Incruzando Espadas. Ernane S Santos

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Ernane Santana Santos

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho

A minha esposa, Eutália e diletos filhos Natalie, Nathália, Natassia e Ernane Manoel e a minha netinha Marina;

Aos meus saudosos pais Adalgiso Borges e Maria de Lourdes;

Aos meus inesquecíveis irmãos Gisomar, Solange, Sônia, Antônio, Fátima, Jorge e Marcia Inez;

Aos saudosos irmãos Paulo Santana, Maria de Lourdes, Maria de Fátima, Márcio Santana, Francisca (Chiquita) e Francisco (Chiquito);

Aos meus avós paternos Mário da Silva Santos e Adelaide Borges Santos, falecidos;

Aos meus avós maternos Francisco Santana e Silva e Francisca Barros e Silva, falecidos;

À Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e à Academia Alagoana de Cultura.

Enfim, a todos os meus irmãos leopoldinenses, alagoanos e brasileiros.

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APRESENTAÇÃO

Certa ocasião, lá pelos anos da virada do século XX para o XXI, quando ainda era proprietário da Ecos Gráfica e Editora, tive uma conversa com capitão Carlito Lima sobre a contribuição que ele daria para a que história se escrevesse sobre os episódios em que foi protagonista durante os anos de chumbo. Argumentava com ele que o seu ponto de vista era privilegiado já que atuara como militar sem aceitar os métodos truculentos dos ditadores, chegando ao ponto de ser perseguido por suas posições humanistas. Diante da alegação do Carlito de que não tinha recursos literários para escrever, insisti dizendo que, então, não tentasse ser um escritor, bastava que simplesmente contasse suas histórias. A cobrança deu resultado e, ainda com o incentivo do Lelé, seu irmão, e do Geraldo Majella, Carlito escreveu e o Brasil inteiro leu e lê o livro Confissões de um capitão, a partir daí, abriu a porteira da escrita e hoje é autor de dezenas de livros e um dos cronistas mais lidos de Alagoas. Se alguém tem alguma história para contar, recomendo que conte. É assim que contribuímos para a formação da nossa memória coletiva. São esses registros que nos ajudam a perceber a verdadeira fisionomia de um povo. Alguns estudiosos não dão o devido valor aos documentos e textos produzidos a partir da história oral. Eles analisam que esse material estaria comprometido por estar contaminado pelos valores subjetivos da fonte. Essa argumentação absurda é refutada facilmente, ao se mostrar que os ditos documentos da história documental também foram escritos por indivíduos carregados de subjetividade, quando não estavam servindo abertamente ao poder dominante, mobilizados para contar a história dos vencedores. O Dr. Ernane não tem a pretensão de ser literato: ele ama a sua terra e a sua cultura e quer demonstrar isso contando e cantando as peripécias do homem da zona da mata açucareira de Alagoas e Pernambuco. Conta por ouvir dizer, mas declara que conheceu todos os personagens das suas histórias. Zelo desnecessário: não precisa ser um Repórter Esso – “testemunha ocular da história” – para dar veracidade aos “causos”. Aliás, “causo” verdadeiro é aquele que sobre ele pairam todas as dúvidas. Ninguém pode deixar de desconfiar, por exemplo, de um personagem que “também era o único coveiro da cidade, fabricante dos doces alfenins, feirante e dono do carrossel”. Mas não estranhe: esses tipos eram comuns nos povoados atrasados do interior do Nordeste e, ainda hoje, alguns poucos sobrevivem tratados como bons malandros e aceitos socialmente sem maiores problemas. É tão comum que o

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polivalente oficial de justiça Pedro Alfenim, da obra de Ernane Santana, bem que poderia fazer uma parceria com o João Grilo do consagrado Ariano Suassuna. Incruzando Espadas é um baú de família que mostra as melhores recordações do “versejador” Ernane Santana. Ele, que já havia aberto o coração para o seu município ao escrever o livro As ruas de nossa cidade, agora nos ajuda a entender a cultura dos pátios dos banguês e dos recentes barracões das modernas usinas de álcool e açúcar, onde o cantar dos Guerreiros e o rimar dos repentistas eram aplaudidos pelo corumba e pelo senhor de engenho, cada qual torcendo para o seu lado.

Edberto Ticianeli Ex-Secretário de Cultura de Alagoas

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Introdução Nesse modesto livro procuro apresentar “causos”, crônicas, versos e repentes, recolhidos das minhas vivências e andanças no pequeno mundo de homem do interior, que quase sempre giravam entre as cidades de Colônia Leopoldina, em Alagoas, e Palmares, em Pernambuco. Travei meus primeiros contatos com as letras em Palmares, no Educandário Ginásio Agamenon Magalhães, hoje denomnado de Colégio Pinto Ribeiro. Foi lá que recebi a minha formação cultural e política pelas mãos dos mestres Amaro Matias Silva – meu padrinho, amigo e orientador dos meus sonhos de escrevinhador , Edson Matos, Elias Sabino e Brivaldo Leão de Almeida. Os “causos”, que recolhi do meu pai Adalgiso Borges, do meu avô Mário Santos e do meu cunhado Zezito Corrêa, foram aqui reproduzidos com a máxima fidelidade ao que eles tinham de pitorescos. Em parte, esse trabalho foi facilitado porque vi e convivi com todos os personagens citados em meus acanhados e limitados escritos. Procurei descrever os fatos curiosos de nossa comunidade, aqueles que fizeram parte da história social, cultural e política do nosso meio rural. Ambiente interiorano, onde a literatura de cordel era um veículo importante para transmitir o que se passava em nosso mundo. Se me exigiu esforço buscar na memória as lembranças de um passado distante, muito mais difícil foi criar coragem para colocá-los em forma de prosa e verso. Esses rabiscos só foram possíveis porque me confesso um devoto da poesia e da literatura de cordel, e, principalmente, porque sou um apaixonado pela minha centenária cidade de Colônia Leopoldina, a Colônia da Princesa, como a ela se referia o conterrâneo Everaldo Araújo Silva. Antecipo minhas desculpas, se por ventura feri a dignidade de alguma pessoa, quando dos relatos aqui narrados, já que isso pode acontecer quando se está “incruzando espadas”.

Ernane Santana Santos

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Índice

Incruzando espadas Chico Machado, o fogueteiro carnavalesco “A agonia dos bangues” e seu bueiro quadrado Os anos de chumbo O “comunista” leopoldinense Questão de risco com pobre Toinho Santana Lembranças do Cine Apolo Todo astronauta que parte Choveu tantinho assim Os dez mandamentos dos cabras de Lampião O poeta Genival da Paraíba Pulo mermo mutivo Grampo azougado pra mulher que tem piolho Deda Ribeiro e o vendaval de 94 As cabeças de Lampião e Maria Bonitinha Negócios que três saem ganhando

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Incruzando espadas

Para nós, alagoanos e pernambucanos, também para o folclorista Pedro Teixeira, o guerreiro alagoano é uma variante do reisado, em que são participantes as figuras do Mestre, os dois Embaixadores, o Mateu, o Caboclinho de Lira, o Capitão General, o Índio Peri e seus vassalos, a Rainha, a Lira e a Sereia. Ainda segundo outros folcloristas são inumeráveis os personagens que podem compor um auto de guerreiro. É um auto de caráter dramático, profano e religioso, representando uma junção de elementos existentes nos pastoris, nas cheganças, nos quilombos e nos caboclinhos. Para alguns estudiosos, o guerreiro não passa de um reisado moderno. O guerreiro é comandado pelo mestre e sua espada, que usa um chapéu em formato de igreja de onde caem fitas de cetim multicoloridas. Normalmente, logo depois da reza do divino, no meio do espetáculo, acontece a luta de espadas entre os mestres guerreiros, simulando uma luta em defesa dos seus reinados. Do folclore alagoano, extraímos os seguintes versos pertencentes ao Hino do Guerreiro das Alagoas:

Eu esse ano vou prá Maceió, Vou pro Farol, Guerreiro Campeão Eu vou rever o meu guerreiro amado Eu vou dançá xaxado na televisão

Guerreiro, cheguei agora, Nossa Senhora é nossa defesa Guerreiro, cheguei agora, Nossa Senhora é nossa defesa

Ô minha gente Dinheiro só de papé, Carinho só de muié, E capitá só Maceió.

Se eu me casá 10


Com uma muié feia demais, O diabo é que num faz Todo dia ela chorá

Eu digo isso Porque sou um cabra home A muié feia só come Minha boia se roubá.

Quando um guerreiro chegava numa cidade, vila, povoado ou mesmo num engenho ou em uma usina de açúcar, normalmente, eram bem recebidos pelas pessoas do lugar. Os componentes, tendo à frente o mestre, pediam permissão às autoridades locais e em plena praça pública montavam sua apresentação com música, dança e cantoria. Ocorrendo chegar ao mesmo local outro guerreiro – o que muitas vezes acontecia na época natalina – não havia escapatória: os mestres eram instados a cruzarem suas espadas de madeira, batendo uma na outra, enquanto os versos, glosas, rimas e peças elogiavam as pessoas do lugar. Era um verdadeiro duelo verbal. Oportunidade em que se exibia a destreza com as palavras. Rimavam sobre as autoridades e os últimos acontecimentos ocorridos na redondeza, que conheciam através da informação oral ou mesmo pelo rádio e os cordéis. Em tais desafios, os cantadores enalteciam a valentia do senhor de engenho, a bondade de sua esposa, a formosura de suas filhas donzelas, a riqueza e as virtudes dos agraciados pelos cantos improvisados, o gesto nobre daquele que fazia uma boa paga e a mesquinhez de outros que não contribuíam com nada, mesmo assistindo aquela apresentação burlesca. As rimas eram improvisadas pelos respectivos mestres, e suas pastorinhas limitavam-se a responder em cantoria os mesmos versos. O canto era sincronizado, harmônico, e ao mesmo tempo enchia de alegria e nostalgia aquele ambiente teatral armado ao ar livre. Enquanto ocorria a porfia, os Mateus ficavam correndo de um lado para outro, dando cambalhotas, fazendo gracejos com as pessoas que assistiam ao espetáculo. A meninada era sempre a mais perseguida pelos homens de caras pintadas, armados de rebenques ou relhos feitos de tranças de cebola. Tudo era festa. Verdadeira alegria. Era como se tivesse chegado naquela localidade um espetáculo circense ou, hoje em dia, uma banda de show para diversão daquela gente tão sofrida. Quando começava a função, surgia gente de toda versidade. Gente acostumada a iniciar sua jornada de trabalho com o nascer do sol e a encerrar sua lida quando o horizonte já 11


se encontrava tão escuro quanto o breu. Gente que conhecia bem o manejo da enxada, da foice de cortar lenha e cana-de-açúcar, da estrovenga de roçar mato, do arado de madeira puxado por eles, ou mesmo por uma junta de bois, sempre trabalhando a terra para receber as sementes. Gente séria, honesta, por vezes injustiçada e enganada pelos empreiteiros e senhores de engenho. Sem carteira assinada, sem direito a sua cidadania. Gente analfabeta que não sabia ler e nem escrever, que ainda assinava o próprio nome com a impressão digital de seu polegar direito. Era para essa plateia que, comumente, se apresentavam os nossos folguedos populares entre os meses de dezembro e janeiro – época das festas de Natal, do Ano Novo e das comemorações dos Santos Reis. Quando um mestre recitava:

Eu sou um guerreiro novo Que veio de Minas Gerais Eu atiro a bala passa Se prepare pra brigar Pois hoje aqui nesta praça Quero fazer arruaça Pois nós vamos é duelar.

(Deda Ribeiro)

O outro respondia:

Eu sou guerreiro alagoano Acostumado a duelar Já briguei durante um ano No Estado do Pará Quando cruzo a minha espada Vejo o cantador sangrar Ele corre, não vem mais, Volta pra Minas Gerais O mestre que me enfrentar.

(Ernane)

É o folclorista Theo Brandão quem nos diz que em uma cantoria, elogiando o senhor de engenho, o mestre de guerreiro assim se expressava: 12


Sinhô dono da casa Oios de cana caiana Quanto mais a cana cresce Mais aumenta a sua fama

Sinhô dono da casa Oios da péda redonda Daquela péda mais fina Onde o má combate as ondias.

