, as mercadorias estavam se acumulando e necessitavam ser escoadas de algum 142 modo, e esse modo foi o comércio brasileiro. 142

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 241, 2000.


103

A relativa facilidade com que a Inglaterra impôs seus interesses ao Brasil permitiu a maciça exportação de seus produtos, inundando o mercado, trazendo modificações radicais na posição do Brasil dentro do mercado internacional, isto é, a saída da órbita do colonialismo mercantilista português para ingressar na dependência do capitalismo industrial inglês. Logo, os principais centros populacionais do Brasil tornaram-se os grandes entrepostos comerciais: [...] de todos os primordiais pólos comerciais da Colônia até então marcados pela economia colonial, afluíam as mais variadas mercadorias para os consumos locais, distribuídos pela costa, sobretudo Bahia e Montevidéu, mas, mesmo para o norte, e colocação nos setores mais remotos num grande desenvolvimento do comércio que anteriormente existia a par de muito 143 contrabando.

Em abril de 1808, o Príncipe Regente D. João, decretou no Rio de Janeiro, a suspensão do Alvará de 1785, assinado por D. Maria I, naquele momento Rainha de Portugal, que proibia a criação e instalação de indústrias no Brasil. A medida permitiu a instalação de fábricas, manufaturas de tecidos e outras mercadorias, entretanto, não muito rentáveis, visto que, a produção industrial não fazia face a concorrência inglesa. Mesmo assim, livre das proibições, inúmeras fábricas começaram a despontar no território brasileiro. A primeira fábrica de ferro foi criada em 1811, na cidade de Congonhas do Campo, pelo Governador de Minas Gerais, D. Francisco de Assis Mascarenhas. Três anos mais tarde, já como Governador da Província de São Paulo, D. Francisco auxiliaria na construção de outra indústria siderúrgica, a Real Fábrica de São João de Ipanema, em Sorocaba. Em outras regiões foram erguidos moinhos de trigo e fábricas de barcos, pólvora, cordas e utensílios de utilização doméstica e agrícola, pois, a agricultura também se firmou, saindo de uma crise própria do fim do século XVIII, como salutar para as economias do Reino, principalmente pelo incremento do açúcar e do algodão, paralelos na volição de ampliação de mercado do capital inglês e europeu. Sendo a siderurgia uma das primeiras atividades industriais autônomas, relativamente em termos de produtividade de rentabilidade, após três séculos 143

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 249, 2000.


104 de monopólio luso, tal empreendimento é compreendido na simbologia que o ferro representava ao capitalismo nas primeiras décadas do século XIX: Nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a imaginação quanto a ferrovia, como testemunha o fato de ser o único produto da industrialização do século XIX, totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita e popular [...] a estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, á velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia, estações e pontes formando um conjunto de 144 construções [...].

Enfim, as mutações derivadas com a chegada da Corte portuguesa ao Brasil se fizeram sentir também na agricultura. Durante a maior parte do período colonial, o sistema agrícola brasileiro se caracterizou pela grande lavoura monocultora e escravista voltada para a exportação, embora existissem pequenas lavouras, policulturas e de trabalho familiar. Em relação a escravidão, a presença de uma nova organização estatal e a pressão cada vez mais acirrada do capital inglês, perdurou ainda por algumas décadas, visto que, constituía na força motriz, apesar do incentivo de imigração de colonos europeus por meio da política externa do Governo de D. João. Com D. João, toda a estruturação do Estado português sofreu alterações, principalmente com a necessidade de maior abastecimento de gêneros agrícolas especificamente para o mercado interno. Antes de D. João, a estrutura agrária brasileira era pautada pela rusticidade dos meios de produção, pela adubação imprópria e a prática do arado, enfim, o que havia era a presença modesta de técnicas modernas de cultivo. O Príncipe Regente, atento a essa situação emergencial, criou em 1812 o primeiro Curso de Agricultura na Bahia, e em 1814, no Rio de Janeiro, uma Cadeira de Botânica e Agricultura, entregue a Frei Leandro do Sacramento. O objetivo era conhecer melhor as espécies nativas, não apenas para a descrição e classificação, mas, também com a intenção de descobrir seus usos alimentares, curativos e tecnológicos. Mais do que isso, a promoção de estudos botânicos e agrícolas era parte de uma nova mentalidade de promoção das idéias científicas, que já vinha sendo implementada em toda a Europa, desde o final do século XVIII. Nesta visão, a agricultura era vista como uma autêntica e verdadeira arte, pois, era o melhor exemplo de como o homem era 144

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 263, 2000.


