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SULAMITA (POEMA LÍRICO) FRAGMENTO
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A FAVORITA Aí! quem de dera sentir, pobre cabeça louca, o seu beijo de amor arder na minha boca,
AS MULHERES DO HARÉM Muito mais doce do que o mel e o vinho misturado aos aromas esquisitos que ungem-lhe o corpo heril é o seu carinho, a chuva de seus beijos infinitos... Seu nome é como um óleo derramado de nardo, cinamomo e mirra pura, como o sol é querido e desejado e as donzelas o amam com ternura.
SULAMITA (trazida a força pelos guardas do harém) O Rei me obriga a entrar no seu palácio à força. Ai de mim! Ri de mim! Sou a tímida corça que o lobo aprisionou, à sesta, num vinhedo... Arranca-me daqui, amado eu tenho medo!
AS MULHERES DO HARÉM Nosso férvido amor, nosso carinho não consegue jamais embebedá-lo; suas carícias valem mais que o vinho: quanta razão não temos nós de amá-lo!
SULAMITA (enleada) Não desdenheis de mim porque trigueira sou, o sol de meu país a fronte me queimou. Minha vinha no campo eu guardava... Bem sei, 4
que descuidada fui, que bem mal a guardei! Vê-de: feia não sou; bem me posso igualar aos pavilhões do Rei e às tendas de Cédar. (dirigindo-se ao amado) Formoso amado meu, dizer-me tu, responde: Onde está teu rebanho? Onde ele pasce? Onde descansas da soalheira à sombra dos lentiscos, para que eu não vagueie em redor dos apriscos de outros zagais, além, a chamar-te, sozinha como um matagal perdida cordeirinha...
A FAVORITA Se és tão simples assim, formosa das formosas, volta aos vales do Hébron e entre as murtas cheirosas, apascenta teu gado e busca teus amores, no monte ou na colina em meio dos pastores.
AS MULHERES DO HARÉM (pressentindo Salomão) Ele vem! O seu passo fere apenas a penugem das castas açucenas; fica bêbado o ar com seu perfume e deslumbrado o sol com seus cabelos! Os seus olhos de pomba são tão belos, que morremos de amor e de ciúme!
SALOMÃO (dirigindo-se a Sulamita) Comparo-te, querida, à minha égua, quando nos carros que o faraó me envia, espumejando, jungida está mordendo os freios d‟oito fino, O teu colo de ebur tem o róseo opalino das pérolas de Ofir, dos jaspes e corais, 5
em cada face tua abotoam rosais! Hei de mandar fazer-te um precioso colar, que há de três vezes, flor, teu pescoço enlaçar.
SULAMITA Vinhas longe e eu sentia o teu perfume estranho! Mas, quisera voltar a ver o meu rebanho, junto do amado meu...
SALOMÃO És tão formosa, amiga, Como o lírio do vale esbelta como a espiga do trigo baloiçando à carícia da aragem.
SULAMITA Formoso é o meu amor, a sua linda imagem vive em meu coração, perto de meus receios como um ramo de mirra a perfumar-me os seios, porque ele é para mim a branca flor d‟alfena das vinhas do Engaddi...
SALOMÃO Teus olhos causam pena! De cedo, de cipreste e áureo metal luzente é o meu palácio real alteroso e esplendente. Vem! O meu leito é d‟oiro e de marfim, meus linhos são mais alvos que a lá dos tenros cordeirinhos. Que suavíssimo olor que desprendem!...
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SULAMITA Desdenho. No campo entre rosais na branca relva tenho um leito de verduras e um palácio encantado mais formosos que os teus, junto de meu amado! (canta) Sou do Saaron Sou o narciso do vale...
O PASTOR (entrando subitamente) Entre as belas tu és como um lírio entre abrolhos, amiga, doce luz de meus cansados olhos! (mirando-a carinhosamente) Teu talhe esbelto excede as lendas de Cédar!)
SULAMITA (caindo-lhe nos braços) É o amor! É o amor! O glorioso estandarte que se ergue sobre nós! Chega, eu quero abraçar-te. Desfaleço de amor nos teus braços! Depressa, que a tua mão direita ampare-me a cabeça, e a tua esquerda abrace o meu corpo cheiroso... .......................................................................................
O PASTOR (às mulheres do harém) Silêncio! Adormecem num delíquio do gozo! Pelas corças de campo e tímidas gazelas, ó de Jerusalém, namoradas donzelas, deixai dormir, deixai, a terna amada minha como entre a murta em flor a massa cordeirinha! 1904. Gutenberg, edição de 21 de maio de 1905.
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CANÇÕES DO TÉDIO Aristheo de Andrade deixou inédita a obra Canção do tédio. Os onze sonetos aqui relacionados foram publicados no jornal “Gutenberg”.
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O CORMORÃ Entre os juncais sobre um pé só o esguio Talhe sustenta, o cormorã medita Tal como um antigo e austero cenobita Na triste solidão de um claustro frio.
Estranho a tudo quanto o cerca, fita Com persistência o triste olhar sombrio Da linfa clara no prateado fio Que corre entre os bambus q‟o vento agita.
Nada fá-lo mover. Em vão gorjeia Bem perto a passarada e a brisa anseia Por entre as folhas da cananga em flor. Tel é minh‟alma, indiferente a tudo Semelha um cormorã tristonho e mudo Contemplativo e só na sua dor!... Janeiro – 1898 Gutenberg, edição de 09 de janeiro de 1898.
TRISTEZA DA MORTE À soleira do Azul esquálida e medonha A Morte foi sentar-se após a insana lida De tudo destruir e assim como quem sonha Falou sombria e triste à terra adormecida: Quando a um golpe mortal misérrima ou risonha Uma existência finda e a Noite indefinida Do Túmulo desdobra a escuridão tristonha Sobre a matéria inerte arrebatada à vida;
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Vós outros exclamais: oh Morte inexorável!... Loucos! Feliz de quem no abismo do Insondável Dorme o Sono de Paz por toda Eternidade...
E erguendo para os céus as órbitas vazias Bradou: jamais terão um termo estes meus dias!... Maldita sejas, pois, oh Imortalidade!!... Recife – 1897 Gutemberg, edição de 13 de janeiro de 1898.
TÉDIO Tédio negro e mortal, tédio desesperado Queima-me o coração tal como um ferro em brasa E enervante e tenaz em meu ser extravasa Um tóxico sutil, um fel envenenado!
Em vão procuro aqui o aconchego de uma asa, A quentura de um seio, um ninho afrouxelado, A carícia de um beijo, um amor não sonhado Para me consumir na febre que me abrasa.
Tudo vácuo em redor! Como as asas de um corvo Tudo soturno e triste! Enraivecido sorvo De meu nojo sem fim o vinho amargo e escuro...
Águia de ideia foge a este mal sem remédio O cérebro ensombrai-me oh lemures do tédio... Quem me dera na insânia achar o que procuro. Gutemberg, edição de 29 de julho de 1898.
NEVROSE DO MAL Se eu fosse a morte, a tabida tirana, Que sem se comover tudo aniquila 10
Em “nada” tornaria a vil argila Que sente, goza e sofre – a espécie humana!...
Todo esse ódio que meu ser destila, A altivez de meu tédio soberana, Explodiria enfim na fúria insana De poder um só dia destruí-la!...
Depois, soberbo e só!... Ninguém decerto Seria mais do que eu nesse deserto, Onde a espécie vivera altiva e forte...
Tão grande como Deus, potente e eterno Zombaria do céu, do próprio Inferno, Na minha hediondez, se eu fosse a Morte!... Gutenberg, edição de 27 de setembro de 1898.
AVE DE AUGÚRIO Empoleirada na minha alma canta Tristonhamente uma coruja negra, Que de meus dias a tristeza integra E de meus lábios o sorriso espanta.
Risonho e claro o dia se levanta E a luz do sol anima tudo e alegra; Mas para mim, triste exceção de regra, O canto da ave à luz do sol suplanta...
Sobe ardente ao zênite, e desce e desce O astro fecundo para o mar... parece O poente – um lago donde o sangue escorre...
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A noite cai... Tudo repousa em calma! Canta a coruja dentro de minha alma, Ave de augúrio em solitária alma, Gutenberg, edição de 1o de outubro de 1898.
TRIRREME DA MORTE Na trirreme da Morte a plúmbeca vaga Do mar da Vida, silencioso corto Do amor fugindo a encantadora plaga Sonho perdido de um passado morto;
Nem uma brisa de esperança afaga A superfície deste oceano!... Absorto Na onda amarga banhando a escura chaga Do Tédio, espero o desejado porto.
Sem nada ver, pela sombra um cego, Vou percorrendo o tenebroso pego Negro, imenso, profundo, ermo e selente.
Nenhum farol reluz no torvo extreme Do horizonte sem fim... Corta a trirreme A vaga plúmbea vagarosamente!... Gutenberg, edição de 12 de outubro de 1898.
LÁGRIMA REMISSA (Ao Miguel Rosa) A que vem esta lágrima? Sentindo Úmida a face ao coração pergunto: Queres a doce paz do sono infindo? Dói-te da morte o tétrico conjunto?
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Não interrompas aos que estão dormindo Na morte! Os parvos que ali chorem junto Das lampas entre lágrimas sorrindo... Os mortos deixa, coração defunto?
A dor sincera jamais te apiade Muito menos te punja a dor fingida Repete a mágoa, fecha-te à saudade.
Aos olhos volta, lágrima doida... Feliz de quem por toda a eternidade Foge ao Tédio monótono da Vida. 2-11-1898. Gutenberg, edição de 10 de novembro de 1898.
A NAU DA MORTE (A Clovis Bevilacqua) Lá vai a estranha nau de pandas velas pretas, em cima um céu de chumbo; em baixo um mar sombrio, Para o supremo exílio os pálidos cacetas Da vida ela conduz no bojo escuro e frio.
As vítimas do amor, as tristes exegetas D‟Arte – este sonho vago, insólito, e irradio, Almas angelicais de monjas e de poetas Ali vão a rezar num brando murmúrio.
Sombras, précitos vis, a corveta povoam, Brados, exclamações pelos ares atroam... umas gritam de horror, outras clamam de espanto...
E a negra nau lá vai pela vaga impelida Para o país da Morte, excilados da Vida Conduzindo e, após, se deixando o luto e o pranto! 13
Gutenberg, edição de 26 de maio de 1901.
ATLAS Nesses dias de cólera insofrida, De tédio amargo e de íntima revolta, Quando de raiva a boca contorcida A cada instante uma blasfêmia solta;
Eu invejo a coragem do suicida, Que das paixões a tenebrosa escolta Foge, e demanda para a apetecida Pátria feral, de onde jamais se volta!
Desejo a inconsciência da loucura, Na treva eterna de uma sepultura Dormir um sono intérmino, profundo...
Ao peso enorme de meu tédio vergo, Mas orgulhos o mundo encaro e me ergo Atlas soberbo suportando o mundo! Gutenberg, edição de 05 de março de 1904.
SANGUE Sangue de meus avós, sangue degenerado De fidalgo ou plebeu, pouco importa, maldito Sejas tu, sangue mau, que num tédio infinito Fazes-me blasfemar contra o céu, rebelado.
Sangue velho, por ti eu vocifero e grito, Negro e torvo Caim, ser endemoniado. E odeio a terra, a luz e o páramo estrelado, 14
E a mim próprio talvez, de mim mesmo proscrito.
Causa de meu sofrer, sangue que amaldiçoo, Inimigo ancestral, eu tudo te perdoo: O tédio, a febre, a ânsia e os maus dias tristonhos!
E adoro-te letal e escandecida fonte, Quando em teu estuar tu me curvas a fronte Sob o peso ideal de um diadema de sonhos! 1904. Gutenberg, edição de 28 de maio de 1905.
A ALMA Alma imortal, a torturante algema De argila que te prende à forma humana Despedaça e resolve este problema Do profundo segredo do Nirvana.
Num impulso de cólera suprema, Numa ânsia de Não Ser ardente e insana, Rompe os moldes estreitos do dilema Da Vida, e corre à Morte soberana.
Não te detenha o passo o que te espera, Porventura, no Além: sonho ou quimera, Inferno ou céu!... Do mundo te transporta,
Rasga o casulo vil que te agasalha, Deixa envolta nas dobras da mortalha O resto ignóbio da matéria morta!... Gutenberg, edição de 21 de setembro de 1905.
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VISÕES
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Aristheo de Andrade tinha uma admiração por Floriano Peixoto que, segundo as crônicas da época, chegava à loucura patriótica. No dia do falecimento do Marechal (29/06/1895), publicou o poema O grande morto:
Morreu! Tombou o Marechal de aço Soberbo, altivo e forte! Caiu inerte seu potente braço Vencido pela morte!
