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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
PRODUÇÃO ACADÊMICA Volume 2 (1) (Livros e Textos em Educação Popular)
PROF. DR. JOSÉ FRANCISCO DE MELO NETO PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA
JOÃO PESSOA, 2014
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Ficha catalográfica elaborada na Biblioteca Central da UFPB
M528p
Melo Neto, José Francisco de. Produção acadêmica: (Livros e Textos em Educação Popular) / José Francisco de Melo Neto.-- João Pessoa, 2014. v.2 (1) 1. Educação popular - produção acadêmica. I. Universidade Federal da Paraíba. II. Centro de EdEducação. CDU: 37.014.5
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APRESENTAÇÃO
Este trabalho é um rápido inventário acadêmico da vida do Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto (zé de melo neto, zé neto), com ênfase em sua dimensão acadêmica, nascido em Colônia Leopoldina, Zona da Mata Norte, do Estado de Alagoas, no ano de 1951. É uma coletânea de sua produção intelectual, produto das atividades de professor na Universidade Estadual da Paraíba(UEPB) e na Universidade Federal da Paraíba(UFPB), nos cursos de Graduação e Pós-graduação, em ambas universidades, em especial durante os 15 anos que atuou no Programa de PósGraduação em Educação, da UFPB, traduzidos em artigos, ensaios, textos didáticos, livros coletivos e livros individuais, em vários campos do conhecimento - educação, educação popular, economia solidária, política, filosofia e poesia. Foi, ainda, professor de Química no Colégio Estadual da Prata, em Campina Grande e professor de Ciências da Rede Municipal de João Pessoa. Também em Campina Grande, foi professor de Química da Universidade Estadual da Paraíba. Atingiu o ápice da carreira acadêmica, com todos os títulos acadêmicos graduação em química(Univ. Est da Paraíba-UEPB) e em filosofia (Univ. Fed. da Paraíba-UFPB), especialização em química(UEPB/UFPE), mestrado em educação(Univ. de Brasília-UnB), doutorado em educação(Univ. Fed. do Rio de Janeiro-UFRJ) e estágio pós-doutoral em educação(Univ. de São Paulo-USP). Chegou a Professor Titular, em ambas instituições de ensino superior, sempre por concursos. Coordenou o Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal da Paraíba, e o Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR), bem como, da Incubadora de Empreendimentos Solidários (INCUBES), também na UFPB, tendo sido, ainda, Presidente do Conselho Estadual de Educação do Estado da Paraíba. Teve dois casamentos com Maria do Socorro de Melo e Ana Lúcia Ferreira Queiroga e 5(cinco) filhos - Anaína Clara de Melo, Guerreiro Arco de Melo, Suana Guarani de Melo, Lívia Silas de Melo e Lucas Queiroga Melo. Esta coletânea está dividida em 6 volumes: o volume 1 apresenta Livros e Textos, em Educação; o volume 2(1 e 2), Livros e Textos em Educação Popular ; o volume 3, Livros e Textos em Extensão Universitária; o volume 4, Livros e Textos em Economia Solidária; o volume 5, Livros e Textos em Política; o volume 6, Livros e Textos em Filosofia, Textos Didáticos, Textos Avulsos e Poesias, acompanhando o Curriculum Lattes. O desejo maior é que este material permaneça como material de estudos e pesquisas para os estudantes, pesquisadores e pesquisadoras que, eventualmente, possam se interessar por essas temáticas. Assim é que, pouco a pouco, esta prática documental seja início de uma rotina dos profissionais que atuam ou que atuarão, doravante, neste Programa de PósGraduação em Educação e na Universidade Federal da Paraíba, isto é, deixarem
4 assegurados no ambiente do mesmo a sua produção intelectual. Que todo o material produzido por seus docentes, pesquisadoras e pesquisadores possam estar à disposição das futuras gerações, de forma fácil, in loco e eletronicamente, assegurando o estudo daquilo que já vem sendo pesquisado, avançando para além dos patamares teóricos em que os temas foram encerrados. E, que seja possível o estudo daquilo que se estar pesquisando e produzindo neste ambiente universitário.
João Pessoa, janeiro de 2015. Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto PROFESSOR TITULAR DA UFPB
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SUMÁRIO GERAL (todos os volumes)
VOLUME 1. LIVROS E TEXTOS EM EDUCAÇÃO. VOLUME 2. LIVROS E TEXTOS EM EDUCAÇÃO POPULAR(1 e 2). VOLUME 3. LIVROS E TEXTOS EM EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA. VOLUME 4. LIVROS E TEXTOS EM ECONOMIA SOLIDÁRIA. VOLUME 5. LIVROS E TEXTOS EM POLÍTICA. VOLUME 6. LIVROS E TEXTOS EM FILOSOFIA, TEXTOS DIDÁTICOS, TEXTOS AVULSOS, POESIAS E CURRICULUM LATTES.
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SUMÁRIO DO VOLUME 2.1 LIVROS E TEXTOS EM EDUCAÇÃO POPULAR.
2.1 - TEXTOS TEXTO 1. O QUE É POPULAR?
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TEXTO 2. EDUCAÇÃO POPULAR.
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TEXTO 3. EDUCAÇÃO POPULAR E TRABALHO (valores éticos fundantes da educação popular nas práticas pedagógicas, em cursos profissionalizantes da Usina Catende – PE).
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TEXTO 4. LUTAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO POPULAR PARA UM DESENVOLVIMENTO REGIONAL.
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TEXTO 5. PAULO FREIRE DIALOGANTE.
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TEXTO 6. EDUCAÇÃO POPULAR - sistema de teorias intercomunicantes.
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TEXTO 7. EDUCAÇÃO POPULAR NOS PROGRAMAS DE QUALIFICAÇÃO.
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TEXTO 8. EDUCAÇÃO POPULAR EM DIREITOS HUMANOS .
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TEXTO 9. EDUCAÇÃO POPULAR E „EXPERIÊNCIA‟ .
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TEXTO 10. EDUCAÇÃO POPULAR E UNIVERSAIS - dimensões ontosemânticas 96
2.2 - LIVROS COLETÂNEA LIVRO 1. EDUCAÇÃO POPULAR - outros caminhos.
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José Francisco de Melo Neto e Afonso Celso Caldeira Scocuglia LIVRO 2. EDUCAÇÃO POPULAR - enunciados teóricos Vol 2.
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José Francisco de Melo Neto e Agostinho Rosas
INDIVIDUAL LIVRO 1. EDUCAÇÃO POPULAR - enunciados teóricos.
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LIVRO 2. UNIVERSIDADE POPULAR.
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LIVRO 3. EDUCAÇÃO POPULAR - enunciados teóricos Vol. 3
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LIVRO 4. UNIVERSIDADE POPULAR E PESQUISA (este livro ficou como anexo da mesma temática, devido o seu volume. É um volume II.2).
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* José Francisco de Melo Neto, nascido em Colônia Leopoldina, Estado de Alagoas, em 16 de janeiro de 1951. Seus pais foram Francisco José de Melo e Doralice Bezerra de Melo.
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2 - LIVROS E TEXTOS EM EDUCAÇÃO POPULAR 2.1. TEXTOS TEXTO 1. O QUE É POPULAR1? RESUMO2: Esta pesquisa objetiva atualizar o conceito do termo popular, tendo por base a percepção daqueles que atuam nos movimentos sociais. Contudo, antes que se realizem desejos de uma maior precisão e, talvez, de exatidão do que seja popular, os dados pesquisados conduzem para um exercício teórico-dialético de aproximação de um conceito. Assim, é que algo pode ser caracterizado como popular ao conter os seguintes elementos que se relacionam entre si, porém diferenciando-se: a origem nas maiorias, no povo ou a ele esteja direcionado; o político como elemento de promoção de hegemonia desses setores sociais; o metodológico no sentido de animação do exercício para a cidadania crítica e geradora de ação; o ético expresso por princípios de solidariedade, tolerância e justiça; e o utópico, traduzido pela busca incessante de alternativas de vida e de felicidade.
A sabedoria popular antecede a techne3 e o saber científico.
Os conteúdos da educação entre os povos têm sido quase os mesmos, isto é, de ordem ética e prática. Nessa primeira dimensão, inserem-se as orientações principistas para o bem viver como, por exemplo: honrar deuses, pais, mães e outras regras de conduta como as da prudência ou, até mesmo, definidas através de mandamentos. A segunda dimensão volta-se a aspectos comunicativos do conhecimento de profissões acumuladas por um povo, denominada pelos gregos de techne. Paralelamente ao processo educativo dentro dessas perspectivas, desenvolve-se uma sabedoria, expressa por essas regras, preceitos de prudência e mesmo superstições, baseadas na tradição oral que, no caso dos gregos, tornou-se pujante na poesia rural gnômica de Hesíodo4. A formação pela educação, como se vê, toma dois rumos distintos. Assume, em primeiro lugar, rumo dominante que passa a criar um tipo humano pautado por um conjunto de idéias pré-fixadas, cabendo-lhe o seu alcance. Esse tipo elevará como fundamental a idéia de beleza, constituindo-se como o componente central do processo educativo. A educação torna-se a busca pelo belo. Nesta perspectiva, está o pensamento de Homero, ou indiferente ou não tomando como essencial a utilidade das coisas. Assim, constrói-se o ideário dominante na Paidéia grega em que a “formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação” (Jaeger, 1995: 25). 1
Pesquisa realizada entre militantes políticos de movimentos sociais populares e/ou partidários de uma alternativa de sociedade democrático-popular. 2 Capítulo do livro: O labirinto da Educação popular. Edna Guesmão de Gões Brennand (org,). Editora da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2003. 3 Na filosofia de Platão e Aristóteles adquire o significado atual da palavra teoria, contrapondo-se à mera experiência. Teoria em função de uma prática (Aristóteles), diferente da perspectiva de Platão como teoria da “ciência pura”. 4 Homero e Hesíodo, poetas gregos, que viveram entre os séculos VIII e VII a.C. e marcaram a educação e a formação humana, grega e ocidental.
9 Contudo, é do campo que vem uma outra percepção do significado da educação e da formação, muito próximo, cronologicamente, dos tempos homéricos. Forma-se uma tradição que, mesmo entre os gregos, dará outra função à poesia, ao objeto dos poemas, relacionando-se com outro público e distanciando-se da perspectiva homérica. O poeta Hesíodo traz para o processo de educação humana a experiência de seu trabalho, a experiência do agricultor, dirigindo-se a seus conterrâneos, agricultores gregos e pequenos proprietários. Está na poesia hesiódica não mais a medida do homem pela sua árvore genealógica, mas pelo seu trabalho, que o torna independente e feliz. Como se vê, essas duas fontes permeiam os processos educativos dos gregos. Em Homero, há uma esfera social dominante voltada ao mundo e à cultura dos nobres. Uma fonte que dará maior ênfase a uma educação para a qualidade dos nobres e dos heróis, valorizando o heroísmo expresso pelas lutas, em campo aberto, entre cavaleiros nobres e seus adversários. Em Hesíodo, especialmente no seu poema os Erga5, há uma poesia arraigada à terra como representação da vida campestre, rústica, simples, suscitando uma outra fonte da cultura grega: o valor do trabalho. Nessa perspectiva, o poeta vê o mundo através de duas lutas sobre a terra e que são distintas, sobressaindo-se, todavia, a luta abaixo narrada: “Desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico apressado em plantar, semear e casa beneficiar; o vizinho inveja ao vizinho apressado atrás da riqueza; boa Luta para os homens esta é; o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao carpinteiro, o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo. Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a Luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos” ( Hesíodo, 1996: 23-24).
Além disso, a vida no campo expressa o seu heroísmo através da luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores, reclamando também disciplina e contendo qualidades de valor educativo permanente para o humano. Por trabalho os homens são ricos em rebanhos e recursos E, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais. O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é! (Hesíodo, 1996: 45). Hesíodo passa a condenar o ocioso e o compara a zangões de colmeias que destroem os esforços das abelhas, salientando, ainda mais, o papel do trabalho no processo de educação humana, exigindo uma vida de trabalho: “Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho” (Jaeger, 1994: 85). Em “Os trabalhos e os dias”, o poeta exprime maiores detalhamentos da vida no campo, sobretudo, na segunda parte, as tradições e as regras sobre o trabalho do campo em suas várias estações do ano, regras de vestuário de acordo com as estações, suas máximas morais e suas proibições. “A sua forma, o seu conteúdo e a sua estrutura revelam imediatamente a sua herança popular (grifo nosso). Opõem-se totalmente à cultura da nobreza. A educação e a prudência na vida do povo não conhecem nada de semelhante à formação da personalidade total do homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza igual no uso das armas e das palavras, 5
Denominados, posteriormente, de Os trabalhos e os dias.
10 nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavaleiresco. Em contrapartida, impõe-se uma ética vigorosa e constante, que se conserva imutável através dos séculos, na vida material dos componentes e no trabalho diário da sua profissão. Este código é mais real e mais próximo da Terra, embora lhe falte uma grande meta ideal” (ibid.: 91). Hesíodo, pela primeira vez, preenche essa lacuna, juntando a esses elementos culturais, em forma de poesia, a idéia de direito, expressa através de sua vida de trabalho, no sentido de combate às usurpações promovidas por seu próprio irmão, transformando-se num devoto fervoroso do direito (dike). O trabalho e a justiça tornam-se componentes intrínsecos de suas bases educativas. Para ele, não há um sem a existência do outro. Em seus versos mostra que : “À tribo dos imortais irão, abandonando os homens, respeito e justiça distributiva; e tristes pesares vão deixar aos homens mortais. Contra o mal força não haverá!” (Hesíodo, 1996: 37). Não há saída, portanto, para o poeta, entendendo-se que, caso não exista respeito pelo trabalho, também estará comprometida a justiça. Nesse sentido, acrescenta: “O excesso é mal ao homem fraco e nem o poderoso facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona quando em desgraça cai; a rota a seguir pelo outro lado é preferível: leva ao justo; Justiça sobrepõe-se a Excesso quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo” (Hesíodo, 1996: 39). É bom lembrar a figura de Prometeu que, furtando o fogo de Zeus, repassando-o aos humanos e, por isso, é merecedor de castigo. “Oculto retem o deus o vital para os homens; senão comodamente em um só dia trabalharias para teres por um ano, podendo em ócio ficar” ( Hesíodo, 1996: 25). O raio do soberano do Olimpo não mais será orientado em proveito dos mortais, não mais garantirá o sustento através do produto da terra, de forma natural. O surgimento do trabalho é expressão do conflito entre Zeus e Prometeu e, também, da separação entre deuses e humanos que viviam juntos. “Agora, o homem deverá trabalhar sua terra para conseguir frutos. É o fim da idade do ouro, cujo mito marca claramente a oposição entre a fecundidade e o trabalho” (Hesíodo, 1979: 13). A obra “Os trabalhos e os dias” constitui um fecho da expressão educativa fundada na forma descritiva da terra, através do trabalho cotidiano, revelando a totalidade da vida, seu ritmo e beleza, justeza e honradez, que fundamentam a ordem moral do mundo, englobando, ainda, uma ética do trabalho e da profissão que não vivem separados no pensamento hesiódico. Esse rico tesouro experiencial deriva. através da vida e do trabalho, de uma tradição milenar já bastante enraizada, externando um vigor dessa sua realidade que deixa de lado o convencionalismo poético de alguns cantos homéricos. Um vigor que só estimula, com toda a plenitude, a vida de trabalho no campo. Hesíodo torna-se um arauto dessa intimidade com a terra, planeando os próprios valores nesse estilo de viver, encontrando, mesmo na aspereza e nas atividades do dia-a-dia, um significado e uma finalidade. “Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular (grifo nosso), excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a sua própria forma e o seu ethos exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida” (Jaeger, 1994: 103).
11 O conteúdo dos poemas de Hesíodo tem compreensão limitada aos camponeses, marcados pelo estilo próprio de viver e de se identificar com aquelas características próprias da vida campesina. Já o conteúdo moral implícito é acessível a qualquer povo. Mas, a identificação maior da educação grega não está no campo. É na polis onde se realiza a formação mais marcante e acabada. Todavia, importância igual, ou mesmo maior, foi dada a Hesíodo pelo povo grego, ao torná-lo um educador que está orientado para os ideais do trabalho e da justiça. Desde a sua época, censurava senhores venais quando do exercício de sua função de julgamento, atropelando o direito. Direito que se transforma em luta de classe, antecipando-o como um reclamo universal. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos” (Jaeger, 1994: 134). A dimensão do ser justo passa a ter significado concreto entre os gregos, como aquele que obedece à lei e se regula por suas disposições e, mesmo na guerra, está cumprindo o seu dever. Habitualmente, as virtudes foram expressas em quatro: a fortaleza, a piedade, a justiça e a prudência; mas é na justiça que todas estão concentradas, considerando que esta, no sentido mais geral, para além do jurídico, engloba a totalidade das normas morais e políticas. Nessa organização de Estado, fundamentado na noção do direito para todos, é que foi se pautar a vida na polis grega, criando a figura do cidadão, um novo tipo para uma nova comunidade. A presença, agora, do Estado passa a dar dupla conformação política na vida humana, uma vida privada e uma vida pública, no espaço da polis. Uma rigorosa distinção estabelece-se entre aquilo que lhe é próprio e aquilo que é comum. Um modo de vida que deixa de lado a dimensão da educação hesiódica, pautado pela idéia do trabalho, impregnado de um conteúdo da vida rural. Embora reconhecendo esta sua importância, todavia, o processo civilizatório grego tomou um rumo completamente diverso. A dimensão educativa marcante, em Hesíodo, estava voltada à realidade mesma e além disso, exigia dessa realidade o ponto de partida para o seu desenvolvimento. Um tipo de educação que busca a afirmação daquele que se educa. Educação fora de qualquer dimensão ideal e sim, fruto do ambiente, possibilitando a dimensão de universalidade, exigida por qualquer processo educativo. A educação nesses moldes conduz para a afirmação do educando ao se voltar à sua realidade e, sobretudo, por ter nessa realidade o ponto de partida e o ponto de chegada do ato educativo. Enquanto se afirma, procura incessantemente, a justiça como a medida necessária ao indivíduo, definindo a reivindicação do direito para todos. Estão se constituindo, dessa maneira, os elementos constantes do processo educativo, voltados a todos aqueles que não são reconhecidos (as maiorias da população ou os populares), sendo-lhes negada a justiça. A procura por justiça e pela afirmação de um povo, de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do processo educativo, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, durante a Idade Média. Está presente, inclusive, nos dias atuais, como uma marca dos movimentos sociais populares, o grande esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como forma de definição de seu campo de ação política e educativa. Para Calado (1999: 23), essa busca de construção da identidade “implica, de um lado, o esforço de identificar e superar adversidades interpostas a tal caminhada, e, de outro, perseguir determinado alvo, objetivos ou mesmo um projeto alternativo „ao que aí está`. Este aspecto do popular já se esboçara em comunidades antigas, como a judaica, com as mesmas características construtoras de identidade. A Bíblia narra vários episódios mostrando revoltas populares presentes na história do povo judeu. Revoltas em que o povo lutava pela sobrevivência e pela afirmação de sua identidade e por justiça igual para todos. Nos primórdios da Idade Média, são marcantes os movimentos de contestação contra a cobrança obrigatória do dízimo e o acúmulo de terras, por parte da Igreja Cristã. Para o historiador Hoonaert (1986), constituíram-se como “um grande movimento popular”. Ainda na Idade Média, segundo Calado (1999), ocorreram vários movimentos sociais populares com características semelhantes àquelas presentes na antigüidade e, marcadamente, com dimensões subversivas à situação em vigor. Expressaram sua própria afirmação e resistência aos ditames e mecanismos de controle social da época, sobretudo à poderosa Inquisição. O referido autor destaca os cátaros ou albigenses, apresentando a sua indignação diante da ordem religiosa
12 vigente, e seu combate sistemático ao estado de violência e de corrupção que se ampliava com a nobreza feudal e pela hierarquia eclesiástica. Eram movimentos compostos de gente simples, das classes populares. É marcante a presença dos valdenses e as beguínas que, juntos, apresentavam em comum (como marca do popular contida nesses movimentos) a contestação e a resistência, definindo as suas próprias alternativas. “Ao mesmo tempo em que se insurgem contra as práticas e os métodos do establishment eclesiástico, tratavam de anunciar uma ordem alternativa à de então, por seu discurso e por suas práticas, por meio das quais, mais do que propriamente inovar, buscavam recuperar os valores fundantes do Cristianismo” (ibid.: 81). Na modernidade, são freqüentes os movimentos que marcam as lutas pela superação da situação política dominante. Sobressaem-se as revoluções liberais modernas e dentre estas a revolução francesa que trouxe ao cenário das lutas políticas setores sociais simples ou populares, lutando por liberdade, fraternidade e igualdade (justiça). Uma revolução realizada por vários setores sociais e marcadamente pelos setores populares, definindo alternativas para uma vida digna. Contudo, é em Marx que se encontra um avanço fundamental na busca por alternativa, em “O manifesto comunista”. Nessa obra, ele aponta o encaminhamento, à classe proletária (classes trabalhadoras, classes humildes, classes populares), a necessidade de luta e de alternativa, ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999: 30), fecundando os movimentos de libertação, em todo o século XX, com a sua célebre orientação: Proletários de todos os países, uni-vos. Mas, neste século XX, o que vem sendo entendido como popular? O que revelam, nesse sentido, os movimentos sociais que atuam na organização do povo, na organização dos trabalhadores? Nos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade, várias experiências de grupos políticos6 e partidos políticos trazem o termo popular em suas bandeiras de lutas, seus projetos ou nas formulações políticas. A insurreição de 1935, no Brasil, orienta-se por um “Programa de governo popular nacional revolucionário”7. Esse programa tem no popular a expressão de interesses das “grandes massas da população”, adquirindo a dimensão de controle direto das ações políticas pelo povo, buscando a democracia e a liberdade de expressão. A Frente Popular do Chile traz nas suas formulações internas a necessidade da ampliação da própria Frente, reconhecendo a insuficiência da unidade, envolvendo simplesmente, a classe operária. Trata-se de uma frente política que vê no conceito de popular a possibilidade de se contar com outros e novos aliados. Com esta mesma perspectiva, surge o Partido Popular, no México8, que veicula uma compreensão do termo com maior abrangência do que aquela da Frente, considerando que pelo popular é possível um grupo político de cooperação com o governo. A esse respeito, Löwy (1999: 168) esclarece: “A elevação do nível de vida do povo interessa tanto ao proletariado e aos camponeses, quanto às pessoas de classe média e aos membros das organizações burguesas progressistas. Defender sua soberania e a independência da nação interessa ao proletariado, aos camponeses, à pequena burguesia da cidade, à grande burguesia progressista do país”.
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Para uma visão mais completa desses grupos políticos, com textos que os orientaram nas ações políticas, ver: Lowy, Michael. O marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1999. 7 É um documento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente político-militar do PCB com a ala esquerda do „tenentismo‟ que lideram a sublevação de 1935. 8 O Partido Popular é fundado, no México, por Vicente Lombardo Toledano que depois passou a se denominar Partido Popular Socialista (PPS). Um partido de oposição fundado para cooperar com o governo.
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Recentemente, também no Chile, dá-se a composição entre o MIR e a Unidade Popular9 que saem da clandestinidade, após a vitória de Allende, tendo no popular a perspectiva de poder autônomo, independente e alternativo ao Estado Burguês, combatendo a estratégia reformista que sejam as massas subordinadas à democracia desse tipo de Estado. Já aqui, no Brasil, o Partido Comunista do Brasil (PC do B)10 lança a “guerra popular”. Ao mostrar o caminho para essa guerra, expressa uma concepção voltada à ampliação dos agentes dessa revolução: o povo. Para o partido (ibid.: 434), “a luta armada em que se empenhará o povo brasileiro terá um profundo conteúdo popular, englobando as mais amplas massas da população”. Outro movimento marcante na história política da esquerda no Brasil é a criação do Partido dos Trabalhadores11 que formula uma “Estratégica democrática e popular, devendo conduzir um programa com as mesmas características”, ou seja, o socialismo petista. Trata-se de uma perspectiva que concebe o popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da classe trabalhadora, na construção da democracia. “Na verdade, a democracia interessa, sobretudo, aos trabalhadores e às massas populares” (Resoluções, 1998: 429). O “Programa democrático e popular‟, projeto de sociedade para o país, só se concretizará através de uma perspectiva de ampliação (aliança) e resistência desses atores sociais que vislumbram as transformações sociais. Nesse sentido, o popular tem um nítido componente classista, abrangendo as classes trabalhadoras, os camponeses, os setores médios da sociedade, além de setores da pequena burguesia. Popular ainda aparece em movimentos como o do Exército Zapatista de Libertação Nacional12, inserido no caudal teórico reivindicatório e traduzido pela aspiração de democracia e liberdade. “Nossa luta se apega ao direito constitucional e é motivada pela justiça e pela igualdade” (Primeira Declaração da Selva Lacandona, In: Lowy, 1999: 515). Nesse contexto de luta pela vida, também no Brasil, em especial decorrente da questão fundiária surge, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST)13 que defendendo a reforma agrária, preocupase com o consumo popular como expressão dos que estão sem qualquer tipo de assistência. “Dessa forma, tanto os pequenos produtores familiares, como os produtos destinados ao mercado interno para consumo popular, sempre estiveram à margem das prioridades da pesquisa agropecuária e da assistência técnica, mantidas pelo Estado” (ibid.: 519). Mas essa discussão conceitual passa por intelectuais, basicamente por aqueles que atuam no campo da Educação Popular. Paulo Freire, por exemplo, em suas duas importantes obras, “A Educação como Prática de Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, externa seu entendimento de popular como sinônimo de oprimido. Daquele que vive sem as condições elementares para o exercício de sua cidadania, considerando que também está fora da posse e uso dos bens materiais produzidos socialmente. A educação, se popular, isto é, tendo como ponto de partida a realidade do oprimido, pode se tornar um agente importante nos processos de libertação do indivíduo e da sociedade. O popular adquire, a partir da ótica da cultura do povo, 9
Unidade Popular se constitui como uma coalizão de partidos de esquerda. O MIR, nessa frente, desenvolve-se, sobretudo, a partir das frentes de massas Movimento Camponês Revolucionário, Movimento dos Favelados, Frente de Trabalhadores Revolucionários, junto com a ala esquerda da Unidade Popular, a esquerda cristã e outros. O MIR contrapõe-se estrategicamente ao PC chileno que defendia aliança das forças populares com a burguesia nacional. 10 Até o final da década de 60, o PC do B, nega-se a comprometer com processos de luta armada, realizando contudo, a sua própria experiência, de orientação maoísta, na década de 70 - uma guerrilha rural na Amazônia - sendo dizimada pela ditadura militar. 11 O Partido dos Trabalhadores(PT) foi criado em fevereiro de 1980. Decide, no seu 7 o. Encontro Nacional, adotar o socialismo petista, inspirado numa tradição marxista anticapitalista, expresso por uma visão de cultura política pluralista, propondo-se democrático e libertário. 12 Surge em Chiapas, México, em 1994. Esse movimento arrasta consigo a tradição de luta do povo mexicano. Uma organização guerrilheira de tipo novo enquanto não aspira à derrubada e tomada do poder, mas a luta com a sociedade civil mexicana pela conquista de democracia e justiça. 13 MST, um movimento deste final de século, no Brasil. Atento às questões agrárias, em 1995, lançou um programa de reforma agrária para o país. É um movimento que se reivindica de nenhuma doutrina política, mas nas suas análises sobre o país está explícita a influência do marxismo.
14 um significado específico no mundo em que é produzido, baseando-se no resgate cultural desse povo. Os processos simbólicos, dessa forma, têm razão no ambiente da própria comunidade, porém no sentido da ampliação do horizonte cultural das classes. O conceito é o elemento adjetivante da educação, enquanto propõe a construção das utopias libertárias, na tentativa de superação da exploração do oprimido. Para Jiménez (1988), é importante a construção dos setores populares com o papel de defender seus interesses, construindo também a sua própria identidade cultural. Manfredi (1980) associa o popular, vinculado à educação, no sentido de prática para a autonomia, enquanto seja capaz de gerar um saber-instrumento e, sobretudo, quando contribui para a construção de direção política. Wanderley (1979 e 1980) vincula o conceito de popular ao de classes populares14 como algo que é legítimo, que traduz interesses dessas classes, podendo adquirir o significado como algo “do povo”. No senso comum, povo é entendido como sendo aquele segmento de poucos recursos, posses e títulos. É um sentido dicotômico, fixado pelas expressões como elite-massa, em que o termo “massa” exprime pessoas desorganizadas e atomizadas. Uma outra compreensão percebe na expressão “do povo” um conjunto de indivíduos iguais e com interesses comuns com pequenos conflitos, apenas. Numa visão nacional-popular, “o povo” é identificado como aquele conjunto de pessoas que lutam contra um colonizador estrangeiro, ou a visão “de povo” expressando as classes subalternas da sociedade, tendo por oposição os dominantes. Há ainda o conceito de “povo” como o segmento social dinâmico, aberto e também conflitivo, sendo, portanto, histórico e dialético, enquanto que se dinamiza e se atualiza de forma permanente. O termo popular tem se apresentado com diferenciados significados, como se pode vê em Bezerra (1980). Ao estudar as novas dimensões entre as práticas de educação popular, no final da década de 50 e início dos anos 60, o autor mostra um conceito atrelado a essas práticas direcionadas para o exercício da cidadania, no sentido de que as maiorias possam assumir o seu papel sócio-político naquela conjuntura. O conceito retoma uma política de resistência, como uma necessidade para os grupos populares (do povo) na busca de mudanças, “no estabelecimento de melhor padrão de funcionamento da sociedade”(ibid.: 26). Na compreensão de Brandão (1980: 129), o popular vincula-se à classe e à liberdade, ao mostrar que “o horizonte da educação popular não é o homem educado, é o homem convertido em classe. É o homem libertado”. Para Beisiegel (1992), o popular vem atrelado às práticas educativas em educação popular. Nesse sentido, a origem desse agir educativo, historicamente, está também nas hostes do Estado e suas formulações têm sido geradas nas elites intelectuais. Todavia, esses processos expressam um entendimento como algo necessário, sendo útil à preparação da coletividade para a realização de fins determinados. Souza (1999) vincula o popular aos movimentos sociais populares. Esses movimentos expressam correntes de opiniões capazes de firmar interesses diante de posicionamentos contrários dos dominantes. Elas são externadas sobre os vários campos da existência individual e coletiva desses setores da sociedade. Nesse sentido, o autor considera os “segmentos sociais explorados, oprimidos e subordinados, cujos temas, quase sempre de maior incidência em suas vidas, em seu cotidiano são: trabalho, habitação, alimentação, participação, dignidade, paz, direitos humanos, meio-ambiente, gênero, gerações etc” (ibid.: 38). Essa questão conceitual também passa pelo debate sobre comunicação. Nesse sentido, é necessária a apresentação da perspectiva do popular no seio da comunicação nos movimentos sociais. Assim, pode adquirir também outras conotações como enfoca Peluzzo (1998: 118): a) o popular-folclórico, que abarca expressões do senso comum, presentes nas festas, danças, ritos, crenças costumes e outras formas; b) o popular-massivo, que se inscreve no universo da indústria cultural, adquirindo três outras dimensões, envolvendo: a apropriação e a incorporação 14
“Classes populares, pois serão entendidas no plural, compreendendo o operariado industrial, a classe trabalhadora em geral, os desempregados e subempregados, o campesinato, os indígenas, os funcionários públicos, os profissionais e alguns setores da pequena burguesia”. Luiz Eduardo W. Wanderley, Educação popular e processo de democratização. In: A questão política da educação popular. Brasiliense, 2a. São Paulo, 1980.
15 de linguagens, de religiosidade ou outras características do povo; a influencia e a aceitação de certos programas massivos de rádio e TV; as programações voltadas aos problemas da comunidade, entendidos como de utilidade pública; c) o popular-alternativo, que se situa no universo dos movimentos sociais. Esta última forma caracteriza-se como algo novo, na medida em que vincula a comunicação popular a algo voltado às classes subalternas da sociedade, às “lutas do povo”, adquirindo duas possibilidades, segundo Canclini (1987): a primeira concebe o popular como sendo algo libertador, revolucionário e portador de conteúdos críticos, concretizando-se através de alternativas marcantes no início da década de 80; a segunda nasce nos anos 90, diante das mudanças que vêm ocorrendo. Nessa concepção, o popular apresenta-se numa perspectiva dialética e mais flexível, como algo que contribua para a democratização da sociedade e da cultura. Na perspectiva do popular como algo que promove a democracia, segundo Rodrigues (1999: 23), há a exigência de que os grupos que compõem o povo precisam se comportar democraticamente. Para ele, “muito mais através de ações que de palavras, a Educação Popular objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua”. Esclarecedora, contudo, é a perspectiva do popular no campo da saúde, como expressão daqueles que são trabalhadores ou seus filhos. São os infectados por várias doenças ao mesmo tempo. A esse respeito, Vasconcelos (1999: 21) mostra que: “Diarréia, escabiose (sarna), verminoses intestinais, impetigo (perebas), micoses cutâneas, doenças venéreas, infeccões exantemáticas agudas (como catapora, rubéola e sarampo), resfriados, pediculose (infestação por piolho), pneumonia, tungíase (bicho-de-pé), faringites e outras doenças infecciosas e parasitárias fazem parte da rotina diária das famílias das classes populares brasileiras”. Mas que compreensões15 estão sendo veiculadas por aqueles que vivenciam, dirigem ou assessoram movimentos sociais? Neste final de século, as concepções continuam muito variadas. Dirigentes de movimentos sociais, no campo do sindicalismo, estão compreendendo o popular “como toda e qualquer ação que provoque transformação, defendendo os interesses da maioria da população”16. É uma perspectiva que insere a visão classista no conceito, compreendendo como classe a maioria da população. Para outros dirigentes de movimentos fora da estrutura sindical, o popular significa “ações ligadas a uma parcela da sociedade que não tem acesso aos direitos, ao trabalho, enfim ao mínimo de condições para uma vida digna” 17. Uma outra percepção vincula-o ao projeto político-popular como “um projeto de transformação social que saia dos modos de produção, organização e valores capitalistas, tendo uma concepção socialista de justiça social” 18. Ser popular é um exercício de transcendência do modo de produção capitalista. Pode ainda conter uma metodologia que contenha “
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Pesquisa desenvolvida no período de fevereiro de 1999 a junho do ano 2000. Foram entrevistados dirigentes de movimentos populares (Acorda Mulher, da cidade de Bayeux, Grande João Pessoa; Projeto Beira da Linha, Bayeux; Movimento Nacional de Meninos/as de Rua, João Pessoa); de organizações não governamentais (SAMOPS, João Pessoa; SEAMPO, João Pessoa; Núcleo de Educadores Populares da Paraíba – Rede EQUIP de Educadores, João Pessoa; AGEMTE, João Pessoa); movimento sindical (Sindicato dos Professores, Sindicato dos Servidores em Saúde, Sindicato de Servidores Federais); organizações de assessoria aos movimentos sociais (PRAC/UFPB, Mulheres de Teologia do Partido dos Trabalhadores) e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas do Estado da Paraíba. 16 Entrevista com dirigente do Sindicato dos Professores da Rede Oficial do Estado. 17 Entrevista com dirigente do Movimento Acorda Mulher, Bayeux, Pb 18 Entrevista com dirigente do Projeto Beira da Linha, Bayeux, Pb.
16 procedimentos de ação política que se articulem com as demandas dos excluídos”19. O popular implica, originariamente, uma vinculação aos setores excluídos (povo) dos bens culturais produzidos socialmente pela sociedade. Expressa, ainda, algo que “vem do povo, da classe subalterna da sociedade e atendendo aos interesses desta classe”20. Ou mesmo como “aquilo que seja realizado na perspectiva de transformar a realidade, de conscientizar e libertar” 21. É importante destacar, nesse percurso conceitual, as diferenciadas alternativas apresentadas por dirigentes partidários que têm em suas formulações estratégicas de sociedade a dimensão do popular, como os que defendem um “Programa democrático e popular” para o país. É fácil perceber-se quão variadas têm sido as compreensões do termo entre militantes partidários ou de movimentos sociais, refletindo-se em suas ações políticas nas cidades onde realizam suas políticas. Tornou-se possível, dessa maneira, a „catalogação‟ das visões externadas, em quatro grandes blocos, como mostra o quadro a seguir. Há um bloco daqueles que compreendem o popular como algo que está, necessariamente, originado nas classes sociais, em particular na classe trabalhadora, também disseminadas em conceitos como: as maiorias, o povo, a população, os mais sofridos ou os excluídos. Um outro bloco vislumbra o popular como algo que se expressa por encaminhamentos dirigidos a essas maiorias, enfim, pautado em procedimentos. Nessa concepção, ser popular é tornar-se expressão de uma metodologia, mas só terá significado quando expressar uma visão de mundo em mudança, contendo em suas ações a dimensão de propor saídas para as situações de miséria vividas pelo povo. É uma visão que exige iniciativas no plano político, normalmente, originais, pois marcam a própria autonomia desses movimentos, que constrói um novo tecido social embasado em outros valores e objetivos. Esta perspectiva, entretanto, é bastante minoritária entre os ativistas dos movimentos sociais. Há, ainda, outras visões, pouco expressivas quantitativamente ou prisioneiras da idealização existente nos movimentos sociais populares. CONCEPÇÕES DE POPULAR 22
CAMPOS TEÓRICOS DAS CONCEPÇÕES
QUANTITATIVO DAS CONCEPÇÕES
1. ORIGEM Algo é popular quando tem origem no povo, nas 20,68% das compreensões externas apontam maiorias. para visão de que algo é popular quando tem essas origens. Alguns indicadores: vem da base; vem da experiência do povo; vem da tradição do povo; vem das classes desprivilegiadas; dirige-se às maiorias, ... 2. METODOLOGIA Algo é popular quando traz consigo um 51,73% das compreensões externadas nas procedimento que incentive a participação, ou entrevistas apontam para visão de que algo é 19
Entrevista com dirigente do Movimento Nacional de Meninos de Rua/Pb.
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Entrevistas com assessorias do SEAMPO/UFPB; Rede de Educadores/EQUIP/Pb e AGEMTE/Pb.
21
Entrevistas com dirigentes do Sindicato dos Servidores da Saúde e Sindicato dos Servidores Federais/Pb. 22 Entrevistas aplicadas a vinte e oito dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em toda as regiões geográficas da Paraíba e quinze dirigentes de movimentos sociais populares.
17 seja, um meio de veiculação e promoção para a popular se expressar mecanismo para contribuir busca da cidadania. para o exercício da participação. Popular como sinônimo da própria prática. Alguns indicadores: direcionado ao povo humilde; ampliando canais de participação; exercitando participação ativa; possibilitando tomada de decisão; ouvindo e implementando decisões; promovendo novas formas de intervenção das massas; ... 3. POSICIONAMENTO FILOSÓFICO
POLÍTICO
E
21,84% das compreensões externadas nas entrevistas apontam para a visão de que ser Algo é popular se expressa um cristalino popular é posicionar-se diante do mundo, posicionamento político e filosófico diante do tomando um posição promotora de mudanças. mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias. Alguns indicadores: assumindo as lutas do povo; atendendo interesses da população; resgatando a visão de um mundo em mudanças; propondo melhoria de vida do povo; trazendo a perspectiva do povo; ... 4. OUTROS ASPECTOS
5,71 % compreendem a questão do popular como algo que deverá estar na consciência de cada indivíduo.
Surgem outras concepções trazendo as possibilidades de que ser popular passa pelo institucional. Pode ter origem no institucional, como sindicatos, associações ambientalistas, etc. Outros entendem que o ser popular é uma questão de consciência. Alguns Indicadores Algo que vem de associação (comunidades de Base, movimentos dos Sem-Terra, sindicato...); uma questão de consciência. Total de indicadores selecionados das concepções de popular: oitenta e sete indicadores Como se vê, popular adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as atuais exigências. Nessa perspectiva, é possível mostrar um movimento conceitual que envolva os elementos que sempre estiveram presentes nos variados momentos históricos e outros que foram sendo assimilados com o tempo. A pesquisa mostra essa dialética entre os elementos constitutivos do conceito. O termo relaciona todas as suas dimensões constitutivas ao mesmo tempo em que se diferencia de cada uma delas, porém mantendo-as na sua formulação conceitual. Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, se tornam uma exigência social.
18 Algo pode ser popular se tem origem nos esforços, no trabalho do povo, das maiorias (classes), dos que vivem e viverão do trabalho. Mas a origem apenas não basta. Esta, inclusive, pode nascer de agentes externos, evitando-se, contudo, todo tipo de populismo que porventura possa surgir. Todavia, é preciso ter-se conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. É preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias. Ao se definirem a direção e os interesses envolvidos, entra em cena uma segunda dimensão conceitual, que é a dimensão política. Ser popular é ter clareza de que há um papel político nessa definição. Essa dimensão política deve estar voltada à defesa dos interesses desses setores das maiorias ou das classes majoritárias. Em um segundo momento, essas ações políticas são, necessariamente, reativas às formulações ou às políticas que deverão estar sendo impostas a essas maiorias. Reativas no sentido de busca de alternativas ou de estratégias que conduzam às iniciativas para um plano político geral de sociedade. Reativas enquanto geradoras de ação própria e, normalmente, original, retirada da prática do dia-a-dia, ou quando se tornam capazes de compor um novo tecido social com outros valores e objetivos. Ser popular, portanto, significa estar relacionando as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação. É estar se externando através da resistência às políticas de opressão e adicionadas com políticas de afirmação social. Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. Contudo, esse fazer político pode se expressar de várias maneiras ou através de diferenciadas metodologias. A metodologia que confirma algo como popular vai no sentido de promover o diálogo entre os partícipes das ações e, sobretudo, que seja contributiva ao processo de se exercer a cidadania crítica. Cidadania que se constitua como um exercício do pensamento, na busca das questões com as suas dimensões positivas e negativas contidas em qualquer ente de desejo de análise. Mas, a cidadania não se resume à análise. É preciso também que o indivíduo se prepare para a ação, para desenvolver metodologias que exercitem o cidadão para a crítica e para a ação. Mas para que essa ação? Sua direção aponta no sentido de afirmação de sua própria identidade como indivíduo, como grupo ou como classe social. Busca ainda promover as mudanças que são necessárias para a construção de uma outra sociedade, mesmo que arriscando a ordem para que todos tenham direitos, e assim a justiça, efetivamente, seja igual para todos. Essa metodologia, entretanto, rege-se por princípios éticos oriundos também das exigências do trabalho. Ser popular é estar dirigido por princípios voltados àquelas maiorias. Nesse contexto, é que se reafirma como fundamental o princípio do diálogo, oferecendo condições para a promoção do pluralismo das idéias. Este deve ter condições de promover princípios como a solidariedade e a tolerância, sem cair no relativismo ético, na busca incessante da promoção do bem coletivo. Esse conceito arrasta para si definições envolvendo as utopias tão necessárias para os dias atuais. Ser popular é tentar alternativas. É estar realizando o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trará os elementos já realizados e tentativas de novas realizações. Isto só ocorre, contudo, quando da sua realização mesma, caminhando para aquilo que, efetivamente, é o necessário. A utopia da democracia, como valor permanente a ser vivida sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços da realização e da não-realização, estão as suas contradições e suas dificuldades maiores. Entretanto, não podem transformar-se em agentes impeditivos da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de liberdade e de felicidade.
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TEXTO 2 EDUCAÇÃO POPULAR23 Os conteúdos da educação entre os povos têm sido quase os mesmos, isto é, de ordem ética e prática. Nessa primeira dimensão, inserem-se as orientações principistas para o bem viver como, por exemplo: honrar deuses, pais, mães e outras regras de conduta como as da prudência ou, até mesmo, definidas através de mandamentos. A segunda dimensão volta-se a aspectos comunicativos do conhecimento de profissões acumuladas por um povo, denominada pelos gregos de techne. Paralelamente ao processo educativo dentro dessas perspectivas, desenvolve-se uma sabedoria, expressa por essas regras, preceitos de prudência e mesmo superstições, baseadas na tradição oral que, no caso dos gregos, tornou-se pujante na poesia rural gnômica de Hesíodo24. A formação ocidental pela educação, como se vê, toma dois rumos distintos. Assume, em primeiro lugar, rumo dominante que passa a criar um tipo humano pautado por um conjunto de idéias pré-fixadas, cabendo-lhe o seu alcance. Esse tipo elevará como fundamental a idéia de beleza, constituindo-se como o componente central do processo educativo. A educação torna-se a busca pelo belo. Nesta perspectiva, está o pensamento de Homero, ou indiferente ou não tomando como essencial a utilidade das coisas. Assim, constrói-se o ideário dominante na Paidéia grega em que a “formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação” (Jaeger, 1995: 25). Contudo, é do campo que vem uma outra percepção do significado da educação e da formação, muito próximo, cronologicamente, dos tempos homéricos. Forma-se uma tradição que, mesmo entre os gregos, dará outra função à poesia, ao objeto dos poemas, relacionando-se com outro público e distanciando-se da perspectiva homérica. O poeta Hesíodo traz para o processo de educação humana a experiência de seu trabalho, a experiência do agricultor, dirigindo-se a seus conterrâneos, agricultores gregos e pequenos proprietários. Está na poesia hesiódica não mais a medida do homem pela sua árvore genealógica, mas pelo seu trabalho, que o torna independente e feliz. Como se vê, essas duas fontes permeiam os processos educativos dos gregos. Em Homero, há uma esfera social dominante voltada ao mundo e à cultura dos nobres. Uma fonte que dará maior ênfase a uma educação para a qualidade dos nobres e dos heróis, valorizando o heroísmo expresso pelas lutas, em campo aberto, entre cavaleiros nobres e seus adversários. Em Hesíodo, especialmente no seu poema os Erga25, há uma poesia arraigada à terra como representação da vida campestre, rústica, simples, suscitando uma outra fonte da cultura grega: o valor do trabalho. Nessa perspectiva, o poeta vê o mundo através de duas lutas sobre a terra e que são distintas, sobressaindo-se, todavia, a luta abaixo narrada: “Desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico apressado em plantar, semear e casa beneficiar; o vizinho inveja ao vizinho apressado atrás da riqueza; boa Luta para os homens esta é; o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao carpinteiro, 23
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Aproximação conceitual construída pelas turmas Teoria em Educação Popular, História e Filosofia da Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB e durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro. As disciplinas foram coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos, tendo sido desenvolvidas durante o primeiro semestre letivo do ano de 2003.
Homero e Hesíodo, poetas gregos, que viveram entre os séculos VIII e VII a.C. e marcaram a educação e a formação humana, grega e ocidental. 25 Denominados, posteriormente, de Os trabalhos e os dias.
21 o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo. Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a Luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos” ( Hesíodo, 1996: 23-24). Além disso, a vida no campo expressa o seu heroísmo através da luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores, reclamando também disciplina e contendo qualidades de valor educativo permanente para o humano. Por trabalho os homens são ricos em rebanhos e recursos E, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais. O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é! (Hesíodo, 1996: 45). Hesíodo passa a condenar o ocioso e o compara a zangões de colmeias que destroem os esforços das abelhas, salientando, ainda mais, o papel do trabalho no processo de educação humana, exigindo uma vida de trabalho. O trabalho e a justiça tornam-se componentes intrínsecos de suas bases educativas. Para ele, não há um sem a existência do outro. A dimensão educativa marcante, em Hesíodo, estava voltada à realidade mesma e além disso, exigia dessa realidade o ponto de partida para o seu desenvolvimento. Um tipo de educação que busca a afirmação daquele que se educa. Educação fora de qualquer dimensão ideal e sim, fruto do ambiente, possibilitando a dimensão de universalidade, exigida por qualquer processo educativo. A educação nesses moldes conduz para a afirmação do educando ao se voltar à sua realidade e, sobretudo, por ter nessa realidade o ponto de partida e o ponto de chegada do ato educativo. Enquanto se afirma, procura incessantemente, a justiça como a medida necessária ao indivíduo, definindo a reivindicação do direito para todos. Estão se constituindo, dessa maneira, os elementos constantes do processo educativo, voltados a todos aqueles que não são reconhecidos (as maiorias da população ou os populares), sendo-lhes negada a justiça. A procura por justiça e pela afirmação de um povo, de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do processo educativo no sentido da afirmação de suas identidades, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, durante a Idade Média e a marca em todos os movimentos sociais, na modernidade e na contemporaneidade. Sobressaem-se as revoluções liberais modernas e dentre estas a revolução francesa que trouxe ao cenário das lutas políticas setores sociais simples ou populares, lutando por liberdade, fraternidade e igualdade (justiça). Uma revolução realizada por vários setores sociais e marcadamente pelos setores populares, definindo alternativas para uma vida digna. Contudo, é em Marx que se encontra um avanço fundamental na busca por alternativa, em “O manifesto comunista”, alimentando a busca pela conquista do poder político pelos setores sociais proletarizados e fecundando os movimentos de libertação, em todo o século XX, com a sua célebre orientação: Proletários de todos os países, uni-vos. Mas, neste século XX, a dimensão do popular, arrastando preocesso de educação com essas características ajudam para uma visão da dimensão e conceito de educação popular, como sendo um processo que esteja voltado para essas lutas do povo ou mesmo como uma metodologia para uma melhor promoção das relações humanas para as buscas definidas historicamente pelos setores não dominantes da sociedade mas que são a maioria desta. Mas essa discussão conceitual passa por intelectuais, basicamente por aqueles que atuam no campo da Educação Popular. Paulo Freire, por exemplo, em suas duas importantes obras, “A Educação como Prática de Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, externa seu entendimento de popular como sinônimo de oprimido. Daquele que vive sem as condições elementares para o exercício de sua cidadania, considerando que também está fora da posse e uso dos bens materiais produzidos socialmente. A educação, se popular, isto é, tendo como ponto de partida a realidade do oprimido, pode se tornar um agente importante nos processos de
22 libertação do indivíduo e da sociedade. Uma educação que arraste consigo procedimentos que incentivem a participação, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a busca da cidadania, compreendida em suas dimensões crítica e ativa. Uma educação que contribua ao exercício de cobranças das ações políticas geradas em nome do povo e que também possa incentivar aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, se tornam uma exigência social. Assim, xperiências e formulações teóricas nos abalisam a buscar a definição de Educação Popular como um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionadas entre si e ordenados segundo princípios e experiências que, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Mesmo expressando uma unidade, contudo, é um sistema aberto que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, a educação e o popular e vice-versa. É um sistema aberto de trabalho educacional detentor de uma filosofia que, por sua vez, pressupõe uma teoria do conhecimento, metodologias dessa produção de conhecimento, conteúdos e técnicas de avaliação processuais, e sustentada por uma base política. Uma teoria de conhecimento que se externa pela busca por conhecimento que vai no sentido do fazer história. Segundo Paulo Freire: “também se faz história quando, ao surgirem os novos temas, ao se buscarem valores inéditos, o homem sugere uma nova formulação, uma mudança na maneira de atuar, nas atitudes e nos comportamentos”. É um trabalho humano, a educação popular, em que se dá em e pela prática do indivíduo, enquanto humaniza a natureza e naturaliza a dimensão de ser humano. Precisa mostrar a sua verdade, qual seja: “para mostrar sua verdade, tem que sair de si mesmo, plasmar-se, adquirir corpo na própria realidade, sob a forma de atividade prática”. Contendo uma metodologia que mostre a “a possibilidade de serem protagonistas do processo de sistematização, reorganização e reelaboração do conhecimento, e que possam caminhar para estabelecer uma nova síntese entre o chamado conhecimento científico e o saber que provém de sua própria prática coletiva de classe” ; Como possibilidade para desenvolverem atitudes e habilidades como orientar, dirigir e organizar debates e reuniões, sistematizar e expressar idéias e opiniões; reunir, criticar e sintetizar informações; perceberem a importância e a necessidade da organização e da troca de informações entre os próprios trabalhadores. A educação popular exprime um conteúdo que se origina na realidade, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico, pois ele está dirigido e dirigindo para os moradores de periferias de cidades, aos camponeses e a todas as outras categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto, incluindo a educação indígena, não-seriada. A sua avaliação exige pensar que tudo está em movimento, inclusive, esse ato pedagógico. Recorre-se à análise do processo que está em movimento. Essa análise avaliativa exige como se está desenvolvendo a consciência crítica dos participantes desse processo educativo, bem como ao tempo em que estão se processando as atividades. A avaliação dos conteúdos da educação popular conduz à análise organizativa de todo processo educativo em desenvolvimento. Mas contém, necessariamente, uma base política enquanto promotora da superação do silêncio imposto em cada um; preparação intelectual dos trabalhadores; construção moral dessa classe; exercitar os trabalhadores na capacidade de direção política (querer o poder); enquanto resiste à uma ética do toma lá da cá; (a ética do meu pirão primeiro); visão pedagógica de que todos aprendem conjuntamente. “penso que a liberdade, como gesto necessário, como impulso fundamental, como expressão de vida, como anseio quando castrada, como ódio quando explosão de busca, nos vem acompanhando ao longo da história. Sem ela, ou melhor, sem luta por ela, não é possível criação, invenção, risco, existência humana”. Em síntese, EDUCAÇÃO POPULAR é um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituído de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais, permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientado por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade.
23 Referências e sugestões de leituras BEISIEGEL, Celso de Rui. Política e educação popular (A teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil). Ensaios – 85. São Paulo: Editora Ática, 1992. BEZERRA, Aída. As atividades em educação popular. In: A questão política da educação popular. 2a. ed. São Paulo: 1980. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura do povo e a educação popular. In: A questão política da educação popular. 2a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. CALADO, Alder Júlio Ferreira. Memória histórica e movimentos sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa: Idéia, 1999. CANCLINI, Néstor Garcia. De qué estamos hablando cuando hablamos de lo popular? In: Comunicación y culturas populares en Latinoamérica. México: Gili, 1987. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. __________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. HESÍODO. Os trabalhos e os dias. 3a. ed. Introdução, tradução e comentários: Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 1996. JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. (tradução Arthur M. Parreira; adaptação para a edição brasileira Monica Stahel; revisão do texto grego Gilson Cesar Cardoso de Souza). 3a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. MANFREDI, Sílvia M. A educação popular no Brasil: Uma releitura a partir de Antonio Gramsci. In: A questão política da educação popular. Org. Carlos Rodrigues Brandão. 2a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. MARX, Karl & Engels, Friedrich. O manifesto comunista.. 5a. Ed. São Paulo: Paz e Terra,. 1999. RODRIGUES, Luiz Dias. Como se conceitua educação popular. In: Melo Neto, José Francisco & Scocuglia, Afonso Celso Caldeira. Educação Popular – outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999. WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Apontamentos sobre educação popular. In: Valle, João E. e Queiroz, José (Orgs). A cultura do povo. São Paulo: Cortez, 1979.
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TEXTO 3 EDUCAÇÃO POPULAR E TRABALHO (valores éticos fundantes da educação popular nas práticas pedagógicas em cursos profissionalizantes da Usina Catende – PE) Izabel Cristina Mota Araújo26 Lenivaldo Marques da Silva Lima27 José Francisco de Melo Neto28 Introdução
A Zona da Mata Nordestina é uma região de grandes e complexos desafios. Como parte dela, a Zona da Mata Sul de Pernambuco é composta por 43 municípios, com população de 1.200.000 habitantes e perfil, predominantemente, rural. Sempre fora área prioritária para o cultivo da cana de açúcar desde os tempos coloniais, originando uma estrutura social de profunda desigualdade. Mantém-se, pela persistência de uma relação secular de exploração, de exclusão, de negação não só do direito das pessoas, mas do próprio ser humano. Esse quadro é herança de um sistema colonialista, patrimonial e escravocrata responsável pela concentração do poder econômico, político e cultural nas oligarquias, representadas pelos senhores de engenhos e, posteriormente, pelos usineiros. Palco de lutas populares contra essa escravidão colonial e o poder de mando desses senhores, a Zona da Mata de Pernambuco, especialmente a Mata Sul, modernizou-se, mas não se transformou em ambiente de prosperidade para todos. A modernização econômica desta região manteve a estrutura básica que fundamentou as relações sociais da casa-grande e da senzala. Antigos engenhos de açúcar absorveram engenhos menores. Modificaram as suas estruturas produtivas, transformando-se nas atuais usinas produtoras de açúcar e destilarias. Essa modernização manifestou-se, com maior vigor, na década de 80, com o estímulo do Programa de Apoio ao Álcool, mas não alterou a estrutura fundiária que permaneceu baseada na grande propriedade. Manteve a monocultura da cana de açúcar e, pouco a pouco, transformou as relações de trabalho pré-capitalistas, ainda existentes no inicio do século XX, para o assalariamento clássico das relações convencionadas entre trabalho e capital. Os trabalhadores do campo e da produção do açúcar, desde os tempos coloniais, lutam para transformar as condições estruturais de produção da vida social. A história regional registra diversas lutas de escravos, de sitiantes, de foreiros e, nas últimas décadas, de trabalhadores assalariados - fichados, clandestinos, safristas29 e sem-terra. Essas lutas arrastam consigo a contestação ao latifúndio e à expansão da cana de açúcar sobre áreas de pequenos camponeses. Na década de 80, após a consolidação do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, engendrou-se forte contestação à exploração do trabalho e ao não cumprimento dos direitos trabalhistas. A expressão mais importante desse processo de organização de lutas concretiza-se na experiência iniciada na Usina Catende, na década passada, pondo como desafios à educação dessa massa trabalhadora analfabeta a sua filosofia, a sua política, o seu conteúdo e metodologia – objetos deste trabalho.
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Membro da Equipe de Educação do Projeto Harmonia/Catende. Membro da Equipe de Educação do Projeto Harmonia/Catende. 28 Professor Titular da Universidade Federal da Paraíba. (trabalho apresentado durante o 4o. Colóquio Paulo Freire em Recife, PE. Ano, 2007. 29 Trabalhador que tem vínculo empregatício apenas durante o período da colheita da cana de açúcar. 27
25 A Usina Catende
A Usina Catende foi montada em 1892, transformando-se na maior produtora de açúcar da América Latina, cujas terras abrangeram 70.000 hectares, sendo, também, um símbolo das relações de opressão na região. Essa história começa a ruir, do ponto de vista dos usineiros, com o endividamento „criminoso‟ que iniciara na década de 80. A influência política do setor, inclusive o da Usina Catende, possibilitou, nas décadas de 80 a 90, a rolagem de suas dívidas com o Governo Federal, Bancos Estaduais e Banco do Brasil, utilizando dos subsídios da política rural daquele momento. Com o fim do PROALCOOL, projeto de incentivo governamental à produção do álcool, na década de 90, e a sua diminuição posterior, a situação tornou-se insustentável. A Zona da Mata Nordestina, agora, se transforma num palco de desespero para os trabalhadores em decorrência da falência de dezenas usinas. Na Zona da Mata de Pernambuco, das 41 usinas e destilarias existentes, 14 fecharam suas portas, desempregando 150 mil trabalhadores. Na Usina Catende, o efeito da crise no setor agro-açucareiro foi sentido fortemente no inicio da década de 90, ocorrendo a demissão de 2.300 trabalhadores sem qualquer tipo de indenização, provocando a luta pela garantia ao direito ao emprego, com uma greve que durou 16 dias. A fraude provocada pelos usineiros, proprietários da usina e a dilapidação do seu patrimônio em mais de 8 mil hectares, incluindo o parque industrial e a hidroelétrica, despertaram para a necessidade de maior organização sindical na região e o apoio de parceiros políticos da sociedade civil, chegando ao pedido de falência, no ano de 1995. A organização desse movimento culminaria com a criação da Companhia Agrícola Harmonia – empresa dos trabalhadores30. Concluído o processo da falência, espera-se que os trabalhadores passem a ser os verdadeiros donos da empresa, considerando os direitos que eles têm, reconhecidos pela justiça, que serão transformados em ações, possibilitando que a sua administração realize-se de forma autogestionária. Mas, se grandes são os desafios para a sobrevivência das pessoas envoltas nessa caminhada da Usina Catende, grandes são os seus sonhos, sua esperança e sua força coletiva para mudar a realidade e construir uma nova história. Inserida nessa busca, está o desafio para se efetivar um tipo de educação que se preste a esse processo. Afinal, que tipo de educação interessa a essa massa sem escola que contribua a este processo, voltado à economia solidária e que vislumbre perspectivas autogestionárias, nesse ambiente cultural da Usina Catende? Educação popular para uma economia solidária e autogestionária A Usina Catende é um todo educativo que cobra da educação uma filosofia, uma política, um ensino e uma aprendizagem voltados às lutas pelo emprego, pela organização para a manutenção do negócio, pela superação das dificuldades de subsistência diária e pela superação das dificuldades de gestão compartilhada de um empreendimento de trabalhadores e trabalhadoras. Isto passa a apontar, como vetor preponderante, um tipo de educação acompanhada dessas expectativas, identificada como educação popular. Ora, se a educação
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A dívida da usina está calculada em 660 milhões ao INSS, tributos, Banco do Brasil e fornecedores e 62 milhões aos trabalhadores. O patrimônio da usina está avaliado em 60 milhões. Este patrimônio é composto, sobretudo, por 48 propriedades, distribuídas em 5 municípios (Palmares, Catende, Jaqueira, Água Preta e Xexéu), num total de 26 mil hectares.
26 pode ter sido, para muitos, uma palavra desprovida de significados concretos, aqui, nesta experiência de Catende, educação só terá importância se permeada da dimensão da mudança, da transformação e do atendimento aos anseios desses trabalhadores. Uma educação que se volte às dimensões espontâneas daquela gente mas, necessariamente, às suas dimensões sistemáticas que tal processo cultural exige. Mas, que tipo de educação popular e quais os seus valores sóciofilosóficos? Uma educação popular que esteja voltada à superação da cultura do silêncio como diria Freire, reanimando a inerente capacidade de indignação dessas massas trabalhadoras. Nesse sentido, a dimensão pedagógica da educação popular que veio se definindo na experiência de Catende, adquiriu maior dimensão à medida que se procurou adequar a relação do humano com o mundo, por meio das dimensões do trabalho, vivido nesse processo. O trabalho passou a ser o ponto de partida, voltado ao atendimento de uma educação popular necessariamente direcionada às maiorias, considerando-o fonte de sua existência. O significado da anterioridade do mundo em processos educativos fundamenta-se no aspecto de que o conhecimento, a partir das coisas concretas, pode incitar as forças humanas à promoção de mudanças. Uma educação popular expressa como um fenômeno que se volte à produção e à posse de seus produtos culturais, capaz de traduzir uma teoria de conhecimento que tenha como ponto de partida a realidade da vida na usina. Uma educação popular promotora do empoderamento das pessoas individualmente e de forma coletiva, incentivando valores e ações promotoras de liberdade e de justiça. Portanto, essa busca por um outro estilo de viver e voltado ao bem estar dos trabalhadores e trabalhadoras é um movimento que prescreve uma rigorosa organização das atividades de educação popular que precisam trazer consigo o processo produtivo da empresa como ponto de partida. A produção do bem cultural humano só se efetiva pelo trabalho. Este é, historicamente, uma categoria central para a formação humana, para o processo de hominização. As relações que se estabeleceram, em torno do mesmo, determinaram condicionantes econômicos, sociais e culturais. Aqui, é possível constatar-se como produto uma população sem esperança, sem sonhos e com elevada „baixa-estima‟ que acabam por naturalizar a exploração e a miséria. Esse é um ponto importante de conteúdo específico que a educação popular em Catende destaca: o redirecionamento de uma cultura escravocrata, servil, herança de um patronato truculento e patriarcal. Esta é uma herança direta da escravidão, traduzida pela presença da casagrande, em contrastes com os arruados - substitutos das senzalas. A educação popular no projeto Catende/Harmonia volta-se para a dimensão da cidadania, qualificada pela participação, pelo respeito à pessoa, pela responsabilidade de direitos e deveres, pela construção de desenvolvimento humano sustentável e solidário. É o exercício dialético de reconstruir a vida, suas relações, a partir da realidade dos educandos. A presença de projetos encetados por entidades não-governamentais reabre novas atividades também no campo da saúde, apresentando um espaço de ampla atuação educativa devida à interrelação da saúde com os demais problemas locais. Todavia, a definição dos conteúdos de capacitação, nessa área, precisa ser guiada pela realidade – a origem das políticas de educação, suas metodologias e seu conteúdo para todo o projeto em busca de autogestão. Nesse sentido, a discussão sobre cooperativismo e gestão empresarial, com destaque para a autogestão, envolve temáticas presentes em todos os encontros promovidos em engenhos ou mesmo no ambiente da fábrica e inseridos nos conteúdos educacionais. Uma pedagogia articulada ao projeto de vida das pessoas, ao projeto de futuro. Ao longo desses dez anos de falência, muito se tem investido em procedimentos educativos, destacando, como lembra Milan Kundera, a morte das revoluções quando morrem as idéias que lhes dão sentido. A perspectiva contrária também se impõe como verdadeira. Em Catende, era preciso fazer nascer essas idéias, construir coletivamente um modelo de empresa diferente – autogestionário – e, assim, provocar uma revolução local. Uma pedagogia que ajudasse com que a idéia de poucos torne-se idéia de todos. Os processos de educação popular, permeado por valores da economia solidária com perspectivas de autogestão, passaram por três momentos:
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primeiro momento – educação massiva: 1996/1997/1998 – com grandes programas e cerca de 100 a 150 turmas, com apoio do governo estadual (Miguel Arraes) que articulavam produção, cidadania e combate ao analfabetismo, envolvendo mais de três mil trabalhadores. Uma educação que acompanhava a ampliação do plantio coletivo de mais de 4 mil hectares. Uma pedagogia que destacava o conhecimento e a tecnologia de plantio de cana e tratos culturais31; segundo momento – educação para autogestão e economia solidária: 1999 – 2000. Um momento de produção e exibição de vídeo em todos os engenhos e na fábrica sobre a crise na Zona da Mata e as possibilidades geradas na experiência da Catende. Este momento foi possível com apoios de outras organizações que atuam nesse campo da economia solidária, fortalecido por cursos de autogestão e economia solidária; e, ainda, um terceiro momento - educação sistematizada: Este é momento o momento atual com maior ampliação de objetos de educação em debate como a educação ambiental para crianças e adolescentes, cursos de formação à juventude voltados à produção direta na fábrica e na área rural, além de cursos de sementeira, ovinocultura, piscicultura, consórcio da juventude, cursos do PRONAF, elevação de escolaridade, cooperativa de produtores, gestão do projeto da cana de morador e outros. As pessoas estão assimilando por meio do exercício prático de participar, de pensar e de agir sobre a sua própria realidade com autonomia, um duro exercício de liberdade com responsabilidade coletiva. Esta compreensão de plantar lavoura, criar peixe, gado e outras culturas e delas se alimentar e comercializar são ações transformadoras no seio da grande plantação canavieira da Zona da Mata. Catende é uma empresa de trabalhadores e trabalhadoras. Estes apostam no princípio da democracia, da distribuição dos benefícios e na responsabilidade compartilhada com todos. Um processo que das empresas patronais, recuperam-se os princípios da eficiência, produtividade e concorrência de mercado, competindo com seu produto – o açúcar - no mercado interno e no exterior. Em meio a grande plantação de cana de açúcar, a população deste meio rural desenvolve seu aprendizado de vida, condicionado ao plantio, cultivo e corte da cana e, ainda, com baixa escolaridade. Considerações A educação popular em desenvolvimento neste projeto Catende /Harmonia mantém-se baseada na própria práxis de seus executores, no exercício cotidiano da gestão coletiva, na administração dos conflitos internos, na superação conjunta das dificuldades, na busca e consolidação de alternativas outras de geração de trabalho e renda e na melhoria da qualidade de vida daquela gente. É uma empresa de olhos na autogestão que vai se constituindo pela descentralização das decisões, ampliando a participação dos agentes envolvidos, debatendo questões do meio ambiente e buscando, ao nível interno, a construção de uma estrutura democrática e de novas relações de poder. Para tal ambiente, a educação popular precisa ajudar ao exercício do direito à informação e à busca de conhecimento, da produção e posse dos bens culturais existentes32. A educação popular em desenvolvimento no projeto Catende/Harmonia vem sendo direcionada pela história desse povo e pelos seus elementos culturais como bases para o ensinoaprendizagem. Persegue a dimensão do popular como metodologias propulsoras de exercícios e 31
Neste momento, houve a saudosa visita de Paulo Freire à Usina Catende e aos seus canaviais. Hoje, há uma escola, no Engenho Bela Vista, com o seu nome. 32 Ver, Álvaro Vieira Pinto, com destaque ao capítulo da teoria da cultura.