105 capaz de domesticar a natureza e fazê-la produzir a partir das necessidades humanas. Logo, foi fundamental a interferência do Estado em prol do desenvolvimento e aproveitamento racional das riquezas naturais, orientado pelas experimentações e pela própria razão. Em suma, embora a economia brasileira sofresse a transferência do âmbito mercantilista colonial para o dependente capitalista, sobretudo inglês, não podemos de notar que, com as medidas tomadas por D. João, na esfera econômica do Brasil, obteve melhoramentos em sua produção, variação de produção e principalmente no incremento de técnicas produtivas, exceto a escravidão, que perdurou, em seu aspecto institucional, até o ano de 1888.

3.2. Mutações na esfera política: autonomia e unidade

A humanidade, apesar dos adeptos do fukuianismo negarem atualmente esse estado, sempre idealizou, entretanto, em formas não homogêneas no tempo e no espaço, a existência de si. Porém, como o próprio conceito físico de tempo-espaço determina, são as condições materiais, isto é, da realidade concreta, que despertam as ideologias de seu sono inerte para a fomentação das

mesmas

ideologias

na

realidade,

concretizando

sua

forma

de

materialização ideológica. Não nos propomos aqui a resolver a dualidade filosófica entre o Idealismo e o Materialismo, entre o pensamento hegeliano e o marxista, porém, procuraremos encontrar os germes ideológicos que, criaram a existência, ressaltando a existência como pano de fundo ideológico, das mutações políticas com a instalação da Corte portuguesa no ano de 1808, proporcionando a autonomia política da colônia brasileira e a unidade administrativa e territorial como condições necessárias para o estabelecimento de importantes ações ideológicas que modificaram a esfera política da realidade concreta. Em outras palavras, podemos resumir nosso intuito com a seguinte indagação: quais as ações tomadas por D. João que, durante seus treze anos de permanência no Brasil, alteraram a posição política da colônia, culminando no processo de Independência jurídico-administrativa – visto que de facto, tal independência já era sentida – de 1822 ?


106 De fato, com a instalação da Corte no Brasil, tornando o Rio de Janeiro a Sede do Império, o Brasil em si, passa a se caracterizar como o âmbito onde se emanam as decisões para o restante território do Império lusitano, como já sabemos que com D. João vieram não apenas a Nobreza, mas, todo o aparato do Estado, com suas instituições próprias, denominando dessa forma, no ano de 1808, o momento histórico em que, incrustado no processo de Civilizar, o Brasil passa a se constituir como Estado, nação e país. Passados os atropelos da chegada, era hora de colocar mãos à obra. Os planos eram grandiosos e havia tudo por fazer no Brasil. Entre outras carências: [...] a Colônia precisava de estradas, escolas, tribunais, fábricas, bibliotecas, moeda, comércio, imprensa, bancos, hospitais e comunicações eficientes. Em especial, necessitava de um governo organizado que se responsabilizasse por 145 tudo isso, pois, o país era desmesurado e virgem.

Na tentativa de materializar o histórico e secular pensamento de construção nos Trópicos de um grandioso Império, D. João não perdeu tempo e, no dia 10 de março de 1808, quarenta e oito horas depois de desembarcar no Rio de Janeiro, organizou seu novo Gabinete Administrativo, constituindo o primeiro Ministério do Brasil, ficando assim formatado, no conjunto das Instituições instaladas na Colônia de acordo como era em Portugal: Negócios Estrangeiros e da Guerra; Negócios do Reino; Negócios da Marinha e Ultramar; o Erário Real; a Imprensa Régia; o Conselho da Fazenda Real; as Mesas do Desembargo do Paço e de Consciências e Ordens; Registro das Mercês; o Conselho Supremo Militar; dentre outras.146

A esses órgãos foram incorporados vários outros, tais como a Intendência Geral de Policia da Corte (um misto de secretaria de segurança pública e prefeitura, da cidade do Rio de Janeiro), a Casa de Suplicação do Brasil, a Junta do Comércio e Agricultura, Fábricas e Navegação do Brasil e o Banco do Brasil. Cabe ressaltar que, inicialmente instalados na Sede do Governo, ou seja, no Rio de Janeiro, posteriormente esses Órgãos foram

145

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 213, 2007.