Não respeitou a morte o glorioso Vulto do altaneiro, Do Grande Marechal do valoroso E invicto brasileiro.
Envolta em dó, a Pátria ajoelhada Na campa do valente Depõe uma coroa e desolada Soluça tristemente.
Tolheu a morte o passo do gigante. Armas em funeral. Foi obstada a marcha triunfante: É morto o Marechal! ...................................................... Morreu. Tombou o Marechal de aço, Soberbo, altivo e forte! Caiu inerte o seu potente braço, Vencido pela morte.
1o de julho de 1895. Diário Oficial do Estado, edição de 29 de junho de 1922.
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Quando do primeiro ano de morte, publicou O nome do herói (à sacrossanta memória do Marechal):
O valor de seu gládio triunfante. Os seus feitos de glória celebrados. Pelo clarim da Fama altissonante, Não cantarei em versos arrojados;
Porquanto em pergaminhos não manchados, Na página da História a mais brilhante, Em letras indeléveis são gravados, E refulgem com brilho coruscante.
Mas de seu nome a fúlgida epopeia, Que o babujar da Serdida alcateia Dos perros vis porfia por manchar;
Sobre a tampa pesada do ataúde Onde dorme, nas cordas do alaúde Em ode sublimada hei de cantar! 29-6-1896. Gutenberg, edição de 02 de julho de 1896.
Porém, no jornal “Gutenberg”, edição de 29 de junho de 1897 (2o ano de falecimento de Floriano), Aristheo de Andrade publicou Visões (Sonho de uma noite de inverno), elogiada em todo o país, o que demonstra quão grande e brilhante era a sua inteligência.
VISÕES (Sonho de uma noite de inverno)
Lui! Toujours lui! V. Hugo Hora fatídica da meia noite. A luz dos fogos fátuos branqueja o cemitério em túmulos. O vento canta funerariamente nos ramos das
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casuarinas. Iluminado por clarões estranhos destaca-se dentre os outros um sarcófago em cuja lápide brilha em letras de fogo um Nome que encerra todo o fulgor da Vila Láctea. Aparece repentinamente, aureolada por um nimbo de luz, uma visão de longa clâmide, tão alva como um floco de neve, sustendo na destra um gládio irradiante como a cauda de um cometa, e na sinistra uma bandeira rubra. É bela, mas, dessa beleza que fascina e apavora. Encaminha-se para o túmulo de Floriano, eis que para e começa falar:
Outrora te segui constante companheira Na luta ao teu corcel aguilhoando o flanco, Da morte te oscultei no meu vestido branco, De louros lancei, herói, a tua esteira!
Vi-te erguido depois aos píncaros da Glória Tendo de um povo rei os destinos na mão, De luz aureolei a tua trajetória E ajudei-te a salvar a honra da Nação. Mais tarde vi cair c‟os olhos cheios d‟água Teu braço vencedor, férreo, gigante e forte, Co‟o crepe te velei de minha grande mágoa De minhas vestes fiz teu sudário de morte!
Hoje, venho chamar-te oh sombra radiante, Do escuro mausoléu que o teu despojo encerra; Desperta, tens aí teu gládio fulgurante, Vem, comigo lutar, sou a Deusa da Guerra. Uma voz do fundo do sarcófago:
Cansado de lutar adormeci na alfombra, Vai-te! Deixa dormir em paz minha sombra!...
Um clarão de relâmpago ilumina toda a cena. Apaga-se e a visão desaparece... Silêncio. Pouco a pouco ouve-se os trêmulos de uma sinfonia que vai gradualmente crescendo harmoniosa e altiva como um hino triunfal. Rasga-se um novo relâmpago e surge uma outra visão divinamente bela. Sobre as suas vestes da brancura imácula de um cravo
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de noiva fulgem todas as constelações do firmamento. Cinge-lhe a fronte angélica um diadema feito talvez de raios de sol. Tem as mãos cheias de flores fulgurantes, rútilos produtos de uma primavera do céu. Para diante do túmulo e fala:
Na tela azul do céu colhi estrelas, Roubei todo o esplendor Do sol, e fui depois tecer capelas P‟ra coroar-te a fronte, oh vencedor.
Ergui-te um altar no templo augusto Do grande coração De um povo a quem tu deste, oh Grade, oh Justo! O rutilante sol da Redenção!
Ainda acompanhei-te, mas voaste Aos páramos dos Céus; Desperta, volta à Pátria que deixaste Foste somente herói, quero-te Deus!
Acorda, irei traçar por entre os astros A tua trajetória, São estrelas candentes os teus rastros Quero fazê-los sóis, vem, sou a Glória! Como um eco longínquo responde a voz do túmulo:
Não quero o teu fulgor oh Glória forasteira. Tenho mais sóis que tu na minha larga esteira.
Como um último suspiro de moribundo morre a última nota da sinfonia e a visão dilui-se em fogos fátuos. Novo silêncio... interrompido agora pela impotência clangorosa dos sons de uma fanfarra a entoar numa epopeia grandiosamente marcial! O escuro do céu incendeia-se à luz de uma aurora boreal. Sobre a campa do Herói baixa um arcanjo de asas de neve, formoso como sol. Com a destra embocada uma fanfarra d‟oiro e na outra mão sustém um livro brilhante como o Cruzeiro do Sul. Ajoelha-
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se diante da campa – último encerro de um colosso. Cessam os clangores da fanfarra e a visão entoa o seu canto triunfal;
Quando vieste à luz humílimo e obscuro Junto ao berço velei teu sono de criança, Embalei-te a cantar um hino de esperança, Tua Glória sonhei, sonhei o teu futuro.
Vi-te colher depois nas lutas grandiosas O louro triunfal que imortaliza o homem E na história gravei em letras luminosas Teus feitos imortais que as eras não consomem. Mostra o livro que traz
Um poema colossal ao fumo das batalhas Com teu gládio escrevi o que legenda d‟oiro Teu nome fiz fulgir com brilho imorredoiro Espadanando luz nos raios das metralhas.
Deixa portanto e vem da cândida morada Onde recolhe Deus as almas dos Eleitos, Baixa oh Alma de Herói à terra aureolada De luz, a Fama sou, quero cantar teus feitos. A voz da campa
Não perturbes a paz de meu doce abandono Não venhas com teu canto interromper meu sono.
Sou de novo a fanfarra e ao clarão de uma apoteose a visão ala-se ao azul. Mutação de cena. Apagam-se os fogos fátuos. No meio da treva como um astro caído do céu, fulge o túmulo do Grande Cidadão. O vento geme por entre as folhagens dos ciprestes uma elegia triste e comovedora como um lamento de mãe. À luz difusa daquela campa, lobriga-se um vulto que para ela se dirige. Ei-lo que se aproxima, ei-lo que chega... É uma mulher ou uma visão de além-túmulo? Envolve-lhe o corpo esquelético um sudário auriverde manchado e roto. No seio descoberto,
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como uma boca a pedir vingança, abrem-se os bordos sangrentos de uma chaga... sangram-lhe os pés, sangram-lhe as mãos, sangra-lhe o rosto onde brilham ainda resquícios de uma beleza que apagou-se. Debruça-se sobre o túmulo e chorando começa a falar com voz enfraquecida e entrecortada de soluços:
Filho de meu amor, desperta de teu sono Tenho o peito a sangrar, preciso de teu braço, Não deixes-me ficar nesse triste abandono Estou morta de dor e exausta de cansaço.
Levanta-te e vem ver como eles me escarnecem Escarram-me na face e espancam-me sem dó, Perdi de todo a Fé, consolo aos que padecem... Desde que me deixaste abandonada e só!
Do bandido o punhal sanguinário e corrupto Que assassina na treva e se oculta da luz, Cobarde se embebeu no meu seio impoluto, Minhas vestes manchou de sangue lodo e pus!
O auriverde pendão que a minha mão sustinha O estandarte do sol o auriverde pendão, A trapos reduziu a cáfila mesquinha, Sob a injúria do Inglês e afoito ao Botão. O áureo pedestal soberbo e fulgurante Sobre o qual sem temor fizeste-me subir, Poderosa e viril altiva e radiante, Não tardará tombar, não tardará cair!
O gládio vencedor que deste-me altaneiro, Quando inerte caiu a tua mão segura, Transformaram os vis em enxuxada de coveiro, Para com ele abrir a minha sepultura.
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Cansada de sofrer tal como um cão sem dono Junto ao teu mausoléu venho refugiar-me, Filho de meu amor desperta de teu sono Quero luz! Quero ar! Meu filho vem salvar-me. Cai desfalecida. A voz interroga:
Quem és tu? Quem és tu, mendiga forasteira Como um gemido a visão responde:
Filho, sou tua mãe a Pátria Brasileira!
O sarcófago estremece, soltam chispas de fogo... ouve-se fragores de trovão, a atmosfera abre-se em chamas... tudo grandiosamente pavoroso como a revolta de uma alma indignada. Entre o rugir da tempestade e o ronco dos trovões a voz do túmulo brada:
Quebre-se a lousa pesada! Derrua-se o mausoléu! A Carne desfez-se em nada... Mas a alma não morreu! Acorde toda energia Que no meu sangue vivia Enquanto também vivi Mãe, espera ouvi teu grito, Farei voar o granito Para chegar junto a ti!
Ferem-se o peito!... Bandidos!... Magoam-te o coração!... Os corvos são atrevidos Na treva! Na escuridão! A luz clara e diamantina Da liberdade divina Co‟a minh‟alma 23
E a revoada mesquinha De abutres surgiu asinha E de sangue te manchou!
O estandarte glorioso Circundado de lauréis O bando negro e ascoroso Rompeu debaixo dos pés! A tua legenda d‟oiro Um lucífero tesouro Cobriram de lodo e pus Da infâmia o bufo corrupto Manchou-te o seio impoluto Ofuscou a tua luz! O gládio brilhante e forte Que sustive em minha mão, Não brilha perdeu o corte, Formou-se enxada... Irrisão! Da morte tolheu-me o sono Derribaram-te do trono Que a ti ergueu meu valor... E com riso zombeteiro Cospe-te à face o estrangeiro, rasga-te o seio!... Que horror!
Ah! Tudo isto eu p revia Bem antes de aqui tombar!... “Alerta pois!...” Eis o dia! Tu vieste-me acordar! De novo empunhando a lança Como o Arcanjo da Vingança Eu vou altivo acender O foco da liberdade... 24
Tens por ti a Mocidade E Eu! Não hás de morrer!
Quebre-se a lousa pesada! Derrua-se o mausoléu, A Carne desfez-se em nada Mas a alma não morreu! Ouvi, oh dor, Mâe Querida Tua voz enfraquecida, Ouvi os lamentos teus, Por ti deixo a Estância Clara Do Céu a irei, oh Mãe... Uma voz do céu:
Para!... A voz do túmulo:
Quem pode deter-me?! A voz do céu:
Deus!... A mulher desfalecida solta um gemido dilacerante. A voz do túmulo numa súplica desesperada dirige-se ao céu:
Oh! Deixa-me ir, por piedade! A voz do céu:
Nada temas, dorme, em calma, Transfundirei a tu‟Alma Na Alma da Mocidade!
A luz de uma apoteose circunda o mausoléu e o nome de Floriano como um feixe de sóis ilumina o mundo. A Pátria debruçada chora sobre aquela lousa querida. A Guerra, a Glória e a Fama reaparecem e ajoelham-se diante da grandeza daquele sarcófago. Descem do Empíreo sinfonias estranhas, toques de clarim, rufos de tambor e numa melodia
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marcialmente bela entoam o hino imortal dos feitos do Herói. As flores entornam sob a lápide, com as lágrimas de aurora que ruboriza o horizonte, as lágrimas da noite e os eflúvios de seus suaves perfumes. Acentuam-se mais e mais os fogos da manhã... Tudo desaparece! Silêncio e soidão!
Isto eu via no prisma imaginário De minha fantasia com tal cunho De verdade!... Marcava o calendário 29 de JUNHO! Junho – 1897 Gutenberg, edição de 29 de junho de 1897.
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POESIA ESPARSAS Sob esse título, recolhemos poesias de Aristheo de Andrade publicadas em jornais. Seus primeiros trabalhos (1893-1895), publicados nos semanários “O Momento” e “Correio Mercantil”, grande parte de pouco valor literário, servem para gradativa evolução do poeta.
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mostrar a
NA ROÇA (Cromo) Da choupana no terreiro Todos sentados na esteira Contam histórias de Trancoso Em derredor da fogueira.
Arnaldo conta uma história Duma princesa encantada Qu‟aparece ao pé do monte Nas noites de trovoada.