28 relações democráticas que possam estabelecer-se no parque industrial e na área rural. Pela dimensão do mundo concreto, as suas vidas, as suas histórias, estão sendo permeadas pelo princípio ético do diálogo e expressões promotoras da igualdade, da autonomia, da liberdade, da justiça e da felicidade. No projeto Catende/Harmonia, a educação popular realiza-se na construção de um empreendimento voltado à economia solidária e à autogestão, na perspectiva de mudanças, inicialmente daquele local, mas pensando as mudanças no mundo, sem que se façam grandes estrondos. Com essas possibilidades, a educação popular, nos marcos do trabalho, vem sendo instrumental de importante valia.
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Reuniões da economia solidária, nas dependências da Usina Catende - PE
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TEXTO 4 LUTAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO POPULAR PARA UM DESENVOLVIMENTO REGIONAL33 No início da década passada, com maior ênfase à zona da mata nordestina do Brasil, região da cana-de-açúcar, radicalizam-se vários tipos de lutas sociais de trabalhadores na busca de melhores condições de vida e trabalho, em especial no Estado de Pernambuco, na Usina Catende34. Essa experiência têm despertado interesses de analistas vários, decorrentes das formulações e implementação de políticas naquela região, e que possibilitam mostrar, o objetivo deste trabalho, a contribuição da educação popular para as lutas sociais, bem como, para a formulação de bases de um desenvolvimento regional e local.
Histórico O cultivo da cana-de-açúcar vem sendo fincado em marcos do passado, a partir da ocupação do território brasileiro pelos portugueses, desde o século XVI. Fruto da busca por metais preciosos por estas partes do mundo, implanta-se um tipo de cultura agrícola singular na colônia. Juntamente com o cultivo da cana, pouco a pouco estabelece-se um sistema de exploração humana decorrente da forma de ocupação do solo e das relações estabelecidas entre as pessoas. Essa sociedade, do tipo patriarcal, tem como base a figura do senhor de engenho que, em sua propriedade, detém o poder de vida e de morte sobre escravos, empregados e moradores. Cercara-se de capatazes, mestres de açúcar, destiladores de aguardente, caixeiros, funileiros, tanoeiros, capelães que eram responsáveis pela sustentação religiosa das formas de ação, às vezes impiedosas, daqueles senhores. Formavam um grupo de trabalhadores remunerados. Além destes, compunham o quadro social da época os plantadores de cana que, sem a posse dos engenhos, moíam as suas canas no engenho dos outros, os pequenos arrendatários e os trabalhadores livres, acrescidos com o declínio do tráfico negreiro. Completava-se o quadro social com os funcionários reais e comerciantes. Essa sociedade esteve marcada por profundos conflitos entre esses setores sociais, destacando as lutas entre senhores e escravos, geradores de atos de assassinatos, fugas de escravos fazendo surgir os quilombos, entre eles, os de Palmares e de Catucá. Destaque-se a Guerra dos Cabanos, em que negros escravos, brancos pobres e indígenas moveram-se contra o poder governamental. Aqueles senhores de engenhos de açúcar e, hoje, as usinas, mantiveram-se como os seus proprietários. Formaram famílias que continuam interligadas entre si, não só por interesses 33
Este texto tem como base empírica a pesquisa Extensão universitária, autogestão e educação popular realizada na Companhia Agrícola Harmonia – Usina Catende – na Zona da Mata Sul, Estado de Pernambuco, Brasil, concluída no ano de 2003, como parte do programa pós-doutorado, realizado com apoio conjunto da Universidade Federal da Paraíba/Brasil e da Universidade de São Paulo/Brasil (USP). É um texto presente no livro: Bildungsarmut in Deutschland und Brazilien. Frankfurt - Deutschland. Editora Peter Lang, 2010.
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A Usina Catende foi considerada, na década de 60 do século passado, a mais importante produtora de açúcar da América Latina. Veio a falir, na década de 90, estando judicialmente expressa como uma massa falida, sendo administrada por um conselho composto de técnicos, trabalhadores da própria usina e dirigentes sindicais rurais de cinco municípios do seu entorno. A usina situa-se no município do mesmo nome, congregando ainda os municípios de Água Preta, Palmares, Maraial, Jaqueira e Xexéu, todos no Estado de Pernambauco.
31 econômicos como, também, por laços de parentesco. Enraizaram um particular receituário de desenvolvimento e um estilo de cultura na região que insistem em permanecer. A forma secular de exploração canavieira gerou um modelo de desenvolvimento responsável por impactos sociais e ambientais, decorrente de suas características desde épocas passadas, estando presentes até os dias de hoje. Atributos expressos pela exploração da cana em regime de monocultura, caracterizados por propriedades de grandes extensões – latifúndios -, mão-de-obra escrava e negra, mantidos até o século XIX. Definiram formas de expansão indiscriminada e sem planejamento com a conseqüente destruição das florestas (Mata Atlântica). Introduziram o intervencionismo estatal, alimentaram o estilo familiar de gestão empresarial e promoveram o domínio do poder político e econômico por parte dos empresários do setor. Mas, a competitividade internacional do açúcar, gerada por outras colônias produtoras, conduziu a cultura da cana ao seu aperfeiçoamento técnico, investindo em certos aspectos agrícolas e industriais, considerando a característica da extração do açúcar como uma agroindústria. As moendas dos engenhos evoluíram da madeira para o ferro, deixando a forma vertical pela horizontal. A concorrência com o açúcar de beterraba exigiu a construção de outros meios de transportes como as ferrovias, visando à redução de custos. Com esta perspectiva, as últimas décadas do século XIX foram marcadas pela busca de planícies, em várias regiões do país, e implantação de novas técnicas no plantio, na colheita e na produção de outros tipos de açúcar, que não apenas o mascavo, com outro padrão de qualidade. É na esteira do avanço técnico dos engenhos banguês, transformados em usinas, que nos idos de 1892, edifica-se a Usina Catende, na Zona da Mata Sul de Pernambuco. Trata-se de um momento de expressiva expansão usineira no Estado, atingindo, aproximadamente entre 1917 e 1918, um total de 46 usinas de açúcar, chegando a 54 em décadas posteriores. Todavia esta cultura, a partir do início do século XX, vem mostrando várias debilidades com o não acompanhamento do desenvolvimento industrial. Tornara-se urgente a sua atualização técnica diante das práticas seculares da mão-de-obra escrava. Raros foram os estudos de custos agrícolas e preços da matéria-prima. O financiamento por parte do governo vira peça fundamental para a lavoura canavieira, além da definição de tarifas para transporte e dos impostos cobrados por esse mesmo governo. A situação de crise tem sido uma constante cíclica na cultura da cana. No início do século passado, discutiu-se no Rio de Janeiro e, posteriormente, em Pernambuco, o plano de valorização do açúcar, apoiado pelo então governador e também usineiro. Desta reunião, destacou-se a necessidade da modernização das usinas, da elevação da produtividade, de uma melhor remuneração para os fornecedores, da intensificação do trabalho de educação, do barateamento do crédito agrícola, além da introdução de outras variedades de cana que fossem mais rentáveis. É criado um sindicato próprio para a organização do comércio do açúcar. Além disso, a exemplo da Usina Serra Grande, no vizinho Estado de Alagoas, foi também proposto a diversificação da monocultura da cana, com a plantação do café, da seringueira e a prática da fruticultura. Enfim, apresentaram-se como fundamentais não só a diversificação da cultura da cana como, também, a modernização agrícola e industrial do setor. Vive-se um novo início de século. Agora, intensificam-se movimentos de mundialização da economia que passam a exigir maior rigor quanto à qualidade do açúcar, direcionando as preocupações para os custos do setor. Estes se apresentam com um forte diferencial de produtividade nas terras nordestinas, comparativamente às demais regiões do país. Se no Centro-Sul o custo da produção gira num intervalo de US$ 160 a US$ 190 por tonelada, estes valores atingem cifras de US$ 300, na região da mata nordestina. Para aumentar as dificuldades, verifica-se a incidência de forte carga tributária nacional com os encargos tributários e previdenciários que atingem o faturamento, a folha salarial e o lucro da atividade agrícola e industrial açucareira. Ora, esses problemas podem estar equacionados pelas políticas governamentais para o setor e para cada região do país. Dois ministérios, o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e o do Desenvolvimento, acompanhados por um conjunto expressivo de secretarias e conselhos, juntamente com a Agência Nacional do Petróleo e o Conselho Interministerial do Açúcar e do Álcool, com apoio do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) formam um
32 conjunto de órgãos federais que traçam as políticas e o fomento para o setor sucro-alcooleiro. Mas, segundo análises resultantes de pesquisas acadêmicas e dos movimentos sociais, as políticas para o setor têm sido dirigidas com maior ênfase ao planejamento, à gestão e ao estímulo de atividades com subsídios indiscriminados, com pouco, ou quase nenhum, controle de eficiência e de aplicação desses recursos. Constituindo um quadro estrutural da história da exploração canavieira no país, essas tradições, tanto na cultura do açúcar, com suas recorrentes relações, quanto nas políticas públicas, fizeram surgir um profundo quadro de exclusão social e de extrema pobreza. Basta ver que no Estado de Pernambuco, com um total de 184 municípios, em 116 deles, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) está abaixo de 0,500. Nos municípios da Região da Zona da Mata nordestina, esses índices variam de 0,296 a 0,479. No campo educacional, os índices do analfabetismo apresentados pelo IBGE, em 2002, estão em patamares alarmantes. Se a média nacional atinge a cifra de 16,67% de analfabetos, chegando a 32,60% na área rural, nas regiões canavieiras de Pernambuco e Alagoas, essas cifras atingem percentuais de 27% a 45%, com índices insuportáveis para o Estado de Alagoas. Todavia, quais são as questões econômicas ou sociais que nesse início de milênio desafiam o setor sucro-alcooleiro? Muitas dessas questões apresentam-se prisioneiras da estrutura montada de séculos passados, desafiando, do ponto de vista político ou técnico, as capacidades acumuladas de conhecimento na produção do açúcar. Pode-se dizer que os custos de produção na área rural e industrial agudizam-se, demandando investimentos em técnicas de plantio e de extração do açúcar e do álcool. A inovação técnica torna-se também imperiosa. Não pode deixar de manter um crescimento dimensionado em análises de mercado e de possíveis novas políticas para o açúcar e para o álcool, com ênfase à diversificação produtiva com perspectiva para a produção orgânica. Um processo de implantação de inovações, contudo, exige urgência em investimentos no humano, quase sempre esquecido. Permanece, ainda, uma profunda defasagem escolar, observando o grau de analfabetismo ou mesmo o total de anos de escola dos trabalhadores rurais. O trabalhador deste setor agroindustrial continua padecendo das mazelas do modo concentrador de renda e da terra em que se vive, abalando os processos produtivos familiares e, sobretudo, ambientais. Enquanto a cana apresenta-se como algo certo e gerador de riqueza, fazse mister a criação de alternativas sustentáveis de geração de ocupação e renda para a região, sobressaindo as possibilidades de um regime cooperado. As reivindicações dos movimentos sociais apontam, ainda, para problemas de habitação, de saúde, de recomposição das florestas, alertando para o trabalho de criança, o trabalho clandestino, a aplicação e uso de agrotóxicos, os efeitos do implante de técnicas mecânicas e seus impactos sociais, além das questões de cunho salarial. Os trabalhadores estão alertando as autoridades para a essencial prioridade que é o seu sustento alimentar. Reclamam políticas que dêem prioridade ao mercado interno do país, pensando na distribuição de renda para todos. O manejo de culturas continua na pauta dos trabalhadores, com o aproveitamento das várzeas para o plantio da cana com apoio do crédito agrícola e com assistência técnica garantida. Mas, a implantação de novas culturas e o avanço do cultivo da cana podem estar orientados para um desenvolvimento e uma economia que fomentem experiências em bases solidárias. Para a sua realização, urgem processos organizativos dos setores populares na perspectiva de mudanças de correlações de forças dominantes. Daí, a importância da criação de bancos do povo e diferenciados modos de políticas tributárias e fiscais. É fundamental a assessoria técnica, administrativa, jurídica e mercadológica aos empreendimentos populares, sendo necessária a atuação desses setores na formulação de políticas públicas, como na educação, capacitação tecnológica e profissional. Enfim, a modernização dos serviços públicos, priorizando o atendimento às maiorias. Um cenário de lutas É neste tempo cultural que se situa a Usina Catende. O Projeto Harmonia/Catende surge na própria usina, no município de Catende, a partir das lutas dos trabalhadores rurais, no início da década de 90. Inicialmente, concentrou suas atenções nos direitos às indenizações trabalhistas de 2.300 trabalhadores rurais, demitidos pelos usineiros - os donos das usinas - em
33 1993. Essas lutas foram coordenadas pelos Sindicatos de Trabalhadores Rurais dos municípios (Catende, Palmares, Água Preta, Xexéu e Jaqueira) envolvidos nas atividades da usina, pela Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco – FETAPE, além dos operários da própria usina. Houve vários momentos de diferenciações dessa luta que passou por reivindicações como: direito ao emprego (1994), reforma agrária (1995/6), manutenção do patrimônio como reserva de valor para pagamento dos direitos trabalhistas (1996) e a construção da Empresa dos Trabalhadores – Companhia Agrícola Harmonia (1998). Este projeto é, portanto, uma confluência de forças políticas que envolvem a organização sindical, a qualidade técnica e política de colaboradores que participam da administração da massa falida e as políticas institucionais do Estado de Pernambuco, identificadas, naquele momento, com as buscas de alternativas para a sobrevivência da Zona da Mata. São essas forças que, no ano de 1995, exigem e conseguem a saída dos donos do controle do patrimônio – os usineiros. Em comum acordo com os maiores credores, Banco do Brasil e Governo do Estado, indicam um síndico para a administração geral das políticas da empresa. Esse movimento de reorganização da usina promoveu vários estudos e debates com os trabalhadores ativos no processo de falência da empresa, contribuindo, efetivamente, para que as deliberações finais sobre a problemática da Catende fossem conquistadas de forma participativa e livre. Após longas discussões, tomaram as seguintes deliberações: 1) evitar o fechamento definitivo da empresa, impedindo a dilapidação de seu próprio patrimônio, com a manutenção de 2.800 empregos diretos; 2) garantir empregos e possibilidades de geração de novos postos de trabalho; 3) recuperar a empresa em moldes da diversificação industrial e agrícola de culturas, e 4) construir e consolidar uma empresa autogestionária – a Companhia Agrícola Harmonia. O patrimônio deste novo empreendimento político dos trabalhadores, no município de Catende em época de safra, envolve perto de 15.000 pessoas em suas atividades de produção de açúcar. Mantém um quadro permanente de, aproximadamente, 1.800 trabalhadores no campo e na indústria. É possuidora de 48 engenhos, num total de 26.000 hectares de terra, onde se desenvolvem as atividades de plantio e colheita da cana. Vive nessas terras 1.100 famílias, vinculadas à usina. Some-se a este patrimônio uma hidroelétrica, produzindo energia para além do consumo da empresa, em condições de venda de energia para demandas de até 4,4 MW. Várias casas-grandes - antigas residências de usineiros - estão sendo utilizadas para atividades de educação, creches e alojamento para trabalhadores, grupos de voluntários e apoiadores do projeto, bem como para eventuais pesquisadores que buscam elementos teóricos aos seus trabalhos acadêmicos, nesta experiência em desenvolvimento. Existem, com potencial de uso, 8 açudes de variada capacidade de armazenamento de água que, somados ,podem irrigar até 4.000 hectares das terras da usina, sendo a sua maior parte por gravidade. Há, ainda, um parque industrial para a produção de açúcar, álcool (destilaria desativada) e ração animal, acompanhado de uma cerâmica industrial, uma metalúrgica e uma frota de 38 unidades entre caminhões e tratores. A tudo isto, estabelece-se uma inquebrantável força interior dos que se esmeram neste empreendimento, tanto trabalhador do campo como da cidade, na defesa intransigente pela permanência ativa da Usina Catende, mesmo que permeada de momentos de desânimos, quando os frutos esperados não são imediatamente alcançados. Contabilizam-se nesse patrimônio falido, dívidas, inclusive trabalhistas, que rondam a casa dos R$ 960 milhões. Isto tudo abre para todos desafios políticos imensos, sobretudo quando os desejos apontam para um caminho que conduza ao exercício autogestionário. São passados quase 10 anos de tentativas, de acertos e de erros, na busca de implantação do projeto Harmonia/Catende. O que se pode apresentar como destaques, ao longo desse tempo, de um movimento experimental e de intervenção social em uma realidade despedaçada e alienada de suas riquezas, e ao mesmo tempo cheia de potencialidades? Afinal, o que Catende tem a dizer dessa busca de sustentação econômica, para o desenvolvimento local e para a Zona da Mata do Nordeste do país? Durante esse espaço de tempo, vários acontecimentos, das mais diferenciadas dimensões, foram compondo o cotidiano do projeto. Primeiro são os enfrentamentos jurídicos. É comum, em processos de falência, a dilapidação do patrimônio da empresa. Aqui não foi diferente. Os usineiros procuraram vender engenhos com as melhores terras ou mesmo partes do
34 parque industrial. Ora, foram impedidos pela própria justiça e, em outros momentos, pela organização própria dos trabalhadores, que dificultaram a tomada de posse dessas terras pelos compradores - os „laranjas‟ de usineiros. Foi marcante a reação política de forças que não viam importância alguma no projeto Harmonia/Catende, enquanto que enxergavam com clareza o avanço dos trabalhadores, construtores de suas próprias alternativas de vida. Isto levou à instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), por parte da Assembléia Legislativa Estadual, para análise da Catende/Harmonia, sob a alegação de desvio de dinheiro público aplicado naquele empreendimento. Nada, contudo, foi constatado, retomando-se a marcha organizativa dos trabalhadores. Houve ocupação de partes das terras pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), sendo recuperadas após exaustivos entendimentos entre os próprios trabalhadores. Enfrentou-se ainda uma grande enchente no rio que banha o parque industrial da empresa, conduzindo a prejuízos em torno de R$ 3 milhões em um orçamento com dificuldades de atendimento à própria folha de pagamento. Conviveu-se, recentemente, com uma greve de trabalhadores no setor industrial que durou 3 meses (maio a julho de 2002), sendo superada por meio do diálogo entre o setor da administração, com os sindicatos rurais e o sindicato da representação dos operários em greve. Some-se um incêndio(novembro de 2002) na casa central geradora da energia da usina, em plena fase de produção, com prejuízos em torno de R$ 2 milhões. Tudo isto, no entanto, não chegou a arrefecer os ânimos dos trabalhadores que, sem comprometer a moagem em curso, mantiveram a estimativa da produção de 1 milhão e 50 mil sacos de açúcar de 50kg, atingindo no final da safra um total de aproximadamente 950 mil.
Algumas conquistas Nesses anos, salta aos olhos que os trabalhadores rurais, mesmo com dificuldades, iniciaram uma fase de maiores expectativas de se viver, permanecendo nos engenhos, reduzindo o êxodo rural. Superam-se, pouco a pouco, velhos preconceitos como a alcunha de preguiçoso, ao trabalhador do campo. A usina, combinando recursos próprios com os de organizações não governamentais e do Estado, consegue reduzir o índice alarmante de quase 60% de analfabetos em sua área rural, para 35%, considerado ainda muito alto, isto até o ano 2000. A empresa foi contemplada com o prêmio da Fundação Abrinq-Empresa Amiga da Criança, como reconhecimento da erradicação do trabalho infantil em seus canaviais. Reabre uma policlínica em convênios com Centros de Mulheres (Ongs), implantando programas de saúde da mulher. Em suas programações de cursos procura atender às cotas reivindicadas pelas mulheres. Vários projetos governamentais têm sido buscados pela usina para garantir a segurança alimentar das populações rurais, sobretudo em momentos de entressafra da cana. Implantou-se uma fábrica de ração derivada do bagaço de cana-de-açúcar, com tecnologia cubana, pelo processo de hidrólise do bagaço e enriquecimento, através do vapor e mel - produtos da própria usina - mais a uréia, mantendo-se a discussão de sua importância e viabilidade econômica. Foram feitos investimentos na recuperação da hidroelétrica, possibilitando a revenda da energia ao Estado, decorrente da recente crise(apagão), que findou não sendo consolidada. Adquiriram-se novos equipamentos para o parque industrial como uma caldeira, com capacidade de 80 toneladas de vapor por hora e 21kgf por centímetro quadrado de pressão, aumentando e melhorando todo o processo da produção do açúcar. A usina passa a gerar e distribuir renda através de um projeto denominado Cana de Morador, onde o morador do engenho passa a plantar e colher a cana para si próprio, em terras da usina, contribuindo para sua própria melhoria de vida e seu enraizamento na terra, além de garantir a matéria-prima para a indústria. Inicialmente, uma produção de 15 mil toneladas de cana que, após 4 anos de incentivos, ultrapassou a estimativa esperada de 120 mil toneladas para a safra de 2002/2003. Outrora, esses moradores não dispunham de qualquer porção de terra para cultivo de culturas que não a cana, ou mesmo a criação de animais de pequeno porte. Paralelamente, convive o projeto de Plantio Coletivo da
A moagem – tempo de colheita da cana – estende-se, normalmente, do mês de setembro de um ano ao mês de março do ano seguinte.
35 Empresa, dispondo, atualmente, de 7.300 hectares de cana, 40 hectares de café conilon, 130 hectares de milho e quase mil cabeças de gado, administradas pelos moradores desses engenhos. O projeto Harmonia/Catende é herdeiro de problemas estruturais da cultura da cana-deaçúcar. Contém questões antigas e desafiantes para serem superadas, além de trazer novos questionamentos aos projetos de desenvolvimento e ao estilo econômico, em vigor. De forma deliberada, tem ponto central a necessidade da vida humana, comumente esquecida em megaprojetos governamentais para a região da mata. Todavia, parece que aqueles trabalhadores encontram ânimos em nomes sugestivos de seus próprios engenhos como Boas Novas, Porto Seguro, União, Ousadia, Harmonia e Esperança.
Desafios Contudo, o processo de falência continua, estando com todas as peças técnicas necessárias em mãos da justiça para a realização do fechamento que se espera e, tudo indica, favorável aos trabalhadores. Mesmo assim, não se pode parar. Definido o vetor, este aponta para a diversificação dos derivados da cana com sustentabilidade ambiental, aproveitando áreas não rentáveis ao cultivo dessa cultura e diversificação de seus derivados. Fomenta a agricultura familiar como a cana do morador do engenho, a pecuária, o beneficiamento dos derivados da mandioca, piscicultura, cana orgânica e a fruticultura. Assim, há o estímulo de novas atividades produtivas e do pequeno produtor autônomo, gerando ocupação e renda, agregando valor econômico e simbólico à agricultura familiar e à construção da empresa dos trabalhadores em caminhos para uma autogestão planificada de seus produtores associados. Com a diversificação de cultura e o uso familiar da propriedade, espera-se contribuir para a superação da monocultura da cana-de-açúcar, mantendo-a como o principal produto, porém estabelecendo novas relações sociais para além das formas tradicionais de dominação e intimidação dominantes. O aspecto técnico que conduz para a alteração nas relações e na divisão do trabalho não tem tido maiores avanços, mesmo que cursos de educação técnica para a área rural e para atividades no espaço interno da indústria estejam acontecendo. É possível afirmar-se que o exercício de auto-análise, provocado por cada momento que tem passado o projeto Harmonia/Catende, vem acontecendo, porém, sem sair da dimensão restrita de dirigentes, carecendo enraizar-se por todos os ambientes das pessoas envoltas diretamente no projeto. A auto-análise, como a capacidade do grupo de provocar estudos e discussão sobre aquilo que anda edificando socialmente, é uma das condições importantes para uma maior radicalidade na democracia do projeto. Há profundas diferenças de percepção quanto à participação em empreendimentos solidários. Elas são resultantes das várias dimensões existentes no processo participativo. Questionado sobre se os trabalhadores administram a Usina Catende, várias são as respostas: “Eu quero dizer que, na verdade, os trabalhadores ainda não administram completamente a usina, considerando que se vive um processo judicial. Mas, há uma preparação para que essa coisa no futuro aconteça, muito embora, todas as decisões e o processo que temos conduzido nesses sete anos de falência, têm sido construídas a partir do trabalhador. Então, na verdade, o trabalhador tem uma participação muito grande” (Marivaldo – Presidente da Companhia Agrícola Harmonia/Catende)35.
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Esta citação e as demais que seguem estão nas entrevistas realizadas para a pesquisa – Extensão universitária, autogestão e educação popular, contidas no relatório: Usina Catende - entre a Doçura e a Harmonia, coordenada pelo Prof. José Francisco de Melo Neto, da Universidade Federal da Paraíba. Este relatório encontra-se na sede da Companhia Agrícola Harmonia, na Usina Catende, e nos 5 (cinco) Sindicatos de Trabalhadores Rurais do entorno da Usina Catende.
36 A dimensão dessa participação diferencia-se quando a mesma questão é apresentada a outros trabalhadores. Observe-se a visão externada pelo dirigente sindical operário nesta indústria: “Não. Nem os operários administram Catende, nem os trabalhadores do campo administram Catende. Quem administra Catende é o Dr. Bruno Ribeiro, o Dr. Mário Borba e o Dr. Adalberto, que é o juiz da massa falida. Esses três são os administradores da Catende. Alguns companheiros também dão algum tipo de assessoria, acompanhando na questão administrativa. Eu acredito que futuramente, vamos administrar Catende, mas isso é um processo de longo prazo” (Francisco Leandro – Vice-presidente do Sindicato dos Operários na Indústria de açúcar e do álcool do Estado de Pernambuco, e operário da Usina Catende). Uma outra visão é a de trabalhadores do campo e que exercem algum tipo de liderança no ambiente de seu trabalho. A mesma questão adquire outra perspectiva ao considerarem que tem havido um salto muito expressivo. “Sim, com toda certeza. Administra porque eu sou trabalhador e eu me sinto no direito e no dever. Ninguém nunca me negou isso, por mais que tenha sido um pouco grosso. Eu chego na usina, entro na sala da Harmonia, digo o que eu quero dizer dentro do que eu vejo que está certo. Falo, discuto com o Dr. Mário, com o Dr. João, com o Marivaldo, com Natanael, com Amaro Jovino e com os companheiros que ali trabalham. Eu sinto que os trabalhadores são donos de Catende e administram a Catende. Há, inclusive, um conselho em que os presidentes dos 5 sindicatos rurais da região e do sindicato dos operários fazem parte” (Elenildo Ferreira – Presidente de Associação do Engenho Riachão). Outras perspectivas externadas se mantém muito próximas de respostas positivas e outras que se afastam dessa posição, questionando a participação dos trabalhadores. As diferenciações parecem estar bastante relacionadas com o nível de informações que cada um está recebendo. Um dirigente de associação está mais próximo da direção central do empreendimento e, conseqüentemente, recebe um maior volume de informes nas conversas que participa, mesmo em caráter informal. As demais visões externam essa diferença quando apresentam uma maior cobrança para a participação, reivindicada pelos dirigentes sindicais. Há também o reconhecimento de que esta tem sido limitada, segundo afirma o próprio presidente do empreendimento Harmonia/Catende. Outro aspecto é que existe diferenciação na visão e na participação interna dos empreendimentos com perspectivas solidárias, decorrentes das próprias informações que são repassadas, considerando as peculiaridades de negociações com o mercado internacional do açúcar. Há, em geral, um quantitativo dessas informações que não são colocadas à disposição do conjunto com antecedência, devido a velocidade das relações com o mercado. Outras, se quer, chegam a todos, refletindo na perspectiva de atuação de cada trabalhador, revelando uma diferenciação de sua influência sobre as questões de seu trabalho. Também, podem ser destaque as estruturas de como os trabalhadores são escolhidos para realizarem suas tarefas de representação em empreendimentos com expressiva quantidade de trabalhadores envolvidos. Esses mecanismos interferem na participação nesses ambientes voltados a uma economia que possa tornar-se, efetivamente, solidárias, provocando diferenciações em suas práticas. É importante salientar que esses aspectos não necessariamente caminham juntos. Surgem ou desaparecem, diferenciadamente. Às vezes, avança-se em determinados espaços e em outros há retrocessos ou inexiste qualquer tipo de investimento naquela direção. Contudo, é importante que sejam considerados todos ao mesmo tempo, para efeito de melhor análise do empreendimento.
37 Sobre as dificuldades presentes no empreendimento Harmonia/Catende, observe-se: “Vejo que a intenção da indústria é muito boa. O trabalho em equipe é muito bom, só que, do lado do trabalhador rural, há uma resistência muito grande pela questão da cultura, do paternalismo e da submissão. Há uma resistência muito grande pelo lado do trabalhador em aceitar toda essa situação nova... Às vezes isso tem trazido conflitos entre Sindicato, trabalhador e Associação. Acho que isso é natural, pois o trabalho da monocultura da cana e da exploração é secular e é difícil mudar a concepção das pessoas” (Edjane Lima – Professora e integrante da equipe de educação da Harmonia/Catende).
Ou mesmo quando a preocupação sobre o processo na Harmonia/Catende volta-se estritamente à questão da participação: “A minha preocupação é fazer com que esse projeto seja um projeto de todos e não um projeto de poucos. Os trabalhadores e trabalhadoras precisam estar discutindo, pensando e encaminhando a concretização desse projeto, porque entendo que o pessoal está muito à margem disso. Também acho que o trabalho informativo, educativo, de conscientização é que vai favorecer a participação dessas pessoas” (Izabel Cristina – Assessora de Educação da Harmonia/Catende). A mesma preocupação continua, porém, em um outro ângulo de visão e no estilo reivindicatório: “Vejo como maior dificuldade, o fato de que os trabalhadores não entendem aonde é que esse projeto quer chegar. E a dificuldade maior chama-se falta de informações. Esses são carentes de informações e querem participar. Na realidade, eles participam só na produção, e as pessoas que administram tem esse cuidado. As pessoas que estão à frente aceitam apenas aquelas pessoas que sirvam para colaborar e não ´atrapalhar` com questionamento” (Edvaldo Ramos – Diretor de Base do Sindicato dos Operários na Usina Catende). Para Risadalvo José (Ex-assessor da Harmonia/Catende), além dos problemas econômicos, sobre as dificuldades nos processos de participação que estão sendo encaminhados, cita que: “há problemas de se planejar estrategicamente a ação dos bons quadros e atores existentes em torno do projeto Harmonia/Catende. Todos aqueles dirigentes são importantíssimos mas é possível aproveitar, ainda mais, o potencial deles num todo. As pessoas também têm muito potencial e é necessário ajuda-los nisso. Não se pode sobrepor recursos, pessoas ou ações. Você tem várias pessoas e o projeto precisa avançar no conjunto. Catende tem 48 engenhos e precisa ter ações acontecendo em todos eles. Ações de educação popular, de formação de dirigentes de cooperativas, projetos com grupos de engenhos. Trabalho para todo mundo mas que precisa ser muito planejado”. Experimentos dessa natureza vêm na contramão de políticas que vinham sendo implementadas no Brasil e, hoje, com reduzida intensidade. São políticas que também estavam defendendo o desenvolvimento, mesmo que para isso tivessem de promover a privatização das empresas do país, a falência e desnacionalização de empresas, o avanço do desemprego e, sobretudo, o fim da agricultura familiar com a conseqüente redução do mercado doméstico. Empreendimentos com a perspectiva de uma economia solidária enfrenta, assim como o da Usina Catende, outros maiores problemas que estão fora de suas condições de solução. Em
38 projetos dessa natureza, não se pode esperar que venha resolver o problema do desemprego, considerando que este problema não tem dimensão apenas local ou regional. Sua solução no âmbito local, paradoxalmente arrasta para aquele ambiente outras massas de desempregados de outras localidades. Também, é de se notar que o avanço de um novo tipo de desenvolvimento, pautado em valores de uma economia popular ou solidária, vincula-se a outras necessárias tentativas em todo o território nacional e formação de redes internacionais de mercado solidário. Esses tipos de projetos precisam juntar-se a outros como um exercício experimental de alternativas que promovam possibilidades de igualdade, solidariedade e proteção ao meio ambiente. Procuram encontrar caminhos a partir dessa realidade mesma, cheia de profundos contrastes. Mesmo assim, projetos locais se constituem como eixo estratégico para governos com dimensões populares, partindo da constituição de uma força política local e movendo-se para um grande movimento nacional. Uma grande oportunidade que vem se consubstanciando em todo o país foi a do planejamento participativo, a partir de experiências locais no Rio Grande do Sul, sobretudo. Isto só será também possível com um maior alastramento de seus resultados e início de novas experiências que ajudem na construção de um outro modelo que possa combinar as lutas sociais com essas experiências locais, no embate com o modelo dominante de desenvolvimento. Um avanço para superação desse modelo capitalista vai se tornando possível quando se radicaliza na caminhada para a democracia, para a independência nacional e um desenvolvimento econômico que tenha como prioridade o social. Mas, essa ampla caminhada de experimentos, buscas, acertos e erros e estímulos à organização e participação dos trabalhadores de forma ampla, nos vários setores da sociedade só é facilitada por meio de um amplo processo educativo em que a própria educação sofra a interferência das classes trabalhadoras. Uma educação que possa estar voltada ao tempo dos trabalhadores e às dimensões ético-políticas que conduzem o dia-a-dia de cada indivíduo. Esta educação precisa expressar, também, as expressões populares – necessariamente, uma educação popular. Será necessário, contudo, o questionamento: que tipo de educação é útil a esse processo de emancipação humana? Educação popular Diante da variedade de possibilidades em educação popular36, no momento político que se vive, este debate parece cobrar reflexões sobre os vários elementos que podem estar conjugados, traduzindo uma formulação conceitual sobre a educação popular para as condições 36
Vários e importantes pesquisadores no campo da educação popular, como Vanilda Paiva, Osmar Fávero, Celso de Rui Biesiegel, Luiz Eduardo Wanderley, Carlos Rodrigues Brandão (sobretudo em suas obras da década de setenta e oitenta) vêem dificuldades na conceituação da educação popular, considerando a diversidade de movimentos onde pode ser exercitada. Outros pesquisadores vêm contribuindo para o avanço do debate sobre as mais diferenciadas questões nesse campo. É possível citar alguns como Timothy Ireland, em educação de jovens e adultos; Eymard Vasconcelos, no campo da educação popular e saúde; Wojciech Kulesza, na metodologia e história das ciências e educação popular; Alder Júlio Calado, em movimentos sociais e educação popular; Luiz Rodrigues, nos aspectos psicológicos da educação popular e outros, no Programa de Pós-Graduação em Educação Popular, Comunicação e Cultura da Universidade Federal da Paraíba. Acompanham pensadores como Etore Gelpi, na busca de novos paradigmas para a educação popular; Michel Seguier com suas análises sobre a criatividade coletiva; Osmar Fávero, na história da educação popular; Francisco Vio Grossi, na educação de adultos na América Latina; Alfonso Lizarburu, Oscar Jara, João Francisco de Sousa e Sérgio Haddad, além de outros. Há importantes arquivos de organismos que mantêm a sua atuação em educação popular, como o do Centro de Documentação e Informação (CEDI), o Centro Pastoral Vergueiro e o Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (CEPIS), o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU) e mais recentemente o Instituto Paulo Freire. Além destes, há um conjunto de organismos que atuam no campo de economia solidária, podendo contribuir ainda mais para a discussão em educação popular, como a ANTEAG, a FASE e ADS/CUT e outros.
39 atuais. Se a premissa pode ser aceita, é razoável a delimitação de vários constituintes para a sua compreensão, podendo ser fundado a partir de um conjunto de categorias que tem estado sempre presente nesses exercícios educativos, isto é: cultura, experiência histórica, popular, realidade concreta, trabalho, igualdade, autonomia/liberdade e diálogo. São referencias que vêm alimentando a história e as práticas em educação popular, constituindo-se como elementos essenciais para o seu exercício, fecundando enormemente a sua compreensão e o seu distanciamento de outros sistemas de educação e, sobretudo, contribuindo para outro um tipo de desenvolvimento nos marcos que vêm sendo debatido. A cultura As análises e práticas em educação popular originam-se, normalmente, da compreensão de cultura. O método Paulo Freire de alfabetização, por exemplo, tem início com a definição de um universo vocabular, definido a partir da cultura naquele ambiente. Contudo, a perspectiva de cultura apresenta expressiva dificuldade em sua conceituação. Pode-se observar, ainda, que a multiplicidade conceitual de cultura também traduz e expressa, do ponto de vista político, a visão alicerçada nas bases explicativas e dominantes da sociedade, em seus variados modos de produção. O início da cultura não é, portanto, datado, mas coincide com o processo de hominização. A criação da cultura e a criação do homem são na verdade duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a principalmente social na segunda, sem, contudo, em qualquer momento deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente (Pinto, 1979: 122). Os produtos culturais são aqueles gerados dos mecanismos nos mais variados processos produtivos e os gerados da dimensão social presente nas relações humanas. Nesse sentido, torna-se ente cultural o museu, o quadro de famoso pintor, as esculturas de famosos escultores, etc. São expressões culturais os óculos ou lentes usados no cotidiano, a caneta, a ferramenta de trabalho, o computador, a peça teatral, o trator, o software, o processo de produção de conhecimento e a tecnologia. Todos estes entes são frutos do processo produtivo e resultantes da dimensão manual e intelectiva da espécie humana. A cultura, na perspectiva apresentada, isto é, como produto do processo produtivo, adquire dupla natureza. Cultura, expressa pelo bem produzido, torna-se bem de consumo, enquanto resultado expresso em coisas e artefatos e subjetivado em idéias gerais do mecanismo produtivo. Cultura se converte, ainda, em bem de produção, subjugando a realidade e submetendo-a às suas reflexões, gerando novos produtos e novas técnicas de exploração do mundo, dando-lhes, pelas idéias, significados e finalidades para as suas ações. Assim, é que a educação popular não pode deixar de lado a dimensão da cultura das pessoas ou dos grupos locais, incentivando todos a assumirem os bens culturais produzidos pela humanidade. O popular Souza (1999) vincula o popular a determinados movimentos sociais. Esses movimentos expressam correntes de opiniões capazes de firmar interesses diante de posicionamentos contrários dos dominantes. Elas são externadas sobre os vários campos da existência individual e coletiva desses setores da sociedade. Nesse sentido, o autor considera os “segmentos sociais explorados, oprimidos e subordinados, cujos temas, quase sempre de maior incidência em suas vidas, em seu cotidiano, são: trabalho, habitação, alimentação, participação, dignidade, paz, direitos humanos, meio ambiente, gênero, gerações etc” (ibid.: 38). Este temário caracterizaria um movimento social popular.
40 Esta última forma caracteriza-se como algo novo, na medida em que vincula a comunicação popular a algo voltado às classes subalternas da sociedade, às “lutas do povo”, adquirindo duas possibilidades, segundo Canclini (1987): a primeira concebe o popular como sendo algo libertador, revolucionário e portador de conteúdos críticos, concretizando-se através de alternativas marcantes no início da década de 80; a segunda nasce nos anos 90, diante das mudanças que vinham ocorrendo. Nessa concepção, o popular apresenta-se numa perspectiva dialética e mais flexível, como algo que contribua para a democratização da sociedade e da cultura. Na perspectiva do popular como algo que promove a democracia, segundo Rodrigues (1999: 23), há a exigência de que os grupos que compõem o povo precisam se comportar democraticamente. Para ele, “muito mais através de ações que de palavras, a educação popular objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua”. Outros vislumbram o popular como algo que se expressa por encaminhamentos dirigidos a essas maiorias, pautado em procedimentos. Nessa concepção, ser popular é tornar-se expressão de uma metodologia, mas só terá significado quando expressar uma visão de mundo em mudança, contendo em suas ações a dimensão de propor saídas para as situações de miséria vividas pelo povo. É uma visão que exige iniciativas no plano político, normalmente, originais, pois marcam a própria autonomia desses movimentos definidores de um novo tecido social embasado em outros valores e objetivos. Esta perspectiva, entretanto, é bastante minoritária entre os ativistas dos movimentos sociais. Há, ainda, outras visões, pouco expressivas quantitativamente ou prisioneiras da idealização existente nesses movimentos sociais populares.
Concepções de popular 37
CAMPOS TEÓRICOS DAS CONCEPÇÕES
QUANTITATIVOS DAS CONCEPÇÕES
1. ORIGEM Algo é popular quando tem origem no povo, nas 20,68% das compreensões externadas apontam maiorias. para a visão de que algo é popular quando tem essas origens. Alguns indicadores38: vem da base; vem da experiência do povo; vem da tradição do povo; vem das classes desprivilegiadas; vem das maiorias. 2. METODOLOGIA
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Pesquisa realizada sobre a compreensão de popular, entre vinte e oito dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas do Estado da Paraíba, e a quinze dirigentes de movimentos sociais populares, no ano de 2001. Desta pesquisa resultou o livro: Política e mudanças: perspectivas populares, citado na bibliografia.
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Oitenta e sete indicadores foram selecionados para caracterizar as concepções de popular.
41 Algo é popular quando traz consigo um procedimento que incentive a participação, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a busca da cidadania.
51,73% das compreensões externadas apontam para a visão de que algo é popular se expressar mecanismos que contribuam para o exercício da participação. Popular como sinônimo da própria prática.
Alguns indicadores: algo referente ao povo humilde; ampliando canais de participação; exercitando participação ativa; possibilitando tomada de decisão; ouvindo e implementando decisões; promovendo novas formas de intervenção das massas. 3. POSICIONAMENTO POLÍTICOFILOSÓFICO Algo é popular se expressar um cristalino posicionamento político-filosófico diante do mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias.
21,84% das compreensões externadas apontam para a visão de que ser popular é posicionar-se diante do mundo, tomando um posição promotora de mudanças.
Alguns indicadores: assumindo as lutas do povo; atendendo interesses da população; resgatando a visão de um mundo em mudanças; propondo melhoria de vida do povo; trazendo a perspectiva do povo. 4. OUTROS ASPECTOS
5,71 % compreendem a questão do popular como algo que deverá estar na consciência de cada indivíduo.
Foram apresentadas outras concepções trazendo as possibilidades de que ser popular passa pelo institucional. Pode ter origem no institucional, como sindicatos, associações ambientalistas, etc. Outros entendem que ser popular é uma questão de consciência. Alguns indicadores: Algo que vem de associação (comunidades de base, movimentos dos semterra, sindicato); uma questão de consciência.
Como se vê, popular adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as atuais exigências. Nessa perspectiva, é possível mostrar um movimento conceitual que envolva os elementos que sempre estiveram presentes nos variados momentos históricos e outros que foram sendo assimilados com o tempo. O termo relaciona suas dimensões constitutivas, ao mesmo tempo em que se diferencia de cada uma delas, porém mantendo-as na sua unidade conceitual. Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que se tornam uma exigência social. O concreto
42 Essa busca radical cobra uma metodologia que seja voltada às perspectivas de atendimento desses sonhos. A teoria do conhecimento dessa metodologia exige que os dados contribuam para gerar um conhecimento necessário e ainda se preste para atender os interesses das classes que se libertam. Os constituintes metodológicos para o campo da produção do conhecimento são os da metodologia dialética e os da teoria política da hegemonia39. A dialética a ser adotada se externa como um método que se eleva do abstrato ao concreto. De forma triádica, pode-se expressar como um movimento em torno dos seguintes vetores: o concreto real, a abstração e construção teórica de um novo concreto e o concreto pensado. Um trabalho que procura realizar tal esforço teórico na busca de atuais e sustentáveis categorias para a compreensão desses movimentos em educação, estando politicamente definidos para dar impulso às transformações mais profundas – um movimento de educação popular. O trabalho O trabalho possibilita o caminho das abstrações que conduz à definição de categorias do real, buscando aquelas categorias mais simples, porém com possibilidade de maiores explicações para a situação em que se encontram a realidade e as situações de determinação, onde estão acontecendo atividades de educação. O trabalho se constitui como elemento constante na dimensão do popular, sendo o fazer educativo, efetivamente, o trabalho em si mesmo. Na educação voltada aos interesses dos trabalhadores, o trabalho intelectivo dos atores dessa educação percorre o caminho da produção de abstrações mais gerais com condições explicativas da situação de vida daquela comunidade ou grupo social. Com essas abstrações mais gerais, torna-se possível a compreensão da situação do momento em que se vive, possibilitando além disso maiores e melhores explicações históricas das determinações de cada momento histórico dos objetos de estudo. Assim, torna-se possível a definição daqueles instrumentos teóricos, das categorias teóricas que possibilitam, finalmente, definir-se de que forma montar a análise e por onde começá-la, buscando resposta às questões levantadas. É um processo de trabalho que vislumbra a produção do conhecimento social e útil, capaz de tentar superar a realização do trabalho alienado. Este trabalho social gera um produto que também apresenta suas contradições, mas que se constituirá, sobretudo, como uma mercadoria social, na medida em que é produzida por aqueles que realizam a educação de cunho popular. É um produto, seja conhecimento teórico ou tecnológico, que precisa ser gerenciado pelos produtores principais, tornando possível a socialização desse produto, caracterizando esse momento como o da devolução das análises ou outros produtos culturais aos seus produtores. Vive-se, nesse momento, a apropriação dos bens culturais, por meio desse trabalho intelectivo ou técnico. Isto possibilita um novo agir sobre a realidade, gerando conhecimento nas ações pedagógicas, aprimorando, ainda mais, a capacidade de aprender desses atores, buscando dimensões outras de facilitação dessa aprendizagem, elaborando outra teoria em educação, e ainda desenvolvendo as suas habilidades políticas para intervirem na elaboração da própria política da educação com novas normas e orientações pedagógicas. Um trabalho que, do ponto de vista ontológico, orienta-se para a realização das necessárias transformações, buscando-se a superação de processos de exclusão e promotores de injustiças. A autonomia/liberdade Autonomia pode ser entendida como a condição de cada um de poder governar-se por si mesmo e de forma independente40. Interliga-se com a liberdade, tendo em Kant o significado da capacidade que o indivíduo tem de agir por si mesmo. Como liberdade, autonomia pode traduzir um sentido político. É de Spencer a conhecida formulação de que “a liberdade de cada um 39
Uma das interpretações gramscianas de hegemonia é desenvolvida por Limoeiro Cardoso em seus dois livros: La Construcción de conocimientos: cuestiones de teoría y método; Ideologia do Desenvolvimento-Brasil: JK-JQ.
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Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia. 6a. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
43 termina onde começa a liberdade do outro”. Há, de forma explícita, uma delimitação para o exercício da autonomia, traduzida pela limitação direta do exercício da liberdade. Liberdade de poder exercer os direitos elementares da pessoa humana, como o de expressar o seu pensamento de forma oral ou escrita. Isto, contudo, traz em si mesmo a responsabilidade pela ação ou as conseqüências dos atos. Particularmente a forma oral, em que a educação popular se realiza, já lembra Freire, tem o papel de quebrar o silêncio incrustado nas pessoas. Autonomia e liberdade em educação popular adquirem uma dimensão particularmente filosófica, trazendo a discussão de sua realização em sentido absoluto, total. É possível a sua efetivação in totum ? E os condicionantes sociais, políticos, econômicos, biológicos, psicológicos que a limitam? Ora, Sartre encontra no ser humano a possibilidade de realização da liberdade. Para ele, “o homem é livre - porque somos aquilo que fazemos do que fazem de nós”. O ser do homem e o seu ser livre não apresentam diferenças. São, ao mesmo tempo, seus constituintes e seus constituídos. Assegurar essa liberdade ao outro é a garantia do desejo de liberdade para o eu, um desejo intrínseco promovido nas metodologias de educação popular. Autonomia, como liberdade de, traz consigo um sentido também ético. Ética aqui entendida como expressão do direito que tem a pessoa de agir sem constrangimento de qualquer força externa, sendo possível a sua concretização por meio diálogo.
O diálogo O diálogo como componente educativo faz parte da tradição grega, presente nos exercícios filosóficos de Platão, por meio de seus conhecidos diálogos41. Compõe igualmente, nos dias de hoje, o cerne do pensamento harbemasiano, constituindo-se no elemento ético básico de toda a formulação e exercícios educativos freireanos. Como um exercício teórico, torna-se prático na educação, tendo sua relevância como um projeto político-filosófico por meio da ação educativa, marcantemente, em processos de educação popular. É mais que conhecido o limite da natureza e da inteligência de cada pessoa, impossibilitando a visão global de tudo, sozinha. Mas cada um pode se comunicar e tomar conhecimento das idéias e sentimentos – sofrimentos, divergências e perspectivas - dos demais, tornando possível a discussão ou momentos educativos de ensinamentos e de aprendizagens. O diálogo, como uma capacidade humana de perguntar e responder ao outro, assegura essa possibilidade e como fundamento desse espaço privilegiado à aprendizagem e ao exercício ético. Diálogo como espaço à educação expresso pela relação intersubjetiva e estrutura do pensamento. Uma atitude que tem desafiado as relações humanas e o seu exercício educativo, considerando que o percurso do assumir e do experimentá-lo abre sempre o risco de o sujeito perder o seu mundo, mas que, na verdade, está ganhando-o na abertura, pelo mesmo diálogo, para o outro, educando-se no outro e educando-o, também. Diálogo que está presente na obra de Paulo Freire, tomando forma na sua visão de liberdade e de educação. A sua pedagogia não enaltece aquele que ensina (o professor), mas aquele que coordena as atividades de docência, promovendo a prática do diálogo. O diálogo é a condição essencial de sua tarefa de coordenador que se afirma sem imposição e cuja condição de aprendizagem associa-se à tomada de consciência da situação vivida pelo educando. Esta situação se concretiza à medida que se desenvolve o diálogo do homem com o homem. Assim, ele constrói a liberdade como um modo de ser e define o seu próprio destino, só podendo ser sentido na história dele mesmo, abrindo espaço para a igualdade entre as pessoas. A educação popular, pelo diálogo, caminha para a superação das formas existentes de opressão, uma pedagogia emancipatória, presa a um juízo existencial onde se faz necessária a liberdade da prisão da ignorância e da inconsciência e a busca incessante da igualdade. Uma educação popular que proporcione a descoberta e construção da própria identidade. Sem esta, não há condição de libertação por parte do oprimido. Sua identidade é componente do mundo da vida, sua exterioridade, a razão do outro, tendo aí o início do caminho 41
A obra de Platão chegou, até nós, por meio de seus Diálogos.
44 para a liberdade e se entendendo como um igual com os outros. Liberdade, autonomia e igualdade presentes como elemento utópico, pois se afirma num pensamento que virá sem um receituário definido e sem a inexorabilidade histórica. Considerações Como expressão de síntese, é possível vislumbrar-se um desenvolvimento, a partir das várias experiências históricas e outras mais recentes como os exemplos citados - em particular o da Usina Catende - que a educação popular pode ser abalizada na perspectiva de um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios e experiências que, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Um sistema aberto de trabalho educacional detentor de uma filosofia que, por sua vez, pressupõe as seguintes dimensões: uma teoria do conhecimento, metodologias dessa produção de conhecimento, conteúdos e técnicas de avaliação, sendo sustentada por uma base política. Essa teoria do conhecimento tem como pressuposto inicial a realidade e um fazer história compreendido à medida que surgem novos temas ou que se aprendam e realizem valores inéditos. História quando o homem faz novas formulações, mudando as suas maneiras de agir, pensar e relacionar-se com os demais humanos. Vai se constituindo como um trabalho humano, em que se dá em e pela prática do indivíduo, enquanto humaniza a natureza e naturaliza a dimensão de ser humano. A sua verdade exige o debruçar-se sobre a própria realidade, sob a forma de atividade prática. Detém, por sua vez, uma metodologia capaz de possibilitar que cada um se transforme em protagonista de sua própria história, à medida que seja útil à organização de seus pares, sistematizando e reelaborando os conhecimentos de sua classe. Presta-se para o desenvolvimento das habilidades e de atitudes como: orientar, dirigir e organizar debates e reuniões, sistematizar e expressar idéias e opiniões, reunir, criticar e sintetizar informações. Além disso, requer a percepção da importância e necessidade de organização e troca de informações entre os próprios trabalhadores. Contém conteúdos e avaliação originados da própria realidade, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico, pois ele está sendo dirigido aos e pelos moradores de periferias de cidades, camponeses, trabalhadores e demais categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto. Exige pensar que tudo está em movimento, inclusive, o ato pedagógico. Recorre-se à análise do processo que também está em movimento. A avaliação dos conteúdos da educação popular, por sua vez, só terá sentido quando for conduzida para a análise organizativa de todo processo educativo em andamento. A educação popular é alimentada por uma base política enquanto promotora da superação do silêncio imposto a cada um, pela preparação intelectual dos trabalhadores, pela construção moral dessa classe e pela capacitação para o exercício da direção política. Assim, é possível algum avanço na conquista da cidadania, entendida como a explicitação das possibilidades de acesso do indivíduo à produção, à gestão e ao usufruto dos bens e serviços da sociedade, rompendo com o fenômeno, tão atual, de exclusão social. Essa resistência possibilita, inclusive, a participação nesse modelo de Estado, não no sentido de reprodução da exclusão, mas, segundo Yeno Neto (1993: 153), para “gerar projetos de trabalho no interior do Estado que objetivem reforçar e apoiar as organizações populares no que elas têm de autonomia frente ao próprio Estado”. Os processos em educação popular, na busca da autogestão produtiva, devem expressar resistência às formulações de uma ética e de uma moral utilitária que fomentam e enfatizam a individualidade em nome, prioritariamente, de um benefício pessoal. A ela contrapõe-se a ética da comunicação, do diálogo, da responsabilidade social, da democratização, da justiça social, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças, das escolhas individuais e grupais, elementos que potenciam a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas, na construção de outras formas de racionalidade e o trabalho incessante da construção de um outro desenvolvimento. Entretanto, sabe-se da necessidade da educação popular que se apresenta como um dos vetores principais na condução de um outro processo de desenvolvimento, reforçando não só a técnica ou meramente a produtividade mesmo que esta seja necessária. Busca-se uma formação baseada em outros
45 valores, como o da solidariedade entre empregados, desempregados ou trabalhadores precários. Constroem-se os procedimentos metodológicos que auxiliem na integração dos trabalhadores, além de fortalecer a compreensão de seu papel social. Enfim, o papel da educação popular, presente nas lutas sociais e necessária para o preparo de um outro desenvolvimento regional, com os valores que vêm sendo expresso, é realizar processos educativos que alimentem uma teoria pedagógica, cujos vetores políticohumanistas estejam voltados à conquista coletiva da igualdade, liberdade, justiça e da felicidade.
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PAULO FREIRE DIALOGANTE42 Nas últimas quatro décadas, o humanista Paulo Freire tratou de temáticas, na sua vasta ação pedagógica, que expressam um caminho delineado por pensadores como Buber, Hegel e Marx, indo para além de uma abordagem ativa no campo da pedagogia. Ao se referir à alfabetização no plano da linguagem e da política, apresenta um profícuo debate de aspectos marcantes na experiência educacional. O pensamento de Freire emerge de sua própria experiência educativa. A sua percepção inscreve-se a partir de processos de alfabetização, transparecendo, em toda a obra, a compreensão dialética de uma teoria de educação. Ao retomar a relação originária dialética e diálogo, entende a educação como experiência da libertação humana. Sua teoria e prática pedagógicas estão, inteiramente, seivadas pelo diálogo, possibilitando o seu desenvolvimento crítico entre educador e educando. O pensamento dialético na pedagogia freireana exige uma fundamentação também dialética. Isto é, precisa se apresentar na reflexão filosófica de sua relação com a prática e de seu enraizamento, indo para além de formulações proposicionais para a educação, ao demarcar esse fenômeno de ´apoderamento` cultural das pessoas como fenômeno de libertação humana. O pensamento de Freire se inscreve entre aqueles distanciados da radicalidade existente com a separação da teoria e da prática, caracterizando a ciência como um fruto da produção de conhecimento, voltado apenas ao referencial teórico, resultante de critérios de comprobabilidade e consistência lógica (Círculo de Viena). Sem desprezar a lógica, sua prática educativa enfatiza a prática humana e os seus mecanismos de decisão. Reconhece as técnicas e a sua importância (razão instrumental). A dimensão técnica está presente, também, no método de alfabetização. Considera, entretanto, a importância do entendimento, da busca democrática (tentativa de consensos), permeada pelas dimensões subjetivas dos procedimentos de decisão para a produção de um conhecimento com validade, agindo sob a égide da Razão, na busca da emancipação humana. Inserido numa tradição que empreende a superação da separação teoria e prática, a pedagogia de Freire atrela-se a uma compreensão de mundo que apreende a teoria e a prática como uma unidade, sob o primado da prática, existencialmente definida por um processo histórico e dialético. Estabelece a dimensão de práxis, como processo social global da afirmação humana da vida, tanto na natureza como na história. A teoria se torna reflexo da realidade material, mas é parte desta realidade. É tanto determinada pela prática como determinante para a práxis humana, em consonância com as leis da realidade. A prática se define como referencial para a verdade teórica, enquanto que a teoria se torna instrumento útil de orientação da práxis. Todavia, na sua pedagogia, a compreensão filosófica fundamental é de que a teoria e a prática são mediatizadas por meio e no plano do homem, manifestando-se como o objeto mesmo da educação. O conceito de homem não o coloca como algo que se faz por si mesmo. Ele está sendo sempre não um ser, mas um vir a ser, permeado de suas intersubjetividades. A teoria adquire contornos de uma crítica à práxis social. Nos conflitos e ações sociais da realidade está sempre presente e, então, se apercebe de que essa atividade prática, contida de si mesma, não se coloca como atividade de reprodução teórica simplesmente ou uma crítica teórica. Ela adquire a tarefa de transformação da práxis social que só se realiza na prática, mostrando toda a dialeticidade existente na práxis social. A práxis social, como momento de processos educativos, passa a se constituir como o fundamento do desenvolvimento histórico da sociedade, e é aí que se entranha o diálogo. Nesse sentido, é que Schmied-Kowarzik (1983: 44) vê em Freire, a influência de Marx em sua concepção de educação como: prática que serve à produção e reprodução; isto é, à formação dos indivíduos enquanto portadores da práxis social. A educação é uma função parcial integrante da produção e reprodução da vida social, que é determinada por meio da tarefa natural, e ao mesmo tempo cunhada 42
É capítulo do livro: Aprimorando-se com Paulo Freite em Dialogicidade. Francisca Maria da Conceição e José Francisco de Melo Neto (orgs). Coleção Paulo Rosas. Vol. V, Edições Bagaço, Recife,2006.
48 socialmente, da regeneração dos sujeitos humanos, sem os quais não existiria nenhuma práxis social. Em Freire, mantém-se um otimismo na Razão por meio da ação educativa. Contudo, a práxis social em educação, corre o risco de degeneração, no sentido da não realização de uma práxis ética mas de uma práxis manipuladora. Na busca de superação dessa armadilha, define princípios orientadores que irão se constituir em elementos éticos e ontológicos da construção de seu pensamento pedagógico e realização da experiência educacional. Ele apresenta como mérito, em todo o desenvolvimento dessa construção teóricopratica, segundo Brennand (1999: 134), “a dimensão crítica e criativa aliada à perspectiva epistemológica no processo global de conhecimento e sua relação concreta com experiência cultural e existencial dos educandos”. Mostra, por sua vez, aquilo de fundamental para a definição do pensamento freireano que são as categorias de cultura, homem e mundo, opressão e silêncio, consciência crítica, escola como espaço público e diálogo. Na busca de sentido às categorias, pode-se ver que a definição das mesmas só é possível por intermédio de um método que possibilite a explicação da manifestação existencial do homem desde sua origem, sua formação histórica, tendo como pano de fundo as necessidades vivenciadas nas relações com a natureza que o circunda. Por este método, cultura é: uma criação do homem, resultante da complexidade crescente das operações de que esse animal se mostra capaz no trato com a natureza material, e da luta a que se vê obrigado para manter-se em vida (Pinto: 1979: 121-122). Com esta perspectiva, a visão que se tem é a de que o homem é construtor de sua própria existência, diferentemente dos demais animais por mais complexos que estejam do ponto de vista orgânico. Estes não produzem a sua existência. Limitam-se ao uso e conservação daquilo que lhes são assegurados pela própria natureza. Conservam os seus instrumentos, seus abrigos e suas atitudes de defesa que marcam a sua vivência na natureza. Todavia, esta situação alterou-se nos humanos. Acresceu a sua capacidade de dar respostas à realidade, em dimensão quantitativa e qualitativa. Em função do crescimento de sua capacidade ideativa, foi possível inovar as operações que exerce sobre a natureza, diferenciando-se de atitudes outras presentes no passado da espécie. Estes atos foram se acumulando em comunidade e constituindo, também, uma consciência comunitária. Pela hereditariedade social e pela seleção desses atos positivos, desenvolvidos dessa relação com a natureza, estes são conservados e repassados às futuras gerações. A criação da cultura e a criação humana se constituem como indissociáveis, não tendo data de seu começo, condicionando-se reciprocamente. Cultura é um processo de acumulação das experiências do próprio homem. Ele seleciona aquelas que lhe são favoráveis. Suas imagens e lembranças, advindas das realidades sensíveis, são convertidas em idéias. Assim, avança para as generalizações, expressando um processo de diferenciação do mundo material enquanto que adquire contornos no pensamento humano. Em Freire, a cultura assume uma noção teórica central que é a sua indissociabilidade do processo de produção, com sua particularidade histórica. Produção esta que assume dois sentidos. O primeiro onde o homem produz a si mesmo, com sua ação exercida sobre a natureza, voltada à perpetuação da espécie. Ao evoluir, adquire progressivamente a capacidade ideativa. O segundo é o de produção dos meios de sustentação da vida para si e sua prole. Com esta visão de cultura pode-se compreender a dimensão da relação homem e mundo em todo o seu processo de educação. Neste movimento dialético presente na história da cultura, o homem descobre a dimensão do tempo, adquirindo temporalidade ao tomar discernimento do tempo e pela consciência, a sua historicidade. As demais espécies da natureza não apresentam historicidade, diante dessa não compreensão conscienciosa. O homem transcende, discerne e dialoga (pela comunicação e participação) compondo o quadro de sua existência. Em Freire (1983a: 41), só o ser humano liberta-se de um tempo unidimensional, considerando que:
49 O homem existe – existere – no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se. O homem e o mundo estão impregnados de um sentido conseqüente. Sua presença no mundo não se dá de forma passiva. Não se reduz apenas a uma das dimensões da vida, seja a natural ou a cultural. A sua ingerência não é de expectador. Acontece em ambas as dimensões. Volta-se à realidade na busca de se realizar pela transformação, tanto de si mesmo como da natureza. Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura (ibid.: 41). Está externada a compreensão ampla de um mundo que é resultante de um estar no mundo, ao estabelecer relações entre a subjetividade individual e a realidade objetiva, sempre permitindo a condição do indivíduo de viver com a pluralidade, enquanto que transcende sua subjetividade. São estas condições que tornam real o diálogo. Freire (1993) constata a existência de uma relação desigual estabelecida pela não realização do diálogo intersubjetivo na sociedade. Mostra como a opressão faz surgir uma outra dimensão cultural que é a transformação do homem em um ser que não atua no mundo, transformando-o em objeto nesse mesmo mundo, desenvolvendo a cultura do silêncio. A força da opressão enfatiza o processo de dominação e se efetiva pela negação da existência do outro que é o dominado e extraindo-lhe o direito à sua própria palavra. Esta negação é a concretização da não existência do outro, a ausência de um outro ser. Com a negação da história ao outro, também lhe é sugado o seu ser mais, provocando a existência de um ser menos, levando-o à alienação de si mesmo. Sem história, o ser humano se transforma em algo não produtor de cultura, desumanizante e passivo diante do mundo. Resta-lhe a superação dessa situação pela sua herança cultural, visando aprofundamento da compreensão do mundo. O homem, de posse de sua herança cultural e pela experiência adquirida por meio da linguagem, se torna capaz de criar e recriar seus novos contextos. Pode responder aos desafios que lhe são apresentados, dominando a sua história e recriando a sua cultura, elaborando a sua própria identidade. Mas, a chegada ao mundo e o movimento de se apoderar desse mundo, no sentido da cultura, não será possível por meio de qualquer mecanismo que não pela consciência crítica. Freire insiste na necessidade de que ao processo da „domesticação‟, desenvolvido pela ausência do diálogo, seja contraposto o processo de „conscientização‟ que significa a aquisição de uma postura crítica, diante dos problemas do mundo. Este processo só se torna possível com a imersão no mundo daqueles que estão fora do processo da produção da cultura. É necessária ajuda para aqueles inserirem-se no processo, de forma crítica. Um processo que não pode se realizar pela força, pelo engodo, pelo medo ou mesmo pela coerção. Em Freire (1982a: 53), este processo só se realiza: Por uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção. É manifestado em vários níveis de consciência: o da consciência ingênua ou intransitiva que expressa um grau mais elementar de desenvolvimento de consciência, uma perspectiva sem a dimensão histórica do mundo. Uma consciência mágica que se mostra por meio da visão mística do mundo e, mais das vezes, sem força de superação desse poder mágico contido nas coisas. A consciência transitiva traduz-se pela superação das dimensões de interesses meramente vegetativos, fugindo daquilo que pode ser novo e, sobretudo, da débil argumentação sobre as coisas. Um nível importante pois nesse patamar de consciência, o homem inicia o seu percurso de transgressão daquilo que o mantém impermeável às mudanças. O seu existir já se
50 transforma em um existir dinâmico, implicando num diálogo permanente do humano com o outro humano e com o mundo. E ainda, a consciência crítica que possibilita a chegada a uma educação dialógica e ativa, voltada para a responsabilidade social e política. Caracteriza-se pela profundidade na interpretação dos problemas. Este nível de consciência se destaca, segundo Freire, (ibid.: 61) por substituir explicações mágicas por princípios causais e: Por procurar testar os „achados‟ e se dispor sempre a revisões. Por despirse ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência de responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo (grifo nosso) e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre as argüições. Pelo pensar crítico, resultante da consciência crítica, supera-se aquele pensar ingênuo e nada promotor da ação do homem na natureza, pondo fim a todo tipo de mistificação do conhecimento e das explicações de mundo. Consciência crítica que só constrói, pelo processo da conscientização educativa, relações intersubjetivas, possibilitando a aproximação entre dois ou mais indivíduos. Uma ação educativa que não se tem receio dos riscos do mundo dos outros, porém, incentiva um consenso construtor da ação subjetiva, por meio do diálogo. O diálogo torna-se a concretização do próprio exercício para a liberdade. A ação educativa inicia-se com o „método‟ de alfabetização, avançando para o „círculo de cultura‟ e se apresenta como momento de criação e recriação de mundos pelos falantes e ouvintes presentes. Há coordenadores e orientadores dos processos educativos, tanto na alfabetização como no círculo de cultura, sem haver professores, pois a dinâmica do grupo procura reduzir ao mínimo a sua intervenção, à medida que avança para a intersubjetividade, por meio do diálogo. Pelo diálogo, todos iniciam sua entrada no mundo comum a todos. Adquire uma característica peculiar que é admitir que cada um constrói seu próprio caminho e com isso, abre-se às divergências no próprio ato de se comunicar, de dialogar. A tradição dos processos educativos tem sido o monólogo dos sujeitos. A construção da consciência crítica promove não a negação do homem, resultante de processo monológico mas busca a imediatez intersubjetiva das consciências, revigorada pelas condições do diálogo. Os dialogantes avançam para admiração do mesmo mundo. Podem afastar-se desse mundo ou coincidem com o mesmo. Apresentam-se no mundo da vida ou se opõem ao mesmo. O diálogo vai se estabelecendo e se constituindo não como produto histórico. Ele é a própria historicização do mundo, expressão da intersubjetividade, ao conscientizar o dialogante como autor de sua própria história. Há neste processo o ato da fala e esta instaura o mundo do homem, pois ela não é só expressão significante do mundo ou expressão de pensamento, mas é a práxis humana. Práxis que se realiza pela comunicação, sendo esta, essencialmente, o próprio diálogo. Um diálogo que externa palavra de pensamento e ação sobre o mundo. Ação intersubjetiva de busca de autenticidade, de validação assegurada pelo outro e pelo reconhecimento do outro como o reconhecimento de si no outro, colaborando na construção de um mundo comum. Portanto, o reconhecimento da situação de inconsciência pela situação dialógica é o assumir a sua própria palavra, a construção de um mundo novo. A pedagogia de Freire, ao assumir a construção do mundo novo pelo indivíduo – o oprimido -, define-se pela dimensão política que atravessa toda a fundamentação social e psicosocial de sua ação educativa. A educação e a pedagogia de Freire mantêm busca permanente pela consciência crítica, sem deixar de priorizar o ato de conhecimento que se efetua via diálogo. Um diálogo entendido como ação entre iguais e entre diferentes, em que se admitem relações dialógicas mesmo quando as relações de poder são assimétricas. Quando isto ocorre, o diálogo (grifo nosso) é um bom ponto de partida e um bom ponto de chegada para recuperar a igualdade. Nas relações face a face – e as relações entre educador e educando o são – a recuperação da democratização reside em
51 poder estabelecer uma ação comunicacional que vise construir a identidade do oprimido e posicioná-lo na luta pela libertação (Russo et al. 1999: 120). Ora, sem identidade, não há condição de libertação por parte do oprimido. Sua identidade é componente do mundo da vida, sua exterioridade, a razão do outro, tendo aí o início do caminho para a liberdade. Liberdade que se constituirá como elemento utópico, pois se afirma num pensamento que virá sem um receituário definido e sem a inexorabilidade histórica. Na radicalidade de seu diálogo, Freire torna a política um substantivo e a pedagogia um adjetivo. Mesmo a sua concepção primeira de mudança interna no homem, por meio de um caminho conscientizador psico-pedagógico, é superada. Isto se constitui numa virada importante em toda a perspectiva emancipadora para a sociedade. Pedagogia dialógica Na busca de superação de práticas educativas conservadoras, Freire (1983) desenvolverá uma rigorosa crítica, caracterizando-as, inicialmente, como educação bancária. Neste tipo de educação, o educador é o que educa, é o que sabe, que pensa, que diz as palavras, que disciplina, que escolhe a melhor opção, que atua e define conteúdos programáticos; o educador é, enfim, o sujeito do processo. Por outro lado, há o ouvinte que só escuta, que não sabe, sendo o objeto do pensamento do outro. O educando é o disciplinado, que escuta de forma dócil, que sofre a ação, que é adaptado aos desígnios daquele que se diz educador. Os educandos são meros objetos para o processo educacional. Estes participantes, educados segundo esta visão, fora da práxis, não podem se transformar em seres humanos. O desafio que se apresenta, portanto, é a superação dessa lógica estabelecida nas práticas educacionais e culturais domesticadoras. O trabalho filosófico-educativo de Freire se direciona para a substituição desse tipo de experiência educativa por uma ação cultural humanizadora entre educadores e educandos, entre falantes e ouvintes. A educação não pode transformar-se em uma silenciosa aceitação da opressão. Paulo Freire terá como base para manter a sua crítica às pedagogias estabelecidas a promoção da denúncia dessa pedagogia fomentadora da opressão e que aprofunda a contradição entre opressores e oprimidos, defendendo a sua superação. Para realizar tal tarefa, Freire inicia demonstrando a necessidade de que uma outra ação pedagógica deve ser iniciada a partir da realidade em que o educando se insere e pela conscientização chegar à sua própria situação de oprimido. Com isto, é preciso uma pedagogia que contribua ao educando o desenvolvimento de seu próprio processo de libertação. Uma base ontológica de sua pedagogia tem como esteio a idéia central de que ninguém se educa que não de forma coletiva. Em Freire (ibid.: 58) ninguém se liberta que não através de uma ação cultural coletiva. Assim, é que a ação política junto aos oprimidos é „ação cultural‟ para a liberdade e por isto mesmo, ação com eles. Esta ação libertadora, contudo, reconhece a situação de dominação existente e proclama a necessidade de superação dessa situação de opressão. Esta, porém, não é doação que uma liderança, por mais bem intencionada que seja, lhes faça. Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de „coisas‟. Por isso, se não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho, também não é libertação de uns feita por outros. A pedagogia de Freire terá como concepção a perspectiva ontológica de que a educação do homem é algo que só vem pela dimensão social e coletiva, tomando como referência o mundo em que todos estejam inseridos, o mundo de suas vidas. Freire fala da necessidade da mediatização do mundo nesse processo de educação expressando, dessa forma, uma concepção de pedagogia que seja problematizadora do mundo e da situação em que o homem se encontra um estado de opressão. Formulará uma visão de homem traduzido em sua incompletude, na sua inconclusão. O movimento do homem, na perspectiva de Freire, é o de se tornar um ser mais.