146

http://www.arqnet.pt/portal/portugal/liberalismo/lib1820.html, acessado em 29 de

outubro de 2008, as 03:45.


107 estendidos aos mais populosos e importantes centros urbanos da Colônia, a ponto da representação política consubstanciar-se em todo o território. A rápida transposição do aparelho burocrático e administrativo do Estado português compreendeu um grande contingente de funcionários de diversos escalões e uma enorme população dependente dos cofres públicos. Os dois mundos que se encontraram no Rio de Janeiro em 1808 tinham vantagens e carências que se complementavam. De um lado, havia uma Corte que se julgava no Direito Divino de governar, mandar, distribuir favores e privilégios, com a desvantagem de não ter dinheiro. De outro, uma Colônia que já era mais rica, relativamente, do que a Metrópole, mas ainda não tinha a homogeneidade político-administrativa caracterizada por uma burocracia socialmente estabelecida por meio de instituições governamentais. Politicamente, a estratégia de D. João para dirimir a necessidade de dinheiro para o funcionamento dos órgãos burocráticos se encontra na utilização da elite rica da Colônia, porém, destituída de prestígios e refinamento, pois, o apoio político e, principalmente financeiro desse grupo, era de relevância extrema para a composição da burocratização estatal, capaz de homogeneizar a política. Para cativá-la, D. João iniciou uma pródiga distribuição de honrarias e títulos de nobreza que se prolongou até seu retorno a Portugal, em 1821. Apenas nos seus oito primeiros anos no Brasil, D. João outorgou mais títulos de nobreza do que em todos os trezentos anos anteriores da história da Monarquia lusitana. Desde sua independência, no século XII, até o final do século XVIII, Portugal tinha computado dezesseis marqueses, 26 condes, oito viscondes e quatro barões. Ao chegar ao Brasil, D. João criou 28 marqueses, oito condes, dezesseis viscondes e quatro barões [...] distribuiu 4.048 insígnias de cavaleiros, comendas e grã-cruzes da Ordem de Cristo, 1.422 comendas da 147 Ordem de São Bento da Avis e 590 comendas da Ordem de São Tiago.

Cabe a essa Nova Nobreza auxiliar D. João nas suas atribuições financeiras, principalmente aquelas relacionadas ao projeto hegemonizado de Governo previsto nos órgãos burocráticos do Estado. Caberia a essa burocracia criar um país a partir do nada, direcionando atividades internas. Internamente,

a

ação

do

Governo

joanino

inclui

melhoramentos na

comunicação entre as Províncias, estimulando o povoamento e aproveitando

147

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 197, 2007.


108 as riquezas da Colônia. A abertura de novas estradas, autorizadas ainda na escala em Salvador, ajudou a romper o isolamento que até então vigorava entre as mesmas. A construção de estrada, oficialmente proibida por Lei desde 17.333, com a desculpa de combater o contrabando de ouro e pedras preciosas. Em 1809, uma estrada de 121 léguas foi aberta entre Goiás e a região Norte, tendo como objetivo facilitar a comunicação com a Guiana Francesa depois da ocupação de Caiena por tropas portuguesas no final de 1808. Também foram abertos novos caminhos entre Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo e o Norte do atual Estado do Rio de Janeiro, como exemplo, a Estrada do Comércio, ligando as cidades do Vale do Paraíba a São Paulo e o Sul de Minas Gerais, facilitando assim o trabalho dos tropeiros. As regiões mais distantes foram exploradas e mapeadas. O Pará e o Maranhão ganharam uma nova carta hidrográfica [...]; expedições percorreram os rios tributários do Amazonas até as nascentes e estabeleceram a comunicação 148 fluvial entre Mato Grosso e São Paulo.