A preta Luzia dança Tocando no seu pandeiro, Enquanto Manoel Fragoso Afaga seu cão rafeiro.
Então o velho Jandira Canta à viola uma loa, Além, bem doce desliza Na corrente uma canoa. Julho – 1893. Correio Mercantil, edição de 30 de setembro de 1894.
ILUSÃO Tu morreste, mas vives dentro de minha alma. Não sei se é mesmo sonho ou se é verdade Vejo tu‟alma baixar da etérea altura Quando contemplo a tua sepultura Com o coração opresso de saudade.
O sofrimento atroz sempre há de Em mim perdurar como perdura 28
S‟arrefece quando tua imagem pura Penso ver resplandecente de bondade.
Me sinto preso de um torpor tão doce Pois julgo que tu‟alma incorporou-se À minha‟alma saudosa que delira...
Mas meu peito de tristeza se entumesce Quando a tua visão desaparece Tudo era ilusão! Tudo mentira! 30-8-1893. Correio Mercantil, edição de 28 de outubro de 1894.
TRISTE RECORDAÇÃO (A Olympio Fausto) Com lacrimoso olhar, todo tremente, Te disse o terno adeus da despedida E tu disseste: adeus, tão tristemente Como se fosses desta p‟r‟outra vida!
Senti dentro do peito de repente Despertar-me a saudade adormecida Tão atroz, tão cruel e tão pungente, Como o triste momento da partida!
Para longe parti da terra amada; Ausentei-me de ti, idolatrada!!... Como coração opresso e dolorido... Mas, um dia voltei, só para amar-te!
Desengano cruel! Não pude achar-te! Pois tu havias para o céu partido!!... Agosto – 1894. Correio Mercantil, edição de 9 de setembro de 1894.
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ELI, ELI, LAMMA SABACTHANI? Jesus pregado no cruel madeiro Macerado e sangrento agonizava, Enquanto a multidão o apupava Com sorriso feroz e zombeteiro.
Mas o Divino Mestre, sobranceiro, O sofrimento, impávido arrostava E seu olhar complacente perdoava A multidão, no arranco derradeiro!...
Nisso de Magdalena as pontas excitantes Vê por entre o desalinho provocantes... Dos roxos lábios lhe escaparam ais...
E um lúbrico desejo lhe estremece O corpo, ele expirante diz a prece Senhor, senhor, por que me abandonais?!... 29-8-1894. Correio Mercantil, edição de 16 de setembro de 1894.
NO TÁLAMO (A Antônio Cavalcanti) Entraram n‟alcova. Trêmula, nervosa A moça as brancas vestes vai despindo, Entre rubores virginais, formosa, As formas sedutoras vão surgindo.
O noivo preso dum desejo infindo Aquelas formas brancas antegoza, Lúbrico se lança sobre o corpo lindo Ainda virgem da formosa esposa! 30
A luz se apaga, os beijos recrudescem, Anseiam, ofegantes desfalecem Suspirando mui terna e docemente...
E nos vidros da janela reluzia Um raio da benina luz do dia. Era o sol a despontar formoso e quente!... Agosto – 1894. Correio Mercantil, edição de 23 de setembro de 1894.
UMA LENDA O menestrel amava loucamente A loira castelã, E toda noite cantava tristemente Lá no barbacã; Mas a fidalga altiva desprezava O louco menestrel. Enquanto ele cantava, ela zombava Com desdém cruel.
Um dia o menestrel alucinado Ao fosso se lançou; E do destino arroz do desgraçado A castelã zombou!
Mas quando a noite veio, tristemente Ouviu alguém cantar Tão triste, tão meigo, tão plangente Que a fez cismar!
Aquela triste voz apaixonada Logo conheceu, 31
Em pranto desatou alucinada, E enlouqueceu!
Quando a noite vem, a doida errante A loira castelã Se dirige qual sombra vacilante Para o barbacã. 2-10-1894. Correio Mercantil, edição de 7 de outubro de 1894.
RUÍNAS (Imitação) Ameias, barbacãs arruinados Aqui, ali, além jazem caídos; Já de musgo e de lírio denegridos Vê-se colunas, muros derrocados!
Os mochos soltam lúgubres piados Por sobre esses destroços carcomidos, Evocando dos tempos decorridos Os meus dias felizes já passados!
Contemplando as ruínas tristemente Vejo em todas elas claramente Meu coração sentido e abandonado!
Enquanto lá no céu muito serena Surge a lua e alumia aquela cena Como risonho espectro do passado. 20-9-1894. O Momento, edição de 8 de outubro de 1894.
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O MENESTREL Era no inverno. Os campos vicejantes Cobertos de geada se ostentavam Qual um branco lençol. Um vento frio Soprava rijamente sacudindo As árvores copadas. Pela estrada Caminha o menestrel enfermo e velho Cinge a lira sua amada companheira.
Velho capote quase esfarrapado Lhe cobre o corpo o frio dissipando E trôpego caminha. De repente Eis que ele para e erguendo o olhar P‟ra o céu nublado um doce canto entoa Dedilhando na lira tristemente, Que ao longe é repetido melancólico Pelos ecos, além, lá na quebrada. Era um canto d‟amor! Um treno triste! E duas lágrimas saudosas se deslizam Pelas faces do mísero ancião, Que assim declama: “Tempos tão felizes Que tão cedo se passaram sorridentes Me deixando em tristeza mergulhado! Oh! Jamais voltarei tempo risonho De minha juventude apaixonada! Só agora, o desalento é companheiro De minh‟alma tão triste e solitária! Quando eu era feliz, quando sentado À porta da cabana ia entoando Doces trenos d‟amor que repassados Os ecos repetiam soluçando! 33
Ou na mesma sentada dum banquete Dos convivas em honra a voz erguia Num canto que na lira dedilhava! E depois, por donzelas coroado De folhas de parreira, eu me sorria Feliz! Não voltais jamais! A sepultura Só agora me espera com um sorriso!”
E calou-se... e calou-se. O negro véu Da noite ia descendo lentamente; O menestrel se vai estrada em fora E sumiu-se a cantar na escuridão! 9-10-1894. Correio Mercantil, edição de 11 de outubro de 1894.
A TOURADA (A Bellarmino de Mendonça Filho) A bancada de povo regurgita; Já na arena chegou esbravejando O touro que espantado a cauda agita Com as ventas de cólera fumando.
Para a capa vermelha que o irrita Se arremessa colérico bufando Mas recua depois... A capa excita Já de novo se vai arremessando.
Nisto entra o tesoureiro corajoso E firme aguarda o touro furioso Que contra ela lança-se espumante.
Vem cego na carreira e o toureiro Se esquiva e crava-o mui ligeiro E pelo chão jorra o sangue fumegante. 34
19-10-1894. Correio Mercantil, edição de 19 de outubro de 1894.
EN MURANT Agonizava: na borda de seu leito Debruçado eu fitava-a tristemente E os sentidos soluços do meu peito S‟irrompiam desesperadamente.
O seu rosto mui pálido e desfeito Pela morte, sorrindo meigamente Para mim tão tristonho e contrafeito Me contemplava apaixonadamente.
Enfim, chegara paroxismo extremo Enviou no olhar um adeus supremo E expirou!... Extático a contemplava.
Mergulhado na dor crua e pungente! Pelo seu rosto branco e transparente Lentamente uma lágrima rolava!... 15-12-1894 Correio Mercantil, edição de 23 de dezembro de 1894.
CONTEMPLAÇÃO (A Adrião Silveira) Depois que tu me foste, debruçado Na janela de meu quarto, tristemente, Contemplo o céu de estrelas refulgente Com o olhar lacrimoso e magoado.
E cismando a contemplar o estrelado Manto, eu fico. Oh magnólia olente! De saudade meu peito de repente 35
Suspira enlanguescido e contristado
Quando descubro, trêmula, fulgindo, A minha estrela lá no azul infindo, A nota mais brilhante dessa tela Penso ver, que quimera! Que loucura” Teus olhos a fulgir na luz tão pura Dessa formosa e confidente estrela! 2-1-1895. Correio Mercantil, edição de 06 de janeiro de 1895.
REMEMORANDO Casa risonha onde passei sorrindo A minha infância alegre e descuidada O meu doce berço! Habitação amada! Oh que saudades! Que pesar infindo Minh‟alma agora não está sentindo Ao ver-te assim tristonha e abandonada! Ninho quente de amor! Doce morada!... Onde a infância passei cantando e rindo!
Tudo mudou-se! Abandonado e triste Está meu peito também, e só persiste Nele recordações gratas d‟outrora.
Por isso vejo em ti casa tristonha Minha infância fagueira e tão risonha E o meu viver tristíssimo de agora! 15-1-1895. Correio Mercantil, edição de 20 de janeiro de 1895.
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TRIOLET I Quando entre as minhas tua mão formosa Aperto tão macia e pequenita Delicada gentil da cor da rosa Eu tenho meus receios, acredita De magoar-te a mão que é tão mimosa Elegante, fidalga, tão bonita Quando entre as minhas tua mão formosa Aperto tão macia e pequenita. 26-1-1895. Correio Mercantil, edição de 03 de fevereiro de 1795.
II A minh‟alma apaixonada Sem ilusões, nem sonhares Como a andorinha emigrada Indo em busca d‟outros ares Em busca de amor, coitada Partiu, só trouxe pesares! A minh‟alma apaixonada Sem ilusões, nem sonhares Como a andorinha emigrada Indo em busca d‟outros ares Em busca de amor, coitada Partiu, só trouxe pesares! A minh‟alma apaixonada Sem ilusões nem sonhares! Correio Mercantil, edição de 10 de fevereiro de 1895.
III (A uma flor murcha) Triste flor abandonada 37
Murcha sem viço perdida Pelo quente sol crestada Pendes d‟aste emurchecida! Minha esperança doirada Como tu murchou sem vida Triste flor abandonada Murcha sem viço perdida! 31-1-1895. Correio Mercantil, edição de 17 de fevereiro de 1895.
IV Anda a alma do poeta Sem ilusões nem amor Inconstante e irrequieta Cheia de mágoa de dor Vagabunda borboleta A voar de flor em flor Anda a alma do poeta Sem ilusões nem amor. 31-1-1895. Correio Mercantil, edição de 17 de fevereiro de 1895.
DE PROFUNDIS (Ao Fausto de Almeida) Soltai tristes gorjeios, passaredos, Entoa um canto terno, oh filomena, Brisas da tarde, murmurai segredos Em torno do sepulcro branco dela! Rosas brancas – emblema da candura A campa perfumai de minha amada, Tornai em círios vossa luz tão pura Luzeiros lá da esfera constelada!
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Gemei, auras da noite, tristemente, Cai rocios matinais, da aurora, Sobre o seu túmulo como um pranto ardente.
Vai turba alada pelo espaço afora Soltar de dor uma canção plangente! E tu minha alma sofre, geme e chora! 6-2-1895. Correio Mercantil, edição de 24 de março de 1895.
UMA CAMISA DE NOIVADO (Ao Olympio Galvão) Eu vi tua camisa de noivado É tão fina e gentil, tão branca e leve Que se fazendo assim exame breve Não parece camisa, e sim punhado,
Caído lá do céu, de pura neve, (Do teu corpo formoso, imaculado De contorno suave e burilado,) Esse invólucro, que a gente não descreve!
Em vendo o talho... té eu me receio De contar-te, senti tão doce enleio Que sofrear não pude meus arrancos... E beijei, minha flor, oh não te ofendas, Esse ninho gentil de brancas vão se aninhar dois pombos brancos! 4-3-1895. Correio Mercantil, edição de 10 de março de 1895.
IDÍLIO À BEIRA-MAR (À celle qui j‟aime) A areia alvinitente Da praia vês, criança? 39
Oscula meigamente A vaga azul e mansa. Que eu vá beijar consente, A tua negra trança E atua boca olente... Eu sou qual vaga mansa!
O azúleo e o velho mar Oscula enamorada Em doce ciciar A brisa perfumada. Que eu vá também beijar Consente oh minha amada Teus olhos d‟encantar... Sou brisa perfumada!
Nas ondas se balança Um barco mui sereno. Consente pois, criança Qu‟embale-te, e num treno Eu cante oh pomba mansa
O seio teu moreno, E beije a tua trança, Cantando-te num treno! 30-3-1895. Correio Mercantil, edição de 07 de abril de 1895.
A MEU PAI Ao ver-te assim sofrendo tanto Porque o destino o quer iniquamente Os meus olhos inundam-se de pranto E o coração padece horrivelmente. 40
Indiferente e calmo no entretanto Tu suportas, oh pai, serenamente Resignado e triste como um santo Esse martírio longo e impertinente.