52 Originariamente, a construção de ser mais tem como caminho a ação dialógica, aberta à comunicação e à solidariedade de educadores e educandos. Precisa estar orientada ao reconhecimento da realidade e à formação da consciência crítica. Ora, “somente o diálogo, que implica num pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo” (ibid.: 98). Sem o diálogo, torna-se impossível a comunicação entre falantes e ouvintes e a educação promotora do ser humano transformador. Para Freire (ibid.: 78): Não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo (grifo nosso). Pelo diálogo, o educando pode se preparar para a captação e intervenção em seu mundo, superando a situação de mero espectador, acomodado às prescrições de outros ou mesmo, julgando-as como suas. O cotidiano está a mostrar a existência de homens simples esmagados, diminuídos, reduzidos à coisa, submetidos por forças sociais poderosas e estabelecidas que criam mitos que os dirigem. São mitos que para Freire (1983a: 45) “voltam-se contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade”. O trabalho educativo crítico, de formação educacional dialógica, problematizador e libertador, conduzido em contraponto a essa situação de vida, não pode degenerar para suas possíveis contradições e se tornar um mero humanismo raivoso, exaltado. Este percurso educativo precisa instaurar uma ética contra a deslealdade, as injustiças, o desamor e a violência. Uma educação ética definida pela necessária indignação diante de tudo isto. Este trabalho educativo ajuda para a descoberta de necessidades e contradições do mundo da vida dos dialogantes, as suas preocupações, esperanças, dúvidas e carências concretas. Este processo não é assegurado pelo diálogo, apenas, nas descobertas dessas situações em que vivem os educandos. Ele instaura um movimento em que os sujeitos, desde o início, são os próprios envolvidos. Para Freire (1983: 82): “A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham”. Entendem, inclusive, que até mesmo a sua forma de atuação, seja esta ou aquela, é função em grande parte, de como os educandos estão se apercebendo no mundo. Permeando todo o processo de ação cultural para a liberdade, o diálogo torna-se a essência da educação. O diálogo funda a ação pedagógica de Freire. Passa a estar presente no decorrer de sua experiência, desde a organização dos conteúdos da ação educativa e, em qualquer ambiente, em que esteja ocorrendo ou em possibilidade de existir. O diálogo se faz presente na metodologia de desenvolvimento dos „temas geradores‟, no momento inicial da investigação e no decorrer de todo processo que conduz à ação cultural para a liberdade. Para Freire (1983: 92): A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. Mas, o estabelecimento da dialogicidade como fundamento em sua pedagogia cobra um diálogo verdadeiro para que haja a promoção de valores éticos no processo educativo. Com isto, admite que a sua existência dar-se-á quando firmada a condição de, também, pensar de forma verdadeira. Para ele (ibid.: 97): “Finalmente, não há o diálogo (grifo nosso) verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade”.
53 Cultura, poder e diálogo A pedagogia freireana, a partir de suas primeiras formulações, conduzidas pelo exercício da crítica, está relacionada à cultura e ao poder, sobretudo, do poder de realizar a cultura. Está voltada à realidade onde se insere a ação educativa. Com essa exigência, a alfabetização e conscientização se constituem como dois momentos importantes deste processo educativo. Ambos têm implicações marcantes tanto no âmbito social como político, refletindo um movimento pedagógico exercido, desde a chegada ao poder, de possuir cultura e exercício de poder realizar os sonhos e a utopia. Freire eleva o nível de informações do patamar da alfabetização para o do círculo de cultura com a mesma metodologia de construção da própria cultura e consciência dessa construção – um exercício para a liberdade. Com este exercício de aprendizagem em desenvolvimento no círculo de cultura, baseado no diálogo, os educandos se revelam em primeiro plano, desde o início das atividades. A orientação do educador rege-se para o despertar da consciência do educando, para que ele possa se aperceber e compreender a realidade que o cerca, o mundo em que vive. Giles (1983: 104), compreende, em Freire, que: Educar é firmar-se na prática da liberdade – liberdade que nunca é um dom, mas uma conquista constante. Afasta-se, portanto, como objetivo do processo educativo, a aprendizagem de conceitos ou de técnicas abstratas, irrelevantes para o homem concreto no seu trabalho, na sua luta pela conquista da liberdade. Liberdade para superar pela crítica todo tipo de permanência de irracionalidade que está presente no nível da consciência ingênua. Esta torna falsa a possibilidade do diálogo e o homem fica vencido e dominado, sem saber, mesmo que esteja crente de ser livre. Na verdade, Freire (1983a: 63) mostra que esse indivíduo: Teme a liberdade, mesmo que fale dela. Seu gosto agora é o das fórmulas gerais, das prescrições, que ele segue como se fossem opções suas. É um conduzido. Não se conduz a si mesmo. Perde a direção do amor. Prejudica seu poder criador. É objeto e não sujeito. E para superar a massificação há de fazer, mais uma vez, uma reflexão. E dessa vez, sobre sua própria condição de „massificação‟. Este é um risco concreto, isto é, o movimento de conscientização para a liberdade evoluir para uma política massificadora, tornando-se um processo educativo que não avança às mudanças. Um processo permanente, portanto, de se refazer a pedagogia e as metodologias utilizadas na própria pedagogia crítica. Se isto já preocupou Freire no início de suas formulações educativas, a questão permanece. Cultura e poder acompanhou sempre sua pedagogia, em especial a preocupação com a manutenção da atividade dialógica como procedimento nas metodologias educacionais que punha em prática. Alerta para a necessidade de uma análise atualizada sobre o atual estágio do capitalismo e o papel destinado ao conhecimento, por meio da pedagogia como dispositivo sutil dos sentidos, das linguagens, das imagens e dos valores. Anuncia a existência de uma nova realidade. Nesse sentido, alerta para que a pedagogia opere em todos os espaços da cultura; construa uma nova base teórica e política, reconstruindo a crítica e buscando novas proposições de metas, através do diálogo. Para Mejía (1999: 61), a riqueza de Freire é que ele vê a pedagogia como uma prática educativa e política que tem seu espaço e seu tempo na esfera da cultura e, portanto, no mundo das escolas. Ou seja, não nega a escola, mas a constrói como um espaço no qual a exclusão adquire características e processos culturais específicos. É assim que, em sua proposta pedagógica, continua mantendo no diálogo cultural essa busca de acordos permanentes. É possível, desta maneira, a existência de uma visão de pensador interdisciplinar em Freire. Sempre pelo diálogo avança no sentido de produção cultural e coletiva com as equipes
54 que atua. A pedagogia do oprimido, vivenciada em sua longa experiência, é cortada por dimensões interdisciplinares. Todo o diálogo que permeia a sua obra expressa a interdisciplinaridade em torno do binômio oprimir e libertar, envolto nos processos de um outro binômio que é cultura e poder, constituinte de sua proposta epistemológica.
Ação dialógica O fazer educação de Freire, mesmo quando assumira postos de executivo em gestões de educação, é banhado com dimensões de interdisciplinaridade. Nos postos administrativos sempre revelou as suas atividades de educador. Trazia consigo, como primeira preocupação, a organização de equipes para o desenvolvimento do trabalho. Aquilo que defendia no exercício teórico punha em prática quando em papéis de direção de posto de educação. Iniciava com o convite aos que os cercava para o exercício de um novo tipo de planejamento, acompanhado de equipes multidisciplinares de físicos, matemáticos, cientistas políticos, sociólogos, lingüistas e literatos, filósofos, arte-educadores, juristas, especialistas em sexualidade, além de outros. As formulações de seus planejamentos envolviam o conhecimento da realidade onde estava inserido juntamente com estes profissionais e estabelecia o diálogo como pressuposto administrativo. Avança nas definições das metas a serem cumpridas ao estabelecer os mecanismos de avaliação. Para ele (1995: 38) “a intenção é possibilitar um diálogo entre grupos populares e educadores, entre grupos populares, educadores da rede e os cientistas que nos assessoram”. Através de depoimentos de suas equipes, sabe-se que sempre procurava esclarecer o sentido político e pedagógico do trabalho, com a compreensão de que a escola é um espaço público. A vida diária nessas escolas faz ver um mundo de relações afetivas, políticas, pedagógicas e, assim, constituindo-se como ambiente, por excelência, para a reflexão e práticas educativas. Para ele, os estudos de gabinetes dos postos de administração só são úteis se tiverem a finalidade de execução daquelas metas anteriormente definidas através do entendimento e do diálogo. Também, sempre acompanhou a clareza de que a implementação de políticas promotoras do diálogo – democráticas -, não seriam efetivadas a partir de gabinetes mas da escola mesma. Existe, em Freire, toda uma perspectiva de construção e posse do produto dessas relações de construção, que de forma terminante, recusa qualquer tipo de pacote para ser executado. Em sua experiência, conduz para a aprendizagem de si mesmo como de toda a equipe. A necessidade dessa transdisciplinaridade é o caminho para a chegada à objetividade. A sua reflexão, partindo do mundo do concreto, se dirige para a totalidade do real e esta é transdisciplinar. A realidade impõe a subjetividade e não de maneira inversa quando esta se propõe inventar o transdisciplinar. É a realidade que exige do sujeito ou da consciência a necessidade de ser vista por diferenciadas óticas, caso seja este o desejo para o seu entendimento. Esse conhecimento da realidade seria impossível se não fosse tentado e buscado com equipes transdisciplinares, com a presença dos setores populares. Não seria possível esta elaboração a partir de gabinetes ou mesmo de uma biblioteca em que fossem elaboradas prescrições a ser seguidas. Mantém-se, em toda a trajetória freireana, a exigência da manutenção do diálogo e o seu exercício com os setores populares. Freire (1983a: 102) lembra que: Experimentáramos métodos, técnicas, processos de comunicação. Superamos procedimentos. Nunca, porém, abandonamos a convicção que sempre tivemos, de que só nas bases populares e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas. As suas técnicas com os grupos populares foram trazidas para dentro dos gabinetes como a elaboração de programação de debates, as entrevistas com membros dos grupos da administração, a listagem de problemas que seriam os definidores do trabalho de toda sua equipe. Após certo de tempo de aplicação das definições tomadas, sempre de forma dialogal,
55 voltava-se aos processos de avaliação e replanejamento. Tal qual nos círculos de cultura que não havia um professor mas um coordenador de debates, também na administração, não havia um executivo exercendo papel na burocracia estatal mas um participante do grupo, com a responsabilidade e autoridade para implementar as políticas. Dos debates com as equipes, havia sempre algo novo surgindo. Buscava, cada vez mais, implementar a ação política mais geral, sempre atento à construção de uma escola que seja pública, que seja popular pois, necessariamente, exige-se que seja democrática. Saul (1999: 26) destaca, a partir de sua convivência educativo-administrativa com Freire, a sua expectativa em relação aos novos projetos que apareceriam na administração43, revelando que: toda a sua criação ousada, todavia, era cercada por uma moldura democrática onde o diálogo sempre foi a pedra fundamental. Paulo Freire queria ouvir, ouvir sempre, ouvir muito a posição da equipe sobre as propostas. Ouvia ponderações, recriava suas propostas, estimulava e dava espaço a novas proposições; externava preocupações, colocava parâmetros. Tanto nas atividades com os processos de alfabetização, nos círculos de cultura e na vida administrativa, a pergunta que sempre aparece é como proporcionar, por meio do instrumento estatal, a possibilidade de ser possível a superação de atitudes de ingenuidade e de magia que a vida apresenta. A resposta sempre pareceu estar num método que promova a ação, sendo dialógico e crítico. A promoção de mudanças em procedimentos e conteúdos programáticos da educação adviriam desta postura metodológica. Na experiência freireana, o diálogo veio sempre se impondo como indispensável nesse caminho. O diálogo permeia a organização e execução do método em todas as suas fases, como mostra Freire (1983a: 112), desde o levantamento do universo vocabular dos grupos, em que se fixam os vocábulos com maior expressão existencial e, conseqüentemente, de maior conteúdo emocional, destacando os falares típicos do povo. Entrevistas realizadas em grupos populares ou de administração que “revelam anseios, frustrações, descrenças, esperanças também, ímpeto de participação, como igualmente certos momentos altamente estéticos da linguagem do povo” . A escolha das palavras contidas no universo vocabular pesquisado é definida pela sua riqueza fonêmica e pela dificuldade fonética da palavra que contribua para uma gradação de dificuldades na aprendizagem. Dá-se importância ao teor pragmático da palavra, definida por sua pluralidade quanto ao engajamento numa dada realidade política, social, cultural. O diálogo traspassa a fase da criação de situações existenciais do grupo com quem se vai trabalhar. São as situações-problemas, os desafios lançados ao grupo e o espaço de decodificação dessas situações, ajudado pelo coordenador, que tem a clareza de não transformar o processo de educação em outro processo – a domesticação. Um elemento de ajuda é a elaboração das fichasroteiro que comporão o quadro de discussão que segue. O diálogo prossegue pela discussão do papel do sujeito na produção e organização da cultura. De situações localizadas, avança-se em análise para as dimensões regionais e nacionais, abrindo espaço, agora, para a alfabetização ou mesmo para a definição de políticas públicas comprometidas por este diálogo. E, finalmente, a elaboração de fichas com a decomposição de suas famílias fonêmicas com os respectivos vocábulos geradores, em que se inicia a parte da escrita no sentido técnico do processo. Também, na sala de aula, Freire seguia o mesmo itinerário filosófico e pedagógico marcante em toda a sua experiência. Sempre propunha como início de aula, a apresentação de interesses de cada aluno, as suas preocupações de pesquisa, enfim os sonhos de cada um. Um momento de encontro com o mundo daquela realidade da sala de aula, estabelecendo o diálogo como caminho desse aprendizado coletivo. Não importa se os objetivos estão nítidos e rigorosamente definidos. O importante mesmo são os atos de fala de cada participante. Desses interesses, definem-se a seguir as diferenciadas temáticas a serem abordadas. Buscam-se as correlações que, eventualmente, aqueles temas exibem por meio de eixos que se interligam. O aprofundamento dos projetos vem com o aprofundamento das temáticas sugeridas. O percurso 43
Relato de Ana Maria Saul quando trabalhou com Paulo Freire, na Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, tendo como prefeita Luiza Erundina, na época, do Partido dos Trabalhadores.
56 da aprendizagem não pára neste momento. Avança para que cada participante assuma a escrita de textos referentes às aulas como material de posterior utilização. E muitos temas estão sempre recorrentes nessas salas e, também, na obra de Freire que para ele são sempre formas de realizar novas visões das mesmas temáticas. Em suas obras, estão sempre voltando à discussão o respeito ao educando, o ponto de partida como a realidade do aluno, a defesa da autoridade do professor, a politicidade da educação e, sobretudo, o diálogo como fundamento em sua obra. Portanto, um caminho, visto por Freire (1983: 45), como necessidade educativa para a realização da “ontológica e histórica vocação dos homens – a do ser mais”. A dificuldade maior que sempre vai aparecendo e tentando a sua superação é a não cultura do diálogo que está estabelecida entre os participantes. O desafio é a superação da atitude antidialógica, a necessária supervisão, também dialogal, na perspectiva de não sucumbir aos perigos do não diálogo. Assim, parece ser a construção de uma democracia por práticas que despontam para a liberdade. Em Freire (1983), no desejo do agir pedagógico, há uma exigência política na própria caracterização do diálogo. Não é qualquer tipo de diálogo que pode ser útil à ação dialógica problematizadora. O eu dialógico freireano tem clareza de que a sua constituição está no tu, o outro. Mas sabe, também, que “esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu” (ibid.: 196). Entende-se, de forma politicamente explícita, que o diálogo de sua ação pedagógica é promotor da colaboração entre o eu e o tu, alimentando a possibilidade de que eu e tu se tornem sujeitos de seus próprios mundos. Há um diálogo que pelo ato da fala se torna comunicação, efetivando-se como instrumento de colaboração. Em Freire: “O diálogo, que é sempre comunicação, funda a colaboração”. Mas para realizar a colaboração, a percepção de que ninguém se liberta sozinho, orienta para que o diálogo possa promover a união, na perspectiva da liberdade. O diálogo assume a dimensão, agora, de que só será se servir para unir para a libertação. Uma dimensão também necessária, considerando que segundo ele (ibid.: 203): A própria situação concreta de opressão, ao dualizar o eu do oprimido, ao fazêlo ambíguo, emocionalmente instável, temeroso da liberdade, facilita a ação divisória do dominador nas mesmas proporções em que dificulta a ação unificadora indispensável à prática libertadora. União que só terá sentido libertador se inserida na dimensão da ação cultural para a liberdade. Através dessa ação cultural, torna-se possível o desvelamento aos oprimidos de sua situação objetiva em que estão submetidos, seja de forma visível ou não. Mas, o diálogo, na ação cultural, enquanto promove a união entre os oprimidos, não é expressão de um ajuntamento de indivíduos, mas está dirigido à organização das massas populares. Para ele (ibid.: 207), a organização é promotora da unidade dessas massas populares, lembrando sempre de que a libertação está diretamente voltada à sua unidade. Aliás, ela só será expressão de sua natureza mesma se tiver como objetivo a prática para a liberdade. Finalmente, o diálogo só se impõe como determinante, na ação dialógica freireana, ao expressar uma ação cultural. Contudo, esta ação cultural, como síntese cultural, poderá revelar uma ação sistematizada e deliberada sobre uma estrutura social, tanto no sentido da conservação como no da transformação. Pela ação cultural, busca, tão somente, a superação das contradições antagônicas resultantes da libertação dos homens. “É um modo de ação cultural, como ação histórica, que se apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante. Nesse sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de ser também revolução cultural” (ibid.: 214). Ação educativa, na perspectiva de Rodrigues (2001: 30), cujo fazer popular se referenda a medida que as pessoas não sejam súditas ou subalternas de autoridade qualquer “porque toda autoridade legítima e democrática é que é súdita e subalterna do povo”. A pedagogia de Freire e seu exercício pela ação cultural só se estabelecem no contexto de um ambiente dialógico - condição fundante. Assim, de forma sintética, é que a prática e a teoria educativa de Paulo Freire estão associadas a um exercício filosófico e político permanente, embasadas pela crítica (dimensões
57 positiva e negativa), alicerçada nas coisas concretas do mundo. Pela crítica, em sua dimensão negativa, a pedagogia torna-se útil na luta contra pré-conceitos, pré-juízos e valores fomentadores de alienação e coerção. Em sua dimensão positiva, a crítica estabelece o seu pensar sobre o agir pedagógico e dá a conhecer um Freire que arrasta a marca de um pensador e pedagogo moderno, otimista com a Razão, apostando nela própria como fundamental na luta permanente de busca de liberdade. Sua ação pedagógica configura-se como um sistemático processo de questionamento de um terreno perdido para a dominação, realizado por um tipo de razão geradora de oprimidos e opressores. Busca o estabelecimento de uma outra dimensão racional, no âmbito da esfera da cultura, cuja tarefa principal é a conquista da liberdade pelo oprimido, tendo no diálogo uma ferramenta para esta conquista. Ele não nega a importância e a necessidade da técnica para a solução de necessidades humanas. Contudo, pelo diálogo, no exercício de uma pedagogia voltada à liberdade, define-se por uma outra necessidade que é a superação de novos valores para um mundo da vida das pessoas, elaborados por situações dialógicas. Revela a capacidade crítica de sua pedagogia ao exercê-la nas mais diferenciadas instâncias da vida, seja em movimentos sociais, em ambientes de administração pública e mesmo em sala de aula. Há um itinerário definido que vai desde as análises de programas em educação de adultos, até suas radicais críticas que apontam para a solução, somente possível, por meio de uma „ação cultural libertadora‟. Esta ação se configura como um efetivo programa para a organização dos marginalizados, oprimidos ou dominados para a sua própria libertação. A promoção dialógica dessa ação cultural que liberta, abre-se para as mais diferenciadas perspectivas filosóficas, gnoseológicas ou mesmo epistemológicas de seu pensar pedagógico, destacando a disposição para a construção de um mundo que contemple a ação coletiva. Neste mundo, homens e mulheres sempre estão em condição de inconclusão, tendo, contudo, consciência desta situação (Freire, 1997). Em Freire não há espaço para o eu que não seja acompanhado do tu, sempre um eu e um tu em condições de diálogo. A teoria e a prática pedagógicas da ação cultural voltam-se, essencialmente, para a questão da democracia. Esta é uma luta que é mantida na perspectiva de que ajude a contribuir na eliminação de processos de opressão, daqueles que vivem à margem dos produtos culturais da sociedade. O diálogo presente no agir libertador freireano só pode ser entendido se historicamente situado. Não há qualquer tipo de ideologia asséptica em sua obra, e sim uma explícita opção de libertação do oprimido. Tanto na Pedagogia do Oprimido como na Educação como Prática da Liberdade, o diálogo é apresentado como possibilidade de sua realização entre diferenciadas culturas, marcadas, hoje, pela diversidade cultural. Há a perspectiva da não expressão de qualquer produto acabado, marcado pelo destino. Para ele, ninguém vive sem história e a educação é um fenômeno responsável por esse processo em que homens e mulheres se fazem gente e constroem o mundo. Uma construção que conduz ao incentivo de produções conflituosas nas relações entre educando e educador. É preciso assegurar a democracia e, nesse sentido, assegurar algo de maior importância para cada geração que é o incentivo à sua capacidade de negar o legado deixado pela geração anterior, assegurando a produção desse novo mundo. O trabalho cultural libertador não pode ser deixado como tarefa a ser realizada após processos radicais de mudanças. Este trabalho acompanha e é parte desses processos, eliminando a possibilidade de burocratização das direções dos oprimidos. Esta é mais uma forma de se evitar o empreendimento coletivo da libertação, dificultando o trabalho dialético e dialógico de homens e mulheres como um movimento de autolibertação. Portanto, a prática pedagógica de Freire contém uma teoria da educação que vislumbra uma permanente e ilimitada experiência dialógica, voltada à tarefa histórica, de que os oprimidos possam não só se libertarem como também libertarem os seus opressores. Essencialmente, um Paulo Freire dialogante.
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Referências Brennand, Edna Gusmão de Góes. Éducation et globalisation: un dialogue entre Paulo Freire et Jürgen Habermas. Paris: Phathéon-Sorbonne, 1999 (Thèse de Doctorat). Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14a. Ed., Rio de Janeiro, 1983a. __________. Pedagogia do oprimido. 13a. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. __________. Educação na cidade. 2a. Ed. São Paulo: Cortez, 1995. __________. Pedagogia da autonomia. 6a. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. Mejía, Marco Raul. Paulo Freire na mudança de século: um chamamento para reconstruir a práxis impugnadora. In: Paulo Freire – ética, utopia e educação. Danilo R. Streck (org) 3a. Ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Popper, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado, 2 vols., São Paulo: Edusp, 1974. Rodrigues, Luiz Dias. Como se conceitua educação popular. In: Educação popular – outros caminhos. José Francisco de Melo Neto e Afonso Celso Scocuglia (orgs.). 2a. Ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. Russo, Hugo A; Sgró, Margarita et Díaz, Andréa. Aprender a dizer sua palavra: do outro da razão à razão dos outros. Contribuições da ação educacional dialógica para a razão comunicacional. In: Paulo Freire – ética, utopia e educação. Danilo R. Streck (org.) Petrópolis, RJ. Vozes, 1999. Saul, Ana Maria. Paulo Freire: vida e obra de um educador. In: Paulo Freire: ética, utopia e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. Schmied-Kowarzik, Wolfdietich. Pedagogia dialética – de Aristóteles a Paulo Freire. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
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TEXTO 6 EDUCAÇÃO POPULAR sistema de teorias intercomunicantes44 A educação popular pode ser examinada como uma possibilidade educativa veiculada e incentivada tanto pelo Estado como por setores da sociedade civil – sindicatos, partidos políticos, organizações não-governamentais, igrejas e outras instituições. Tem despertado maior interesse como ferramenta de luta, a partir do início do século passado, na organização de setores das classes trabalhadoras. Manifestou-se no seio das práticas políticas dos anarquistas, sobretudo nas duas primeiras décadas, ou mesmo na perspectiva educacional do governo, desde a década de 30, estando presente na legislação ou em projetos da política governamental45, voltados à educação do povo, compreendida como educação popular. Em época mais recente, adquiriu novas dimensões quando a educação popular passou a ser compreendida, também, como aquela propalada em campanhas do tipo Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e, de certa forma, do Movimento de Educação de Base (MEB). Isto ocorreu com maior ênfase durante as quatro últimas décadas, quando passou a absorver as mais diferenciadas experiências educativas nas Américas, na África e outros continentes, com metodologias, linguagens, visões políticas, técnicas didáticas, mecanismos avaliativos próprios e presentes nos distintos movimentos sociais revolucionários do século passado. Nessa perspectiva, assumiu-se como sendo a forma da educação possível aos setores sociais como indígenas, camponeses, trabalhadores, trabalhadores sem terra, moradores de periferias das cidades e outros setores marginalizados das políticas públicas. Contudo, somente a partir da década de 50, com ênfase, no início da década de 60, tem início a demarcação desse campo da educação com as experiências de Paulo Freire46, de modo especial, no âmbito da alfabetização. No entanto, análises, tentativas e definições de políticas em educação direcionadas a esse campo da educação continuam. A partir do ambiente de analfabetismo regional, Paulo Freire passou a delimitar a aplicação de sua perspectiva educacional, definindo essa situação como de comunidade ou consciência “intransitiva”, quando os interesses das pessoas estão definidos pelas exigências elementares biológicas de sobrevivência. Por meio da ação educativa, eleva-se esse patamar de consciência para um nível de “transitividade”, onde o humano e também o seu mundo adquirem esferas para além das dimensões biológicas vitais, alçando-se o compromisso para com a sua 44
Capítulo do livro: Educação popular - enunciados teóricos, v II. Agostinho da Silva Rosas e José Francisco de Melo Neto. Editora da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2008. 45 Ver: Kulesza, Wojciech Andrzej. Para a história da educação popular no Brasil republicano. João Pessoa, 2003. 46
A primeira, dentre as muitas experiências, aconteceu no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco, coordenado pelo Prof. Paulo Freire. Registrem-se ainda as ações educativas do Movimento de Cultura Popular (MCP) e da União Estadual dos Estudantes de Pernambuco, do Diretório Central dos Estudantes da Universidade do Recife e o Centro Popular de Cultura (CPC), criado em 1961, no Rio de Janeiro, ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE). Estas ações estenderam-se por vários Estados, destacando-se os projetos implantados na cidade de Angicos e Natal, no Rio Grande do Norte, com a Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”. Na Paraíba, destacaram-se as campanhas: 1) alfabetização-educação de adultos pelo rádio (SIREPA – Sistema Rádio-Educativo da Paraíba); 2) aplicação em larga escala do Método Paulo Freire e do movimento de cultura popular adjacente (CEPLAR – Campanha de Educação Popular); 3) Cruzada ABC – Cruzada da Ação Básica Cristã, pós-abril de 1964, liderada por missionários protestantes e técnicos norte-americanos. Suas experiências chegaram a Osasco (SP) e Brasília. Posteriormente, elaborou-se o Plano Nacional de Alfabetização (PNA-MEC), o Projeto Nordeste e Projeto Sul (Sergipe e Rio de Janeiro) financiados pelo MEC. Ver: Scocuglia, Afonso Celso (1997).
60 existência. Esse patamar da “consciência transitiva”, considerado por Freire (1963) de “ingênua” em um primeiro estágio, é caracterizado pela visão das coisas de forma nebulosa e não como fruto da investigação, pela fragilidade dos argumentos, pela desconfiança de tudo que é novo, pela falta de incentivo ao debate ou por suas explicações mágicas. A partir daí, eleva-se para o exercício da crítica estabelecido pelo diálogo, fomentando a socialização dos bens culturais. Em sendo diálogo, é comunicação e, jamais, superposição de „comunicados‟ daqueles que se sentem possuidores desses bens. Isto implica “ter na própria realidade o elemento mediador. O homem comum e o intelectual, permeados pela realidade de ambos e „simpatizados‟ em torno dos objetos, fazem assim a intercomunicação, que é a própria democratização da cultura” (ibid.: 22). Então, há de se perguntar47: um processo educativo que percorre os patamares de consciência do nível da ingenuidade à crítica, por meio da comunicação, inserida no „seio‟ da cultura e promovendo a sua democratização, não se constitui como um sistema aberto de educação com teorias que se comunicam? É um possível sistema que não comporta a investigação por meio de cálculos lógicos, estando desprovido de interpretação. Não se está propondo o exame de um discurso que expresse símbolos primitivos determinadores de combinações simbólicas, construindo regras geradoras de novas regras de inferência que contenham expressões definidoras para outras novas regras. E, muito menos, que o seu percurso de chegada, por meio de formulações axiomáticas, seja a expressão da verdade última. Entende-se como um itinerário que pode expressar-se pelo modo de como se construiu aquele campo de conhecimento, o campo educativo popular, a forma peculiar de seu pensamento, com raciocínios que seguem um trajeto caracterizado por momentos intermediários dessa construção. Trata-se de um conjunto que expresse uma totalidade, estando traduzido nesse discurso. Essa totalidade precisa estar assentada em elementos unitários formados de conhecimentos múltiplos que organizam uma idéia central. A partir do concreto, os experimentos em educação popular e, portanto, o ambiente mais complexo de análise que se desenvolve e que se mantém, reunido como unidade mesma, constituem essa totalidade pelas suas determinações e diferenciações. O resultado é um conjunto expresso por inter-relações diversas, circunstanciadas em um certo tempo e movimento. E isto define a constituição de um sistema com teorias que, necessariamente, será mantido em aberto, comunicativo e em condições para comportar novas composições unitárias. Um sistema que encerra em si teorias traduzidas por proposições ou conjunto de proposições, envolvendo as suas relações e implicações. Essas teorias serão utilizadas na explicação desse fenômeno educativo, em que se tornem possíveis as suas verdades, bem como as bases de sua natureza. A partir dessas teorias, tornar-se-á possível a definição de hipóteses que poderão ser úteis nas explicações das realidades definidas. Com isso, estarão expondo os seus métodos, considerando a diferenciação dessas tentativas que conduzem o fenômeno educativo-popular. Todavia, um ambiente de educação não comporta teorias que se apresentem, tão-somente, assinaladas por generalização empírica ou por simples especulação. Em educação popular, são admissíveis teorias que possam se apresentar como expressão de síntese de um conjunto de proposições especulativas, desde que combinadas com proposições geradas das experiências. Com essa possibilidade, admite-se haver a sua formulação, a partir de vários ensaios históricos e outros em desenvolvimento, como um fenômeno educativo que, pelo trabalho 47
A pesquisa desenvolvida teve como amostra cinco grupos de profissionais no campo da educação popular, num total de noventa e seis participantes: a) na Experiência de Autogestão que vem sendo desenvolvida na Usina Catende-PE (2002 a 2004); b)durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com a participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro (2003); c) com profissionais (alunos/as) de 3 turmas em duas disciplinas Teoria em Educação Popular e História e Filosofia da Educação Popular, no Programa de Pós-Graduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura) (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB (2003 e 2004), coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos.
61 humano, assegurem a produção e a apropriação dos bens culturais. De forma mais ampla, esse sistema tem como objetivo explorar e incentivar as potencialidades humanas educativas quanto à produção e apropriação desses bens, na expectativa de mudanças. Experiências e formulações teóricas vêm abalizando seu significado como um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios alicerçados em vivências. Esses princípios, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Porém, mesmo resultando em uma unidade, esta se mantém em aberto, na medida em que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, educação e o popular. Dessa forma, a educação popular manifesta-se por meio do insistente desejo de criação de conhecimentos que busquem fazer história. Nessa construção da história, o ser humano expõe-se a novos temas e provoca o surgimento de novos valores, sugerindo outras formulações, dando origem a novas atitudes e mudando o seu comportamento. É um trabalho humano que se dá em e pela prática do indivíduo. Assim, à medida que humaniza a natureza, também naturaliza a sua dimensão de ser humano48. Expressa, ainda, a sua verdade, no sentido de que o indivíduo deve sair de si mesmo e modelar a própria realidade expressa pelas suas atividades. Nesse movimento, o humano elabora, sistematiza e reelabora o conhecimento, cuja cientificidade se demonstra na sua própria prática coletiva. Constrói-se, dessa maneira, uma metodologia coletiva capaz de tornar-se hábil em atitudes de orientação, sistematização e explanação de idéias. Com ela, preparam-se técnicas de reuniões, exercitando a crítica e a organização geral de entes humanos em suas classes. Através dessa teoria, exteriorizam-se conteúdos gerais que se originam no mundo concreto, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico. Esse modelo vem sendo aplicado, com sucesso, nas ações educativas com moradores de periferias de cidades, operários, camponeses e outras categorias de pequenos produtores rurais, incluindo a educação indígena, não seriada. É um ato pedagógico em contínuo movimento, cuja dimensão qualitativa reclama a forma como se desenvolve a “consciência crítica” de seus participantes e o tempo em que as atividades são conduzidas. A avaliação de seus conteúdos, finalmente, conduz à análise organizativa do conjunto educativo em desenvolvimento. Esse fenômeno educativo cultiva valores éticos promotores de atitudes democráticas, direcionadas para a igualdade e a liberdade. Tais valores efetivam-se como prática para a liberdade, “como gesto necessário, como impulso fundamental, como expressão de vida, como anseio quando castrada, como ódio quando explosão de busca, que nos vem acompanhando ao longo da história. Sem ela, ou melhor, sem luta por ela, não é possível criação, invenção, risco, existência humana” (Freire, 1991: 50). É uma luta coletiva ansiosa por democracia que, para Calado (2003), exigirá atitudes coletivas com dimensões de curto, médio e longos prazos, envolvendo os variados segmentos explorados da população. Caso esses setores estejam ausentes, tal conquista não ocorrerá. Essa luta resultará em um esforço de ascese em que o indivíduo se torna cada vez mais humano, quando inicia a sua descoberta consciente do mundo. As suas atividades conduzem para uma idéia central – a liberdade. Inicia-se na alfabetização, passa pelos círculos de cultura49, pela educação básica e média, chegando, de forma presumível, à universidade popular e a outros ambientes do conhecimento. Trata-se de um percurso de exercícios forçosamente subversivos, fundamentado na liberdade como expressão da utopia que está prenhe de possibilidades de realização. Esse é o percurso revelado por um sistema educativo. As bases da educação popular tornaram-se mais sólidas com Freire. Os seus programas de alfabetização de adultos originaram-se nas análises e nas críticas às situações existentes, em particular, ao analfabetismo, tentando a superação desse quadro com ações culturais para a
48
Ver: Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência. – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Com destaque ao capítulo que aborda a teoria da cultura. 49 Ambiente formado por um círculo de pessoas em que, pelo diálogo (educação popular), promovem-se a codificação e a decodificação de seus mundos e suas vidas.
62 liberdade50. O próprio termo “surgiu do reconhecimento da existência da diferença e da oposição entre culturas do povo e cultura da elite” (Brennand, 2003: 61). A sua ação cultural libertadora gestou programas voltados aos setores que estão à margem da sociedade - os oprimidos. Buscou a superação existencial da situação de „dominado‟ daqueles que estão despossuídos dos produtos culturais, a partir da capacidade de leitura. Alimentou-se um desejo de caminhada em que se supera a condição de análise da mera experiência, mesmo que seja tida como ponto de partida. Transgrediu-se, pelo pensar crítico, a visão sensível geradora de um saber apenas existencial ou opinativo, fecundada de uma ação prisioneira da magia. Esse percurso inicia-se por outro sistema que é o de sinalizações, tratado como um sistema universal que descortina a condição de uma comunicação escrita. A questão que se impõe é: Como proceder a essa montagem de sinalizações? “Somente um método dialogal, ativo, participante poderia realmente fazê-lo. Somente pelo diálogo que, nascendo numa matriz crítica, gera criticidade e que implica uma relação de como conseguir esses objetivos” (Freire, 1963: 14). Estabelece-se prontamente o caminho da construção de um sistema educativo popular. O método em construção traz consigo uma teoria de conhecimento que tem como ponto de partida o mundo concreto por meio do levantamento do universo vocabular do grupo em condição de se alfabetizar. Nesse ambiente, desabrocham os seus anseios, suas crenças, suas frustrações e a estética de sua linguagem. Passa-se, em seguida, para um segundo momento de seleção nesse universo vocabular, quando o grupo consegue identificar as palavras que se apresentam mais ricas em fonemas e „pluralidade de engajamento‟ no ambiente onde vive local, regional e nacional. Avança-se, nos momentos seguintes, para o debate, a partir das situações que vão sendo geradas. Possibilita-se, com isto, a elaboração das „fichas-roteiro‟ e dos vídeos auxiliares dos coordenadores na organização da aprendizagem. A partir desse material, avança-se para a definição dos fonemas que irão compor outras palavras, continuando com os círculos de cultura. De acordo com Paulo Freire, esse método anuncia a definição da primeira etapa do percurso educativo, que é a fase da alfabetização infantil. A segunda etapa é a alfabetização de adultos, que abre à educação básica. Essa etapa contribui para a oferta do ensino médio e a organização da universidade popular, conduzindo às etapas finais da criação de um Instituto de Ciências do Homem. Culminará com a concretização de um Centro de Estudos Internacionais. É um método que se funde com a teoria do conhecimento e com a organização estruturante de um possível esboço de currículo, permeado por análises lógicas, semióticas, lingüísticas e filosóficas. Incorpora uma teoria da comunicação, edificando-se a partir de duas categorias fundantes: a comunicação e a cultura. E filosofia da educação “é, entre outras coisas, o estudo deste processo de transferência ou transmissão de cultura, e a teoria e prática da comunicação, que a torna possível” (Maciel, 1963: 29). Pela comunicação, opera-se o sistema, enquanto a cultura torna-se o meio para sua realização, adquirindo maior radicalidade com a necessária socialização dos bens culturais. Assegura-se, assim, a pedagogia dialógica. Isto possibilita que o humano, à proporção que promove a democratização desses bens, realimenta-se com tal produto que lhe é próprio, pois é o seu produtor, passando o sistema a funcionar como um todo que se intercomunica. Por meio desse método dialogal, o humano passa a atuar conscientemente, educa-se e é educado com os demais. Ao se transformar e se comunicar, também transforma e comunica a todos. Ações intercomunicantes mantêm-se estabelecidas em experiências atuais, como a da Usina Catende51, externadas em planos de educação para a aprendizagem de outros valores 50
Ver os livros de Paulo Freire: Educação como prática da liberdade; Ação cultural para a liberdade e outros escritos; Conscientização; Teoria e prática da libertação; Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire e Pedagogia do oprimido. 51 Desde o ano de 1993, os trabalhadores da Usina Catende, no município de Catende, em Pernambuco, uma das várias usinas que faliram na região açucareira nordestina, vêm mantendo a sua sobrevivência e a da usina sob o controle deles próprios, num longo exercício educativo para a autogestão, administrando, economicamente, em dimensões de uma economia solidária. É uma experiência em andamento denominada de Projeto Catende/Harmonia. No seu Plano de Educação foram montados dois
63 éticos nas relações humanas. “O presente momento deste projeto exige organização da atividade de formação para os trabalhadores compreenderem a sua ação no interior do processo produtivo da empresa... Este plano está articulado com outras atividades complementares, tais como pesquisa sobre satisfação no trabalho e reuniões, às quintas-feiras, nos engenhos” (Lima, 2001: 1). O projeto é um convite aos trabalhadores demonstrando que, além do domínio dos códigos de linguagem pela comunicação, é urgente a compreensão dos mecanismos de produção. Para além disso, avança-se nos objetivos desse plano de educação no ambiente da indústria, resumido como “a capacitação dos trabalhadores na perspectiva da empresa autogestionária” (ibid.: 2). E isto significa ter por base a dimensão concreta da realidade, pois a sua execução passará pela quebra da visão de que o trabalhador não apresenta condições de gerir um empreendimento produtivo com suas próprias mãos. “Portanto, a formação, como processo permanente de produção da história e visão de mundo de cada um, cumpre, em nossa compreensão, o papel fundamental de ser cimento que agrega diversos fragmentos existentes na consciência dos indivíduos, possibilitando a compreensão do projeto histórico dos trabalhadores” (ibid.: 2). O plano teve início com as discussões dos valores da economia solidária e da autogestão. Em seguida, passou pelas dimensões técnicas específicas para ambos os cursos, como as do plantio da cana, a escolha da agropecuária alternativa para a região e técnicas utilizadas para a produção do açúcar, no interior da usina. Chegou-se, por fim, ao exercício para a aprendizagem dos cálculos de custos das técnicas utilizadas, lastreadas pela educação popular. Abre-se um campo muito vasto para se discutir a lógica e a teoria do conhecimento que essas ações educativas e populares vêm demonstrando. O que se pode ver neste experimento? Uma expressiva série lógico-gnoseológica aparece. O objeto de ação é a realidade que se mostra com sentidos, expresso por sensações, percepções, juízos, verbalização e conhecimento objetivo. Surge uma dimensão que Maciel (1963) apresenta como as três operações do pensamento: a apreensão (operação mental que forma a idéia, expressa pela verbalização da palavra); o juízo (ato de afirmar as suas apreensões); o raciocínio (composição dos juízos entre si, por meio dos conectivos básicos geradores das demais conjunções). Através desse percurso, viabiliza-se a procura da melhoria sustentável das condições de vida dessa população de baixa renda e moradores dos engenhos de propriedade da usina. Isso ocorre por meio da mobilização, do acompanhamento e de suas iniciativas empreendedoras, inclusive de gestão, das articulações políticas dos atores locais, do trabalho sócio-educativo com as famílias da região, dos planos de negócios e projetos de empreendimentos, alimentando a visibilidade do aprender humano52. O projeto identifica-se com a abertura da sociedade à aprendizagem coletiva. Nela, segundo Gonçalves (2000: 37), “direcionam-se as novas formas de trabalho e de serviços, articulando-as ao aprender permanente e à flexibilidade adaptativa de seus sujeitos”. O método concebido na alfabetização freirena é aqui usado na mesma base maiêuticosocrática. O diálogo é usado como força motriz da linguagem que se instala e vai se apresentando como caminho, sempre aberto, para uma seqüência de argumentação ou novas definições de gestão para uma autogestão. O procedimento metodológico é sempre dicotômico(dialético) ou de divisão em duas partes; em seguida, uma das partes é tomada para nova definição, que novamente será dividida, dando continuidade ao procedimento. Este método duplo conduz, de início, a uma técnica de argumentação que procura desmontar os conhecimentos prévios de cada participante, bem como os possíveis vícios existentes de pensamento e tidos como verdadeiros e definitivos.
cursos técnicos, que foram realizados simultaneamente, sendo um curso em Técnicas de Gerenciamento em Produção Agrícola, para trinta participantes, e o outro em Técnicas de Produção na Agroindústria Açucareira, para outros trinta participantes, e ambos sob a orientação pedagógica da educação popular e da economia solidária. 52
Vários momentos nos círculos de cultura são coordenados pelo grupo de mulheres, sob a orientação do Centro de Mulheres, da cidade do Cabo/PE.
64 O segundo momento é o da maiêutica em que todos se preparam, por meio de perguntas, trazendo as suas verdades. Os exercícios de anamnese (retornos à história da usina e às vezes do/a participante) criam as condições subjetivas desse trânsito do „eu‟ para a própria interioridade. Esse conhecimento é resultante do movimento de perguntas e respostas. Não é um conhecimento gerado de uma simples opinião, daquilo que se pensa ter certeza. Há, portanto, toda uma argumentação que o solidifica. Essa construção é o método utilizado nesse caminho educativo, que não se esgota com o ato de colecionar informações categóricas ou definitivas. O debate sobre a autogestão em Catende apresenta-se, em geral, de forma bastante abstrata, considerando que tentativas dessa natureza não são comuns na região. Para os trabalhadores, o diálogo que se trava na construção da autogestão não é algo para grupos fechados; é uma postura de reflexão desenvolvida nos indivíduos participantes sobre o seu mundo, no qual aprendem como criá-lo e recriá-lo. É um convívio entre sujeitos cognoscitivos, para além de simples sinais de linguagem, na medida em que envolve eventos sociais de relacionamentos entre os atores do processo. “Para nós, não existe democracia sem apropriação coletiva dos meios de produção. A autogestão é um processo de aprendizado, principalmente em áreas de agroindústria em que predomina alto índice de analfabetismo e baixa institucionalidade de organização empreendedora dos trabalhadores. Portanto, autogestão trata-se de nova cultura do trabalho e administrativa se articulando numa estrutura funcional do negócio, em que os resultados finais são coletivamente apropriados” (Usina Catende, 2002: 1)53. Isto expressa as funções psicológicas da abstração e da generalização que Maciel (1963) detecta em Freire, na perspectiva de Pavlov. É um sistema de sinalizações em que, no primeiro momento, há ênfase nas percepções do mundo real e concreto; no segundo momento, pela linguagem, o humano transcende para a criação, em todas as esferas da vida, sendo esta inesgotável. Após esses anos de ações de ensino e aprendizagem para outro estilo de vida, os trabalhadores da usina exibem mudanças quanto ao uso da terra, mesmo que permaneça a cana de açúcar como produto principal. “Mudanças das relações empresa e sociedade, da liberdade de organização e expressão, da moradia, da educação, e que despertam para a questão: o que significa (a usina) numa região dominada secularmente pelo latifúndio, exploração do trabalho, analfabetismo, mandonismo e violência?” (Usina Catende, 2002: 2). Trata-se de uma questão para ser respondida por quem assume a relação homem e mundo, num ambiente com as dimensões culturais apresentadas, expressando, de forma visível, o avanço para a consciência crítica, possibilitada pela comunicação por meio do diálogo. São categorias ou postulados presentes em Freire e que aparecem nesse projeto, incentivando ações que definem pressupostos teóricos formuladores de um sistema intercomunicante. Nos círculos de cultura54, são discutidas as providências com vista à obtenção de alevinos para os barreiros dos trabalhadores ou a criação de outros animais e implementos agrícolas. Neles, os trabalhadores debatem suas formas de atuação junto à administração central da usina, como a eleição para os vários conselhos existentes, a autogestão, a safra e preços do açúcar, a defesa do projeto Catende/Harmonia e suas dificuldades, a sua participação na Articulação da Mata Sul55, além do mecanismo de falência e a discussão
53
Os textos produzidos na própria Usina Catende, aqui apresentados como mimeografados, estão disponíveis no ambiente de reuniões do Projeto Catende/Harmonia. 54 Compõem a Usina Catende quarenta e oito engenhos (povoados rurais), onde funcionam vinte e três círculos de cultura. Em todos, estão instaladas associações de moradores, espaços de discussão e reflexão daqueles moradores. 55 A Articulação das Entidades na Mata Sul de Pernambuco é um espaço de reflexão em que associações urbanas e rurais, organizações não-governamentais, movimento sindical de trabalhadores rurais e centros de mulheres (várias cidades) se articulam em torno de uma agenda comum para o desenvolvimento sustentável da Zona da Mata.
65 permanente sobre economia solidária e autogestão56. Também nos círculos, os trabalhadores decidem o conteúdo dos cursos promovidos no âmbito da usina, as técnicas de produção para a agroindústria, onde são tratadas questões referentes à economia e à produção, além de todo o circuito da extração do açúcar – do plantio da cana à venda do açúcar no mercado internacional. “A socialização de conhecimentos adquiridos pela vivência, dialogando com os conceitos técnicos, favorece uma nova compreensão da realidade vivida pela produção familiar” (Usina Catende, 2004: 4). Trata-se do estudo de todos esses sinais que tem na linguagem o principal veículo de conhecimento e, na comunicação, o canal da cultura. Linguagem cuja dimensão pragmática verificada nesses aspectos da educação popular é destacada por Maciel (1963). Ele salienta quatro diferenciados níveis da pragmática, dando ênfase ao nível da pragmática existencial social, na semiótica das interpretações das palavras tratadas, e ao nível da pragmática existencial-transitiva, onde os participantes do „círculo de cultura‟ captam a dimensão política e social da palavra. Nesse momento, a cana não é mais uma simples planta, transformando-se em produto de vida, com as interfaces das dimensões de mercado e as conseqüências sociais para a região. Esses sinais compõem os currículos naquele campo de vivências educativas, tornando possível a sua interpretação devido à riqueza de seus fonemas. Merecem destaque os diversos engajamentos dos trabalhadores nesses ambientes, com suas dimensões sociais e políticas. Esses sinais também foram detectados por Melo Neto (1999), num exercício de ação cultural, na Zona da Mata Norte de Alagoas. O estudo foi desenvolvido com membros de sindicato, professores da escola normal, grupo do Mobral, do esporte, clube de jovens, grupo de zabumba e da festa dos guerreiros e artesanato, além de grupos de arte57. Produziu-se um conhecimento que, segundo Fleuri (2002: 211), “significa fundamentalmente construir teórico-praticamente relações humanas”. Expõe-se, com freqüência, a presença do humano no seu meio ambiente, por meio de sinais semióticos ou da linguagem escrita, em autênticos exercícios de codificação, realizados através de debates, de cartilhas, de fichas e vídeos. Os momentos de decifrar esses símbolos reconciliam as dimensões antropológicas e sociológicas do estudo58 e, portanto, desse sistema de educação. É a única empresa que incentiva o trabalhador para plantar a cana e moer na própria empresa, além de outras culturas. As outras empresas só precisam do nosso trabalho... Isso é de fundamental importância e é a grande diferença para as outras empresas. A gente acredita que os apoios das entidades como a CUT, a Federação e Confederação, os sindicatos e todos que abracem esse projeto muito ajudam (Amaro Juvino)59.
No entanto, vários são os projetos de instituições de apoio ao Projeto Catende/Harmonia e que, muitas vezes, pulverizam ações, conduzindo para a criação de uma equipe de educação da própria usina como forma de melhor incorporar as atividades educativas.
56
Ver: Cartilhas da Série Catende/Harmonia, volumes 1 e 2. (Material didático dos círculos de cultura).
57
Ver: Melo Neto, José Francisco de e Kulesza, Wojciech Andrzey. Ação cultural no meio rural. In: Resistência popular – possibilidades, ontem e hoje. João Pessoa: Editora da UFPB, 2003.
58
As entrevistas completas, das quais são apresentados trechos, estão no Relatório desta Pesquisa denominado: Usina Catende – entre a doçura e a harmonia. Melo Neto, José Francisco de. Catende, 2003.
59
Trabalhador rural em engenhos da Usina Catente. Entrevista para esta pesquisa.
66 Então, a ADS (Agência de Desenvolvimento Sustentável) que a gente desenvolveu com a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e tem, inclusive, a ANTEAG (Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária). Estão desenvolvendo coisas muito parecidas. A gente tenta ver uma forma de como somar forças... Isto pressupõe, necessariamente, ter um trabalho educativo para que eles possam trabalhar de forma crítica todo processo (Isabel Cristina, professora da Catende/Harmonia). Há necessidade de melhoria nos serviços prestados por grupos que contribuem para as ações de desenvolvimento local e da região. Além disso, é preciso criar novos mecanismos, fazendo com que os trabalhadores participem mais diretamente das negociações e decisões do Projeto Catende/Harmonia. Deve-se estabelecer um percurso de negociações que seja assumido e que garanta igual participação dos trabalhadores do campo e da empresa, tendo como pauta a implantação de política, buscando conferir as mesmas oportunidades a todos, de igualdade, de solidariedade e de proteção ao meio ambiente. São elementos de uma teoria política que se sustentam com o exercício da capacidade de gerenciar o empreendimento. A proposta do desenvolvimento local é nova para a região, e as relações sociais insistem em permanecer num tempo passado. “Se ela (usina) fechasse e dividisse as terras para os trabalhadores seria bom – uma reforma agrária. Os donos que colocaram o pessoal para fora disseram, na época, para a gente receber o que nos era devido em terra e dinheiro. Os sindicalistas não aceitaram, com o interesse de tomar conta da empresa. Disseram que a empresa é do trabalhador, o lucro da empresa vai ser dividido pelos trabalhadores e isso nunca aconteceu nem vai acontecer. Eu acho que uma empresa dessas não vai para frente” (José Milton)60.
As discussões continuam centradas nas questões econômicas, no mercado internacional do açúcar e no próprio desenvolvimento do projeto e da região, tendo-se a percepção de que as ações educativas não superam o debate sobre desenvolvimento. A esse respeito, alerta Ireland (2001: 176): “O crescimento econômico não é um substituto adequado para educação, ciência, cultura e comunicação entre povos e nações”. Todavia, os possíveis fatores de sucesso do Projeto Catende/Harmonia passam pela sua capacidade de produção, pelas relações que estejam ao seu favor entre a empresa e o Estado, bem como pela promoção da democracia interna no campo e na fábrica. Passam ainda por essa ação educativa, a partir da empresa, estendendo-se para a região e para o país, trilhando um caminho seguro em que a usina produza cultura, inclusive o açúcar. É preciso observar que, do ponto de vista jurídico, não houve o encerramento da falência. Os usineiros não assistem a tudo isto como expectadores. Acrescente-se, ainda, que uma empresa falida não pode fazer financiamento, investimento em pecuária, nem desenvolver pequenas fábricas. Isto só se viabiliza nas atuais condições, a partir de algum aporte de recursos da cooperação internacional. “Precisamos transformar pessoas em dirigentes para o futuro. Além do problema econômico, há problemas de se planejar estrategicamente a ação dos bons quadros e dos atores existentes em torno do projeto. Todos aqueles dirigentes da Catende são importantíssimos, mas é possível aproveitar, ainda mais, o potencial deles num todo. As pessoas também têm 60
Entrevista para esta pesquisa. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Cidade de Palmares – PE. Palmares é um dos cinco municípios abrangidos pelo Projeto Catende/Harmonia, onde a usina tem suas terras.
67 muito potencial e é necessário ajudá-las nisso” (Risadalvo José, assessor do Projeto Catende/Harmonia)61. As críticas são feitas também por parte dos operários, quando apontam a necessidade de que o pessoal da indústria precisa partir para outras alternativas. Para o trabalhador do campo, há o „projeto cana de morador‟ com a posse pelo próprio agricultor da cana plantada e colhida. Nessas críticas, pedem que sejam examinados projetos para os operários da indústria, em seus variados setores. “Nós temos uma carpintaria que está, praticamente, parada; temos uma cerâmica que poderia gerar renda; temos um hospital – a Policlínica Gouveia de Barros - que está, praticamente, parado, além da fundição. Então, nós da indústria temos que criar algum tipo de perspectiva, algum tipo de alternativa para a gente garantir a nossa sobrevivência e não ficar na dependência da Harmonia/Catende e do pessoal do campo” (Francisco José e Edvaldo Ramos, operários da Usina). Cursos são promovidos para fortalecer metodologias de uma pedagogia participada, com a finalidade de “preparar trabalhadores residentes em áreas da usina, as zonas de produção agrícola, para atuar, técnica e solidariamente, no gerenciamento de produção da cana de açúcar e culturas alternativas para o desenvolvimento auto-sustentável” e “preparar trabalhadores para atuarem, técnica e solidariamente, em agroindústrias, no processo de produção do açúcar” (Melo Neto, 2003: 215), com conteúdos específicos, com um peculiar sistema de avaliação dos/as participantes e coordenadores/as dos cursos. Os canais variados e polissêmicos da linguagem cruzam-se. As pinturas, o auditivo, por meio do verbal, os áudios e gráficos estão presentes. Além da associação de fonemas e de palavras, associam-se palavras com as imagens, palavras com novas palavras, imagens com as palavras e imagens com novas imagens do mundo daqueles trabalhadores. Tal compreensão de linguagem pode explicar “o fato de que o indivíduo, ao usar a língua, não apenas exterioriza o pensamento ou transmite informações, mas também realiza ações com a própria linguagem e atua sobre os interlocutores” (Aquino, 2000: 53). Estes são campos de estudo para serem explorados pela teoria da comunicação e pela teoria da cultura, presentes nos exercícios da educação popular, efetivamente, com dimensões intercomunicantes. Resultados semelhantes foram catalogados em pesquisas que procuravam delinear ontologicamente a educação popular, junto a cursos de instituições62 que preparam profissionais para exercerem atividades nesse campo educativo. Durante a realização desses cursos, pesquisas foram desenvolvidas na busca de maior embasamento teórico para sua aplicação e a linguagem utilizada, tendo como fundamento o mundo experiencial dos participantes, definido como ponto de partida – o concreto. A presença do cotidiano entre os participantes desses cursos e suas reflexões foram se transformando em sínteses. A categoria teórica movimento acompanhou as reflexões e a produção coletiva durante o curso e a pesquisa, em um exercício geral de intersubjetividades. Foram coletados, com essa metodologia, os elementos que os educadores/as indicavam como os constituintes da educação popular, expressos abaixo:
61
Entrevista para esta pesquisa.
62
Dados de pesquisas realizadas no período de 2002 a 2004, nos cursos do Centro de Ação Comunitária (CEDAC), de preparação de profissionais em projetos que envolvem educação popular, na cidade do Rio de Janeiro, e com alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura), da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, em três turmas nas disciplinas de História e Filosofia da Educação Popular e de Teoria em Educação Popular. Todos os participantes são profissionais que atuam no campo da educação popular.
68
Quadro 1: Constituintes da educação popular com grau de pertinência63 igual ou superior a 80% dos respondentes.
CONSTITUINTES
RESPONDENTES(%)
Compromisso político Práxis Autonomia Crítica Cultura Diálogo Processo Pedagogia própria Transformação Realidade Empoderamento
100 94 88 88 88 88 88 88 81 81 81
Fonte: Pesquisa no CEDAC – Centro de Ação Comunitária, Rio de Janeiro, 2003. Esses dados reforçam a visão de educação popular expressa como um fenômeno cultural. Esse fenômeno passa a cultivar um tipo especial de ensino e aprendizagem, com teorias explícitas de conhecimento e de comunicação. Contém uma pedagogia própria, com conteúdos e procedimentos de avaliação, e uma base política libertadora efetivada por constituintes como a promoção de empoderamento das pessoas, a transformação e o compromisso político. A mesma pesquisa, realizada no ambiente universitário com alunos que atuam nessa área educacional, apresentou os resultados constantes no quadro que segue: Quadro 2: Constituintes da educação popular com grau de pertinência64 igual ou superior a 80% dos respondentes.
CONSTITUINTES Cultura Construção do sujeito Compromisso político Crítica Diálogo Democracia Liberdade 63
RESPONDENTES (%) 95 90 90 88 88 85 85
Aquele elemento teórico que mais identifica a educação popular. Destaca-se ainda um conjunto de outros elementos de pertinência inferior ao índice definido: metodologia própria, organização/sistema, coletivo, experiência, incentivo aos saberes, cooperação, trabalho, identidade/autoria, emancipação, liberdade, ideologia, subjetividade, ação, construção, produção, identidade, gênero e reflexão. 64 Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina Teoria em Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Curso de Doutorado em Educação da UFPB, em João Pessoa - turma de 2003. Outras categorias teóricas que foram levantados com menor pertinência: produção de conhecimento(metodologia própria), prática, ideologia, autenticidade, experiência, transitoriedade e apropriação do produto da educação popular.
69 Autonomia Identidade Práxis Incentivo aos saberes Trabalho Popular
85 85 80 80 80 80
Fonte: Pesquisa entre participantes de projetos em educação popular, João Pessoa, 2003.
Essas categorias teóricas, identificadas para a composição de um conceito em educação popular, parecem ir, pouco a pouco, consubstanciando a possibilidade de que as mesmas formem uma visão da educação popular permeada de princípios éticos. Vão, além disso, constituindo uma filosofia com elementos evidentes de uma teoria de conhecimento. Esses elementos convidam para uma metodologia ou uma pedagogia especial, acompanhada de conteúdos com forte inspiração política para a liberdade, assumida pelas dimensões da práxis, da autonomia e da crítica. Além disso, aproximam-se no mesmo ambiente de pesquisa, considerando outra amostra65, apresentada a seguir. Quadro 3: Constituintes da educação popular com grau de pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes.
CONSTITUINTES
RESPONDENTES (%)
Autonomia Compromisso político Incentivo ao conhecimento Construção do sujeito Cultura Diálogo Práxis Trabalho Autenticidade/identidade Crítica Liberdade Saberes
90 90 90 85 85 85 85 85 80 80 80 80
Fonte: Pesquisa entre participantes de projetos em educação popular, João Pessoa, 2003.
Esses elementos teóricos compõem material de discussão pelos participantes em seus ambientes de ensino e aprendizagem. Há, ainda, um exercício cujo objetivo é eliminar aspectos incongruentes do conceito, estabelecendo-se finalmente a educação popular como um conceito possível de orientar práticas educativo-populares.
65
Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina História e Filosofia da Educação Popular, no mesmo Programa de Pós-Graduação - turma de 2003. Outros elementos também foram revelados abaixo do percentual de pertinência definido: democracia, experiência, ideologia, identidade, prática, popular, produção do conhecimento, resgate do sujeito, transitoriedade e apropriação do produto da educação popular.
70 Os dados de outro grupo pesquisado66 apresentam os seguintes elementos constitutivos: ação transformadora, aprendizagem (sentir, pensar e agir), compromisso político, construção do sujeito, crítica, cultura, democracia, diálogo, emancipação, liberdade, práxis, produção e apropriação do conhecimento (metodologia própria), realidade e saberes. Esses elementos indicam a existência de uma teoria de conhecimento que realiza uma pedagogia pautada na crítica, no compromisso político popular e na ética do diálogo. Essa pedagogia volta-se à construção do sujeito, ao empoderamento dos indivíduos envolvidos nessas ações comunicantes, definindo, portanto, um conteúdo e procedimentos de avaliação orientados no próprio processo. Ao reforçarem o compromisso político, a emancipação, a igualdade, a liberdade, a justiça e a felicidade, demarcam políticas que visam à emancipação da pessoa humana. Essas diversas ações educativas seguem os passos indiciários de Freire que, com base em sua pedagogia, passam também a nortear o exercício educativo presente na Usina Catende, nessas várias práticas pesquisas e em outros tantos lugares. Parece, assim, razoável compreender a educação popular como um fenômeno de produção pelo trabalho e de apropriação dos produtos culturais da humanidade. Como um fenômeno da cultura, a educação popular tem nesta as dimensões de bens de consumo e bens de produção. Apresenta a divisão do trabalho e expõe a existência humana, em razão de ser o humano o criador da cultura, alimentando uma teoria da cultura. Com a dimensão ética do diálogo, a educação popular forja um sistema aberto de ensino e aprendizagem, cuja filosofia convida outros valores éticos para expressar o seu fazer. Além disso, aponta para uma teoria do conhecimento referenciada na realidade e em um procedimento da razão, em forma de intersubjetividade, expressando a intersecção do mundo objetivo das coisas, do mundo social das normas e do mundo subjetivo dos afetos – a linguagem - cobrando uma teoria da comunicação. Pressupõe uma linguagem expressa por normas vigentes geradas de manifestações que possam ser justificadas, pois do contrário não serão legítimas nem terão valor dialógico intersubjetivo. É, enfim, um fenômeno educativo pautado por uma pedagogia (metodologia) incentivadora da participação e do empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais. Esse fenômeno é lastreado em uma teoria política direcionada aos anseios humanos de liberdade, de justiça, de igualdade e felicidade, além de estimuladora das transformações sociais necessárias. São dimensões teóricas, práticas e de valores para a vida que promovem a educação popular a patamares com possibilidades para além da ênfase na alfabetização de adultos. É uma filosofia com posturas éticas que sugerem outro estilo de se viver em qualquer ambiente do cotidiano, podendo ser iniciado na educação do lar, na educação infantil, na alfabetização e nos níveis do ensino básico e médio, consolidando-se na educação superior e espraiando-se por todos os níveis de ensino, também, de pós-graduação. Com essa demarcação, parece razoável a interpretação da educação popular como um sistema aberto de teorias intercomunicantes.
REFERÊNCIAS AQUINO, Mirian de Albuquerque. Um (tre)jeito felino de construir o discurso. Temas em Educação. Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação-UFPB. João Pessoa: Editora da UFPB, vol 9, 2000. BRENNAND, Edna Gusmão de Góes. Paulo Freire e a pedagogia do diálogo. In: O labirinto da educação popular. Org. Edna Gusmão de Góes Brennand. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2003. CALADO, Alder Júlio Ferreira. Globalização – múltiplos e com(pl)exos fios de uma teia de relações: rumos, caminhos, protagonistas, posturas em aberto... In: O labirinto da educação popular. Org. Edna Gusmão de Góes Brennand. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2003. 66
Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina Teoria em Educação Popular, no mesmo Programa de Pós-Graduação, turma de 2004.
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TEXTO 7
EDUCAÇÃO POPULAR NOS PROGRAMAS DE QUALIFICAÇÃO67 Resumo: Os processos de avaliação de programas de qualificação do trabalhador, incentivado pelo governo, vêm mostrando várias debilidades desafiadoras àqueles que atuam nessas atividades 67
Capítulo de livro: Políticas públicas em questão: o plano de qualificação do trabalhador. Buenfíglio, Maria Carmela (org.). Editora Manufatura, João Pessoa, 2004.
73 educativas, bem como, aos agentes públicos. Esses programas manifestam-se, muitas vezes, desarticulados da política econômica maior, preparando trabalhadores para um mercado de trabalho com poucos ou quase nenhum posto de trabalho. Boa parte deles têm sido um exercício de continuidade daquelas já existentes, arrastando para si virtudes e problemas, passando a cobrar um realinhamento de conteúdos e modos de fazer, suscitando a questão da pesquisa: que tipo de educação poderá ser veiculada nas atividades conteudísticas desses cursos de qualificação do tipo plantec/pnq, de maneira a tentar atender às expectativas atuais de uma educação profissional que contribua à qualificação do cidadão crítico e ativo? A resposta encontrada nesta pesquisa foi de que a educação popular, nas bases definidas, pode tornar-se uma importante aliada nessa construção social. Palavras-chave: trabalho – qualificação – educação popular.