Outra medida administrativa da política de D. João foi a introdução do Ensino Leigo e Superior, pois, antes da instalação da Corte a Educação se encontrava restrita ao ensino básico e confiada aos religiosos, apesar da administração pombalina de 1750 a 1777 ter atenuado sua influência. A Educação colonial, restringida ás primeiras letras e noções superficiais da Religião, como também, ler, escrever, contar e orar eram os objetivos, nem sempre, aliás, atingidos. A Educação foi, em grande parte, obra dos jesuítas. Os Colégios da Companhia de Jesus – 21 ao todo no final do século XVIII, mais seminários para a formação de sacerdotes – ensinavam gramática, aritmética e os demais estudos básicos. O método pedagógico utilizado seguia as normas do Colégio de Évora, de 1563, a Ratio Studiorum, manual pedagógico jesuítico do final do século XVI, ao mesmo tempo que reproduzia um caráter rigorosamente Tridentino (referente ao Concilio de Trento do século 16). As provas eram ministradas muitas vezes dentro das Igrejas, com platéia para assistir ao desempenho dos alunos, não havendo uma única Faculdade quando D. João chegou. Esse quadro foi alterado quando foram criadas a 148

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 216, 2000.


109 Escola Superior de Medicina, na Bahia, outra de Técnicas Agrícolas, um Laboratório de Estudos e Análises Químicas e a Academia Real Militar, cujas funções incluíam o ensino de engenharia civil e mineração. As transformações emanadas da política administrativa de D. João teriam seu ponto culminante em 16 de dezembro de 1815. Ao mesmo tempo que elevava o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves, promovendo definitivamente o Rio de Janeiro a Sede Oficial da Coroa, D. João proporcionava de facto, a autonomia do Brasil. A elevação do Brasil à condição à condição de Reino Unido, representou também uma mutação de status tão crucial que sua tentativa de reversão pelas Cortes portuguesas em 1821 e 1822 é considerada como uma das causas imediatas da Independência Jurídica, representando uma ruptura e inversão tão drástica na relação Metrópole-Colônia que, muitos historiadores questionam o próprio significado histórico do „Ipiranga”, argumentando que a emancipação do Brasil não ocorreu em 1822, porém, em 1808 ou, pelo menos, em 1815. A elevação a reino unificado a Portugal e Algarves, de 1815, representou o nascimento da emancipação reconhecidamente político-jurídica do Brasil; as consequências do ato em si podem ser compreendidas nos festejos e comemorações da tarde do dia 16 de dezembro daquele ano, pois, tanto os homens próprios da política, quanto àqueles que só ouviam os rumores, 149 sabiam que o Brasil não seria mais o mesmo em seu aspecto jurídico.

Nestas condições, a Corte deu Unidade à Colônia, tornando-se país, visto que, com a chegada e a instalação da mesma, constituindo-se um momento decisivo para nossa história, iniciou a construção do Brasil como país, Estado e Nação. Foi também um momento importante para a formatação da identidade brasileira. Por si só, não definiu a criação desses elementos em si, mas, foi fundamental para que sua Constituição de 1824 – não entrando no mérito dos axiomas ou preceitos jurídicos nela contidos – se tornasse possível ou fosse efetivada. A palavra Brasil, até então, era utilizada como definição genérica para as possessões portuguesas na América, algo como hoje fazemos com a expressão “América Latina”. A América portuguesa compreendia, até 1808, uma série de Capitanias, muito autônomas entre si, ligadas diretamente com Lisboa. O Governo-Geral e, depois o Vice-Reinado não atuaram como poder 149

LIMA, Manuel de Oliveria. Op Cit, a p 296, 1996.


110 central,

nem

econômica,

tanto

menos

politicamente,

submetendo

as

Capitanias. Esse quadro mudou, politicamente, com a Corte, pois, o fato da substituição de Lisboa pelo Rio de Janeiro, com Centro de relação ao qual as Capitanias deveriam se dirigir, com os órgãos político-administrativos ali alocados, proporcionou a Unidade Administrativa. Essa unidade não ganhou apenas um sentido administrativo. Teve um caráter político. D. João fez da América o eixo das preocupações da Monarquia. Em torno do Rei, nobres, burocratas, comerciantes de grosso trato (aqueles detentores de vultuosos capitais), grandes proprietários e militares, vindos de Portugal ou naturais do Brasil, constituíram uma rede de interesses comuns. Eles definiram afinidades e alianças. Assim, as transformações na esfera político-administrativa facilitaram a construção do Brasil como país e como Estado.