Segundo o meu avô Mário Santos, nos anos 40, existia na cidade pernambucana de Palmares, um respeitado mestre de guerreiro conhecido como mestre Rozendo. Na vinha cidade de Catende morava mestre Sales, um também afamado mestre de guerreiro. Quando esses homens se encontravam, a terra tremia diante da maestria de cada um. Foi nessa época que vivia em Palmares uma figura famosa, não por seu trabalho ou dote artístico, mas pela sua valentia e destemor. Chamava-se Bruno e era muito respeitado, principalmente na Rua da Coreia, onde se situava a maioria dos bordéis. Era o valentão do lugar. Vez por outra acabava as festas no baixo meretrício com ciúme de suas raparigas. Enfrentava quem estivesse pela frente, até mesmo a polícia militar. Certa feita, estando ele farrando no local, por causa de uma mulher desentendeu-se com um caixeiro viajante das Lojas Paulistas. Foram às vias de fato na disputa pela fogosa rapariga, moça nova no puteiro. Garrafadas, murros, tabefes, chutes, tamboretadas e até mesmo tiros foram trocados pelos dois valentões, provocando correria e gritos no local. Em um dos becos da Rua da Coreia, em frente ao Colégio Nossa Senhora de Lourdes, ficava instalada a Casa de Força, onde funcionava um velho gerador movido por motor a óleo diesel, que de tão velho já tinha até nome: Motor do Leite. Essa estrutura era responsável pelo fornecimento de energia elétrica para a iluminação da cidade. Pois foi exatamente em frente à Casa de Força, que os briguentos resolveram trocar mais tiros. A única vítima foi o Motor do Leite, que parou atingido por uma bala perdida. A polícia – cuja delegacia ficava nas proximidades – foi avisada do tiroteio e já chegou atirando de mosquetão para todo lado. Novamente, a única vítima foi o velho motor, que perdeu suas últimas gotas de óleo ao ser atingido por mais quatro balas perdidas. Terminada a confusão, 13


Bruno foi preso e o caixeiro viajante fugiu em direção ao canavial da Usina 13 de Maio, localizada no perímetro urbano da cidade. Um belo dia, naqueles idos dos anos 40, apareceu no Engenho Lua Nova o afamado guerreiro de mestre Zé Pedro para apresentar uma função. Pediu permissão ao senhor do engenho, o meu avô Mário Santos, e começou a brincadeira. Depois de brincar à vontade, com suas pastorinhas, o mestre foi provocado por “seu” Mário que, lembrando da famosa briga da Rua da Coreia, deu-lhe o seguinte mote:  Levaram preso “seu” Bruno, quebraram até o motor. De imediato, mestre Zé Pedro, que conhecia a história, cantou:

Eu já incruzei cum Sales, Mestre Rozendo in Palmares, É Reis dos vadiadô, Quando a peça detonô, Que surgiu o vagalume, Levaram preso “seu” Brune, Quebraram inté o motô. Foram esses “incruzamentos” de espadas que ajudaram a guardar as histórias da vida simples do homem do interior e a formar a cultura nordestina.

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Chico Machado, o fogueteiro carnavalesco

Francisco Machado da Silva, ou Chico Machado para os mais próximos, nasceu no dia 29 de novembro de 1907, na cidade alagoana de Colônia Leopoldina. Viveu quase toda a sua infância no Engenho Canto Escuro, pertencente ao major da Guarda Nacional, Manoel Henrique de Luna, avô do comendador José Araujo de Luna. Havia entre Chico Machado e o major Manoel Henrique de Luna uma ligação quase que familiar. Chico era uma pessoa bem quista pela família Luna e realizava quase todas as funções de confiança do major. Quando o conheci ele já residia na antiga Rua das Pedrinhas, hoje Rua Durval Gonçalves da Silva, e exercia a profissão de fogueteiro. Segundo o nosso conterrâneo Everaldo Araújo Silva, Chico Machado “era fogueteiro de profissão e um exímio artista na arte da pirotecnia, e seus fogos de artifício eram engenhosamente preparados com requintada perícia e excelente qualidade”. Nas horas vagas Chico gostava de pontear sua viola em peleja com alguns cantadores que por ali apareciam. Seus embates poéticos quase sempre se davam à luz de velas ou de candeeiros, já que naquela época Colônia Leopoldina ainda não possuía uma boa energia elétrica. Somente algumas ruas e poucas residências eram fracamente iluminadas por lâmpadas que mais pareciam pequenas tochas acesas. A eletricidade era gerada a partir de um apequena barragem existente no município. Desde criança, eu era fanático por literatura de cordel e cantoria de poeta violeiro. Fugia de casa, à noite, para assistir aqueles duelos verbais. Lembro que certa noite Chico Machado enfrentava um cantador de Pernambuco, quando terminou um verso dizendo:  Eu sou filho de deputado. O outro cantador, imediatamente, sapecou-lhe uma resposta desconcertante, que terminava mais ou menos assim:  Você é filho de deputado, mas tirando o “dê-ó-dó”. A viola não era o seu forte. Ele gostava mesmo de ser reconhecido como o fogueteiromor da cidade. Sentia-se realizado quando via seus foguetes e balões subirem aos céus animando as festas juninas, as novenas do mês de maio e a tradicional festa do mártir São Sebastião. Mais tarde, revelou-se como carnavalesco. Fundou, na década de 50, o famoso bloco Leão da Aldeia e o bloco do Jacaré. Durante os festejos momescos, seus blocos saíam às ruas

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para animar o nosso carnaval, quase sempre ao som da famosa banda de música de Belém de Maria, de Pernambuco. Os foliões alegremente cantavam os seus versos: Chamei Chiquinha, chamei Lionô, A Mariêta não pôde marchar, Porque estava no rio lavando roupa E o jacaré partiu pra lhe pegar

Olê, olá, olê, olá Entra no frevo Que essa trinca é de amargar.

Religiosamente, em todo carnaval, Chico Machado deslocava o seu bloco para dançar no terreiro do Engenho Canto Escuro. Rendia homenagem ao major Henrique de Luna e ao lugar onde ele passou grande parte de sua infância e adolescência. Por mais de 20 anos animou e movimentou os carnavais de sua terra natal, principalmente com o bloco do Jacaré. Além de poeta popular e fogueteiro de profissão, Chico Machado participava com muito orgulho da política local. Alinhava-se politicamente com o seu velho amigo Alfredo Cavalcanti. Certa feita, quando Alfredo recepcionava o candidato a governador, Abraão Fidélis de Moura, ele, após homenagear o seu candidato com foguetório em frente à igreja matriz de Nossa Senhora do Carmo, improvisou essas quadras:

Eu sou o Leão da Aldeia Valente como um terror, Abraão é o candidato, Votemos nele pra governador

Sou pobre, sou rico, Grito de peito empolado, Com Alfredo na prefeitura, O pobre está arrumado.

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Daniel, seu filho, durante muito tempo tentou manter acesa a chama carnavalesca do pai. Não conseguiu em razão de dificuldades financeiras e da própria mudança dos costumes populares na forma de comemorar as folias de Momo. Em 24 de outubro de 1988, o Poder Legislativo local, através da Lei no 590, resolveu homenagear o velho Chico Machado, dando seu nome a uma das ruas de nossa cidade. Foi uma homenagem justa e merecida para aquele que em vida foi um dos mais festejados carnavalescos que Colônia Leopoldina conheceu.

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A agonia dos banguês e seu bueiro quadrado Há um texto de José Roberto Melo, publicado na revista A Região, no 3, de 1984, que aborda o tema da agonia dos engenhos banguês. José Roberto era odontólogo e foi o primeiro prefeito eleito da cidade de Cortês, situada na região da Mata-Sul de Pernambuco. O assunto era familiar para ele, que foi senhor de engenho nos idos de 1946, quando participou da fase de transição da economia canavieira dos banguês par aas primeiras usinas de açúcar. Ele viu o apagar do fogo das caldeiras dos velhos engenhos, com seus bueiros quadrados e fumaça branca, que durante muito tempo encantou e encorajou os poetas da região. É o próprio José Roberto quem nos apresenta os versos proféticos, de Bernardino Borba (1948), a respeito da agonia dos banguês:

Creio que em breve, talvez, Se acabarão os banguês, Se acabará banguezeiro... Como lembranças ficando Ao tempo desafiando, Algum saudoso bueiro.

Quando criança, acompanhando as andanças de meu pai, Adalgiso Borges Santos, tive a oportunidade de conhecer alguns “esqueletos” de engenhos banguês. Instalações físicas deterioradas pelo tempo, sem nenhuma marca da época em que seus donos eram chamados de senhores de engenho. Lembro-me de alguns engenhos e respectivos proprietários da época, como o Engenho Jericó (coronel Joãozito), Engenho Lua Nova (Mário da Silva Santos), Engenho Macuca (Zé Quincas), Engenho São Sebastião – primitivo Pé de Serra de São João da Mata (Joaquim Monteiro da Cruz), Engenho Livramento (coronel Joaquim Luiz da Silva), Engenho Onça (Caetano Buarque de Gusmão), Engenho São Bernardo (Ludovico de Medeiros), Engenho Capoeira dos Reis (Alfredo Soares), Engenho Ouro Preço (coronel Salú), Engenho Itajubá (Gustavo Fittipaldi), Engenho Canto Escuro (Manoel Henrique de Luna), Engenho Santo Antônio (Alfredo de Paula Cavalcanti), Engenho Amapá (Família Gomes de Barros), Engenho Flor de Taquara (coronel Joaquim Luiz da Silva), existente do lado pernambucano da divisa com Alagoas. Este, nos anos 50 se transformou na Usina Taquara, cujo acionista majoritário era o José Luiz Lessa, que também foi prefeito de Colônia 18


Leopoldina em dois mandatos. Também não podemos deixar de mencionar o Engenho Macaco (Alcides Freire), Cavaco (Otávio Freire) e Forte do Mato (Aristides Caetano), todos situados em território pernambucano, construídos quase que às margens do rio Jacuípe, além do velho Engenho Porto Rico, erguido no lado alagoano, também seu bueiro quadrado. Segundo relata nosso conterrâneo Everaldo Araujo Silva em seu livro A Colônia da Princesa, o antigo Engenho Pé de Serra foi o primeiro na região a ser movido a vapor. Sabemos por ele que os “primitivos engenhos de açúcar eram movidos à água. Chamados de engenho d’água ou também aqueles puxados por bestas, conhecido por engenhos de bestas, além dos engenhos puxados a bois, segundo relato do historiador alagoano Manoel Diegues Jr., era natural que o engenho d’água ocupasse posição de relevo na economia açucareira”. As plantações desses engenhos eram quase sempre feitas nas várzeas e nas margens dos rios e riachos. A água, além de ser o elemento essencial para movimentar a engrenagem da máquina de moer cana, também servia para uso doméstico. Dela se serviam todos que moravam e trabalhavam no engenho. As usinas que sucederam aos velhos engenhos banguês trouxeram, além de novas máquinas, outra inovação: a construção da chaminé de forma arredondada e mais alta. Quando o antigo Engenho Porto Rico foi transformado em usina, o seu dono resolveu conservar o bueiro quadrado e por isso foi objeto de gozação e deboche. Muitas eram as peças de guerreiro tiradas e cantadas às escondidas, debochando do velho bueiro quadrado que não quis se modernizar. O coronel Ezequiel Siqueira Campos, seu proprietário desde 1938, vivia alheio às piadas sem nada saber dos irreverentes gozadores. O meu avô, Mário da Silva Santos, contou-me que certo dia um corumba – vindo das bandas de Garanhuns para cortar cana na referida usina – achou aquele bueiro muito estranho. Quando terminou a sua lida na safra de cana, e antes de viajar para sua terra natal, após passar mais de seis meses residindo e trabalhando na Usina Porto Rico, deixou em rima as suas impressões debochadas e imorais para aquela época (1946).

A Usina Porto Rico Tem o bueiro quadrado, A máquina é uma caixa de fósforos, O foguista é aleijado, O maquinista é um corno, O barracão é de safado, 19


E a mulher do usineiro Tem os pés apaêtado. Historiadores dizem que não há como negar a influência do engenho banguê nas manifestações folclóricas do Nordeste, notadamente, em Pernambuco e Alagoas, onde existia grande quantidade dos referidos engenhos. Seus operários, nas horas vagas, vadiavam contando prosas, fazendo versos, emboladas e elaborando cantigas de coco. Normalmente, os repentistas emboladores e “tiradores” de coco, dançavam e cantavam no terreiro dos engenhos, fazendo rimas com temas ligados ao velho banguê, à senzala, ao dono do engenho, ao cultivo da cana-de-açúcar, sua colheita, à produção, e aos trabalhadores. Em seu livro o Banguê nas Alagoas, Manuel Diégues Júnior – grande historiador alagoano – relata que “numa cantoria de coco, Joaquim Pueirame apresentou uma série de versos referentes à paisagem da área rural do Nordeste”, narrando fatos da vida do engenho, ocorridos aos domingos, quando todos se dirigiam à venda para comprar mantimentos, jogar conversa fora ou prosear com os camaradas de trabalho. Eis o verso de Pueirame, citado por Manuel Diégues Júnior:

Eu pranto cana Mas não trabaio alugado Que não sou cabra safado Tenho credo em quarqué lugá. Dia de Domingo, Se não tiver um tostão, Vou na casa do patrão Ele tem prá me emprestá. O meu patrão Tem uma bodega no cercado, Ele num vende fiado, Ele só vende é a legá.