Introdução Os mecanismos de avaliação de programas de qualificação, em todo país, vêm mostrando algumas debilidades desafiadoras àqueles que atuam nessas atividades educativas, bem como, aos agentes públicos, os seus promotores. As políticas públicas voltadas a esse campo, vislumbrando a qualificação das pessoas para atuarem no mercado de trabalho, expressam, em sua maioria, exercícios de continuidade daquelas já existentes, arrastando para si virtudes e problemas. Assim, a análise de processos de avaliação de programas governamentais no campo da qualificação profissional passam a confirmar a manutenção de equívocos educativos, na sua efetivação, que do ponto de vista de suas metodologias e conteúdos, passam a cobrar um realinhamento de outros conteúdos e modos de fazer que só podem ser realizados na perspectiva da educação popular. Está sendo muito comum a solicitação de avaliações por instituições não estatais dos programas de qualificação ou requalificação profissional em todo o país. Um simples olhar nesses resultados confirma a desarticulação de instâncias desses planos e programas. Surgem entraves decorrentes de que, em boa parte das regiões, a qualificação promovida não leva em conta as demandas da realidade mesma. Há fragilidade de interligação entre os próprios programas da política de qualificação. Manifestam-se, muitas vezes, desarticulados da política econômica maior, preparando trabalhadores para um mercado de trabalho com poucos ou quase nenhum posto de trabalho. Tornam-se inócuos quando, de maneira comum, induzem cursos que não estão atendendo às demandas locais e, assim, descolados deste contexto. São crescentes, portanto, as dificuldades de realização de uma educação que promova as dimensões humanas de modo integral e aos anseios de uma cidadania para os novos tempos, sem deixar de alertar para a própria educação dos educadores responsáveis por essa profissionalização. Aqui, contudo, será merecedora de destaque a pergunta: que tipo de educação poderá ser veiculada nas atividades conteudísticas desses cursos, de maneira a tentar atender às expectativas atuais de uma educação profissional que contribua à qualificação do cidadão crítico e ativo? Traços da educação profissional A educação profissional no país, historicamente, foi considerada como algo à parte e sem uma política estabelecida com linhas, objetivos e dimensão estratégica para o desenvolvimento do país. Desde a colônia, ela ocorrera de forma assistemática e se realizara no próprio ambiente de trabalho, estando voltada aos negros, aos índios e aos mestiços. No final do século XIX, surgiu o ensino técnico, agrícola e industrial de forma muito tímida e, expressivamente, nos grandes centros do país, destacando os Liceus de Artes e Ofícios, direcionados aos „meninos de rua‟ da época. Sem poder proporcionar acesso à universidade, esse tipo de educação era destinada a formar os trabalhadores, adequando-os ideológico e profissionalmente aos interesses das elites dominantes. Uma educação pautada para a instrução de uma única atividade e de forma definitiva; uma profissão para o resto de sua vida.
74 A partir da década de 60, incentiva-se a criação de ginásios destinados à profissionalização que só terá maior impulso com a ditadura militar e, a partir da década seguinte, com a reforma geral da educação. O nível fundamental e o médio, o primeiro e segundo graus decorrentes dessa reforma, fizeram-se responsáveis pela educação profissionalizante. Uma tentativa frustrada e recorrente, talvez, de duas dimensões principais. A primeira seria a afronta ao ideário das elites de que a profissionalização é algo para aqueles das classes inferiores, tendo em vista que os seus filhos seguiram nas escolas de formação propedêutica geral e preparatória à universidade sem cumprirem a norma; a segunda fora a impossibilidade, por um passo de mágica, das escolas do ensino médio em todo país adequarem-se às técnicas dos trabalhos de casa, da indústria, do comércio e do campo, transformando-se em oficinas profissionalizantes. Ainda na década de 70, com a aceleração do avanço tecnológico e científico, as mudanças vão processando-se e o mercado de trabalho também se modifica, tão rápido quanto radicalmente. Aquela formação de um trabalhador para exercer apenas uma atividade por toda sua vida, agora, passa ser uma formação que possibilite adaptação imediata à novas tarefas, à promoção da autonomia e rapidez na sua aprendizagem ou adequação às novas definições do mercado. Em contraposição, contudo, já na década de 80, anula-se a obrigação para a profissionalização do ensino médio e se instala, apenas, a preferência. O curso profissionalizante deixa de ser obrigatório e passa a ser, simplesmente, uma opção da escola. Descarta-se a necessidade de se profissionalizar e, assim, tudo parece voltar ao seu curso histórico de antes. Para o acompanhamento da modernização na indústria e comércio do país, constrói-se outro sistema de formação profissional não mais pelas escolas regulares, mas por outros canais que vieram a ser denominados de sistema S(Senac, Sesi ...) de formação para o trabalho. Mais recentemente, está no corpo da lei o sistema de educação profissional que compreende os níveis básico, técnico e tecnológico. Este último, com destaque ao nível superior, abre a organização de cursos com menor duração, implementados, sobretudo, pelas antigas escolas técnicas federais e, hoje, os Centros Federais de Educação Tecnológica. Entretanto, os planos de qualificação do governo (planteq/pnq – plano nacional de qualificação) não passam por estas dimensões formais da educação. Estão voltados para aqueles que, em geral, ou não estiveram na escola ou estiveram por curtos espaços de tempos com baixo índice de escolaridade. A estes também estão sendo cobrados adequabilidade aos novos tempos, às novas profissões e exigindo-se agilidade na sua qualificação e requalificação para que possam responder ao mercado de trabalho que, contraditoriamente, já os excluiu ou os mantém na exclusão. Contudo, independentemente das dimensões ideológicas e políticas e da ausência de cuidados para com a educação profissional no país, é importante destacar que a dimensão central que permeia todo esse mecanismo profissionalizante é o trabalho. Seja a profissionalização para os negros, índios, mestiços, trabalhadores e filhos de trabalhadores, excluídos ou de todos/as aqueles que viveram, vivem ou viverão de sua própria força. Até mesmo, entre os objetivos da educação brasileira permanece a preparação para o trabalho. Dessa maneira, é a partir desse eixo central que se torna possível pensar um enfoque pedagógico que, segundo Buonfíglio (2004: 8), “reconheça e valorize os saberes dos educandos, as diferenças culturais”. O trabalho com dimensão educativa Ao pensar uma educação cujo parâmetro necessário seja o trabalho, isto possibilita maior força para a sua realização como algo transformador na vida das pessoas; o trabalho expresso na visão marxista como processo em que participam o humano e a natureza. Aqui, o humano impulsiona, regula e controla o intercâmbio material com a natureza. O humano passa a atuar com as forças que lhes são próprias de seu corpo, inteligência, braços, pernas com a finalidade de apropriar-se dos bens naturais, dando-lhes utilidade para a existência. Essa ação sobre a natureza externa é transformadora não só em relação à natureza que lhe é externa, mas também quanto à sua própria natureza. Uma educação pautada pelo trabalho
75 adquire a dimensão transformadora constituinte do próprio conceito que lhe é central. O trabalho sugere um acordar das potencialidades da natureza, porém, submetendo-a a seu próprio domínio. Um domínio que lhe possibilita, inclusive, o controle para a permanência dessa natureza, legando-a para as futuras gerações. Essa conformação do trabalho é uma pressuposição exclusivamente humana. A educação nesta perspectiva contribui para a capacidade humana de realizar aquilo que anteriormente passara por sua consciência sem, contudo, deixar de entender a anterioridade da realidade sobre a consciência, estabelecendo nesse tipo de trabalho uma intencionalidade. Enunciado o trabalho como definidor para a educação, é possível de se encontrar os seus elementos constituintes que são: “1) a atividade adequada a um fim, isto é o próprio objeto; 2) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto do trabalho; 3) os meios de trabalho, o instrumento de trabalho” (Marx, 1982: 87). A partir desses constituintes será mais fácil a compreensão de que a terra e os meios de subsistência apresentam-se como objetos universais do trabalho humano. A educação precisa, portanto, retornar às dimensões da realidade humana e aos meios para a sua transformação. A educação profissional pode, nesta perspectiva, mostrar que há na natureza coisas que são separadas do trabalho e de seu meio natural. Essas coisas constituem-se nos objetos do trabalho que são fornecidos pela própria natureza. O objeto de trabalho, em sendo produzido a partir do trabalho anterior, passa a ser chamado de matéria-prima. Nesse sentido, é que nem toda matéria-prima é objeto de trabalho, como nem todo objeto é matéria-prima. O objeto de trabalho pode ser considerado como matéria-prima após ter sido transformado pelo trabalho. Assim, conduz-se a uma educação com perspectivas de transformação pelo trabalho. O outro elemento dessa dialeticidade é o meio de trabalho, isto é, uma coisa que o trabalho insere entre si e o objeto do trabalho. Este meio orientará a ação sobre esse objeto. A educação pelo trabalho promoverá, na sua pedagogia, o aprendizado das propriedades físicas, químicas e mecânicas dessas coisas para que atuem sobre outras. Um esforço na perspectiva de que se conduza para a posse desse meio, dando-lhe uma utilidade. A posse daquilo que não seja fornecido pela natureza, torna-se não o objeto de trabalho, mas o meio de trabalho. Quando, ao processo educativo, adicionam-se essas outras coisas à sua própria força, estarão aumentando-as nas dimensões corporal e natural. O desenvolvimento da humanidade dá-se também no sentido de, cada vez mais, exigir meios de trabalho mais elaborados e serão estes meios, produzidos pelos humanos, que irão caracterizar esse estado de mudanças como estritamente humano. Uma educação voltada à qualificação precisa voltar-se a essa dimensão. Na perspectiva metodológica, esse trabalho educativo possibilitará a compreensão da realidade por meio do caminho das abstrações que conduz à definição de categorias do real. Um exercício possível quando se buscam aquelas categorias mais simples, porém com possibilidade de maiores explicações para a situação em que se encontram a realidade e as situações de determinação, onde estão acontecendo atividades de educação. O trabalho se constitui como elemento constante na dimensão da categoria popular, sendo o fazer educativo, efetivamente o trabalho em si mesmo. Popular, visto como expressão metodológica que arrasta consigo um procedimento que incentive a participação, ou seja, um meio de veiculação e promoção da busca de cidadania, pautada pelo exercício da crítica e da ação. Na educação voltada aos interesses dos trabalhadores, o trabalho intelectivo dos atores dessa educação percorre o caminho da produção de abstrações mais gerais com condições explicativas da situação de vida daquela comunidade ou grupo social. Com essas abstrações mais gerais, torna-se possível a compreensão da situação do momento em que se vive, possibilitando, além disso, maiores e melhores explicações históricas das determinações de cada momento histórico dos objetos de ensino e aprendizagem. Dessa maneira, faz-se possível, pelo exercício rigoroso da ação educativa, a montagem de melhores análises da realidade e, ainda, por onde começarem essas análises, tentando o encontro com as respostas às questões postas. Este é um trabalho que vislumbra a produção do conhecimento social e útil, capaz de superar a realização da alienação, tão presente na educação que busca formar as pessoas, talvez, pôr na forma da dominação.
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O trabalho social no intercâmbio com a educação popular Esse trabalho social gera um produto que também expressa suas contradições, mas que constituir-se-á, sobretudo, como uma mercadoria social, na medida em que é produzida por aqueles que realizam a educação de cunho popular – uma educação popular. Um produto, seja conhecimento teórico ou tecnológico, que precisa ser gerenciado pelos produtores principais, tornando possível a socialização desse produto, caracterizando esse momento como o da devolução das análises ou outras sínteses culturais aos seus produtores. Vive-se, nesse momento, a apropriação dos bens culturais, por meio desse trabalho intelectivo ou técnico. Isto encaminha para um novo agir sobre a realidade. Gera conhecimento nas ações pedagógicas, aprimorando, ainda mais, a capacidade de aprender desses atores, procurando dimensões outras de facilitação dessa aprendizagem, elaborando uma outra teoria em educação, e além do mais desenvolvendo as suas habilidades políticas para intervirem na organização da própria política da educação com novas normas e orientações pedagógicas. Um trabalho que, do ponto de vista ontológico, guia-se para a realização das necessárias transformações, no caminho da superação de mecanismos de exclusão e promotores de injustiças. O trabalho, enquanto categoria que embase a educação popular, se concretiza nas ações do coordenador de grupo de educação, dos educandos e, juntamente, por todos como construção teórica de categorias que os preparem para análises sobre a realidade das questões comunitárias. Um trabalho que irá se expressar como um direito e um dever das pessoas. As necessidades de transformação contidas na ação pelo trabalho são expressão dos anseios da população para gerar riquezas para todos. O trabalho como condição básica do existir humano – a produção de sua sobrevivência. Trabalho, assim, arrasta de forma intrínseca, a necessidade de participação na criação e na transformação do meio ambiente, da vida e da história. Do ponto de vista econômico, convertendo em possibilidade a ocupação pelo trabalho para todos, promove a subsistência de todos. Trabalho como expressão de apoderamento dos bens culturais produzidos pela humanidade, superando qualquer tipo de forma que se realiza em muitas ações educativas voltadas aos “desvalidos” da sociedade. Ações educativas, no campo da educação popular que se expressa por meio de processos que podem expressar resistências às formulações de uma ética e de uma moral utilitária que fomentam e enfatizam a individualidade em nome, prioritariamente, de um benefício pessoal. A ela contrapõe-se a ética da comunicação, do diálogo, da responsabilidade social, da democratização, da justiça social, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças, das escolhas individuais e grupais, elementos que potenciam a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas, na construção de outras formas de racionalidade. Assim, é que se abrindo ao campo das mudanças, possibilita o exercício do empoderamento das pessoas, a ênfase em sua individualidade quando contribui à construção de identidades, tanto do indivíduo como coletivamente, enfatizando os aspectos subjetivos, com destaque às questões de gênero, sob o manto especial da produção das coisas para ser assegurada a vida. Uma educação popular que se constitua como um fenômeno de produção e apropriação de bens culturais, que seja um sistema aberto para novas e atuais abordagens de ensino e aprendizagem. A sua teoria de conhecimento inicia-se pela abstração como ponto de partida, mas que tem a realidade como anterioridade nesse percurso de abstração. As suas metodologias ou a sua pedagogia são incentivadoras à participação e ao empoderamento daqueles que teimam em aprender e se profissionalizarem. Educação que precisa estar voltada a conteúdos e a técnicas de avaliação que levem em conta não só produtos
finais, mas também, todo os procedimentos educativos. E mais: uma educação, permeada de uma base política estimuladora das transformações sociais necessárias, na busca humana incessante por liberdade, justiça, igualdade e felicidade. A promoção deste tipo de educação – educação popular – bem que poderá contribuir para superação de conteúdos e metodologias que só impelem ao fortalecimento da dominação presente na „formação profissional‟, na “(in)capacitação” do trabalhador. Estabelece-se, como um primeiro exercício, a preocupação conceitual necessária aos tempos atuais, a iniciar pela superação de qualquer tipo de educação que ambicione „formar, pôr em forma ou dar forma‟. Enfim, educação popular para a qualificação libertadora do trabalhador.
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TEXTO 8
EDUCAÇÃO POPULAR EM DIREITOS HUMANOS 68
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Capítulo do livro: Educação popular em Direitos Humanos - fundamentos teórico-metodológicos. Rosa Maria Godoy Silveira (et all. org.). Editora da Universidade Federal da Paraíba, JoãoPessoa: 2007.
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Introdução A Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, tem incentivado a promoção de vários sistemas desses direitos, seja em nível de países, em regiões e no local onde as pessoas vivem. Isso tem impulsionado um conjunto de fatores, destacado no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (Brasil, CNEDH, 2006), como a promoção de interesses nas pessoas das temáticas de conteúdos globais; a institucionalização de padrões de valoração, sanção e pressão, além de mecanismos de avaliação dessas políticas; definição de princípios que objetivem a força e o poder de setores sociais historicamente vulneráveis como mulheres, negros, idosos, povos indígenas, grupos raciais e étnicos ... entre outros; organização de redes para reivindicações transnacionais e ações coletivas em defesa dos direitos humanos, alertando todo mundo sobre aqueles grupos ou corporações que os violam. Muito distante, todavia, estão esses direitos a serem conquistados. Longe está o respeito às pessoas, às suas diferenciadas raças, nacionalidade, gênero e suas orientações sexual e religiosa. Direitos estes que vêm acompanhados da ausência de outros tipos de direitos como o de qualidade de vida, da moradia, do saneamento, da segurança pública, do trabalho, da educação e das diversidades culturais e religiosas. Enfim, possibilidades de construção de uma cidadania democrática, cidadania ativa que apresenta condições à participação das pessoas, acompanhamento dessa participação e avaliação das ações definidas coletivamente. Cidadania que, necessariamente, esteja pautada por princípios como o da liberdade, da igualdade e da diversidade mesmo que se afirme a interdependência entre todas essas dimensões da vida. Tudo isso, na perspectiva desse Plano, a educação se transforma em um instrumento fundamental de exercício e de busca desses direitos. Processos educativos que precisam estar norteados na perspectiva de uma educação traduzida como um processo sistemático e de variadas dimensões para a orientação e formação do sujeito e da pessoa, orientada à luta por seus direitos. Uma educação que articule, historicamente, os direitos humanos com os contextos internacional, nacional e local. Uma educação que possa externar a compreensão de que os direitos humanos estejam presentes em todos os ambientes da sociedade e que a sua presença seja destaque não só nos níveis de cognição mas, também, no social, no ético e no político. A construção coletiva de cidadania democrática, crítica e ativa insere-se nessa perspectiva, enfatizando as metodologias apropriadas para o cumprimento de suas metas, além de práticas educativas que conduzam para a promoção, proteção, defesa e a reparação das violações desses direitos. Nessa visão, a educação “é compreendida como um direito em si mesmo e um meio indispensável para o acesso a outros direitos” (Brasil, PNEDH: 18). Dessa maneira, passa a contribuir para a criação de uma cultura universalizante, sem aniquilar as culturas locais, e para o exercício do respeito, da tolerância, da valorização da diversidade e fortalecimento de regimes democráticos, além de ser capaz de difundir os direitos humanos no país. A questão que se coloca é: qual é essa educação, bem como, suas chances de realização? A resposta aqui apresentada é a Educação Popular, com suas diferenciadas metodologias possíveis no mundo do trabalho e da vida das pessoas.
A educação popular Qualquer tipo de educação não conduz ao cumprimento dos anseios de humanos na busca de direitos para todos e todas e em mesma intensidade. A educação que pode contribuir de forma decisiva a esses anseios é a educação popular. O desafio que se abre, contudo, é traduzido pela qualificação posta à educação para os direitos humanos – popular. Essa educação não pode ser uma educação que arraste consigo um significado meramente simbólico. Uma educação que possa encaminhar os exercícios e possibilidades para os direitos humanos precisa resistir a qualquer tentativa de compreensão que a transforme em fórmula abstrata ou mesmo vazia. Educação, em sua etimologia, remete a algo como intrínseco às relações humanas e sociais ou, mais precisamente, como um fenômeno de apropriação da cultura. É tema de um amplo significado, assim como cultura, aqui, entendida como expressão da criação humana,
79 fruto das complexas operações em que o humano vem apresentando, historicamente, no trato com a natureza material, na luta para sobrevivência própria e, também, no campo simbólico. A educação realiza-se de forma espontânea, em qualquer lugar; efetiva-se ainda de forma reflexiva ou sistemática quando são estabelecidas técnicas apropriadas na busca de se obter melhor rendimento educativo (a teoria pedagógica). Entretanto, a operacionalidade (preceitos e leis) e as opções de técnicas ou metodologias desse processo educativo sistematizado são demarcadas por uma política de educação. É nesse sentido que cabe questionar quanto ao direcionamento desejado para os processos educativos: aonde se deseja chegar com essa teoria pedagógica, gerada dos fatos pedagógicos e permeada de uma política de educação, voltada aos direitos humanos? Ora, o significado dessa educação também não pode prestar-se para absorver qualquer experiência como se fosse educativa e, muito menos, do interesse ao avanço dos direitos humanos. Há, inclusive, aquelas que se dizem popular, mas que buscam, através de outras técnicas, promover a inculcação do silêncio nas mentes das classes despossuídas da sociedade, roubando-lhes a sua inerente capacidade de indignação. Por outro lado, políticas de educação, traduzidas em leis ou preceitos, reclamam as tantas possibilidades de organização dos trabalhadores e promoção da cidadania (democrática, crítica e ativa), dando ênfase aos processos de participação em toda a dimensão da vida. É o desvelamento dos espaços sociais, como a casa, a escola e a cidade, tornando-os efervescentes ambientes de solidariedade. As ações em políticas de educação podem conduzir para um novo agir político, indo além da razão instrumental apegada aos fazeres do dia-a-dia, simplesmente. Uma outra razão que promova a comunicação através do diálogo, definida em contraponto aos modelos autoritários e opressores da tradição secular, acompanhada de princípios éticos valorizadores do humano e não das coisas, educando para uma nova estética política e, assim, estabelecendo outros patamares de civilização. Avanços que podem ser externados pela dimensão do popular, à medida que este adquire a compreensão não de algo que, simplesmente, tenha tido origem no povo ou nas maiorias. Várias são as formulações advindas do povo e das maiorias que, contudo, estão profundamente permeadas de contaminação ideológica das classes dominantes. Esse povo ou essas maiorias também estão contaminados das propostas da dominação. Não cabe, simplesmente, a visão de popular como algo que tem origem no institucional como sindicatos, associações ambientalistas, associações de moradores e outros tipos. Muito menos a visão de que popular é uma mera questão de consciência. Para além dessas possibilidades de compreensão, esta pode ser extraída das lutas dos trabalhadores por seus direitos, compreendendo-se popular69 como algo ou atitude que podem trazer consigo um procedimento que incentive a participação das pessoas, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a busca da cidadania, para a luta pelos direitos humanos. Popular como medidas ou políticas para ampliação de canais de participação das pessoas. Popular como todo tipo de atitude que possibilite a tomada de decisão da pessoa, ouvindo e implementando-se decisões e possibilitando novas formas de intervenção nos seus ambientes de vida. Popular, assim, assume um cristalino posicionamento político e filosófico diante do mundo, arrastando para si a dimensão propositivo-ativa de encontro com os direitos das pessoas, com os direitos humanos. Popular como expressão de todo conjunto de atitudes em condições de assumir as lutas do povo e voltadas aos interesses das maiorias, resgatando a visão da mudança necessária para melhoria do mundo dos direitos e da vida das pessoas. Popular adquire uma atual plasticidade conceitual que exige definição rigorosa, expressão dialética de movimento intrínseco no próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição, contudo, atualizado para as exigências dos tempos dos direitos humanos. O termo relaciona as dimensões constitutivas de realidade e atualizadas para o campo das políticas públicas, tendo as dimensões de origem das formulações mas que só não bastam pois cobra-se o direcionamento dessas atitudes postas; o componente político essencial e norteador dessas 69
Compreensão extraída da pesquisa realizada em vários movimentos sociais, no Estado da Paraíba, destacando entre lideranças desses movimentos e dirigentes partidários de partidos que assumem as lutas ditas populares, no ano de 2003, coordenada pelo Prof. José Francisco de Melo Neto, vinculada a Programa de Iniciação Científica da UFPb.
80 ações; as metodologias apontando o direcionamento dessas ações, além dos aspectos éticos e utópicos que se tornam uma exigência. A busca incessante pela utopia da democracia como um valor permanente, devendo ser vivida sem qualquer tipo de entrave. No campo específico da educação, as ações populares precisam mostrar a sua origem e se elas estão vindo pelos esforços, pelo trabalho do povo, pelas maiorias (classes), pelos que vivem e viverão do trabalho. Contudo, a ação popular pode vir de agentes externos ao povo, mas chama-se atenção a todo tipo de populismo que isto pode gerar. “É preciso ter-se conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. É preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias” (Melo Neto, 2004: 158). O popular, assim expresso, qualifica a educação popular como fenômeno de produção (trabalho) e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituído de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, valorizando sua dimensão coletiva, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais, permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientado por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade. As ações exigem o seu interelacionamento e estão pautadas por princípios e experiências que formam um todo, uma unidade. Mesmo expressando uma unidade, educação popular é um sistema aberto que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, a educação e o popular e vice-versa. Detém uma filosofia com uma específica teoria de conhecimento, baseada na realidade. Acompanha, ainda, metodologias específicas de produção do conhecimento que elaboram conteúdos com técnicas específicas de avaliação, assentada em uma sólida base política. Essa busca por conhecimento e por direitos humanos é o caminho do fazer história, indo ao encontro de novos temas, valores, atitudes e comportamentos. Educação popular como um trabalho humano em que se dá em e pela prática do indivíduo, humanizando a natureza e naturalizando a dimensão humana. Como metodologia, contribuirá aos protagonistas dos direitos humanos na perspectiva da sistematização, da reorganização de seus conteúdos bem como de sua reelaboração, encaminhando novas sínteses entre o conhecimento científico e os conhecimentos resultantes das práticas coletivas das classes trabalhadoras. Como conteúdo específico, tem-se a procura pela inserção dos direitos humanos em conteúdos advindos da própria realidade de aprendizagem de cada um, sejam moradores de periferias de cidades, camponeses e outras categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto, incluindo aí a educação indígena, não-seriada. A base política desse tipo de educação para os direitos humanos adquire significado enquanto promotora da superação do silêncio das maiorias (Freire, 1983); preparação intelectual dos trabalhadores; construção moral dessa classe; exercício das maiorias na capacidade de direção política; enquanto resiste à uma ética do toma-lá-dá-cá; (a ética do meu pirão primeiro); e na visão pedagógica de que todos aprendem conjuntamente, pautada pela dimensão do risco existente do processo criativo e da existência humana de se atuar para as mudanças. Educação popular para os direitos humanos na escola A educação popular para os direitos humanos transpõe os muros da escola. Não estando prisioneira de aspectos meramente cognitivos, insere-se e se conduz pela participação da comunidade em suas atividades. Dessa forma, caminha para a superação de uma variada metodologia escolar que só promove o distanciamento entre docente e discente. Assume um posicionamento de que ao tratar das questões da comunidade, vai além dessas questões, desenvolvendo atividades pedagógicas que se pautam pelas discussões, pelo diálogo entre profissionais da escola e a comunidade, promovendo, enfim, atitudes de esclarecimento de questões mais gerais da sociedade. Esse caminho é o que parece possibilitar uma educação,
81 agora popular, em condições de garantir valores como a pluralidade de idéias e a alteridade, garantindo maiores espaços à promoção da igualdade de oportunidades, participação e exercício da autonomia. É nesse ambiente de debates e de tomadas de ações em que se abrem as perspectivas da discussão dos direitos humanos em todos os níveis da educação de sala de aula, seja no nível fundamental, médio e superior. Em nível da educação fundamental e média, esses princípios e valores que permeiam a educação popular estarão presentes em suas variadas séries e atividades outras promovidas pela escola. Esta é um espaço onde pode-se exercitar o entendimento mútuo, o respeito e a independência das pessoas. É na escola onde a diversidade étnica, cultural e religiosa mais se apresenta e onde os preconceitos devem ser combatidos. Nesse ambiente, pode-se aprender e exercitar a cidadania democrática, os direitos humanos, com todos os princípios listados, compondo os indicadores para uma educação popular e definindo a sua própria qualidade. Pode-se, a partir disso, destacar a presença dos direitos humanos desde a organização do plano político pedagógico (PPP), a produção e o manuseio do material didático-pedagógico e a próprio redirecionamento da gestão escolar para o exercício da participação. As ações dessa educação popular e de escola vão desde as definições do plano político até as definições curriculares de conteúdos, procedimentos avaliativos, podendo avançar para o incentivo às propostas pedagógicas criativas da escola até a realização da pesquisa. No ensino profissionalizante, a ênfase aos direitos humanos é conduzida pela perspectiva teórica do trabalho, em meio a uma avalanche de modificações que compõem o mundo da vida, hoje, com a mundialização das relações econômicas, sobretudo. Um trabalho que não crie apenas bens. Um trabalho que produza a si mesmo, bem como, ao trabalhador como uma mercadoria e alienante precisa ser superado. Um trabalho que aliena e arrebata do produtor o produto do seu trabalho. Este, inclusive, passa se lhe opor como um ser alienado, tornando-se uma força independente do próprio produtor. Defende-se o trabalho como atividade racional humana na produção tanto de bens materiais como de bens espirituais ou simbólicos. Uma educação que possibilite a superação daquele tipo de trabalho que conduz à perversão do trabalhador. A superação dessa possibilidade do trabalho se dará pela educação popular como expressão de uma atividade que é geradora de um produto, podendo ser o conhecimento, mas que exige o envolvimento dos que atuam nessa produção, tanto discentes como os demais profissionais da escola e a comunidade. Assim, passam a ser os produtores e possuidores dos produtos de seu trabalho, agora, como produtos culturais. No campo da educação superior, o ensino em todos os campos do conhecimento pode estar permeado pelos direitos humanos. A educação popular também se realiza nesse nível de educação. Vai para além das dimensões do local, podendo acontecer em quaisquer ambiente onde aconteça o fenômeno do ensino e da aprendizagem. Há educação popular nos níveis da educação básica, ensino médio, educação profissional e educação superior – graduação e pósgraduação. No campo da pesquisa, as temáticas direcionadas à comunidade deverão estar presentes, pois a educação popular se pauta por uma teoria de conhecimento que parte da realidade. Aí estão os direitos humanos, transformados em ensino e como campo de pesquisa. Um campo em condições de ser analisado, discutido, assumido e conquistado. A produção do conhecimento em direitos humanos não como uma mera relação entre saberes acadêmicos e saberes populares. Uma produção que insira em seus mecanismos produtivos a efetiva participação da comunidade na atividade universitária. Ainda na educação superior, serão determinantes para os direitos humanos, as atividades de extensão universitária ou da extensão popular. Um conceito que esteja atualizado para as necessidades que estão apresentadas no atual momento histórico, exigindo práticas voltadas às questões concretas da comunidade. Esta intervenção não tem o desejo de substituição das responsabilidades do Estado. Pretende-se a produção de saberes científicos e tecnológicos quanto artísticos e filosóficos, dando-os acessibilidade à comunidade. A extensão popular, entendida no marco teórico do trabalho não alienante, promove ações educativas populares capazes de apresentar a opção pelo trabalho social útil com a intencionalidade de estar voltado à organização dos setores sociais, na perspectiva de sua auto-
82 organização (Melo Neto, 2004a). São ações em educação popular, conduzidas pela extensão popular, pautadas nos princípios dos direitos humanos que podem desenvolver um conjunto de outros valores ou mesmo de novas ações norteadoras de práticas extensionistas, que vislumbrem os seguintes aspectos: a compartilhação dos conhecimentos e das atividades culturais; a promoção da busca incessante de outra racionalidade econômica internacional; a comunicação entre indivíduos, a responsabilidade social, direitos iguais a todos, respeito às diferenças e às escolhas individuais ou grupais, novos elementos que potenciem a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas (Melo Neto, 2006: 43) Pode inserir-se em todas essas dimensões de variadas formas. Pode ocorrer como disciplinas e contando como carga horária regular nos cursos de graduação. Nos cursos de pósgraduação, órgãos governamentais já pontuam programas de pós que realizam trabalhos de extensão na formação dos pós-graduandos, portanto, de forma transversal podendo assumir os direitos humanos em programas escolares, do nível elementar ao nível da pós-graduação. Educação popular para os direitos humanos no cotidiano A educação popular em sua dimensão política passa a se orientar por princípios da autonomia e da emancipação. Em qualquer ambiente onde ocorra o fenômeno da educação, ai esses valores precisam estar presentes – os valores dos direitos humanos. A sua implementação direciona-se pelo exercício da crítica, como a capacidade humana de discernir as dimensões positivas e negativas de cada fenômeno, decidindo-se a partir desse processo mental. Ora, no cotidiano, as reivindicações populares vão se constituir como elementos educativos dessa educação e se concretizando como componentes dos direitos humanos. São as reivindicações gerais pela qualificação para o trabalho, educação básica para todos, a participação política nos grupos sociais e mesmo reivindicações pela educação política nos movimentos sociais e partidos políticos. Uma educação que vislumbra a mobilização e a organização de todo e qualquer processo que promova a participação das pessoas nos mecanismos de decisão. Os conteúdos e as práticas dessas reivindicações tornam-se efetivos como direitos humanos. Os gestores públicos poderão inserir em seus processos de atualização de quadros de setores específicos a temática dos direitos humanos. Direitos humanos não como mero momento de estudos mas como momentos de exercícios de ensino e aprendizagem. De forma igual, pode-se ter a educação pela informática e a permanente procura por qualificação nessa área, nos variados ambientes, contemplando os direitos humanos e superando a formação unicamente técnica ou operadora de máquinas eletrônicas. Assim, também, é possível nos programas e atividades esportivas. Todos como ambientes de educação em que podem ser exercitados por princípios educativos da educação popular para os direitos humanos. Dessa forma, é possível o incentivo ao exercício da utopia de sociedade, o exercício para uma outra sociedade, estando presente no dia-a-dia das pessoas. Em todos esses ambientes, vivenciando-se os direitos humanos, considerando que a sua ausência não pode ser o referencial para a vida humana. A educação popular para os direitos humanos destaca a multiculturalidade, expressão da unidade dessa variedade. Entendida, portanto, como “criação histórica e, como tal, exige de todos nós o estabelecimento democrático coletivo de fins comuns para uma convivência ética” (Padilha, 2005: 171). Uma educação que acontece nas relações do cotidiano e que está presente na educação popular freireana, com validade para todo canto e lugar. Uma escola em que a educação é popular pois significa uma leitura do mundo para a sua transformação. Essa leitura do mundo, todavia, não se faz se não com instrumentos adequados para tal. Esta ferramenta é o diálogo que está presente nessa pedagogia, efetivando-se em atitudes comunicativas. Destaca-se a produção do conhecimento pela pesquisa participante, pela pesquisa-ação, sendo estas perspectivas abertas para as comunidades, para as pessoas e atendimento de suas necessidades. Tudo
83 isto, ajudado por um planejamento guiado pela participação comunitária ou por uma gestão participativa. Esta é a educação popular em suas dimensões éticas e filosóficas para os direitos humanos. Considerações A educação popular para os direitos humanos, assim, permeia a vida de uma sociedade. Como produto do esforço humano e expressão de um trabalho de superação da alienação estará presente, em especial, na formação geral e profissional das pessoas, expressando a luta contra o desemprego e contra a não cidadania, fomentando a descoberta do próprio trabalho gerador de renda para todos. Estará presente, em especial, nesse momento em que as relações no trabalho se complexificam e suas possibilidades tornam-se mais exíguas. Um momento em que a pedagogia dominante está questionada, alimentando a busca de indicadores de qualidade social dessas práticas educativas, enunciando novas crises dessas práticas de ensino e de aprendizagem, dos direitos, da cultura e da própria civilização. Uma civilização que estendeu os seus tentáculos por todo mundo com a sua ciência própria, sua tecnologia e seu estilo de vida. Novas são as crises para a odisséia humana que se debruça na dúvida de suspirar, ora para um retorno à natureza, recorrente às questões do ambiente, ora, para uma idealização de vida inconclusa e carente de sentidos e valores. Tudo isto cobra definições para a existência de uma sociedade de direitos, democrática e necessariamente ética. Na luta por modelos de sociedade pode até apontar para algum tipo de socialismo. Um modelo que sofreu com as tantas quedas de barreiras de tantas berlins mas que indiferentemente do modelo assumido, no dizer de Kaustky (1979), o renegado, precisa valorizar a democracia. E ai, vale, inclusive a preocupação de Lyra (2002) nessa construção da democracia, no caso brasileiro, onde se tem uma convergência de lutas socialistas e democráticas, materializadas nos exercícios de participação, contudo, afrontada por uma forte presença de desigualdades sociais. Ora, no caminho da superação dessas desigualdades e conquistas de direitos humanos, encontra-se a educação cultivada com bases filosóficas e políticas da educação popular. REFERÊNCIAS BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos: 2006/Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 13ª. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. KAUSTKY, Karl. A ditadura do proletariado. Lênin: a revolução proletária e o renegado Kaustky. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. LYRA, Rubens Pinto. Abordagens históricas e atuais da relação entre democracia política, direitos sociais e socialismo. In: Direitos humanos: os desafios do século XXI – uma abordagem interdisciplinar. Rubens Pinto Lyra (org.). Brasília: Brasília Jurídica, 2002. MELO NETO, José Francisco de. Educação popular - uma ontologia. In: Educação Popular – outros caminhos. Orgs. José Francisco de MELO NETO e Afonso Celso Caldeira SCOCUGLIA. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. ______. Extensão universitária, autogestão e educação popular. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. ______.Extensão universitária é trabalho. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004a. ______. Extensão popular. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2006. PADILHA, Paulo Roberto. Educação em direitos humanos sob a ótica dos ensinamentos de Paulo Freire. In: Direitos humanos e educação: outras palavras, outras práticas. (vários autores). São Paulo: Cortez, 2005.
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TEXTO 9 EDUCAÇÃO POPULAR E „EXPERIÊNCIA‟70
Resumo: Este trabalho promove o debate sobre a compreensão de „experiência‟ no campo da educação popular, a partir da questão: o que se entende por „experiência‟ em educação popular? Para respondê-la, utilizou-se do método histórico-comparativo por meio de uma análise filosófico-dialética em três movimentos teóricos: a) uma síntese, a apresentação da questão; b) uma análise histórica com pensadores da tradição filosófica moderna que trataram de „experiência‟; de outros do campo da educação, em especial, da educação popular; c) e uma nova síntese, onde se expôs a perspectiva de „experiência‟ para além das visões empiristas e idealistas dominantes, levando-as em conta, contudo. Como resultado, „experiência‟ em educação popular é expressão metódica dos sentidos do sujeito, com dimensões de interior (visão subjetiva) e exterior (visão empirista), assumindo forma coletiva, a partir dos demais sujeitos (sujeito coletivo), envoltos nesse processo educativo e intersubjetivo, pelo diálogo (para além da forma individualizada como é vista na tradição filosófica), e se concretizando pela ação prática desse fazer educação. Palavras-chave: „Experiência‟. Educação. Educação popular.
A educação popular é um movimento prático e teórico em educação, presente em processos de organização das classes trabalhadoras, que apresenta profunda crítica à educação dominante e que, segundo Paulo Freire (1958), tem promovido o „silêncio‟ dessas maiorias, defendendo outro fazer educativo - educação popular -, definindo-se por uma educação com o homem, e não sobre o homem, ou, simplesmente, para ele. Uma educação promotora de mudanças e criadora de outras e novas disposições mentais no humano, enquanto coloca-o na sua contextura sócio-cultural, em condição compreensiva de seu mundo mesmo. Uma educação que pode ser apresentada, hoje71, como um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais humanos, pelo trabalho, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, contendo uma teoria de conhecimento referenciada na realidade e pautada pela „experiência‟ dos que estão nesse processo; com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas individual e coletivamente; com conteúdos próprios e técnicas de avaliação contínua; permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientado por anseios humanos de liberdade, justiça e igualdade. A „experiência‟ tem status elevado nos estudos e nas análises sobre o exercício da educação popular, mormente na discussão filosófica sobre os tipos de conhecimento daí gerados e, em particular, na validação desses conhecimentos. Às vezes, aparece como sinônima de prática, dominando o imaginário dos profissionais que atuam nessa educação, comprometida com a organização dos trabalhadores, tornando-se o suporte da verdade para o conhecimento gerado de seu fazer pedagógico. E é essa possibilidade educativa que sugere a seguinte questão: o que se entende por „experiência‟ em educação popular? O esforço de resposta à questão conduz a uma reflexão de como o termo „experiência‟ tem sido apresentado pelos vários pensadores no campo da filosofia, em particular, com pensadores modernos; com pensadores que atuam na educação popular e, finalmente, tenta-se 70 71
Texto na Revista- Educação e Contexto. ISSN 0102-8758. Unijui, RS, 2011. Aproximação conceitual em desenvolvimento na Disciplina Tópicos em Educação Popular, no Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de Pesquisa em Educação Popular.
85 uma nova síntese conceitual de „experiência‟ que se preste à continuidade da reflexão teórica e à animação das práticas desse peculiar modo de se fazer educação. „Experiência‟ na tradição filosófica A palavra „experiência‟ tem se apresentado com um sentido geral e outro técnico. No sentido geral, é um conhecimento espontâneo que vai se acumulando no indivíduo no decorrer de sua vida. Daí se falar que alguém tem „experiência‟. Ou, em relação à teoria do conhecimento, que tem no empirismo radical a sua aceitação mais explícita, ao assumir que todo o conhecimento tem origem na mesma. Para a corrente do racionalismo, contudo, a „experiência‟ nada pode ensinar, pois é ela mesma que precisa ser explicada, estando sempre acobertada e cheia de teoria. Já em seu sentido técnico, adquire o significado de ação que observa e experimenta, podendo controlar determinada afirmação ou a elaboração de uma hipótese sobre o algo a ser conhecido. No momento em que possibilita o controle de ações e seus resultados, conduzindo ao conhecimento de um fenômeno qualquer na natureza, apresenta-se com o sentido de experimento, inclusive laboratorial. Mas, pode expressar o sentido de forma de ser, um modo de fazer ou mesmo uma maneira de viver, sendo um procedimento para o conhecimento de algo. Isto faz com que se torne possível o conhecimento desse algo, antes de juízos elaborados a respeito do mesmo que está sendo apreendido. Pode ser entendida, também, como a apropriação do sensível da realidade que se coloca externa ao sujeito. É, ainda, expressão de um ensinamento que se adquiriu com a prática, com a vida profissional, podendo até se dizer de uma „experiência‟ de vida. Ou, num sentido de afirmação de juízos sobre alguma coisa, quando se exercita a sua verificação sensível, confirmando-se ou não o juízo sobre esse algo. E mais: pode ser o entendimento de „algo do interior‟ de um alguém, portanto subjetivo, quando se tem uma dor, um sofrimento, uma „experiência‟ mística ou religiosa. Como se vê, com essa tradição, „experiência‟ ora se apresenta como confirmação empírica, em geral por meio de dados sensíveis, ora como fato de se viver algo anterior a toda reflexão, anunciando um caráter „externo‟ ou „interno‟ de si mesma. Um movimento teórico que pode ter origem ainda em Platão, em sua diferenciação de mundos, o das ideias e o do sensível, sempre atencioso a uma „prática‟, mesmo que intelectual, abrindo profunda distinção entre „experiência‟ e razão, dando ênfase sempre ao poder de conhecimento pelas ideias. Todavia, em Aristóteles (1973), representa algo mais estrutural no conhecimento, surgindo da multiplicidade das lembranças e da sua permanência pelas impressões, sendo estas o tecido da „experiência‟, contribuindo para as formulações gerais, universais. Para ele, „experiência‟ é apoderação, apropriação do singular, possibilitando a ciência, passando a apontar os elementos de cada ciência particular e anotando os seus fenômenos, seus dados e demonstrações. Assim, é tratada como mera repetição de certas situações memoráveis, e longe de haver uma compreensão de que se preste para verificação de possíveis verdades humanas. Ciência, em Aristóteles, só é considerada do universal – uma apreensão sensível da realidade e a averiguação de juízos daí gerados também pela dimensão do sensível. Nessa caminhada conceitual pela história da filosofia, aparece uma compreensão de „experiência‟ como cânone de validação do conhecimento. Tal formulação é fortemente assegurada pelos empiristas que, contudo, a afasta da visão „sensacionista‟ de mundo. Esta privilegia o conhecimento sensível sem torná-lo guia e nem controlador de um conhecimento geral. Do seu significado, pela teoria da indução, depreendem-se duas visões da „experiência‟: uma primeira teoria como intuição e outra como método. Na formulação da teoria da intuição, a atitude de visão é expressão de seu modelo e, por esta perspectiva, o que se tem é um objeto “presente em pessoa e na sua individualidade”. Esse caminho possibilitou a que Hume (1973) pudesse operar a intuição, expressando-a como aquela do momento, nada significando fora de si. Isto abre a crítica de que, se assim o for, fica impossibilitado o caminho para a ciência. Por outro lado, a perspectiva da „experiência‟ como método vai tê-la em condição de submeter à prova o conhecimento e, além disso, ser capaz de fazer as devidas correções quando houver
86 erros. Assume a condição de ser repetida, deixando de ser uma atividade pessoal, subjetiva ou, meramente, mental. Modernamente, para Bacon (1973), que não se rendera ao sensacionismo, a „experiência‟ se presta como norteadora do conhecimento humano. Mas não se trata de alguma coisa espontânea qualquer. Para realizar tal papel, necessita ser guiada e interpretada pelo intelecto, acendendo a vela para que o caminho se torne visível. Essas formulações vão permanecer no pensamento de empiristas como Locke e Hume (1973). Para este, a razão não apresenta qualquer capacidade para inferir sobre existência real e de coisas de fato. Em Locke (1997), é da „experiência‟ que se originam os materiais da razão e do conhecimento humano. O conhecimento se funda nela e mais, o conhecimento é originado dela. Há, portanto, uma dupla visão: uma exterior (a sensação) e outra interior (reflexão). Assim, estabeleceu-se a visão de „experiência‟ como totalidade do mundo humano quando considera essas duas dimensões e reforça a sua teoria metódica, ao instituí-la como conjunto de sistema de averiguação do conhecimento desse mundo. Enfim, para os empiristas, a „experiência‟ assegura a condição e o limite ao conhecimento. Para „racionalistas‟, como Spinoza (1973), se não desconfiam totalmente da „experiência‟, consideram-na como um acesso confuso à realidade ou mesmo „mutilado‟. Por ela, tem-se apenas acesso a proposições contingentes, pois o conhecimento mesmo (verdades eternas) só se atinge pela razão. Já na teoria do conhecimento, das mais marcantes, a de Kant (1973), a „experiência‟ é entendida como o ponto de partida para o conhecimento. Isto não assegura, contudo, a sua validade, nem se quer, que todo ele origina-se dela. Para ele, o conhecimento só se torna realizável no campo da „experiência possível‟. Cabe à razão o exame dessa possibilidade, vista sempre como aparência. Será desse exame apriorístico que haverá condição de se formularem os juízos universais e necessários sobre a realidade (aparência). Contudo, para os idealistas, às vezes dizendo-se ancorar em Kant, com destaque para Fichte e Hegel (1973), viam-na, de forma única, a coisa como o que está determinado e independente da liberdade do sujeito, e a inteligência como a quem cabe a tarefa de conhecer. Para eles, o saber não é „experiência‟, mas um saber de seus fundamentos ou um saber do saber. Isto só se compreende em Hegel, pela “experiência da consciência”. É „um movimento dialético‟ que vai guiando a consciência para si mesma, deixando clara a si mesma como algo independente, sendo a maneira de como o Ser se apresenta à consciência e daí, constituído por ela. O ser definido na consciência. Não é, portanto, uma „experiência‟ interior (subjetiva) e outra exterior (objetiva), mas uma „experiência‟ absoluta. Estes idealistas punham-na limites, separando-a em dupla dimensão: aquilo voltado diretamente à coisa, determinado sem a intervenção da liberdade do pensar e aquilo que dirige o pensamento, a inteligência. Como se vê, variados têm sido os seus entendimentos. No século XIX, passou a ser compreendida como “experiência do imediato”; como apreensão direta dos dados naturais realizada pelos sentidos; como a „experiência‟ geral de vida, talvez, constituindo uma „filosofia da realidade‟, sem a presença da metafísica e distanciando-se da visão idealista alemã. No século XX, adquire várias conformações tipológicas traduzidas por experiência sensível, natural, científica, religiosa, mística, artística, fenomenológica, metafísica e outras, à procura de algo que fosse anterior a elas e, talvez, uma „experiência filosófica‟ que expressasse diferenciação em relação as demais. Com Bergson (1973), a noção de intuição filosófica traz essa mesma ideia. Assim como ele, Husserl admite uma primária „experiência‟ do mundo, uma “experiência fenomenológica”, ampliando-se, dessa forma, os seus horizontes de compreensão. Nesta mesma esteira de definições e finalidades, empiristas como Carnap e Popper (1975), do Ciclo de Viena, envolveram-se no debate da verificabilidade da „experiência‟ e suas exigências de experimentação. Posteriormente, em seus escritos, chegaram a conclusões da impossibilidade, tão necessária para empiristas, que é a verificação de um enunciado qualquer. Passaram a admitir que um enunciado poderia ser aceito sem a necessária condição de se por à prova. Já Williams James (1973) apresentou a sua visão, tentando sua ampliação e assegurando sempre uma especial atenção a mesma, pois esta mantém o filósofo em atenção constante à realidade. Ora, para James, o homem culto estava sempre a seguir uma metafísica, algo
87 provocador para Bachelard (1996) que, ao invés de uma metafísica, defenderá a existência de duas outras dominantes: racionalismo e realismo. Irá combater a ambos e apresentar a primeira „experiência‟ como um „obstáculo‟ ao conhecimento, pois ela se configura permeada de imagens. Para ele, esta „experiência‟ primeira é “pitoresca, concreta, natural, fácil”. A sua descrição encanta a pessoa. Mas, parece que a sua compreensão se confunde com a mesma ideia de observação. Vai acusar a observação também como um obstáculo e mais, ridiculariza com as primeiras generalizações que são causadas daí. Para ele, há um duplo obstáculo a ser enfrentado pelo novo espírito científico, tanto nesse momento da primeira observação como de suas generalizações recorrentes. Esse espírito deverá ir de encontro ao que se há no interior das pessoas (racionalismo) e, também, no exterior (empirismo). Para ele, só é possível o conhecimento da natureza pela resistência a ela mesma. Portanto, a „experiência primeira‟ de Bachelard precisa estar submetida à crítica. Por sua vez, é Williams James que vai influenciar Dewey (1974), com a noção de „experiência aberta‟, tornando-a o centro de suas discussões, fazendo distinguir uma „velha filosofia‟ de uma „nova filosofia‟. Em Dewey, a „experiência‟ está presente na vida, de forma permanente, considerando a interação da criatura viva com o seu meio e as condições que a rodeiam. Está implícita no próprio processo da vida. Aspectos do eu e do mundo estão sempre em conexões e em conflitos. Essa maneira de interatividade irá qualificá-la com emoções e ideias, surgindo a “intenção consciente”. Todavia, a mais radical crítica às formulações anteriores vem de Feyerabend (1997) em relação aos métodos de criação de hipóteses ou teorias. Contra até mesmo a lógica formal, entendeu que as buscas do conhecimento por meio de teorias e generalizações possuem todas a mesma importância. Declaradamente, afirma que “admite-se tudo”, e compreende a ciência como um “empreendimento essencialmente anárquico”. Mas, no século XX, uma das perspectivas teóricas que mais influenciará pensadores da educação no País é a pragmatista de Dewey, em que o fenômeno educativo acontece como a reconstrução da „experiência‟, sempre à luz da „experiência‟ atual, operando-se em situação de vida real. É isto que vai inspirar o pensamento de Anísio Teixeira (1978), ao pensar uma filosofia da educação, descrevendo a vivência educativa de seu tempo como educação tradicional e pretendendo uma escola „nova‟, disparando uma firme crítica àquela e desenvolvendo elementos de mudanças que constituem essa escola „nova‟ ou uma escola „progressiva‟. Uma visão filosófica que influenciará não só práticas educativas escolares, como outros conceitos filosóficos, a exemplo de trabalho (Palhano, 2006). Para pragmatistas, a educação pode ser vista como uma série de fenômenos que foram sendo criados a partir da inteligência humana, com destaques para as relações desses fenômenos e possibilitando as suas reproduções. As „experiências‟ puderam ser conhecidas, pois, até então, eram apenas tidas e sentidas. Agora, passa a ter um estatuto não de qualquer coisa externa adicionada à natureza, mas a própria natureza. Adquire dimensão de fase de organização mental. Pode ser refeita ou reconstruída com a finalidade de obtenção de seus próprios fins de natureza. E mais, resultados tanto de pensamentos como da „experiência‟ irão se concretizar como instrumentos, modelos e conhecimentos. Anísio Teixeira a conduz para a educação como uma necessidade do ato educativo, transformando-a no centro das atividades pedagógicas. Assim, é possível verificar-se, a seguir, a „experiência‟ no debate na educação popular, através de seus pensadores e atores. „Experiência‟ na educação popular72 Um dos pensadores mais influentes na educação popular é Paulo Freire. De suas práticas e análises, a partir da década de 1960, construiu-se a mais radical crítica à educação dominante, caracterizando-a como uma educação dos opressores. Estabeleceu os termos oprimido e opressor, a partir de duas de suas principais obras, Pedagogia do Oprimido e 72
Tomaram-se como referência as primeiras práticas educativas de Paulo Freire, em princípios dos anos de 1960.
88 Educação Como Prática da Liberdade. Nestes livros, Freire (1996 e 1987) apresentou a sua compreensão de „experiência‟ a partir, inicialmente, da visão de inexperiência, numa perspectiva política. Em suas exposições de uma educação que promova a prática para a liberdade, apresentou como início a existência de uma „inexperiência democrática‟ na sociedade brasileira. Conduziu o seu exercício educativo para a superação do „modus vivendi‟ autoritário dominante, implementado pela educação burguesa. Segundo ele, o País tem uma longa „experiência‟ negativa – uma antidemocracia. Aí, „experiência‟ aparece com significado de tradição. Mas, adquire sentido de elemento responsável e „gerador de cultura‟, pois arrasta consigo ritos, vocábulos e a própria „experiência‟ particular do grupo. Manifesta-se, então, um novo aspecto conceitual e para além da visão prisioneira unicamente do indivíduo. Para o seu modelo de educação – educação popular -, exigirá a construção de uma „experiência‟ de grupo, além de instalar a da instituição com a „experiência de escola‟. Freire também firma o significado de „prática‟, com o sentido de „experiência‟, por meio da prática do „círculo de cultura‟ ou as „práticas educativas‟. Nele, podem ser encontradas referências de „experiência‟ a indivíduo, mas sempre com um forte reforço a do grupo. Assim é que poderão os „oprimidos‟, em sua caminhada, chegarem à superação da opressão, eliminando o „cordão umbilical‟ que tem caráter mágico e mítico em seus mundos. Nesta perspectiva, adotou mais um novo significado ao assumir a dimensão eminentemente pautada pela história e, portanto, uma „experiência histórica‟. Diversas são, todavia, as visões desse pensador e ator da educação popular. Estas têm norteado pensamentos e ações daqueles que se orientam, em suas práticas educativas, pelos valores da educação popular. Brutscher (2005), por exemplo, ao analisar a epistemologia de Freire, vislumbra uma grandeza em seu pensamento relacional que não se apresenta como submissão ou sobreposição, em seu discurso pedagógico. Dessa forma, tudo que está no mundo se entende sempre em processo, portanto, provisório e limitado, requerendo constantemente o diálogo e cobrando a presença, nas suas perspectivas de „experiência‟. Para Beisiegel (1992), Freire acreditava que estaria, com suas „experiências‟, entendidas como práticas educativas, garantindo uma orientação conscientizadora pela educação ao seu trabalho na educação. As suas práticas na educação ofereciam aos trabalhadores a possibilidade de se autogovernar. Também Gadotti (2004), que assume a luta por uma educação como prática da liberdade, vê a educação em processo e entende que em alguns momentos na escola, até haja participação e divisão das palavras, divisão das responsabilidades e do poder. Isto aparece como prática ou „experiência‟, nos moldes freireanos, expressão de uma „autogestão escolar‟. Todavia, as condições de classe, as „experiências‟, isto é, as práticas desses trabalhadores e trabalhadoras, as suas condições desiguais, para Brandão (1999), a educação dominante, e mesmo os recursos religiosos, não conseguem esconder. Com esta compreensão, próximo ao sinônimo de prática, Wanderley (1994) apresenta a „experiência‟ da educação popular pautada por três orientações, sendo a primeira recuperadora, onde se busca a recuperação dos “marginalizados” e a sua integração à sociedade; uma segunda, nacional-populista, agregando práticas políticas populistas, e uma terceira, com orientação de libertação, em que a „experiência‟ educativa assume um papel ideológico e mobilizador, enquanto os seus agentes estimulam a potencialidade do povo para a sua autovalorização. Assim, assume declaradamente um papel político e ideológico. Contudo, se os processos de educação popular assimilam uma base política transformadora, baseada em valores éticos como a solidariedade, o respeito ao outro, buscando sempre a justiça, Souza (2004) vai propor uma educação popular acompanhada de uma „pedagogia da revolução‟. Para isto, se faz necessária a construção e reorganização de uma cultura também popular, pautada em metodologias, conteúdos e processos avaliativos apropriados às transformações da sociedade. Uma proposta pedagógico-cultural que visa o reforço dos meios de ação das classes trabalhadoras e que se propõe à ampliação de seu próprio saber de classe, enquanto seu conhecimento, a serviço do próprio poder de agir. Uma perspectiva de educação popular que conta com a „experiência‟ da classe mesma, contemplando uma visão histórica como algo acumulativo e que alavanca a sua organização cultural. Para ele, é a especificidade dessa cultura popular que, pela „experiência‟, as novas relações sociais simbolicamente serão elaboradas, reproduzidas e reelaboradas.
89 A educação popular como um fenômeno cultural referenciado no trabalho e na dinamização das ações das classes trabalhadoras assume uma filosofia voltada às mudanças, buscando superar a mera contemplação e interpretação do mundo e buscando, como sugere Marx (1974), a sua transformação. Exigirá, dessa forma, uma filosofia da ação (Melo Neto, 2004, 2004a), em cujo arcabouço teórico contém uma teoria do conhecimento que se torna fundamental à educação popular. Um conhecimento promovido pela reflexão sobre as suas práticas e, necessariamente, pelo seu intercâmbio, orientando as ações. Em Jara (1994), a „experiência‟ educativa é a prática política educativa também. Um conhecimento sempre referenciado na „experiência‟ de grupo e disponível ao uso por parte de outros grupos que se orientam por essas mesmas possibilidades educativas. Pensadores como Gajardo, Grossi e Pérez (1994) também assumem o entendimento de „experiência‟ muito próximo do sentido de prática. Mas, em todos, se faz necessária a reflexão sobre essas práticas, constituindo uma perspectiva de aprendizagem e de ensino das classes trabalhadoras que podem ser acumuladas e que precisam ser repassadas a outros grupos. Com Gajardo, há necessidade da permanente crítica sobre os processos educativos populares, em especial ao papel da conscientização e suas condições de possibilidades. Em Grossi, a pesquisa precisa estar a serviço da organização das pessoas. Por sua vez, Pérez enfatizará um desenvolvimento da sociedade, decidindo-se por uma educação comunitária, onde serão ressignificados os conteúdos do ensino e os processos de aprendizagem. Outros pensadores como Mejía (1992), Picon, Guevara, Casillas e o Coletivo Colombiano (2005) desenvolvem as suas práticas educativas populares voltadas à necessidade da manutenção do enfoque metodológico educativo na perspectiva emancipatória. Conforme Picon (2005), sem tal pressuposto ter-se-á uma profunda descaracterização da própria educação popular, pois aquilo que a põe em evidência é mesmo a sua concepção e intenção transformadoras. Essas práticas ajudam a definição de um patamar ético social, determinante para a atual educação popular. A „experiência‟ em educação popular para o Coletivo Colombiano (2005) reafirma a posição de resistência civil e a refundação do político com destaques para a multiculturalidade desses grupos, constituindo os cenários da educação popular. Essa educação imprescinde de uma pedagogia que arraste consigo a dimensão dialogal, que para o Coletivo concretiza-se na troca dos saberes da „experiência‟ do povo, um diálogo cultural. Este diálogo passa a não somente reconhecer aqueles saberes como ainda torná-los constitutivos dessa ação pedagógica, saberes de minorias, saberes hegemônicos, saberes populares, estando tudo submetido à crítica, possibilitando a troca e a contribuição desses diversos tipos de conhecimento. Em Cassillas, as práticas em educação popular contribuem à construção do sujeito social, possibilitando, por meio de sua autonomia, a formulação de projetos alternativos de sociedade. Para ele, essas práticas („experiência‟) educadoras necessitam estar posicionadas ao lado dos oprimidos, dos excluídos e vinculada às suas expressões de organização e da „transformação radical da sociedade‟. Destaca que as „experiências‟ de governos voltadas ao desenvolvimento local e à autogovernabilidade norteiam as práticas educativas populares, diante do desejo de uniformização social da globalização. Guevara, por sua vez, reivindica uma educação popular cujas práticas insistam no poder dos setores populares e no paradigma da emancipação humana. Um trabalho de base talhado pelo exercício do dever com prazer, acompanhado da criatividade estética e ética. Essas distintas visões de pensadores da tradição filosófica moderna, de pensadores e atores da educação popular e os seus atuais direcionamentos educativos, abrem a possibilidade de uma visão síntese de „experiência‟ que parece conter indicadores de especificidade, à medida que seja elemento de uma educação que se preste às lutas do oprimido para sua liberdade e mantenha os horizontes de atendimento às suas necessidades. Uma síntese Empiristas e Kant elegem a „experiência‟ como ponto de partida para o conhecimento, mesmo que para este, ele seja apenas da aparência. Todavia, a existência no tempo só se torna consciente pela „experiência'. Para os empiristas, o conhecimento está na própria „experiência‟ e
90 é dado pelos elementos materiais. Com Hegel, pode-se ver na „experiência‟ dois componentes que estão intrinsecamente ligados: a coisa mesma e a inteligência. Na educação popular, pode-se vislumbrar a „experiência‟ como uma síntese metódica, manifestando-se dialeticamente em três momentos. O primeiro reúne as dimensões objetivadas de empiristas, as dimensões externas captadas pelos sentidos, e a inteligência (dimensões internas, subjetivas ou de idéias) como um algo só, no sujeito, e sem condição de divisibilidade. Afinal, o material só o é na percepção do sujeito. Os aspectos psicológicos só o são no sujeito. Portanto, dimensões externas e dimensões psicológicas expressas como síntese em um ser mesmo. Contudo, esta visão se distanciará profundamente da perspectiva empirista de que o conhecimento já está no dado. Assume-se a posição crítica de Bachelard quando alerta sobre as dificuldades de se entender algo em suas inteiras dimensões, fugindo das primeiras impressões geradas por esses objetos materiais. Não se alinha à compreensão de „experiência‟ como um experimento de laboratório, contudo. Não há possibilidade de ser repicável e, afastando-se da visão simples e objetiva de que a „experiência‟ é mera coisa física. Por sua vez, não compactua com a formulação idealista de que só há “experiência da consciência”. Se por um lado, empiristas contribuem à educação popular para que o conhecimento se estabeleça pela realidade concreta mesma, não se pode descartar a intervenção intelectiva do humano nesse objeto concreto. Já a perspectiva de uma „experiência‟ apenas de bases na consciência não contribui à necessidade da ação para mudanças, um reclamo e um horizonte da educação popular. “Experiência‟ que começa com ambos os movimentos – objetivo e subjetivo – expressando um todo, juntas as dimensões interna e externa num sujeito. Caracteristicamente, uma síntese que tem início no indivíduo e que não finda em si mesmo. O horizonte da mudança na educação popular faz a sua „experiência‟ transcender elementos empiristas e idealistas, vislumbrando o algo mesmo, o concreto, como ente que precisa ser submetido à inteligência. Um algo material que só terá sentido à medida que se vão descortinando as suas determinações, e estas não se dão diante das condições de natureza, isto é, não estão dadas pela própria natureza. Somam-se elementos da intuição e elementos da subjetividade de cada participante do processo educativo (Silva, 2008). Um primeiro momento cheio de potencialidades de cada indivíduo, essencialmente singular. O segundo momento inicia-se com a organização do grupo em „círculos de cultura‟ freireanos, um momento de análise daquilo tudo sentido, mostrado, até o momento, o concreto percebido pelos indivíduos presentes. Um processo de análises das determinações daqueles aspectos primeiros que será buscado em nível das abstrações de cada sujeito, quando do conhecimento de seus aspectos históricos. As análises passam para a dimensão do coletivo, pois há relações específicas naqueles concretos postos que carecem de explicação e respondem a certas causalidades. Sem esse conhecimento, o mundo seria fenômenos completos em si mesmos, sem a necessidade da intelecção humana. Na educação popular, a visão de „experiência‟ inicia a sua constituição, naquele primeiro momento, e avança pelo esforço inicial muito para além de descrições das coisas mesmas, indo ao encontro de suas explicações (Melo Neto, 2002). Um momento que começa na individualidade do participante do grupo que se educa em bases à educação popular e que adquire dimensões de coletividade no próprio grupo. Abandona-se a dimensão da individualidade, passando-se a assumir a condição da coletividade. Com a força das abstrações dos participantes, o concreto vem à tona, mas carecendo de explicações, mantendo-se a anterioridade do mesmo no debate e afastando-se da perspectiva idealista e subjetiva da „experiência‟. Conhecer esse concreto é conhecer as suas determinações, assim como em Cardoso (1990), que só se atinge o concreto quando se compreende o real pelas determinações que o fazem ser como é. Um conhecimento que irá se apresentar como resultado de um elaborado processo de pensamento coletivo. Um momento em que as observações e sentimentos mais simples se externam para serem submetidos a uma maior elaboração abstrata do grupo. Um exercício de pensamento que está permeado de expectativas políticas e pedagógicas, mostrando que o caminho da „experiência‟ em educação popular não será mera contemplação das coisas da vida, das coisas do mundo. Um ambiente por inteiro dominado por pensamentos e intuições, expressões variadas de sentidos de sujeitos individuais que se tornam
91 sujeitos coletivos. É nesse momento que se constroem os elementos teóricos para que se possa conhecer aquele concreto inicial e as suas relações com o real. Um conjunto de definições que são coletivas. Não cabe mais a ideia de uma „experiência‟ individual, pois, agora, tudo acontece em grupo, em „círculos de cultura‟ e, como revela Calado (2000), onde se dão as partilhas de saberes e de conhecimentos, “atiçando as centelhas da utopia”. Desse concreto é que se desenvolvem análises na diversidade das formas de trabalho do cotidiano, numa sociedade que a cada dia se torna mais complexa. Entretanto, é daí mesmo que, definido o trabalho como o elemento para a aquisição dos entes culturais da sociedade, será esta a categoria simples que poderá ser útil às análises, pois se ela apresenta condições de maior compreensão deste ambiente mais complexo, pode explicar outros de menor complexidade. Com isto, a „experiência‟ passa a constituir-se das dimensões do saber daqueles participantes, que para Sales (2001) é um modo de atuar coerente, tranquilo e profundo. Um aprendizado essencialmente coletivo, como mostra Lins e Oliveira (2008), na educação popular em movimentos sociais, com especial destaque às possibilidades multidimensionais dessa construção de saberes. É momento de desenvolvimento teórico que não depende apenas das capacidades individuais ou mesmo das disponibilidades teóricas do grupo. Desenvolvimento teórico e aprendizado que estão permeados pelo exercício da crítica e da autocrítica, e que derivam das condições reais em que estão submetidos os participantes desse processo educativo. Um momento em que aprendem com a história de cada um, em que afetos e ideias se cruzam, como lembram Lima e Rosas (2001). Exercícios de aprendizagem que ocorrem em qualquer campo de conhecimento, tanto em „círculos de cultura‟ em ciências humanas, na tecnologia, nas ciências da saúde e da natureza e outros. Rossi (2003) mostra, por exemplo, como pôde aplicar e desenvolver tal aprendizagem no campo da música, bem como suas possibilidades de mudanças. Ou mesmo, no „resgate dos saberes e dos fazeres do povo‟, realizado por Borba (2006) com a sua vasta „experiência‟ na área rural. Podem ser vistos em outros círculos que se voltam para a produção como meio de sobrevivência de setores mais empobrecidos da sociedade, no campo da economia solidária, em que se destacam processos denominados de „incubação‟73 onde são determinados, de forma coletiva, instrumentos teóricos e práticos para a produção, evidenciados por Costa, Oliveira e Melo Neto (2006). Um momento de análise teórica, para melhor compreensão do real presente, que reclama o estabelecimento do plano dessa análise e a definição da ordem das categorias assumidas, passando a montá-la e definindo o seu começo. Um olhar sobre a realidade que existe independente de se pensar ou não sobre ela. E a sua independência a localiza fora do espírito, caracterizado por atividades apenas teóricas. Todas as categorias teóricas criadas, todavia, tem como pressuposto a anterioridade da realidade sobre a consciência. E segue pela definição da melhor organização dessas categorias para que se possa chegar ao conhecimento mais abrangente e mais profundo dessa realidade, assumindo, finalmente, aquela categoria que expressar as relações mais determinantes. Estes são momentos coletivos, onde a sua efetivação só é possível por meio da ética do diálogo. Na promoção desse diálogo, cada participante ou falante precisa ter garantias de sua comunicação, além de possibilidades de reforço a valores outros éticos, como a solidariedade e igualdade. Como lembra Habermas (1997), urge a definição das pretensões do falante/participante, nestes momentos de diálogos, ou momentos de atos de falas, ou sejam: a necessidade de que o outro esteja entendendo o discurso de cada um – a inteligibilidade; as afirmações, explicações ... precisam expressar a verdade; além da veracidade e da retidão de todos que estejam em ato/círculo educativo popular. Momento de efetiva comunicação em que todos possam abrir os seus discursos e manter as suas intervenções e réplicas, perguntas e respostas; onde todos estejam em condição de problematizar o concreto, a situação em análise; 73
Processo educativo e formativo de um grupo empreendedor na economia solidária, em que se aprende a viver e trabalhar juntos e, sobretudo, discutir o próprio grupo e a aplicação de seus produtos gerados pelo trabalho coletivo. Em grupo, estudam-se o mercado, o ensino e a aprendizagem, os serviços ou produtos a serem realizados, os valores éticos da economia solidária, o gerenciamento e sua avaliação. Tudo isto de forma autogestionária.