Ao ver-te assim tanto tempo enfermo, Teus gemidos de dor q‟não tem termo Formam-me n‟alma um lúgubre estribilho
E tu não sabes, pai, a cruciante Dor que preme e q‟mata nesse instante O coração ferido de teu filho! 14-3-1895. Correio Mercantil, edição de 05 de maio de 1895.
TOUJOURS À TOI Como a folha levada na corrente, Bando grácil das ilusões de outrora Assim fugiste! E eis deserto agora Meu coração apaixonado e ardente. Não voltas mais! E a minh‟alma chora A tua ausência, ó bando sorridente, Bando grácil que cedo foste embora Como a folha levada na corrente!
Quimeras, crenças, ilusões, sonhares Fugiram de meu peito! Só pesares Povoam esta minh‟alma tão dorida!
Vivo mui triste! Mas um anjo puro Consola-me e aponta-me o futuro! 41
E esse anjo és tu, ó mãe querida! 9-5-1895. Correio Mercantil, edição de 26 de maio de 1895.
ELA MORREU! (Num álbum) Pendei das aves, flores campesinas! Ó turba alada pelo espaço afora, Solta de dor uma canção sonora! Gemei, gemei, ó auras matutinas!
Chorai, saudosas fontes cristalinas Que refletistes o seu rosto outrora! Chorai comigo ela morreu agora Ó brisas sussurrentas das campinas!
Cai da noite orvalhos tristemente Banhai seu túmulo como um pranto ardente! Obumbra-te, ó aurora alvissareira!
Soai tristonhos, sinos da ermidinha! Chora comigo, ó natureza inteira Que não há dor que se compare à minha? 2-4-1895. Correio Mercantil, edição de 02 de junho de 1895.
NO BANHO (Ao Dr. João Gomes Ribeiro) Desponta o sol. Alegre catavina Entoa a passarada. A fresca brisa Sopra de leve e a superfície frisa Das águas da corrente cristalina.
Ei-la que chega, subtilmente pisa 42
A relva umedecida da campina. As roupas despe! Que mulher divina! Resta-lhe agora a trêmula camisa,
Olha em torno de si desconfiada... Na verdade ramaria e passarada Solta alegre terníssimos gorjeios!
Tira a camisa e nua inteiramente Mergulha... Sobre as águas da corrente Qual nenúfares boiam seus dois seios. 18-5-1895. Correio Mercantil, edição de 9 de junho de 1895.
CHORANDO E RINDO INTERMEZZO Vi-te chorando... e acredita Que assim de pranto banhada Tu ficaste, ó minha amada, Um pouquinho mais bonita!
Senti por ver-te sentida... E comovi-me bastante! Choravas naquele instante De tal modo entristecida!...
Mas ficaste tão formosa Assim chorando!... Me crês? Que desejo, flor mimosa, Ver-te chorando outra vez! 8-7-1895. Correio Mercantil, edição de 11 de julho de 1895.
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NOVIÇA Risonha e simples! Que candura! As faces tintas de rubor. Antes de entrar para clausura
Vai para os pés de um confessor; Cinge-lhe a tez mimosa e pura Da laranjeira a albente flor.
Oh! Dentro em pouco a trança loura Desta criança angelical, Ceifada pelo atroz tesouro Caíra no mármore claustral.
Aquela carne (oh! que suplício) Púbere branca ardente e bela, Será ferida do cilício Lá numa estreita e escura cela, Onde no horror do sacrifício Fanam-se os sonhos de donzela.
Então que luta esmagadora! Há de travar a sua Pureza, Contra essa carne pecadora Sedenta e em fúria louca acesa!
As belas rosas de seu rosto De pouco em pouco hão de murchar, E a sombra negra do desgosto Da cor do lenho alvo do altar Em breve tempo terá posto Aquelas faces de encantar! 44
O fino estofo do vestido (Ai que verdade bem cruel!) Então será substituído Pela estamenha de um burel!
E aquela flor toda candura Emurchecida pela dor, Em breve irá para a sepultura Fria, tristíssima, sem cor! Lhe engrinaldando a fronte pura Da laranjeira a albente flor! Gutemberg, edição de 28 de fevereiro de 1896.
SOB A VARANDA Abre a janela, senhora, De teu quarto e ouvir-me vem, Antes que os raios da aurora Despontem, branca cecém.
Por entre nuvens flutua Transparente, etério e leve, O disco argênteo da lua Como uma bola de neve!
Abrem-se flores no bosque... E os sons de minha mandora Penetram no teu quiosque, Mas não te acordam senhora!
E nada!... A tua janela De sombras negras se tinge, E é muda como uma estrela E imóvel como uma esfinge. 45
Debalde a tema volata Dos sons que arranco nervoso, Geme, soluça, arrebata!... E o quiosque é silencioso!
Cintilam na azúlea estância Brilhantes de mil facetas; Pelo ar anda a fragrância Dos Lírios e violetas.
E tu conservas fechada A gelosia!... Irrisão!... Acorda e vem, minha amada Ouvir-me a terna canção. Já desponta a Estrela d‟Alva E tu não vens meu amor; Sobre o leito a trevo e malva Perfumado, dormes, flor.
No firmamento a alvorada Sanguínea se desenrola Escondo a gusla afinada Por sob a capa espanhola.
Enterro lesto e apressado O desabado “sombréro” E sigo triste e calado Para meu quarto de solteiro. Fevereiro – 1896. Gutenberg, edição de 1o de março de 1896.
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CONSOLO (A Rocha Lins Filho) Mimosa flor que o vendaval da morte Desfolhou quando as pétalas abrias, Vendo-te morta, vendo que dormias Para sempre chorei!... Eu que sou forte.
Embora, mundo ignaro, tu terias De meu pranto, inda choro a triste sorte Daquela flor que um furibindo norte Levou do túmulo às regiões sombrias.
Mas no Pesar que a vida me consome Dum morto crudelíssimo, sem nome Tenho um consolo amargo e bem profundo...
Morreste ao alvorecer da adolescência Porém, tua grinalda de inocência Não manchou-se na lama deste mundo! 10-3-1896. Gutenberg, edição de 18 de março de 1896.
ANJO EXILADO Fitos nos céus os olhos contristados Como entrevendo uma Mansão querida! Esse Arcanjo de tez esmaecida Passa da Infância os descuidados.
Ao vê-la assim tão triste e retraída, Penso que tem, de dias já passados, Talvez, além dos páramos nublados, Uma saudade amarga e indefinida.
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E quem sabe se veio lá no Empíreo Esse tristonho e descorado lírio Em cujo olhar profunda a Dor se encerra?
E desceu exilado do Infinito Talvez por um angelical delito E expia agora a culpa cá na terra?!... 16-3-1896. Gutenberg, edição de 18 de março de 1896.
MORTA A SORRIR Morrera como morrem lírios, E rosas brancas em botão. Entrei na sala, ardiam círios, Em derredor de seu caixão.
Pálido avanço e a boca fria Da morta osculo com amor, E um sorriso inda entreabria Seus lábios gélidos, sem cor.
Tinha o palor de uma açucena, E a mudez calma de um astro, Assim tão pálida e serena, Era uma estátua de alabastro.
Vagava então mudo e absorto Em derredor de seu caixão, Beijando em pranto o corpo morto Dessa florinha inda em botão.
Sentindo-a fria, fria, fria, Era, Senhor, mui desgraçado, 48
Ai que saudade atroz premia Meu triste peito angustiado.
E para sempre adormecida, Ela antevia o Paraíso; Na linda boca esmaecida Pairava um cândido sorriso.
Dos olhos meus dorido pranto, Sobre o caixão lento rolava, Eu padecia tanto, tanto... E Ela sorrindo repousava!
Saí chorando, ardiam círios, Em derredor de seu caixão, Morrera como morrem lírios, E rosas brancas em botão.
Mas o seu cândido semblante Da cor do linho, pulcro e lindo, Sonhando vejo a todo instante, Gracioso e triste me sorrindo. Fevereiro – 1896. Gutenberg, edição de 25 de março de 1896.
CANTO DE AMOR A loura coma cetinosa Tem tão vivaz fulguração, Que me parece assim radiosa, Uma aromal constelação.
Tem brilho tal e estranho fluido Os negros olhos cintilantes, 49
Que às vezes penso, às vezes cuido, Serem dois raros diamantes.
O seu nariz lindo e afilado, De correção plástica e fina, Foi com certeza copiado De antiga estátua bizantina.
A fresca boca, a boca olente, Sempre a sorrir rúbida e álacre Espalha aroma no ambiente, E lembra a bela cor do lacre.
E quando mostras nas risadas Os dentes alvos de jasmim, Eu julgo ver pérolas guardadas Num fino escrínio de rubim.
Medida e branca, como o linho, Com os leves tons da cor da rosa, E tão macia, como o arminho, É sua pele perfumosa.
Os seios túrgidos, nevados, Tem forma tão preciosa e rara, Que eu os suponho então talhados, No branco mármore de Carrara.
Do todo enfim, dessa açucena, Casta e inocente se desprende, Não sei que graça tão serena, Que me arrebata e que me prende.
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E vive assim a alma opiada, Sempre a sonhar, nessa miragem, A ver em tudo retratada, A sua resplendente imagem.
De seu olhar o estranho fluido, Embriagou-me de tal modo, Que às vezes penso, ás vezes cuido, No meu enlevo que estou doido. 27-3-1896. Gutenberg, edição de 29 de março de 1896.
EXQUISE Louro sol duma embaixada, Nascestes às margens do Reno? Dize-me, ou foste embalada Pelas vagas do Tirreno?
Tu que tens na trança loura Como o fruto dos trigais Fulgurações de uma aurora E fragrâncias aromais.
Que tens o tipo correto, E és tão leve como as penas, Que tens o lume secreto No olhar das filhas de Atenas,
Que tens na pele tão alva A maciez dos arminhos, O olor do trevo e malva A calentura dos ninhos,
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Que tens a beleza estranha E as formas tão soberanas Das Valquírias da Alemha, Das Huris maometanas,
Tu que tens a galhardia De Vênus no altivo porte, Vieste do Meio-dia? Surgiste do frio do Norte?
Tu que tens no ar ródeo e fresco De santa o doce sossego, Possuis o sangue tudesco? Medraste no solo grego?
Louro sol duma embaixada Nascestes à margem do Reno? Dize – ou foste acalentada Pelas águas do Tirreno?... 6-4-1896. Gutenberg, edição de 7 de abril de 1896.
INVERNO (Ao Dr. Arthur Peixoto) Cobrem o céu nuvens pesadas, Que têm a cor triste do chumbo. Por sobre os campos as geadas Imitam pétalas espalhadas De um enormíssimo nelumbo.
Calou-se a brisa das florestas... Ai que dolência! Ai que tristeza! Emurcheceram lírios, giestas... E o sol das nuvens pelas frestas 52
Olha o torpor da natureza.
Inverno triste! Inverno frio!... Já lá se foi o alegre bando Das meigas aves com o estio, O céu lutuoso, o céu sombrio Com as asas curvas recortando.
Como esqueletos altaneiros Para amplidão negra e sem luz Erguem mil braços castanheiros, Por entre os densos nevoeiros... A neve cai dos galhos nus!
Inverno! Um frio intenso enorme Gela-me o corpo sem calor Narcotizado tudo dorme... A chuva cai pausada, e informe... Vem aquecer-me, oh meu amor! 9-4-1896. Gutenberg, edição de 11 de abril de 1896.
PASTÉIS I ÂNGELA Como uma flor que a frescura Perdeu, e aos poucos definha P‟ra treva da sepultura Essa criança caminha.
Nenhuma crença se aninha Jamais a esperança perdura No seio dessa avezinha Que outra estância procura. 53
Pelo espaço sem descanso Seu olhar tristonho, manso Adeja casto e sem véu. Tal como um‟ave perdida Que procurasse guarida Pelos côncavos do céu. Gutenberg, edição de 14 de junho de 1896.
II CACILDA Quando o Dia se levanta Do leito purpúreo e áureo Já ela lidando canta Alegre como um canário.
Depois se envolve na manta Se frio faz e o Diário Vem ler... (parece uma santa Fugida dum santuário).
Logo em seguida a janela Formosa como uma estrela Enche de graça e alegria.
E risonha como a aurora Ao ver-me estremece e cora, E diz sorrindo: Bom dia! Gutenberg, edição de 16 de junho de 1896.
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III GELSA Loura, pálida e franzina Como uma ogra chinesa Cintura delgada e fina, Pequenos pés de princesa.
Olhar que fulge e fascina E toda gente traz presa, Boca olente e purpurina Como uma flor da devesa.