3.3 Mutações na esfera cultural: o processo de civilizar por meio da corte

A instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro e a transferência da Capital da Colônia em Sede do Império português proporcionaram uma série de mudanças tanto na esfera econômica e política, como foram descritas e analisadas, quanto nas formas de comportamento de, pelo menos, uma parcela da sua população, estabelecendo assim uma sinergia adaptativa à sua nova função. O crescimento circulatório de produtos que se derivou da abertura dos portos e da construção de fábricas, mesmo sendo estas incipientes, é um dos símbolos que caracterizou o período joanino no Brasil. Paralelamente às mudanças proporcionadas pela instalação da Família Real no Rio de Janeiro, manifestaram-se, concomitantemente, na imposição aos habitantes da cidade, como também aos dos principais centros populacionais do Brasil, novos padrões de comportamento público e privado, mais direcionados ao convívio na Corte e aos novos espaços de existenciabilidade movimentados pela Nobreza e pela Boa Sociedade. A Corte, condenando velhos hábitos coloniais, irá, embasada no ideário europeu de “Civilização”, difundir e ao mesmo tempo impor esse novo padrão comportamental.


111 De acordo com Lima (1996, p. 303): [...] os habitantes dos principais centros urbanos do país, todos viam, pelo menos a parte afetada, com admiração e gratidão, certamente, com a vinda de Sua Majestade para o Brasil, onde o Augusto extinguiu o antigo regime colonial, o franqueamento do comércio, a permissão para a indústria, o facultamento das artes e ciências, promovendo o verdadeiro processo de 150 Civilização do Brasil.

A ausência do conteúdo desse processo de Civilizar imposto pela Corte, que foi em si a própria Civilidade, é descrita pelos hábitos coloniais, pela negligência social da educação formal, além da não existência de alternativas de divertimento, como o teatro e o museu. A delimitação entre o espaço civilizado e o seu contrário, é uma conseqüência do desenvolvimento do conceito de Civilização, que abarca em si não apenas o incremento tecnológico e científico, mas, sobretudo, da religiosidade e valores, próprio da sociedade ocidental, desde o século XVIII, que se julgava superior às sociedades mais antigas ou sociedades contemporâneas, porém menos civilizadas. Linhares (2000, p.114) diz que: Nesta conotação, qual seja, Civilização, a sociedade ocidental destacava os fatores que a põem, no modelo etnocêntrico inerente, em um nível mais elevado, como a tecnologia, a cultura científica e sua visão de mundo, onde os valores sociais eram vistos como o apanágio de todos os retrocessos que 151 passavam os outros mundos que não o seu.

A ação de Civilizar, exercida pela Corte de D. João, correspondia aos anseios das sociedades européias que, influenciadas pelos paradigmas do Iluminismo, consideravam-se superiores, pelos fatores mencionados por Linhares, sendo dessa forma, necessária para sua concretude, a tarefa de levar essa Civilidade aos povos ainda não civilizados, de acordo com a própria concepção européia de Civilização. Nesta acepção, com a Corte, e consequentemente de uma Sociedade de Corte, o processo de Civilizar abarcaria desde o comportamento e maneiras à mesa até a forma de falar, onde suas diretrizes de etiqueta a serem observadas desenvolveria relevante papel nesse processo de controle das pulsões, emoções e afetos, e de interiorização individual das proibições sociais. Sob o impacto da instalação de uma sociedade e de uma sociabilidade de Corte no Rio de Janeiro e nos principais centros habitacionais, o Brasil, 150 151

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 303, 1996. LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 114, 2000.