92 em que expressem suas atitudes, sentimentos e desejos; e com todos podendo definir regras, de permitir e de proibir, enfim, de “dar razão e exigí-la”. A partir daí, abre-se a condição da ação propriamente coletiva, passando a compor o terceiro momento da „experiência‟ em educação popular. O terceiro momento, quando a „experiência‟ em educação popular se completa, inicia-se a partir da definição das ações, do fazer, das operações humanas que serão realizadas após todo o processo de reflexão, identificado no segundo momento e iniciado no indivíduo como produto de síntese, desde o primeiro momento. Ações que são livres e responsáveis, próprias dos humanos, dos grupos em processo de educação popular, qualificadas após a análise de suas determinações. Podem estar direcionadas à produção de novos conhecimentos e implicações epistemológicas, como alude Fleury (2002), ou à produção de bens de consumo, para a superação de situação de pobreza. Para destruir ou continuar novas ações em desenvolvimento, para criar ou iniciar novos processos de organização política desses setores dialogantes. Ações voltadas à apropriação, na sua maior radicalidade, dos bens culturais produzidos pela humanidade. Cultura, que na visão de Pinto (1979) é um bem de produção, um meio de operar sobre a natureza, produzida pelos humanos, mas, também, transforma-se em bem de consumo quando se torna necessária a sua veiculação às gerações mais jovens. Nesse processo, o humano pode alienar-se desses bens culturais, como a própria linguagem expressa nos caracteres de uma língua, que deixando de ser concreta, transforma-se em um mero ente abstrato. A partir desses grupos, as suas ações se dispõem à superação da alienação de que a natureza deva ser utilizada apenas em benefícios de poucos, de benefícios para si mesmo ou somente ao seu particular grupo. Assim, suas ações reaparecem como instrumentos políticos para todo o seu grupo, para a sua classe. Com essa pedagogia freireana, humanista e libertadora, essas práticas ou „experiências‟ instauram o “aprendizado da pronúncia do mundo”, sendo este verdadeiro. Essas são ações pedagógicas que ocorrem com os oprimidos, em que estes desvelam o mundo da opressão, comprometendo-se com a sua transformação, inicialmente; e, em segunda dimensão, ao ser transformada essa situação, tal pedagogia deixa de ser apenas do oprimido, passando a ser dos humanos, em permanente “processo de libertação”. Ações que são práticas educativas e em condições de serem vivenciadas nas áreas de conhecimento mais diversas, como destaca Vasconcelos (2006), ao estender a educação popular às suas „experiências‟ de atenção à saúde da família; ser ações teóricas, ao se inserir no esforço de se transformar em um ser criativo nas práticas de educação popular (Rosas, 2008), ou buscando destaques às ações, pelos caminhos da apropriação desses bens culturais (Baptista, 2008). Ações, em suas dimensões políticas, lembradas por Silva (2008a), ao identificar em suas „experiências‟ em movimentos sociais a relação profícua da educação popular e a práxis desses movimentos, traduzidas em ação educativa e pedagógica. Ou, ainda, ações assumidamente de esforço para que a educação popular, efetivamente, mantenha-se como um campo educativo político para a emancipação humana, como enfatiza Feitoza (2008), em que a conquista da classe trabalhadora nas suas lutas pelo reino da liberdade atendam também as suas mais profundas necessidades. Assim, configura-se o sentido de „experiência‟ em educação popular, expressando essa síntese, estabelecida por esses três momentos, um movimento permeado de contradições, da relação do ser com o mundo, relações pedagógicas, políticas, filosóficas e, estritamente, ações históricas.
Considerações A „experiência‟ continua tendo a sua importância determinante para o avanço do pensamento filosófico a respeito do fenômeno da educação e, de forma singular, da educação popular. Caberá a sua necessária reflexão que se manifesta pela produção e apropriação dos entes culturais pelos humanos, pelo trabalho humano. Um fenômeno traduzido por um sistema que se mantém sempre aberto ao se refazer diante das coisas do mundo. Educação popular como um trabalho filosófico de produção de conhecimento referenciado pela realidade, tendo na „experiência‟ seu permanente momento de vigor teórico e de ação prática. Com metodologias e
93 pedagogias apropriadas e estimulando a participação e o empoderamento das pessoas, individual e coletivamente. Uma educação que arraste consigo conteúdos próprios, bem como técnicas adequadas de avaliação, de forma continuada, sem se apresentar com caráter finalista, sem fórmulas únicas e acabadas. „Experiência‟ que se anima, de forma provocativa, pelas possibilidades de suas realizações políticas com o seu horizonte de mudanças. Sempre permeada de desafios e do esforço de uma educação que, mesmo diversa, mantenha a sua unidade, superando a fragmentação nos dias de hoje, contribuindo para um novo bloco social alimentador do poder dos setores alijados dos bens culturais gerados pela humanidade. „Experiências‟ que fomentem o pensar sobre o local, sobre o regional e em conexão com o global, quando das análises da sociedade. „Experiências‟ que se prestem a estimular novas políticas para as transformações sociais, intrínseca a uma ética orientada por anseios humanos de liberdade, justiça e igualdade, sem esquecer, jamais, da felicidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Metafísica. Livro I e II, tradução de Vincenzo Cocco e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção Os Pensadores, v IV. Abril Cultura, São Paulo, 1973. BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro, Contraponto, 1996. BAPTISTA, Maria das Graças de Almeida. Cultura e educação popular: a apropriação dos entes da cultura. In: Educação popular: enunciados teóricos v. 2. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2008. BEISIEGEL, Celso de Rui. Política e educação popular (a teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil). 3ª. Ed. São Paulo: Editora Ática, 1992. BACON, Francis. Novum organum. Coleção Os Pensadores, v. XIII. Abril Cultural, São Paulo, 1973. BORBA, Maria Auxiliadora Bezerra. Saberes e fazeres do povo. Resgate da cultura popular da Paraíba. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2006. BERGSON, Henri. Conferências. Coleção Os Pensadores, v. XXXVIII. Abril Cultura. São Paulo, 1974. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O trabalho de saber. Porto Alegre: Editora Sulina, 1999. BRUTSCHER, Volmir José. Educação e conhecimento em Paulo Freire. Passo Fundo (RS): IFIBE e IPF, 2005. CALADO, Alder Júlio Calado. Pelas veredas libertárias da utopia: ensaios de um aprendiz. João Pessoa: Editora Idéia, 2000. CARDOSO, Miriam Limoeiro. Para uma leitura do método de Karl Marx. Anotações sobre a “Introdução de 1857”, Cadernos do ICHF – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Universidade Federal Fluminense, nº 30, set/1990. CARNAP, Rudolf. Empirismo, semântica e a ontologia. Coleção Os Pensadores, XLIV. Abril Cultural, São Paulo, 1975. CASILLAS, Cuauhtémoc A. López. Processo de reflexão coletiva sobre a vigência e desafios da educação popular. In: Educação popular na América Latina: desafios e perspectivas. Brasília: UNESCO, MEC, CEAAL, 2005. COLETIVO COLOMBIANO. Desafios para a educação popular na Colômbia. In: Educação popular na América Latina: desafios e perspectivas. Brasília: UNESCO, MEC, CEAAL, 2005. DEWEY. John. A arte como experiência. Coleção Os pensadores, v. XL. Abril Cultural, São Paulo, 1974. Educação popular e movimentos sociais. LINS, Teixeira Lins; OLIVEIRA, Verônica de L. Batista de (Orgs.). João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2008. FEITOZA, Ronney da Silva. Educação popular e emancipação humana: matrizes históricas e conceituais na conquista do reino da liberdade. In: Educação popular: enunciados teóricos v. 2. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2008. FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Trad. Cezar Augusto Morari. São Paulo: Editora Unesp, 2007.
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96
TEXTO 10 EDUCAÇÃO POPULAR E UNIVERSAIS - dimensões ontosemânticas74. RESUMO. Este texto é produto da pesquisa Educação Popular e Constituintes. Uma discussão que remete à questão de haver ou não elementos de universalidade nesse fenômeno educativo. É uma análise lógico-semântica de busca de possíveis universais, resultante da coleta de constituintes em diversas experiências de grupos, de atores em Educação Popular, e de parte da produção acadêmica na América Latina. A pesquisa expõe a existência de constituintes, possíveis universais, que asseguram, talvez, uma ontologia para a Educação Popular, devido a presença destes em todas as experiências analisadas e de outros constituintes que, tão somente, aparecem em algumas delas. Expressam nomina, nomes, vocábulos, mas sem cair na austeridade nominalista de uma linguagem totalmente controlada, contribuindo para uma compreensão sistemática e aberta de Educação Popular. Palavras-chave: educação popular, universais, particulares. Introdução Educação, para muitos, apresentou-se com significado meramente simbólico. Resiste, contudo, a qualquer tentativa de compreensão que a transforme em fórmula abstrata ou mesmo vazia. É fenômeno intrínseco às relações humanas e sociais ou, mais precisamente, um fenômeno de apropriação da cultura. Esta entendida como expressão da criação humana, fruto das complexas operações que o animal humano vem desenvolvendo historicamente no trato com a natureza material e suas lutas para sobrevivência própria. Nessas operações, ele descobriu a sua capacidade de aprender, estabelecendo esse momento como o fato pedagógico, isto é, a condição de aprendizagem e de ensino que traz consigo e que continua em desenvolvimento, com maior velocidade do que em qualquer outra espécie animal. Educação torna-se um fenômeno humano especial: caracteriza-se pela condição de aprendizagem e de ensino, respectivamente, enquanto ensina e enquanto promove a aprendizagem. A educação realiza-se de forma reflexiva ou sistemática comumente em escolas, bem como de forma espontânea em outros quaisquer ambientes. É essa dimensão de ensino e aprendizagem recorrente do trabalho humano, este entendido enquanto intervenção na natureza para mudanças, que se põe em discussão neste artigo. Uma educação que não ocorre necessariamente em escolas formais, Educação Popular. No esforço de delineamento desse processo educativo, questões são desafiantes como: Haverá na Educação Popular constituintes universais, podendo-se discutir uma ontologia própria? Como recorrência: Haverá constituintes, nesse jeito próprio de se fazer educação, orientados pelo trabalho, que podem ser denominados de particulares? Esta pesquisa foi realizada a partir de experiências de educadores/as em busca de constituintes para a Educação Popular75 e em livros da produção teórica76 deste campo de 74
Texto inédito. João Pessoa, 2014. A pesquisa dos constituintes em Educação Popular, ainda em desenvolvimento, tem como amostra cinco grupos de profissionais no campo da Educação Popular, num total de noventa e seis participantes: a) um grupo de 6(seis) professores de alfabetização, da Experiência de Autogestão, que vem sendo desenvolvida na Usina Catende-PE, iniciada em 1994 e, ainda, em curso pela Cooperativa Harmonia (anos 2003 a 2005); b) um grupo de 30 (trinta) educadores populares oriundos de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, do Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária) na cidade do Rio de Janeiro (ano de 2003); c) três grupos num total de 72(setenta e duas 75
97 estudos. Em um primeiro movimento teórico, utilizou-se da análise lógico-semântica, possibilitando resultados que serão apresentados como constituintes universais para a Educação Popular e fornecendo pistas para sua ontologia, enunciando uma possibilidade semântica essencialmente nominalista. Todavia, não se assume a visão austera desse movimento filosófico por uma linguagem totalmente controlada, pautando-se pelo diálogo do humano com a natureza e consigo mesmo, expressando no conjunto um amplo movimento ontosemântico. Se para Marcuse (1978) a questão do estatuto dos universais é central para o pensamento filosófico, para a Educação Popular é uma questão que merece ser cuidada quanto às dimensões de universalidade possível no seu fazer educativo, na sua práxis.
Os universais Tratar a questão dos universais, hoje, é provocar essa discussão, não suficientemente resolvida, presentes nas formulações platônicas ou um realismo platônico, em que os universais apresentam uma existência real. Existência separada, anterior e independente das coisas sensíveis, entidades ante rem. Ao lado desta discussão, postulam-se formulações aristotélicas ou um realismo moderado, em que os universais têm uma existência real, com uma essência comum, porém compartilhada e presente apenas nas coisas sensíveis. Os universais existem não anteriormente às coisas sensíveis; têm existência apenas nelas mesmas, ou seja, somente nas coisas, e não anteriormente ou independente delas, entidades in re. Outras formulações, por sua vez, rejeitam completamente a existência de qualquer entidade universal extramental, seja anterior às coisas ou mesmo enquanto realidade nas coisas. Tal perspectiva afirma que, na realidade extramental, o que há são apenas indivíduos singulares. As entidades universais adquirem significado dos nomes (nominum significatio). Os nomes termos que firmam um sinal linguístico mental. Sinais estes que podem ser dotados de
pessoas) profissionais (alunos/as) de três turmas, nas disciplinas de Teoria em Educação Popular, História e Filosofia da Educação Popular e Tópicos Especiais em Educação Popular, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa-PB (anos de 2003, 2004 e 2012). 76
Também compõe a pesquisa parte da produção teórica da América Latina, contida no livro Educação Popular: utopia latino-americana (Moacir Gadotti e Carlos A. Torres - Orgs), em que aparece um conjunto expressivo de pensadores em Educação Popular; e, em especial, parte da produção brasileira na área, a partir do Nordeste, orientando-se pelos seguintes livros: Educação como prática para a liberdade (Paulo Freire); Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire); Pedagogia da esperança (Paulo Freire); Pedagogia da autonomia (Paulo Freire); Educação do campo e a formação sociológica política do educador (Ismael Xavier de Araújo e Severino Bezerra da Silva); Educação Popular e movimentos sociais (Edineide Jezine, Maria do socorro Xavier e Orlandil de Lima Moreira); Educação Popular – enunciados teóricos (José Francisco de Melo Neto); Paulo Freire: sua visão de homem, de mundo e de sociedade (Alder Júlio Calado); E a Educação Popular: quê? Uma pedagogia para fundamentar a educação, inclusive escolar, necessária ao povo brasileiro (João Francisco de Souza); Relatos e vivências de Educação Popular (Wilton Wilney Nascimento Padilha); Educação Popular: enunciados teóricos II (Agostinho da Silva Rosas e José Francisco de Melo Neto - Orgs). No total, houve a indicação de 61 constituintes para a Educação Popular, ocorrendo 9.817 registros desses constituintes. Foram escolhidos para esta discussão aqueles que obtiveram a indicação acima de 80% no conjunto desses livros e dos 5(cinco) grupos acima referenciados. Constituintes mais representativos: Liberdade, Diálogo, Cultura, Crítica, Praxis, Trabalho, Compromisso político e Autonomia. Seguem os demais constituintes em ordem alfabética: alfabetização, amorosidade, autogestão, autonomia, campo/rural, cidadania, classe social, coletivo, comunicação, consciência, construção de conhecimento, construção de saberes, conscientização, cooperação, criatividade, democracia, dialética, desenvolvimento humano, emancipação, empoderamento, esperança, experiência, existência, ética, felicidade, gênero, humano, humanidade, igualdade, ideologia, identidade, justiça, luta, metodologia própria, movimento, mudança, multicultural, mundo, necessidade, oprimido, opressor, participação, pensamento, popular, povo, política, prática, produção, racionalidade, realidade, ressocialização, teoria e prática, transitoriedade e subjetividade,
98 capacidade predicativa de muitas coisas77. É a perspectiva nominalista para a busca de universais, uma possível ontologia. Resta, por sua vez, a visão conceptualista, traduzida como sendo uma posição híbrida que mescla elementos tanto do realismo quanto do nominalismo. Nesta visão, os universais existem enquanto conceitos universais nas mentes. São apenas ideias abstratas, possuindo, assim, esse objectum. Nem são entidades reais e tampouco meros nomes, são conceitos gerais. Todas essas formulações, contudo, guardam similaridades teóricas e se externam não como campos definitivos. Esse debate ressurge, sobretudo, na Idade Média. Chega ao século XX e aos dias atuais. Universal derivado do adjetivo “universus, universa, universum”, surgindo, assim, o termo. Como se vê, podem ser apresentados como “noções genéricas” ou mesmo “ideias” e “entidades abstratas”. Os seus contrapontos têm sido os particulares, expressando entidades concretas. Adquiriu diferenciados significados, em níveis distintos, como o de símbolo linguístico, o de entidades mentais e, portanto, subjetivas, o de significados objetivos, o de realidades fenomênicas, e de realidades transcendentais. Tem-se assegurada a compreensão de universais como palavras orais ou escritas, ora como coisas empíricas ou físicas, como conceitos mentais individuais, ou mesmo como ideias superiores e distintas no mundo. Tais posturas filosóficas podem estar presentes nas diferenciadas visões de Educação Popular. Se há uma visão de que Educação Popular é educação supletiva para “pobres”, para os “coitadinhos”, dentro de uma perspectiva salvacionista de pessoas que estão fora do caudal de grupo dominante, então, podem-se ter universais em Educação Popular definidos antes mesmo desse fenômeno educativo, idealizado, portanto, ante rem. Podem-se, ainda, comportar possibilidades muito próximas, em que os universais sejam postos como entidades que estão nessas coisas, in re; ou mesmo, como universais adquirindo significados apenas nos nomes, posições essencialmente nominalistas. Um traço peculiar do debate sobre os universais é a sua forma de “existência”. Esta pesquisa é um esforço de apresentar esses “algos de existência” e caracterizá-los como tal. É uma questão ontológica que tem seu deslocamento para o campo da Educação Popular e que tenta apresentar constituintes que poderão assegurar que tal tipo de educação é Educação Popular, sem os quais haveria um outro tipo de educação. O realismo platônico, ao caracterizar os universais, irá assegurar a sua existência como condição para o entendimento de qualquer coisa particular. É como se esses particulares expressassem coisas que estão fundamentadas nos universais, mesmo que não sejam reais como expressão corpórea de algum ente. Dessa forma, os universais estão antes das coisas e existem como expressões de ideias. Contribui para com esse ideário platônico, fundamentalmente, a discussão de Parmênides78 sobre o ser das coisas. “Necessário é o dizer e pensar que (o) ente é; pois é ser, e nada não é. ...”. Para ele, só se pode pensar e dizer aquilo que é, pois “o mesmo é pensar e ser”. Ausente está a condição de predicação negativa ou positiva, pois não se coloca o problema da verdade. Mesmo assim, aparecem as condições para verdade, estabelecendo-se uma ontologia. Mas, na Educação Popular, estão firmando-se constituintes que podem definir uma situação do ser de si mesma – aquilo que assegura forma à Educação Popular ou a definição de seu ser. Firma-se a dimensão semântica quanto a origem desses constituintes, não sendo preciso algo anterior e nem mesmo algo nas coisas mesmas, mas sim do pensar e do dizer (linguagem). Nas experiências em Educação Popular aqui analisadas, pouco a pouco, vem-se mostrando o aparecimento de elementos que constituem esse fenômeno educativo, fundando-se a sua base ontológica que, mesmo sendo ideias, não são formadas antes do ato educativo, muito menos têm se comportado como entidades contidas nos atos educativos, mas sem que possam ser tidas como estando na coisa mesma, já que originam-se dos dados da própria experiência educativa. Estão surgindo entidades universais sim, que apontam para significados apenas nos 77
FERREIRA, Anderson D`Arc. Problema dos Universais.In: Jornada de Filosofia Medieval. Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina Grande, 2012. 78 Parmênides. Fragmentos. Sobre a natureza. Coleção Os Pensadores. Os Pré-Socráticos. 1ª Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1973. (Frag.6,1-2).
99 nomes mesmos. São termos firmados por sinais linguísticos mentais com diferenciadas predicações quando de seus surgimentos nesses processos educativos (experiências). Mas, que experiências estão-se falando e como as mesmas têm assinalado esses constituintes?
Experiências em Educação Popular Estão sendo várias as experiências educativas no campo da Educação Popular. Destacam-se, hoje, atividades educativas que acontecem no campo institucional, fora desse campo, na escola pública, em escolas de organizações sociais, em movimentos sociais populares e, em todas elas, „experiência‟ aparece como uma síntese metódica que se manifesta de forma dialética e em três momentos. O primeiro reúne as dimensões objetivadas pela ´experiência`, as dimensões externas captadas pelos sentidos, e a inteligência (dimensões internas, subjetivas ou de ideias) como um algo só, no sujeito, e sem condição de divisibilidade. São dimensões externas e dimensões psicológicas traduzidas pela síntese em um ser mesmo. O horizonte de mudanças em Educação Popular faz a sua „experiência‟ transcender elementos empiristas e idealistas, vislumbrando-se o algo mesmo, o concreto, como ente que precisa ser submetido à inteligência. Um algo material que só terá sentido à medida que se vão descortinando as suas determinações, e estas não se dão diante das condições de natureza, isto é, não estão dadas pela própria natureza. Somam-se elementos da intuição e elementos da subjetividade de cada participante do processo educativo (Silva, 2008). Um primeiro momento cheio de potencialidades de cada indivíduo, essencialmente singular. A organização do grupo em „círculos de cultura‟ freireanos marcará um segundo momento, sendo este de análise daquilo tudo de sentido, mostrado, ou o concreto percebido pelos atores presentes daquele momento educativo. É um momento definido pelas análises das determinações daqueles aspectos primeiros, buscadas em nível das abstrações de cada sujeito, contemplando-se o conhecimento de seus aspectos históricos. Essas análises ocorrem na dimensão do coletivo. Naqueles concretos postos, estão presentes relações específicas que carecem de explicação e respondem a certas causalidades. Este é um momento que tem início na individualidade do participante do grupo, mas que adquire dimensões de coletividade no próprio grupo. Com a força das abstrações dos participantes, o concreto vem à tona só após as explicações de causalidades, mantendo-se a anterioridade do real no debate e afastando-se da perspectiva idealista e subjetiva da „experiência‟. A partir do real, passa-se ao conhecimento do concreto, que nada mais é do que conhecer as suas determinações, assim como em Cardoso (1990), assegurando-se que se chega ao concreto quando se compreende o real pelas determinações que o fazem ser como é. Um conhecimento que não pode surgir apenas de um só pensamento, mas que é produto da elaboração nesse processo coletivo de pensar. Um momento em que as observações e sentimentos mais simples se externam para serem submetidos a uma maior elaboração abstrata do grupo. Assim, há a possibilidade de se ter conhecimento dessa construção de elementos teóricos, passando-se de um real inicial pouco conhecido para a chegada a um concreto, permeado de novas formulações de conhecimento e se mantendo a reflexão coletiva como meio dessa realização. Não cabe mais a ideia de uma „experiência‟ individual, pois, agora, tudo acontece em grupo, em „círculos de cultura‟ e, como revela Calado (2000), onde se dão as partilhas de saberes e de conhecimentos, “atiçando as centelhas da utopia”. A „experiência‟ passa a ser produto das dimensões do saber daqueles participantes; para Sales (2001), trata-se de um modo de atuar coerente, tranquilo e profundo. Um aprendizado essencialmente coletivo, na Educação Popular, em movimentos sociais, com especial destaque às possibilidades multidimensionais dessa construção de saberes; é momento de desenvolvimento teórico que não depende apenas das capacidades individuais ou mesmo das disponibilidades teóricas do grupo; um momento em que se aprende com a história de cada um, em que afetos e ideias se cruzam, como lembram Lima e Rosas (2001). Exercícios de aprendizagem que ocorrem em qualquer campo de conhecimento, tanto em „círculos de cultura‟ em ciências humanas, na tecnologia, nas ciências da saúde e da natureza, e em quaisquer outros
100 campos. São momentos coletivos promotores de um forte exercício dialógico, no qual se reforçam valores éticos, como a igualdade das pessoas, abrindo condições para ações propriamente coletivas que definirão o terceiro momento da „experiência‟ em Educação Popular. Este é o momento em que a „experiência‟ se completa, iniciando-se as definições de ações, de fazeres, das operações humanas que foram sendo identificadas desde o primeiro momento. Ações que são livres e responsáveis, próprias dos humanos, dos grupos em processo de Educação Popular, qualificadas após a análise de suas determinações. A partir desses grupos, as suas ações se dispõem à superação da alienação de que a natureza deva ser utilizada apenas em benefícios de poucos, para si mesmo ou, no máximo, ao seu particular grupo. Assim, suas ações reaparecem como instrumentos políticos para todo o seu grupo, para a sua classe. E é esta a pedagogia freireana, humanista e libertadora em que as experiências educativas instauram o “aprendizado da pronúncia do mundo”, sendo este verdadeiro. Ações pedagógicas que estão ocorrendo com os oprimidos, desvelando-se o mundo da opressão, comprometendo-se com a sua transformação, inicialmente; e, em segunda dimensão, ao ser transformada essa situação, tal pedagogia deixa de ser apenas do oprimido, passando a ser dos humanos, em permanente “processo de libertação”, na visão de Freire (1996). Desse modo, configura-se a ´experiência` em Educação Popular, produto de uma síntese em três momentos, permeada de contradições, da relação do ser com o mundo, relações pedagógicas, políticas, filosóficas e, estritamente, ações históricas. Os dados que seguem são produtos de experiências em Educação Popular, em vários momentos de ações educativas de educadores populares, podendo-se examinar os quadros resultantes da coleta empírica, na busca de se caracterizar aquilo que é, que forma ou que fornece conteúdo a esse processo educativo, resultantes desse fazer experiencial de educadores/as. Uma busca por constituintes que estão presentes nesses momentos de se pensar, agir e pensar novamente, momentos de educação popular.
Quadro 1- Constituintes79 da Educação Popular com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes: Constituintes compromisso político Cultura Transformação Práxis Diálogo Realidade Autonomia Processo Empoderamento Crítica Pedagogia própria Fonte: pesquisa no CEDAC – Centro de Ação Comunitária, Rio de Janeiro, 2003. Para esse grupo de educadores, a Educação Popular exige um compromisso político explícito, promotor de uma práxis que promova autonomia. Práxis como expressão do pensar aquilo que realiza, traduzindo-se por uma simbiose teórica e prática. Uma práxis que conduza para a autonomia de grupos, de coletivo, e não somente promotora do individualismo. Isto só será possível pelo exercício da crítica que busca os aspectos positivos e negativos contidos em quaisquer análises de entes da natureza e definidora de ações. Sempre perpassada pelo princípio ético do diálogo, promovendo-se o empoderamento das pessoas e dos grupos para transformação. Um processo que exige uma pedagogia própria, expressando uma filosofia própria e abertamente transformadora de uma realidade que se põe como ponto de partida em sua teoria de produzir conhecimento. Estes são constituintes que podem servir como base inicial para a formulação de uma Educação Popular e, portanto, apontar para dimensões de universalidade que estão no próprio processo educativo, aproximando-se de uma ontologia que não é produto de meras ideias. Agora, observe-se o quadro 2 seguinte e note-se como se revelou a presença dos constituintes de nova „experiência‟ de outro grupo de educadores. 79
O elemento teórico que mais identifica a Educação Popular.
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Quadro 2 - constituintes da Educação Popular com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes: Constituintes Cultura Diálogo Identidade Construção do sujeito Democracia Práxis Compromisso político Liberdade Incentivo a saberes Crítica Autonomia Trabalho Fonte: pesquisa entre participantes de projetos em Educação Popular. João Pessoa, 2003. Este grupo de educadores destaca que, para uma ontologia em Educação Popular, carecerá de constituintes que promovam a cultura. Uma visão que em cujas ações estão aproximando-se do quadro anterior. Uma situação em que atores se educam enquanto sujeitos, comprometidos politicamente, promotores de liberdade e da democracia. Liberdade não como promessa de uma conquista individual, presente em todo o pensamento liberal, mas como liberdade de todos e de todas, incentivadora de saberes, estes, também coletivos. Aparece, ainda, o constituinte trabalho que, juntamente com os demais, caracterizarão aquilo que é a Educação Popular. Trabalho como produto da relação humana com a natureza, sempre com vistas a mudá-la para um melhor ambiente de coletividade. Ao se compararem grupos de atores em Educação Popular, como mostra o quadro seguinte, pode-se revelar a aproximação dos novos indicadores com os dos demais grupos já conhecidos. Quadro 3 - constituintes da Educação Popular com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes: Constituintes Autonomia Cultura Identidade compromisso político Diálogo Crítica incentivo ao conhecimento Práxis Liberdade construção do sujeito Trabalho Saberes Fonte: pesquisa entre participantes de projetos em Educação Popular. João Pessoa, 2004. Neste grupo, repetem-se vários constituintes, apontando-se para uma formulação conceitual de Educação Popular, muito próxima à anterior, com a forte presença da categoria trabalho, em particular. Verifica-se que a prática da Educação Popular tem no trabalho um dos seus constituintes e princípio educativo. Assim, se passa a disponibilizar um marco teórico, pelo trabalho, para o debate ontológico dessa educação. São originários não de ideias anteriores ao processo educativo, mas presentes nas experiências desses educadores. A Educação Popular, como um fenômeno humano de ensino e aprendizagem, realiza-se pela apropriação dos bens culturais produzidos pela humanidade. Todos esses bens gerados ao humano devem retornar para sua realização enquanto sujeito produtor de sua vivência e de sua história. Como produto de sua história, se estabelece simultaneamente a sua identidade. No quadro 4, verificam-se novos elementos surgentes que abalizarão e darão sustentação à uma perspectiva de constituintes de universalidade para Educação Popular. Quadro 4 - constituintes da Educação Popular com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes: Constituintes Cultura Crítica Oprimido Emancipação Trabalho Mundo Humano Realidade Movimento Consciência Práxis Liberdade Fonte: pesquisa realizada nos livros anteriormente citados.
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Mais uma vez, aproxima-se daqueles constituintes já apresentados. Este conjunto continua a contribuir para a definição de uma ontologia para Educação Popular, em que pese a sua abertura para cada nova realidade que se descortine. Um descortinar como produto de expressão de suas consciências, sempre visualizando um mundo em permanente movimento. Assume-se, ainda, um posicionamento político ao lado do oprimido, das classes trabalhadoras, pautado pela ênfase na cultura e no trabalho como fundamento da Educação Popular. Assim, pode-se tentar alguma comparação entre esses grupos de educadores, buscandose a maior aproximação entre todos eles. Isto pode ser observado no quadro que segue, quando os novos constituintes traduzem aquilo que está presente em todos os demais grupos, a partir das experiências, formando-se um conjunto que poderá se manifestar como aqueles elementos mais presentes nessas práxis. O quadro que segue expõe aqueles constituintes da Educação Popular mais presentes nas experiências desses grupos pesquisados, conformados em suas aspirações, formulações teóricas de livros produzidos sobre Educação Popular e nas experiências. Quadro 5 – Constituintes comuns da Educação Popular, com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes, em todos os grupos e livros pesquisados: Síntese de Constituintes Cultura Crítica Práxis Trabalho
Liberdade Diálogo Compromisso político de mudar -------
Revela-se que esses constituintes são os que mais ocorrem nessas diversas experiências, a partir de pensamentos e práticas educativas. A cultura é componente na formulação conceitual mais abrangente. Acompanha essas experiências aquilo que mais está expressando as práxis educativas. São comuns nesses processos educativos os constituintes: a cultura, a crítica, a práxis, o trabalho, a liberdade, o diálogo e o compromisso político. Dois outros constituintes, contudo, apareceram com expressiva relevância quantitativa em todos os grupos. Eles estão traduzidos em todo o interior dos demais constituintes: a emancipação e a igualdade. Isto se deve em virtude de ser impossível tratar a produção da cultura, expressa nos marcos do trabalho, definidor dos entes culturais, fora da emancipação e da igualdade entre as pessoas. A promoção da crítica, necessariamente, só será feita se voltada à liberdade que não sendo só do indivíduo, mas coletiva, sugerindo a emancipação e a igualdade. Uma práxis terá significado se para a emancipação e para a liberdade, traduzida pela igualdade humana. Enfim, a ética do diálogo que promova a convivência democrática e em busca de melhores campos para se viver, traduzidos pela autonomia, só ocorrerá por meio de um compromisso político que contribua à igualdade das pessoas. Se acrescem também, como elementos intrínsecos a todos os demais presentes no quadro, os constituintes emancipação e igualdade, inseridos nas práticas educativas pela exigência de realização de todos os demais. Estes constituintes podem adquirir dimensões de universalidade. Isto sugere a questão: “Se eles são reais, como podem ser pensados: como espécie ou como gênero para esse tipo de educação?”. Sugere-se que esses estão em condições de possibilidades de serem universais, como mostram os quadros, surgindo em todos os grupos desses profissionais. Não estão como produtos já formados e concebidos com tal na mente desses educadores e, muito menos, nas coisas - como se afirmar que um tal ente é uma cadeira, pois todos dirão que é uma cadeira, sem ser preciso que todos tenham uma compreensão do caráter convencional da mesma. É como diz Abbagnano (2000), sugerindo que não é possível, todavia, se afirmar que um homem, segundo qualquer consideração ou qualquer ser, seja considerado um asno. Possivelmente, nem todo educador em Educação Popular desses grupos ou de tantas outras experiências em andamento, ou que já ocorreram, tenha a compreensão teórica e revolucionária de cada um desses constituintes. Mas, como se torna evidente a repetição dessas
103 expectativas pedagógicas e políticas, parece razoável se admitir que esses constituintes se repetem e se afirmam na definição de uma ontologia em Educação Popular. Não se põe a discussão se essas dimensões (constituintes) são corpóreas ou incorpóreas. Esses universais não se encontram nessas, de forma a fazer parte concreta da mesma, quando se realizam com os mais diversos grupos humanos, mas estão aí presentes. Não existem nem mesmo no intelecto e, apenas nos nomes, com os sentidos que lhes são assegurados nas atitudes educativas ou em suas imagens. Em Educação Popular, esses universais não se conduzem pela perspectiva do realismo platônico, não estando antes das coisas. Também, não são e nem estão em entidades reais, segundo a visão do aristotelismo ou realismo moderado. Esses universais distanciam-se, portanto, de uma compreensão que os aprisionam ao mundo das ideias e nem estão reduzidas às coisas mesmas. Afastando-se dessa dualidade, esses constituintes universais da Educação Popular são, tão somente, nomes, vozes, vocábulos que passam a ter sentidos nesse campo educacional, caracterizando-se, paulatinamente, como um processo que só é quando acompanhado às práticas educativas dessas palavras que lhes formam, distanciando-se esse processo de qualquer outra prática educativa. Em Educação Popular, o seu exercício só ocorre se esses nomes, esses vocábulos, essas buscas estiverem presentes. Esta noção de universal contribui para a compreensão de que os nomes (constituintes) postos nos quadros, enfaticamente no quadro 5, acrescidos de emancipação e igualdade, expressam somente vozes. Por sua vez, depositam nas experiências localizadas desses educadores a dimensão de real, pois reais são os entes particulares. Os tantos outros constituintes presentes em variadas experiências vivem como singulares em Educação Popular Ainda, conduz à compreensão da impossibilidade de que um tal ente de qualidade dessa educação não pode estar separado da coisa da qual se diz que “tem”, tal qualidade. A Educação Popular, agora, não pode estar separada dos entes - cultura, crítica, práxis, trabalho, liberdade, diálogo, emancipação, igualdade e compromisso político. Estas qualidades, propriedades da Educação Popular, ou constituintes, são nomes de universais, portanto. Em sendo nomes, se expressam, em última instância, por coisa, um algo físico; esses nomes adquirem, culturalmente, significação, não podendo ter origem essa significação nas coisas. Essas coisas não comportam o seu próprio significado, originando-se, assim, por uma “convenção”. Esses nomes não se encontram fora da experiência que se realiza, mas estão nelas próprias, a depender do lócus de sua realização, assegurando-se como universais. Mesmo não sendo coisas reais, tornam-se cheias de significações, pois signos, estando nos lugares das coisas designadas, para cada grupo e para cada individualidade. São signos que asseguram significados nessas experiências, na ´experiência´ de Educação Popular, buscando um ideário de ciência e de linguagem científica. Educação popular Assim, é que se pode pensar a Educação Popular como não só um fenômeno humano de aprendizagem, mas também, de ensino, permeada pela dimensão central do trabalho, nesse relacionamento com o mundo que se preste para a vida das pessoas, promovendo mudanças para que isso ocorra. Um sistema de teorias intercomunicantes, assegurado por uma filosofia de mundo, tendo na teoria de produção do conhecimento um ponto de partida, que é a realidade, entrecruza-se com teorias tanto do trabalho como da cultura, quando apresenta a divisão do trabalho, quando se expõe como produtora da existência humana, em razão de que humano é o criador da cultura (Pinto, 1979). A práxis pedagógica cobra ação educativa crítica, sendo capaz de vislumbrar e buscar a aniquilação de todo o processo de alienação, quando procura superar as amarras da opressão, definindo-se como uma prática para a liberdade (Freire, 1996). Acompanha, portanto, uma pedagogia que lhe é própria e assumidamente política, já que todo ato educativo se exercita como um ato político, explicitando-se esse seu compromisso com os setores das classes trabalhadoras da sociedade. Isto tudo, todavia, só se efetua politicamente nos braços éticos de valores, como o diálogo, quando se cobra como um sistema aberto de ensino e aprendizagem, convidando-se sempre para reforço de novos valores éticos como a justiça, a
104 liberdade, a emancipação humana, a emancipação das pessoas, e, necessariamente, a sua igualdade. Considerações Retomando as dimensões de universalidade da Educação Popular, cabe a compreensão que se distancia das posições do realismo platônico e do realismo moderado aristotélico, ao estabelecer um processo dinâmico e, portanto, dialético, em que elementos dessa perspectiva educacional podem apresentar momentos de relação entre universais e particulares, e seus momentos de diferenciação. Aproxima-se de uma ontologia, na visão semântica nominalista. Os constituintes dessa ontologia são as bases desse processo didático-pedagógico da Educação Popular, passando a contemplar elementos teóricos com postura de independência para com os indivíduos, estabelecendo-se como entidades de nomes, de significados, de signos. Dessa maneira, podem se apresentar como universais para todas as experiências da Educação Popular. Além disso, elementos outros há que se postam como de especificidade de cada experiência de Educação Popular: os particulares, em cada tempo e espaço desse exercício. Tanto esses particulares, bem como os universais, jamais se sugerindo fora de um contexto determinado de tempo e de espaço ou experiência. Mas, nessa busca e convite ao debate de compromissos ontológicos, pode-se concluir com Quine (1975) que, de seu ponto de vista lógico, orienta que a ontologia a ser adotada ainda permanece aberta, sugerindo a tolerância e o espírito experimental. Isto também tem validade para a Educação Popular.
Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 2000. 1014 p. CALADO, Alder Júlio Calado. Pelas veredas libertárias da utopia: ensaios de um aprendiz. João Pessoa: Editora Idéia, 2000. CARDOSO, Miriam Limoeiro. Para uma leitura do método de Karl Marx. Anotações sobre a “Introdução de 1857”, Cadernos do ICHF – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Universidade Federal Fluminense, nº 30, set/1990. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 22ª.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1996. LIMA, Maria Nayde dos Santos; Rosas, Argentina (orgs). Paulo Freire – quando as idéias e os afetos se cruzam. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2001. MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. PARMÊNIDES. Fragmentos. Sobre a natureza. Trad. José Cavalcante de Souza. Coleção os Pensadores. Os Pré-Socráticos. 1ª. Ed. Vol.I, Abril Cultura, São Paulo, 1973. PINTO, Álvaro Vieira. Teoria da Cultura. In: Ciência e Existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. QUINE, W.V.De um ponto de vista lógico (sobre o que Há). Trad. Luis Henrique dos Santos. Coleção Os Pensadores. 1ª Ed. Vol. LII, Abril Cultural, São Paulo, 1975. SALES, Ivandro da Costa. Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar. In: Educação Popular: outros caminhos. José Francisco de Melo Neto e Afonso Scocuglia (orgs.). João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2001. SILVA, Nelsânia Batista da. Subjetividade em Educação Popular. In: Educação Popular: enunciados teóricos v. 2. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2008.
105
EDUCAÇÃO POPULAR
movimento participação
aprendizagem e ensino
movimento participação
- palavras do interior do círculo menor: aprendizagem e ensino. - palavras do interior do círculo maior: cultura, crítica, praxis, trabalho, liberdade, diálogo, compromisso político com a mudança, igualdade e emancipação.
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2.2. LIVROS LIVRO 1 (coletânea) JOSÉ FRANCISCO DE MELO NETO AFONSO CELSO SCOCUGLIA (Organizadores)
EDUCAÇÃO POPULAR Outros Caminhos
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Organizadores Afonso Celso Scocuglia José Francisco de Melo Neto
EDUCAÇÃO POPULAR Outros Caminhos 2a edição
Editora Universitária João Pessoa 2001
108 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA reitor JÁDER NUNES DE OLIVEIRA vice-reitor THOMPSON FERNANDES MARIZ CENTRO DE EDUCAÇÃO diretora ANEDITE DE ALMEIDA FREITAS vice-diretor ROBERTO JARRY RICHARDSON coordenador do programa de pós-graduação em educação JOSÉ FRANCISCO DE MELO NETO vice-coordenador do programa de pós-graduação em educação AFONSO CELSO SCOCUGLIA EDITORA UNIVERSITÁRIA diretor JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES vice-dirertor JOSÉ LUIZ DA SILVA divisão de produção JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO divisão de editoração ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR secretário MARINÉSIO CÂNDIDO DA SILVA E24 Educação Popular: outros caminhos/Afonso Celso Scocuglia, José Francisco de Melo Neto. (Organizadores), 2.ed., João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 2001. 185p. 1. Educação popular UFPB/BC
CDU:
37.014.5 Direitos desta edição reservados à: UFPB/EDITORA UNIVERSITÁRIA Caixa Postal 5081 – Cidade Universitária – João Pessoa – Paraíba – Brasil CEP 58.051-970 www.editora-ufpb.com.br impresso no Brasil Printed in Brazil Foi feito o depósito legal
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APRESENTAÇÃO No segundo semestre de 1998, o Programa de Pós-Graduação em Educação – Educação Popular , da Universidade Federal da Paraíba, realizou um seminário interno com a participação efetiva do seu quadro docente. Tal seminário mostrou-se de tal importância que passou a ser considerado, doravante, como um momento, por excelência, para o aprofundamento teórico das atividades em desenvolvimento nessa área de concentração, definindo-se, então, pela sua continuidade periódica. Este livro é um produto desse coletivo. Volta-se, portanto, para uma tentativa de conceituação da Educação Popular, superando uma pretensa e ingênua definição definitiva, introduzindo uma percepção de popular como aquilo que é agradável ao povo, contrapondo-se àquilo que desagrada, ou mesmo que o contraria ou hostiliza-o. Supera a visão de que o popular se expressa apenas em determinados ambientes, diluindo as fronteiras de possibilidades de realização dessas atividades educativas. Nele, o leitor encontrará um trabalho versando sobre possibilidades ontológicas em Educação Popular, apresentando tal processo como expressão de um sistema educativo, constituído por uma filosofia, uma teoria do conhecimento, uma metodologia de produção de conhecimento, um conteúdo e mecanismos de avaliação, além de uma teoria política. Nessa sequência, essas atividades são mostradas na história do Brasil, a partir do estabelecimento de um governo nas terras recém-descobertas, caracterizando-se mais explícita e socialmente no final do Império. Incursiona-se pela filosofia da educação, prisioneira da formulação “estudemo-nos a nós mesmos”, expressão liberal da educação da velha república, retomando-se o discurso moderno da educação ao se mostrar voltado do corpo à mente. Nessa trilha, busca-se a democratização do ensino, através da ação de liberais que lutaram por uma educação voltada aos anseios do operariado e adequada, assim, à sociedade industrial por vir. Oferece-se, ainda, de como na história do Brasil, marcada por processos de exclusão social, surgem ações que tentaram revertê-la ou minimizá-la, no campo da educação popular, nas quatro últimas décadas. Externa-se uma breve história da educação popular destacando as contribuições de Paulo Freire, além de argumentos orientadores de Michel Foucault para possíveis ações daqueles que atuam nesse campo de pesquisa. Neste debate, expõem-se, também, perspectivas e modos de atuação em Educação Popular. Busca-se a compreensão das atuais formas de lutas, bem como das ações educativas que as permeiam. Compreende-se que, no interior de cada classe social, categoria ou grupo, aprende-se a ser mulher, homem, índio, negro, branco, jovem, idoso. Defende-se, dessa maneira, que nesse processo não se podem negar as diferenças, sejam elas biológicas ou culturais. O debate se robustece, ainda mais, ao avançar para a discussão específica da aplicação da Educação Popular na terapêutica médica, onde a arte de medicar é vista como um ato educativo e de negociação com os saberes e práticas populares de saúde e o tratamento médico passa pela liberdade e pela cultura do paciente. Busca-se, dessa maneira, a construção conjunta do tratamento médico necessário. Continuando, o livro volta-se para reflexões de experiências em Educação Popular, destacando-se a própria concepção desses processos educativos nos movimentos sociais, em particular, na área rural. São análises de práticas onde se discutem desafios da ação educativa em assentamentos e acampamentos, na Paraíba, nos últimos anos, protagonizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e por trabalhadores organizados pela Comissão Pastoral da Terra, em parceria com a Universidade Federal da Paraíba e organizações não governamentais. Em seguida, mostra-se o debate em torno das políticas educacionais voltadas para o trabalho em contextos populares e, aí, elege-se a preparação para o trabalho como foco central de análise. Destaca-se a busca por saídas frente à conjuntura do emprego, mostrando à nova institucionalidade da educação profissional, especificamente, no trato com a questão regional, apresentando aspectos que desafiam a Educação Popular nesse contexto de implementações das políticas públicas atuais.
110 Com efeito, extrapolando-se a sistematização das vivências em Educação Popular, há de se considerar a possibilidade de sistematização dessas experiências, além de se ver a Educação Popular não como um programa ou a prática específica de entidade. As condições políticas, sociais, econômicas e culturais definem o modo de realização ou uma perspectiva de atuar, impossibilitando, todavia, qualquer tentativa de tipificação das mesmas. Fruto da necessidade da manutenção da pesquisa, no campo da Educação de Jovens e Adultos, tem-se também um esforço de apresentar o seu atual estado da arte, tentando-se uma leitura a partir da V CONFINTEA e do processo de globalização. Caracteriza-se, assim, uma retomada da pesquisa no campo da Educação Popular, expressa pela investigação daquilo que vem lançando interrogações, exigindo a reflexão crítica sobre o estabelecido e externando o convite a novas descobertas e outras formas de superação. Busca-se apresentar aquilo que não vem sendo ainda pensado ou dito, mas que ao externar sínteses possíveis não se fecha em formulações superadoras e únicas. Aqui, não se encontra receituário para a repetitividade mas a manutenção de um caminho de permanentes mudanças em Educação Popular e na sociedade. Enquanto, hoje se apresenta, como expressão de modismos, a diluição de fronteiras dos objetos de pesquisa, aqui há um reforço à manutenção desses objetos, procurando evitar os caminhos de sua dissolução, exigindo a absorção dos mesmos ou da realidade onde se realizam processos educativos e se efetivam utopias e sonhos. Não se entende, também, que a vida ou a realidade seja feia ou bela, promovendo-se uma estetização de generalização das coisas ou das experiências em atividades educativas populares, em que tudo se torna “popular”. Por outro lado, desafia-se a estetização particular, ora em curso, com as políticas em andamento, onde o importante é cada um cuidar de si, com destaque à própria bibliografia, à particular produção acadêmica, à definição do meu estilo próprio, às preocupações desenfreadas como o meu visual, ao desenvolvimento de uma estética da indiferença, enfim, a práticas de vida cujo objetivo é, apenas e tão-somente, a realização do meu próprio eu. Finalizando, este livro busca provocar a curiosidade e o exercício da prática da admiração sobre as coisas que cercam a todos e, sobretudo, aos que desenvolvem, nas condições de hoje, atividades de Educação Popular. É, em síntese, uma tentativa de desenvolvimento de uma estética da audácia, na qual nossos sonhos e utopias continuam vivos. Institui-se, desse modo, permanente recomeço da história e, não, o seu fim. Certamente, nesse começo, a educação Popular desempenha um papel decisivo. Afonso Celso Scocuglia José Francisco de Melo Neto (organizadores)
111
SUMÁRIO 1.
Como se conceitua Educação Popular Luiz Dias Rodrigues
2.
Educação Popular: uma ontologia José Francisco de Melo Neto
3.
Educação Popular e Educação Básica na Historia do Brasil Wojcieh A. Kulesza
4.
Exclusão Social e Educação Popular no Brasil – 500 Afonso Celso Scocuglia
5.
Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar (alimentando um debate) Ivandro da Costa Sales
6.
Educação Popular e a Terapia Médica Eymard Mourão Vasconcelos
7.
Educação Popular nos Movimentos Sociais no Campo: potencializando a relação macro-micro no cotidiano como espaço de exercício da cidadania Alder Júlio Ferreira Calado
8.
Políticas educacionais para o trabalho em contextos populares Emília Maria da Trindade Preste
9.
O atual Estado da Arte da Educação de Jovens e Adultos no Brasil: uma leitura a partir da V. CONFINTEA e do processo de globalização Timothy D. Ireland
112
COMO SE CONCEITUA A EDUCAÇÃO POPULAR? Luiz Dias Rodrigues* Uma das diferenças entre o conhecimento científico e o conhecimento vulgar, entre muitas outras elencadas pelos metodólogos das ciências, situa-se no rigor conceitual e na precisão semântica que caracterizam o primeiro, em oposição à elasticidade conceptual e a polissemia que acompanham o segundo. Contudo, tal qualidade da ciência não deve ser interpretada como rigidez mental e tirania da univocidade absoluta dos termos, tão escrupulosamente compulsivas que encarcerassem a liberdade de pensar, de contrapor e de superar, em estreita masmorra desprovida de qualquer abertura semântica. Tão equivocada compreensão do rigor nos conceitos e de precisão nos termos esclerosaria a ciência, engessandoa em rigidez desprovida de perspectivas inovadoras, dela subtraindo a dinâmica e a evolução, que também figuram como características a ela inerentes. Mas, mesmo assim, todos subentendem que, quando alguém, na qualidade de fitólogo, fala em manga, não está dialogando com alfaiates ou faroleiros, nem tão pouco referindo-se ao comportamento da turba que ridiculariza os torcedores do time derrotado na partida de futebol. Bem praticados, tanto o rigor conceptual quanto o vocabular, associados à tolerável plasticidade, viabilizam a evolução do conhecimento, evitando vícios como a falácia do termo médio silogístico ambivalente80 e aquela que os lógicos medievais denominavam de confusio in terminis.81 O objetivo destes apontamentos não se deve procurar na pretensão de conceituar definitivamente a educação popular ou na ingênua veleidade de responder à indagação tomada apenas como título introdutório de muitas outras questões. Anfibologias As ambiguidades incidentes sobre o entendimento do que venha a ser educação popular poderiam derivar ou do substantivo ou do adjetivo formadores da expressão. Parece, portanto, oportuno analisar cada um deles separadamente. Em relação ao substantivo, eventuais ambiguidades não parecem transpor os limites da tolerabilidade metodológica. Compreendida como instituição básica, ao lado das cinco outras consideradas também fundamentais, família, economia, política, religião e lazer – a educação firma-se como componente primordial de todos os povos e sociedades, conforme atestam unanimemente sociólogos, antropólogos e etnólogos. Sua presença constante e inquestionável importância, entre todos os povos e civilizações, não são ignoradas ou negadas nem mesmo por aqueles que a denominam, juntamente com quatro outras, de superestruturas, em oposição a outra, a economia, por exemplo, tomada como base ou infraestrutura, modeladora das demais. À semelhança do que ocorre com as cinco outras, a educação assume formas mutáveis, nas coordenadas de tempo e lugar, conforme o estágio de desenvolvimento do povo observado, mas com uma função invariável de fazer crianças e jovens se apropriarem da cultura, da língua, dos conhecimentos das artes, das habilidades, dos costumes e tradições e de aperfeiçoarem este patrimônio civilizatório. Neste sentido, aplica-se, com propriedade, a metonímia com que Blaise
*
Professor do Centro de Educação da UFPB, atuando no Curso de Pedagogia, no Programa de PósGraduação em Educação – Educação Popular – e outros cursos de Pós-Graduação. 80 No silogismo, O que tem pernas caminha As mesas têm pernas Logo as mesas caminham, a falácia encontra-se na equivocidade do termo médio, ou comum às mduas premissas, significando diferentes realidades numa e noutra. Na premissa maior, pernas significa membros de animais. Na premissa menor, emprega-se pernas como catacrese, ou metáfora de curso forçado, para significar as hastes de sustentação do móvel. Tal paralogismo torna improcedente e falsa a conclusão. 81 Desordem na spalavras.
113 Pascal definiu a humanidade, ao conceituá-la como um homem só que vive sempre aprendendo sempre. Enquanto a família, por exemplo, exerce a função invariável de substituir e renovar biologicamente os indivíduos para que o povo possa sobreviver geneticamente, através das gerações que se sucedem e perecem, a educação desempenha aquela de fazer com que essas mesmas crianças e jovens nasçam em determinada cultura, assimilando-a e desenvolvendo-a, para que o povo não desapareça, perdendo sua identidade etnográfica, com a morte dos indivíduos que episodicamente o compõem em determinado período de sua história. Se a família é o berço, onde o povo se perpetua e se renova biologicamente, a educação é aquele onde o mesmo se perpetua e se renova culturalmente. As formas, ou institucionalizações, de ambas – paralelamente ao que sucede com a política, economia, religião e lazer – variam, e devem mesmo variar, para que não se estabeleça a estagnação, mas se promova a evolução. Os antropólogos revelam que a família tem assumido formas comunitárias, matriarcais, patriarcais, poligâmicas e monogâmicas, sem acarretar maiores problemas para o povo, enquanto lhe efetivou a função biologicamente continuadora e renovadora. Analogamente, as formas de educação têm variado enormemente, conforme documentam os pesquisadores da História da Educação. Na ausência de ministérios e secretarias de educação, da proliferação de satélites burocráticos que em torno destes pululam e de suntuosos prédios escolares, os jovens bem sucedidos nos ritos tribais de iniciação conheciam, talvez, bem mais o patrimônio cultural das sociedades primitivas, em que vivem, do que os portadores de litúrgicos diplomas de graduação, mestrado e doutorado conhecem o da nossa. A suposição de que exista uma forma única, absoluta e perfeita de família ou de educação, como de qualquer uma das outras quatro instituições básicas, revela, no mínimo, ingenuidade, egocentrismo ou etnocentrismo. Mas, além de instituição sempre presente em qualquer sociedade, a educação pode ser compreendida, ainda, como comportamento, ação ou programa de criar e desenvolver condições para que indivíduos e grupos se apropriem do patrimônio cultural de uma civilização, tornandose capazes de enriquecê-lo e aperfeiçoá-lo. Esta acepção é que conceptualiza o campo específico de atuação dos pedagogos. Nas discutíveis, mas ainda predominantes, anatomizações e compartimentalizações do saber, é ela que situa e define o terreno de pesquisa dos educadores, delimitando-o daqueles onde trabalham sociólogos, antropólogos, etnólogos, artistas e muitos outros que operam com diferentes aspectos da educação tomada como instituição. As ambiguidades afloram quando a atenção se concentra sobre o adjetivo formador da expressão, talvez porque esta seja uma das últimas recém-nascidas da prolífera pedagogia. Os lexicógrafos instruem que popular significa agradável ao povo, como antônimo de impopular, atribuído como qualidade daquilo que desagrada, contraria ou hostiliza o povo. Governantes, desejosos de ser ou parecer populares, evitam, sobretudo em épocas eleitorais, assumir decisões ou implementar medidas impopulares e, para tanto, pagam regiamente pesquisadores de opinião pública para conhecer o que o povo gostaria de escutar como promessas e plataformas políticas. Se o adjetivo assim devesse ser interpretado, Sílvio Santos, Gugu Liberato, Ratinho, Xuxa, Angélica e seus pares se destacariam como figuras exponenciais e paradigmáticas da educação popular, nos atuais e difíceis momentos de modernidade e globalização brasileiras. Entendida desta maneira, a educação popular sofreria a constante ameaça de travestir-se em educação demagógica e, talvez, esta denominação lhe coubesse com maior propriedade. Os dicionários registram, também, nos verbetes do vocábulo, o significado de próprio do povo. Neste sentido é que se fala em artes, filosofia, sabedoria e adágios populares, porque, tendo sido o povo que os produziu, torna-se justo e legítimo que deles seja o natural proprietário. Aqui, além de autor, o povo é difusor. Espaços abertos entre tabas e ocas, ruas, mercados, pórticos de templos, a Ágora dos Atenienses, os Fora Romana, as praças medievais são alguns dos epicentros donde se irradia a difusão. Consagrados e renomados autores nada de novo lhe ensina nessa matéria, que ele conhece porque a produziu e porque a difundiu osmoticamente entre os indivíduos que o compõem, em processo natural de comunicação de boca a ouvido ou do aprendeu porque vivenciou. Nesse terreno, o autor individual não ensina ao povo, mas tão somente àqueles que deste vivem distanciados. Apenas sucede, jamais antecede o processo de criação e inicial difusão deste saber popular. Sua originalidade limita-se à forma
114 com que divulga e trata, a posteriori, o conteúdo e a inicial difusão, pois, de outra maneira, o popular deixaria de ser popular, na acepção do termo aqui analisada e em flagrante contradictio in terminis.82 Homero imortalizou-se literariamente, não por criar os legendários heróis da epopeia greco-troiana, a mitologia com que os envolveu, mas pela forma simples e genial utilizada para descrevê-los e narrá-los, nas páginas imortais da Ilíada e Odisseia, para enlevo de seus leitores ao longo de tantos séculos. Mutatis mutandis,83 o mesmo aconteceu a Mestre Vitalino, na escultura, a Leonardo Mota, na literatura, a Câmara Cascudo, no folclore, aos autênticos e não afetados compositores e cantores da música popular. No entanto, conceituar a educação popular, sob este enfoque, equivaleria, possivelmente, a desertar do campo específico da pedagogia para invadir territórios de outras disciplinas. Mas, para quem, mesmo assim, deliberasse tomar esse atalho, recomendável seria, a bem da semântica, substituir a expressão por outra menos equívoca, como educação folclorística. O adjetivo próprio, donde deriva o substantivo propriedade, denotativo de posse ou pertence, conforme apreciado no parágrafo anterior, encontra-se também presente na etimologia de propriedade, agora significativa de qualidade. Quando se diz, por exemplo, o sorriso é próprio, ou propriedade, do homem, os termos analisados assumem-se como sinônimos de atributo ou de qualidade. Adotar este significado para o adjetivo, em educação popular, implicaria em admitir-se uma modalidade de educação não popular, sob pena de incidir-se em redundância ou tautologia. Mas, a que seres humanos, dentro de uma nação, poderia negar-se a prerrogativa de integrarem o povo, o direito à naturalidade e à cidadania? Aos turistas? Aos estrangeiros não naturalizados? Nesta hipótese, a fértil pedagogia, ao introduzir a expressão educação popular, postularia duas outras correlatas e alternativas, ou seja, a educação turística e a educação aculturalista. Ou, o contraponto à educação popular deveria procurar-se na educação olímpica, na educação elitista? Esta destinada a pessoas que, nascidas numa nação emergente, para não dizer colonizada, e nela vivendo muito privilegiadamente, eufemismo para contornar o muito injustamente, abominam, numa fatuidade, deplorável, o próprio povo, tentando renegar sua identidade cultural, como portadoras de complexo de inferioridade, numa xenofobia mimética e simiesca. O adjetivo pode ainda significar destinado ao povo, o que corresponderia a dizer préfabricado para a massa, ou para uso da plebe ignara e vil. Empregado neste sentido, o povo seria meramente destinatário, o receptor passivo da educação popular, o consumidor amorfo dos pacotes educacionais impostos pelos tecnocratas de plantão. Jamais o educando ativo e participativo na decisão e execução do quê, do como e do para o quê educar-se. Tomada nesta acepção, educação popular implicaria para o povo em deixar-se programar para resignar-se à inferioridade, à infantilidade e à subserviência, sob a tutela despótica dos prepotentes. Nessa semiologia, o termo insere-se numa cosmovisão exploradora, inspirada no Old profanum vulgus et arceo84 de Horácio (65-8 ACN), nos princípios de sociologia de Herbert Spencer (1820 – 1903), no ensaio sobre as desigualdades das raças humanas de Joseph Arthur Comte de Cobineau (1816 – 1882), na psicologia das multidões de Gustave Le Bon (1841 – 1931) e numa infinidade de outras obras congêneres, como aquelas produzidas pelos adeptos da teoria x, no campo da psicologia organizacional. Tal concepção da realidade considera a espécie humana constituída de duas variedades irredutíveis de indivíduos. A primeira delas, composta pela quase totalidade dos seres humanos, caracteriza-se pela ignorância irremovível, incapacidade indelével de pensar e de decidir acertadamente e com autonomia, de se auto orientar, de se organizar e de planejar. Aplicar-se-lhe-iam, com justeza e justiça, o adágio escolástico Stultitiam quam dedit natura etiam non tollit Salamanca,85 ou a concepção de Ernest Renan (1823 – 1892), segundo a qual, a humanidade não passa de vastíssimo oceano de excremento, necessário, contudo, para servir de adubo às raríssimas roseiras que se chamam gênios. Esta variedade irrecuperável, inferior aos homens de barro modelados por Prometeu, denomina-se de vulgo, massa, plebe, multidão, turba, ralé, escória, ou eufemisticamente povo. A segunda, formada por rarefeita 82
Contradição nos termos. Mudando-se o que deve ser mudado. 84 Odeio a plebe estúpida e só pretendo mantê-la a distância (Quintus Horatius Flaccus). 85 A imbecilidade que a natureza deu nem sequer a Universidade de Salamanca tira. 83
115 minoria, compreende indivíduos sábios, inteligentes, brilhantes, fortes e decididos, a quem incumbe, por direito natural e inalienável, manobrar e organizar o povo, decidir por ele e dele exigir cega e irrestrita obediência. Como já se disse, os manuais de Psicologia Organizacional descrevem, sob o rótulo de teoria x da administração, as modalidades de gestão pública ou privada, decorrentes dessa visão. Com tal entendimento de popular, reduz-se o povo à humilhante condição de mero consumidor imbecil e anômico, sem participação alguma nas decisões sobre a qualidade dos produtos a ele destinados ou sobre o processo de produção e de distribuição dos mesmos. Popular passa a significar, então, o produto a que a massa pode ter acesso, de qualidade inferior, padronizada e uniformizada por quem jamais deles irá utilizar-se. Telefones populares são orelhões, transportes populares coletivos desconfortáveis, casas populares minúsculas e precárias moradias de conjuntos habitacionais. E a educação popular? Educação mobralesca para a alfabetização? Certas espécies de educação supletiva para o primário, o ginasial e colegial, ou, para falar ao gosto dos burocratas, que deliram imaginando que se muda a realidade quando se dela mudam os nomes, o primeiro e o segundo graus, ou mais modernamente, o básico e o fundamental? Educação à distância, androgogia, ou educação permanente para a graduação e pós-graduação? Em benefício da precisão terminológica e, por analogia ao que já se adotou nas alfaiatarias – a haute couture,86 individualizada e personalizada para a elite minoritária, onde fulguram os Versace, Cardin, Coco Chanel e os tupiniquins Denner e Clodovil, em griffes milionárias, ao lado da basse couture, uniformizada e produzida em série, por custos vis, para consumo da plebe – conviria substituir a expressão educação popular por educação prêtte-à-porter. Entre muitas outras saídas para superação do impasse anfibológico, alguns pedagogos já adotaram o critério tópico ou geográfico. Educação popular seria, então, antônimo de educação escolar, porque efetua fora e apesar da escola. Mas, ao procurar assim escapar da anfibologia, o pioneirismo pedagógico poderia afogar-se no pântano da redundância: qual seria, então, a diferença entre educação popular e educação informal? Busca de precisão A sequência desses apontamentos, que doravante prosseguem, não pretende ser o caminho, certamente muito mais o alarme, para deslindar a educação popular do emaranhado de ambiguidades, conduzindo-a ao destino de conceituação aceitável aos que tencionam estudar e pesquisar o mesmo objeto, sem jamais excluir a tolerável abertura semântica. A proposta apresenta-se bem mais modesta, não excedendo a simples busca de um caminho, introduzindo no debate ideias que para tanto possam se revelar proveitosas ou, mais provavelmente, alijadas por impertinência e despropósito. Para início desta tentativa de busca, um apólogo, plagiado do Leviathan de Thomas Hobbes (1588 – 1679), aparece dramatizado em três atos. Torna-se óbvio advertir que, como pura alegoria, não convém transpô-lo biunivocamente do campo metafórico para o real, nem inferir que a visão de quem aqui escreve coincide com a exposta pelo cientista político inglês. Quem transmitir o recado não merece reprimendas ou encômios pelo conteúdo do mesmo. Ato I – No palco inicial da pré-histórica, entre as exuberantes e variadas formas de vida superior da era quaternária, um grupo de primatas anuros substitui o polegar dos membros posteriores pelo hálux, não mais oponível aos outros artelhos, assume postura ereta, abandona hábitos em favor dos terrestres a se locomover sobre o solo sem utilização dos membros anteriores, desembaraçados agora para outras funções mais interessantes, como as de construir e manusear instrumentos, prolongamentos mecânicos da mão, para firmar-se como a espécie zoológica do Homo faber. De quadrúmano torna-se bípede implume, para os que preferem o idealismo platônico à taxionomia biológica. Instaura-se a revolução da mão. Tudo isto teria acontecido nos albores do paleolítico. Os descendentes de tais humanoides prosseguem desenvolvendo vertiginosamente o córtex, encefálico, base fisiológica de comportamentos cada vez mais complexos e diversificados, e, para poderem alojá-lo mais convenientemente, projetam 86
Alta costura, caríssima, exibida por top-models badaladíssimos, esbeltos e até mesmo magérrimos, desfilando coreograficamente sobre sofisticadas passarelas do grand monde.