Aos domingos e dias de folga, era comum os trabalhadores se juntarem no barracão ou na bodega dos engenhos para tomarem a conhecida cachaça feita de alambique de barro. Depois de “espritado” pelo álcool, cada um que fizesse a sua rima. O escritor José Lins do Rêgo, numa publicação antiga da revista O Globo Rural, conta-nos que um desses repentistas 20


bebia cachaça e fazia glosas alusivas aos homens de bem, que também tomavam a sua branquinha. Eis os versos de autor desconhecido:

Antigamente quem bebia, Era o negro ou o mulato, Mas, hoje gente de trato Bebe de noite e de dia, Homem de categoria Tenho visto acontecer, Nas ruas tombar, pender, Dando passadas sem prumo, Se os grandes lhe dão consumo, Não é defeito beber.

Assim, banguês e usinas, de bueiro quadrado ou redondo, atraiam os repentistas. Alguns pelas riquezas dos proprietários e a maioria pela cachaça quase de graça.

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Os anos de chumbo

Em 1965, vivíamos em plena efervescência, pós-intervenção militar na política brasileira. O trote dos calouros de medicina da Universidade Federal de Pernambuco era aguardado com ansiedade. Em Recife só se falava na prisão do governador Miguel Arraes. A Revolução, ou Golpe Militar, que havia afastado o presidente João Goulart do comando da nação em 1o de abril de 1964, agora apagava os focos de resistência nos estados. Estudante quando quer, ou mesmo quando deixa se conduzir, é mesmo bicho afoito e rebelde. Foi assim que nós, alunos do 3o ano científico do Colégio Carneiro Leão, atendemos ao convite e fomos engrossar as fileiras do famoso trote. O cortejo estudantil colocou, à frente da manifestação, um jumento pintado de verde e vestido com uma jaqueta militar, coberto de medalhas e com um chapéu entre suas orelhas. Alguns calouros, devidamente escalados para àquela missão, conduziam uma faixa que utilizava os conhecimentos da tabela periódica dos elementos químicos para alterar o contexto do slogan da campanha “Ouro para o Brasil”, que era uma campanha de doação voluntária para ajudar o país a resolver seus problemas sociais, econômicos e financeiros. A ousada faixa dizia: “Au para o Brasil, Ag para os militares e Pb para os que falarem”. Com semelhante afronta, a passeata não poderia ir muito longe. O insulto às forças militares foi em dose cavalar. Na mesma dose foi a resposta e a dispersão foi rápida. As forças policiais usaram cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e até mesmo a cavalaria. Isolaram as ruas e becos da Avenida Dantas Barreto, no coração da capital pernambucana. Foi um salvese quem puder. Lembro-me que entrei num elevador e fui bater no 7o andar de um edifício, onde existia um consultório odontológico. Ali, sob a proteção do doutor dentista, fiquei escondido até o início da noite, quando o movimento das tropas já era reduzido. Apanhei um ônibus e voltei para a casa de uma prima, no bairro General Severiano, onde me hospedava. No outro dia, os jornais do Comércio e o Diário de Pernambuco noticiavam a dissolução violenta do trote dos calouros de medicina. Durante o movimento militar, Recife foi palco de vários episódios sangrentos, inclusive com a morte do Ivan Aguiar, um colega de infância, que era chamado carinhosamente de Vanzinho. Seu pai, Severino Aguiar Ferreira, egresso de Pernambuco, chegou a Colônia Leopoldina, em Alagoas, para exercer a profissão de dentista. Envolveu-se com a política local e chegou a ocupar a presidência da Câmara de Vereadores no período de 1951/52. Por questões familiares, voltou à Recife com toda a sua família. Era um convicto participante do 22


Partido Comunista Brasileiro. Seus filhos foram batizados com nomes originários dos países integrantes da “Cortina de Ferro” – Danúbio, Moldávia, Ivan, Vânia Petruska e outros mais. Em 1o de abril, durante o Golpe Militar, Ivan Aguiar era estudante de engenharia e estava na linha de frente das manifestações contra as forças revolucionárias. Mesmo estando envolto com a bandeira do Brasil, foi metralhado em plena praça pública, pagando com a vida pela coragem de se opor aos golpistas. Em junho de 1965, deixei o Colégio Carneiro Leão e fui estudar em Maceió, no Colégio Moreira e Silva, onde terminei meu curso científico. Aprovado no vestibular da Faculdade de Medicina de Alagoas, iniciei o curso em 1966. Quando recebi o diploma de médico, no dia 11 de dezembro de 1971, vivíamos ainda em plena vigência do movimento militar, com vigilância redobrada, principalmente dentro das universidades. Foi assim que tive contato com o período que foi denominado, mais tarde, como “os anos de chumbo”.

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O “comunista” leopoldinense

Helvécio Afonso de Melo nasceu no dia 29 de agosto de 1919, no então distrito de Joaquim Nabuco, no município pernambucano de Palmares. Quando o conheci, ele era funcionário do Ministério da Agricultura e já estava casado com minha prima Nélia Borges. Residia em Colônia Leopoldina e trabalhava no Fomento Agrícola. Durante grande parte de sua vida exerceu as funções de caixeiro-viajante. Mas também foi vendedor de medicamentos, ajudante de padaria e balanceiro de uma usina situada no seu Estado natal. Todavia, Helvécio era mesmo um poeta nato, um escrevinhador de glosas, repentes e sextilhas. Conhecia os segredos e atalhos da vida como a palma de sua mão. Experiente, viajador, muito esperto. Era considerado por todos como um “cabôco véio, passado na casca do angico”. Por várias vezes foi indicado pelo juiz de direito de Colônia Leopoldina para exercer as funções de advogado sem diploma. Como rábula, defendia os mais pobres e excluídos da sorte. Era considerado um autodidata de muita leitura, com excelentes qualidades intelectuais e morais, versado na arte de convencer. Quando estourou a Revolução de 1964, Helvécio ministrava aulas de Organização Social e Política Brasileira (OSPB) no Colégio Normal Padre Francisco. Certa noite, estando ele dando aula, foi abordado por agentes do poder revolucionário, tendo à frente um coronel do Exército. Levaram-no preso como “agitador e comunista”. Foi encaminhado imediatamente para uma prisão nas dependência do antigo 20o Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro, em Maceió, onde foi acusado de professor e ensinar abertamente ideias simpáticas às nações que faziam parte do regime político da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, além de ser admirador do governo cubano de Fidel Castro. Contra Helfécio ainda h avia a denúncia de que ele era simpatizante das Ligas Camponesas Pernambucanas, organização dos trabalhadores rurais fundadas e comandadas pelo deputado Francisco Julião e pelo comunista Gregório Bezerra. Eram acusações pesadíssimas. Para nossa surpresa, ele passou poucos dias na prisão. Não havia nada de concreto contra ele. Foi posto em liberdade e retornou tranquilamente ao convívio dos seus amigos, familiares e alunos do Colégio Padre Francisco. Disseram que a sua prisão foi provocada por discutir política em sala de aula, oportunidade em que defendia suas ideias. Outros afirmaram que uma denúncia anônima e 24


covarde, feita pelos adversários políticos, é que realmente determinou sua prisão. Certo mesmo é que o nosso Helvécio entrou para a história como sendo o único “comunista” preso em Colônia Leopoldina durante o golpe militar. Seu cunhado, Manoel Freire Borges, o Balé, fora deputado estadual de 1954 a 1958, tendo inclusive ocupado a vice-presidência da Casa Tavares Bastos durante o dificílimo período do processo de impeachment do governador Muniz Falcão. Processo que culminou, em 13 de agosto de 1957, com o famoso tiroteio na Assembleia Legislativa de Alagoas, onde perdeu a vida o deputado Humberto Mendes, que também era sogro do governador. Manoel Freire era também um convicto estudioso dos movimentos sociais. Lia muito, possuía uma excelente biblioteca e sempre estava pronto a defender os menos favorecidos. Coragem e bravura nunca lhe faltaram. Até hoje, não sabemos, na sua convivência com Helvécio, quem influenciou quem. Mas o nosso Helvécio gostava mesmo era de uma boa prosa, de versos, glosas e repentes picantes e irreverentes. No ano de 1965, o senador Rui Palmeira, disputava o governo alagoano com um slogan bastante inteligente: “Dê um passo à frente – vote em Rui Palmeira”. Em Colônia Leopoldina, José Maria de Omena, guarda-livros da Usina Taquara, disputava pela segunda vez o cargo de prefeito da cidade e apoiava a candidatura de Rui Palmeira ao governo do Estado. Quando as urnas foram abertas, o outro candidato a prefeito, Antônio Lins da Rocha, foi disparando na contagem dos votos. A vantagem era visivelmente crescente, conforme “cantavam as urnas”. Rui Palmeira e Zé Maria perdiam feio. Este fumava um cigarro atrás do outro, meio inquieto, porém sem dar o braço a torcer. Sabia que a eleição estava perdida. Acompanhando a apuração se encontrava o nosso Helvécio, que vendo Zé Maria nervoso, não resistiu em provocá-lo. O resultado era tão acachapante que merecia uma gozação. Rabiscou essa quadra e mandou entregar-lhe.

É dez, é trinta, é quarenta, Lá vai a conta crescendo. O José já está dizendo: Qual é o rabo que aguenta?

Zé Maria, poeta também, depressa no outro lado do papel respondeu:

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Disputando uma prefeitura Que uma máquina velha não tem, Eu sei que a parada é dura Mas, sou da luta também.

Helvécio revidou com essa outra quadra:

Já descambou dos sessenta Galopando em disparada. Sem voto, meu camarada, Assim, você se arrebenta.

Zé Maria finalizou a peleja assim:

Eu seguirei adiante Vou aguentando o revés, Mas, nunca de quatro pés Pra Rui dar um passo à frente. Foi assim que Helvécio, o “comunista” leopoldinense, fez história em nossa terra ao promover a “socialização” da inteligência e da irreverência.

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Questão de rico com pobre O meu avô, Mário Santos, contou-me um “causo” acontecido na cidade dos Palmares, onde ele residia nos idos de 1930, quando o Brasil vivia sob o regime do Estado Novo comandado pelo presidente Getúlio Vargas. Disse-me ele que, naquela época, Palmares já era considerada como a capital da região Mata-Sul, crescia rapidamente a todo vapor, embalada pelos inúmeros engenhos de açúcar e pelas usinas que já haviam se instalado e que cresciam graças ao crédito e ao financiamento do governo, que nunca pagavam. Dentre elas podemos citar: Usina Treze de Maio, Catende – considerada a maior usina de açúcar da América do Sul , Pumaty, Pirangy, Cerro Azul, Santa Terezinha, Cucaú, entre outras. A cidade possuía bom comércio atacado e varejista e era servida por excelentes estabelecimentos educacionais, que muito contribuíram para a formação cultural dos filhos de muitos senhores de engenho da divisa de Alagoas com Pernambuco. Possuía um clube lítero-recreativo onde os jovens se divertiam e os poetas da terra realizavam seus recitais nas manhãs domingueiras. Citamos Hermilo Borba Filho, Ascenso Ferreira, José de Barros Corrêa (Lelé Corrêa), Arthur Cruz, Jaime Griz, Fenelon Barreto, Raimundo Alves, Margarida Mesquita, Miguel Jacele, Abel Fraga e outros tantos escrevinhadores. Lembro-me do Ginásio Municipal Agamenon Magalhães onde estudei todo meu curso ginasial (1959/1962). Possuía este nome em homenagem póstuma ao ex-governador de Pernambuco no período de 1951/1952. Agamenon Magalhães foi acometido de mal súbito e teve morte instantânea no segundo ano de governo. Esse ginásio, antes da morte do governador, chamava-se Ginásio Municipal Fernando Augusto Pinto Ribeiro, em reconhecimento a um ex-prefeito que conseguira os recursos necessários para a sua construção. Soube que vinte ou trinta anos depois, a sociedade exigiu que aquele estabelecimento educacional voltasse a se chamar Ginásio Municipal Augusto Pinto Ribeiro. Fez-se justiça. Palmares também contava com o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, educandário administrado por freiras e que só admitia estudantes do sexo feminino em regime de internato ou semi-internato, para o Curso Normal Rural. Era conduzido sob rígida disciplina e todas as suas professoras eram irmãs da Ordem Franciscana ou formadas para exercer o magistério. Professor homem lá não entrava, tamanho era o cuidado e o zelo da madre superiora com a formação de suas colegiais. Nos anos 40, minha mãe, Maria de Lourdes Santana, e suas irmãs, 27