Tem tal encanto e tal graça Que quando ligeira passa Pelos rapazes correndo,
Exclama o bando amoroso Ao ver-lhe o rosto mimoso: É o Sol que vem nascendo! Gutenberg, edição de 17 de junho de 1896.
IV CLARICE Não sei que vaga esperança, Ou que acerba incerteza, Há no sorrir que me lança Essa magoada beleza
Em cujo olhar a tristeza De nostálgica lembrança, Descobre-me a profundeza Da mágoa dessa criança. 55
Às vezes, fitando-a, penso, Ao vê-la ensopar o lenço No seu olhar cismador,
No seu indefinível martírio, Que faz prender esse lírio, Que faz murchar essa flor! Gutenberg, edição de 18 de junho de 1896.
V SILVA Olhos vivos e graciosos Rosto de fadas das lendas Colo cetíneo e formoso Como emergindo das rendas
Escrínio de raras prendas O seu todo vaporoso Causa no bando cioso Dos rapazes as contendas.
Qual de sol um áureo rastro Pelo dorso de alabastro A cabeleira então desce...
E tem tal graça e é tão bela Que a gente diz logo ao vê-la Co‟uma serafim se parece. Gutenberg, edição de 19 de junho de 1896.
VI VALENTINA Viva, corada e morena, 56
Talhe gracioso e correto, Na boca rubra e pequena Brinca-lhe um riso discreto.
Que luz cândida e serena, Quanta promessa de afeto Dos olhos dessa falena Não sai no lume secreto.
É tão bela e tão mimosa Essa florinha odorosa Da cor trigueira do jambo,
Que descrever só se pode Em uma sáfica ode Ou num terno ditirambo! Gutenberg, edição de 21 de junho de 1896.
VII ÁUREA Uma engenhosa mistura De pétalas de lírio e rosa, Talvez não desse a tintura De sua cútis mimosa.
Para pintar a formosa Boca de olente frescura, É preciso a preciosa Cor da púrpura a mais pura!
As formas são tão corretas Como as das Vênus eretas 57
Nos velhos templos de roma...
E vão-se risos e falas De todos, quando nas salas Seu vulto garboso assoma! Gutenberg, edição de 24 de junho de 1896.
VIII ALBA Gentil, airosa, engraçada, Olhos negros matadores A pele alva e rosada Tem a fragrância das flores.
******* basta e aloirada *********************. A boca fresca e encarnada É um primor dos primores.
Mãos macias, pequeninas, Formosas e alabastrinas, Porte correto e distinto...
Seu todo beleza entorna E a cabeça nos transforma Como as vinhas de Corinto. Gutenberg, edição de 04 de julho de 1896. (*) Infelizmente, a traça comeu esses versos.
SOBRE AS VAGAS (BARCAROLA) A brisa beija de leve 58
A glauca face do mar!... Vendo o teu rosto de neve Como é doce o navegar!...
De vento a vela enfunada Arrasta o barco ligeiro. Eu não receio a cortada Nem o rugir do papeiro!
Pouco importa os temporais A cerração, os escolhos, Mostram os rumos os fanais Feitos da luz dos teus olhos.
Corramos ao tom da aragem O céu nos serve de abrigo, Abraçada a tua imagem Não me intimida o perigo!
Repousa a loura cabeça Donzela sobre o meu braço, E dorme até que apareça Alva sorrindo no espaço.
Se não quiseres despreende A tua voz de encantar Que ela a flores rescende Para o Oceano perfumar.
O vento no mastro geme Amor não tenhas receio Enquanto eu governo o leme Vem dormir sobre o meu seio. 59
Dorme donzela formosa Que não temo o temporal, Possuindo a luz radiosa De teus olhos por fanal. Novembro de 1896. Gutenberg, edição de 08 de novembro de 1896.
A TI Quando o anjo da tarde estende as asas E abriga o sol que no poente morre Do crepúsculo fugaz por entre as gazas E geme o sino a bimbalhar na torre.
Quando descem sonâmbulas tristezas Como suave unção do casto Empíreo, Quando as flores se abrem nas devesas E a aragem o perfume haure do lírio.
Quando surge no céu Vésper sorrindo E as almas a cismar quedam absortas E sobre a natureza paira o infindo Silêncio sepulcral das coisas mortas,
Nos êxtases febris dessa neurose Eu volvo a ti o meu olhar cansado E contemplo à luz de uma apoteose De candura, o teu vulto iluminado. 19-11-1896. Gutenberg, edição de 22 de novembro de 1896.
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A DÁDIVA DO PAJEM (Num álbum) Alzira a loira castelã do Reno, De boca rubra e olhos feiticeiros, De quem outrora um gracioso aceno Mandava à liça muitos cavaleiros;
Diz a legenda: precioso manto Para um torneio desejara um dia, De púrpuras e gemas que brilhassem tanto Como do Céu a acesa pedraria.
Logo se move a apaixonada onda Dos cavaleiros num ardor crescente Raros diamantes traz-lhe de Golconda, Mais que um tesouro de Pachá do Oriente.
Apronta o manto a castelã, mas nota, Que da ramagem que o recama a um canto Falta uma pedra... logo se alvorota A turba e... a pedra não se achou p‟ra o manto.
Alzira chora de pensar e um pajem Vendo-a chorar por estranha cousa De sua gorra para tal ramagem Um diamante oferecer-lhe ousa.
No manto a gema pelo pajem dada Não tem o brilho que vivaz ressalta Da pedraria por ali pregada... É feia, é pobre, mas preenche a falta.
Assim neste álbum que é do manto a imagem 61
Onde há luzeiros fúlgidos dispersos, Como o diamante do obscuro pajem, Gentil Senhora, são meus pobres versos. Janeiro – 1897. Gutenberg, edição de 13 de janeiro de 1897.
BARCAROLA (Ao maestro Joaquim Antônio) Sobre este mar de esmeralda Como é lindo e vasto o Céu; Marujo, as velas desfralda E manso o mar de esmeralda Não te arrefecei o escarcéu. Nosso barco Se desliza Devagar Impelido Pela brisa Sobre o mar; Mãos ao leme marinheiro Não temas o temporal, Aqui não ruge o pampeiro, Mãos ao leme marinheiro, Não é preciso fanal. Nosso barco, etc. A face calma do oceano Muito de manso se agita, Não tem o furor vesano, Hoje a face do oceano, É qual seio que palpita. Nosso barco, etc. 62
Em busca de estranha terra Nosso batel, minha flor, Sobre as águas calmas erra, Em busca de estranha terra, O belo País do Amor! Nosso barco, etc. Colhe as velas, marinheiro, Contrário vento não quis Que o nosso barco ligeiro Aportasse, marinheiro, Do amor no belo País!
Nosso barco, etc. Janeiro – 1897. Gutenberg, edição de 16 de janeiro de 1897.
DO CÉU
Quando liberta da prisão terrena Onde jungida à força da matéria Está minh‟alma, p‟ra amplidão serena Fugir da vida – ciclo de miséria.
Não te lacere o coração a pena De ver-me entregue à placidez funérea Da adolescência na estação amena Que a saudade tristemente vaga.
Que entre os luzeiros da Alvacenta Trilha Na luz de um astro que fugace brilha Verás minh‟alma que teu vulto afaga. 31-1-97. Gutenberg, edição de 4 de fevereiro de 1897.
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LINGUAGEM DOS OLHOS Dizem teus olhos tão estranhas cousas Se de relance fitam-se em meus olhos, Que na tu‟alma cândida e sem folhos Leio o segredo que dizer não ousas!
Como através das rumorosas vagas De pérola a concha o pescador descobre, Descubro tudo o que tu‟alma encobre Quando com eles o meu rosto afagas.
E tu querida talvez me compreendas Do mesmo modo que eu te compreendo. Se por teus olhos teu amor desvendo Também nos meus tua paixão desvendas.
E sem que o mundo tenha disto alcance Nessa linguagem confessamos tudo Se teus olhos de arminho e de veludo Nos meus olhos se fitam de relance! Fevereiro – 1897. Gutenberg, edição de 21 de fevereiro de 1897.
CONFITEOR Como d‟aurora a lágrima calda Dá vida à flor que sol emurchecera, Angelical criança, O teu amor deu vida À morta flor de minha primavera. Mensageiro da esperança, O teu olhar fagueiro 64
Nas trevas de minh‟alma claro abrindo, Foi um raio de sol que entrou sorrindo Na cela onde gemia um prisioneiro. De meu passado a lutuosa história Perdeu-se na ventura Dessa afeição ingenuamente pura, Que dela nem memória Conservo, para um dia relatar-te... Mas... para que contar-te?! Talvez que estando a par da história triste De meus primeiros anos Um misto de traições e desenganos, De pranto se banhasse Como se orvalho a flor, a tua face, E ao ver-te chorar, quem é que resiste.
Não escutes querida De lábios maus perversos De meu passado a lenda enegrecida. Mas escuta indulgente O que confesso nestes pobres versos Onde frases de amor meigo derramo... E digo-te somente: Que te adoro, mulher, sim que te amo! 4-3-1897. Gutenberg, edição de 6 de março de 1897.
O MAR, O VENTO E EU Eu perguntei ao Mar porque bramia tanto E o glauco dorso erguia em rábido escarcéu; Quero beijar o Céu, me disse o Mar em pranto, Mas debalde, poeta, eu nunca chego ao Céu; 65
Ao Vento perguntei na célere corrida: Por que tu vais assim às ondas encrespar? Porque não posso, vês? na cérula guarida Do seio do Oceano, um dia penetrar!
Então compreendi o íntimo motivo Que faz meu coração há tanto padecer... Amo-te muito flor, por ti somente vivo, Mas, esta confissão não posso te fazer! 19-3-1897. Gutenberg, edição de 20 de março de 1897.
ARTEMÍZIA (Ao Alfredo Goulart) N‟asa de um sonho, vaporoso e leve Alou-se o Anjo às regiões serenas. Tal como um‟ave que agitando as penas Suspende o voo e deixa a terra em breve.
Foi curta a vida, mas a flor não dura Senão um dia; Ela era flor, morreu!... Flor graciosa, angelical e pura Desfez-se em aromas e subiu ao Ceu!
Do Céu, um dia, adormecida veio Ao mundo ignara onde viveu sonhando, Um Serafim a despertou e meio Desperta ainda ao Céu voltou voando!
E, tu, sorrindo recebeste o Arcanjo E, após chorando viste-o voar... A terra, amigo, não se fez pr‟a um Anjo. 66
Tem muito lodo, pode o macular!...
Portanto o meigo Querubim num raio De luz, alou-se para o azul do Empíreo, Levou-o a brisa das manhãs de Maio, Murchou ao sol que também murcha o lírio.
Deixou-te e foi-se!... Essa cruel saudade Suporta calmo!... Quem n‟o quis foi Deus... São bem felizes os que nessa idade Deixam a terra pr‟a morar nos Céus! Recife, 18 de maio de 1897. Gutenberg, edição de 22 de março de 1897.
SE O SOL FALTASSE Do cálice prendera a flor mimosa, No bosque a passarada se calara, Em treva densa o mundo se abismara, Se faltasse o sol a luz radiosa.
Porém, se o sol faltasse, Tendo-te ao pé de mim, eu não temera Do caos profundo os ásperos escolhos, Porque, oh minha amada, Teria em tua voz – a passarada, Em tua boca rubra – a primavera, E a luz de um novo sol nesses teus olhos! 27-3-1897. Gutenberg, edição de 28 de março de 1897.
A UM AMOR PERFEITO Flor, que trouxeste a lirial essência 67
Suave e pura de seu casto seio, Um poema de amor e de inocência, Em ti, sonhando, apaixonado leio.
Em cada pétala encontro: uma lembrança Uma jura de amor, um doce afago; Uma ilusão, um sonho, uma esperança, De beijo um ruído sonoro e vago;
Uma canção de pássaros num ninho, A terna ressonância de um desejo, A querida meiguice de um carinho, Duma quimera azul, um leve adejo;
A vontade e o tímido receio De confessar uma afeção tão pura, Uma pausa num trínulo gorjeio Duma estrofe de afeto e de candura;
Uma lágrima remissa e um rir desfeito Incerteza talvez, talvez temor, Sonhando leio em ti, amor perfeito, Que tens a essência de su‟alma em flor! 27-3-1897. Gutenberg, edição de 04 de abril de 1897.
LIÇÃO DE ANATOMIA (A José de Sá Peixoto) Bem complicado é o coração... e rindo; Ela mostrou-me a estampa de um tratado, E eu confirmei de novo o livro abrindo, É com efeito muito complicado. 68
Se não fora enfadar-te, eu pediria Que tu me desses uma explicação, Vou dar-te uma lição de anatomia, Como me dita o próprio coração: O órgão onde reside o sentimento, Em quatro partes se divide, flor. Em duas, moram o Ódio e o Esquecimento, Numa outra a Alegria, e noutra a Dor... Porém, interrompeu-me em tom profundo, Onde habita o amor? – Segredo! Arcano! Eu respondi, talvez deixasse o mundo E para sempre o coração humano! 12-4-1897. Gutenberg, edição de 14 de abril de 1897.