116 uma caixa craniana mais proeminente, aumentando o ângulo facial; aprofundam as circunvoluções cerebrais, multiplicam as dobras e pregas corticais, para ampliar a extensão da massa cinzenta e mais nobre do tecido neuronal. A espécie torna-se Homo sapiens. Brincando e divertindo-se com a nova faculdade de pensar, de raciocinar, exclusiva do Animal rationale, os humanos menosprezam as espécie zoológicas de instinto gregário e social. Acham ridículo que uma abelha perca o ferrão e pereça, na defesa da colmeia onde reside a sociedade de que faz parte. Isto porque os indivíduos da espécie pensante são desprovidos de gregarismo, vivendo isolados, atacando e trucidando seus congêneres, tornando-se cada um a mais cruel e temível fera para seus semelhantes, na cotidiana vivência do homo homini lupus.87 Egoísmo, antissocialização, violência e crueldade intraespecíficas integrariam a etologia da nova e estranha espécie. Ato II – Bem cedo, porém, percebem os humanos que para eles a sobrevivência se configura rara e difícil, em mundo hostil, povoado de frequentes e fatais ameaças. Desprovidos da massa, agilidade, afiadas garras e enormes caninos dos esmilodontes, transformam-se em fácil refeição para estes e para outros temíveis predadores. Carentes da corpulência e força dos mamutes, da velocidade dos cervos, não conseguem convertê-los em presas, perecendo de inanição. A razão, todavia, lhes indica uma resposta: a união e a solidariedade multiplicam energias e forças, para a consecução de objetivos inatingíveis pelo indivíduo solitário. Os humanos enfrentam o dilema: ou permanecer fiéis ao instinto de isolamento, acompanhado da morte prematura e inevitável ou seguir a razão, passando a viver em grupos, incomparavelmente mais protegidos contra as ameaças naturais. Prevalece a razão, e formam-se as primeiras sociedades humanas. Revelam-se eficazes os resultados das caçadas e a defesa contra os terrificantes predadores. Ato III – Porém, o simples fato de passarem a viver em grupo, não por gregarismo natural, mas exclusivamente por egoísmo, não faz os humanos perderem os fortes e arraigados instintos de agressividade e ferocidade intraespecíficas. Vencidos os inimigos externos de outras espécies, tornam-se vítimas dos inimigos internos da própria, com os quais convivem agora, lado a lado, dentro das primeiras comunidades. Todos e cada um são presas e predadores potenciais, e constantemente atuais, uns dos outros. Lesões, homicídios, roubos e furtos imperam absolutos, em todas as circunstâncias. Nem os mais fortes encontram-se tranquilos e isentos da morte súbita e cruel, que os espreita e ronda de cada ângulo: a qualquer inadvertência ou cochilo, são impiedosamente assassinados. Reina completa insegurança. Para o homem, a vida entre humanos torna-se mais curta, precária e angustiante do que entre as feras, perene sobressalto, eterno pesadelo, em sua breve duração. Ao criarem as sociedades, parece que os humanos esqueceram que a pior fera para o homem é o homem, que, tornando-se artificialmente social, o homem não deixara de ser instintivamente o homo homini lupus. No entanto, mais uma vez aparece a razão, em auxílio de suas trágicas criaturas. Criando a sociedade, libertará os homens dos inimigos externos. Se criasse agora o Estado, libertá-los-ia dos internos. Os humanos delegam, então, plenos e absolutos poderes a um grupo da sociedade, para que este os defenda uns dos outros. A função precípua do Estado consiste em proteger o homem do homem, assim como a da sociedade reduzira-se a defendê-lo das feras de outras espécies. Triste engano... Confiando aos humanos a gestão do Estado, incidem no mesmo erro fatal do bando de galinhas que elegessem raposas para cuidar da proteção do galinheiro. Negligenciando que cada chefe de Estado continua instintivamente lobo do homem, entregam a carnívoros o próprio destino. Para tornar mais sombrias as cores do cenário, o Estado adquire indestrutibilidade, assemelha-se ao diabo que, uma vez invocado, jamais poderá ser definitivamente exorcizado. Transmuta-se em Leviathan, monstro terrível, que apenas simula morrer, quando já se encontra fraco e decrépito, para renascer jovem e robusto das próprias cinzas. A História se tornaria, doravante, tragédia monótona e inevitável, fatalidade inapelável, em que o destino do homem consistiria em lutar desesperada e eternamente contra o Leviathan, sua monstruosa criação, em inacabáveis e sucessivas batalhas inglórias, acompanhado sempre pela derrota e humilhação finais. Nesta constante peleja, permaneceria predeterminado e insolúvel o dilema onde cada alternativa seria tão funesta e sinistra quanto a outra: todos aqueles que promovam revoluções 87
Para o homem, o lobo é o homem.
117 contra o Estado-Leviathan, ou serão por ele impiedosamente exterminados, se ele ainda permanecer forte; ou o matam, se ele já estiver fraco, mas, neste caso, ajudando-o a renascer mais novo e vigoroso, incorporado nas pessoas dos ingênuos revolucionários que imaginaram destrui-lo. Embora os atos I e II do apólogo pareçam hodiernamente rejeitados, para explicação da natureza humana e da gênese da sociedade, mas acima invocados tão somente para recordação do pensamento político hobbesiano – não se pode, contudo, obscurecer que a história do Estado real venha mantendo muitas semelhanças com a fantasiosa descrição do Estado leviahânico. Ao longo da permanente sucessão de tiranias, ditaduras, realezas, teocracias, aristocracias, democracias nominais ou demagógicas, inumeráveis vezes pareceu morrer o Leviathan e, outras tantas, reviveu, concebido e recriado por aqueles mesmos que deliraram para extingui-lo, autoproclamando-se revolucionários de última geração. Através desses caleidoscópicos e mirabolantes avatares, o Estado vem se revelando, prevalentemente, efetivo instrumento de dominação e exploração da maioria, em benefício de indivíduos ou minorias, sem que com isto se neguem a retidão e sacrifício pessoal dos heróis e mártires individuais, que realmente agiram impulsionados pela intenção de exterminar e não de perpetuar o Leviathan, mas que, na prática, foram muito mais manipulados, recuperados e cooptados pelos que pretendiam fazê-lo. Gregos, Romanos e Hobbes não foram os únicos a conceber o homem, a sociedade e o Estado como marionetes impotentes, títeres fatais, manipulados por destino trágico e inelutável. Em tempos de modernidade e globalização, não faltam homines hominibus lupi uivando que já foi escrita a última página da História; o Leviathan deve privatizar, ou entregar a poucos, todas as riquezas planetárias e interplanetárias, como também o patrimônio público, a duras penas acumulado, ao longo dos tempos, com o suor e sangue de todos; não deve interferir na gestão dos raros donos dos mercados – a não ser quando a chamado destes para tapar, com dinheiro público, rombos de mas e inconfessáveis administrações – devendo se intrometer, cada vez mais, na vida e privacidade de todos os outros, através de cadastramentos e controles, legislações e regulamentações excessivas, burocratizações, impostos, multas e punições; deve globalizar o capital especulativo, improdutivo e extorsivo, com juros exorbitantes e para gáudio de dezenas, impondo o desemprego e a miséria para desgraça de bilhões; o Estado precisa urgentemente “desleviathanizar”, ou desestatizar, a vida de poucos e “leviathanizar”, cada vez mais, a vida de muitos. Todos devem concorrer, competir e digladiar-se entre si, sem nunca questionar o Estado, rebelar-se contra o onisciente, onipresente e onipotente Leviathan, ou questionar-lhe a indiscutível infalibilidade. Esta é a sábia lição de casa que os bisonhos alunos devem exercitar com redobrado empenho, sob pena de reprovação e extermínio, implacavelmente aplicada pelo magister magistrorum88 Leviathan. Para os que hereticamente não acreditam que já tenha sido definitivamente escrito o último capítulo da História, restaria, entre outras, a tênue esperança acenada por uma concepção de educação popular, divergente daquelas acima analisadas. A tal concepção de educação popular talvez mais ajustadamente se adequasse a denominação de educação sócio transformadora. A expressão original, todavia, pode permanecer, desde que se lhe atribua conceito de relativa exatidão, reduzindo ao mínimo os quiproquós resultantes da plurivocidade, nas comunicações de estudiosos e pesquisadores da temática. Ne sit fucus in verbis...89 O que distinguiria, então, a educação popular das outras variedades de educação seria a sua proposta e práxis direcionadas para a efetiva transformação do homem, da sociedade e do Estado. Traria lucidez, decisão, compromisso, união e solidariedade aos homens, para fortalecimento da sociedade. Esta, por sua vez, despertaria, enfim, para a realidade de que é mais forte do que o Estado, porque representa a quase totalidade do organismo social, porque trabalha, produz e contribui, enquanto ele reduz-se à minoria que cobra, exige, impõe e penaliza. Este despertar materializar-se-ia na inversão do papel do Estado, passando da condição de inclemente tirano àquela de escravo fie da sociedade. Para tranquilização da infundados 88 89
Mestre dos mestres. Para que não se faça jogo de palavras.
118 temores incutidos por falsas cassandras – sem a onipotência do Leviathan sobreviria o caos – convém lembrar que tal proposta de educação popular não extrapola a determinação de tornar reais palavras fictícias e mortas, inoperantemente escritas nas constituições e ordenamentos jurídicos de todas as nações: Todo poder legítimo emana do povo e, em nome e proveito dele, deve ser exercido, porque apenas ele é soberano. Não importaria chefes de Estado e políticos, para quem os direitos humanos não passassem de modismo, reduzidos a inócuas e hipotéticas profissões de fé, cotidianamente ultrajadas pela tolerância, cumplicidade ou autoria em injustiças, violências e torturas; mas encorajaria e apoiaria os que efetivamente considerassem como desrespeito ao povo o desrespeito praticado contra qualquer um de seus membros. Restituiria ao povo o sonho de liberdade, igualdade e fraternidade, tornando-o real, recuperando credibilidade para a causa em prol da qual lutaram, há dois séculos, os revolucionários franceses. Atribuído esse conceito à educação popular, as características a ela inerentes fluem logicamente, como teoremas e corolários decorrem de axiomas e postulados. Para não tornar minimamente prolixo o presente texto, analisam-se rapidamente aqui apenas três delas. Outras cinco ficarão reservadas para futuras e próximas comunicações. 1o) Práxis – O objeto específico de pesquisa e vivência da educação popular não exclui o logos, mas, por outro lado também, nele não se esgota. Encontra-se, sobretudo, na práxis, em processos concretos, em propostas reais, de formação de vivências e de relações interpessoais inovadoras, entre indivíduos envolvidos em experiências empíricas e observáveis, entre pessoas que convivem em grupos, entre discentes, docentes, administradores e funcionários, quando se tratar de uma escola. E isto porque palavras e discursos não passam de meros significantes, convencionalmente associados e correspondentes a determinados significados. Na ausência destes, reduzem-se a puros sons articulados, simples objetos de estudo para a Física Acústica ou para a Fisiologia, a simples flatus vocis,90 como os denominava sarcasticamente Guilherme de Ockham (1300 – 1349). Enquanto símbolos ou sinais, ensinam filósofos e semiólogos, os significantes apenas valem pelo que representam (os significados, as realidades) e não pelo que são em si mesmos. Desacompanhados das realidades que deveriam representar, ou de seus significados reais, nada valem as palavras, portanto, além de movimento vibratório de moléculas. A característica práxica evita que a educação popular se perca pelos descaminhos do estéril nominalismo, orientando-a para a investigação do concreto e do real direcionados para a transformação do homem, da sociedade e do Estado. 2o) Ubiquidade – O objeto de investigação da educação popular pode encontrar-se em qualquer lugar onde se reúnam regularmente as pessoas. O que a caracteriza não é uma geografia limitada e restritiva, mas a interação transformadora entre seus participantes e que aconteça sistematicamente em qualquer local onde costumem se reunir. Pode acontecer no lar, entre pais, filhos e domésticos, como na empresa, entre todos aqueles que ali trabalham. Pode desenvolver-se na educação informal, como nas reuniões do sindicato, da comunidade de bairro, nos movimentos sociais. Pode se fazer presente na educação formal, em qualquer escola de qualquer nível, alfabetização, ginásio, colégio ou universidade. Pode manifestar-se não apenas em cursos de Pedagogia ou Psicologia, mas também naqueles de Física, Matemática ou qualquer outro, porque ela é muito mais uma prática, um exercício de convivência, do que eloquentes discursos. A potencial onipresença da educação popular justifica-se, tanto pelo fato de não ser um espaço particular que a caracteriza e sim a natureza das relações de convivência, quanto pela necessidade de atingir o número máximo de grupos sociais para que se torne eficaz o projeto de transformação dos indivíduos, da sociedade e do Estado. 3o) Democracia – Numa proposta de educação popular, a convivência em grupos ou assembleias deve ser democrática. O povo não pode ser democrático, nem tão pouco democratizar o Estado, se os grupos que o compõem não se comportam democraticamente. Muito mais através de ações que de palavras, a educação popular objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua. O povo concreto encontra-se onde se faz presente qualquer grupo que o integra. O grupo, além de miniaturas do povo, deste é a materialização da realidade, a 90
Flatulências da voz.
119 molécula da substância, a célula do organismo. Procurá-lo alhures equivale a não encontrá-lo jamais, a lacubrar sobre um ente abstrato, fictício, nefelibata. Palavras usadas e abusadas por políticos costumam perder o vigor dos significados originais, corrompidos por outros desvirtuados ou até mesmo opostos. O fenômeno não deixa de evocar o que escreveu Saint-Just (1767 – 1794), para reflexão não só de Jacobinos, mas também de Girondinos, ao apagar das luzes da Revolução Francesa: Em todas as artes a humanidade produziu gênios, exceto na política onde só criou monstros. Hodiernamente, quase todos os políticos declaram-se sociais, muitos deles até mesmo se proclamam socialistas, fazendo figurar tais adjetivos nos rótulos de suas agremiações partidárias. Todos se apresentam como intrépidos e indefesos paladinos da democracia. Aceitando-se o significado desta palavra, conforme materializada pelo pragmatismo assumido pelos políticos, superfunctória se tornaria a educação popular. Consequentemente, parece oportuna a tentativa de concorrer para conceituar operacionalmente a democracia procurada pela educação popular. Etimológica e primitivamente, democracia significa governo exercido pelo povo e para o povo, em oposição à vasta congérie de vocábulos cognatos, tais como, teocracia, autocracia, aristocracia, plutocracia, timocracia, e os mais recentes, burocracia, tecnocracia e meritocracia. Uma das características da educação popular consiste, pois, em recuperar o significado original do termo, tornando-o prática corrente na vida e no cotidiano dos grupos. Objetivando preparar a sociedade para instaurar um Estado em que realmente o governo seja exercido pelo povo, ela tenta educar os grupos em ambiência onde as decisões sejam tomadas, assumidas e implementadas pelo grupo e para o grupo. Deriva da premissa, segundo a qual, se os grupos se tornam capazes de se autogovernarem, através de lideranças autênticas, também a sociedade, que deles é formada, desenvolverá a capacidade correlata de se autogovernar, através de um Estado realmente democrático. Como o autoritarismo, em suas diferentes modalidades, antepõe-se à democracia, enquanto antônimo gramatical e oposto político, um dos caminhos para operacionalização desta consiste na comparação com a materialização daquele. A rápida abordagem subsequente palmilhará essa trilha. O autoritarismo manifesta-se, no grupo ou na sociedade, como comportamento sociológico ou psicossocial, não apenas psicológico ou individual. Corresponde a dizer que, quando se revela, somente a análise ingênua identifica sua causa nos indivíduos que desempenham o papel de autoridade ou de chefia. Significa analisar apenas o verso mais ostensivo da moeda, negligenciando o expressivo reverso. A esta modalidade de autoritarismo minoritário dos chefes, patente e ativo, corresponde o autoritarismo majoritário dos súditos, latente e passivo. O casamento do sádico não perdura sem a cumplicidade do cônjuge masoquista. Há vinte e seis séculos, a lucidez de Esopo (séculos VII-VI ACN) percebeu a ambivalência do fenômeno, revelando-o magistralmente na fábula das rãs que solicitaram um rei a Zeus Olímpico.91 A seguir, indicam-se características da democracia em oposição àquelas do autoritarismo. 91
Conforme tradução livre da fábula de Esopo, uma comunidade de rãs vivia na abundância, cordialidade e independência, até o dia em que foi assaltada por angustiante preocupação de não ter um rei para governá-la. Sem isto, sua felicidade seria infeliz. Para remover a causa da imaginária infelicidade, uma delegação de batráquios compareceu ao Olimpo, para solicitar, de Zeus, um soberano. Sorrindo da ingenuidade dos delegados e de quem os mandara, a Divindade Suprema ofereceu-lhes como rei, um pedaço de madeira, arremessado às tranquilas águas do pântano, onde habitavam as rãs. A satisfação e o contentamento voltaram a imperar na comunidade, até o momento em que ela descobriu que o pedaço de caule, transformado em rei, não trazia desvantagem alguma a comunidade e até mesmo servia de apoio às rãs, que sobre ele subiam para se divertir ou para aguardar mais comodamente a aproximação dos insetos utilizados na alimentação. Nova delegação procurou Zeus, censurando-lhe a leviandade manifestada na doação de um rei tão bondoso e pacato, exigindo a imediata substituição deste por outro mais forte e superior. Em resposta, o Pai dos Deuses lançou no, pântano, enorme, feroz e voraz hidra. Nenhuma rá podia mais, a partir de então, aproximar-se do novo rei, senhor absoluto de todo o pântano, sem ser imediatamente devorada por este. Uma após outra, morreram todas, para aplacar a insaciável fome do novo monarca, depois de curta vida de penúria e sobressaltos. Mas morreram todas felizes, radiantes, plenamente realizadas, porque tinham agora um verdadeiro rei e salvador da pátria.
120 a) Subordinação da autoridade ao grupo versus subordinação do grupo à autoridade. O autoritarismo enquanto patologia social, apresenta, entre outros, o sintoma de hipertrofia, hiperfunção ou supervalorização da autoridade. Na modalidade ativa, a supervalorização da autoridade revela-se em indivíduos que identificam a própria realização pessoal com a ocupação de chefias cada vez mais elevadas. O espécime dessa categoria anda frustrado enquanto é um simples eleitor – e por esta razão, vota mal – inflamado pelo desejo de tornar-se vereador. Eleito vereador, continua inquieto e insatisfeito – e, por isto, exerce mal o mandato que lhe foi confiado e, consumido pela neurotizante pretensão de virar prefeito. Eleitoreira ou bionicamente prefeito, não se aplaca sua compulsão ascensional – o que torna deplorável seu desempenho de edil – agora direcionada para o posto de governador. Aqui chegando, sua sede de poder não se desaltera, identifica-se – sendo consequentemente pífia sua administração à frente da unidade federativa – na busca frenética da presidência da república. Substituído o palácio governamental pelo presidencial, avolumam-se as angústias – com efeitos negativos sobre a vida dos súditos – porque o mandato não é perene. Canalizam-se, então, todas as energias pessoais e recursos públicos para a reeleição ou para o golpe de Estado. Qual outro Fausto, não trepida em vender a própria alma a Mefistófeles, na infrene escalada de posições. Analogamente, se a realidade analisada fosse a escola, poder-se-iam criar correspondências biunívocas entre o eleitor e o graduando, o vereador e o professor universitário, o prefeito e o diretor de centro, o governador e o reitor, o presidente e o ministro da educação. A supervalorização ativa da autoridade denomina-se comumente carreirismo, oportunismo, competitividade. A supervalorização ativa da autoridade alimenta a passiva, sendo por esta retroalimentada. Na forma passiva, a totalidade, ou a parte mais expressiva da população, admira e respeita incondicionalmente as pessoas apenas em função do posto hierárquico que ocupam. Admiração e respeito são diretamente proporcionais à quantidade de degraus entre o solo, ocupado pelos simples súditos, e o ponto culminante da montanha de mando e arbítrio onde se empoleira o chefe. Tais admiração e respeito revelam-se, entre muitas outras expressões, nos adjetivos pomposos e absolutamente superlativos, interpretados ao pé da letra, que os autoritários passivos atribuem às autoridades de diferentes escalões: santíssimo, reverendíssimo, meritíssimo, excelentíssimo, eminentíssimo, digníssimo etc. No universo escolar, ainda não se supervalorizaram tanto os atributos de tão sublimes qualidades. Epítetos honrosos, contudo, como substituto, auxiliar, adjunto, assistente, de quatro níveis diferentes, titular especialista, mestre, doutor, magnífico – revelam certa ascendência autoritária. Na gíria, a supervalorização passiva da autoridade denomina-se puxa-saquismo, cata-piolhismo, babaovismo. À supervalorização de autoridade tributada aos chefes a democracia contrapõe a justa valorização das pessoas, fundamentada no desempenho e na eficiência destas. Valoriza e estimula comportamentos reveladores da compreensão de que não é bom ser importante, mas o importante é ser bom. Admira e aplaude mais o exímio percutidor do que o medíocre maestro, na execução da sinfonia. Na escolha dos homenageados para as placas de formatura, não pretere os nomes de colegas, funcionários e professores que mais investigam esforços para o bom êxito do curso aos de figurões notórios por reprováveis gestões. Evita, no entanto, imergir em manifestações inconscientes de complexos edipianos mal resolvidos. Se o mais eficiente e dedicado, para que os concluintes obtivessem a melhor formação, houvesse sido o governador, o prefeito ou o reitor, não omite os nomes destes na placa de formatura, sacrificando-os em holocausto ao aluno passivo, ao funcionário relapso ou ao professor inoperante. Subordina, enfim, a autoridade ao povo, sua única razão de ser, dentro do grupo que o concretiza, não admitindo que, sob qualquer alegação, alguém se arrogue o direito de sobrepor-se a ele. b) Independência versus dependência – A forma ativa da necessidade de dependência tipifica a personalidade autoritária com a compulsão para ter dependentes. O sujeito ativamente autoritário atormenta-se obsessivamente com uma fantasia mais trágica, porque ilusória, do que o desesperado desejo de vingança de Hamlet, despertado pelo fantasma do pai assassinado, materializando-se sobre as muralhas do castelo real dinamarquês. Tal fantasia tiraniza a mente e os desejos do autoritário ativo com essa ideia fixa: a felicidade de uma pessoa será tanto mais completa quanto mais elevada for o número de seus súditos e quanto mais forte a relação de dependência destes em relação àquela. Nada se resolve sem a interferência plenipotenciária da
121 autoridade. A concessão de favores, às vezes escusos, reforça a acomodação dos súditos subservientes. A negação e a procrastinação injustas, no atendimento pronto aos legítimos direitos, punem os que não se rebaixam e rastejam. A necessidade neurótica de ter dependentes manifesta-se: na pletora de leis, normatizações e regulamentações supérfluas e imbecilizantes, verdadeiras camisas de força, legalismo onipresente e absorvente sobrepondo-se aos fins, impondo e proibindo em todos os azimutes, sufocando o bom senso, a inteligência e as iniciativas do povo, considerado incapaz de perceber destinos e de encontrar caminhos para alcançá-los; no exercício exagerado da focalização, que considera todos desonestos e culpados até que provem o contrário; na aplicação de penas, castigos e multas, porque concebe o povo como burro, lerdo e rebelde e, portanto, carente de freios, brida, cilhas, rabicho, rebenque e esporas. A necessidade neurótica de ter dependentes confunde-se com o clientelismo, o tutelismo, o paternalismo, o centralismo, a infantilização e cretinização do povo. Na forma passiva, o sintoma compele os indivíduos a padecerem de exacerbada insegurança, passando a sentir a necessidade neurótica de ser dependentes. Assemelhando-se a heras e trepadeiras, que somente vivem bem quando enroscam as gavinhas em árvores e esteios, imaginam necessitar indispensavelmente de chefes fortes, protetores, decididos, orientadores resolutos, pastores abnegados, gurus iluminados, heróis renomados, salvadores da pátria amada e idolatrada. Indecisos, relutam em admitir que os olhos de todos enxergam mais que apenas os dois míopes do chefe; logo, não aprendem jamais a decidir. Fragilizados pela competição, que jamais resolve os problemas de todos, não percebem que o somatório das forças individuais, orientadas conforme a mesma direção e sentido, superam a de um único indivíduo que leva vida sedentária em gabinete; portanto, deixam-se facilmente manipular e conduzir em oposição aos próprios interesses. Inseguros, por se encontrarem no rés do chão sólido e firme, confiam a própria tranquilidade a equilibristas que se contorcem em altíssimas cordas bambas. A forma passiva da necessidade de dependência autoritária significa servilismo, subserviência cega, obediência e submissão incondicionais. Fundamenta-se fragilmente em preceitos introjetados de falsa moral, cujo axioma máximo estabelece que ninguém erra obedecendo mesmo quando alguém erra mandando. Em contrapartida, a democracia age reconhecendo que, até mesmo biologicamente, a vida é um processo contínuo e crescente de independentização. Nele predomina o dilema: independência ou morte. Ao completar o período de gestação, o feto ou se torna independente do cordão umbilical e do útero materno, para se alimentar com o próprio aparelho digestivo e respirar com os próprios pulmões, ou morre, matando frequentemente a mãe. Por volta de um ano, a criança se independentiza dos movimentos da mãe ou da ama, utilizando os próprios membros inferiores para a locomoção e a que assim não procede teve a morte paraplégica comprometendo parte de seu corpo. Adolescentes, através de ensaios e erros, ou aprendem a decidir e agir acertadamente usando a própria cabeça, ou sucumbem vítimas de mongolismo ou superproteção, com a morte da inteligência, da iniciativa e da responsabilidade. Para a democracia, eficientes autoridades são aquelas que não entravam, mas condicionam o crescimento das pessoas e grupos, tornando-as livres e capazes. O sucesso do professor de natação consiste em capacitar os aprendizes para nadarem sem boias, do fisioterapeuta em libertar os pacientes das muletas, restituindo-lhes a autonomia dos movimentos, o da autoridade democraticamente educadora em fazer os integrantes do grupo, sem precisar mais dela, refletir corretamente, decidir com responsabilidade, agir com compromisso, avaliar com lucidez e isenção, alcançar objetivos comuns. c) Autoridade-meio versus autoridade-fim. Na modalidade ativa, a característica autoridade-fim leva chefes e candidatos a chefias a uma compreensão e prática invertidas do serviço. O Non veni ministrari sed ministrare92 para eles não assa de uma balela de padrecos e diáconos frustrados. Consideram demente quem afirma que autoridade que não vive para servir não serve para viver como autoridade. Para eles, a função precípua da autoridade consiste em servir-se do povo, ou do grupo que o concretiza, como o pastor se serve da lã, do leite e da carne de suas ovelhas. Para si, para os familiares e comparsas, direitos, privilégios, prerrogativas, sinecuras, mordomias, tudo; nada além de obrigações e sacrifícios para o povo, fatuamente 92
Não vim para ser servido, mas para servir.
122 embaído na vã promessa de que receberá seu quinhão quando o bolo crescer, na falsa expectativa de ilusório futuro que, continuando as coisas assim, jamais tornará presente. A busca infrene de posições e poder em proveito próprio povoa-lhes constantemente os sonhos e as vigílias. Assumem-se decisões, tornando-se, como critério, não o bem estar do povo, mas interesses inconfessáveis de lobistas93 espertalhões que ofereçam a maior propina. Aprovam-se projetos e entregam-se concessões a quem depositou em caixa dois, o ágio mais aliciador. Não se doam generosamente votos de aprovação às reais causas dos eleitores; vendem-se no balcão da prostituição dos mandatos. O chefe não existe em função do povo, mas o ovo em função do chefe. A autoridade torna-se fim e posição privilegiada, reduzindo-se o povo à condição de meio e escada. Costumam-se atribuir eufemismos à inversão ativamente autoritária do serviço, tais como, realismo político, pragmatismo, fisiologismo e pianismo. Substituindo-se figuras de palavras por semântica explícita, os designativos ficariam: injustiça, exploração, desonestidade, nepotismo, corrupção, cinismo. Na inversão passivamente autoritária do serviço, os súditos tornam-se cúmplices prejudicados dos chefes. Não só aprovam, como também aplaudem, as abomináveis práticas exploradoras dos chefes. Consideram-nos não apenas luminares, estrelas de primeira grandeza, na ciência política, eminentes estadistas, mas ainda exímios artistas. Cair nas malhas da inversão passivamente autoritária do serviço corresponde fatalmente a submeter-se a escravidão, a servilismo. Contrariando o autoritarismo, a democracia situa a autoridade no lugar correto de meio, jamais de fim, do povo ou do grupo, muito mais importantes do que ela. Logicamente, a autoridade é efeito e não causa do povo ou grupo, uma vez que destes é consequência, não podendo preexistir a eles, ou ter existência própria sem eles. Impossível conceber pagés e morubixabas sem tribos, caciques sem índios. Um presidente sem povo é, na melhor das hipóteses, um mero proprietário de território. A razão de ser de toda e qualquer autoridade legítima limita-se, pois, em servir para engrandecimento do povo. Não existem grandes presidentes de povos pequenos, reis soberanos de súditos escravos. Convém aqui lembrar a advertência de Louis Vicomte de Bonald (1754 – 1840)d: A razão é a primeira autoridade e a autoridade é a última razão. Em inumeráveis e diversas situações, politiqueiramente menos contaminadas, assim funcionam as coisas, com as autoridades prestando serviços às necessidades das pessoas. O motorista de coletivo, por exemplo, é um líder,94 porque conduz ao destino os passageiros que lhe confiam as vidas, durante a viagem. Não impede objetivos, apenas respeita e atinge o destino escolhido pelos viajantes. Deixa de ficar em casa, ou de viajar para onde quer, para levá-los aonde querem. Analogamente, o governante democrático, ao dirigir o veículo da nação, conduz o povo para onde este deseja chegar, ou seja, justiça social e bem estar para todos. Se pretender chegar alhures, pedala uma bicicleta com o próprio esforço, entregando a outro a direção do coletivo nacional. Numa autêntica proposta de educação popular, professores e líderes comportam-se coerentemente conforme a compreensão de que as pessoas, frequentando a escola, as classes, a sede do sindicato e outras quaisquer organizações, não são súditos ou subalternos seus, porque toda autoridade legítima e democrática é que é súdita e subalterna do povo. A vida democrática não se limita à pobreza de episódicas eleições para escolha de ditadores de plantão. Eleições constituem o cotidiano de sua essência, na discussão e definição de objetivos comuns, na escolha dos meios mais adequados para atingi-los. Educador popular é aquele que serve ao grupo, unindo seus integrantes na solidariedade e ajuda mútua, jamais fomentando entre eles a competição e a hostilidade; fazendo com que todos desenvolvam o conhecimento, na troca contínua de informações relevantes; robustecendo-lhe a autonomia, nunca lhe impondo fins e meios, mas criando condições para que os encontre por si mesmo. Acredita, enfim, que, ao descobrir e viver o melhor, ninguém opta pelo pior. Grupos que vivem democraticamente não formam ou suportam uma nação autoritária. 93
Neologismo oriundo de lobbyst (politiqueiro), por sua vez derivado do substantivo the lobby, ou do verbo to lobby (vestíbulo, sala de espera, corredor, transacionar com deputados nos corredores da câmara, exercer pressão sobre eles). 94 A palavra líder é oriunda da inglesa leader (condutor)k, por sua vez derivada de to lead (conduzir).
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EDUCAÇÃO POPULAR: uma ontologia José Francisco de Melo Neto*
Constituintes empíricos Experiências várias, no campo da educação, foram ou estão relatadas e compreendidas como atividades em educação popular. Elas têm se originado, ora de setores organizados da sociedade civil, ora de instâncias do próprio Estado. Cada experiência apresenta suas características próprias, onde se destacam metodologias, avaliações e formas de desenvolvimento dessas atividades, todas se identificando como atividades no campo da educação popular. É possível constatar-se que atividades com apelo popular têm se desenvolvido também no Brasil, a partir de universidades como a Universidade Livre de São Paulo, que funcionou de 1911 a 1917. Ali se realizavam conferências semanais, abertas ao público, sobre as mais variadas temáticas, apesar de se apresentarem desprovidas de conotação de classe social, tendo em vista que vinham desvinculadas dos movimentos sociais da época, que eclodiam em forma de greves. Várias outras iniciativas semelhantes a estas foram sendo promovidas, tendo como origem a universidade, caracterizando-se por estarem voltadas à população, mas ignoradas pelas próprias classes populares. Pode-se destacar que essas experiências estavam muito mais presas ao idealismo de segmentos da comunidade acadêmica do que à busca de respostas às necessidades e interesses da população. São dessa mesma época as iniciativas educacionais originárias dos trabalhadores e definidas como escolas partidárias ou escolas sindicais tanto anarquistas quanto socialistas, mas que não encontraram apoio de segmentos universitários. Na universidade, as tentativas de algum segmento voltadas a atividades em educação popular foram conduzidas pela extensão universitária, compreendida como realização de cursos, solução de problemas sociais ou mesmo divulgação ou propaganda de ideias e princípios salvadores dos altos interesses nacionais. Em estudos sobre a extensão universitária, dessa época, na Universidade de São Paulo, Fávero (1980, p. 192) faz ver que ela tinha por objetivo “realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e das artes, por meio de cursos sintéticos, conferências, palestras, difusão pelo rádio, filmes científicos e congêneres”. Era um conjunto de atividades voltadas para a população não participante da comunidade acadêmica e, particularmente, para o povo. Tratava-se de um processo entendido como de educação para as massas, um processo de educação popular. Segundo a aludida pesquisadora, essa perspectiva foi posteriormente assumida pela Universidade do Distrito Federal. Dentre os seus objetivos, encontrava-se o de “propagar as aquisições da ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de extensão popular” (ibid., p. 192). O que se vislumbrava nesse conjunto de atividades era a existência de um discurso pelo popular, mas que, segundo Fagundes (1986, p. 43), sua realização “acabou sendo feita em nome das classes subalternas, mas em benefício das classes dominantes”. Esse discurso pelo popular estava presente nas mais variadas correntes políticas surgidas no Brasil e em diferentes instituições da sociedade civil ou do Estado, tendo sido assumido pelas facções de direita e de esquerda em toda a história do país. São marcantes as políticas getulistas e as do início da década de sessenta – as reformas de base de Jango. Ainda, nos dias de hoje, há políticas que, mesmo adquirindo diferenciadas conotações ideológicas, expressam esse mesmo conteúdo discursivo.
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Professor do Centro de Educação da UFPB, atuando nos cursos de Pedagogia, no Programa de PósGraduação em Educação – Educação Popular – e coordenador do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular(EXTELAR).
124 Mas, não só através de instituições de Estado foram formuladas políticas para o país. Também vários movimentos sociais se apresentam à sociedade com suas formulações mudancistas voltadas às perspectivas do povo. A UNE, em seu Congresso da Bahia (UNE, 1961, p. 26), ao discutir a reforma universitária, apresenta os traços marcantes da extensão universitária. Esse documento trata de dois aspectos básicos: a análise da realidade brasileira e da Universidade do Brasil. Destaca-se, no texto, o capítulo que discorre sobre a reforma universitária, definindo suas diretrizes, passando a assumir um “compromisso com as classes trabalhadoras e com o povo”. É nessa perspectiva que se defende a abertura da universidade ao povo, prestando serviços e gerando cursos a serem realizados pelos estudantes nas faculdades. Esses cursos iriam propiciar-lhes o conhecimento da realidade e, com isso, a universidade – a extensão – os conduziria à realidade do país. Caberia, ainda, à universidade, através da extensão, a conscientização das massas populares, despertando-as para seus direitos. O Movimento Estudantil se engaja, nessa época, nas campanhas de alfabetização de adultos e de cultura popular através dos Centros Populares de Cultura, no Movimento de Educação de Base (MEB) e nos Movimentos de Cultura Popular (MCPs). Essas campanhas estavam envolvidas (e continuam até hoje, no caso do MEB) em práticas educativas no campo da educação popular. Ao fazer uma análise sobre o MEB, Fleuri (1988, p. 34) observa: “A partir de seu primeiro encontro de coordenadores, em dezembro de 1962, o MEB se define como um movimento engajado com o povo na luta pela transformação social, em defesa das classes menos favorecidas. Realiza programas de educação através do rádio e desenvolve uma metodologia de animação popular.” O esteio necessário ao processo de animação popular – processo político e preparador para a participação política – é a educação popular. É nesse contexto de promoção da cultura popular que se origina o método Paulo Freire. Na perspectiva de alfabetização dos setores subalternos da sociedade, desenvolve-se a campanha “De pé no chão também se aprende a ler” em Natal, no Rio Grande do Norte. Em Osasco (SP), bem como na Paraíba, inicia-se a aplicação desse método através da Campanha de Educação Popular (CEPLAR). Tratava-se do método que serviu também de base à elaboração do Plano Nacional de Alfabetização, em 1964, mas que foi suspenso com o golpe militar. Vários foram os programas instituídos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), com a ditadura militar, a partir da década de setenta, que conduziram estudantes e professores a realizarem atividades em educação popular, sendo mais marcante o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Através das universidades, o MEC tratava de obter o apoio a suas campanhas por meio da extensão universitária. Programas como Centro Rural Universitário de Treinamento de Ação Comunitária (CRUTAC), Projeto Rondon e Operação Mauá são apenas algumas dessas inciativas. Nesta última década, o Ministério da Educação e Desporto institui um programa de extensão a ser aplicado pelas universidades federais, buscando a articulação do ensino e da pesquisa, no sentido de atender as demandas da sociedade. Propõe democratizar o conhecimento acadêmico, promovendo a participação da sociedade na vida universitária e formar o profissional-cidadão. Pretende, também, contribuir para as reformas das concepções e práticas curriculares e, ainda, para a reformulação do conceito de “sala de aula”. Efetuando sua política para o ano de 1996, o Ministério da Educação e Desporto definiu o Programa de Fomento à Extensão Universitária voltado à integração com o ensino fundamental. Tal programa abrange três linhas básicas: “formação inicial e continuada de professores do ensino fundamental (1a a 4a séries); produção de material didático; educação de jovens e adultos” (BRASIL/MEC, 1996, p. 1), através de exigências de metodologias educativas voltadas à educação popular. Por outro lado, também surgem de contextos institucionais, no caso da universidade, experiências que se externaram de forma a buscar exercícios de superação de práticas educativas dominadoras. Destacam-se, já na década de sessenta, a extensão praticada na Universidade de Pernambuco e, na década de oitenta, as tentativas de extensão como caráter processual da Universidade de Brasília (1889). Na década atual, nascem projetos de extensão
125 como na Universidade de Ijuí, no Rio Grande do Sul; projetos de extensão na Universidade Federal da Paraíba (1996), como o SEAMPO (Setor de Estudos e Assessorias aos Movimentos Populares), Projeto Escola Zé Peão, CERESAT (Centro de Referência e Pesquisa da Saúde do Trabalhador), e outros projetos em andamento em várias universidades, onde profissionais atuam, as mais das vezes, de forma isolada, porém, pondo em prática a educação popular. Quanto aos estudos sobre a aplicação de métodos em educação popular, convém destacar que, em relação ao Método Paulo Freire, em Brasília, existem conclusões que indicam diferenciados níveis de questionamentos. O primeiro nível diz respeito ao trabalho do grupo, destacando as dificuldades de localização de documentos referentes àquela experiência. O segundo se situa em relação à alfabetização de adultos, propriamente dita, que, para Barros (1982, p. 28), é traduzida assim: “Parece implícita certa identidade entre as proposições iniciais dos planejadores de Brasília e daqueles que participaram da experiência: crença no homem, expectativas de mudança para um sistema social mais justo, espaços abertos, compartilhados por todos sem barreiras de classes...” O terceiro nível de questionamento foi estabelecido em relação ao conteúdo político do método. Nele, destaca-se a limitação da experiência a um curto espaço de tempo – de julho de 1963 a março de 1964 – e aponta-se a perspectiva do governo João Goulart em buscar o apoio das bases populares. Sendo assim, o método rápido de alfabetização possibilitava maior número de eleitores para si. A esse respeito, Barros (ibid., p. 28) acrescenta: “Parecem claros, também, nas ocorrências de 1964, a força dos mecanismos de resistência e, após a derrubada de Goulart, os objetivos subjacentes ao sistema, onde predominam a dominação e alienação”. Nesta análise, a dimensão da resistência e a superação da alienação aparecem intrínsecas ao método de alfabetização na perspectiva de educação popular. Em experiências institucionais mais estudadas e conhecidas, como é o caso da cidade de Lages, em Santa Catarina, a participação popular foi a meta a ser alcançada. Ao cuidar da organização popular e construir a força do povo, a direção do sistema educacional, em seus encontros com a comunidade, objetivava, segundo Alves (1980, p. 74): “Na prática, o projeto lageano, além de enfatizar o concreto, realça o comunitário. Em todas as escolas, no campo e na cidade, há Conselhos de Pais de Alunos, que participam da direção escolar e colaboram na solução dos problemas que se apresentam.” Em relatos de operários, por todo o país, sobre as suas lutas e processos de organização, aparecem dimensões multivariadas quanto à perspectiva da educação popular. O depoimento a seguir destaca a necessidade de que as decisões políticas nesses movimentos precisam ser tomadas em comum. Portanto, expressa um dever ser ao formular um princípio ético organizativo e uma prática (moral) que promova a cidadania. Assim, a exigência de que as decisões devam ser tomadas em comum acordo decorre do próprio fato de serem elas tomadas em conjunto. Segundo o relato de um dos operários, tomar a decisão em comum significa estar: “A serviço de cada companheiro toda a sua capacidade de trabalho, toda a sua capacidade de pensar; é você se colocar a serviço para cada companheiro daqueles também se colocar a serviço da sua própria classe, passar a pensar na sua própria classe. Então, somente a partir das decisões em comum é que a gente deixa de ser aquele elemento importante e individual. As decisões tomadas em comum realmente ajudam o pessoal a se colocar a serviço da própria classe” (CEP-2, 1981, p. 41). Esse relato não expressa a concepção de uma equipe de educadores discorrendo sobre o conhecimento popular, mas é uma expressão do próprio conhecimento popular, sendo este operário considerado como agente da educação popular (ibid., p. 7).
126 A partir dos contatos de trabalhadores brancos com os indígenas da região amazônica, muitas lições ficam ao homem branco que, através de depoimentos, vê que o civilizado na selva é o índio. De dentro dos seringais, onde os bichos e a floresta estão sendo tragados, vem essa lição que o seringueiro exibe de forma lúcida. O branco mata vinte bichos para atender ao comércio de peles dos animais, mesmo necessitando de apenas um para sua alimentação. O índio realiza o abate apenas daquela quantidade que o satisfaz como o civilizado da selva. O seringueiro Thiago (1984, p. 29) emite uma opinião, que parece inquestionável: “O civilizado na selva é o índio. Isso eu digo e repito sem medo: a civilização, o índio é mais do que nós. Porque é o seguinte ele não estraga. Então o branco esgota aquela reserva que tem, que serve prá muito tempo, e depois vai atrás de tomar aquela propriedadezinha onde eles tão se mantendo.” São lições que dão a conhecer, no cotidiano dos trabalhadores, um quadro de procedimentos e processos que mostram formas diferenciadas de aprendizagem e de abordagem da natureza. Essas formas parecem também indicar possibilidades da educação popular. Nos processos de educação popular, há propostas que se apresentam procurando mostrar o que pode ocorrer com os animadores de ações populares. Para Der Weid (1982, p.; 49), apresentam-se vários aspectos, como: “O caminho percorrido, os problemas que foram sendo colocados pela realidade e como o viver e pensar essa realidade foi modificando minha cabeça, forçando uma mudança na minha própria proposta de trabalho”. Tem-se uma concepção de que, ao se avaliar um trabalho em educação popular, esta precisa contemplar os caminhos que estão sendo percorridos, mostrar as relações que estão ocorrendo com o viver e o pensar, bem como as mudanças em uma perspectiva subjetiva – a cabeça – e possíveis novos itinerários do próprio trabalho educativo. “Uma prática social, na qual indivíduos ou equipes técnicas e comunidade participam como sujeitos de um processo educativo e de cunho libertador. Processo esse que envolve o entendimento e a assimilação da realidade individual e coletiva e a capacitação para a ação, através da reflexão conjunta sobre as condições de vida e as ações programadas.” Esta é uma visão que vislumbra o trabalho coletivo, buscando desenvolver ações de forma conjunta, sob uma perspectiva de libertação ou de educação popular, propiciando o entendimento sobre as condições de vida e definindo, assim, as ações a serem realizadas. Da mesma forma, pode-se verificar que, em experiência de escolha das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA) em Hospital Universitário, Araújo (1994, p. 4) mostra que tentativas de criá-las sem trabalho educativo sobre a sua importância podem redundar em fracasso, acrescentando: “Só a partir do momento em que os trabalhadores vislumbraram que, mesmo eivada de restrições enquanto modalidade de organização por local de trabalho, a CIPA poderia constituir num instrumento para transformação das condições de trabalho, é que ele tronou-se viável.” Os dois relatos, envolvendo a área da saúde, expressam atitudes no campo da educação popular que vão ao encontro da individualidade de seus participantes ou promotores. Relatos de educadores vinculados à perspectiva da educação popular e integrados a núcleos de comunidade apontam que esse trabalho tem sido relevante para todos aqueles que estão envolvidos nessas atividades. Mostram ainda que essas ações têm se tornado experiências gratificantes não só para os estudiosos da pedagogia, mas para todos, os técnicos das diversas formações acadêmicas. É uma oportunidade de cada um rever-se a partir do compromisso com grupos populares. Sobre a educação de adultos, Mazza (1986, p. 59) afirma: “Vimos com eles, que foram educados pela escola da vida: ela que os ensinou, ela que os afastou da escola das letras. A
127 experiência deles é uma linguagem sem letras ou, como eles dizem, sem estudo”. Contudo, pode-se questionar o motivo pelo qual todas essas coisas realizadas por esses adultos não se apresentarem com alguma importância. Suas experiências permanecem silenciosas, merecendo pouca ou nenhuma atenção. Neste relato a pesquisadora destaca a necessidade do resgate das experiências de vida dos indivíduos para se poder ter uma perspectiva da importância dos processos de educação. São desafios para serem estudados sob uma ótica teórica da educação popular, exigindo trabalho social de forma interdisciplinar. As discussões voltadas às questões da terra, como a reforma agrária, exibem um celeiro de experiências de educação popular, no trato com a educação rural de jovens e adultos. É notória a ênfase que os líderes sindicais e os do Movimento dos Sem-Terra têm dado à educação nos assentamentos rurais. Destacando sempre a importância da conquista da terra e a consolidação da posse, através da produção e comercialização de seus produtos, os movimentos sociais no campo e, hoje, de forma singular, o MST, em suas lutas pela democratização da sociedade, despertam todo o campo e a cidade para a necessidade da participação política dos trabalhadores. Visam, em última instância, o agrupamento com outras forças sociais para atuarem na política e superarem a administração elitista e histórica das oligarquias as quais, historicamente, têm marcado o processo de desenvolvimento no país. Essa perspectiva política é vista por Vinhas (1980, p. 140) da seguinte forma: “Os líderes sindicais, ao sugerirem repetidamente a necessidade de „participação dos trabalhadores‟ nos projetos de reformas e em sua execução, pensam em uma democracia e política de massas. Porque têm testemunhado pessoalmente a prática no mundo rural, sempre restrita às elites.” As práticas educativas que se desenvolvem nos assentamentos ou em parcerias com sindicatos rurais são projetos permeados de atividades de forte apelo popular, isto é, caracterizam-se como práticas em educação popular. A educação popular vai tornando o mundo da concretude o seu ponto de partida quando de seu conhecimento. É um processo educativo que pode acontecer também através do tijolo sobre tijolo. Não esconde mais que o homem pode estar sentado sobre a pedra e não estar pensando apenas na pedra, mas também em si. É o que mostra Silveira (1993, p. 179), em suas experiências em educação popular, no Rio Grande do Norte. “O tijolo é a molécula, com seus átomos virtuais à espreita. E desta sobre os homens ta-te-ti-to-tu ja-je-ji-jo-ju la-le-li-lo-lu essa espreita. Esses homens forjados na pedra e agora do chão, do gado e das fêmeas, tinham letras e quando um tijolo ia junto de outro, conversavam entre si. A fala dura e perdura entre eles e é isso que lê natureza e cultura. Sujeito a sujeito. Transformação a transformação.” Os mais variados trabalhos de política organizativa em setores sociais e, hoje, mais presentes em movimentos sociais criam possibilidades ou reforçam ditames elementares nos processos educativos no campo da educação popular. Ao fazer uma análise dos movimentos sociais, Calado (1993, p. 34) afirma que novos horizontes axiológicos se colocam, despertando para as chamadas lutas específicas das categorias ou setores sociais, como as mulheres, negros e outros, arrematando: “De qualquer modo, o certo é que um número crescente de militantes engajados nas lutas sociais – uns como marxistas, outros como animadores de movimentos comunitários – passaram a ver, com cautela ou mesmo desconfiança, o que se
128 convencionou chamar de „política do prato feito‟, ou seja, toda tentativa de impor, de cima para baixo ou de fora para dentro, uma linha de trabalho, ainda que em nome de pretensos ideais revolucionários.” A necessidade da participação política se afirma nas práticas em processos de educação voltados às classes subalternas da sociedade. Nessa participação também se externa o caminho necessário da discussão ao buscar a superação de práticas com caráter autoritário. São práticas que passaram a mostrar o potencial político e educativo da Igreja de Base, voltado à comunidade mais carente da sociedade, vindo a ser chamada de Igreja dos Pobres e com forte apelo às transformações da sociedade. Seu projeto político, considerado embrionário pelo citado autor, já comportara traços que, hoje, ainda mais expõem à vista sua importância, em face da sua atualidade, como por exemplo: “Rejeição ao modelo capitalista de organização social; atitude de desconfiança em relação ao espírito da competição e ao individualismo; promoção do espírito de cooperação exercitado em ambiente comunitário de partilha e solidariedade; promoção do respeito às diferenças individuais...” (ibid., p. 32). No que concerne às pesquisas voltadas ao ensino da língua portuguesa em curso supletivo, trabalhadores de várias categorias estão exigindo metodologias novas que possam atender suas expectativas em relação à escola. Nesse sentido é que operários na indústria de construção civil e de confecções; trabalhadores do comércio; os permutáveis, isto é, aqueles que pouco tempo passam em seus trabalhos, tendo em vista a mudança frequente em seus empregos; os biscateiros e outros são alunos, em potencial, dos cursos supletivos. É essa realidade que levou Sousa e Silva (1992, p. 32) a chegar à seguinte conclusão: “Não propomos que a escola adote o pressuposto de Freire sobre o privilégio da leitura do mundo em relação à leitura das palavras, mas cremos que as determinações da história do aluno devem ser consideradas”. São exigências, portanto, de metodologias para outra forma de educação. Existem relatos de contatos de trabalhadores com mecanismos de organização, tanto da fábrica quanto também de entendimentos da não exigência de organização. Contudo, eles descobrem que é preciso haver organização. Na verdade, a partir da ideia inicial de sua superação através de sua destruição, descobre-se que a organização é fundamental, seja no próprio setor do trabalho, seja nas formas de se encaminharem reivindicações ou exigências para o exercício do trabalho na fábrica. São processos de lutas pautados por mecanismos que, às vezes, pode levar a quebrar a cara, mas sempre buscando seu aperfeiçoamento através de metodologias de organização de base popular, necessárias à sistemática do desorganizar e organizar em bases novas. O anseio por essa nova organização é que constitui o processo de busca e de criação da liberdade de cada indivíduo e de todos. São experiências de educação popular contribuindo para essa busca. Para Vicente – operário – a discussão sobre organização veio perturbar muito as cabeças de todos os trabalhadores da fábrica onde trabalhou. Em seu depoimento, relata: “Faz dois anos que a gente não aceita mais nada de negócio organizado dentro daquelas metas, aquela coisa toda pronta. Até que a gente chegou ao ponto de desorganizar mesmo, deixar tudo desorganizado para ver como é que dá. Mas mesmo dentro da desorganização, a gente está organizado. Porém, chegamos à conclusão agora, e isso é o que está mais mordendo a nossa cabeça, é que precisa mesmo haver outra forma de organização dentro daquilo que a gente está fazendo” (CPE-5, 1983, p. 43). Essa busca passa pelo local de trabalho onde as pessoas atuam e se voltam para a sociedade que também reflete a organização desse mesmo trabalho. Isto é, a descoberta da necessidade de organização é uma descoberta para se poder sonhar com a liberdade. Outros aspectos que têm sido levantados em experiências de educação popular são os questionamentos às formas de produção de conhecimento. Normalmente, vêm sendo feitos levantamentos em projetos de pesquisa, especialmente naqueles dirigidos às carências de
129 populações ou de comunidades e, a partir daí, desenvolvem-se análises e ações. Ora, é exatamente esse tipo de diagnostico possível de ser utilizado em práticas de educação popular o qual pode falsear o processo de produção do conhecimento. Um simples diagnóstico reduz a realidade a uma coleta e a uma análise de dados armazenados. Aqueles em relação aos quais estão sendo aplicados os questionários tornam-se meros informantes, descartando-se o que está acontecendo com esses mesmos informantes. Em pesquisas de educação com perspectiva popular, consagra-se a discussão dos próprios critérios de verdade a serem utilizados como referendo ao conhecimento produzido. Em experiências com pequenos produtores rurais, Sales (1987, p. 35) alerta para o critério de verdade que “não poderá estar em coincidências estatísticas ou na lógica do raciocínio. Estará na eficácia do serviço que se quer prestar. Estará, sim, no avanço ou recuo da prática dos interesses que se pretende ver afirmados”. A discussão sobre a produção de conhecimento através da educação popular, por sua vez, não pode tornar-se uma ingênua valorização do que é popular ou vulgar, sacralizando afirmativas pouco sustentáveis, como a de que o povo é que tem toda a verdade. Sabe-se que, dentro da cultura popular, existem muitos elementos advindos da ideologização dominante. Assim é que se faz necessária sua desideologização, tornando possível a descoberta desses elementos. Nos processos educativos, podem-se examinar questões metodológicas ou mesmo possibilidades trazidas pelo material didático de acordo com as últimas conquistas tecnológicas ou até a utilização do material de sucata. Este tem sido exposto como uma discussão em educação e em educação popular, considerando-o popular, muitas vezes, por se entender como se os recursos tecnológicos não fossem uma exigência para qualquer processo educativo, mesmo para uma proposta popular. Para Freire & Guimarães (1982, p. 47), a questão não está na utilização ou não de elementos alternativos (sucata) em procedimentos de educação popular, justificando: “Isso poderia dar uma excelente educação, se a escola realmente fosse capaz, como política, de aproveitar os recursos naturais, aqueles fragmentos de mundo com que as crianças brincam, por exemplo. Seria a partir exatamente da brincadeira delas com esses pedaços de coisas e com essas coisas, que elas poderiam compreender a razão de ser das próprias coisas.” Para ambos educadores, o problema está, na verdade, no abandono que vem sofrendo a escola por parte de autoridades, particularmente, a escola das classes populares. O importante passa a ser, portanto, garantir “o direito de as massas populares dizerem „por que‟, dentro de uma educação promotora, necessariamente, do diálogo. Na busca dos porquês parece estar também a base da construção do conhecimento novo e mais elevado, segundo Van Der Poel (1997). Os seus trabalhos de letramento em áreas rurais de pessoas jovens e adultas mostram que não é suficiente o estar consciente da questão agrária, da relação do trabalhador com o patrão, da questão da mulher ou da pouca rentabilidade da pesca e da agricultura. Destaca-se, também, como necessária a aprendizagem da solução dessas questões, configurando-se uma metodologia para educação popular pautada na seguinte dimensão: “Estes problemas necessitam ser estudados e aprofundados. Os participantes do processo educativo não devem, apenas, saber que o problema existe, mas têm que saber os porquês da questão e como solucioná-la. Assim, necessita-se construir um conhecimento de um nível mais elevado que revele as causas e as soluções” (ibid., p. 118).
130 As discussões se tornam mais complexas a partir da relação da educação com os atuais movimentos sociais.95 Estes, hoje, têm suscitado variadas dúvidas sobre a educação. Pergunta-se como deve ser a educação ou mesmo, em se realizando, quais são as suas finalidades e a quem está servindo. Questiona-se o conteúdo que vem sendo desenvolvido em práticas educativas, bem como as suas formas metodológicas. Em seus estudos sobre a educação e movimentos sociais no campo, Nascimento (1996) tem buscado soluções, mostrando também como estão acontecendo essas relações, as quais só podem ser compreendidas e desenvolvidas sob a ótica da educação popular. Mas, para a aludida pesquisadora, a pedagogia dessa educação popular precisa: “Ultrapassar o conceito de conscientização e de valorização da cultura popular para assumir a noção de conflito, o que implica tensões permanentes, numa prática educativa radical, que se coloca em relação com outros processos sociais, de construção de uma nova cultura e de um projeto de sociedade, de formação da identidade de classe e de construção da cidadania” (ibid., p. 13). Na mesma perspectiva, vários movimentos de igrejas, sobretudo da Igreja Católica, constituíram-se aplicando técnicas e desenvolvendo metodologias no campo da educação popular. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são um exemplo mais marcante nesse sentido. Setores da Igreja Católica, através da orientação de várias dioceses, acentuaram sua preocupação com as camadas desprivilegiadas da sociedade, assumindo formas de resistência, em várias partes do país, contra as formas ditatoriais e policialescas como foram e ainda continuam sendo tratadas as questões dessas classes. As CEBs foram criadas no interior da Igreja Católica e desenvolveram suas atividades à procura de sua própria forma de expressão tanto no campo religioso como no campo da educação comprometida com as classes subalternas da sociedade. Em suas metodologias de trabalho educativo, as CEBs nunca buscaram um modelo preestabelecido. Com isso, têm assumido, durante os anos, diferenciados tipos e formas de atuação. Hoje, sua atuação vem sendo reduzida, mas, para Camargo (1981, p. 69), “...percebese, em linhas gerais, que atravessam transformações que as levam a constantemente reformular seus objetivos, suas prioridades de atuação, seus métodos a partir de circunstâncias impostas pela sociedade abrangente”. Possivelmente, esteja nessa forma de procedimento a vitalidade desse movimento que, mesmo com menor intensidade, se mantém até os dias de hoje. Experiências relatadas no interior do movimento sindical há muito, vêm apontando para a necessidade de mudanças no comportamento político das lideranças e na forma de organização do próprio movimento. Outras temáticas começaram a surgir, tais como: a participação das mulheres nas atividades sindicais, a questão da terra, que é tratada de forma mais enfática, pelos sindicatos rurais, e a questão da assistência à saúde. Ressalte-se que o sistema de organização tradicional dos sindicatos, com presidente, secretário e tesoureiro, por exemplo, passou a ser questionado, abrindo-se a possibilidade de serem adotadas outras formas organizacionais, como o rodízio na direção da entidade ou a direção colegiada. A experiência do Sindicato Rural de Santa Maria da Vitória e Coribe, no Oeste da Bahia, é ilustrativa nesse aspecto: “No nosso Sindicato não existe poder definido do Presidente, Secretário e Tesoureiro, e ninguém fica fixo na sede do Sindicato como Diretor. Quando a gente começou esse trabalho, a gente pensava numa forma diferente do que seria a diretoria. Depois disso, não foi decidido mesmo pela gente, foi decidido pelas reuniões que cada diretor do Sindicato não ficasse efetivamente na sede, como era de costume ficarem os três efetivos, mas sim que cada um deles trabalhasse na sede e trabalhasse na roça,
95
A diversidade dos movimentos sociais tem gerado dificuldades para conceituação de educação popular, segundo alguns pesquisadores como Celso de Rui Beisiegel, Vanilda Paiva, Luiz Eduardo Wanderley e Carlos Rodrigues Brandão, sobretudo, em suas obras das décadas de setenta e oitenta.
131 porque assim a pessoa sente mais todos os problemas do trabalhador” (CEAS, 1985, p. 32). São procedimentos práticos quanto ao agir da política sindical e da sua organização interna que mostram a importância da discussão para a aprendizagem e promoção da democracia interna entre os trabalhadores, exigindo metodologias novas através de uma educação que seja voltada aos seus interesses. Richardson (1983), pesquisando sobre a pobreza rural, desenvolvimento e educação, ressalta o papel da educação rural no Brasil e destaca a necessidade da participação dos camponeses no processo educativo e de uma educação que promova a autoconfiança e um maior relacionamento entre promotores de programas educativos com os próprios camponeses. Talvez, esteja apontando para a necessidade de outras metodologias norteadoras da educação no meio rural. Ainda no que diz respeito à análise de prática pedagógica em educação popular,96 tendo como alunos trabalhadores e trabalhadoras de variadas idades, e tendo como animadores culturais os próprios operários, militantes sindicais e professoras, alerta-se para aspectos desse ensino e, particularmente, da metodologia da educação popular. Uma experiência assim só torna possível uma compreensão, segundo Di Grigorio (1983, p. 101), quando permeada da seguinte metodologia: “O ensino era desenvolvido por meio de temas que expressassem a realidade que aqueles trabalhadores viviam, no seu dia-a-dia e tinha como objetivo fazer com que eles redescobrissem a sua cultura de origem (do povoado de onde procediam), recuperassem o seu passado, refletissem sobre o presente, para questionar as possibilidades futuras.” Há de se perguntar qual é a lição essencial a ser tirada dessas experiências e de tantas outras que estão em andamento em todo o país e em todo o mundo. Parcelas significativas dessas atividades são desconhecidas, mas estão contribuindo para a educação daqueles que vivem à margem da sociedade dominante. Experiências educativas, sejam com operários ou camponeses, com indivíduos ou com sujeitos coletivos manifestam as diferenciadas formas de análise do mundo. São experiências sinalizadoras da exigência de uma educação fomentadora da participação política dos trabalhadores, demonstrando sua recusa ao tradicional modo de organização social, agravado, ainda mais, hoje, tendo em vista a adoção de formas mais elaboradas de exclusão da maioria da sociedade. Dentro desse modelo, a educação é vista não como um direito de todos, por conta da dificuldade de seu acesso, do fracasso gerado no seu interior que atinge, sobretudo, os filhos das classes subalternas. O que se observa é uma escola que culpa o aluno pelo seu fracasso ou mesmo a professora e a família desse aluno. O seu conteúdo se apresenta distante da realidade daqueles alunos, enfatizando muito mais uma ética do cada um por si. As experiências relatadas são portadoras das mais variadas formas de educação que buscam a superação e, às vezes, a suplência da educação formal, sendo entendida como educação popular. Tudo isto só torna mais intensa a questão: Afinal, o que é educação popular? Na trilha do conceito A tentativa de responder a questão – o que é educação popular requer uma abordagem sobre o adjetivo popular, que qualifica esse tipo de educação. Considera-se que o substantivo esteja de certa forma, com o seu significado explícito desde a Paidéia grega. O popular se converte em qualificativo de uma educação peculiar. O termo abarca muito mais complexidade do que explicações. Suscita uma difícil caracterização de fenômenos bastante extensivos, pondo em dificuldade o seu entendimento. Para Beisiegel (1982, p. 50), o 96
Experiência em educação popular levada a efeito junto aos trabalhadores de Borgomisto, bairro da periferia da Grande Milão, na Itália, entre 1970 e 1980.
132 popular, ao qualificar a educação, educação popular – está associado a uma prática qualquer. O referido autor esclarece que se trata, em todos os casos, “de uma educação concebida pelas „elites intelectuais‟ com vistas à preparação da coletividade para a realização de certos fins. É nestas modalidades da „educação do povo‟ que o processo educativo explicita com maior clareza suas dimensões ideológicas e suas funções de controle social”. O seu significado carece de um esclarecimento tanto sobre a natureza quanto sobre a extensão do fenômeno que o qualifica. Contudo, relativiza-se essa aparente impossibilidade teórica quando as atividades em processos educativos estão sendo relacionadas com as estruturas de dominação. O conceito de popular se torna definida, na medida em que aquelas atividades se orientam atuando “junto a segmentos „populares‟ da coletividade, a sua condição de classe e às potencialidades transformadoras inerentes a essa condição” (ibid.; p. 50). A caracterização de popular transcende, dessa maneira, o sentido que se dá quando o termo está relacionado a grupos sociais específicos ou a fenômenos culturais, como a música popular. Essa perspectiva apresenta um movimento que se externa pela relação com certa condição sociocultural. É um tipo de movimento da cultura que expressa um estar no mundo, sendo esta a condição própria das classes subalternas. Nessa compreensão, inexiste a perspectiva necessária de uma alternativa de sociedade. No sentido de condição de classe, o termo popular adquire uma dimensão política e programática, buscando, necessariamente, uma alternativa social. Assim, tem-se, na primeira compreensão, uma expectativa de formas de expressão das classes populares, destacando-se o tempo e o espaço; na segunda, elabora-se um projeto de nova sociedade. Isto facilita a compreensão das observações de Garcia (1982, p. 57) quanto à busca da conceituação de educação popular, situando-a como um terreno pantanoso. Afirma que educação popular tem sido apresentada com várias significações e denominações, trazendo consigo as denominações de educação de adultos, educação de base, educação extraescolar, educação permanente, animação etc. O popular por sua vez, destaca-se como algo que “está sendo promovido pelos intelectuais organicamente vinculados às classes dominantes, tendo em vista transformar situação de classe em situação de massa, do povo, de cidadão comum”. O citado autor admite a compreensão de educação popular vinculada aos interesses do povo e ressalta o fato de, mesmo “historicamente, a educação popular ter sido proposta pelas classes dominantes não impediu que se explicitassem interesses das classes dominantes” (ibid., p. 57). De qualquer maneira, entende-se o popular ou a educação popular como aquela voltada à cultura do povo que está à margem dos processos escolares e da produção, ou excluído das realizações culturais. Várias são as dificuldades que se manifestam na conceituação da educação popular. Gajardo (1994, p. 278) mostra que exemplos e experiências de educação popular, em diversos países, não apresentam um princípio educativo e, muito menos, uma coesão básica no debate sobre as perspectivas desse tipo de educação. A conceituação de educação popular é difusa, sem clareza e sem precisão. Além do mais, persiste uma falta de clareza teórica sobre os fins e as funções de uma educação que esteja voltada aos setores populares. Dessa forma, torna-se possível observar a existência de diferenciadas faces do que vem sendo chamado de educação popular. Essas faces estão condicionadas a cada momento histórico, o qual, por sua vez, depende da intensidade das mobilizações sociais. Fleuri (1988, p. 36) mostra as vertentes desse tipo de educação e identifica a primeira como sendo aquela voltada à ampliação da educação escolar para todos os cidadãos. A educação popular, aliás, passou a ser identificada, nos movimentos sociais, pela busca da escola pública, desde o final do século passado. Outra vertente da educação popular é aquela dirigida às camadas sem escolarização e denominada de educação de adultos, inserindo-se nessa perspectiva as várias campanhas de alfabetização como: a Campanha de Educação de Adolescente e Adultos, iniciada em 1947; a Campanha Nacional de Educação Rural, em 1952; a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, que teve seu auge em 1959 e 1960; a Mobilização Nacional contra o Analfabetismo em 1962; o Programa de Emergência, que durou apenas seis meses; a Cruzada
133 de Ação Básica Cristã,97 que viera ter apoio do governo a partir de 1966; o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) criado em 1967, expandindo-se a partir de 1970. Mais recentemente, na década de noventa, destaca-se a tentativa de implantação do Plano Decenal de Educação, visando acabar, principalmente, com o analfabetismo no país, no prazo de dez anos, mas que já está esquecido pelos governantes. Várias dessas campanhas de educação de adultos tiveram apoio da UNESCO (United Nations Education Social and Cultural Organization) e, na década de sessenta, da USAID (United States Agency International Development). Essas campanhas estavam também voltadas à perspectiva de promoção e aceitação popular no sistema político-econômico imposto, especialmente, durante a ditadura. Comi isso, cria-se um meio institucional de veiculação de uma possibilidade da educação popular. A terceira vertente é a educação popular difundida pelos movimentos sociais, considerada como educação autenticamente popular, sendo constituída pelo conjunto de práticas educativas desenvolvidas pelas próprias classes populares (ibid., p. 39). Têm-se como exemplos, as escolas criadas e dirigidas por socialistas e anarquistas, no início do século, bem como aquelas surgidas com os movimentos sociais na década de sessenta, revigoradas na segunda metade da década de setenta, envolvendo entidades, organizações não governamentais e assessorias aos movimentos sociais. Historicamente, pode-se constatar a existência de, pelo menos, três movimentos distintos que se entrecruzam no campo da educação popular. O primeiro expressa as lutas de intelectuais e educadores pela educação popular básica para todos os indivíduos da sociedade o segundo evidencia-se através das campanhas desenvolvidas pela institucionalidade, através do Estado, sobretudo; o terceiro está marcado pela criação e direção das escolas e das práticas educativas escolares da formação de quadros entre os operários. Cada vertente educativa traz consigo uma concepção de educação popular. Para Wanderley d(1985, p. 26), as diferenciadas práticas educativas junto aos setores populares têm manifestado duas marcantes possibilidades de realização da educação popular. São possibilidades antagônicas, considerando-se o seu direcionamento também pelo Estado, ao buscar a oferta da educação escolar àqueles excluídos prematuramente da escola. São iniciativas da classe dominante, considerando ser esta mesma classe a definidora das políticas estatais, visando à sustentação do sistema capitalista. Não se pode esquecer, contudo, que muitas das iniciativas do Estado brasileiro mudaram e com isso, também, a compreensão de educação popular, que passou a excluir as realizações sistemáticas do Estado no campo do ensino. Do outro lado, estão as iniciativas educacionais patrocinadas por grupos e instituições que dão apoio aos movimentos sociais, buscando alternativas de sociedade. Trata-se de uma modalidade de educação popular que é produzida pelas classes populares e para as classes populares, sendo guiadas pelos seus interesses de classe. Para a sua efetivação, dá-se preferência aos processos informais em que a vida do dia a dia dessas comunidades está presente. Educação popular como um trabalho pedagógico voltado à construção de uma sociedade cujo poder esteja sendo encaminhado para as mãos dos responsáveis pela produção social – os trabalhadores. Ao analisar a sociedade capitalista, Fleuri (1988, p. 42) afirma o seguinte: “A educação popular, propriamente dita, opõe-se às diferentes formas de intervenção educativa realizadas pelas agências da classe dominante junto às classes „populares‟. Constitui-se como o conjunto de processos educativos desenvolvidos pelas classes „populares‟ em suas lutas pela construção de sua hegemonia e de sua resistência à exploração e à dominação capitalista.” Por sua vez, Brandão (1984, p. 172) busca construir o que ele denomina de trabalho alternativo da educação popular. Nesse sentido, compreende-se que esse trabalho é um tipo de 97
Para maior conhecimento sobre a ação educativa da Cruzada ABC, ver: PRESTES, Emília Maria da Trindade. A dimensão política da educação de adultos: história da Cruzada de Ação Básica Cristã – ABC. Dimensão de Mestrado em Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação Popular – UFPB. João Pessoa, 1984.