Maria Auxiliadora, Maria Zildete, Maria Estela e Maria Carmelita, também ali fizeram seus cursos, bem como minhas irmãs Gisomar, Solange e Sônia Santana, além de Eutália Guerra Santos, minha esposa, e meu filho Ernane Manoel, no ano de 1997, quando o Colégio das Freiras já havia se tornado misto. Havia outra unidade escolar; mantida pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, somente para homens, mas com o mesmo regime de internato e semi-internato. Era conhecida como Escola Industrial do SENAI. Fardamento quase militar: casquete, cinto com fivelas de aço, caça com listras e camisa com divisas nos ombros, identificando o curso e o ano que cada um fazia. O objetivo do SENAI era a formação de mão-de-obra qualificada para atender ao surto industrial que se instalara no governo getulista. Formava serralheiros, marceneiros, torneiros mecânicos, eletricistas, desenhistas entre outros profissionais. A histórica rede ferroviária Great Weestern, tão bem administrada pelos ingleses, servia a cidade dos Palmares com suas máquinas a lenha, as Marias Fumaças, ou as novas Máquinas Azuis, já movida a óleo diesel. Interligavam os estados de Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí, transportando nossa gente e seus produtos agrícolas: café, açúcar, sal, mel, algodão, cacau, farinha de mandioca, fumo, banana e gado de corte. Muitos poetas se inspiraram na viagem dos trens para descreverem a paisagem nordestina, seu povo e seus costumes, a exemplo de Ascêncio Ferreira, com a sua famosa poesia “Vou danado pra Catende”. Apesar de Palmares ser considerada uma verdadeira capital da região Mata-Sul, poucos eram os proprietários de terra ou senhores de engenho que possuíam recursos para importar veículos automotores. Eram poucos os que possuíam os Ford Bigode, Chevrolet, Buick, Studbeaker, International, Nash e algumas “baratinhas” transformadas em carro de praça. Poucos “monarcas” do açúcar possuíam um automóvel de passeio ou mesmo caminhão para transportar seus produtos. Na cidade não existia guarda de trânsito, apenas o pessoal da polícia militar, da guarda municipal e uns poucos e briosos inspetores de quarteirões, respeitadas “otoridades”. Predominavam as ruas estreitas, como as que interligavam a zona do baixo meretrício da Rua da Coreia, no Alto do Lenhador, com a rua principal de Palmares. Ali existia um beco muito estreito por onde os “homens de bem” subiam e desciam de mansinho. Tal beco chamava-se Beco do Engole Homem, já que por ali eles “sumiam” como num passe de mágica.

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Em Palmares havia um rico senhor de engenho, que tinha um filho arrogante e baderneiro. O rapaz tomava “umas e outras” e em seguida, com seus colegas de copo, ia à procura das fogosas damas da Rua da Coreia. Em uma determinada madrugada, o nosso boêmio e embriagado filho de senhor de engenho, ao volante de um caminhão Super-White, manobrava no tal Beco do Engole Homem quando perdeu o controle do pesado veículo e derrubou a parede da frente de uma casa, quase matando seu dono e filhos. Como era uma madrugada de domingo, dia de feira da cidade, o acidente rapidamente atraiu curiosos, aguardando o bate-boca entre os envolvidos. O jovem motorista, demonstrando irritação, argumentava que a culpa era da casa, que fora construída em local inadequado. O pobre proprietário do imóvel apelava para a boa vontade e pedia para ele consertar a parede. Como a conversa já se arrastava por um bom tempo e nada se resolvia, o dono do caminhão, ainda embriagado, arrastou um rifle papo-amarelo e ameaçou resolveu a pendenga na violência. Passando pelo local um velho senhor de engenho, prevendo o pior, sugeriu a ambos que se deixasse o dia clarear para chamar o doutor juiz de direito e dele solicitar a definição de quem estava com a razão. Concordaram, esperaram amanhecer e acordaram o magistrado, que foi levado ao local do acidente. A autoridade, que era amigo do pai do jovem motorista, analisou a localização da casa, calculou a posição em que ficara o caminhão e deu o seu veredito.  No meu entendimento ninguém está com a razão, mas para se fazer melhor justiça, e tendo em vista as posses das partes envolvidas no acidente – e ainda observando que não houve nenhuma lesão corporal, apenas danos materiais – recomendo que cada um faça seu conserto. Não vou instaurar inquérito algum. Passava por ali um poeta repentista, em direção à feira palmarina, onde ia defender o seu trocado, que ouviu revoltado a decisão do juiz. Alguém do povo, mais revoltado ainda, falou alto: “nunca vi questão de rico com pobre, o pobre sair com razão”. Imediatamente o poeta viu nas palavras um mote e improvisou esta sextilha:

Questão de rico com pobre, O pobre não tem razão, E para este “causo” Só há uma explicação, A casa se balançou, E bateu no caminhão. 29


Toinho Santana

O meu irmão, Antônio Santana, foi admitido no ano de 1969 pela agência do Banco do Estado de Alagoas, que depois ficou mais conhecido como Banco da Produção ou PRODUBAN. Ali, Santana trabalhou por quase três décadas. Começou como investigador de cadastro, depois foi promovido a caixa executivo, posteriormente, coordenador dos caixas e, por último, ascendeu a condição de tesoureiro geral. Era jovem, forte, e levava uma vida acelerada: fumava moderadamente, bebia razoavelmente nos finais de semana e ainda jogava voleibol. Era um caçador nato, quer seja com sua espingarda de chumbo ou mesmo com sua baladeira. Avexado por natureza, vivia num ritmo estressante. Ainda criança, era considerado um exímio atirador de peteca, caçador infalível, com pontaria certeira e dele nada escapava. Abatia andorinha, curió, bem-te-vi, rolinha fogopagou, rouxinol, casaca-de-couro, joão-de-barro, sanhaçú, anum preto, guriatã, galo de campina, canário, carcará, urubu e até mesmo o velocíssimo beija-flor. Era um verdadeiro carrasco quando passarinhava. Com ele, nas farras, sempre estavam presentes Pereira, Trajano, Ernande Baracho, Roberto Marques, Chicão, Zezinho Coroa, Artur Machado, Mário Barros e o Floro, seu cunhado, que quase sempre se encontrava na linha de frente das noitadas festivas. Uma vida inteira como irmãos siameses de bebedeira. Santana mudou sua vida quando, em 1988, o PRODUBAN cerrou suas portas por questões financeiras e péssima gestão administrativa. Governos irresponsáveis permitiram que o banco alagoano quebrasse em razão de contratos que foram considerados, posteriormente, lesivos ao seu patrimônio, como o famigerado acordo entre o banco e algumas classes produtoras de Alagoas, que nunca pagaram um centavo sequer dos empréstimos negociados. Nenhum avalista pagou por isso e nenhum patrimônio dos devedores sofreu qualquer “arranhão” das garras da justiça. Esse fato motivou, tempos depois, a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Os resultados da CPI do PRODUBAN foram remetidos à justiça, onde se arrasta até hoje. Essa irresponsabilidade levou à rua das amarguras e ao muro das lamentações 1.200 funcionários do banco. Alguns se entregaram ao vício da embriaguez, outros foram acometidos de crises nervosas, tornando-se dependentes de acompanhamento psiquiátrico e do uso de tranquilizantes menores. Houve até quem, em momento de acentuada depressão, atentasse com sucesso contra sua própria vida. Ainda hoje nós os vemos perambulando pelas 30


ruas, vendendo cachorro quente ou como verdadeiros zumbis. Famílias inteiras foram desestruturadas, casamentos desfeitos e muitos vivendo à custa dos parentes. O fechamento do PRODUBAN foi uma tragédia para os seus funcionários. Santana foi um desses que, não aguentando a pressão e o peso da responsabilidade familiar, terminou desenvolvendo doença coronariana acrescida de uma diabetes. Em 1998, ele reclamou de forte dor no peito e falta de ar. Negava-se a procurar um médico por mais que sua esposa Vela Lúcia insistisse. Fui chamado às pressas a sua casa e, quase à força, levei-o a Santa Casa de Maceió para um atendimento emergencial. A equipe de cardiologia, altamente qualificada, diagnosticou infarto do miocárdio, internando-o imediatamente na UTI. Passado o susto, foi submetido a cateterismo cardíaco pelas mãos experientes do nosso colega Gilvan Dourado, que recomendou cirurgia de revascularização do miocárdio – no popular, colocação de pontes de safena. Na manhã do exame, fui visitá-lo em um apartamento da Santa Casa. Ele estava ansioso, inquieto, conversando muito e fazendo piadas com os presentes. Ele lembrava que tinha experimentado idêntico estado de ansiedade quando, em 1991, eu fui submetido à mesma cirurgia cardíaca para colocação de quatro pontes de safena. Tentei tranquilizá-lo o quanto pude e, antes de me despedir, escrevi alguns versos, que deixei em cima da mesa ao lado de folhas em branco. Queria que ele, poeta também, extravasasse através da poesia a inquietação natural desses momentos. Rabisquei o seguinte:

Pra seu Toinho Santana, Poeta de opinião, Que deitado em sua cama, Espera a ocasião, Deixo estas folhas em branco, Pedindo-lhe que aguente o tranco, E mande botar as “pontes”, Prú riba do coração. Pois ele mesmo é um valente, E respeitado no sertão, Dizem até que fez parte Do bando de Lampião, Sendo, igualmente Corisco, Com um bacamarte na mão. 31


A coisa foi muito séria, Eu vi o cateterismo, Gilvan salvou uma artéria Agindo com heroísmo, Porém, lhe disse: Santana, Agora, tome juízo.

No dia seguinte, voltei a visitá-lo e ele já tinha produzido as seguintes quadras:

Estando na Santa Casa E sendo ex-PRODUBAN, Aqui serei operado Me informa o Dr. Gilvan

Há sete anos atrás, O mano veio infartou, E essa grande equipe, Foi ela quem lhe salvou

Eu não sei se sou valente, Ou primo de Lampião, Também valente se afroxa Na mesa de operação

Segunda-feira tá chegando, Ninguém de mim tenha pena, Meu coração vai ficar novo, Com as pontes de safena

Vou encerrar os meus versos, É hora de ir prá cama, Agora de Coração Aberto, Ernane e Antônio Santana. 32


Lembranças do Cine Apolo

Conheci o cinema através da pequena tela do Cine São José, em minha terra natal, Colônia Leopoldina. A atração pela sétima arte era tamanha que cheguei a ocupar função de porteiro daquela casa de entretenimento, que funcionava as quintas, sábados e domingos. O São José tinha à frente um grande entusiasta do cinema, Sebastião Lopes e, depois, o seu irmão José Lopes, que também iniciou sua vida como porteiro. Presenciei a garotada e os barbados se deliciarem com os filmes ali projetados: os seriados de Zorro, Nioka a Rainha da Selva, Flash Gordon, os grandes filmes de amor, de bang-gang, de guerra, de espadachins, Tarzan e o Fantasma Vingador. Também ali eram exibidos filmes de suspense e de comédia com grandes artistas brasileiros como Grande Otelo, Zé Trindade, Ankito, Oscarito, Zezé de Macedo, Dercy Gonçalves, Anselmo Duarte, Eliane, Renata Fronzi, e tantos outros comediantes do nosso iniciante cinema. Em 1959, quando iniciei meus estudos no Ginásio Agamenon Magalhães, na vizinha cidade de Palmares, em Pernambuco, fui conhecer o cine Apolo. Foi enorme a sensação de felicidade ao reencontrar o agradável mundo do cinema – principalmente exibidos numa telona com som estereofônico, já que vivíamos a época do cinemascope. A cidade de Palmares possuía apenas dois cinemas. O mais antigo era o Cine Theatro Apolo e o segundo era o cinema São Luís, com instalações e maquinário mais novos e cadeiras mais aconchegantes. Os estudantes preferiam o velho cinema Apolo, que não tinha comodidade e nem grandes atrativos, mas era o ponto de encontro da estudantada do Ginásio Agamenon Magalhães, do SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), do Ginásio Costa Azevedo e da Escola Técnica de Comércio dos Palmares. Lá, de maneira irresponsável, se comportavam como adolescentes rebeldes e sem causa, sempre agindo de forma imatura. A bagunça era generalizada: jogavam caroços e cascas de pitombas nas cabeças uns dos outros, davam gritinhos nervosos, faziam xixi em plena sessão, arrotavam e peidavam escandalosamente. Reclamavam também da presença das pulgas e do odor nauseabundo vindo dos banheiros. Várias vezes, o operador da máquina acendia as luzes e suspendia a projeção da fita por alguns minutos para pedir silêncio, ameaçando até mesmo suspender a “passagem do filme” ou apelar para a polícia. O porteiro do Apolo chamava-se Altino. Era um septuagenário muito espirituoso, chegado a um chiste, a uma prosa safada, e ainda mostrava seus dotes como um exímio contador de anedotas. Conhecia quase todos os frequentadores daquele cinema. Nós o 33


estimulávamos e gostávamos de ouvi-lo contar suas putarias. Às vezes, somente nos afastávamos dele quando a sessão cinematográfica já havia sido iniciada e a tela mostrava as primeiras “notícias da semana”, de Jean Mazon. Com poucas oportunidades de diversão noturna, nós vivíamos esperando os dias de sessão para namorarmos no escurinho do cinema e também bagunçarmos o ambiente. Quando a fita exigia silêncio, concentração e emoção, nós ríamos e até imitávamos os sons dos animais; quando a cena era de alegria, nós ensaiávamos momentos de choro. No meio de tanta esculhambação, quem melhor resumiu o que era o Apolo foi um anônimo que deixou escrita essa engraçada glosa na porta do sanitário:

Quem vai ao Cinema Apolo, Na entrada o porteiro joga pulha, Lá dentro se desembrulha, Uma fita ruim desgraçada, Quem sofre é o camarada, Com peido, pulga e mau cheiro. Se levanta o desordeiro, E grita de voz enxuta: Isso é cinema ou chiqueiro? Comboio de filhos da puta.