SAUDADE Quando o estio voltar e a fria bruma Que enevoa o horizonte na invernia Fugir à luz do sol que se irradia, E na bonança o mar jaspee a estpuma.
Quando a rósea manhã, uma por uma As flores, entreabrir e um claro dia Tornar azul do céu, a cor sombria, E a natureza despertar em suma.
Tudo há de sorrir, tudo, querida, O céu, a terra e o mar, e só, sentida, Minh‟alma há de chorar na soledade...
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E tudo gozará da luz imensa Do sol, porém, eu só na treva densa, Ausente carpirei minha saudade! 1-5-1897. Gutenberg, edição de 2 de maio de 1897.
ÚLTIMA OFERTA Tu, que guardas no seio os sons dispersos De minha lira, e num pequeno cofre Desta min‟alma que te ama e sofre Toda legenda debuxada em versos;
Guarda mais estes que partindo escrevo Pensando em ti co‟os olhos cheios d‟água, Guarda, são filhos de infinita mágoa, Desta saudade que te deixo e levo.
Guarda-os; se um dia num cruel momento De meu amor descrente duvidares, Despeitada, não lances pelos mares O teu cioso e errante pensmenot;
Tira-os do cofre, lê, e os aproxima Depois a esse teu peito duvidoso, Que sentirás pulsar firme e saudoso Por ti meu coração em cada rima. Maio – 1897. Gutenberg, edição de 5 de maio de 1897.
À MEMÓRIA DE FAUSTO DE BARROS Alma d‟elite, desprendida apenas Foste da vida – torturante laço 70
Que te prendia às regiões terrenas, Voaste logo demandando o espaço.
Aqui deixa-te uma saudade infinda De pranto envolta em cristalino véu, Fugiste à vida, em primavera ainda, Porque a pátria do poeta é o céu. 6-5-1897. Gutenberg, edição de 7 de maio de 1897.
LÁGRIMAS SANTAS Pedi a Deus que transformasse em pérolas As lágrimas que choras; Não sei se Deus me ouviu, mas julguei vê-las Ontem pensando em ti nas plagas cérulas Cristalizadas num colar de estrelas! Por que razão teria. Em astros tuas lágrimas tornado, E não em pérolas o bondoso Deus? A pérola é da terra, e do pecado O preço vil talvez que fosse um dia, A lágrima é dos céus e são tão puras As tuas, que o Bom Pai das criaturas Cristalizou-as p‟ra adornar os céus! 8-5-1897. Gutenberg, edição de 9 de maio de 1897.
ÀS AURAS Aceita, querida, a singelez destas rimas obscuras como um dorido preito de minha acerba saudade. Oh auras rumorosas, Que hauris todo o perfume 71
Dos cálices das rosas, Levai o meu queixume De coração ferido À concha nacarada Do deloicado ouvido De minha casta amada. Contai toda a tristeza, Em que vivendo vou Dizei que à sua, presa Minh‟alma lá ficou! Falta-me a luz, estou cego, Aqui tateio em vão. Em nada tenho apego, Tudo é escuridão! Foi-se-me a luz dos olhos, E como divisar A trilhar nos escolhos Sem ter o teu olhar?! Dizei que, a flor do riso Não desabrocha em mim, Perdi meu paraíso Porque deixei-a e vim... E vim expatriado A sorte me mandou, Mas unto ao bem amado Meu coração ficou!... Transponde a imensidade, É hora; no jardim Talvez que uma saudade Colha pensando em mim; Talvez que role a esmo, Por sua branca face Gota de orvalho mesmo, 72
Ou lágrima fugace. Gota de orvalho ou pranto, Eu não vos sei dizer, Não se decifra o encanto De uns olhos de mulher!... Porém, ela tão meiga!... (Eu sei que nada valho...) Mas vê se a flor na veiga Prendida ao rude galho! Ouvi-me: se a encontrardes Cismando a sós consigo Por uma dessas tardes Fareis como eu vos digo: Entrai devagarinho E num soprar travesso Conta-lhe bem baixinho As mágoas que padeço! Recife – 17-5-1897. Gutenberg, edição de 20 de junho de 1897.
O TEU RETRATO Como não tenho o teu retrato, amada, Imaginei fazê-lo. Tenho no pensamento a todo instante Os meigos traços de teu rosto belo... Mas, onde achar a tela apropriada?
Seria extravagante Que, eu, louco, traçasse Numa tela comum em que os pintores De toda a espécie, rostos fantasiam O debuxo grácil de tua face! 73
Demais, as minhas mãos profanariam A tua candidez, irmã das flores, Mas onde achar a tela que procuro?
Acode-me à lembrança O mar, o verde mar cor da esperança... Porém, ele se move tanto, tanto!... Que não se pode dar um traço exato. E só no céu, no céu de azul tão puro Que do alto nos sorrir cheio de encanto Eu poderei pintar o teu retrato.
Quero agora um pincel nunca tocado De mãos profanas de algum ser humano, E para ver meu sonho realizado Do astro soberano, Do sol hei de roubar um raio d‟oiro, Um raio resplendente, Para pintar na tela transcendente Do céu, o teu retrato, meu tesouro. Falta-me ainda tintas, Tintas bizarras de diversas cores Para pintar tuas feições distintas, Oh minha terna amada, Irei de campo afora, Buscá-las sobre as pétalas das flores Perfumosas e belas E pedirei às fúlgidas estrelas De luz suave um grandioso jato. Depois pondo isto no crisol d‟aurora, Sem proporções iguais, sem lei, sem contos, Terei as tintas prontas Para pintar, querida, o teu retrato. 74
Gutenberg, edição de 06 de julho de 1897.
CANÇÃO Quando parti reinava o inverno... Tudo era triste escuro e frio; Mas o teu peito ingênuo e terno Não era frio como o inverno, Tinha o calor meigo do estio...
Torno ao meu lar. Flórido e belo Dormia o estio e o sempiterno Amor que fora o meu anelo Encontro frio com o gelo... No coração tu tens o inverno!...
Quando a distância me ausentava Do lar. Rompendo a deusa bruma O amor, de ti me aproximava; De mel as gotas prelibava Dessa paixão, uma por uma!...
De ti estou perto. A asa de um corvo A indiferença – a escuridão Louca entre nós, e agora torvo Triste em silencio aos poucos sorvo O amargo fel da Ingratidão! 17-10-1897. Gutenberg, edição de 18 de dezembro de 1897.
INTERPELANDO... Filhas do céu, estrelas silenciosas, 75
Que lúcidas fulgis na azúlea esfera, E vós, flores do campo, perfumosas, Casto adorno da meiga primavera,
Dizei, dizei porque se mostra esquiva A vossa Irmã, a quem minh‟alma adora E que de livre então fez-se cativa De tão formosa e lirial senhora...
Dizei, dizei porque astros e flores, Belas irmãs de minha casta amada, Vai findar a estação de meus amores E eu vim achá-la assim fria e mudada!
Não vos caleis, discretas confidentes Vós que ouvis toda à noite, a sua queixa, Dizei, dessas paragens transcendentes, Por que ela me evita e a sós me deixa?
E vós flores gentis, almas do prado, Que ungis os seus cabelos de perfume, Não me oculteis o já envenenado Seu terno coração – raiva ou ciúme? ................................................................. E nada me revelam. No abandono De minha dor, minh‟alma desespera, Meu pobre amor não chegará ao outono, Há de murchar em plena primavera!... Campo Verde – 22-12-1897. Gutenberg, edição de 25 de dezembro de 1897.
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O SEGREDO DO PÁRIA Disse um nababo a um pária: vem me ensina De teus cantares o segredo e em paga Terás tudo o que est‟alma peregrina Deseja e em sonhos carinhosa afaga;
Desde a pérola rara do Indochina Até de Ceilão a preciosa baga Dar-te-ei se me disseres, que divina Música é essa que teus cantos vaga...
Fita o pária o nababo e após responde: De que serve, senhor, dizer donde Ela me vem, se não podeis possuí-la?!... Mas insiste o senhor – dize t‟ordeno. Sorrindo o pária volve o olhar sereno Para a estância do céu vasta e tranquila... Ribeiro – 1897. Gutenberg, edição de 12 de janeiro de 1898.
AVE MARIA! Dizem que sou ateu, no entanto o céu procuro Se estás longe de mim, enlevo de meus olhos!... Oh guardadora luz que, fulges-me, no escuro Da vida – ira do mar de ríspidos escolhos.
Dizem... mentira! Eu creio em deus e no futuro Quando por teus olhares leio nos refolhos De tu‟alma este afeto imenso, ardente e puro Que da espinhosa trilha encobre-me os abrolhos. 77
Porém nada os convence; e para a estulta gente Eu sou, como tu vês, um bárbaro descrente, Um ser objeto e vil que mancha a luz do dia.
E assim como me julgam sorrindo às ameaças E impropérios, oh flor, contrito, quando passas Bela, meiga e ideal murmuro: Ave Maria! Janeiro – 1898. Gutenberg, edição de 25 de janeiro de 1898.
VEM! Por que tardas assim, meiga senhora, Noiva adorada que minh‟alma espera? Vem, que de novo a casta primavera O nosso ninho solitário enflora...
Verde e garrida se emaranha a hera Em derredor de nosso ninho e fora Pela campina onde a verdura impera Há o mesmo encanto festival d‟outrora.
Vem... Inda há pouco sobre um flóreo ramo Um colibri pousou e a seu reclamo Um outro veio ali pousar também...
Que veja tenho do casal amigo! Vem, doce amada, o nosso ninho antigo Para o noivado nos espera... vem!... Janeiro – 1898. Gutenberg, edição de 27 de janeiro de 1898.
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FLORES FANADAS Vivo para rir só – aquela flor me disse, Bem deves te lembrar, aquele amor perfeito, Que foi de nosso afeto o tímido penhor... Senti-me tão feliz, tal como se em meu peito A flor de uma ilusão as pétalas abrisse Aos ósculos do amor.
Parti tempo depois, e tu quase chorando Bem junto ao coração tristonha e carinhosa, Talvez pensando em mim, talvez, na imensidade Daquela grande dor, da mágoa tenebrosa, Que o peito me ralou por te deixar, pensando, Puseste uma saudade!...
Voltei... Nunca voltasse do áspero degredo Dessa terra sem sol, desse país de dores Onde vivi sem ti, acabrunhado e só... Porque... (guarda contigo oh alma o teu segredo) Porque talvez não visse aquelas tristes flores Reduzidas a pó!... Gutenberg, edição de 15 de fevereiro de 1898.
O VENCIDO Contemplativo e só de um rochedo nevoento, Na grina está Satã e sombrio e iracundo, Como que ruminando o mesmo pensamento Fita de quando em quando a vastidão do Mundo; Ali, diz ele, outrora havia um caos profundo Que ao “fiat” de Jeová tornou-se num momento 79
Paraíso terreal ou antro ascoso e imundo De miséria e paixões, de tédio e sofrimento!...
Nisto nos olhos maus do tentador de Eva, Como um raio de luz que rasga um véu de treva, Da lágrima refulge o orvalho dolorido...
E o antigo Anjo Revel tomado de piedade Tristemente exclamou: Decerto humanidade, Serias mais feliz se eu tivesse vencido!... 1897. Gutenberg, edição de 11 de março de 1898.
CONFIA E ESPERA Tudo conspira, minha doce amiga, Contra nossa afeição. Tudo conspira: O despeito, a calúnia, a vil mentira A torpe inveja e a venenosa intriga...
Querem por força separar-nos, quando „Stamos unidos para vida e morte... Néscios! Ignoram o quanto é grande e forte O amor que vive nos alimentando!...
Escarnecem de mim e a cada passo Tentaram-me rebaixar... Tudo perdoo. Vermes não podem me seguir no voo!... Ao verme o lodo, para a águia o espaço!...
Os teus ouvidos fecha. Escuta apenas! O que escutam sempre os meus ouvidos: Canções que entoam corações unidos, Pipilos de aves e ruflar de penas!... 80
Despreza o rouco crocitar dos corvos Como eu desprezo, lirial criança. Vive de amor, e as auras da Esperança Haure como eu em prolongados sorvos!...
Toda essa ideia de perfídia afasta De tua mente. Amo-te muito flor!... Que importa o mundo?... Nesse grande amor A nossa vida se resume e, ...basta!...