134 educação voltado às classes populares ou classes subalternas. Caracteriza-se, segundo o autor, não em ser ela “oferta a sujeito, categorias, grupos ou classes populares, mas em realizar-se como um trabalho de mediação entre classes sociais através da educação”. Acrescenta que “este tipo de educação serve, independente de sua origem de classe e o seu horizonte político, a um projeto de mudança social”. Esse processo pode apontar para projetos políticos variados, desde o modelo de democracia formal liberal, passando por um projeto de democracia participativa e até mesmo para um projeto de sociedade socialista. O autor destaca, ainda, que, nesse tipo de trabalho educativo, não há uma forma linear e única para o seu desenvolvimento. A realidade enuncia a coexistência de modelos estabelecidos e de modelos emergentes. É um processo educativo que busca a superação de dualidades do tipo: sociedade civil versus Estado; modelo oficial versus modelo alternativo; educação de adultos versus educação popular e outras oposições binárias. O importante mesmo é o discernimento a respeito de qual projeto de mudanças está sendo desenvolvido por determinados setores, seja no âmbito estatal ou no âmbito da sociedade civil. Para o autor (ibid., p. 179), a educação das classes subalternas abrange tendências que buscam mudanças modernizadoras ou revolucionárias. A segunda subscreve possibilidades variadas de acordo com a conjuntura. Sendo assim, setores do Estado ou da sociedade civil podem aproximar-se de um modelo ou de outro. Aliás, não há modelos puros do ponto de vista conceitual ou de práticas educativas. Bezerra (1977-1978), ao analisar as atividades em educação popular, entende que essas práticas se desenvolvem do particular para o universal; do individual para o coletivo; do sensorial para o concreto; do imediato para o mediato; do percebido para o não percebido; enfim, do relacionado para o não relacionado. Puiggrós (1994, p. 24), todavia, destaca que a história da educação popular na América Latina encontra dificuldades paradigmáticas em torno dos conceitos de classe ou de povo que têm permeado suas práticas, embora buscando também uma alternativa conceitual. Nesse sentido, externa uma possibilidade de educação com o povo, educação popular ou educação libertadora, como “uma educação que quer ser autônoma e produtora de autonomia de classe, dialogal, comprometida, participante, crítica, conscientizadora, livre e libertadora”. Isso mostra que têm havido várias tentativas de conceituação e de organização em tipologias, por parte dos pesquisadores, no campo da educação popular.98 Pode-se salientar, entretanto, a tipologia desenvolvida por Brandão (1994, p. 43), que sugere três alternativas de modelos de educação com as classes populares: “1) Modelos de educação produtores de „benefícios do saber escolar‟ (alfabetização, supletivo etc.), associados direta ou indiretamente a agências mediadoras de controle do trabalho de organização popular. 2) Modelos de educação associados direta ou indiretamente ao trabalho político dos movimentos populares de libertação social através da construção histórica de uma nova hegemonia.
98
Destaquem-se: Timothy Ireland, desenvolvendo pesquisa no campo da Educação de adultos, n a Paraíba; Etore Gelpi, buscando as novas abordagens paradigmáticas para as categorias teóricas como Trabalho, diante dos processos globais em desenvolvimento na Educação de Adultos, na UNESCO; Michel Seguier, que realiza em sua pesquisa a crítica à institucionalidade, analisando também a criatividade coletiva; Francisco Vio Grossi, pesquisador da Educação de Adultos na América Latina; Vanilda Paiva, pesquisando políticas em Educação de Jovens e Adultos, no Rio de Janeiro; Celso Rui Beisiegel, pesquisando o papel do Estado nas políticas de educação popular, em São Paulo; Alfonso Lizarzaburu, pesquisador da formação de profissionais para os processos de alfabetização; Afonso Celso Scocuglia, pesquisador no campo da história da educação popular, na Paraíba; Olscar Jara, que vem contribuindo também à teoria da educação popular, a partir de suas experiências no Peru e Costa Rica; João Francisco de Sousa, em Pernambuco; Eymard Mourão Vasconcelos, pesquisando a temática educação popular e saúde, na Paraíba; Luiz Eduardo Wanderley que tem apresentado uma tipologia em três orientações: educação popular com orientação de integração, nacional-populista e de libertação; Sérgio Haddad, além de outros.
135 3) Modelos de educação tornados expressão de todo um sistema de trabalho educacional em sociedades transformadas através do trabalho político das classes populares.” Convém evidenciar, no estudo de Brandão (1977), a divisão que apresenta de educação popular em formas primitivas e formas atuais. Como formas primitivas destaca as campanhas de alfabetização, tanto aquelas filantrópicas como as confessionais, e as campanhas de promoção oficial. Considera também o ensino complementar de emergência, com ênfase na educação básica, no supletivo e nos cursos de madureza, nos ginásios de pobres, além dos cursos profissionalizantes, destacando aqueles para a formação de mão de obra operária. Como formas atuais salienta a educação fundamental, na América Latina, no desenvolvimento comunitário e a educação fundamental no desenvolvimento socioeconômico. Nas formas atuais, está contemplada, ainda, a educação popular, caracterizando-se como educação de base, bem como a educação popular do sistema Paulo Freire, que expressa a superação da educação bancária, na compreensão desenvolvida na Pedagogia do Oprimido. Uma aproximação conceitual A busca pelo conceito de educação popular remete, inicialmente, ao campo de trabalho específico que constitui esse tipo de educação. O campo específico é o simbólico, o cultural. A cultura, considerada como fruto da visão de mundo de um grupo ou sociedade ou como seu modo de vida, ou ainda como a produção de transmissão dos significados que um grupo elabora para sua intervenção na realidade. Através do simbólico, esses grupos constroem suas identidades. É um processo decorrente do relacionamento do ser humano com a natureza. Esse processo possibilita não só a comunicação com a própria natureza, como também descobre as identidades de objetos e sujeitos, além das diferenças entre os próprios humanos. Nesse relacionamento com a natureza, o humano busca a sua auto realização, à medida que colhe experiências novas e, assim, apresenta as condições para responder criativamente aos desafios do ambiente. Ele desenvolve instrumentos ainda não existentes, condiciona-os e dá-lhes uma finalidade. Essa relação, segundo Pinto (1979, p. 123), expressa a cultura, que é assim entendida: “O processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa-as de efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em ideias as imagens e lembranças, a princípio coladas as realidades sensíveis, e depois generalizadas, desse contato inventivo com o mundo natural.” Convém destacar que esse é um processo histórico constituído por efeito da relação produtiva que o homem efetua sobre a realidade que o circunda. O humano produz e é também o consumidor. A cultura torna-se um produto do processo produtivo, assumindo uma dupla natureza, convertendo-se em bem de consumo, enquanto objetivada em coisas, porém, subjetivada através das ideias e, em bem de produção “no sentido em que a capacidade, crescentemente adquirida, de subjugação da realidade pelas ideias que a representam, constitui a origem de nova capacidade humana, a de idealizar em prospecção os possíveis efeitos de atos a realizar” (ibid., p. 124). Os entes concretos, frutos desse movimento – ações, ideias e novas ações – que constituem o trabalho humano, são os entes culturais. Em consequência, toda a produção humana é fruto e expressão de sua cultura. Pode-se, então, ver que as atividades no campo da educação e as da educação popular espraiam-se no espectro da cultura, como parte dela, sendo prisioneiras necessárias da intervenção das ideias sobre a natureza e da produção das mesmas, tendo como anterioridade da natureza concreta às ideias. Este é um movimento teórico que emerge a partir das práticas educativas. De forma singular, essas práticas em educação popular, presentes no mundo complexo da cultura, estão permeadas de conhecimento científico, saberes, símbolos, criações artísticas e técnicas, fabricação de objetos, máquinas e todos os possíveis artefatos gerados pela inteligência humana, na tentativa de promover a explicação tão ampla que lhe é colocada diante
136 de tal diversidade da produção humana, em particular, da produção daqueles que vivem de sua força de trabalho. De modo geral, os produtos dessa diversidade estão fora da posse e da utilização dos saberes e conhecimentos gerados da produção cultural humana, da qual a educação faz parte. Educação relacionada e orientada ao contexto popular99 que, em seu sentido amplo, caracteriza o povo que dele se origina e a ele pertence. Povo que representa as camadas mais baixas, economicamente, da sociedade – os mais pobres , os trabalhadores do campo e da cidade, os explorados, os oprimidos (Paulo Freire). A educação voltada ao popular insere-se, dessa maneira, no marco da produção, podendo utilizar-se desses conhecimentos, em mais um elemento de socialização dos produtos culturais, destacando, assim, não só a sua produção, como também a sua comercialização, elementos essenciais para a afirmação de identidade e de resistência cultural das classes populares.100 Um sistema educativo As experiências em educação popular e as formulações teóricas enunciadas asseguram a possibilidade de se apresentar educação popular como um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionados entre si e ordenados segundo princípios e experiências que, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Mesmo expressando uma unidade, contudo, é um sistema aberto que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, a educação e o popular e vice-versa. A educação, presente na cultura, é entendida como um processo de formação do humano no seu tempo, enquanto se faz ser humano, consistindo em um fato histórico. É um fato social, tendo em vista que esse processo, enquanto se constrói na individualidade de cada humano, está ocorrendo, ao mesmo tempo, entre humanos. Ao relacionar-se com toda a sociedade e sendo esta constituída de classes, entende-se, ainda, que esse processo é diferenciado entre os humanos, refletindo as contradições geradas dessa situação social. Assim é que esse processo educativo e cultural se desenvolve e está dependente do processo econômico da sociedade que possibilita a realização da educação, condicionando os meios materiais necessários para a execução do trabalho educacional, definindo sua extensão e profundidade. As atividades realizadas no processo educativo se constituem como uma modalidade de trabalho – trabalho social , considerando-se que a educação visa à formação dos membros da sociedade para desenvolverem outras ou novas atividades também sociais. Como trabalho social, a ação desse trabalho é, deliberadamente, criadora de um produto. Constitui-se a partir da realidade humana e abre a possibilidade de se criar um mundo, também, mais humano. É pelo trabalho social que se vai transformando a natureza e criando cultura. É esta a dimensão fundamental desse tipo de educação como trabalho social, isto é, atividades educativas produtoras de cultura, buscando o conhecimento do mundo onde o humano atua. Dessa forma, expressam-se atividades concretas, cujo desempenho depende de cada situação histórica, além disso, efetuando-se em uma sociedade permeada de contradições de classe, a educação popular também se expressará de forma contraditória, trazendo consigo a conservação e a criação do novo saber, de um novo conhecimento, a conservação e a crítica da existência. A filosofia Educação popular se apresenta, assim, como um sistema aberto de trabalho educacional detentor de uma filosofia que, por sua vez, pressupõe uma teoria de conhecimento, metodologias dessa produção de conhecimento, conteúdos e técnicas de avaliação, sustentada 99
Ver: PINTO, João Bosco Guedes. Reflexões sobre as estratégias educativas do Estado e a política de educação popular. In: Perspectivas e dilemas da educação popular. Introdução e Organização de Vanilda Paiva. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. 100 Classes populares – Com base nas relações que as constituem, elas significam a classe trabalhadora do campo e da cidade. Incluem ainda as suas frações de classes, estando empregadas ou desempregadas, absorvendo até os pequenos proprietários de terra.
137 por uma base política. Enquanto um sistema aberto, é capaz de relacionar a educação com o popular; a escola ou todo o ambiente de aprendizagem com a sociedade. Ao mesmo tempo, nutre-se da diferenciação política contida na opção pela dimensão do popular. Ao se constituir em uma unidade – teoria e prática social – expressa, todavia, uma relação e uma diferença entre teoria e prática. Educação popular é um sistema aberto de trabalho educacional que, ao se realizar, configura a dimensão de prática social. Um sistema que pode efetivar-se através da instituição estatal a partir de modelos de educação com caráter de suplência (alfabetização, ensino supletivo etc.), através de movimentos sociais que buscam a construção histórica de nova hegemonia ou no âmbito das sociedades que vivenciam ou vivenciaram modelos de sociedade alternativos ao modelo dominante. Como um sistema aberto, a educação popular pode efetivar-se tanto através da escola – o ambiente tradicional – quanto através da organização da educação formal ou informal. A educação popular, como um sistema aberto de trabalho educativo, é depositária de uma filosofia – expressão da atividade da razão humana sobre as práticas educativas em desenvolvimento – defrontando-se com a totalidade do real. É detentora de um processo de investigação sobre os princípios norteadores dessas práticas, sobre a sua fundamentação e justificativa das ações humanas recorrentes para o exercício dessas práticas. Educação crítica que se volta à investigação dos pressupostos da educação e da própria educação popular, à consciência dos limites tanto dos pressupostos quanto do trabalho educativo, aos entes gerados dessas práticas, sobretudo, ao conhecimento e à cultura. A educação popular, como uma crítica, nutre-se do trabalho educativo em movimento, que se processa através da luta dos contrários, inerentes à sociedade. A categoria teórica – movimento – sustenta essa perspectiva de educação, pois, tal como Heráclito101 já constatara, “tudo se faz por contrastes; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (fr. 8). Uma filosofia que procura pensar as contradições da realidade, o modo de compreendê-las, como é vista em sua essência contraditória e em permanente transformação. A teoria do conhecimento A educação popular, ao conter tal perspectiva filosófica, expressa-se como um processo de produção de conhecimento, sendo este uma aproximação crítica da realidade. Essa aproximação, por sua vez, a partir da busca de sua estrutura e processo, torna-se possível através de uma visão de totalidade determinada, a qual só se dará através da dialética, possibilitando uma prática educativa renovadora. Nesse sentido, Freire (1980, p. 40) mostra que “também faz história quando, ao surgirem os n ovos temas, ao se buscarem valores inéditos, o homem sugere uma nova formulação, uma mudança na maneira de atuar, nas atitudes e nos comportamentos”. Ao se constituir como uma crítica, o trabalho intelectivo na educação popular, debruçando-se sobre o ente de desejo de ensino-aprendizagem ou de conhecimento, adquire uma dimensão de negatividade, enquanto procura mostrar que, mesmo o que está estabelecido pode não ser. Por outro lado, apresenta, ao mesmo tempo, a dimensão da positividade ao apontar que se algo está estabelecido, pode adquirir outra conformação distinta daquela, abrindo a expectativa de mudança. Expressa-se, dessa maneira uma teoria de conhecimento que tem, na prática, o fundamento e o limite do conhecimento e do objeto humanizado. Este, como fruto da ação humana, é objeto de conhecimento. Contudo, é necessário destacar-se que, para além desse fundamento e desse limite, a educação popular reconhece a existência da natureza exterior que ainda não se tornou objeto da atividade prática humana. Enquanto esta se mantiver em sua dimensão natural, sem a intervenção da prática humana, permanecerá como uma coisa em si. Esta pode apresentar-se como em condições de possibilidade de se transformar em objeto da práxis humana e, dessa maneira, em objeto de conhecimento. Mesmo existindo essa natureza sem a práxis humana, anterior à história, o que se constitui como um processo de trabalho educativo humano – educação popular – é aquele que 101
Heráclito – pensador grego, pré-socrático, de cuja obra restaram apenas fragmentos.
138 se dá em e pela prática do indivíduo, enquanto humaniza a natureza e naturaliza a dimensão de ser humano. Nesse sentido, Vázquez (1977, p. 155) assevera: “O conhecimento só existe na prática, e é conhecimento de objetos nela integrados, de uma realidade que já perdeu, ou está em vias de perder, sua existência imediata, para ser uma realidade mediada pelo homem”. A educação popular se externa, portanto, como um processo de produção de conhecimento. Assume a temporalidade desse processo, considerando a práxis – atividade real, material, adequada a finalidades – o critério de verdade para esse conhecimento. Sendo a práxis condicionada historicamente, assim também é o conhecimento. Nessa teoria de conhecimento, o ponto de partida que abre a possibilidade para o conhecimento é a realidade concreta. A verdade objetiva, contudo, buscada através dessa teoria, é também um problema de ordem prática. A educação popular busca um exercício verdadeiro da ação educativa na própria prática educativa, pois é aí, na prática, que se pode demonstrar a verdade, a realidade e o poder, o caráter terreno de pensamento humano. Ainda segundo o referido autor, “para mostrar sua verdade, tem que sair de si mesmo, plasmar-se, adquirir corpo na própria realidade, sob a forma de atividade prática” (ibid., p. 156). Contudo, essa teoria de conhecimento, constituinte da educação popular, mesmo reconhecendo na prática o critério de verdade para o seu conhecimento, nem por isso se mantém fechada, pretendendo conter o único conhecimento. Mesmo na possibilidade de uma teoria se confirmar através da prática, nem por isso, pode-se aceitar, de forma dogmática, que esta é a expressão final da verdade daquele conhecimento. Mesmo que os objetivos planejados sejam atingidos, nem por isso pode ser atestada como verdade única e acabada. A verdade do conhecimento não pode estar prisioneira da adequação à aplicação exitosa ou fracassada. O êxito ou o fracasso não constituem, necessariamente, a verdade. Portanto, na educação popular a prática não fala por si mesma. Assim, qualquer fato prático carece de análise e interpretação, tendo em vista que este não se revela a partir de uma mera observação imediata – uma apreensão intuitiva. O critério de verdade está na prática, mas só após uma interação da abstração ou da teoria sobre essa prática mesma.
A metodologia de produção do conhecimento A teoria de conhecimento contida na educação popular expressa uma metodologia de produção do conhecimento que traz o centro do processo educativo a categoria teórico-prática – o diálogo, sendo este traduzido não no sentido restrito de busca de consensos ou conciliações para se evitar disputas ou confrontos ideológicos de classes. Trata-se do diálogo como exercício concreto de se poder aceitar o risco de não prevalecer o seu ponto de vista ou opinião. O diálogo é aqui entendido como expressão da possibilidade da existência de outro patamar comum, dependente de outro registro do ser humano que torne possível a tomada de um caminho com características que se aproximem de universalidade ou de um caminho da verdade. Um diálogo que possibilite, por exemplo, ao saber técnico (conhecimento científico, não sendo confundido com o saber dominante), uma relação com o saber popular não de forma unidirecional, vertical e autoritária, mas sim horizontal, bidirecional e participativa. Pelo dialogo é que se pode tornar mais fácil uma prática de superação de valores e atitudes contidos no conhecimento e na educação dominantes que atingem a formação de todos. Pelo diálogo crítico também busca-se a superação de metodologias, presentes inclusive em educação popular, que expressam a mistificação do conhecimento e suas metodologias, prestando-se, apenas, para a sua própria reprodução. Em não fundando uma teoria que contribua para o povo avançar, vem justificar a questão levantada por teoria que contribua para o povo avançar, vem justificar a questão levantada por Kulesza (1998, p. 5): “Não estaria simplesmente instrumentalizando o povo para que ele se conforme melhor ao sistema, apagando qualquer esperança que possa ter havido de emancipação”. Com ênfase no diálogo com as dimensões relacionais colocadas, exigem-se procedimentos educativos que garantam aos trabalhadores, conforme mostra Manfredi (1986, p. 49):
139 “1) a possibilidade de serem protagonistas do processo de sistematização, reorganização e reelaboração do conhecimento, e que possam caminhar para estabelecer uma nova síntese entre o chamado conhecimento científico e o saber que provém de sua própria prática coletiva de classe; 2) a possibilidade para desenvolverem as seguintes habilidades e atitudes: orientar, dirigir e organizar debates e reuniões; sistematizar e expressar ideias e opiniões; reunir, criticar e sintetizar informações; perceberem a importância e a necessidade da organização e da troca de informações entre os próprios trabalhadores.” Através do diálogo, é possível, inclusive, exercitar-se no próprio saber perguntar, a partir da realidade cotidiana. Segundo Freire & Faudez (1985, p. 48), é na realidade que estão as perguntas essenciais, sendo este o caminho para o conhecimento. Perguntas que buscam um processo educativo transformador dos próprios saberes e do ser humano, ao vislumbrar a transformação da realidade concreta, isto é, aquela constituída de fatos, de dados, acrescida das percepções apresentadas pela população, povo ou comunidade, uma relação dialética entre subjetividade e objetividade. Um processo que significa por em prática a teoria do conhecimento apresentada, tendo na metodologia – ação educativa em si – momentos de criação e recriação do conhecimento. Há de se perguntar: (Como se desenvolve tal processo dialético que ordena o movimento da abstração à realidade concreta?) Ao estudar o método de análise da economia política, Marx (1978) descobre que esse método inicia-se sempre pelo real e pelo concreto, parecendo esta a forma correta. No estudo de um país, parece ser correto iniciar-se pela população, posto que esta se constitui na base e no sujeito social da produção. Porém, uma observação mais atenta, segundo ele, mostra que a população, mesmo sendo tão concreta, é, na verdade, uma abstração. Por conseguinte, esse método é falso. O próprio Marx (ibid., p. 116) esclarece: “A população é uma abstração, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Por seu lado, estas classes são uma palavra vazia de sentido, se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. Chegados a este ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas.” Este é o método dialético que se apresenta útil como realização de uma metodologia de produção de conhecimento em educação popular. Assim é que o pensamento pode mover-se por dentro de suas partes. No universo, apreender as suas interconexões e o conjunto no qual elas se fundem. Contudo, é em Limoeiro Cardoso (1990, p. 19) que se encontra um acompanhamento mais explícito sobre o desenvolvimento dessa metodologia de busca de conhecimento, que é subdividido em seis partes: “A primeira trata do método em geral e indica um movimento que é exclusivamente teórico, passando-se totalmente no abstrato. A segunda afirma a anterioridade do concreto. A terceira propõe e resolve uma relação específica entre o real e o teórico, desdobrando as relações entre as categorias mais simples e as mais concretas. A quarta precisa a condição da produção das abstrações mais gerais a partir do desenvolvimento concreto mais rico. A quinta indica que é no último modo de produção estabelecido, porque o mais complexo, rico e variado, que se torna possível a inteligibilidade não só dele mesmo, como também de todas as sociedades anteriores. A sexta retorna ao método, estabelecendo que a ordem das categorias deve seguir
140 uma hierarquia teórica, em função da sua importância correlativa dentro da sociedade mais complexas, base das abstrações mais gerais e categorias mais simples, e não em função do seu aparecimento.” Trata-se de uma apresentação metodológica dialetiza entre a abstração e a prática, tendo na história das contradições das sociedades o motor para se refazer o conhecimento estabelecido e a busca de outras possibilidades. Jara (1994, p. 102) entende que a teorização não é qualquer processo de reflexão. Destaca, como fundamental, a realização ordenada da abstração para se poder chegar às causas internas, estruturais e históricas de uma realidade, apercebendo-se de sua totalidade, através de uma visão crítica e criadora da prática social. Ademais, a atividade teórica, em educação popular, procura proporcionar o exercício a amplos setores populares,102 no sentido de adquirirem a capacidade de pensar por si mesmos. No exercício do dia a dia, podem ser encontrados na metodologia103 da pesquisa-ação os elementos dessa perspectiva de produção de conhecimentos, em que este é compreendido como um produto social que, portanto, está em permanente movimento de mudança, na medida em que a realidade concreta é dinâmica. O problema a ser investigado nessa metodologia tem origem na própria comunidade que o define, analisa e resolve. O objetivo último da pesquisa é, através da busca da mudança da realidade, contribuir para a melhoria da situação de vida das pessoas e coletivamente da comunidade. A comunidade é partícipe de todas as etapas da pesquisa, sendo um processo que auxilia na descoberta das forças sociais e das suas limitações quanto à busca de mudanças. Dentro dessa justificativa, o pesquisador se transforma em aprendiz e, ao mesmo tempo, participante do processo, assumindo compromissos não apenas individuais, mas sobretudo sociais, ao se tornar tanto um observador crítico como um participante ativo do processo. Por outro lado, este processo metodológico de produção de conhecimento – a pesquisa-ação104 – busca, de forma incessante, a superação da dualidade existente entre conhecimento e ação, estabelecendo a prática de que é necessário conhecer para atuar socialmente, condicionando o conhecimento a um produto social gerado da práxis humana. O conteúdo e a avaliação Esse produto social, por sua vez, é caracterizado através de um conteúdo que precisa apresentar elementos para a necessária avaliação do processo que se desenvolve. Tal conteúdo é originário de uma realidade marcada pela existência de classes sociais, entendidas como grupos que se definem em decorrência das relações de propriedade com os meios de produção, isto é, proprietários e não-proprietários, além da identificação através dos assemelhados modos de pensar e de agir. As classes sociais se estabelecem à medida que tomam consciência dessa situação de diferenciação – consciência de classe. Hoje, todavia, em decorrência da complexidade social crescente, a condição de classe se apresenta com maior amplitude, exigindo maior abertura conceitual em torno de classe social. Nesse sentido, pode abranger os trabalhadores improdutivos – os que estão inseridos no mercado de trabalho sem gerarem, 102
Setores populares. É uma referência ao campesinato, ao proletariado industrial, às classes médias empobrecidas, aos conglomerados marginais urbanos, aos vários protagonistas em movimentos sociais que lutam por demandas específicas, transcendendo as dimensões classistas, tais como, gênero, idade, etnia, ecologia e outros. Ver: HERNANDEZ, Isabel & FISCHMANN, Gustavo. Educación popular y reestruturación econômico-política. In: Educação Popular: Utopia Latino-americana. Moacir Gadotti e Carlos Alberto Torres (orgs.) São Paulo: Edusp, 1994. 103 Vários autores têm abordado questões de metodologia, destacando-se Ivandro da Costa Sales, desenvolvendo, hoje, pesquisa na temática – Universidade e Movimentos Sociais; Michel Thiollent; Orlando Fals Borda; Paulo Freire, Rosiska Darcy de Oliveira; Miguel Darcy de Oliveira; Carlos Rodrigues Brandão e outros. 104 Nesse campo, se coloca a Pesquisa Participante com muitas coisas em comum à Metodologia da Pesquisa – Ação, como por exemplo, a mesma crítica à pesquisa tradicional ou toda base teórica pautada na mudança.
141 necessariamente, mais-valia – os subempregados e desocupados compondo, contudo, uma classe social subalterna. A condição de subalternidade desses segmentos sociais insere-se na relação com os meios de produção, não-proprietários desses meios, determinando outras formas de dominação, como a política e ideológica, no conjunto das relações de poder. Com esta perspectiva, Cardoso (1995, p. 62) inclui no âmbito das classes subalternas: “Todos os segmentos da sociedade capitalista que não possuem os meios de produção e estão, portanto, sob o domínio econômico, político e ideológico das classes que representam o capital no conjunto das relações de produção e das relações de poder: assalariados dos setores caracterizados como primário, secundário e terciários (elementos dos setores produtivo e improdutivo); os que exercem atividade manual e os que exercem atividade não-manual e intelectual. Incluem-se, ainda, os segmentos não-incorporados ao mercado de trabalho que são os trabalhadores em potencial, inclusive o exército industrial de reserva, que é um segmentos extremamente funcional no capitalismo.” A condição de subalternidade, alcança dimensões mais amplas. Passa a se caracterizar, não só através das relações de exploração, como também da dominação, da exclusão econômica e da política, resultantes da situação de não-proprietários dos meios de produção. O conteúdo dessa realidade compõe uma educação para esses setores subalternos – uma educação de subalternos – equivalendo à educação de setores populares da sociedade que passa a ter variadas modalidades desse trabalho pedagógico, pois está dirigido também aos moradores de periferias de cidades, aos camponeses e a todas as outras categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto, incluindo a educação indígena, não seriada. Vê-se, portanto, que é uma realidade caracterizada não pela individualidade, mas pelo coletivo, mesmo que a dimensão do indivíduo tenha destaque e seja de conteúdo necessariamente social, relacionando-se com uma aprendizagem em processo. A definição desses conteúdos nos movimentos populares permite pautar-se por reivindicações e necessidades desses setores, gerando um conteúdo associado ao equilíbrio entre as direções políticas existentes nesses movimentos e o incentivo à criatividade popular, ao tornar possível uma educação capaz de permitir a socialização da linguagem e da cultura popular, transformando-os em comunicação social. A educação popular, através desses conteúdos, faz-se útil ao estudo dos direitos básicos do povo, à negociação em igualdade de condições e, sobretudo, ao exercício para a manutenção das lutas. São conteúdos formulados em processos educativos necessariamente planejados, eliminando toda forma espontânea ou em aguardo a inspirações duvidosas de algum elemento surpresa. Esses conteúdos, por sua vez, determinam-se, não aprioristicamente, mas numa relação de dependência com objetivos submetidos à apreciação coletiva. São provenientes de interesses localizados, mas sem perder a perspectiva mais geral do coletivo ou da classe. São conteúdos básicos, planejados e definidos, contudo, mantendo certa flexibilidade no seu manejo através das técnicas educativas, considerando a existência de um conjunto de conhecimento universal que os setores populares e o indivíduo não podem deixar de conhecer, devido a sua utilidade e importância para os seus próprios objetivos estratégicos políticos. Assim, também, não se pode ficar preso à teorização da prática, submergindo-se em um empirismo vulgar. Faz-se fundamental a reflexão teórica mais ampla na direção de universalidade desse conhecimento. Não se trata, portanto, de mera troca de saberes (científico e popular de resistência), mas de uma aprendizagem em que se processa e se produz conhecimento, numa relação entre os distintos tipos de conhecimentos. Isto caracteriza a total abertura do saber popular em relação aos demais saberes, enquanto se professa e se exerce o diálogo, assimilando também conhecimentos científicos úteis ao processo de conscientização e repassando-se aos demais o saber popular. Para a avaliação dos conteúdos e dos processos em educação popular, recorre-se à análise da aplicação da concepção metodológica dialética assumida, passando pela origem (realidade) dos problemas em estudos; recorre-se também à maneira como se está desenvolvendo a consciência crítica dos participantes desse processo educativo, bem como ao
142 tempo em que estão se processando as atividades. A avaliação dos conteúdos da educação popular conduz à análise organizativa de todo processo educativo em desenvolvimento. A teoria política Esse processo educativo – um sistema educativo – desenvolve-se com bases em uma teoria política. Em várias experiências em educação popular, contudo, tem-se tentado esconder a dimensão política que a caracteriza, tentando-se veicular essas práticas como despolitizadas, sobretudo aquelas que se voltam às políticas da conservação. Todavia, é exigência da educação popular expressar-se pela sua metodologia, teoria de conhecimento, conteúdo, avaliação e filosofia como uma prática política. Torna-se prática política na medida em que expressa uma ação coletiva, não se esgotando em possíveis relações entre indivíduos ou pessoas, como a relação entre educador e educando. É uma relação entre todos os participantes das ações educativas com o mundo – relações sociais – objetivando a organização do povo. É prática política, enquanto prática educativa em que educador e educando investigam a realidade. Nela, destacam-se processos econômicos e políticos mais gerais, promovendo, coletivamente, as mudanças de conteúdos dessa sua investigação, conteúdos de consciência, além da conduta dos indivíduos envolvidos nesse processo. Como prática política, busca conhecer a realidade, apresentando-se com objetivo explícito de transformação da realidade, em que os processos de conhecimento em desenvolvimento devem estar sob o controle do povo. O sujeito em educação popular não é simplesmente o sujeito enquanto indivíduo, mas um sujeito coletivo, ou seja, as classes populares. Assim, educação popular, como processo educativo de desenvolvendo social, busca o crescimento da consciência dessas classes. Mas, como se pode avaliar esse fortalecimento ou avanço da consciência de classe? Segundo Jara (1994, p. 97), a consciência de classe não é aferida pelo nível escolar e muito menos pela capacidade das pessoas de memorizarem conceitos revolucionários. Não se afere pela clareza política individual de membros das classes populares. Ela se expressa como uma consciência social, coletiva, manifestada pelos mecanismos organizativos desenvolvidos pelas classes sociais, como expressão concreta e consciente da prática que realizam. Não há consciência de classe que não seja explicitada através de uma prática organizada e de classe. A consciência de classe ainda segundo o referido pesquisador, pressupõe relações e inter-relações dialéticas de fatores tanto estruturais como superestruturais, sejam objetivos ou subjetivos. Ela não ocorre, por exemplo, apenas no campo pedagógico ou mesmo ideológico, despojada de bases materiais, mas através das relações e implicações dessas bases políticas e materiais. Não há, portanto, consciência de classe deslocada das relações com a realidade, que traz os conflitos sobre as verdades políticas, os desejos, o poder e sobre o próprio pensamento. Daí, pode-se destacar a existência de uma filosofia em educação popular, nada utilitarista, mas tendo a ver com aquilo que existe de concreto, consistindo nisso o seu caráter tanto abstrato como ideológico. É a partir dessas relações que se torna expressiva a constituição das relações econômicas que formam a estrutura econômica da sociedade e sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política. Essa superestrutura vai corresponder a formas de consciência social determinadas. Apresenta, por outro lado, uma diferenciação marcante entre a transformação material das condições econômicas de produção e as formas jurídicas, políticas, religiosas ou filosóficas. Essas são as formas ideológicas105 em que se expressam os conflitos e onde o homem toma consciência dos mesmos, buscando a sua superação. LIMOEIRO CARDOSO (1978, p. 42) esclarece que “as formas de consciência social existem no jurídico, no político e nos demais aspectos (religiosos, artísticos, filosóficos) que compõem a superestrutura”. É fundamental, portanto, na ideologia da educação popular se orienta no sentido de desmascarar esse tipo de análise, apresentando a ideologia do por que, a ideologia das classes subalternas, baseada, sobretudo, no questionamento da dominação e, ao mesmo tempo, responsável pela busca de uma organização da sociedade. 105
Ver. LIMOEIRO CARDOSO, Miriam. Ideologia do desenvolvimento. 2.ed. Brasil: JK-JQ. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
143 Essa produção ideológica das classes sociais, sejam classes populares ou classe dominante, é explicada pela categoria teórica – hegemonia.106 É a partir deste conceito, segundo Gramsci (1977), que se tornam possíveis as explicações das relações que se travam entre classes sociais, bem como no interior das classes sociais fundamentais, constituindo-as, tornando-se possível a discussão de aspectos da direção política e cultural que envolvem as classes fundamentais presentes na sociedade. Em Gramsci, hegemonia é, portanto, um conceito que não exige o domínio prévio do poder, mas sim a adesão em torno de uma classe, seja por outra classe ou por frações dessa classe. Dessa adesão decorrem dois aspectos básicos. O primeiro é a coesão por oposição, isto é, o processo de adesão no interior de uma classe, através de um processo gerador de uma direção a partir de frações dessa mesma classe, distanciando-a da outra classe fundamental. Esse processo conduz à coesão de classe. É possível que a direção política também se exerça entre classes sociais, quando um projeto de uma fração de uma classe consegue a adesão não somente de setores afins da mesma classe, como também de frações de outra classe. Através desse processo, um projeto cuja base e origem são particulares, se generaliza ou até se universaliza, funcionando então como um projeto da sociedade como um todo. O segundo aspecto se refere à coesão por domínio, num processo de imposição entre classes distintas. Instaura-se aí, com o recurso à força, a coesão entre classes. O primeiro aspecto depende da “subordinação, ou do exercício negativo do domínio e conduz a uma coesão de classe”, o segundo “depende do exercício positivo do domínio e instaura uma coesão, precária por que entre as classes” (LIMOEIRO CARDOSO, 1978, p. 73). Na concepção gramsciana, a hegemonia se exerce e se expressa de duas maneiras: uma pelo domínio; outra pela direção intelectual e moral. O domínio pressupõe o controle do poder e a utilização da força através da coerção, já através do exercício da direção intelectual e moral pressupõe a adesão por meios ideológicos, constituindo a função marcadamente hegemônica. Hegemonia, assim compreendida, abre a possibilidade de sua construção no campo das classes populares ou subalternas, vinculada ao grupo hegemônico interno ou grupo social básico. Como reforma intelectual e moral, é um processo de formação da vontade coletiva, unificador do proletariado, dos trabalhadores em torno das lutas fundamentais da classe. Um processo de unidade de fins econômicos e políticos com a unidade intelectual e moral, que é possível através da formação de uma política de alianças. “O proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de classes que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora” (GRAMSCI, 1977, p. 22). Hegemonia, como cultura de uma sociedade de classe, se expressa através de um complexo de experiências, relações e ações em que há limites fixados e interiorizados nos indivíduos e nas classes. Contudo, dispondo de maior amplitude política do que a ideologia, a construção da hegemonia tem capacidade de controlar e possibilitar mudanças. Como reforma intelectual e moral, adquire, ainda, função eminentemente pedagógica. Isto se torna possível na medida em que produz a ideologia das classes subalternas, que se realiza com a afirmação da direção dessas classes e também com a possibilidade de superação da condição de subalternidade. É, ainda, pedagógica ao enfatizar um processo de ensino e uma vida voltados à conquista de outra ordem social. O espaço pedagógico das práticas de educação popular que permite vislumbrar possibilidades de outra ordem social, aponta para uma tomada de posição política de resistência expressa pelo confronto com a situação vigente. Resistência, através de variadas formas, às diferenciadas políticas dominantes que desejam a modelação de todos em um mero conjunto de massas humanas, nivelando todos a igualdade que, em si mesmas, só trazem manipulações e equívocos. Uma resistência às tentativas de manipulações psicológicas, que, em nome da
106
Essa interpretação de hegemonia é desenvolvida por LIMOEIRO CARDOSO, Miriam, em seus dois livros: La construcción de conomicimientos: cuestiones de teoria y método e Ideologia do desenvolvimento. Brasil: JK-JQ.
144 diversidade, desenvolvem o gosto extremado da individualidade. Resistência às formulações que se apresentam como forma única e acabada, sugerindo um fim da história. Pela resistência se efetiva também o exercício da capacidade de direção política fundamental para a construção da hegemonia dos vários setores das classes subalternas. Assim, também, se caminha para a conquista da cidadania, entendida como a explicitação das possibilidades de acesso do indivíduo à produção, à gestão e ao usufruto dos bens e serviços da sociedade, rompendo com o fenômeno, tão atual, de exclusão social. Trata-se de um fenômeno histórico que tem garantido privilégios aos responsáveis por essa exclusão – os setores dominantes – que se valem de um instrumento poderoso, autoritário e privatizado: o Estado. Uma resistência que possibilite, inclusive, a participação nesse Estado, não no sentido de reprodução da exclusão, mas, segundo Yeno Neto (1993, p. 153), para “gerar projetos de trabalho no interior do Estado que objetivem reforçar e apoiar as organizações populares no que elas têm de autonomia frente ao próprio estado”. Resistência às formulações de uma ética e de uma moral utilitária que fomentam e enfatizam a individualidade em nome de um benefício pessoal primeiro. A ela contrapõe-se a ética da comunicação, do diálogo, da responsabilidade social, da democratização, da justiça social, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças, pelas escolhas individuais e grupais, elementos que potenciam a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas. Ou, como afirma Scocuglia (1997, p. 203), pela busca de outra racionalidade ou de outras racionalidades. A resistência à massificação e ao nivelamento passa a dar sentido às diferenciadas metodologias de educação popular. Esta, ao se utilizar de uma perspectiva dialética, contribui, decididamente, para o encontro de estratégias e de condições de lutas para as transformações da realidade. Educação popular expressa, ainda, a busca de sua utopia, que é a busca da liberdade. Liberdade no sentido político, cujo exercício se espelha no respeito aos direitos dos outros, mas contendo o germe do rompimento, através da ação política, de regras desumanas. Liberdade no sentido ético, que possibilita o direito de agir das pessoas, sem necessariamente estarem prisioneiras de determinações externas. Liberdade no sentido filosófico, que mostra as condições e limites do exercício dessa própria liberdade, considerando a existência do outro, com a clareza de que o humano não é um ser acabado, posto que histórico. Por fim, liberdade de pensamento, que torna o indivíduo capaz de dizer o que deseja, assumindo também, como decorrência, a responsabilidade desse pensar e desse agir. Sobre liberdade, afirma Freire (1991, p. 50): “Penso que a liberdade, como gesto necessário, como impulso fundamental, como expressão de vida, como anseio quando castrada, como ódio quando explosão de busca, nos vem acompanhando ao longo da história. Sem ela, ou melhor, sem luta por ela não é possível criação, invenção, risco, existência humana.” Este é um esforço de ascensão em que o indivíduo se torna, cada vez mais humano, sendo expressão de ações, forçosamente, subversivas. Esta é uma utopia que se caracteriza não por um idealismo impossível, mas por um sonho cheio de possibilidades de realização. Considerações Educação popular é um sistema educativo aberto, caracterizado por um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionados entre si, ordenados segundo princípios e experiências. Mas esse sistema forma um todo, uma unidade, alicerçado por uma filosofia com uma teoria de conhecimentos, metodologias da produção desse conhecimento, com conteúdos e técnicas de avaliação, sustentado por uma base política. É, portanto, um processo permanente de teorização sobre a prática que serve ao avanço histórico dos movimentos sociais, particularmente, os movimentos sociais populares. Como sistema aberto, apresenta-se, ainda, com uma característica determinante, no sentido de poder absorver novas formulações ou ratificar, corrigir ou eliminar aquelas já estabelecidas. É uma característica da educação popular advinda da diversidade do campo cultural onde se realizam as práticas educativas desse sistema. Deve estar aberta a novas formas de captação da realidade, contemplando o emotivo, o sensitivo e o físico dos indivíduos envolvidos nesse processo de
145 educação, para além da via intelectual, até então, considerada quase única e, ainda, à ampliação dos sujeitos sociais, ao considerar a complexidade organizativa da sociedade, trazida pelas reformas estruturais que estão se processando como resultado das novas tecnologias, sobretudo, no mundo do trabalho. Enquanto unidade, porém, mantém-se de forma dialética, em comunicação com a sua exterioridade, caracterizando a educação popular com formas múltiplas e variadas, dependendo de todo esse processo relacional. Educação popular com características de enfrentamento a todas as formas de irracionalidade e promotora da emancipação dos setores populares, tornandose assim, necessariamente, humanizadora. Para a continuidade organizativa desse sistema educativo, impõem-se como necessidades o levantamento histórico desse processo singular de educação, a manutenção do debate teórico em torno da temática e, sobretudo, análises que apontem vetores de possibilidades em educação popular, diante de experiências emergentes ou já consolidadas.
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EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO BÁSICA NA HISTÓRIA DO BRASIL107 Wojciech A. Kuleza*
Quando o rei de Portugal resolve estabelecer um governo no Brasil, começa aqui, em 1549, a educação. Seu objetivo imediato era controlar a exploração das riquezas naturais e, para isso, era fundamental, tanto para o trabalho como para a própria sobrevivência, conseguir o concurso da população indígena. Coube à Igreja graças ao regime de padroado, realizar esta tarefa através do envio de missionários, majoritariamente jesuítas. O temor a Deus, presente há muito tempo entre as massas camponesas europeias, precisava então ser inculcado entre os índios para que estes reconhecessem como legítima a autoridade portuguesa. A educação básica era a catequese, a doutrinação dos povos indígenas e, a formação de professores, nos seminários, estava preferencialmente orientada para a reprodução ampliada dos religiosos necessários para esta educação. Aprender a ler, escrever e contar era secundário, porém, à medida que a colônia vai se estabelecendo, a atuação dos seminários se diversifica, para integrar os portugueses que viviam no Brasil ao sistema educacional da metrópole. Neste confronto civilizatório, o saldo educacional foi amplamente favorável aos portugueses. Se a conversão do gentio foi insignificante se comparada ao seu genocídio, os religiosos aprenderam muito, a começar pela substituição do pão de trigo por derivados da mandioca. Inculcando uma doutrina estrategicamente vazada na língua latina, os religiosos tiveram que aprender tupi para poder se apropriar do conhecimento indígena. Tanto é que até finais do século XVIII, quando começa a surtir efeito a política inaugurada por Pombal de impor o português como língua padrão, a língua mais falada no Brasil era a chamada língua geral, crioulo composto por vários dialetos indígenas aos quais se misturavam palavras de origem portuguesa e africana.108 Em linhas gerais, podemos dizer que, neste período de nossa história a educação básica do colonizador dirigida ao povo foi sobrepujada pela educação popular do colonizado. Fórmula esta que continuou vigorando no decorrer do tempo e que hoje ainda se pode identificar como dominante nas chamadas zonas de fronteira entre culturas, especialmente na Amazônia, geralmente associadas à formas de exploração assemelhadas às da época do descobrimento. Mais tarde, com o sucesso dos empreendimentos açucareiros que, no século XVII envolviam capital, mão de obra, transportes, finanças e atividades comerciais de causar inveja a qualquer multinacional moderna e que foram partes constituintes fundamentais da escravidão negra no Brasil, a educação básica começa a sofrer a influência da categoria trabalho no sentido capitalista. A doutrinação se atenua frente ao trabalho escravo, claramente assumido para o negro, mas controverso no que se refere ao índio, situação que iria quebrar a cabeça dos ideólogos da Igreja, dentre os quais se destaca o jesuíta Vieira com suas brilhantes, porém inconsistentes, perorações. Esta inserção do Brasil na economia mundial demandava novas funções sociais. Do lado do comércio, ampliam-se as tarefas necessárias para a importação/exportação, fazendo aumentar ainda mais os cargos exigidos pela crescente burocracia administrativa colonial. Cria-se assim a necessidade de uma educação, elementar, 107
Trabalho parcialmente financiado pelo CNPq. Professor do Centro de Educação, atuando no Curso de Pedagogia, no Programa de Pós-Graduação em Educação – Educação Popular – e coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação, Ciência e Sociedade. 108 Ver a respeito o trabalho de Ângela Domingues, A educação dos meninos índios do norte do Brasil na segunda metade do século XVIII, in História de Portugal, Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Maria Beatriz Nizza da Silva (coord.). Lisboa: Estampa, 1995, p. 67-77. *
149 essencialmente literária e repetitiva, destinada a uma crescente população que, do ponto de vista de classe, se situava entre o escravo e a elite e, do ponto de vista étnico, primava pela mestiçagem. Do lado da produção, diversificam-se as necessidades artesanais, satisfeitas de ofício, lideradas por brancos vindos do exterior e alimentadas por negros libertos e brancos desvalidos da fortuna. A separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, que seria posteriormente teorizada por Marx, realiza-se na prática no Brasil, com consequências profundas na nossa cultura. Esse processo se acentua durante o chamado ciclo do ouro no século XVIII, no decorrer do qual transfere-se definitivamente o centro dinâmico da economia do Nordeste para o Sudeste, simbolicamente representado pela transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, intensificando a distinção entre os dois tipos de educação. Devido à dependência colonial do Brasil a uma nação atrasa face à revolução industrial em curso, o desenvolvimento técnico se estagna, o mesmo acontecendo com a educação técnica. Por sua vez, a educação elementar se sofistica cada vez mais, seja para atender ao seu caráter propedêutico a uma educação superior, seja para dar conta das transformações que se dá ao nível de circulação das mercadorias devido ao desenvolvimento do capitalismo mundial. A educação técnica se torna cada vez mais popular e a educação elementar se torna cada vez mais básica para a formação da brasilidade que então começa a tomar corpo. É este divórcio que Pombal, com seu despotismo esclarecido, procurou evitar, como uma das medidas fundamentais para enfrentar a crise do sistema colonial, agravada para Portugal devido ao esgotamento do ouro e a concorrência do açúcar do Caribe produzido com melhor base técnica. Se antes dele o ensino era público, mesmo que operado totalmente pela Igreja, Pombal introduz no Brasil o ensino público laico a cargo do Estado, de quem os professores eram diretamente funcionários. Ainda que mantendo a tradição, o projeto da Cadeira de Primeiras Letras criado por ele, estava impregnado do iluminismo do século XVIII, com sua fonte ênfase na dependência entre cultura e natureza, dada a potencialidade produtiva desta relação. Embora tardia, a criação do Seminário de Olinda por Azeredo Coutinho em 1800, representa a concretização deste projeto que procurava integrar o ensino elementar e técnico numa educação básica que os brasileiros deveriam ter para glória do Reino Unidos no concerto das nações. Como se sabe, este projeto não foi bem sucedido, tendo como uma de suas consequências a independência do Brasil de Portugal, pela qual lutaram, já em 1817, os professores e alunos do Seminário de Olinda. Apesar dos grandiosos planos educacionais apresentados na constituinte de 1823, só a partir de 1870, quando começam a tomar forma os movimentos republicano e abolicionista, é que surgem e se concretizam propostas inovadoras na educação brasileira. Neste ínterim, além da pretenciosa lei geral de 15 de outubro de 1827 que criava escolas de primeiras letras por todo o país e que só serviu para fornecer a data para comemorarmos o Dia do Professor, cumpre assinalar a crescente presença da iniciativa particular no ensino. No processo de transformação da sociedade brasileira em direção ao capitalismo, a educação também se tornava uma mercadoria como as outras. No caso, uma mercadoria de luxo para as elites. Dessa forma, manteve-se durante todo o Império a dicotomia entre ensino técnico e ensino elementar. Com a dissolução das corporações de ofícios, o ensino técnico público ficou degradado às meras escolas de aprendizes artífices, enquanto começava, a partir, do comércio, o ensino particular, forma originária da escola secundária privada no Brasil. A educação popular que, como vimos, nutrir-se-á do saber prático, passa a se tornar uma imposição das elites ao povo miserável para treina-los para os fazeres necessários na esfera produtiva que se internacionalizava. E a educação básica, restrita à uma ínfima parcela das camadas urbanas com acesso às escolas de primeiras letras, mal preparava para uma brasilidade atualizada, como se pode verificar pela presença maciça no currículo da moral e da doutrina cristã. Já em 1847, observava o deputado liberal Torres Homem: “Ler e escrever, as primeiras operações da aritmética, alguns rudimentos de gramática e o catecismo, eis aí tudo. Para as classes inteiramente pobres, e que vivem do trabalho manual nas regiões inferiores da sociedade, talvez uma tão acanhada
150 instrução possa em rigor bastar. Mas de certo não basta para aquelas outras classes que medeiam entre as operárias e as científicas, classes importantíssimas, em que reside toda a força da comunidade, em que se encontra o negociante, o fabricante, o lavrador, o artista e o empregado público.109 Assim, a educação básica, que era compulsória nos primeiros tempos, começa a ser concebida pelas elites como obrigatória, inclusive sujeitando os pais a sanções penais, como se pode ver na reforma Couto Ferraz realizada no município da Corte em 1854, no bojo do surto manufatureiro provocado pela inversão produtiva dos capitais liberados pela proibição oficial do tráfico negreiro em 1850. A educação no final do Império começa então a surgir como necessidade social, inicialmente para as crianças e depois para os adultos e também para os escravos, até então completamente excluídos da educação formal. O outro, que antes era o índio, era agora o povo para as elites brasileiras, as gentes, que antes eram portuguesas. Mas agora o processo de conhecimento flui das elites para o povo, que precisava ser educado para viabilizar as novas formas de apropriação econômica. E, devido à estreita vinculação do ideal republicano com o federalismo, vai se impondo a necessidade de uma educação nacional. Nesta, os valores intemporais da doutrina cristã, seriam substituídos pelos valores temporais presentes na estrutura social. Com a República e consequente separação da Igreja do Estado, a educação elementar passa a ter uma finalidade cívica, embrião do que mais tarde viria a ser chamado educação cidadã, não sem antes passar pelo arcaísmo da educação moral e cívica do tempo da ditadura militar. Paulatinamente, impunha-se a organização do ensino em um sistema articulado de graus de ensino. Fixaram-se os estudos regulares, seriados, com tempo mínimo de duração, anunciados já no final do Império pela reforma Leôncio de Carvalho e pelo famoso substituto apresentado por Rui Barbosa, e cristalizados nos grupos escolares, que surgiram em São Paulo em 1894, influenciados diretamente por experiências semelhantes que então ocorriam na Europa e nos Estados Unidos, e que serviram de modelo para a organização do ensino por todo território brasileiro. Assinale-se aqui a conjunção da ascendência econômica de São Paulo e a influência estrangeira na determinação, a partir de então, das diretrizes da educação brasileira. Com a ordenação do sistema educacional, deslanchou-se o processo pelo qual a antiga educação elementar de primeiras letras viria a se tornar primária, básica ou fundamental. Um educador liberal da velha república Detenhamo-nos um pouco mais numa importante proposta burguesa de educação formulada no interior do movimento republicano. “Estudemo-nos a nós mesmos”.110 Essa formulação sintética, à maneira de um teorema, exprime rigorosamente toda uma filosofia da educação que, engendrada durante o movimento republicano, iria instrumentalizar efetivamente a cultura brasileira somente nas décadas de 20 e 30 de nosso século. Seu autor, José Veríssimo, republicano de primeira hora, assim formulava, nos alvores da República, as bases de uma reforma educacional que a mudança de regime de governo estava a exigir para poder imprimir na sociedade brasileira seus propósitos doutrinários. Se no Império não havia solução para a questão educacional, em grande parte devido ao regime escravocrata vigente até 1888, a era republicana abria a possibilidade do Brasil – através da educação – se integrar ao movimento de “evolução geral da Humanidade” e cumprir, assim, seu glorioso destino de se tornar uma pátria, em suas palavras, “grande, poderosa e invejável”. Por isso, Veríssimo intitula sua obra, publicada em 1890 em Belém, de A Educação Nacional. Nacional, para cimentar a unidade da nação ameaçada pelos surtos separatistas que o federalismo despertava; nacional, para incorporar plenamente na vida política as camadas sociais que passariam daí em diante a ter o direito de eleger seus representantes no governo, ou seja, os alfabetizados. 109
Citado por Maria de Lourdes Mariotto Haidar. O ensino secundário no Império brasileiro. São Paulo: Grijalbo/EDUSP, 1972, p. 209-10. 110 José Veríssimo. A educação nacional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 52.
151 Ao propugnar por uma “educação leiga, inspirada nos grandes interesses humanos e baseada na experiência e na ciência universal”, reafirmada por ele na introdução da reedição de seu livro feita no Rio de Janeiro em 1906, Veríssimo revela sua adesão à filosofia evolucionista e positivista tão a gosto da intelectualidade de seu tempo. Nascido no estreito de Óbidos, em 1857, aos dois anos ele vai alargar seus horizontes no Rio de Janeiro caindo em cheio na efervescência política e cultural que agitava a Corte na década de 70 do Oitocentos brasileiros. Lá, ele ingressa na Escola Central, derivada da antiga Escola Militar para poder atender também aos civis, mas não conclui o curso de engenharia voltando ao Pará em 1877. A publicação do folheto Emílio Littré, em 1881, dedicado ao controverso discípulo de Comte, demonstra cabalmente sua filiação ao credo positivista dominante naquela escola superior. E suas afinidades não seriam apenas intelectuais. Com a República, assumindo o governo do Pará o general Lauro Sodré, ele é nomeado Diretor de Instrução Pública. Único governador a não apoiar o golpe do marechal Deodoro em 1891, Sodré solidifica sua posição no governo de Floriano Peixoto, contribuindo para a nomeação de seu antigo auxiliar, em 1892, como Diretor do Ginásio Nacional, denominação dada ao Colégio de Pedro II pelos republicanos. Veríssimo, que se encontrava no Rio de Janeiro desde 1891, de lá nunca mais saiu até sua morte em 1916. Fundador do Clube Republicano no Pará, Veríssimo condicionava a evolução do país à plena realização do princípio federativo: tratava-se de descentralizar o poder político concedendo maior autonomia para as Províncias que poderiam, então, desenvolver melhor suas potencialidades econômicas. Claramente, a quebra da subordinação ao poder central – hegemonicamente constituído, naquele momento, em torno das economias açucareira e cafeeira – da borracha amazonense era sua motivação básica nesta argumentação. Mas ele é nacionalista, defende o “são brasileirismo” e, por isso, o separatismo é um risco real, como o demonstra a fragmentação da vizinha América espanhola após as lutas pela independência, que precisa ser eliminado pela raiz. E é aí que entra sua proposta de uma educação nacional, constitutiva da nacionalidade e da identidade brasileira no mundo. Naquele momento, a educação básica era concebida por Veríssimo como a via preferencial para a formação de um Estado nacional livre do poder desagregador das oligarquias locais e, portanto, constituir uma república federativa capaz de firmar o Brasil no cenário das nações. Sensível à conjuntura internacional marcada então pelo pleno desenvolvimento da fase imperialista do capitalismo que iria desembocar na Primeira Guerra Mundial, Veríssimo, como seus colegas jacobinos, também faz profissão de fé industrialista, tema comum de oposição ao país essencialmente agrário defendido pelas oligarquias. Intuitivamente, percebe a metamorfose que se operava nos mecanismos de dominação entre países. Se das antigas guerras de conquista só restou a “cruzada da civilização contra a barbárie”, na relação entre centro e periferia “a luta, porém não cessa; apenas de militar tornou-se industrial”. Seu cientificismo, marcado materialmente pelas mudanças que o vapor e a eletricidade provocavam no Rio de Janeiro, fá-lo imaginar, um tanto quanto assombrado, a nova indústria “pedindo à ciência quase onipotente de nossos dias que, nova Vulcano, lhe forje as armas invulneráveis para o medonho combate”. Mesmo assim, avesso à educação técnica que ele havia abandonado e que o faz até condenar o pragmatismo, “material, comercial, arrogante e reclamista”, norte-americano, ele descura completamente do ensino profissional em suas propostas. Sensível à crescente importância dos Estados Unidos, “País verdadeiramente mais livre da terra”, Veríssimo dedica todo um capítulo do seu livro para comparar-nos com o grande vizinho do Norte, tornado modelo imediato das instituições para o país agora denominado Estados Unidos do Brasil. Segundo ele, neste cotejo o Brasil ainda teria vantagens comparativas. Graças à “unidade de raça, língua e religião”, homogeneidade desconhecida dos norte-americanos, a tradição nacionalista haveria de se impor ao país pela construção de uma cultura verdadeiramente nacional através da educação. A diferença estaria no que era exaltado nos dois países. Enquanto lá se cultuavam os homens e suas obras, aqui se glorificava a natureza, mesmo que esta incluísse o indígena. Caberia à educação realizar a transição entre este nativismo romântico e o que, tomado de Sílvio Romero, ele chama de “brasileirismo”, isto é, o desenvolvimento de um caráter e de um sentimento nacionais. A imediata remissão ao autoritarismo de Estado, apesar do seu credo liberal, antevisto nestas suas considerações, é um
152 exemplo de como ele já indicava em sua obra os caminhos pelos quais iria se desdobrar tanto a reflexão como a ação educacional nos anos seguintes. Criticando a instrução até então vigente no Brasil, Veríssimo constata que ela ajudou a manter o isolamento entre as várias regiões, já suficientemente grave devido à extensão territorial do país. Sem festas, comemorações, vultos, monumentos e outros símbolos de afirmação da nacionalidade praticados uniformemente nas escolas espalhadas por todo o Brasil, deu-se margem ao desenvolvimento do “bairrismo”, fonte constante de ameaças à unidade nacional. Este “provincialismo” gerado pela recorrência direta e exclusiva à Corte para satisfazer os anseios culturais das diferentes regiões, termina por obstaculizar a efetiva integração nacional. Como afirmava um seu contemporâneo sobre o mesmo tema: “Mantém-se entretanto, em detrimento do espírito nacional, um espírito local, fundibulário do governo central, separatista e ruinoso ao país, porque só a união faz a força e a prosperidade”.111 Ao contrário, porém deste monarquista que lamenta na mesma passagem que haja “pessoas sensatas, jornalistas inteligentes, mobilizados para embelezar estas ideias com um nome falacioso e funesto: federalismo”, Veríssimo percebe que a construção da União deve se dar a partir da autonomia das Províncias e, para isso, é preciso que haja uma educação que tivesse a Pátria como referência básica que, dessa maneira, forneceria os liames necessários para garantir a nacionalidade. Para ele, o problema residia no fato das “leituras” realizadas nas escolas serem praticamente todas de autores estrangeiros (e Veríssimo exibe a consistência desta formação escolar em vigor no período ao recorrer constantemente a citações de obras alienígenas) e, quando se podia dispor de autores nacionais, no monopólio praticamente absoluto exercido pelo Rio de Janeiro sobre a produção intelectual brasileira. A capital do Império refazia na esfera intelectual o centralismo político e econômico, inviabilizando a interação provincial. Segundo ele, “É preciso que o livro de leitura entre nós se reforme completamente e que tudo fale do Brasil e de nossas coisas.”112 E para evitar o “provincianismo”, muito embora liberal, o futuro crítico literário considerava indispensável o concurso do Estado naquele momento histórico para conduzir a reforma educacional capaz de dar unidade à federação. Uma das consequências da instrução pública então imperante era fazer com que “nos ignoremos a nós mesmos”. Até as “lições de coisas” introduzidas em nossas escolas não falam de nossas coisas: “Que em vez de exclusivamente nos ensinarem o que é e como se prepara a lã ou o vidro... como nos devemos aquecer, nós que não temos disso necessidade... nos mostrem o que é, onde e como se cultiva a borracha, quais os seus empregos e qual a higiene profissional do seringueiro.”113 clama o paraense, dando indicações sobre qual deveria ser o conteúdo da escola básica naquele momento. Reproduzindo na edição de 1906 a crítica feita por ele já em 1892 à reforma Benjamin Constant, principalmente no que se refere ao princípio comtiano da liberdade de ensino, Veríssimo constata “a desordem, indisciplina e desleixo que reina no ensino oficial”, não sem criticar ao “bronco mercantilismo do ensino particular”. Considerada por Antonio Candido uma obra “das mais avançadas e inteligentes de nossa literatura pedagógica”,114 é
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José Ricardo Pires de Almeida. História da Instrução Pública no Brasil (1500-1889). São Paulo: Brasília: EDUC, INEP/MEC, 1989, p. 306. 112 Op. cit., p. 113. 113 Op. cit., p. 55. 114 “José Veríssimo e a educação”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 13 de abril de 1957. Suplemento Literário.
153 significativo que A Educação Nacional tenha sido reeditada quando se falava de uma Nova República no Brasil, sinal inconteste de sua atualidade. Tendo criado e dirigido durante anos em Belém uma escola, emblematicamente denominada Colégio Americano, Veríssimo sabe do que está falando. Tratava-se de introduzir como matéria de nossa instrução pública, em todos os níveis de ensino, a realidade brasileira como base de uma autêntica educação nacional. Esta, não se limitaria à mera instrução, pois teria uma componente moral responsável pela formação do sentimento e do caráter nacionais. Nossas coisas, nossos autores, nossa organização social e política, vistos como objetos de estudo em nossas escolas, levariam ao fortalecimento de nossa brasilidade, condição indispensável para a afirmação da Nação perante o mundo. Há aqui também um otimismo, próprio da racionalidade burguesa aplicada ao mundo material, que seria mais tarde plenamente explicitado em nosso cenário educacional. O nacionalismo de Veríssimo, diretamente inspirado nas unificações da Itália e da Alemanha e confirmado pela reação da França à derrota de Sedan, baseia-se nesta espécie de patriotismo gerado no decorrer da segunda metade do século XIX. Um patriotismo alicerçado no conhecimento aprofundado da Pátria, na valorização de sua língua, de sua cultura, de sua história, na exaltação de um civismo singularizador do país no concerto das nações. Nacionalismo que só poderia ser das e para as elites, diversificadas no terreno da produção econômica em nível regional, mas unidas frente à fase imperialista do capitalismo que desafiava a própria independência nacional. Se a República era o sistema de governo capaz de dar organicididade ao almejado federalismo, só através de uma reforma educacional poderia se constituir a nacionalidade que ela ensejava, alçando a escola à condição de verdadeira matriz do “brasileirismo”. Daí porque a educação nacional, antes de tudo, haveria de ser uma educação moral e cívica. Moral, para romper com a estrutura patriarcal herdada do sistema colonial escravista, abrindo assim as portas para a modernização exigida pelas novas relações de produção em marcha, e cívica, pois era preciso dissimular as diferenças sociais através da aglutinação de todos no fascio constituinte de uma pátria abstrata, que viesse substituir a velha ordem estamental encabeçada por Pedro II. Dada a precariedade da escolarização no final do Império (segundo Veríssimo, 84% da população da nova República era iletrada e, conforme Pires de Almeida, em 1886, apenas 2% da população estava matriculada nas diferentes escolas brasileiras), soa estranha a referência de Veríssimo a uma educação popular. Na verdade, seu discurso dirige-se às elites ou, ao menos, à elite letrada, e é esta que precisa ter sua educação reformada, ter uma educação genuinamente nacional. Esclarecedor a este respeito é a sua identificação com o povo ao qual cumpriria “corrigir e reformar” as instituições uma vez iniciado o processo republicano. No entanto, suas propostas vão além da simples reprodução melhorada do estamento burocrático dos bacharéis característica do próprio monárquico. Imbuído do liberalismo burguês, Veríssimo prenuncia em sua análise os movimentos pela extensão da escolarização – alfabetização, principalmente – que despontarão por todo o país durante toda a República velha e que, a partir dos anos 20, assumirão um conteúdo político revolucionário. Do corpo à mente: o discurso moderno da educação Durante todo o período da Primeira República que termina em 1930, o discurso das elites considerava que a educação popular deveria ser a educação primária, inclusive nas campanhas de educação de adultos então empreendidas por diversos setores da sociedade. Primeiramente, com o objetivo de alfabetizar, essencial para o exercício do voto na República, o conteúdo da educação primária tendia a acompanhar as exigências postas pela crescente urbanização, entre as quais a higiene é um exemplo bastante ilustrativo. A preparação profissional, excetuando-se as escolas de aprendizes que voltaram a ser criadas em todo território nacional, em 1909, deveria dar-se nas escolas técnicas secundárias, entre as quais se destacam as escolas normais e que não davam direito à continuação dos estudos nas Faculdades. Estas continuavam reservadas à elite que se preparava nos liceus públicos e, de forma cada vez mais crescente, nas escolas particulares.
154 Estava assim consagrada a famosa dualidade da educação brasileira: um ensino profissional para o povo e um ensino superior para as elites. Confundia-se, neste momento, a educação básica e a educação popular, ambas circunscritas formalmente ao espaço da escola primária, já que a educação técnica virara mero adestramento profissional ou formação intermediária terminal no sistema de ensino. Observe-se, nesse contexto, a extrema limitação das oportunidades educacionais, concentradas principalmente no meio urbano, quando se considera o Brasil como um todo. Para se ter uma ideia, o censo de 1920 registrou a presença da maior parte da população – 90% - vivendo no meio rural. Nesta situação é compreensível a emergência, claramente visível a partir dos anos 20, de uma educação popular progressista nos meios operários das cidades e de uma educação popular retrógrada, ruralista, defendida pelos ideólogos das oligarquias agrárias ameaçadas pelas transformações sociais em curso. Significativamente, no primeiro discurso abordando a temática da educação proferido durante a Revisão Constitucional de 1926, foi criada uma lei previdenciária para os trabalhadores. Para exemplificar os males da falta de educação no Brasil, o deputado federal Afrânio Peixoto atribuiu à falta de instrução popular o comportamento esquivo dos ferroviários que preferiam evitar o “pequenino desconto mensal de três por cento nos vencimentos”, previsto na lei, ao invés de gozar da assistência patrocinada pelo Estado. Além de evidenciar a presença no cenário político da Primeira República do movimento operário propiciado pela crescente industrialização do país, esta intervenção aponta para a redefinição do papel do Estado que se esboçava naquele momento histórico, “ quando o governo federal amplia grandemente a sua área de atuação nos estados”.115 Aliás, um dos objetivos vitoriosos dessa revisão, convocada por Arthur Bernardes em plena vigência do estado de sítio no país, era justamente permitir ao Estado intervir na questão social através da regulamentação do trabalho em todo território nacional de forma centralizada. Analisando essa revisão comentada Cury, “É como se o „estado de sítio‟ fosse a antecipação política de uma situação que, pós-revisão, se legitimaria politicamente”.116 O discurso em plenário de Afrânio Peixoto destinava-se a defender uma emenda de sua autoria, subscrita por mais 62 deputados, pela qual, essencialmente, o Estado, através do Congresso Nacional, passaria a “orientar” o ensino primário e secundário e “fiscalizar” o ensino profissional, técnico e superior, independente de sua dependência administrativa. O seu objetivo era acabar com “o vício de educação” no país, exemplificado pela “aberração” verificada no caso dos ferroviários e origem de todos os vícios nacionais. Advogando claramente a racionalidade capitalista através da defesa da previdência, forma de introjetar no proletariado a poupança e avidez de lucro típicas da ordem social competitiva em formação, ele vê na educação, sob responsabilidade do Estado, “a condição mesma da existência de uma Nação moderna”. Confessando-se “partidário da centralização do ensino fundamental”, Peixoto retoma a palavra de ordem de José Veríssimo por uma “educação nacional” em termos assemelhados do tipo “o Brasil, que se desconhece e se ignora a si mesmo”, mas já agora confiando ao Estado esta tarefa. À pergunta por ele colocada. “Quem reeducará o Brasil, quem nos educará?”, ele responde de maneira inequívoca ao lamentar que havíamos perdido tempo “em procurar na Constituição a possibilidade de permitir à União educar os Brasileiros, à revelia ou com o consentimento dos Estados”. Médico, professor da Universidade do Brasil, da qual foi o seu primeiro reitor, catedrático nas Faculdades de Medicina e Direito do Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, da qual foi presidente, Júlio Afrânio Peixoto foi uma figura proeminente entre aqueles cuja “fé no progresso do país pela modernização era a mesma que tinham no progresso e aperfeiçoamento da raça humana pela higiene”.117 (CÓSER, LOPES e MOTA, 115
Conforme Edgar Carone. A República Velha. Instituições de Classes Sociais. São Paulo: Difel, 1972, p. 291. 116 Carlos Roberto Jamil Cury. A Educação na Revisão Constitucional de 1926, in FÁVERO, Osmar (org.). A Educação nas Constituintes Brasileiras (1823-1988). Campinas: Autores Associados, 1996, p. 100. 117 Conforme Silvana M.L. Cóser; Eliane M. Teixeira Lopes e Joaquim A. César Mota; Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947); Ensaio Biográfico, in Carlos Alberto Messeder Pereira e, Micael M. Herschmann (orgs.). A Invenção do Brasil Moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p . 150.