Encontrei, em minha caminhada pela vida, várias outras escritas poéticas em lugares inusitados. Mas, a glosa do Apolo ficou gravada como lembrança da minha juventude nas terras palmarinas, onde fiz os primeiros contatos com a arte de escrever poesia.

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Todo astronauta que parte...

O cosmonauta russo Yuri Gagarin foi o primeiro homem a conquistar o espaço. Em 12 de abril de 1961 ele deu uma volta completa na órbita terrestre pilotando a nave russa Vostok. Antes, em 1957, os russos já haviam colocado em órbita o satélite Sputinik. Esses dois feitos colocavam os russos na dianteira da corrida pela conquista do espaço sideral. Secretamente, os EUA planejavam responder aos russos, realizando o primeiro pouso tripulado na lua. Os cientistas e cosmonautas daquele país, incentivados pelo presidente John Kennedy, alcançaram o sucesso somente no ano de 1969, quando Neil Armstrong, pilotando a Apolo 11, fez história ao ser o primeiro homem a pisar no solo lunar. Esses feitos não passaram despercebidos pelos poetas e escritores da época. Durante o carnaval de 1962, em Pernambuco, foi lançada com muito sucesso a marchinha carnavalesca Eu vou pra lua, de autoria dos compositores Luiz Boquinha e Ary Lobo. Sua letra era simples, mas retratava com fidelidade o feito do astronauta russo Yuri Gagarin. O frevo pernambucano foi cantado no Brasil inteiro. Sua letra era mais ou menos assim:

Gagarin, subiu, subiu, subiu, Foi até ao espaço sideral, Chegando lá na lua ele sorriu: Vou m’imbora pro Brasil Que o negócio é carnaval

A lua disse, não vá, demore mais Já ouvi que lá na terra Querem lhe passar pra trás Mas o Gagarin correu e deu no pé Vou m’imbora pro Brasil Eu quero é conhecer Pelé.

Em 1970, conheci o poeta Antônio Aurélio de Morais, natural de Atalaia, em Alagoas. Sapateiro de profissão e poeta nas horas vagas. Ele possuía uma oficina de trabalho localizada num cubículo existente na esquina da Rua Formosa com a Miguel Omena. Quando colei grau no ano de 1971, na antiga Faculdade de Medicina, declamei alguns versos do “tio” Tonho e, 35


ele próprio foi convidado por mim para declamar a sua poesia, Criança num é caxorro. Estimulamos o sapateiro a publicar seus versos, fato que somente ocorreu em 1981, quando pela Sergasa ele publicou versos de um Lambe-Sola. A nossa turma de medicina era bastante politizada e resolveu não homenagear nenhuma autoridade. Por unanimidade escolheu como patrono a poesia do “tio” Tonho, A Criança Abandonada. Fiz com sucesso, o discurso da aula da saudade. Quando da conquista da lua, “tio” Tonho escreveu uma poesia de nome Eu vou pra lua, de onde extraí os seguintes versos:

Tenho seis fios piqueno I a muié com o buxão Mai num to ligano não Eu dêxo tudo na rua Daqui num quero mai nada Já tô cá trôxa rumada Prú mode morá na lua. “Tio” Tonho completou a sua poesia escrevendo versos que homenageavam o astronauta americano Neil Armstrong que participara da conquista da lua:

Minha muié na inxada Trabaia quiném um bixo, Ta cá pança no espixo, Mai quando ela dispejá, Eu vô incerrá naquele, E si for maxo u nome dele É Armustrongo Luná.

Como só se falava na conquista da lua, o compositor e cantor Ary Lobo e o paraibano Jackson do Pandeiro também cantaram e encantaram o Brasil com um forró que dizia mais ou menos assim:

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Eu vou pra lua, eu vou morar lá Saio no meu Sputnik do campo do Jequiá Já estou enjoado aqui da terra Onde o povo a pulso faz regime A indústria, o roubo, a fome, o crime...

Lá na lua não falta hospital, não falta escola É fuzilado lá quem come bola E morre na rua quem faz anarquia...

Lá não tem juventude transviada Os rapazes de lá não têm malícia Quando há casamento na polícia A moça é quem é sentenciada,

Por ventura, se a mulher for casada E enganar o marido, a coisa é feia Ela pega dez anos de cadeia E o conquistador não sofre nada...

De igual maneira, o nosso alagoano Roberto Beckér, também compositor, e dos bons, cantou e gravou um disco enaltecendo a grande proeza americana na conquista do solo lunar.

Quando o homem foi à lua, Numa nave espacial, Começou a descobrir, O espaço sideral, Viu as estrelas do Norte, Via as estrelas do Sul, E ficou maravilhado Vendo que a terra era azul.

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Na década de 60 as doenças venéreas, hoje chamadas de doenças sexualmente transmissíveis, explodiram no Brasil de forma assustadora. Foi uma verdadeira epidemia. Nessa mesma década houve uma verdadeira revolução sexual com o uso de preservativos, as famosas camisinhas, e o aparecimento das pílulas anticoncepcionais. Ministrando aulas na velha Faculdade de Medicina, o mestre Aderbal Loureiro Jatobá, quando abordava as doenças venéreas, fazia referência a uns versos que ele ouvira no Rio de Janeiro, durante o seu curso de pós-graduação em Saúde Pública. O carioca, de natureza irreverente, fazia gozações em relação à conquista da lua e às doenças venéreas, recomendando aos astronautas cuidados especiais com sua saúde, principalmente quando fossem lançados ao espaço sideral. Sempre que podia, Dr. Aderbal repetia essa quadra de domínio público, que passamos a transcrevê-la conforme ouvimos em sala de aula:

Todo astronauta que parte, Tem que trazer pelo menos, Uma gravata de Marte E uma camisa de Vênus.

A poesia, como crônica popular, é também uma forma de contar história a partir do olhar criativo do artista. É a arte que faz a poesia nascer numa banca de sapateiro e chegar aos bancos da universidade, mesmo quando o tema envolve descobertas e avanços científicos.

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Choveu tantinho assim

No ano de 1973, recém-formado em medicina e já sendo chamado pelas pessoas mais simples de doutor Ernane, fui visitar em Bom Conselho, Pernambuco, a minha noiva e futura esposa Eutália Guerra. Ali tive o prazer de ser apresentado pelo meu concunhado, Arcôncio Camboim, a um cidadão de nome Jacó. Pessoa conhecida na cidade por sua espirituosidade, boas piadas e inteligência. O velho sertanejo, mesmo já alquebrado pelo peso dos seus quase setenta janeiros, nunca deixou de ir aos sábados à feira da cidade e nem de cuidar dos seus 15 hectares de terra, onde plantava feijão, milho, algodão e a palma forrageira, que servia para alimentar a suas poucas cabeças de gado bovino. Jacó era vizinho de cerca da propriedade de Zitinho, cidadão abastado e considerado um dos maiores fazendeiros daquela região. Ele era dono de 380 hectares de terras, que eram separadas das de Jacó por uma enorme cerca, parte feita com varas finas entrelaçadas umas às outras e parte de aveloz. O cidadão vivia econômica e financeiramente muito bem, graças à venda de leite e gado para o abate, além de também vender a palma forrageira para os proprietários circunvizinhos. Indo Jacó, certo dia, para a feira de Bom Conselho, encontrou com o amigo Deolindo, que queria saber mais detalhes da chuvarada que tinha caído dias antes.  “Seu” Jacó, choveu muito nas suas terras? Ele imediatamente respondeu:  Qual nada seu moço, nas minhas terras choveu tantinho assim.  Mostrou um pequeno espaço entre os dedos e emendou:  Agora, nas terras do meu vizinho Zitinho foi tanta água que os riachos estouraram e os açudes transbordaram. Foi um mundão de água. Deolindo, que lhe fizera a pergunta, ficou meio descabreado com aquela resposta tão estranha, pois sabia que chovera bastante em toda região, o que não excluía as terras de Jacó. Passados alguns anos e tendo novamente chovido torrencialmente no município de Bom Conselho Papa-Caça, lá vem o nosso querido Jacó caminhando pela feira da cidade quando, por coincidência, encontra com Deolindo que, lembrando da situação de anos antes e da resposta de Jacó, resolve perguntar de novo.  Jacó, choveu muito lá pras bandas de sua terra? Ele respondeu sem hesitar:  Nunca vi tanta fartura de água, quase que o mundo se acaba de trovoada e de um aguaceiro danado de bom que caiu do céu. Esse ano eu planto tudo. 39


Deolindo não se aguentou e provocou:  E nas terras do Zitinho, choveu muito como da outra vez? O velho Jacó, percebendo onde o amigo queria chegar, respondeu-lhe:  Qual nada seu moço, nas terras do Zitinho choveu muito pouco, choveu tantinho assim.  E mostrou os dedos levemente afastados. Deolindo insistiu.  Mas suas terras não são vizinhas das do Zitinho? Como pode chover tanto em um lugar e no outro tantinho assim? O astuto Jacó não se intimidou e explicou:  Naquele tempo eu possuía uns 15 hectares de terra e ele possuía quase 400 hectares. Hoje, as coisas estão invertidas e eu tenho mais terras que ele. Ou já se esqueceu que o Zitinho morreu no ano passado e suas terras são apenas uns dois metros de comprimento por um metro de largura. Por isso que posso lhe dizer hoje, com garantia, que nas terras dele choveu tantinho assim.

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Os dez mandamentos dos cabras de Lampião

O capitão Virgulino Ferreira da Silva, apelidado Lampião, participou de muitas escaramuças em vários estados do Nordeste. Conta Gildson Oliveira em seu livro Luiz Gonzaga: o matuto que conquistou o mundo que foi Lampião “quem ensinou o Nordeste a fazer justiça com as próprias mãos, escrevendo sua história através da fumaça dos seus rifles e bacamartes – quase sempre em defesa dos injustiçados”. Lampião e seu grupo foram produtos de toda uma situação política, cultural, social e econômica que prevaleceu no início do século XX no nordeste brasileiro. Cangaceiros, jagunços e matadores de aluguel, terminaram por servir quase que religiosamente aos coronéis, latifundiários e senhores de engenho da época, nas suas disputas políticas. Era comum o cangaceiro proteger o político e dele também receber proteção contra as forças policiais. O deputado cearense Floro Bartolomeu, ao conceder a Lampião a patente de capitão das forças legais, assim procedeu com o objetivo de sensibilizá-lo a defender a cidade cearense de Juazeiro, terra do m eu Padim Padre Cícero, da provável invasão comunista através da Coluna Prestes. Além da patente, Lampião recebeu também armas automáticas e farta munição para proteger a cidade. O bando de Lampião havia crescido tanto que ele começou a perder o controle. Seus cabras matavam e saqueavam povoados e vilas, impondo o terror, utilizando o nome do capitão Virgulino. Quando tomou conhecimento de tais estripulias, Lampião sentiu que era chegada a hora de disciplinar seus seguidores, que estavam aumentando mais ainda sua fama de bandido implacável. Reuniu Corisco, Moita Brava, Antonio Silvino, Gato, Limoeiro, Fortaleza, Félix, Mata Redondo, Mariano, Ezequiel, Zé Baiano, Volta Seca, Arvoredo, Gavião, Luiz Pedro, Mourão, Elétrico, Mergulhão, Quinta-Feira, o grupo de Antônio Purcina, seu cunhado Virgínio e mais alguns cangaceiros que sempre foram leais ao seu comando e lhes falou que sua autoridade estava sendo desrespeitada. Precisava com urgência disciplinar os cangaceiros, uma vez que, não havia critérios para se fazer parte do seu bando. Muitos ingressaram no cangaço fugindo da perseguição policial, à procura da proteção que imaginavam ter ao pertencerem ao bando de Lampião. Com semelhante tropa, só a força bruta poderia frear os ímpetos criminosos desses cangaceiros. Dizem que o próprio Lampião andou sangrando alguns “cabras da peste”, que