112 considerado pelos viajantes, comerciantes e membros de órgãos oficiais da diplomacia que passavam por aqui, um dos mais pérfidos aglomerados de seres humanos que existia, passaria por melhoramentos não apenas em seu aspecto físico, porém, sobretudo, na comportamentabilidade, nos hábitos de higiene pública e particular, nas ciências, nos divertimentos culturais e demais esferas sociais. Lima (1996, p. 309) nos diz que um dos pólos de irradiação da Civilidade, além da Corte, foi a presença contínua de estrangeiros: [...]difundindo a polarização do processo civilizador, os estrangeiros, diferenciados não apenas em suas nacionalidades, mas, principalmente nas volições que os trazia até aqui, difundiram as maneiras refinadas das Cortes européias, estabelecendo o modo como se devia abrir o vinho, a forma de andar, de cortejar, passando, inclusive na reformulação das cerimônias religiosas [...] enfim, constituíram-se nas abelhas civilizadas que difundiam o 152 pólen da Civilização para o extenso campo inculto e incivilizado.

No intuito de Civilizar a sociedade, D. João, em decreto de 1813, cria a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, no mesmo molde e poderes do órgão correlato que existia em Lisboa, desde 1760. À Intendência de Polícia eram alocadas ações que se encontravam de acordo com o significado do termo Policiar corrente á época. Assim, policiar as cidades, pois, nas mais movimentadas cidades do Brasil foram criadas extensões da Intendência Geral, era polir o comportamento dos habitantes. Em outras palavras, as Intendências de Polícia tinham o objetivo de moldar os comportamentos em busca da proximidade do conceito de Civilização. As transformações físicas no espaço das cidades e a imposição de um novo padrão de comportamento que condenava velhos hábitos coloniais, eram interpretadas como componentes do processo civilizador europeu. Ou seja, a difusão de uma Civilização e seu ideal teria a intuito de tirar a Colônia da situação de barbárie. E essa difusão, acompanhada de estreita vigilância, coube à Intendência Geral de Polícia da Corte do Estado do Brasil realizar. Dessa forma, ao lado da comportamentabilidade da cidade, surgiu a comportamentabilidade da Corte, expressando seu ideal de civilização. Com a Corte,

sua

civilização,

comportamentabilidade como

o

teatro,

o

criou

museu,

novos a

espaços-símbolos

imprensa,

reproduzindo

de os

comportamentos e maneiras das Cortes européias, representados ainda no 152

LIMA, Manuel de Oliveira. Op Cit, a p 309, 1996.


113 gosto pelas mercadorias do Velho Continente, principalmente as derivadas da Inglaterra e da França. Por sua vez, a comportamentabilidade da cidade, expressava-se nas pulsações daqueles que nasceram e cresceram nas cidades e nos hábitos da grande massa de negros e mestiços, homens livres e pobres. Eram duas formas de sociedade que, sobrepostas, coabitam o mesmo espaço, sem limites geográficos, apresentando vários e necessários pontos de contatos culturais. Apesar de se concentrar no Rio de Janeiro, a Corte, presente nos novos padrões de comportamento, se inseriam em todos os lugares, principalmente nos centros urbanos; entrando em choque ou atrito com antigas maneiras de se comportar que, apesar da relutância, iam paulatinamente sendo infiltradas 153 com novos pensamentos, de ser cultural [...].

Um símbolo do processo civilizador almejado pela Corte foi a instalação de teatros com natureza européia, pois, até então, as representações teatrais desenvolvidas na Colônia expressavam-se de maneira mais didática do que propriamente artística. Assim, o espaço criado pelo teatro no século XIX servia como ponto de encontro para os membros da Corte, que além de tratar de arte, vinculavam suas preocupações e dialéticas em torno da política e da economia do Brasil, enfim, de toda a administração. Os esforços de mudar o Brasil não se limitaram aos aspectos econômicos e políticos. Enquanto mandava abrir estradas, construir fábricas e escolas e organizar as estruturas do Governo. D. João dedicava-se, justamente, ao processo de empreender a Civilização. A meta era promover a arte, a cultura e tentar infundir alguma característica de refinamento e bom gosto nos até então atos que vigoravam na Colônia, considerados atrasados. Em se tratando de propagar o projeto de Civilizar, o ápice ocorreu em 1816, quando da contratação da famosa Missão Artística Francesa, auspiciada por Joaquim Lebreton, Secretário Perpétuo da Seção de Belas Artes do Instituto Francês. Composta por renomados artistas da época, como, Jean Baptiste Debret, discípulo de Jacques-Louis David, o pintor predileto de Napoleão Bonaparte, Nicolas Taunay, pintor de paisagens, seu irmão Augustus Taunay, escultor, Grandjean de Montigny, arquiteto, Simon Pradier, gravador e entalhador, Francisco Ovide, professor de mecânica aplicada, Francisco Bonrepos, ajudante de escultor, Segismund Neukomm, músico e discípulo do 153

LINHARES, Maria Yedda. Op Cit, a p 119, 2000.