Se a tempestade me surpreende agora E se o horizonte se me torna escuro... Eu lutarei. Pertence-me o futuro. Depois da noite resplandece a aurora.
Brame a calúnia, se esbraveje a inveja!... Confia e espera encorajada e forte. Adeus! Eterno como a própria morte! O nosso afeto ilimitado, seja!... Abril – 1898. Gutenberg, edição de 15 de abril de 1898.
ESTRELAS Os olhos fitos na estrelada esfera Onde fulgura o rútilo cardume Densos, de quem o imperecível lume Dentro em meu coração se reverbera...
Fito-as com tanto amor e olho-as com ciúme. Os olhos, lembram pois, da que me espera; E sinto ao vê-las (não sentir pudera?...) 81
Minh‟alma desfazer-se num queixume...
Todas conheço e todas mais ou menos Desde a mais baça a lucilante Vênus Pensam que algumas destas me enamora...
Pobre estrelas! Vejo tão-somente No seu fulgor o olhar claro e inocente Da que distante em mim pensando chora! Recife – Abril – 1898. Gutenberg, edição de 16 de junho de 1898.
SONHO Sonhei: íamos ambos percorrendo Uma estrada de anêmonas e rosas... De amor dizias, frases deliciosas Eu, palavras de amor, ia dizendo...
Depois turvou-se o céu, caliginosas Nuvens foram o azul enegrecendo... As minhas mãos nas tuas mãos nervosas Tremeste, toda pálida, tremendo...
Anêmonas e rosas desfolhava A ventania rumorosa e brava... E tu medrosa, assim, eras mais linda!
Veio de novo o sol clareando a estrada, Tu te quedaste, trêmula e calada, Mas em frases de amor dizia ainda!... Maceió – Junho. Gutenberg, edição de 21 de junho de 1898.
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CREPUSCULAR Julgo ver através do imaginário prisma Da saudade Maria, o teu perfil de santa, Na hora do por do sol, quando minh‟alma cisma Neste obstáculo – o Mar, que entre dois se levanta...
Nimbada pela luz bruxuleante e indecisa Desses dias hiemais, num ocaso tristonho, Tua imagem querida o meu olhar divisa: Vaga, aérea, etérea, entre névoas de sonho!
Tudo esqueço em redor... Sonorosa me embala Uma música estranha, em harmonia vaga... Naqueles sonhos, Maria, - a tua voz me fala... Na luz do sol que morre – o teu olhar me afaga...
Na tela azul do sonho, dilui-se em luz e bruma Do expirar do sol, na frouxa claridade, O teu vulto, Maria!... Amarga se avoluma Em meus olhos febris a onda da saudade!...
Sob denso negror a torva noite desce Escondendo na treva o teu perfil ameno... Não sei porque meu rosto agora se umedece!... De lágrimas talvez ou gotas de sereno!... Recife. Gutenberg, edição de 6 de julho de 1898.
CONFISSÃO DE AMOR A loura filha de Albion, a inglesa, De olhar azul que lânguido se move 83
Se nas garras do amor sente-se presa, Calma e serena balbucia: I love.
A alma da moda, a fina flor de França, Que de Cupido os dardos já não teme, Se algum acaso o brando peito alcança Exclama rindo e galhofando: J‟aime.
A pensativa e branca flor do Reno Deixa que a alma desse amor se ilibe, Porém se prova de subtil veneno, Diz num suspiro febril: Ich liebe.
A italiana pálida e formosa, De voz tão doce como o gaturano, Quando do amor a essência perigosa Cai-lhe no peito, ela murmura: Lo amo.
A bela filha do país do Cid, Flor de LA GRACIA, diva do SOLERO, Que tem no olhar as noites de Madrid, Se sente amor, confessa altiva: Yo quiero.
E a brasileira, a trêfega morena, Cuja beleza no arrabil proclamo, Entre as primeiras; cândida e serena, Cora, estremece e diz confusa: Eu amo. 84
Gutenberg, edição de 15 de outubro de 1898.
SEMPER EADEM Cheia de graça e de beleza cheia, No cortejo floral da primavera Voltou ingênua e boa tal qual era Quando partindo em lágrimas deixei-a.
Nada mudou, em nada o tempo altera O gesto, o modo e o rosto onde pompeia A candura do olhar que se arreceia De crestar-me na luz que reverbera!... Sempre a mesma de sempre – a que sonhava, Da saudade tragando a amarga bava Lá no exílio minh‟Alma torturada...
E vendo-a assim de novo me parece Que dentro em mim desponta e resplandece Uma risonha e rúbida alvorada!... Maceió. Gutenberg, edição de 17 de dezembro de 1898.
A TRAÇA (A Fileto Marques) Era uma história de amor, um poeirento alfarrábio, Narrativa pueril, simples, comovedora Que deixava, a quem lesse, um dúlcido ressabio, E enternecera o olhar a muita gente outrora...
Passara de uma alcova à trapeira de um sábio Onde a um canto dormia, essa lenda que fora 85
Beijada, a mais não ser assim, por tanto lábio, Relida tanta vez por virgem sonhadora!
Mofento e velho e sujo, em sórdido recanto, Duma mansarda vil jaz, agora, o que o pranto A tantos arrancou, minado pela traça...
Também o coração é um livro esquecido Que uma história contém, e desfaz-se corroído Pela traça minaz – esse tempo que passa!.. Maceió. Gutenberg, ediç~~ao de 16 de março de 1899.
ESTROFES (A Maria) Desse risonho e flóreo paraíso Onde a liana em flor touca de flores As verdes frondes, e esse teu sorriso Sonorizava os mais subtis olores;
Dele, onde canta a murmura cascata E geme o bambual que o vento agita; Onde modula o sabiá da mata Dentre as suas canções a mais bonita,
Hoje tu falas, comovida quase, À minha dor, à minha soledade, E eu pressinto através de tua frase, O travo da amarugem da saudade...
Lembras, longe de mim, de olhos em pranto, Como longe de ti em pranto lembro O céu de ouro e de azul e o doce encanto 86
Dessas manhãs festivas de dezembro!
Íamos de campo afora perscrutando As aves e os insetos zarolhantes... Os teus olhos os meus iluminando Nesse enlevo tão próprio dos amantes!
Do alto sorria o claro céu lavado Dando mais vida a viride paisagem, E o sol doido por ti e enamorado De ouro e de luz nimbava a tua imagem!
Suprema a graça de teu porte! Linda A mais não ser as flores enciumavas... Ninguém jamais pode excedê-la ainda! Diziam todas quando tu passavas.
E enquanto eu murmurava-te uns segredos, E dos meus versos os que mais preferes, Desfolhavas sorrindo entre os teus dedos Os estemas dos loiros malmequeres...
E quando de fitar-te o sol ardente Mais amoroso redobrava a chama, Voltávamos a casa lentamente Nesse feliz descuido de quem ama!
Vinhas tão bela assim, meiga criança, Incendidas as faces cetinosas Trazendo ao colo virginal e à trança Uns molhos frescos de jasmins e rosas,
Que venturoso por sentir-te minha, 87
De carícias contendo a alma repleta Ombro a ombro feliz cantando vinha Num assomo de criança ou de poeta!
Hoje longe de mim lembras em pranto, Como longe de ti em pranto lembro O céu de ouro e de azul e o doce encanto Dessas manhãs festivas de dezembro!
Dezembro vem... E esta felicidade Voltará pela gárrula estação! Ai como dói esta cruel saudade... Mas como é boa esta recordação!... Recife – 1900. Gutenberg, edição de 07 de fevereiro de 1901.
LIEDS I Sob os palores dos luares vagos Do recesso das ondas azuladas Do seio fundo e gélido dos lagos Surge um bando de fadas...
E quando passa um notívago esuivo A ronda louca das gentis Ondinas, Rouxinolando belas catavinas, Nas águas prende o mísero cativo.
Ai de mim, venturoso vagabundo! Preso fiquei dos cantos sonorosos Das Ondinas que moram lá no fundo De teus olhos – dois lagos luminosos! 1901.
88
Gutenberg, edição de 08 de março de 1901.
II Houv num rei antigamente Que alcaçares e riquezas, O leito de mil princesas E o reino renunciou, Pelo afeto casto e ardente De uma zagala formosa, Que após de lhe ser esposa Senhora se lhe tornou! Como não tenho alcaçares, Reino, palácios, riquezas, E o leito de mil princesas Formosas como luar, Por teu amor, sem pesares, Entreguei-me a ti, a esmo, Renunciei de mim mesmo, Para escravo me tornar. 1901. Gutenberg, edição de 09 de março de 1901.
III Flora passava à boca rubicunda Trazendo um riso... mas às nacaradas Camélias um falar de morte inunda, E da inveja ficaram descoradas!
Ai! se as puníceas rosas, Que sorridente dos hastes arrancas, Fossem como as tais flores invejosas, 89
Há quanto tempo não seriam brancas?... 1901. Gutenberg, edição de 10 de março de 1901.
IV Contam que Orfeu se foi à atra morada Eurídice buscar lavrado em pranto... Ai! Muito pode o encanto Que vem dos olhos da pessoa amada!
Quantas vezes em pranto vou buscar-te, Nos momentos de negra solidão, Nessa sombria e tenebrosa parte A atra morada de meu Coração! 1901. Gutenberg, edição de 12 de março de 1901.
V Iavé plantava a sementeira d‟ouro As estrelas... O Céu resplandecia Como num peplo real brilha um tesouro Da mais rara e mais fina pedraria.
Tu fitavas o Céu estrelejado, Eu te fitava rindo com ternura... Mais belo era teu rosto iluminado, Pelo brilho da própria formosura 1901. Gutenberg, edição de 13 de março de 1901.
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SUPREMA VERITAS Poeta, no Belo inspiração procura, Na firmeza da plástica te inspira; Modela o Sonho pela Forma e tira Da linha a sua fina contextura.
Adora Vênus calipigia nua Na brancura do mármore de Paros, E as raras formas e os contornos raros Em que a beleza feminina estua. Nada rebusques fora da verdade Numa trama intrincada e nebulosa; Vaza o teu verso pela majestade
Soberana da Forma vitoriosa... Nada de sombras, tudo claro e forte E intenso como a luz meridiana... Nada fora do Belo te transporte: Tudo reside na beleza humana!
Firme tenhas a mão e o molde justo Pela d‟rte imortal, una e perfeita, Essa que Apolo atlético e robusto Na neurose da estética aproveita.
Marmoriza na Estrofe o que de belo O exterior à vista patenteia: A tua pena seja o camartelo Que te desbaste o mármore da Ideia.
Não temas nunca que o Ideal te falte, 91
Nem te deslumbre a gloriola fátua... Sereno e belo o Verso teu ressalte Como do bloco a mãos do Artista a estátua.
Rompe de susto a humílima estreiteza Do vulgarismo, e quebra a férrea algema Que prende a Forma esplêndida... a Beleza N‟Arte, é verdade triunfal, suprema! 1899. Gutenberg, edição de 14 de abril de 1901.
A NOITE DA RENUNCIAÇÃO (DO EVANDELHO BÚDICO) (A Augusto de Oliveira) Brama o supremo Deus, em sonhos aparece Ao filho de Bahar, Chakyamouni, e lhe ordena: Renuncia a ventura e os haveres sem pena E por amor de Mim o ri Ganges desce.
Vai, e obreiro do Bem, a Perfeição humana Pela palavra opera, E sofre e morre em prol da Verdade; o Nirvana, Chakyamouni, te espera.
O Príncipe acordou. A asa da noite ainda Ensombrava o Universo; Ao seu lado dormia a casta esposa linda E o filhinho gentil dormitava no berço.
Seu imenso solar cintilava na treva De alfaias e ouropéis, rompendo a sombra densa... Contempla a esposa, o filho e essa riqueza imensa E o olhar aos céus eleva... 92
Brama assim quer, farei. Que Ele seja bendito, E a geração por vir sua glória apregoe! Que o Universo se curve ao Poder Infinito E o seu nome abençoe!
Servos iluminai o meu palácio, (exclama), Meus tesouros trazei e como irmãos, ouvi-me: Ordena que eu vos deixe a vontade de Brama Para cumprir além uma missão sublime.
E tudo ele entregou aos párias, mais aos pobres, De seus cofres reais as gemas de mais brilho, Domínios, e solar, e os seus vestidos nobres. E o berço de seu filho...
Beijando a esposa após e a linda criancinha, Que os bracinhos gentis lhe estendia a sorrir, Empunhou o cajado, e envergando a esclavinha Resolveu-se partir. Sedes bons, meus irmãos, p‟ra que sejam melhores Aqueles que hão de vir de vossa geração; Suportai com firmeza a desventura e as dores, E amai-vos! Está nisto a grande Perfeição.