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andaram passando os pés pelas mãos, isto é, lhes faltando com obediência e respeito, fazendo determinados “serviços” por conta própria. O cangaceiro reuniu os seus “cabras” na divisa de Alagoas com Sergipe e, em cima de um penhasco à beira do rio São Francisco, fez igual a Moisés quando apresentou os dez mandamentos da lei de Deus aos seus seguidores. Virgulino apresentou também os seus dez mandamentos, que segundo o meu compadre Genival da Paraíba, foram escritos por um poeta cordelista, cujo nome ele nunca conseguiu se lembrar. Lampião teria falado o seguinte:  De hoje em diante, após eu acabar de anunciar os dez mandamentos, o cabra safado só permanece no bando se quiser. Ficando, se não respeitar as normas do cangaço, para a sua alma não haverá salvação. Após as palavras de Lampião, Corisco, seu “cabra” de confiança, passou a ler em voz alta o que o chefe havia rabiscado em uma folha de caderno “Avante Brasil”: “Primeiro, amar o cangaço De todo o seu coração. Segundo, a ordem do chefe Não deixar cair em vão. Terceiro, acreditar nele, e quarto, morrer por ele, Em qualquer ocasião. Quinto, não deixar fugir, O soldado que pegar, Sexto, nunca ter dó, De nenhum particular. Sétimo, de armas na mão, Se deixar cair n o chão, O chefe manda fuzilar, Oitavo, não maldizer, A vida de cangaceiro. Nono, não cobiçar, Senão joias e dinheiro, E décimo, se conspirar, 42


O chefe manda amarrar, Em riba do formigueiro.

Genival da Paraíba também não soube me dizer se esses mandamentos foram obedecidos pelos “disciplinados” seguidores de Lampião.

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O poeta Genival da Paraíba

Nasceu Genival Rodrigues da Silva em Sumé, na Paraíba. Chegou em Colônia Leopoldina na década de 60, através de Zé Maria de Omena, que era contador da Usina Taquara. Certa noite, em 1964, tomando “umas e outras” no famoso Bar das Ostras, em Maceió, Zé Maria de Omena encontrou-se com o poeta Genival da Paraíba, que estava acompanhado de um colega chamado Zé Brejeiro, também poeta e natural de Barreiros, em Pernambuco. Como Zé Maria era poeta, boêmio e também excelente declamador, passaram a noite declamando e conversando sobre toda “versidade poética”, com cada um tentando mostrar mais competência que o outro na arte declamatória. Como bons boêmios, também mostraram serviço na hora de tomar todas e mais algumas. Ali mesmo, na mesa do bar, Zé Maria soube que o poeta Genival da Paraíba estava desempregado e vivendo, ele e sua família, de favores na casa de um parente em Maceió. Bom coração, Zé Maria de imediato o convidou para trabalhar como auxiliar de escritório na Usina Taquara. Convite feito e aceito na mesma hora, já marcaram a viagem para a madrugada daquela noite. Na hora acertada, o poeta Genival se aboletou no banco traseiro do Jeep e lá ficou calado, cabisbaixo e macambúzio. Zé Maria notou e lhe perguntou:  Poeta, o que é que você tem? Está triste? Parece que viu assombração ou quer desistir da viagem e do emprego? Diante da preocupação do novo amigo, Genival explicou o motivo de tanta tristeza.  “Seu” Zé, o problema é que lá em casa não deixei nada pra comer. De comer mesmo, lá em casa só tem a mulher e os filhos. Zé Maria deu uma gargalhada com a resposta ladina e astuciosa dada pelo poeta. Botou a mão no bolso, tirou certa quantia em dinheiro e a entregou a Genival e disse:  Volte a sua casa, deixe o dinheiro com a sua mulher e aí decida se vai ou não. O poeta partiu alegremente e voltou rapidamente. Foram para Leopoldina, de onde nosso poeta jamais saiu, e onde hoje é até nome de rua. Com seu jeito desasnado e com seus improvisos marotos ganhou logo a confiança do industrial José Luiz Lessa. Tempos depois esse usineiro o lançou candidato a vereador para representar a comunidade operária da Usina Taquara. Foi eleito em 1973, mas não chegou a concluir o seu mandato, em razão de haver sido acometido de grave moléstia. Faleceu em 17 de agosto de 1976. 44


Genival tomou-se como padrinho de uma de suas filhas, juntos e sob o comando do meu pai, o “tenente” Giso, nos metemos em muitas estripulias. Declaramos em parceria nas cidades de Colônia Leopoldina, Ibateguara e Maceió, em Alagoas. Fomos a Palmares e Água Preta em Pernambuco, e a Própria e Aracaju, no vizinho Estado de Sergipe, de onde sua mulher Maria Aparecida era filha natural. Quando conclui o curso de medicina, ele me fez uma grande surpresa trazendo até Colônia Leopoldina o seu colega e poeta Zé Marcolino, grande compositor de músicas para Luiz Gonzaga. Zé Marcolino almoçou conosco, declamou alguns poemas, ouviu outros, e até cantou algumas canções de seu vasto repertório, que foram gravadas por Gonzagão. Genival da Paraíba, além de ter sido um excelente declamador, aplaudido e requisitado para as festas, era um homem trabalhador e cumpridor de seus deveres. Na política só fez construir mais amizades. Distribuía parte do seu pequeno subsídio de vereador com os mais pobres. Ele dizia aos mais pobres que lhe pediam ajuda para a feira:  Tome o dinheiro e vá comer. Eu sei o que é passar fome. O sonho do usineiro Zé Lessa era atingir a fabricação de cem mil sacas de açúcar. Quando a Usina Taquara conseguiu produzir mais de cem mil sacas, em 1967, Genival, de imediato escreveu:

Bem que o povo me dizia Taquara tá miorando, Pois o usineiro dela Veve sempre trabaiando, Num pissui carro bunito E ninguém vê ele farrando.

Em 1970, quando o governador Lamenha Filho foi inaugurar a energia elétrica de nossa cidade, ele escreveu e declamou uma poesia intitulada Colonha quilariô, cujos primeiros versos são os seguintes:

Um versejador matuto No meio dos home letrado Fica assim meio acanhado Num sabe nem cunversá, 45


Mais ninguém vai sinsurá Pruquê pueta eu num sou, Já dixe e digo de novo Só quero dizê ao povo Colonha quilariô.

Quilariô sim senhor Quilariô de verdade, Foi uma felicidade Que o Governo mandou,

Inté as águas chegou Nas torneiras e chafariz, Nosso povo está feliz Antôno Lins é lutadô. Nóis vivia no escuro, Iscuridão que inté juro Era sumiante ao breu, A tristeza nos cobria Tal e qual uma famia Chorando um pai que morreu.

Tempos depois, quando do término do mandato do prefeito Antônio Lins da Rocha e posse do industrial José Luiz Lessa como o próximo prefeito da cidade, ele tomou umas “bicadas” e assim se expressou:

Dispoi que quilariô Eu nunca mai dixe nada Tava isperando o moimento Perparando a imboscada Pra quando chegasse a vez Eu dá minha imburacada

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E prosseguiu de microfone em punho:

E hoje eu torno a vortá Num sei se bem inspirado, Mai sei que meu pensamento Vem bem intencionado Mode nos versos matuto Dá conta do meu recado.

Mais adiante, mostrava noutra sextilha o que realmente veio fazer e dizer naquela noite de festa:

Vim dá adeus a quem vai, Parabenizá quem vem, Vim divirti o isprito E a natureza tombem, Vim vivê essa noitada Cum tudo que nela tem.

Genival da Paraíba faz parte da história cultural da Colônia de Leopoldina.

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Pulo mermo motivo O meu cunhado José de Barros Corrêa, exímio contador de “causos”, é mais conhecido na cidade de Palmares pelo apelido de Zezito da Sodipe, ou ainda por Zezito de seu Lelé. Herdou os apelidos do tempo em trabalhou na Sodipe, loja de peças de automóveis pertencente ao seu pai Lelé Corrêa, grande poeta da cidade. Quando o visito, ele sempre tem um “causo” para me contar. Outro dia narrou que nos idos de 1940, residia em Palmares um sapateiro de nome Manoel Dionísio, dono de uma oficina de trabalho localizada quase no centro comercial. Exercitava a sua arte fazendo ou consertando sapatos, botas e botinas, além de, vez por outra, realizar reparos em guardachuvas, sombrinhas, arreios e selas de montaria. Às vezes, a pedido da garotada do lugar, abria uma exceção e costurava as bolas couraças. Dionísio era um homem muito esperto e bom de prosa. Amigo de todos, fregueses ou não. Seus olhos brilhavam de alegria quando se falava em dinheiro perto dele. Sempre atento, espirituoso e chegado a resposta simples e inteligentes. O velho sapateiro era casado e tinha um casal de filhos. O rapaz, cujo nome de batismo era Terêncio, possuía muita habilidade com as letras e dominava com bastante facilidade a matemática. Sua filha, Maria José, conhecida por Mazé, a custo de muito sacrifício conseguiu o diploma de professora em uma escola normal rural. Uma proeza e motivo de orgulho para aquela época de atraso educacional. Todavia, apesar dos filhos letrados, o velho Dionísio era um legítimo analfabeto. Seus amigos e alguns desocupados ficavam sentados em sua oficina proseando e observando a sua destreza e maestria na arte de bater sola. No meio das conversas, lhe enchiam de elogios dizendo que ele era um homem de sorte e rico, por possuir dois filhos letrados e que em breve o ajudariam a não precisar mais trabalhar de sapateiro, Dionísio ouvia e respondia:  É verdade, sim, senhor. Sou um home de muita sorte, muito rico. Minha filha Mazé sabe tanto português, que dá inté pra mode inscrever uma gramática, e o meu filho Terenço, sabe mais matemática do que quarqué professor de ingenharia. Mais no dia em que eu num bato o prego, num chega comida lá em casa. De que serve tanta instrução se num tem emprego pra eles? Com isso, o velho dava a prosa por encerrada.

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Certo dia, sua esposa Severina querendo lhe chamar a atenção enquanto ele consertava uma sela, disse-lhe com voz carregada de ternura, demonstrando carência afetiva:  Meu véio, está dando uma coisa em mim. A resposta veio sem pestanejar:  Arreceba, minha véia. Ela retrucou:  Mais é uma coisa ruim, Dionísio. Sem se abalar ele respondeu:  Oxente muié, entonce devolva. Nessa mesma época, também morava na cidade de Palmares um senhor de engenho que acudia pelo nome de Otacílio do Engenho Pajeú. Cidadão muito respeitado, pertencente à aristocracia agrária de Pernambuco e frequentador do Clube Lítero Recreativo dos Palmares. Era figura frequentemente encontrada nas rodas de prosa que se formavam na calçada da igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, onde após a missa se discutia política, economia, revolução de 30, surgimento das usinas e suas consequências para as classes produtoras da cidade. Mas tal senhor de engenho também era portador de outra característica pouco elogiável: não era muito chegado a saldar seus compromissos financeiros. Com essa fama de mau pagador, os comerciantes evitavam lhe vender fiado. Otacílio era um mestre na arte de empurrar os problemas e as dívidas com a barriga. Quando procurado pelos credores, utilizava-se quase sempre da seguinte resposta:  Hoje não, mas amanhã sem falta, eu mando pagar o que lhe devo. No momento estou desprevenido. Um belo dia, Otacílio do Engenho Pajeú achou por bem mandar por um preto velho e analfabeto, um bilhete endereçado ao sapateiro Dionísio, que foi lido por sua filha Mazé. Lá esta escrito: “Prezado amigo Dionísio, solicito a fineza de enviar-me pelo portador deste, um par de botas tamanho 42. Deixo de mandar o dinheiro correspondente a encomenda, porque o referido portador não merece confiança. Atenciosamente, Otacílio do Engenho Pajeú”. Após ouvir a leitura do bilhete pela terceira vez, o velho Dionísio demorou-se matutando e espiando o preto velho que esperava. Sentindo o cheiro do calote no ar, o astuto sapateiro disse para sua filha:  Mazé, bote aí nas costas desse bilhete o seguinte: seu Otacílio, me adescurpe a resposta, mais dêxo de mandar a sua encomenda pulo mermo mutivo. 49