114 compositor austríaco Franz Joseph Haydn. De acordo com as pretensões de D. João, a Missão Artística Francesa deveria ficar no Brasil cerca de seis anos, garantindo o pagamento de todas as despesas da viagem e doando generosas pensões aos mesmos membros. Sendo o principal objetivo da Missão Francesa criar no Brasil uma academia de artes e ciências, deteriorado pelo tempo, seus membros passaram a organizar todas as festividades da Corte, tornando-se assim um dos principais irradiadores da cultura civilizada européia. As principais festividades organizadas, esteticamente, pela Missão Francesa, nos quatro anos que antecederam o retorno da Monarquia portuguesa a Europa, foram o casamento de D. Pedro e a Princesa Leopoldina, o aniversário, a aclamação e a coroação de D. João, como D. João VI, sendo essa última ocorrida em 06 de fevereiro de 1818, após da morte da Rainha D. Maria I, em 1816, e a aprovação da Regência de Portugal e das Cortes européias. A Sociabilidade da Corte expôs, por meio da música, a sofisticação própria da erudição tematizada na esfera cultural, constituindo-se como uma das artes preferidas da mesma, passando a ser autonomizadas, pelos principais músicos das Províncias. Gomes (2007, p. 221): [...] D. João gastava 300.000 francos anuais na manutenção da Capela Real e seu corpo de artistas, que incluíam cinquenta cantores, entre eles magníficos virtuosi italianos, dos quais alguns castrati, e 100 executantes excelentes, dirigidos por dois mestres de capela; destacando-se o maestro português Marcos Antônio Portugal, que compôs, até a partida em 1821, inúmeras peças 154 e músicas sacras em homenagens aos grandes eventos da Coroa.

Durante a semana, aconteciam quatro ou cinco apresentações, variando entre comédias, dramas e tragédias em português e óperas italianas acompanhadas de bailadas. Podemos apreciar a mutação para a sofisticação dos hábitos da parcela social atingida pelas metamorfoses oriundas da Corte, lendo os anúncios publicados nos jornais, a partir da concessão para o funcionamento dos mesmos em 1808. Passando de anúncios que ofereciam serviços e produtos simples, reproduzindo uma sociedade colonial fechada para o mundo, que importava pouca coisa e produzia quase tudo que consumia, os primeiros anúncios tratam 154

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 221, 2007.


115 de aluguel de cavalos e carroças, venda de terrenos e casas e alguns serviços básicos como aulas de Catecismo, Língua Portuguesa, História e Geografia. Quem quiser comprar uma morada de casas de sobrado com frente para Santa Rita, fale com Anna Joaquina da Silva, que mora nas mesmas casas, ou com o capitão Francisco Pereira de Mesquita, que tem ordem para vender. Vende-se um bom cavalo mestre de andar em carrinho. Quem o pretender comprar procure Francisco Borges Mendes, morador da esquina do Beco de 155 João Baptista por cima de uma venda. (Anúncios da Gazeta do Rio de Janeiro de 1808, transcrito por Gomes (2007).

A partir de 1810, o conteúdo dos anúncios altera de maneira radical, onde, em vez de casas, cavalos e escravos, passam a oferecer pianos, livros, tecidos de linho, lenços de seda, champanhe, água de colônia, leques, luvas, vasos de porcelanas, relógios e uma infinidade de outras mercadorias importadas. [...] penteia-se as senhoras na última moda de Paris e de Londres; corta-se o cabelo aos homens e às senhoras; faz-se cabelos de homens e senhoras; tinge-se com a última perfeição o cabelo, as sobrancelhas e as suínas, sem causar dano algum à pele e à roupa; tem-se pomada capaz de estimular o 156 crescimento do cabelo. (Anúncio do Gazeta do Rio de Janeiro em 13 de novembro de 1816, citado por Gomes (2007).