Isto disse, e partiu. Em lágrimas banhada Debalde a doce voz da casta esposa o chama; Ele o pranto contém n‟alma dilacerada E segue a proclamar a Bondade de Brama. 1901. Gutenberg, edição de 09 de junho de 1901.
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DJORGHI Contam que o djorghi a serpente mais brava, Ao rude e vago som de um cálamo a adormenta, E de fera e cruel fá-la impotente e escrava, Perante a multidão maravilhada e atenta.
Creio. Dentro de mim, como em lôbrega cava, Do tédio a serpe má por vezes se afugenta, E torce o corpo negro e móvel como a lava.
E, em roscas infernais meu coração se rebenta... Então qual djorghi firo serenamente, Para a fúria acalmar da indômita serpente, Da minha Estrofe rude o cálamo enfebrado;
E do meu coração Lacoonte miserando, Em pouco o monstro vil vai-se desenrolando E queda-se a dormir entangido e domado!... Recife. Gutenberg, edição de 8 de agosto de 1901.
REMINISCÊNCIAS Recordação de amor, doce mágoa de outrora, Como de sol no ocaso um fugitivo raio, Volta-me ao coração, hoje em luto, senhora, Na fragrância floral desses dias de Maio.
Há bem tempo isto foi; nesse mês, pelos campos, Porventura uma tarde enxergaram meus olhos O teu vulto grácil, colocando entre os grampos De avencas e de jasmins uns delicados molhos. 94
Cheguei-me para ti, e eras toda rubores. Lendo no meu olhar a surpresa mais franca Que causava uma flor a se enfeitar de flores, De jasmins se toucando uma verbena branca...
Uma frase banal arremessada ao acaso Foi o início talvez deste amor que nasceu De teus olhos fatais de claro crisópraso Com reflexos de mar e nuanças de céu.
Já não me lembro mais da parvoice da frase... Se foi um cumprimento, ou se foi uma jura... Mas sei que em ti beijando a mão estive quase, Por um triz, a cingir tua leve cintura... “Insolente”, cantou a tua voz de prata Na estranha vibração de uma gusla encantada, Julguei a voz ouvir de uma rosa escarlata, Ouvindo assim falar tua boca rosada. Perdoa-me, senhora? Murmurei contrito, Como se cometesse o pecado mais feio, E, ajoelhei-me a teus pés, envergonhado e aflito, E, tu me deste a mão, toda cheia de enleio...
O tratado de paz feito, dei-te o meu braço; Recusaste-o, insisti suplicando-te: vamos... A noite o seu velário estendia no espaço Mais escura tornando a esmeralda dos ramos.
Que risonho casal não fazíamos ambos Pelos campos em flor à luz crepuscular!... Ouvias encantada os termos ditirambos 95
Aos teus olhos gentis cor do céu e do mar!
Compunha madrigais algures repetidos, Nem com tanto calor, nem com tantos matizes, E, vendo-nos a rir na palestra embebidos, Muita gente pensou: são dois noivos felizes!
Perto de tu casa ao meu braço fugindo O teu braço, deixou-me uma impressão tão má E eu senti-me tão só que disse, pedindo E osculando-te os dedos nevados: não vá!...
Mas deitaste a correr alveloazinha tonta Pela selva que a larga e amena estrada junca, E mandei-te de longe um punhado sem conta De beijos folgazões, mais feliz do que nunca!
Muitas vezes depois pelos campos corremos Tal um inquieto par de borboletas loucas, Ora a despetalar os louros crisântemos, Ora unindo num beijo as nossas duas bocas.
Um dia te esperei na sebe onde tu vinhas Esperar que eu chegasse à hora do costume, Ansioso por prender as tuas mãos nas minhas, Ouvir a tua voz, haurir o teu perfume.
Faltaste aquela vez e outras mais e centenas Tu, ingrata, faltaste à terna conferência... Veio o inverno e matou as brancas açucenas E os sonhos pueris de minha adolescência!
Hoje, à volta de Maio, eu revolvendo acaso 96
De minha juventude estas recordações, Dos teus olhos lembrei a cor do crisópraso Onde outrora bebi tantas desilusões!... Recife – Maio – 1900. Almanach Litterario Alagoano ara 1901. Maceió: Typ. Oriental, 1901.
LI-HUNG-WHÔ (Ao Craveiro Costa) Li-hung-whô o excêntrico letrado O mais rico senhor de toda a China, Suspira pensativo e enamorado Pelos olhos de certa mandarina...
Seu palácio de jade houvera dado E do penante a roxa pedra fina, Para pousar um beijo apaixonado Na sua mão sedosa e pequenina.
Ela esquiva o desdenha e o esposo espera Que venha de Nipon nessa galera Que o levava saudoso e prisioneiro...
E o louco Li-hung-whô ao vento solta, Aos olhos dela, enquanto ele não volta, Versos de amor em folhas de salgueiro... 1899, Recife. Gutenberg, edição de 09 de março de 1902.
EPITHALAMION Quando chegar Abril e as aves todas Garrularem na flórida estação, Celebraremos rindo as nossas bodas 97
Entre um beijo de amor e uma canção.
Na primavera há um noivado em tudo; (que de beijos e frases ideais!) Perpassa uma carícia de veludo Pelos ramos, nos tépidos casais!
Em cada moita trínulos ressoam, Doces eflúvios embalsamam o ar; Doidas de amor as avesitas voam E nos afrouxeis se vão aconchegar.
Ai que ventura imensa e desejada; Ai que auroras de cândido rubor Quando tendo-te ao peito aconchegada Feliz beijar a tua boca em flor.
Depois das longas noites estreladas Como um amplo cendal róseo e subtil Hão de vir para nós as madrugadas Os arrebóis esplêndidos de Abril.
E o sol nababo em pompas reluzindo No seu fastígio azul há de esplender Emoldurando em luz o ninho lindo Onde vossa ventura hei de esconder. Gutenberg, edição de 17 de janeiro de 1902.
SUPERBIA ODI ET AMO. QUARE ID FACIAM FORTASSE REQUIRIS. NESCIO: SED FIÉRI SENTIO ET GUARDIOR... CATULLOS. Hoje és para mim um recanto florido Oásis onde vou das lutas descansar... 98
Crença em que sempre achei a negação e o olvido De tudo quanto é mau no mundo pobre e alvar!
Doce religião de evangelhos divinos Essa que o Sonho fez e que o Amor encarnou Na pureza ideal de uns olhos cristalinos Belos astros que o Céu em dois sóis transformou!
Teu amor é um templo iluminado... Em cada Altar eu oficio um doce ritual. E canto da paixão a missa consagrada Lida na tua boca esse róseo Missal...
Que o lábio espúrio fale e o sórdido veneno Atire sobre nós, toda peçonha vil... Nada pode atingir esse orgulho sereno Que a tua alma protege, alma pura e gentil!
Quanto a mim, que cascalhe o seu riso palúrdio O rebutalho humano, o Aretino, o histrião; De meu Verso o clangor abafo o grincho estúrdio Que me apupa e faz rir a fátua multidão!
Forte, no meu orgulho escudado, sorrio Desse ódio que me cerca e vive a referver Como as fermentações de impalude sombrio Sob os raios do sol em plena Glória a arder!
É, ó, como é bom sentir sobre os ombros este ódio, Do vilão, do imbecil o cobarde rancor Tendo quem sobre nós como um Anjo Custódio Carinhoso e gentil abre as asas do Amor!
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Eis a razão porque quando venho cansado De tudo quanto é mau nesse mundo venal Procuro o teu Amor – meu Templo iluminado... Osculo a tua boca – o meu róseo Missal! 12-5-1902. Gutenberg, edição de 21 de maio de 1902.
SUB NOCTE TURBIDA Adoro a escuridão das noites tenebrosas Quando o trovão reboa e o raio os ares corta, E do Tédio a maré inundadora e morta Sobre os seres distende as vagas silenciosas.
Penso então a chorar no calor que conforta O tálamo nupcial das almas amorosas E vejo iluminando as cavernas umbrosas De minh‟alma, este amor que ela já não suporta.
Recordo a placidez de teus olhos de Esfinge, O azulado negror que os teus cabelos tinge Dando-lhe o estranho tom da asa negra do abutre.
E julgo ter nos meus, em beijos comprimindo Esses lábios cruéis que envenenam sorrindo Numa febre de amor que de sangue se nutre. Recife, 1901. Gutenberg, edição de 4 de março de 1904.
INTANGÍVEL A mim que importa a plástica serena Da forma escultural qu‟o artista esmera, Há quem possa moldar uma geena 100
Ou dar cor ao bramido duma fera.
Do amor, do tédio, enfim, do que envenena O humano coração, dizei qual era O inspirado pincel, o escopo, a pena, Capaz de moldar a forma austera.
Numa luta titânica se constrange Debalde o artista, nunca a ideia abrange O estreito molde de supremo esforço.
Dá vida à pedra, à tela, ao verso entanto, O que aos olhos do mundo vale tanto Aos seus não passa de um pequeno esforço... Gutenberg, edição de 6 de março de 1904.
OLHOS... Olhos ternos fitaram-me na vida Uma meiga expressão apaixonada, E, ó quantas vezes eu não tive em cada Olhar, de amor uma ilusão perdida...
Quantas vezes em lágrimas nadando Eles claros e puros me sorriram: Ternos – em vida sempre me mentiram E tristonhos morreram me enganando!
Não mais amei; na noite de meus dias Não choro a viuvez de uns olhos tais... Adoro as suas órbitas vazias Porque não mentem mais! Evolucionista, edição de 10 de março de 1904.
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ORIENTAL Nas madeixas subtis do teu fulvo cabelo Pousei com vivo ardor os meus olhos tristonhos, E ao ver ignota estrela iluminar teus sonhos Dos lábios desertou o meu riso amarelo. Então o pensamento – este pajem singelo, No seio da Quimera, horizontes risonhos Penetrou e sem os enfadonhos Espinhos desta vida, infausto pesadelo!
E, cheio de prazer, com a fé do meu rito, Fugindo aos turbilhões do embate neurótico, Transpus o quente chão do capitoso Egito...
Enlaçado por ti, em gozo lirial, Deixei-me adormecer num palanquim exótico À luz crepucular do céu oriental. Evolucionista, edição de 12 de março de 1904.
D. QUIXOTE (Ao Aurélio Flores) Tive de herói manchego o mesmo sonho ardente, O ímpeto febril, a sublime loucura, O puro, o vasto ideal, almo, altivo, esplendente, Que avivava o calor dessa alma ingênua e pura.
O cortejo do mal eu arrostei de frente, Impávido, antepondo a rígida armadura Da fé, que me brindava invulneravelmente, A vitória apontando, esplêndida e segura. 102
Por Justiça, clamei aos homens; por justiça Tremerário calquei sob a poeira da liça A mentira, a opressão, o despotismo odiento...
Mas, vencido caí das turbas pelo apodo: E o mundo me chamou: - um lunático, um doudo Ai de quem der combate a moinhos de vento! 23-5-1905. Gutenberg, edição de 26 de maio de 1905.
SANCHO PANÇA (Ao Hugo Jobim) Rotundo e bonachão, sobre o asno do bom senso, Anafado e burguês, cauteloso e pacato, Como o lerdo animal de pelo hirsuto e denso, Sancho cavalga atrás do senhor caricato.
Quando de dom Quixote o tresvario imenso Apresta-lhe da ação o bélico aparato, Sancho Poltrão discute, à fantasia infenso, De verdades banais o lado frio e exato.
Um se encolhe no burro, outro impávido avança, Firme, ereto no arção, em riste a aguda lança, Em busca do ideal que sonhou!... pobre Zote!
Após o pelejar de tão estranhas lidas, Sancho estende o farnel, o herói pensa as feridas, Quixote ri de Pança e Sancho de Quixote. 29-5-1905. Gutenberg, edição de 31 de maio de 1905.
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DE UM SOL A OUTRO O sol que ontem dourava-lhe os cabelos Quando nos campos trêfega corria, Hoje veio encontrá-la entre singelos Ramilhetes de rosas, muda e fria!
Fechados pela morte os olhos belos, Astros no ocaso ao despontar do dia Dormem, sem sonhos vis nem pesadelos Na Grande Noite plácida e sombria!...
Os mesmos lírios brancos delicados Por suas mãos às hastes arrancados Para enfeitar-lhe a cabeleira basta,
E as mesmas rosas rúbidas colhidas Ontem ao pôr do sol, empalidecidas Hoje, cingem-lhe a fronte ebúrnea e casta! Recife, 18-5-1898. Jornla Gutenberg, edição de 07 de abril de 1906.
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