Grampo azougado pra mulher que tem piolho

Francisco Santana e Silva, meu avô, era um dos grandes comerciantes de Colônia Leopoldina, terra que me serviu de berço. Em suas várias propriedades cultivava o café, o cacau, a banana, a mandioca e ainda criava umas cem cabeças de gado bovino. Em Caruaru, também possuía uma propriedade chamada Fazenda Salgado, ali criava gado leiteiro de raça holandesa, vendia o leite, fazia o queijo e também alugava o pasto aos boiadeiros viajantes que vinham para a famosa feira da cidade. Fez parte do velho PSD (Partido Social Democrata) no final dos anos 30. Seu Chiquito, como era conhecido, vivia sempre cercado de amigos e familiares. Era um cidadão exemplar. Católico convicto e pertencente à Liga Católica Apostólica Romana. Enviuvou quando suas cinco filhas ainda eram crianças, mas tempos depois conheceu Celeste de Lima, a diretora do Grupo Escolar Aristheu de Andrade, com quem casou para dar uma segunda mãe às filhas. Seu Chiquito mantinha, em Colônia Leopoldina, uma loja na antiga Rua do Comércio, hoje 15 de Novembro. Seu estabelecimento comercial negociava quase tudo: tecidos de chita, brim paulista, organdi, madapolão, algodão e seda; chapéus Panamá, Cury luxo, Ramezzoni, pratos de ágata, xícaras, garfos, colheres, gillete para barbear, pentes flamengo, pentes finos, carretéis de linha urso 40, brilhantina, perfumes, tabuada de Teobaldo Miranda, a “Cartilha do Povo”, cadernos “Avante Brasil”, fitas de cetim, grampos para cabelos de mulher, marrafas e outras bijuterias do adorno feminino. Nessa época, também vivia em Colônia um cidadão chamado Pedro José de Souza. Era oficial de justiça e orgulhoso coveiro da cidade. Ele se gabava de saber em qual cova cada pessoa do lugar estava enterrada. Os gozadores da cidade diziam que os presos pelo juiz podiam ser soltos com um bom advogado, mas aquele que fosse preso na sepultura pelo Pedro, não havia nenhum habeas corpus que o soltasse. Casou com D. Maria, com quem teve dois filhos: Antônia e Luiz. Convivi com o Luiz quando criança e perambulávamos pelas ruas de nossa querida Colônia Leopoldina, fazendo estripulias, organizando brincadeiras e peraltices de meninos do interior. Mas Pedro, além de oficial de justiça e coveiro, era também vendedor ambulante. Aos domingos, trabalhava na feira local negociando mangaio em uma pequena barraca de madeira, coberta por um pedaço de lona de caminhão e montada sobre rodas de pau. Durante a semana, ele percorria a cidade vendendo guloseimas. Produzia alfenins, uma deliciosa massa branca de clara de ovo e açúcar cristal que tomava a forma de patinhas, cavalos, revólveres e bonecos. 50


Na hora do recreio do Grupo Escolar Aristheu de Andrade, lá estava ele à porta oferecendo os seus bonecos de açúcar.  Olha o alfenim do Pedro. É doce, alimenta e serve para o lanche da garotada. Foi por causa desse pregão que ele ficou mais conhecido pelo apelido de Pedro Alfenim. Nas festas de Natal, Ano Novo e do mártir São Sebastião, o santo mais festejado da cidade, o polivalente Pedro Alfenim se revelava também como o empresário dono do carrossel. Estrutura simples no qual estavam fixados alguns pares de cavalinhos de madeira com tiras de couro simulando rédeas. As cadeiras ficavam para os casais se inebriarem dando voltas no inocente brinquedo. Com tantas profissões, Pedro aprendeu a ser esperto sem deixar de ser brincalhão. Sempre estava disposto a dizer chistes e contar piadas engraçadas. Certo dia, o velho Chiquito e Pedro Alfenim conversavam animadamente quando meu avô contou que possuía cinco ou seis grosas de grampos para prender cabelos de mulher, que de tanto tempo encalhados já estavam enferrujados. Pedro Alfenim, sentindo a possibilidade de ganhar alguns trocados com os grampos, se propôs a tentar vendê-los na feira. Chiquito, que já estava mesmo decidido a jogar os grampos no lixo, concordou e lhe disse:  Olha Pedro, fique com os grampos e deles faça o uso que melhor lhe aprouver, sem compromisso algum. Com sua visão “empreendedora”, capaz até de vender algodão por veludo, Pedro Alfenim imediatamente pôs-se a imaginar uma estratégia para negociar os grampos. Nos anos 40, o piolho grassava epidemicamente em nossa região. A falta de água e o desconhecimento das noções básicas de higiene facilitavam a multiplicação da praga. Na época, para tratar dos piolhos eram utilizados pentes finos – que só arrastavam os “bichos” maiores – ou se empregava a catação à unha. Mulheres e crianças interioranas perdiam horas nesse processo de arrepiar cabelos para matar piolho um a um. Foi esse enorme “mercado consumidor” que Pedro Alfenim escolheu para vender seu produto, mesmo com validade vencida. Para compensar, atribuiria uma nova função aos grampos, já que estariam supostamente imantados. No domingo seguinte, lá estava Pedro na feira anunciando em voz alta:  Meus senhores e minhas senhoras, estamos vendendo grampo azougado pra mulher que tem piolho e, eu garanto: com sete dias – e repetia com mais ênfase – com sete dias, a mulher que usar os grampos ficará completamente curada desse mal, dessa peste do piolho.

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Os matutos ouviam desconfiados. Mas Pedro falava com tanta convicção sobre o poder de cura dos seus grampos, que as pessoas foram se aproximando devagarinho e logo surgiram as primeiras perguntas:  Mulher de resguardo pode usar os grampos azougados? O esperto camelô respondia seguro:  Bota-se sete grampos nos cabelos da mulher no primeiro dia. Tranca-se a mulher num quarto escuro por sete dias. No terceiro dia bota-se mais sete grampos e no sexto dia também. A mulher não pode ver a luz do sol e a comida entra por baixo da porta. Pronto, com exatos sete dias os piolhos vão caindo e morrendo, todos feito piaba na rede. Entre um toque de gaita e boca de um palavreado convincente, os grampos azougados foram sendo vendidos, domingo após domingo. Pedro estava alegre com o ganho, mas preocupado com os possíveis desdobramentos daquela sua propaganda enganosa. Ele fez as contas e concluiu que passadas quatro semanas, logo alguém apareceria para reclamar da ineficácia dos seus produtos antipiolho. Num belo domingo, Pedro Alfenim estava sentado no meio fio da rua, por trás de sua barraca, quando avistou de longe um sujeito acafuzado, zarolho, com o paletó entreaberto, mostrando uma pistola garrucha presa na cinta. Ele arrastava pelo braço uma mulher banguela, que não parava de coçar a desalinhada e arrepiada cabeleira negra. Pedro Alfenim pensou: “É agora. Dessa eu não escapo” e agachou-se pensando na humilhação e no vexame que decerto passaria. O sujeito foi chegando e falando bem alto:  Quem é Pedro Alfenim, o homem que vende grampo azougado pra mulher que tem piolho? Repetiu a pergunta mais uma três vezes e todos permaneciam em silêncio. Pedro continuava acocorado e calado. Passando pelo local, um molecote tentou ajudar e indicou:  Seu moço, o Pedro é aquele homem ali agachado. Não tendo mais como se esconder, o camelô levantou-se de pernas trêmulas e olhos arregalados. O homem perguntou outra vez:  É você que vende grampo azougado pra mulher que tem piolho? A resposta veio baixinha, quase inaudível:  Sim senhor, sou eu mesmo. Para sua surpresa e da plateia que já se formara para assistir aquela cena, o caboclo perguntou-lhe:  Quantos grampos azougados ainda lhe restam pra vender? 52


Pedro criou alma nova e, percebendo que poderia se desfazer da “ponta de estoque”, respondeu:  Restam ainda 140 grampos. O matuto abusado ordenou:  Ajunte tudo num pacote, diga quanto custa os danados dos grampos, que eu quero ver se agora essa condenada num acaba com essa praga de piolhos que está empestando todo mundo lá de casa. Pedro fez o pacote, recebeu o pagamento, deixou o sujeito se afastar um pouco e deu dois pulos de alegria. Ato contínuo, ele desarmou a barraca e partiu rapidamente carregando todas as miudezas. Por segurança e com medo de que o episódio se repetisse sem um final feliz para ele, o multe empreendedor resolveu passar uns 30 dias sem armar a barraca na feira. Afinal, seguro morreu de velho. Pedro Alfenim continuou negociando ainda por muito tempo, alegrando a garotada com seus doces e entretendo a todos com seu famoso carrossel de cavalinhos. Faleceu com mais de 92 anos de idade, deixando marcada sua presença na história da pequenina Colônia Leopoldina.

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Deda Ribeiro e o vendaval de 94

O poeta e sonhador Derival Ribeiro da Silva é filho de Antônio Aureliano da Silva e Enedina Ribeiro da Silva. Nasceu no Sítio Boa Esperança, no povoado Cachoeira, município de Maraial, em Pernambuco. Durante muitos anos foi um profissional destacado nas funções de caldeireiro e soldador. Nas horas vagas, dedicava-se à poesia. Deda Ribeiro ou Deda Cachoeira trabalhou entre 1966 e 1976 na Usina Taquara e, no período de 1978 a 1994, na Destilaria Porto Alegre, ambas situadas no município de Colônia Leopoldina. Após a aposentadoria, passou a residir em Maceió com sua família, em busca de melhores oportunidades para seus filhos, mas sem esquecer a poesia. Os personagens de seus versos são pessoas com quem conviveu. São operários e técnicos da empresa onde trabalhou. Uma das suas poesias, conta um episódio inusitado que aconteceu no dia 11 de fevereiro de 1994, na Destilaria Porto Rico. Deda Ribeiro, lembra que eram aproximadamente 14 horas, quando testemunhou uma conversa entre dois agrônomos da empresa. Segundo ele, Dr. Fabiano, um homem simples e religioso, dizia que a seca que se abatia na região norte de Alagoas – e que muito prejudicava a produção da Porto Rico – só se resolveria por intervenção divina, quando Deus quisesse mandar chuva. Do outro lado, Dr. Roberto, que era o gerente geral – de gênio forte e autoritário – argumentava que esse problema era dos homens, e que ele iria resolver de qualquer maneira, nem que tivesse que apelar para outros meios técnicos. Ele dizia que os homens são sempre os donos da situação. Deda Cachoeira conta que, enquanto observava essa conversa, viu surgir uma forte ventania e em seguida caiu um tremendo pé-d’água. A ventania era tão violenta que saiu provocando sérios estragos na região. Ele não perdeu tempo e descreveu em versos o que acabara de assistir:

Dr. Fabiano disse: Meus Deus, porque não choveu A cana toda morreu Sumiu o fornecedor As canas que se plantou Não quis sair nem da terra Meu Deus, porque tanta guerra 54


Se nós queremos é amor.

Mas Dr. Roberto disse: Não quero lamentação Vou fazer irrigação E as canas eu vou aguar Comigo ela tem que dá Seja com sol ou chovendo Quando ele estava dizendo O tempo pegou a mudar.

Veio uma nuvem pesada Vindo do lado do norte Com uma ventania forte De fazer admirar Vi muitas mulheres chorar E os homens ficando tristes E as telhas de brasilite Voando tudo no ar

Eu vinha na Assembleia Quando a chuva começou Corri e fui me amparar A tempestade aumentou Foi quando eu vi o seu Pedro Gritando com muito medo: “As telhas o vento levou”.

Eu até que achei bonito Quando olhei pro vendaval Arrancando as brasilites Derrubando os pés de pau A coisa foi muito triste 55


Mulheres passaram mal

Arrancou dois pés de jaca De perto das castanholas Três pés de jabuticaba E quatro de carambola E se o espírito não me engana Das touceiras de banana Eu vi os cachos indo embora.

Isso aí foi um exemplo Que Deus queria mostrar Pra quem diz que é poderoso E Dele quer duvidar Não fale mal de Jesus Pois até Ele na cruz Prometeu que ia voltar.

Eu pra fazer estes versos Pedi bem perdão a Deus Também eu só escrevi Aquilo que aconteceu Se fiz coisa de errado Ô Deus perdoe os pecados Do poeta que escreveu.

O poeta popular consegue extrair poesia até da tragédia. Os exageros, Deus perdoa.