De maneira geral, a Corte impôs um novo padrão de sociabilidade para as elites brasileiras, transportando-a para o âmbito da sofisticação estética européia, como a música, a ópera, o teatro e ampla gama de serviços destinados a representação existencial de classe. Logo, a instalação da Monarquia portuguesa se apresenta como a demarcação histórica do surgimento de refinamento dos hábitos e dos valores das elites nacionais. Apesar de todo o aparato ideológico de preservação da cultura elitista, como forma e expressão de sofisticação comportamental, não seria improvável esperar que tal sociabilidade ficasse restrita ao espaço destinado a priori, entretanto, sua influência se fará sentir em todos os espaços da sociedade, porém com uma profunda demarcação não apenas conceitual dos limites, mas, também como reguladora entre os discursos e práticas das representações idearias da sociabilidade da Corte. Enfim, o processo de civilizar oriundo da Corte representou a atualização dos hábitos e costumes de acordo com a mentalidade européia, sendo dessa 155

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 224, 2007.

156

GOMES, Laurentino. Op Cit, a p 224, 2007.


116 maneira – não usando a reprodução etnocêntrica de cultura – fundamental fator para a compreensão das mutações culturais derivadas da Corte de D. João.

Considerações

O conjunto historiográfico sobre a instalação da Corte portuguesa no Brasil apresenta o período de permanência de D. João, como o momento inicial do processo de desvinculação política e econômica entre a Colônia e Metrópole. Não tomando como instrumento o etnocentrismo europeu, a ponto de reproduzí-lo, afirmamos que, o processo de atualização cultural é entendido como refomentação dos hábitos e pensamentos coloniais em bases européias. Sem proclamar a extinção dos traços esféricos das áreas analisadas ante as mutações nos mesmos espaços, o que pretendemos neste trabalho foi demonstrar justamente como as transformações destacadas modificaram profundamente os setores sociais da Colônia. Dessa forma, a econômica, por meio da Abertura dos Portos e dos tratados subseqüentes assinados na área econômica, altera-se na medida em que deixa de ser orientada pelo Mercantilismo, entrando no campo do capitalismo mundial. Já a política e a manifestação do Poder Administrativo se centralizou numa burocracia, onde a hegemonia de suas instituições irá proporcionar a formação do Brasil como Estado, Nação e País principalmente depois da conquista da autonomia com a elevação a Reino Unido a Portugal e Algarves. Enfim, irá dar unidade estatal e territorial, criando o germe político para a total separação de Portugal que se concretizará mais tarde, quando as Cortes lusas reclamam da posição do Brasil enquanto principal ponto político do Império. Pelos fatos abordados, a Corte implantou uma sociabilidade nova, como também toda a “sofisticação” e atualização cultural (de acordo com os moldes europeus) em relação ao gosto pela Arte, culminada pela vinda da Missão Artística Francesa em 1816, caracterizando-se eminentemente numa das facetas importantes que acompanharam a passagem do Brasil para a posição de Sede do Império português. Cabe ressaltar que todas as modificações estruturais e mentais advindas com a Corte em 1808, não impediram que as formas de representar a realidade


117 do Brasil se desenvolvessem paralelamente, sendo que, neste trabalho, objetivamos fazer esse corte histórico de 13 anos para conhecer com aproximação a passagem da Corte em nosso país. Entretanto, devemos notar ainda que os condicionantes para o fim da ligação com Portugal se encontraram também na própria realidade estrutural entre ambos, pois, Portugal não poderia manter por muito tempo o comércio colonial imune dos capitais do capitalismo. Entendemos que este trabalho correspondeu aos nossos anseios, levando o leitor ao conhecimento ou mesmo reconhecimento da importância desse tempo de treze anos em que a Corte portuguesa esteve no Brasil, determinando a história do país por meio das mutações nas esferas sociais abordadas, como também, esperamos que se preste como material didático para consultas posteriores, para todos aqueles que pretendem compreender como o Brasil iniciou seu processo de “autonomia”, culminando com a independência, no ano de 1822.

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http://www.arqnet.pt/portal/portugal/liberalismo/lib1820.html, acessado em 29 de outubro de 2008, as 03:45.


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