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As cabeças de Lampião e Maria Bonitinha

Nos anos de 1930, as famílias do sertão e do agreste nordestino viviam assombradas com os ataques e as atrocidades praticadas por Lampião e seu bando de cangaceiros. As notícias corriam de boca em boca dando conta da audácia e das estripulias dos bandidos, que mesmo perseguidos pela polícia, percorriam os estados nordestinos, já há uma década. O imaginário popular, a literatura de cordel, os violeiros e repentistas enalteciam seus feitos, relatando sua trajetória de fora da lei ou de vingador dos sertões. Quase sempre era elevado à categoria de herói do povo nordestino, impressionado com suas façanhas e astúcias para conseguir enganar as forças policiais. Foi ao amanhecer do dia 28 de julho de 1938, que Lampião foi emboscado, após ser traído por um dos seus coiteiros, segundo alguns historiadores. Assim, Lampião, Maria Bonita e parte do seu bando sucumbiram aos tiros de metralhadora disparados pela volante policial alagoana comandada pelo tenente João Bezerra, numa grota existente na Fazenda Angicos, nas margens do Rio São Francisco, município de Porto da Folha em Sergipe. Todos tiveram suas cabeças decepadas a golpe de facão e colocadas em latas contendo querosene. Esse troféu macabro foi exposto ao público de várias cidades alagoanas, antes de chegar à Maceió, onde foram ao Instituto Médico Legal Estácio de Lima para comprovação da identidade dos mortos. As rádios transmitiam diariamente o ocorrido e os jornais estampavam em suas primeiras páginas as fotografias das cabeças decepadas dos cangaceiros. Todos queriam comprar o jornal como lembrança e para saber dos detalhes da empreitada que culminou com a morte e o esfacelamento do bando. Não havia jornal para todos. Em 1938, Leopoldina era uma pequena cidade cortada por umas poucas ruas de barro batido. A Rua 15 de Novembro, mesmo sendo a principal artéria da cidade, também não tinha pavimento. Nessa rua morava meu avô materno, o comerciante e agricultor Francisco Santana, mais conhecido como Chiquito. Proprietário de fazendas e negociante de secos e molhados. Ele também era proprietário de pequenos quartinhos de duas portas e apenas uma janela, que eram alugados aos bodegueiros, sapateiros, tamanqueiros, barbeiros e vendeiros. O juiz municipal, Dr. Jerônimo Accioly Lins, mais conhecido como Dr. Gila, era auxiliado, na pacata cidade, pelo oficial de justiça Pedro José de Souza, o polivalente Pedro Alfenim, que também era o único coveiro da cidade, fabricante dos doces alfenins, feirante e dono do carrossel. 57


Foi exatamente nesse período efervescente da histórica desarticulação do bando liderado por Lampião que o inefável Pedro Alfenim teve a brilhante ideia de procurar Chiquito para que ele lhe alugasse um de seus quartinhos. Pedro expôs que queria o espaço por apenas um domingo, para mostrar ao respeitável público da terrinha as famosas cabeças dos cangaceiros. Meu avô ouviu a proposta e ficou desconfiado de que ali existe mais uma presepada do Pedro, afinal já o conhecia de outras histórias e sabia do que ele era capaz de fazer para defender alguns réis. Após alguma relutância inicial, Chiquito foi convencido a alugar o imóvel. O boato de que Colônia Leopoldina iria receber espetáculo de tal magnitude, logo correu pela boca do povo da cidade e da redondeza. Só se falava no evento mórbido organizado pelo nosso Pedro Alfenim. No domingo seguinte, dia de feira, Colônia estava em ebulição. Era um acontecimento histórico. A multidão ansiosa se aglomerava na porta da improvisada e minúscula casa de show, querendo o início da função. Pedro tocava o seu realejo e anunciava em voz alta e estridente que logo daria início a apresentação. Com essa conversa ia ganhando tempo para vender os últimos ingressos. Era gente empurrando gente numa fila enorme formada na rua principal da cidade. Os mais exaltados já ameaçavam abrir a porta na marra. Pedro segurou a pressão até que o empurra-empurra ficou incontrolável. De repente, as portas foram escancaradas, ao tempo em que o promotor do evento gritava:  Avança negrada, venham ver as cabeças de Lampião e Maria Bonitinha. A correria para entrar transformou-se num grande atropelo. Era gente gritando, aos empurrões, com os mais fracos espremidos nas paredes e os menores pisoteados. Aproveitando a esperada confusão, Pedro escapuliu, atravessando a ponte do Rio Jacuípe em direção à Pernambuco, onde sua esposa já o esperava para ficarem uma temporada longe da clientela. Enquanto isso, na salinha da Rua 15 de Novembro, os pagantes – depois de não encontrarem cabeça alguma de cangaceiro – perceberam que tinham sido vítimas de mais uma armação do coveiro. Quando a calma parecia ter sido restabelecida, alguém gritou:  Olha aqui as cabeças de Lampião e Maria Bonita. Foi outro alvoroço. Mas logo se descobriu que Pedro havia se superado na arte de pregar peças. Conforme ele anunciava e prometera, ali estavam as cabeças dos bandidos. O detalhe é que eram as cabeças em fotos, que haviam sido estampadas nas páginas do Jornal do Comércio e que agora estavam coladas na parede.

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Os espectadores enganados foram alvo de gozação na cidade por muito tempo. Chateados, prometeram se vingar daquela brincadeira que Pedro lhes havia pregado. Semanas depois, Pedro estava tranquilamente de volta para vender os alfenins, enterrar defunto morto e intimar gente a mando do Dr. Juiz de Direito.

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Negócio que três saem ganhando...

Mário da Silva Santos, meu avô paterno, foi dono do Engenho Lua Nova, em Colônia Leopoldina. Seu pai, o major da guarda nacional Justo do Ipiranga, também foi dono de engenho, o Ipiranga, que ficava no município pernambucano de Água Preta. Meu avô desde cedo trabalhou no campo. Vivia montado em lombo de burro ou de cavalo, ajudando nas tarefas do engenho. Ora, estava acompanhando o roço do mato, a limpa do terreno, a semeadura da cana-de-açúcar, seu corte no período de safra; ora, se encontrava com uma vara de ferrão nas mãos, como um verdadeiro carreiro, conduzindo os carros de bois do engenho. Conhecia de cor e salteado os nomes da cada boi atrelado ao carro de cana: Ouro Fino, Lavandeira, Andorinha e Teimoso. Ainda adolescente, amanhecia no eito do canavial fiscalizando os cortadores de cana, os carreiros e cambiteiros, que tombavam os feixes de cana no lombo dos animais. Assim, levou quase toda a sua existência, lidando com a terra e, principalmente, com cultura da cana-deaçúcar. Andava sempre acompanhado pelo capataz Zé Pedro, que também lhe servia de guarda-costas, por ordem do major Justo do Ipiranga. A convivência terminou em amizade e ficaram conhecidos por aprontarem muitas estripulias nos forrós das redondezas. Tornaram-se compadres, sendo que os filhos de Zé Pedro passaram a andar com meu pai, Adalgiso Borges Santos, exercendo a mesma função do velho capataz. Naquela época, os filhos herdavam as intrigas e as inimizades dos pais. Era o tempo em que o trabuco e o rifle papo-amarelo falavam mais alto. Era comum uma rixa política terminar em violência, como, por exemplo, entre os adeptos do governo Getúlio Vargas e a oposição. Ninguém podia se descuidar da sua segurança. Mário foi testemunha do aparecimento das grandes usinas, muitas delas montadas a partir de capital estrangeiro ou do Banco do Brasil. Empréstimos raramente pagos. Com a chegada das usinas de açúcar, os pequenos produtores não puderam competir por muito tempo. Alguns arrendaram suas terras aos novos industriais e foram morar nas cidades, vivendo do que a usina lhes pagava. Outros, em desespero pela nova situação econômica, deram fim às suas vidas. Suas “casas grandes” aos poucos foram abandonadas. Elas, que durante muitas décadas representaram o símbolo do poder e opulência, agora se curvavam ao poder dos usineiros. Foi assim que Mário Santos viu o seu engenho apagar o fogo. Mas acostumado ao trabalho, passou a plantar cana no Engenho Jericó, de propriedade do coronel Joãozito, seu 60


irmão. A produção era vendida à Usina Porto Rico. Algumas vezes também botava suas canas para a Usina Santa Therezinha, no município de Água Preta, em Pernambuco. Quando deixou de plantar cana no Engenho Jericó, resolveu se instalar no Engenho Beleza, pertencente à sua família e ainda em Água Preta. Aos 70 anos, já cansado e adoentado pela longa vida de trabalho, foi aconselhado pelos filhos a deixar aquelas brenhas, sem água, sem energia elétrica, distante de tudo e sem conforto algum. Eles estavam também cansados do trabalho pesado e queriam estudar e descobrir novas oportunidades na cidade. Ele ouviu a família, vendeu suas canas e foi residir em Olinda, próximo a Recife. Levou junto com ele a sua terceira mulher, D. Irene, e todos os seus filhos desse último casamento. Na sua longa vida, Mário constituiu mais de três famílias tendo criado, aproximadamente 35 filhos. Com o dinheiro das canas comprou uma casinha em Casa Caiada e, orientado pelos filhos mais velhos, Paulo e Ricardo – que já trabalhavam no comércio de Recife – montou uma frota de carros de aluguel, empregando quase todas as suas economias na compra de táxis usados. Sem entender nada do novo riscado, aos poucos viu a empresa se esvaindo. Desconfiou que estivesse sendo enganado pelos seus choferes de praça, que rodavam de dia e de noite, mas quando iam prestar contas, o lucro era quase nenhum. Para ele ainda ficava a responsabilidade de consertar os carros quebrados e batidos. Mário vendeu sua pequena frota e passou um tempo quieto, assuntando o que fazer com o resto de suas economias. Muitas propostas tentadoras lhes surgiram, mas o velho já desconfiado recusava sempre as boas intenções de quem queria ajudá-lo. Vivia dizendo que “de bem intencionado o inferno tá cheio”. Comportava-se como um gato escaldado, que tem medo de água fria. Uma manhã, estando ele em casa descansando em frente à televisão, ouviu alguém batendo palmas à sua porta. “Seu” Mário abriu o postigo da porta e de longe perguntou:  O que deseja seu moço? Antes de o homem se apresentar, ele pôde ver que o cidadão trajava-se bem: chapéu, gravata, paletó, calça de casimira e sapatos bem engraxados, além de conduzir uma vistosa pasta preta. O velho desconfiou que fosse algum vendedor de bíblia e foi logo dizendo:  O senhor se enganou seu moço, eu não quero comprar livro nenhum. O homem continuou parado diante da porta e, com voz mansa e pausada, pediu-lhe licença para expor o motivo de sua visita. Mário, mesmo de cara feia, resolveu receber o

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homem, mas lhe pediu que fosse rápido. Já dentro da casa, o cidadão, bem vestido e bem falante lhe disse:  Meu senhor, eu não sou vendedor de livros. Na verdade represento uma companhia de seguro de vida. Imediatamente passou a explicar o que pretendia, mostrando alguns papéis cheios de quadros e tabelas. O vendedor de seguros não parava de falar:  Este tipo de seguro dá direito ao senhor se aposentar. Se sofrer um acidente, o seguro cobre durante o tempo do seu afastamento do trabalho. Se houver perda parcial de algum órgão, como um braço ou uma perna, também será ressarcido. Se por acaso o senhor morrer, sua família receberá o prêmio total do seguro. Considerando que o freguês estava convencido, o vendedor mostrou a última tabela, que definia o valor da mensalidade de acordo com a idade do assegurado. Foi quando o “seu” Mário disse:  Meu amigo, não sou homem muito letrado, mas entendi quase tudo que o senhor me explicou – e continuou diante do já sorridente vendedor – eu lhe pergunto: ganho alguma coisa com esse seguro? A resposta foi surpreendentemente honesta:  Oxente, meu senhor, é claro que sim. Se o senhor não ganhasse nada eu estaria aqui vendendo o seguro? O senhor é a pessoa mais beneficiada nesse plano, que foi feito especialmente para atender pessoas como o senhor. O velho imediatamente fez outra pergunta:  Você ganha alguma coisa vendendo esses papéis? Novamente o vendedor respondeu com sinceridade:  Ora, se eu não ganhasse nada, não estaria vendendo esses seguros de vida. Mário insistiu com mais uma pergunta:  E o dono desse plano também sai ganhando alguma coisa? A resposta não se fez esperar:  Naturalmente. Se eles não tivessem vantagem alguma, não mandariam vender o plano. Isso pertence a um grupo empresarial muito forte. Encerrado o interrogatório do vendedor, “seu” Mário se levantou e disse calmamente:  Meu senhor, um negócio em que três saem ganhando e ninguém sai perdendo, não me cheira muito bem. Ajunte seus papéis, passe bem.  Dito isso, mostrou-lhe a porta de saída da casa. 62


Seu Mรกrio faleceu de morte natural aos 92 anos de idade, cercado pelos filhos, netos, bisnetos e tataranetos, na cidade pernambucana de Abreu e Lima.

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