155 1994, p. 150). Aparentemente oprimido pela dúvida que atormentou Antonio Vieira no século XVII, “não sei que mal maior faz a este país, se a doença ou ignorância”, na verdade, como fizeram esses higienistas com todas as áreas do conhecimento, ele medicamentou a educação reduzindo-a ao cuidado com a “saúde da alma”. Coerentemente, considerava a pedagogia infantil uma função essencialmente feminina, chegando a afirmar no seu livro Ensinar a ensinar. Ensaios de pedagogia aplicada à educação nacional, publicado em 1923, que “o brasileiro que se destina a professor primário é uma fração de homem, que precocemente capitulou diante da vida” e em seu livro A educação da mulher, de 1936, considera que “O homem professor primário é uma aberração, como o é o capão de pinto...”118 Já antes, em artigo publicado na imprensa, Peixoto argumenta que só a necessidade urgente de uma reforma educacional justificava a revisão constitucional, porque, no Brasil, “não há problema algum, econômico, intelectual, moral, social que se não reduza, no íntimo, na essência, a um problema de educação”. Não obstante sua crítica da imitação de modelos estrangeiros, ato “quase sempre desastrado”, o deputado baiano estava bem a par do que se passava nos “países cultos”, por onde havia extensamente viajado. Proclamando que “a hora no mundo é da educação”, além de constatar a interferência crescente do Estado em matéria de educação, ele identifica uma unanimidade nas reformas educacionais do pós-guerra: uma escola única. Vista a princípio como uma escola capaz de “fazer Brasileiros” em vez de “goianos e cearenses, mineiros e paulistas”, “litorâneos e sertanejos, nordestinos e sulistas”, sua concepção de escola única evolui para uma escola capaz de dar conta das desigualdades sociais. Atendendo “nobres e plebeus, junkers e proletários”, nela “os afortunados conhecem os miseráveis”, formando assim por toda a Europa “a alma pacífica e compassiva do povo que não conquista estranhos, nem explora irmãos menos favorecidos”. No Brasil, aonde a questão social ameaçava a ordem pública, a escola única se apresentava como via segura ara a paz social, vista por Afrânio Peixoto como fruto da competência política e administrativa. Constatando a seletividade socioeconômica da educação brasileira visto que, “só os filhos dos ricos, capazes e incapazes, vão ter às escolas de humanidades e às escolas superiores”, o deputado oposicionista denuncia a incompetência das elites no poder, pois, “desses médicos, bacharéis, engenheiros, na maior parte incapazes, recruta [o Estado] os seus burocratas e os seus políticos, os seus dirigentes, administradores e guias...”. Revelando o seu ideário evolucionista, ele quer que o Estado retire as restrições que impedem a ação da seleção natural no meio social, vendo na educação um mecanismo de “proteção social dos mais aptos”. Para isso é necessário democratizar o ensino secundário, que continuaria “a ser da alçada da União”, mas seria “posto ao alcance do povo, dos mais aptos alunos pobres de escolas primárias, para se ir fazendo a seleção dos competentes, e não, como agora, a seleção dos incapazes afortunados”. Completando a sua proposta de centralização do ensino sob a direção da União, Peixoto ainda propõe a criação na “Capital do Brasil, de uma escola normal superior, seminário da educação nacional, viveiro do professorado de todos os liceus e ginásios estaduais, de todas as escolas normais primárias e secundárias espalhadas pelos vinte Estados da União”. E, para viabilizar todo esse projeto educacional, ele retoma a ideia da criação de um fundo nacional de educação já proposta na época do Império por João Alfredo em 1874 e Rui Barbosa em 1882.119 Nas marchas e contramarchas dessa revisão, a primeira e única da Constituição de 1891, prevaleceram os interesses imediatos do governo de Arthur Bernardes e a emenda do autor de Marta e Maria nem chegou a ser votada. Aliás, nenhuma emenda envolvendo questões educacionais foi contemplada nessa revisão, mesmo aquela apresentada pelos situacionistas no projeto original de reforma, que previa, “mediante acordo com os estados”, a interferência da União no ensino primário.120 Assim, no que se refere à ampliação dos serviços educacionais por parte da União, esta última tentativa na Primeira República de passar de um constitucionalismo liberal para um Estado intervencionista frustrou-se completamente, justificando a conclusão de 118
Idem. ibidem., p. 173-5. Conforme Vanilda Pereira Paiva. Educação Popular e Educação de Adultos. São Paulo: Loyola, 1973, p. 86. 120 Conforme o artigo citado de Cury. 119
156 Nagle de que “na passagem do regime monárquico para republicano foram mantidas as normas gerais de atuação do Estado em matéria de educação”.121 (1974, p. 279). Todavia, as transformações sociais causadas pelo progressivo estabelecimento de relações de produção capitalistas na sociedade brasileira fizeram aflorar no Congresso Nacional, de junho de 1925 a setembro de 1926, novas concepções de educação que iriam se efetivar plenamente nos anos seguintes. Afrânio Peixoto continuaria figurando com destaque nesse processo de mudança: em 1932 subscreveria o “Manifesto dos Pioneiros e, em 1935, seria designado primeiro reitor da Universidade do Distrito Federal, ápice da “transformação ampliativa” da antiga Escola Normal do Rio de Janeiro encetada por Anísio Teixeira.122 Rumo à democratização do ensino Os intelectuais liberais das classes dominantes, no caso, os chamados pioneiros da educação nova, procuraram dar um caráter orgânico aos anseios do operariado por uma educação popular, retirando-lhe o conteúdo excessivamente enciclopédico e literário, e propugnando por uma educação adequada à sociedade industrial por vir. A reação ruralista, desejosa de fazer prevalecer os antigos valores medievais do campo, ou melhor, do latifúndio, alia-se à Igreja para defender uma educação básica cujo conteúdo, agora travestido de civilidade, servisse para o conformismo e a disciplina no interior das novas relações de produção. Com a revolução de 30 e a consequente centralização política e administrativa, forjase uma solução de compromisso baseada no reconhecimento implícito da existência de dois Brasis. Latente antes de 30, explícito na constituinte de 1934, este debate seria bruscamente interrompido pelo autoritarismo do Estado Novo em 1937 que assume expressamente a dualidade: uma educação para servir e outra para mandar. Embora dual, a constituição de um sistema nacional de educação pública após 1930 trouxe um tratamento unitário para a questão do ensino. Inicialmente, com a reforma Francisco Campos, atendeu-se à pressão das camadas urbanas por educação com a regulamentação do ensino secundário, o qual, dentro da velha tradição propedêutica, foi dividido num ciclo básico e num complementar, conforme a carreira, Direito, Medicina ou Engenharia, a ser seguida. Reconhecia-se, ao menos para as elites, a insuficiência do ensino primário como educação básica. De qualquer maneira, o povo, agora cada vez mais estratificado nas cidades em camadas populares, passa a ter acesso a esse grau de ensino que, de todos, conhece a maior taxa de expansão até os anos 60. Enquanto isso, o ensino profissional, explicitamente com o Estado Novo, volta-se novamente para os desfavorecidos da fortuna, cristalizando-se com as Leis Orgânicas do Ensino Secundário a dualidade do sistema de ensino. Todavia, também no que tangia ao ensino técnico, reconhecia-se a inadequação da escola primária como formação básica para o trabalho. Sob os primeiros quinze anos de Getúlio Vargas, enquanto se processava a transformação da ordem agrário-rural em ordem urbano-industrial na sociedade brasileira, a educação procurava se libertar da roupa velha, mas idílica, usada na roça, para vestir a roupa nova, mais fabril, da cidade. Ainda que o brilho desses trajes se manifestasse muito mais nas cerimônias de gala do que no cotidiano escolar, a substituição de importações por uma indústria incipiente mudou o perfil desejável da educação básica, pelo menos para os citadinos. E, embora se desse no breve contexto corporativo do fascismo tupiniquim, a privatização da educação técnica, cada vez mais imprescindível ao nível da produção, assume características de classe com a criação do SENAI em 1942 pelos empresários ligados à indústria. A educação geral dos sindicatos e partidos operários, assume, para as classes patronais os contornos específicos de uma educação para o trabalho produtivo.
121
Jorge Nagle. Educação e Sociedade na Primeira República. São Paulo: EPU; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1974, p. 279. 122 Conforme Ana Waleska Pollo Campos Mendonça. Universidade e Formação de Professores: uma perspectiva integradora. A “Universidade de Educação” de Anísio Teixeira, tese de doutorado apresentada ao Departamento de Educação da PUC-Rio, 1993.
157 Como herança do autoritarismo do Estado Novo temos, a partir de 1945, um sistema dual de ensino tendo como base comum o ensino primário, ramificando-se num secundário técnico com pouca expressão quantitativa e que eventualmente poderia terminar num curso técnico superior, e num ensino secundário essencialmente propedêutico ao ensino superior de maior prestígio, curso procurado pela maioria. Como assinalamos anteriormente, como o ensino primário fosse insuficiente para fornecer a educação básica reclamada pela sociedade urbanoindustrial, ele passa a ser complementado cada vez mais pelos primeiros ciclos do ensino secundário, os chamado ginásios. Pouco a pouco, a pressão social vai derrubando as barreiras legais que impediam a equiparação desses dois ramos para efeito de ingresso no ensino superior em geral, até que, com a promulgação da LDB em 1961, fossem removidos os obstáculos formais. Uma avaliação espúria Mal começava a entrar nos trilhos o governo JK e já Anísio Teixeira novamente saía a campo para continuar sua luta persistente em prol de uma reforma educacional pela base. Signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, era ele o arauto entre nós da teoria e da prática educacionais em vigor, aparentemente, nos Estados Unidos, desde que havia estudado com John Dewey na Columbia University em 1929. O momento não podia ser mais promissor. Vivia-se o início dos “cinquenta anos em cinco” e quase todo mundo aderia à opção pelo desenvolvimento do tipo encontrado na sociedade urbano-industrial capitalista. Melhor dizendo: estávamos em pleno caminho em direção a uma sociedade capitalista desenvolvida, ainda que isso fosse apenas um estágio necessário para o sonhado comunismo de alguns. Nada mais apropriado, portanto, do que se mirar na história dos países desenvolvidos (e, para não perder tempo, tome-se logo o exemplo norte-americano) para encontrar soluções adequadas para os problemas nacionais. E a educação, como afirmava explicitamente o Manifesta, era um dos mais graves e importantes desses problemas. Concebendo a educação como um sistema caracterizado pela esteira interdependência de todas suas partes, Teixeira já havia tentado concretizar suas ideias na efêmera Universidade do Distrito Federal, fruto da ampliação da Escola Nacional carioca quando ele era Secretário da Educação e pioneira na preparação de professores secundários através de uma prática de ensino em escolas experimentais de aplicação. A serviço do populismo emergente (foi ele que construiu a primeira escola no morro da Mangueira em 1935), o educador baiano foi uma das primeiras vítimas do autoritarismo que iria desembocar no Estado Novo, durante o qual ele iria abrigar-se na monocultura cacaueira de sua família na Bahia. Em 1924, recém-formado bacharel em Direito, foi esse passado oligárquico, que ele sempre combateu, que o levou à Diretoria de Instrução Pública daquele Estado. Voltando à vida pública, ironicamente, é em pleno populismo getulista que ele volta à cena nacional no Ministério da Educação criando a CAPES em 1951, preocupado agora em dar cientificidade aos professores. Prosseguindo por essa vertente ele criará, já no governo JK, os Centros Regionais de Pesquisa Educacional, para introduzir ciência na educação, não mais somente psicologia, mas, de maneira crescente, sociologia da educação. Esclarecedor de sua posição é o texto da conferência “A escola brasileira e a estabilidade social” pronunciada – sinal dos tempos – no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro em 1957.123 Para essa plateia detentora do saber técnico e do poder econômico capazes, afinal, da construção de uma nova capital no planalto central do país, Teixeira apresentará uma descrição crítica da “situação educacional brasileira” naquele momento. O governo de base populista de Nonô que, a muito custo, havia sido empossado em janeiro do ano anterior, ainda enfrentava resistências das elites para poder deslanchar seu projeto desenvolvimentista, daí o apelo de Teixeira à “estabilidade”. Como diretor do INEP, ele estava no centro da discussão sobre a regulamentação do dispositivo constitucional de 1946 que facultava à União legislar sobre as “diretrizes e bases da educação nacional” que então se retomava e que iria culminar na 123
Publicada na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol. XXVIII, n.67, 1957, p. 3-29 e reproduzida em Educação e Sociedade, coletânea organizada por Luiz Pereira e Marialice Mencarini Foracchi. 8.ed. São Paulo: Nacional, 1977, p. 388-413 (1963)
158 lei 4024 de 1961.124 Para um público agora marcado predominantemente pela engenharia, saber instrumental por excelência da sociedade em desenvolvimento, era natural a associação entre estabilidade e a construção de uma base social sólida. Valendo-se de uma reconstrução histórica na qual a revolução de 30 ocupa um papel decisivo de transição, por significar uma guinada em direção ao “desenvolvimento da industrialização na vida nacional”, Teixeira concentra-se na crítica ao caráter seletivo da escola brasileira. Responsável pela pirâmide educacional brasileira, segundo ele, um verdadeiro “obelisco”, esse processo seletivo não estaria mais ajustado à estrutura da sociedade brasileira e, por isso, estaria causando distorções capazes de conduzir à instabilidade social. Defendendo firmemente uma educação que tenha por objetivo a competência técnica, ele aponta para os perigos que “a falsa elite diplomada” produzida pelo sistema escolar estaria trazendo para o desenvolvimento que então se propunha. Na nova fase de “substituição de importações” comandada pelo capital monopolista internacional a introduzir filiais no parque industrial brasileiro, o país carecia de técnicos e não mais de “funcionários e doutores” com titulação meramente formal, fonte exclusiva de privilégios que a sociedade não mais suportava. Aqui, referindo-se aos “nossos jovens das escolas superiores”, Teixeira antecipa a bandeira de luta pela reforma universitária, uma das reformas de base exigidas no início dos anos 60. Também, na mesma passagem, ao assinalar que “é indiscutível que os agita certo senso de dever social”, ele antevê a participação da juventude universitária nos projetos de educação popular surgidos no interior daquele mesmo movimento reformista. Mas, como sabem os engenheiros, as grandes edificações só se fazem em cima de uma base segura, quanto mais a “formação de todo um povo em vigoroso processo de mudança de civilização”. Portanto, conclui Teixeira, “os nossos deveres para com o povo brasileiro estão, assim, a exigir que demos primeiro a educação adequada às classes populares a fim de lhes aumentar a produtividade e com ela o seu nível de vida”. Além do imperativo moral, marca registrada da elite consciente de suas origens, esse trecho é de uma clareza meridiana quanto aos objetivos da educação. Trata-se não somente de preparar para a produção mas também para o consumo: não há desenvolvimento capitalista sem a criação de um mercado nacional para a realização efetiva da mais-valia extraída da força de trabalho empregada na indústria. Num trecho em que Teixeira diz que a sociedade, através da educação pública, “despendeu os seus recursos com o propósito de reavê-los e com juros”, ele chega ate a antecipar a teoria do capital humano que começava a se esboçar os Estados Unidos e que informaria os planejadores econômicos da ditadura militar a partir do final dos anos 60. É a esta “escola de educação básica”, constituída pela escola primária de quatro anos (que ele queria estender para seis), que cabe “ministrar uma cultura básica ao povo brasileiro”. Uma escola que se proponha “a dar a todos uma habilitação mínima para a vida, a promover a formação possível de todos os alunos de acordo com suas aptidões”. Sempre com “o propósito democrático de dar às massas uma boa educação prática para a vida”, Teixeira nunca perde de vista o substrato urbano-industrial, característica inelutável do mundo moderno, a partir do qual se daria o desenvolvimento do país. Ele quer “escolas de real eficiência no preparo do homem para as diversíssimas formas de trabalho inteligente e técnico, que caracterizam a civilização industrial” através das quais pudéssemos superar nosso atraso e ingressar definitivamente na civilização ocidental. Esta escola deverá ser integral, isto é, “se organizará como um local de atividades adequadas às idades, dentro de três setores, que se conjugarão entre si, mutuamente complementares e integrados: o do jogo, recreação e educação social e física; e do trabalho, em formas adequadas à idade; e o do estudo, em atividades de classe propriamente dita” (grifos n o original). Na melhor tradição da filosofia idealista de educação, de Platão a Dewey, passando por Comenius, Rousseau e Pestalozzi, Teixeira, que já havia posto em prática suas ideias criando a chamada escola-parque em Salvador, nos faz lembrar imediatamente do “construtivismo” tão em voga atualmente: “a didática dessa escola obedeceria ao princípio de que as atividades infantis, predominantemente lúdicas, evoluem naturalmente para o trabalho, 124
Ver a respeito a obra de Ester Buffa. Ideologia em conflito: escola pública e escola privada. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
159 que é um jogo mais responsável e com maior atenção nos resultados, e do trabalho evoluem para o estudo, que é a preocupação mais intelectual de conduzir o trabalho sob forma racional...” (grifos no original). Como culminância desse processo de desenvolvimento individual “teremos o intelectual, o cientista, o pesquisador e o pensador, que irão constituir os corpos especializados da Nação, para o seu desenvolvimento cultural e científico”. Ou seja, quem sabe, talvez dessa forma tivéssemos tantos outros Anísios Teixeira por aí para compor a intelligentsia sonhada por Mannheim. Pelo menos um rebento vingou com toda força: Darcy Ribeiro. Em sua concepção liberal a respeito da sociedade, segundo a qual, esta seria formada por classes sociais dadas a priori onde a mobilidade social do indivíduo dependeria diretamente de suas capacidades, Teixeira, como Dewey e Mannheim, atribui à educação a função de potencializar as aptidões das pessoas, cabendo ao Estado um papel planejador que possa manter as diversas camadas sociais “estáveis e eficientes”, fazendo assim da educação um fator de “ordem e estabilidade”. Esse é o tema recorrente de sua conferência pois, segundo ele, o sistema escolar brasileiro estava formando gente incompetente nas camadas superiores e deixando de fora muita gente, das camadas populares, capaz, se devidamente educada, de contribuir para o desenvolvimento do país. Por isso, ele quer transformar o dualismo da escola brasileira num contínuo onde as oportunidades de cada indivíduo não estivessem determinadas por sua situação de classe, mas sim pelas suas aptidões. Em suas palavras, a função da educação escolar “é primeiro a de nos permitir viver eficientemente em nosso nível de vida e somente em segundo lugar, a de nos permitir atingir um novo nível, se a nossa capacidade assim o permitir” (grifos no original). A escola básica é para todos, independentemente de suas capacidades inatas, mas só ascenderão aos níveis de ensino superiores, e, portanto, às camadas superiores da sociedade, aqueles que demonstrarem capacidade para isso. Em sua prática política populista de atribuir ao Estado o papel de protetor e condutor das massas, Teixeira procura garantir um mínimo (que, como o salário instituído por Getúlio Vargas, vai se tornando inexoravelmente cada vez menor) de educação para todos percebendo, corretamente, que, com a evolução do capitalismo, a reprodução da força de trabalho, além das necessidades materiais mínimas de subsistência, exige também um conhecimento, por assim dizer, “ecológico”. Embora referindo-se ao ensino superior, o trecho de seu discurso no qual ele preconiza “escolas de tempo integral, com refeições, estudos, esportes, recreação, aulas, trabalhos de laboratório e exercícios práticos”, nos faz lembrar de imediato dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) desenvolvidos nos anos 80 no Rio de Janeiro por seu discípulo e companheiro, Darcy Ribeiro. Melancolicamente demitido em 13 de abril de 1964 do cargo de Reitor da Universidade de Brasília, sobre a qual se referiu Darcy Ribeiro no final dos anos 70 como uma “filha dileta que caiu na vida”, Anísio Teixeira é revivido pelo populismo brizolista mostrando, assim, que o projeto de educação gestado no interior de uma determinada ordem social a ela sobrevive, mesmo que seja de forma patética, como o indica a investida do senador Darcy Ribeiro sobre a LDB recentemente aprovada e que acabou tomando o seu nome. Universalização da escola básica Os treze anos passados até que se conseguisse aprovar a LDB no Congresso Nacional, revelam a indecisão de um período histórico marcado pela nova forma de internacionalização da economia que deu origem à presença das multinacionais no Brasil. A consequente modernização do parque industrial acabou consolidando a necessidade de uma educação básica afinada com as demandas produtivas. Com a LDB, formaliza-se esta exigência através do estabelecimento de um núcleo comum de formação básica, obrigatório para todas as modalidades de ensino médio. Mas a urbanização, que havia excluído a população rural do desenvolvimento, provoca agora um processo de exclusão nas próprias cidades, exatamente devido à migração do campo ara a cidade. Entra, então, na ordem do dia, uma educação popular ou de base para atender estes setores da população. Se bem que as diferentes iniciativas nesta área tivessem a alfabetização como meta, não se tratava mais da alfabetização cívica do eleitor, mas de uma iniciação destas populações marginalizadas, libertadora ou domesticadora, ao mundo moderno.
160 O processo de estratificação social no Brasil, que ampliou as camadas médias entre a elite e o povo a partir de meados do século passado, foi acompanhado da oferta de oportunidades educacionais para estes estratos, inicialmente limitada a uma educação básica de nível médio, mas que começa a sofrer pressão pelo ensino superior a partir da década de 60. Cada vez mais identificada com a educação das classes dominantes que procuram cooptar para si essas camadas médias, essa educação básica, majoritariamente desprovida de um conteúdo técnico, afasta-se da educação popular. Politicamente, essa dicotomia se traduzirá na disputa entre o populismo e o nacional-desenvolvimentismo com todas suas nuances. Alavancada desde o exterior, esta última corrente obriga a redefinir a educação popular que passa também a ter um conteúdo de classe, projetando-se para o conjunto da sociedade e, portanto, colocando em questão toda a educação de seu tempo. A ditadura militar pós 64, que significou a vitória e a consolidação da corrente nacional-desenvolvimentista, na sua versão mais economicista e dependente do capital internacional, assimilou a necessidade de uma maior escolarização básica, unificando, através da lei 5692 de 1971, o ensino primário com o ginasial em oito anos obrigatórios, criando o chamado ensino de primeiro grau. Na mesma lei, o ensino técnico foi considerado de segundo grau e unificado num ensino profissionalizante para todos que nele ingressassem, bem de acordo com uma concepção de educação estritamente funcional para o mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, iniciativas como o Mobral e o ensino supletivo, tentavam esvaziar o debate em torno da educação popular ao oferecer às massas populares que inchavam as cidades uma formação extremamente deficiente e diluída, mas de cunho instrumental para sua adaptação ao trabalho e à vida urbano-industrial-televisiva. Nenhuma dessas propostas vingou ao longo dos vinte anos de ditadura. O Mobral foi simplesmente esvaziado pela incúria administrativa centralizadora e, principalmente, pelo seu conteúdo inócuo face à socialização que a própria urbanização propiciava. O ensino profissionalizante obrigatório no segundo grau foi logo considerado inviável e mesmo inconveniente, terminando por ser abolido pela lei 7044 de 1982. A separação entre o primário e o ginásio continuou a vigorar de forma efetiva nas chamadas primeira e segunda fases do primeiro grau, mormente porque persistiu em grande parte a diversificação na formação de professores para cada uma dessas fases. Assim, o período autoritário legou para a geração posterior um sistema educacional totalmente desarticulado, aonde sobressaíam ainda os graves problemas de analfabetismo, fracasso escolar no primeiro grau, falta de organicidade do ensino técnico dentro do segundo grau e currículos defasados da nova realidade socioeconômica no ensino superior. A reação a esse verdadeiro desmonte, especialmente no ensino público, fez avançar as proposições oriundas de uma concepção de educação popular classista para as camadas populares, vítimas maiores do desmantelamento do sistema educacional. A chamada pedagogia dos conteúdos é um bom exemplo dos esforços feitos para tornar a educação básica formalmente ministrada no primeiro grau instrumental para a conscientização da classe trabalhadora, a partir do conhecimento popular. Pretendia-se tornar a educação básica uma educação popular num quadro demográfico no qual avultava o crescimento da população urbana que, já na década de 50, havia sobrepujado a população rural e que, a passos largos, procurava as ofertas de escolarização. Concomitantemente, a educação não formal exercida no interior dos movimentos sociais adquire especificidade própria e característica em cada movimento, geralmente voltada para as necessidades imediatas advindas da luta de classes. A Constituição de 1988 reflete a presença no debate ideológico da sociedade civil organizada, especialmente as associações de educadores, dessa corrente democrático-popular.125 Além de reafirmar o direito de todos à educação e o dever do Estado em relação à educação pública, resgata-se o caráter técnico da educação básica ao propugnar pela obrigatoriedade progressiva do ensino médio, num reconhecimento explícito da presença da tecnologia em todos os setores da vida nacional. Também em função das transformações na estrutura produtiva da sociedade e, especialmente, da crescente participação da mulher no mercado de trabalho, 125
Ver a respeito o livro de Luiz de Sousa Junior. Educação e política. O Projeto de Educação do Partido dos Trabalhadores e a Constituinte de 1988. João Pessoa: UFPB, 1998.
161 garantiu-se na constituição a educação pré-escolar, de zero a seis anos vista, do ponto de vista pedagógico, como pré-requisito importante para o sucesso do ensino fundamental. A descentralização administrativa e tributária possibilitou, ao nível local, que os municípios, pela primeira vez, organizassem seus próprios sistemas de ensino dando-lhes as condições legais e financeiras para a reforma do ensino sob sua jurisdição, o que já vinha sendo encetado onde os governantes houvessem sido eleitos com a efetiva participação popular. Os CIEPs de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, lançados já em 1983, constituem a experiência mais notória no sentido de se imprimir um caráter popular à educação básica do primeiro grau pública no Estado do Rio de Janeiro, notadamente na capital. A partir da década de 90, com a progressiva implantação da orientação política neoliberal em todos os níveis de governo, as avaliações dos sistemas e modalidades de ensino no Brasil, abertamente estimuladas pelos órgãos financeiros internacionais, além de constatarem as conhecidas mazelas no seu funcionamento, defendem acintosamente mudanças estruturais profundas na sua organização. Via de regra, até mesmo conquistas importantes, como a gestão democrática da escola com a participação da comunidade, são menosprezadas face à sua suposta irrelevância para a solução dos problemas educacionais. Estabeleceu-se assim um confronto de posições, cada vez mais ideologizado, cujo eco no Congresso Nacional contribuiu para retardar a aprovação do projeto de LDB apresentado em 1988. Este, com substanciais modificações que só não foram maiores devido às imposições constitucionais da Carta de 1988, só foi aprovado no final de 1996, com o nome de lei Darcy Ribeiro devido a importância estratégica da ação do senador para sua aprovação, nome que só se perpetuará se for por causa da importância dos artigos 78 e 79 que procuram resgatar a cultura indígena sobrevivente. Refletindo o avanço do ideário neoliberal nas hostes governistas, claramente explícito na concepção e importância conferida à avaliação no texto legal, uma característica importante na nova LDB é a outorga de decisões fundamentais sobre a regulamentação do ensino para o Conselho Nacional de Educação, por ela instituído. A lei dispõe as diretrizes de forma genérica, cabendo ao CNE – agora com uma composição muito mais representativa do que o antigo CFE, mas ainda sob estrito controle do executivo – o encargo de concretizá-las ao sabor da conjuntura, o que o torna um poderoso instrumento para a efetiva implantação da política educacional do governo. Esta, pode ser caracterizada em linhas gerais como centralizadora ao nível normativo, procurando manter o controle do sistema, e privatista ao nível social, propugnando a mercantilização do ensino em todos os níveis o que, cumpre salientar, não significa necessariamente a privatização do ensino. A LDB, de acordo com a tendência dominante apontada, definiu a educação básica como sendo constituída dos níveis de ensino infantil, fundamental e médio. Tomando como inelutável a universalização do ensino fundamental nos próximos anos, o governo procurou cuidar da sua eficiência centralizando novamente os recursos através de Emenda Constitucional regulamentada pela lei 9424 que estabeleceu o Fundão (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério), posto em funcionamento pela primeira vez em 1998. Prevendo explicitamente recursos substanciais não só para a escola, mas também para garantir um nível salarial mínimo para o magistério, esta lei delega aos Estados e Municípios, através da instituição de Conselhos técnico-comunitários, a gestão desses recursos. Simultaneamente, o CNE estabelece Parâmetros Curriculares Nacionais para as escolas, primeiro passo para o estabelecimento da formação básica comum nacional prevista na LDB, definido o conteúdo que o governo considera desejável para este nível de ensino. É claro que essa definição é instrumental para que se possa fazer uma avaliação comparativa das escolas, iniciada para o ensino superior com o Provão e estendida recentemente para o ensino médio. Nessas orientações é característica a introdução de problemáticas sociais da vida moderna, como por exemplo a questão ética, e a incorporação da tecnologia como conteúdo cultural da sociedade industrial. A educação técnica transmuta-se em educação geral, mantendose seu caráter humanista com a devida substituição do homo sapiens pelo homo faber. Como síntese dessa assimilação, a educação básica no ensino fundamental assume novamente a feição iluminista burguesa original de formação da individualidade racional, com base numa ciência neutra e universal, apresentada como ideologia superior e inelutável a ordenar o mundo.
162 Procurando restringir e enquadrar a educação popular, essa concepção de educação básica pode ser percebida melhor nas recentes iniciativas governamentais no que se refere ao ensino médio. Aprofundando o corte entre a formação técnica e o ensino profissional, o MEC, através do CNE, procura imprimir ao ensino médio um conteúdo geral desvinculado do trabalho, concebido meramente como uma função social dada de antemão aos indivíduos e que, do ponto de vista educacional, comportaria simplesmente um treinamento profissional. É preciso retomar aqui a crítica de Marx à educação burguesa, em direção a uma formação omnilateral e politécnica metodologicamente assentada no trabalho como princípio educativo, para avaliarmos o significado de tal medida. Aparentemente destinada a superar os desafios educacionais colocados pelas mudanças no perfil da estrutura ocupacional devido à reestruturação produtiva globalizada, essa política nada mais é do que uma reedição atualizada da dualidade entre dirigentes e dirigidos assumida pelo Estado corporativo, com a vantagem ainda de incorporar a terminalidade do ensino de segundo grau profissionalizante pretendida pela ditadura militar. O objetivo perseguido por esta política governamental é fazer com que a educação popular, que hoje se nutre cada vez mais da experiência propiciada pelo trabalho, se aliene da educação básica, inviabilizando assim qualquer projeto político das camadas populares por uma educação que atenda aos seus interesses. No quadro de extrema desigualdade social em que vivemos, tal medida, se efetivada, produziria uma elite de trabalhadores qualificados a operar mecanicamente numa estrutura produtiva totalmente fora de seu controle e cuja desumanização os alienará completamente da vida social. São os trabalhadores que as correntes sindicais ligadas ao PSDB gostariam de ter em seu quadro de filiados e que já estão encarnados em muitos de seus dirigentes. Por outro lado, para as classes privilegiadas, com essa medida se aguçar-se-á o processo deletério de seleção dos mais aptos – nossos futuros dirigentes – baseada no treinamento da capacidade de memorizar esquemas operatórios, abstratos e reducionistas, que limitam suas sensibilidades para com o real. Basta atentar para o projeto de sociedade que exala dos discursos de nossos dirigentes, a começar do Presidente da República, para perceber a profunda diferença entre a educação básica e a educação popular por eles propalada e que significa, em última instância, a manutenção de uma estrutura de classes ainda mais injusta do que aquela de uma sociedade burguesa clássica, devido ao seu caráter excludente e antinacional.
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EXCLUSÃO SOCIAL E EDUCAÇÃO POPULAR NO BRASIL – 500 Afonso Celso Scocuglia*
Introdução No momento em que os efeitos devastadores de uma globalização tecno-informática são acrescidos às justificativas econômicas da “necessidade imperiosa” de um ajuste nas contas públicas para a consecução de um Estado “mínimo” – crescentemente descompromissado com o provimento da educação (da saúde, da moradia, da segurança...) – constatamos, uma vez mais, a perpetuação “natural” da exclusão social no Brasil. Avolumam-se os amplos contingentes dos “sem”: “sem-teto”, “sem-escolarização”, “sem-emprego”, “sem-terra” .... O mesmo governo se comemora a abertura da escola fundamental a todos – de 3 a 4% das crianças em idade escolar, segundo estatísticas oficiais do MEC, ainda não foram à escola , sabe que estamos longe de possuir uma escolarização que garanta a permanência das crianças através de um ensino de qualidade. Em outras palavras, a escola está aberta a quase todos, mas não garante a sua continuidade e a sua qualidade. Certamente, essa é uma escola que tende a produzir/reproduzir o fracasso de grande parte dos alunos provenientes das camadas populares da sociedade. Tal fracasso conduz à formação continuada de grandes contingentes de jovens e adultos desescolarizados e virtualmente alijados da batalha pelo emprego e pela conquista da cidadania. Como sabemos, esse é um dos elos mais fortes da cadeia da exclusão social brasileira. Foi, precisamente, contra as várias fases (e faces) desse estado letárgico da sociedade e da educação no Brasil que batalharam (e batalham) vários movimentos de educação popular na última metade do “breve século XX” (HOBSBAWN, 1998). é esse elo excludente que enfocamos neste trabalho e o fazemos tendo como contraponto as histórias da educação popular no Brasil-quase-500. Histórias da exclusão continuada e ações no campo da educação popular Desde a vinda da Companhia de Jesus para prover e dirigir a religião e a educação no Brasil, em 1549, construiu-se uma das marcas registradas da nossa escolarização: a exclusão.126 A catequese, foi, aos poucos, cedendo espaço para a educação “de classe”, a educação da aristocracia rural. Durante mais de dois séculos, a continuidade dos estudos para além da escola “de primeiras letras” só foi possibilitada para os filhos (não para as filhas) dos senhores “de terra e de gente” que continuavam sua escolarização para o sacerdócio ou destinavam-se à Europa em busca da educação superior. Sabemos que o ensino jesuítico moldou-se perfeitamente a uma sociedade escravocrata e aos desejos de sua elite. Importante notar que, mesmo depois da expulsão da Companhia de Jesus (1759), essa tendência foi mantida. No século XIX, já com a presença da Família Real portuguesa, a ênfase elitista continuou a ser concretizada na implementação dos primeiros cursos superiores e ao ensino
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Professor do Centro de Educação da UFPB, atuando no Curso de Pedagogia, do Programa de PósGraduação em Educação – Educação Popular – e coordenador do Grupo de Pesquisa em História da Educação Popular 126 Segundo Arroyo (1996), no Brasil generalizou-se uma “cultura da exclusão”: “Cultura que não é desse ou daquele colégio, desse ou daquele professor, nem apenas do sistema escolar, mas das instituições sociais brasileiras, geradas e mantidas, ao longo deste século republicano, para reforçar uma sociedade desigual e excludente. Ela faz parte da lógica e da política de exclusão que permeia todas as instituições sociais e políticas, o Estado, os clubes, os hospitais, os partidos, as igrejas, as escolas... Política de exclusão que não é própria dos longos momentos de administração autoritária e de regimes totalitários. Ela perpassa todas as instituições, inclusive aquelas que trazem no seu sentido e função a democratização de direitos constitucionalmente garantidos como a saúde e a educação” (p. 13).
164 médio preparatório para o ingresso nesses cursos. Escolarizar-se era sinônimo de “distintivo de classe”. Na Primeira República (chamada “dos fazendeiros”) essa marca excludente permaneceu. Não obstante, somente nas primeiras décadas do atual século com o insipiente desenvolvimento industrial e formação dos primeiros contingentes de operários (e, com estes as primeiras reivindicações pela escolarização de seus filhos) é que as elites brasileiras “descobriram” que havia um “povo” e que este precisava ser escolarizado – pelo menos nas primeiras séries da chamada educação fundamental. Afinal, como desenvolver industrialmente um país de analfabetos? Durante o Estado Novo (1930 – 1945), apesar de todo apelo do populismo que se construía, pouco mudou. Reformas foram promovidas, o escolanovismo127 projetou-se como solução, mas a parte da população que conseguiu escolarizar-se por completo continuou ínfima. Fácil perceber que, por não possuir escolas suficientes ou pela via da evasão/expulsão escolar, o n osso sistema educacional tornou-se um impulsionador de quantidades crescentes de analfabetos jovens e adultos. No chamado período de “redemocratização” (1946 – 1964) várias campanhas de combate ao analfabetismo foram encetadas e a escola pública brasileira cresceu qualitativamente. Certamente, esse período constituiu o que de melhor fizemos em termos educacionais e um sopro de esperança tomou conta de muitos no sentido das mudanças sociais, econômicas, culturais, políticas que, em concomitância, conseguiriam um novo patamar educacional nos anos 40 e 50. As campanhas de erradicação do analfabetismo falharam e o equilíbrio entre o acesso crescente à escolarização pública e sua qualificação não alcançou os frutos desejados. Assim, chegamos ao final dos anos cinquenta, início dos sessenta e, nesse momento, a educação é definitivamente atrelada às condições sociais e políticas que definiam o nacionalismo e o desenvolvimentismo brasileiros. O que, até então, foi tratado com uma ênfase técnica e neutra cede espaço para o entendimento da educação como algo eivado/carregado de um conteúdo político inseparável. Tal visão ficou patente, por exemplo, nos encontros nacionais de educação de adultos, especialmente no de 1958, onde se sobressaíam os documentos preparados por educadores pernambucanos e, entre eles, seu relator, Paulo Freire. A partir daí, a conotação política da prática educativa foi ganhando adeptos e numerosos grupos começaram a trabalhar no sentido da promoção de uma educação voltada aos interesses e às necessidades das camadas populares. Não se pode esquecer que, ambiguamente, como parte do populismo em vigor, esses grupos eram conduzidos por estudantes e professores dos extratos médios da nossa sociedade. Esta situação tinha, como pano de fundo, os interesses do Estado (populista) que pretendia perpetuar-se. Com efeito, no final de 1963, setenta e quatro desses grupos se reuniram em Recife, no I Encontro Nacional de Cultura e Educação Popular, sendo que dois terços deles trabalhavam com educação de adultos. Nesse tempo, ganha vigor o que ficou conhecido como “Método Paulo Freire” e sua disseminação é assumida pelo Governo Goulart através do Plano Nacional de Alfabetização (PNA) que pretendia alfabetizar seis milhões de pessoas no ano de 1964. Importante notar: o PNA tinha forte conotação político-eleitoral, pois “fabricar” seis milhões de alfabetizados seria aumentar em 50% o contingente de eleitores que havia votado na eleição presidencial de 1960 (11,7 milhões, numa população de 70 milhões). Supostamente, a maioria desses novos eleitores (alfabetizados e “conscientizados” pelo “Método Paulo Freire”) votariam em candidatos e partidos “progressistas” e, assim, as reformas “de base” poderiam ser aprovadas no Congresso e implementadas na direção da construção de um país menos injusto e mais igualitário ou, como pretendiam alguns grupos, na direção do socialismo e do comunismo. Aqui está surgindo uma concepção de educação das camadas populares – educação popular , diretamente ligada à tentativa de emancipação social e política dos extratos que tradicionalmente foram alijados dos processos decisórios no Brasil, somando esforços de setores médios (estudantis, intelectuais, artísticos etc.) às necessidades básicas da imensa maioria dos 127
Para apreender a importância da Escola Nova no Brasil, entre outros clássicos, de Lourenço Filho – Introdução ao estudo da Escola Nova (publicado em 1929, pela Edições Melhoramentos), além de vasta obra de Anísio Teixeira (como, por exemplo, Educação não é privilégio).
165 brasileiros. Nesse instante, fazer “educação popular” significava investir nas demandas de milhões de indivíduos que não tinham tido acesso à escola ou a tinham abandonado, ou seja, na educação dos adultos que, ao se alfabetizarem/conscientizarem, poderiam – através de seus votos e de sua participação em inúmeras organizações da sociedade civil – alterar a estrutura social de um país marcado pela norma da exclusão continuada. Este esforço foi barrado pelos golpistas civis e militares – nacionais e internacionais – que em 1964 depuseram o governo constitucional e implementaram o Estado da força bruta, da repressão e da tortura institucionalizadas. As numerosas organizações “progressistas”, entre elas os grupos que trabalhavam com a educação das camadas populares, foram extintas/proibidas. Durante vários anos, os grupos que conseguiram sobreviver contaram com a explícita proteção dos setores progressistas da Igreja Católica ou foram gestados em seu próprio interior (a exemplo dos grupos da “Igreja Viva” embriões das Comunidades Eclesiais de Base). Simultaneamente, tudo o que era ligado à educação formal, à escola, era tido como “reprodutivista” (Althusser, Bordieu etc.)128 em função do super controle que o Estado exercia sobre a educação e todos os seus agentes (estrutura, professores, alunos, currículos etc.). Com a lenta “abertura política” do Estado Militar,129 após a Anistia (1979), fazer “educação popular” passou a significar o trabalho político-educativo junto aos movimentos sociais organizados, aos sindicatos “progressistas”, aos municípios conquistados pelos partidos políticos “de esquerda”. E, continuou a significar o trabalho com jovens e adultos, em suas várias modalidades. Os anos oitenta trouxeram como “novidade” mais significativa no campo da “educação popular” a crescente compreensão de que a escola pública, nos seus diversos graus, constituía espaço fundamental para o desenvolvimento de tal concepção político-educativa. Ao mesmo tempo, trouxeram à tona a necessidade de uma revisão crítica sobre suas teorias e suas práticas, como assinalam as preocupações indicadas a seguir: “(...) Como tendência general, la educacijón popular fue construyendo un discurso ligado a una lectura de las dimensiones estruturales de la dominación y el funcionamiento de la sociedad que dejó poco espacio para analizar, teóricamiente, problemas de la vida cotidiana y de los procesos de constitución de la subjetividad de los sujetos. En efecto, los objetivos de cambio social llevaron rápidamente a adherir a una serie de premisas originadas en el marxismo para dar cuenta de las estructuras de poder económicas y políticas. Se descuidó, en cambio, la comprensión de la naturaleza simbólica de las práticas educativas, su especificidad pedagógica y las características de los escenarios y procesos cotidianos en los cuales éstas transcurrían. Por outra parte, y en relación a la acción práctica de los procesos educativos, el seminário subrayó la necesidad de revisar su especificidad y rigorosidad interna. Por un lado, se constató la diversidad de prácticas que se identifican como educación popular, lo que indica la variedad rica de experiencias que se desarrollan y también la poca especificidad que assume el concepto. Por outro, y en cuanto a su rigurosidad interna, se subrayó el desconocimiento existente sobre la calidad de los procesos de aprendizaje que transcurren en estas experiencias; y la falta de sistematización y de investigación sobre las estrategias educativas implementadas y sobre sus resultados y impacto en los grupos populares com los cuales se trabaja.”130 Com efeito, no presente, mesmo eivada das preocupações acima assinaladas, a educação popular abrange um grande espectro de práticas, cada uma a seu modo, voltada para os interesses, as necessidades, os valores, a cultura e os desejos da grande maioria da nossa 128
Teoria disseminada em larga escala nos anos setenta, especialmente através dos “aparelhos ideológicos do Estado” (Althusser) ou da “reprodução” das desigualdades sociais via escola (Bordieu e Passeron). 129 Vf. Germano, José W. Estado Militar no Brasil (1964-1985). São Paulo: Cortez/UNICAMP, 1993. 130 Conclusões do Seminário Taller sobre Educación Popular en America Latina y Caribe, realizado em La Paz (Bolívia) em 1990, registradas no livro Educação popular – utopia latino-americanas. São Paulo: Cortez/EDUSP, 1994, p. 320.
166 população: seja trabalhadora ou não, homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, sindicalizados ou não, do campo e da cidade – todos com suas múltiplas diferenças a serem respeitadas nas numerosas possibilidades de trabalhos pontuais, ou em conjunto, que podem ser realizados. Concretizando esse enfoque ampliado da educação popular, destacam-se várias experiências que estão sendo realizadas em todo país. Alguns exemplos podem ser elencados: em prefeituras de orientação do Partido dos Trabalhadores e em várias outras que não seguem tal orientação; no trabalho com mulheres na construção de sua cidadania; em escolas publicas que estão conseguindo minimizar ou eliminar a repetência e a expulsão escolar, na alfabetização de jovens e adultos; no ensino noturno público; em universidades que tem cursos e programas voltados à promoção e consolidação da cultura popular; nas múltiplas experiências com saúde publica; nos diversos movimentos sociais como o dos “sem-terra”; na continuidade do trabalho dos grupos da igreja católica progressista, além de tantos outros. Não mais importa se são formais ou não formais, institucionais ou não, não importa suas modalidades. O que está no centro das atenções é a permanência de um trabalho educativo antielitista e anti-excludente. Um trabalho que ajude a construir cidadãos que busquem seus direitos básicos à sobrevivência digna, ao trabalho garantido, a uma escola de qualidade com acesso e permanência de todos, a uma moradia razoável, à alimentação e à saúde plenas. Penso que todas as formas de educação que busquem esses parâmetros – básicos para qualquer país que pretende reduzir ao máximo suas disparidades devam ser incluídas no rol da educação popular. A educação popular, que já foi “de adultos”, “de igreja”, “de sindicato” e de tantos outros “de” e que, finalmente, sem perder seus horizontes anteriores, encampou a escola como importante espaço contraditório de combates por uma sociedade melhor e mais justa – impossível sem a educação para todos e de qualidade , deve se abrir cada vez mais, como instrumento da ante exclusão social (econômica, política, cultural...) e do antielitismo. No momento em que as seculares amarras da sociedade brasileiras forem quebradas, aí sim, poderemos notar a educação popular realizando-se em sua inteireza. Enquanto isso não acontece, a educação popular continua a ser um múltiplo espaço político-pedagógico, em (re)construção permanente, no qual deve grassar um trabalho de resistência, de “paciência impaciente” (FREIRE, 1987) e de esperança construtora. Certamente, nessa (re)construção merece, destaque a obra prático-teórica de Paulo Freire e, nesse sentido, concordamos com Puiggrós (1994) quando coloca: “Uno dos grandes aciertos de Paulo Freire fué destacar la presencia del elemento político en los procesos educacionales de nuestras sociedades no como simple reflejo de la lucha de clases, sino avanzando hacia el analisis de la forma especifica que adquire la opresión social en el interior del proceso educativo, en el lugar de transmisikón-creación del saber. A partir de postular la posibilidad del víinculo dialógico, dando por tierra con las teorias reproductivistas, Freire proporcionó elementos que nos permiten estudiar en el sujeto pedagógico las expresiones simbólicas de las diferentes posiciones relativas de educador y educando, y sus consecuencias para la produción, reprodución y/o transformación de la cultura. Ese ha sido probablemente el descubrimiento más importante del pensamiento educativo popular latinoamericano en la segunda mitad del siglo.” (p.17) Destarte, a educação popular – enquanto teoria e prática , nutriu-se do “descubrimiento” de uma politicidade que, ao invés de insistir no vetor da elitização/exclusão, concentrou-se na valorização dos elementos político-culturais que lograssem construir, cotidianamente, a difícil emancipação das camadas amplamente majoritárias da nossa sociedade. Podemos afirmar que a educação popular – embora marcada pela heterogeneidade e pela multiplicidade de suas formas, práticas e teorias , identifica-se através de um núcleo comum (bipolar, mas inseparável) constituído pelo binômio educação-política. Ora, durante séculos, a educação e a política se entrecruzaram a favor dos interesses dos mandatários das terras, da produção, do comércio e dos “donos de gente”. A partir dos 1950 e 1960, a essa concepção e a essa prática se opuseram grupos de estudantes, professores,
167 católicos, comunistas, socialistas, sindicalistas... utilizando-a em favor do que acreditavam ser os interesses e as necessidades das camadas populares. Após três/quatro décadas, segundo Freire (1993, p. 101-102), a educação popular como “um nadar contra a corrente”, é a que: a) “substantivamente democrática, não separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade”; b) “estimula a presença organizada das classes populares... no sentido da superação das injustiças sociais; c) “respeita os educandos... e por isso mesmo leva em consideração seu saber de experiência feito, a partir do qual trabalha o conhecimento com o rigor de aproximação dos objetos”; d) “trabalha, incansavelmente, a boa qualidade do ensino”; e) “capacita suas professoras cientificamente à luz dos recentes achados em torno da aquisição da linguagem, do ensino da escrita e da leitura”; f) “em lugar de negar a importância da presença dos pais, da comunidade, dos movimentos populares na escola, se aproxima da presença dos pais, da comunidade, dos movimentos populares na escola, se aproxima dessas forças com as quais aprende para a elas poder ensinar também”; “supera preconceitos de raça, de classe, de sexo e se radicaliza na defesa da substantividade democrática”; “ao realizar-se assim, como prática eminentemente política, tão política quanto a que oculta, nem por isso transforma a escola onde se processa em sindicato ou partido”. Fazendo nossas as palavras de Freire, apostamos na consolidação dessa concepção político-educativa no nascimento do próximo século. Deste modo, a educação poderá contribuir para a instituição de uma sociedade mais justa e menos desigual, na qual a conquista dos direitos básicos da cidadania concretizar-se-ia, em definitivo, para a imensa maioria dos que fazem o Brasil. Considerações finais – sobre os intelectuais/educadores e suas ações Além de contar com a inspiração de reflexões, como as citadas – ou de outras, cuja brevidade deste texto não nos permitiu destacar , penso que existem múltiplas tarefas e diversas “frentes” a construir para aqueles e para aquelas que trilham os caminhos da educação popular. Entre elas, são prioritárias as que nos fazem avançar na busca da competência e da eficácia técnico-profissional (educativo-pedagógica, prática e teórica), sem abdicar dos nossos ideais e das nossas ações pró-mudanças em todos os níveis da extrema desigualdade social que preside nosso tempo histórico. No espaço da Universidade, avançar nessa direção significa, por exemplo, melhorar nossa docência, encetar pesquisas socialmente relevantes, aproximarmo-nos de outros segmentos sociais com nossos cursos e trabalhos de extensão universitária, além de efetivarmos nosso compromisso com quem nos sustenta: a sociedade, que arrecada impostos – especialmente aqueles pagos por quem nunca teve acesso ao ensino superior, ou seja, a grande maioria. Nesse sentido, isso também significa, a meu ver, repensarmos nossos papéis enquanto intelectuais/educadores. E, com tal intuito, vale destacar a ideia do “intelectual específico”, advogada por Foucault (1979), em contraponto ao “intelectual universal”. Conforme suas palavras: “Durante muito tempo o intelectual dito „de esquerda‟ tomou a palavra e viu reconhecido o seu direito de falar enquanto dono da verdade e da justiça. (...) Ser intelectual era um pouco ser a consciência de todos. Creio que aí se acha uma ideia transposta do marxismo e de um marxismo débil: assim como o proletariado, pela necessidade de sua posição histórica, é portador do universal (mas portador imediato, não refletido, pouco consciente de si), o intelectual, pela sua escolha moral, teórica e política, quer ser portador desta universalidade, mas em sua forma consciente e elaborada. O intelectual seria a figura clara e individual de uma universalidade da qual o proletariado seria a forma obscura e coletiva (...). Pareceme que o que deve ser levado em consideração no intelectual não é, portanto, „o portador de valores universais‟; ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades.
168 Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade: a especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês a serviço do capitalismo, intelectual „orgânico‟ do proletariado); a especificidade de suas condições de vida e de trabalho, ligadas à sua condição de intelectual (seu domínio de pesquisa, seu lugar no laboratório, as exigências políticas a que se submete, ou contra as quais se revolta, na universidade, no hospital, etc.); (e)... a especificidade da política de verdade das sociedades contemporâneas.” (p. 8 e 13) Torna-se pertinente a reflexão sobre essas ideias de Foucault, especialmente quanto às especificidades dos papéis desempenhados pelos intelectuais e a visual extinção do intelectualcondutor “que sabe e deve ser seguido” – tão próprio a alguns grupamentos “de esquerda” no Brasil, ainda acostumados a se apropriar e a conduzir movimentos populares “em nome” da Revolução, do Partido ou de Deus. No caminho acima proposto, os intelectuais que contribuem para a construção de uma educação emancipatória das camadas populares no Brasil teriam que (ao mesmo tempo): a) tornar-se “orgânicos” às expectativas, às necessidades, aos desejos e às ações desses extratos da nossa população; b) fazer da especificidade do seu trabalho universitário um campo permanente de pesquisa e produção de conhecimento sobre a educação popular; c) estar permanentemente preocupados em buscar as verdades sociais, políticas, econômicas, pedagógicas etc., mesmo que essas contrariem seus posicionamentos ideológicos ou as determinações do seu Partido, da sua Igreja, do seu sindicato. E, finalmente, esses intelectuais precisariam se dispor a ouvir críticas, ao debate, enfim, ao exercício de uma democracia que, sem pressupor a sua liderança “enquanto donos da verdade e da justiça”, requer o seu trabalho específico como fundamental à construção de uma educação popular com a “cara” do nosso tempo histórico. Tempo marcado pela fragmentação social, pela heterogeneidade, pela multiplicidade de vivências intelectuais e, principalmente, pela persistência do flagelo da exclusão – adotada como regra histórica da própria constituição da sociedade brasileira, desde a invasão portuguesa – há 500 anos. Referências bibliográficas ARROYO, Miguel. “Fracasso-sucesso: o peso da cultura escolar e do ordenamento da educação básica” in Para além do fracasso escolar. Abramowicz, A. e Moll, J. Campinas: Papirus, 1996, p. 13. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. FREIRE, Paulo et al. Medo e ousadia – o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993. HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos – o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1998. PUIGGRÓS, Adriana. “Historia y prospectiva de la educación popular latinoamericana” in Educação popular – utopia latino-americana. Gadotti, M. e Torres C. São Paulo: Cortez/EDUSP, 1994, p. 13-22. SCOCUGLIA, Afonso C. A história das ideias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas. João Pessoa: UFPB, 1997. ______, ______. A história da alfabetização política na Paraíbrasil dos anos sessenta. Recife: UFPE, 1997 (Tese de Doutorado, mimeo.).
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EDUCAÇÃO POPULAR: UMA PERSPECTIVA, UM MODO DE ATUAR (Alimentando um Debate) Ivandro da Costa Sales* Educação A Literatura de Pedagogia e de Educação Popular insistem muito na produção e transmissão de conhecimentos e conteúdos, em conhecimento de teorias e metodologia, em produção e circulação de informações. Enfim, insistem bastante na dimensão intelectual da educação. Pouca atenção se dá à sua dimensão afetiva e prática. É como se a educação tivesse a ver, quase exclusivamente, com o conhecimento, com a ordem intelectual. Sustentamos, entretanto, que a educação tem como objeto e instrumento o saber e não só o conhecimento. O conhecimento é uma das dimensões do saber. É sua dimensão intelectual. O saber é o sentir/pensar/agir das pessoas, grupos, categorias, classes sociais. O saber inclui, portanto, a dimensão intelectual, a dimensão afetiva e a dimensão prática. O saber é a cultura. Quem não sabe da influência do sentimento, paixões, afetos sobre o pensar e o agir de todos nós? Quem não sabe igualmente da influência do pensar sobre o sentir e o agir das pessoas? E não se sabe, por acaso, como o agir cria e recria modos de sentir e pensar? O saber é sabedoria ou idiotice. É modo de atuar profundo, tranquilo, coerente ou modo de atuar confuso, incoerente, inseguro. Por que será que se tem dado tanta importância a razão e prestado pouca atenção aos sentimentos, afetos, subjetividade e ao modo de atuar nas salas de aulas, na atuação junto às organizações e movimentos populares e na vida em geral? Não se sabe, pela própria experiência, que se aprende com mais facilidade algo de que gostamos ou detestamos e que muitas vezes é a emoção que nos impulsiona a agir, cabendo à razão correr atrás para orientar ou reprimir? Educação não é, portanto, o processo de produção, transmissão, reprodução de conhecimento. É a produção ou reprodução de modos de sentir/pensar/agir. A não consideração dos sentidos, dos sentimentos e dos modos de agir das pessoas têm péssimas implicações na prática educativa: Desqualificam-se dimensões fundamentais da vida das pessoas, o que do ponto de vista da Educação Popular que se pretende, significa desqualificação e empobrecimento das pessoas; não se vivencia a participação, ao se impor às pessoas e grupos alguns objetivos, conteúdos, metodologia e formas de gestão que não tem ressonância e importância em sua vida. E compromete-se a eficácia da atuação quando não se considera a realidade subjetiva de pessoas de quem se deseja estar junto ou a quem pretende prestar um serviço. O saber (sentir/pensar/agir), ou a cultura, é a matéria prima da educação. É o saber que está sendo transformado no confronto de saberes. O saber é também o instrumental da educação, pois os modos de sentir/pensar/agir em intercâmbio se transformam mutuamente. Todas as pessoas, pelo que fazem ou deixam de fazer, interferem no sentir/pensar/agir de outras pessoas. Por isso todas as pessoas são educadoras. É neste sentido que se diz que toda relação é, necessariamente, uma relação pedagógica. Algumas pessoas têm a função de educadoras. São as pessoas que por opção, ou por exigência do seu emprego, ou porque para tal foram eleitas, se dedicam à formação de outras *
Professor Visitante do Centro de Educação, atuando no Curso de Pedagogia, no Programa de PósGraduação em Educação – Educação Popular – e coordenador do Grupo de Pesquisa em Universidade e Movimentos Sociais.
170 pessoas nas escolas, nas igrejas, nas associações, nas cooperativas, nos sindicatos, nos partidos etc. São profissionais da educação. Outras pessoas, além de educadoras, são especialistas em educação. Nesta categoria está quem se dedica a conhecer a história, as teorias e as metodologias da educação, a articulação da dimensão educativa com os objetivos econômicos e políticos, os indicadores de eficácia da atuação educativa, os critérios de avaliação e reorientação da prática educativa e o que mais diga respeito à produção, transmissão, reprodução de saberes.
Educação e sociedade O processo de produção, reprodução, elaboração de modos de sentir/pensar/agir faz parte e está em função de um contexto de interesses econômicos, políticos, culturais, afetivos, religiosos, alguns já firmados e tentando se perpetuar. Outros negados, mas lutando para se afirmar. O processo educativo está também inserido num contexto econômico, político e cultural, nacional e internacional. No nosso caso, fazemos parte da ordem capitalista que tem como grande objetivo o lucro e a acumulação. No capitalismo, as pessoas e todos os outros elementos da natureza ou são, ou podem ser transformados em mercadorias. Tudo se compra, tudo se vende: a honra, a alimentação do estômago e da fantasia, tudo que serve para a vida ou para a morte, o ar, as águas, os bosques, os solos... e tudo é capital, ou seja, mercadoria utilizada para produzir mercadorias que por conter em si trabalho pago e trabalho não pago são condições do lucro e da acumulação. As pessoas e os outros elementos da natureza transformados em mercadorias e em capital, só têm alguma importância enquanto estiverem sendo úteis no processo de produção de mercadorias. Assim sendo, os aposentados são inativos, inúteis, peso social, vagabundos. Os excluídos do processo de produção e circulação de mercadorias são também um peso e estão contabilizados com “Custo Brasil”. As crianças e adolescentes de quem o capital não precisará, morrerão no consumo e tráfico de drogas. E ninguém será responsabilizado por sua morte. Eles mesmos são culpados. Quem as manda consumir e traficar drogas! O modo de produção capitalista é o campo da livre iniciativa, da concorrência, do domínio dos “mais espertos” e mais fortes, do salve-se quem puder. É por definição concentrador de capital, de poder, de conhecimentos. Sob a hegemonia do capital financeiro, do narcotráfico e da produção de armas, o capitalismo atual exclui pessoas, regiões, ramos de produção e países. E se, na busca do lucro for necessário, produz armas, envenena o ar, o solo, devasta florestas, falsifica remédios, faz tráfico de drogas, de crianças, de mulheres... O modo atua de produção e circulação de mercadorias afeta imediatamente as pessoas: no seu direito ao trabalho; no direito a ter reposição das energias degastadas no trabalho, no desemprego, na busca de emprego, na perspectiva de não mais poder vender sua força de trabalho; no direito de ter poder na definição de tudo o que lhes diz respeito; no direito a ter seus conhecimentos e experiências tomados em consideração e aprofundados; no direito aos cuidados, prazer, beleza. A contradição e a consequente fonte de luta estão geradas: enquanto no modo de produção capitalista se tenta formar pessoas adequadas e adaptadas à reprodução do sistema, estas mesmas pessoas continuam tendo exigências como pessoas, como trabalhadoras e como membros do trabalhador coletivo nacional, internacional, mundial e planetário. Em cada pessoa reduzida à simples proprietária da mercadoria força de trabalho, ou excluída do processo de produzir bens e serviços, vive uma pessoa, um trabalhador, um cidadão, com bem mais direitos do que o de se reproduzir como peça de engrenagem de produzir lucro.
171 Educação Popular Educação é formação. É, portanto, bem mais do que informação. É o aprofundamento ou imbecilização do sentir/pensar/agir. A educação que queremos é a formação de pessoas mais sabidas. É a busca do equilíbrio e aprofundamento dos sentidos, das emoções, dos conhecimentos, da atuação. É a transformação do senso comum em bom senso, em sabedoria. Ser mais sabido é bem mais do que ser mais erudito. O conhecimento, insiste-se, é um dos elementos essenciais do saber, mas não é o único e nem o mais importante. Se é impossível ser sabido sem ter conhecimentos e informações, é bem possível ter muito conhecimento e não ter sabedoria, justamente por ser possível e até comum, em nossa sociedade, sentir de um modo, pensar de outro e agir em contradição com o que se pensa e se sente. O indicador do resultado educativo que aqui se pretende não é, portanto, a erudição. É situar-se bem no contexto de interesse. É usar armas adequadas nas lutas por objetivos econômicos, políticos, culturais, afetivos, religiosos... É a serenidade no modo de lutar. A Educação Popular é um modo de atuar e tem uma perspectiva: a apuração, organização, aprofundamento do sentir/pensar/agir dos excluídos do modo de produção capitalista, dos que estão vivendo ou viverão do trabalho, bem como dos seus parceiros e aliados em todas as práticas e instâncias da sociedade. E essa apuração, aprofundamento, organização do saber, ou do sentir/pensar/agir já é construção de uma sociedade em que as pessoas e outros elementos da natureza serão vistas e tratadas como agentes humanos e materiais e outros elementos da natureza serão vistas e tratadas como agentes humanos e materiais da produção de bens, serviço e cultura para a sociedade e não como produtores de mercadorias para quem as pode comprar. Supõe-se aqui que todos os cidadãos, todos os educadores profissionais (os que tem como função a formação de pessoas e grupos) e todos os especialistas em educação, querendo ou não, conscientes ou não, têm uma perspectiva: ou estão pela continuação do atual modo de organização da sociedade, ou estão pela sua transformação. Em síntese: a Educação Popular é a formação de pessoas mais sabidas e mais fortes para conseguir melhor retribuição à sua contribuição econômica, política e cultural; mais sabidas e mais fortes para serem reconhecidas como pessoas e trabalhadoras; mais sabidas, e mais fortes para serem tranquilas e felizes e para terem uma convivência construtiva e preservadora com o meio ambiente físico e humano. A prática educativa que se contrapõe à prática que aqui denominamos de Educação Popular é a que forma pessoas e trabalhadores submissos, desinformados, dilacerados, sem autoestima, sem altivez, inseguros, perplexos, sem esperança. É a que prepara pessoas para explorar e dominar outras pessoas e a natureza em geral. É a prática educativa que ajuda os atuais detentores dos bens, poder e informações a serem mais sabidos e mais espertos. Alguns teóricos, equivocadamente, chamam de Educação Popular qualquer atuação de órgãos governamentais ou civis, nos campos de alfabetização, habitação, saúde, transporte, segurança, organização etc., junto a trabalhadores desempregados, mal remunerados, sem terra, sem teto..., mesmo que esta educação tenha perspectiva de entorpecê-los e os acomodar. Neste caso, na verdade, trata-se de uma educação antipopular ousada por se realizar no próprio espaço físico do povo. Há também teóricos que só consideram popular a prática educativa que acontece fora do espaço formal governamental. Sustentamos, entretanto que é possível fazer educação popular nos espaços governamentais. Supomos também que é possível fazer educação antipopular em espaços populares alternativos. A nossa Educação Popular é uma perspectiva e um modo de atuar, modo que é uma exigência de coerência com a perspectiva de formar pessoas mais sabidas e relações sociais mais justas e felizes. Com efeito, o objetivo de formar pessoas mais sabidas, participativas, felizes, seguras, serenas e que convivam bem com todos os elementos da natureza, exige um modo específico de atuar. Exige que os objetivos sejam antecipados já no modo de atuar.
172 O processo educativo coincide, na prática, com a apuração, aprofundamento ou imbecilização do que as pessoas trazem da história, da família, do trabalho, da política, da vida. Não é, portanto, coerente com a perspectiva de Educação Popular quem não toma em consideração (para aprofundar num processo de intercâmbio de saberes) os conhecimentos, experiências, expectativas, inquietações, sonhos, ritmos, interesses e direitos das pessoas com quem se esteja convivendo. Não é também coerente com a perspectiva popular que impõe objetivos, conteúdos, palavras de ordem, verdades. E todas as técnicas e todas as dinâmicas que facilitam a aprendizagem são metodologias de Educação Popular se forem utilizadas no contexto de vivência competente da organicidade (apuração do que as pessoas precisam e querem que seja aprofundado) e num contexto de tomar gosto em ter o que dizer sobre tudo o que lhes diz respeito. A Educação Popular é, portanto, um modo orgânico e participativo de atuar na perspectiva de realização de todos os direitos do povo, ou seja, dos excluídos e dos que vivem e viverão do trabalho bem como dos seus parceiros, aliados e amigos na sociedade. Povo, então, é uma situação e um posicionamento na sociedade. Povo são os excluídos, os que vivem ou viverão do trabalho e os que estão dispostos a utar ao seu lado. Educação popular e Estado Quase toda a literatura de Educação Popular identifica Estado com Governo e Governo com Estado. Chama equivocadamente organizações governamentais de organizações públicas e as políticas governamentais, de políticas públicas. Essa identificação de Estado com Governo e Governo com Estado vem de um tempo que já passou. Era um tempo em que a gestão da produção e de todos os serviços, no mundo dito socialista, era feita pelo governo do partido único. Vem também do tempo em que, nas cidades capitalistas, o governo fazia a gestão dos serviços de reprodução social (saúde, habitação, segurança, lazer...) bem como a gestão da infraestrutura produtiva (energia, transporte, comunicação). No socialismo real o governo usurpou e monopolizou toda a função de gestão. No ocidente capitalista, o capital entregou ao governo a gestão das condições dispendiosas do lucro e de tudo o que não desse lucro imediatamente. Era o tempo do Estado Restrito identificado com o governo, principalmente com o Poder Executivo do Governo. E isso de dizer que governo é da esfera pública, que é responsável pelo bem comum, foi uma invenção para esconder uma relação clara do governo com as classes sociais. Foi algo inventado para que não se perceba e não se saiba que o governo é fundamentalmente um serviço aos grupos dominantes. E para que não se preste atenção aos principais agentes da sociedade: os trabalhadores e os empresários. Com esta conversa de Bem Comum desloca-se o foco da atenção. O Gerente (governo) fica parecendo mais importante do que quem o elegeu (trabalhadores, empresários). E fica parecendo que a grande questão da política é a mudança de gerente e não as mudanças das relações entre atores fundamentais, bem como as relações históricas e mutáveis destes com seus administradores na sociedade civil e no aparelho governamental do Estado. Infelizmente esta identificação de Estado com Governo ainda é predominante na prática e na literatura de movimentos sociais e Educação Popular, nos fazendo esquecer que Estado não é uma coisa, uma entidade, um aparelho. Estado é uma função. É a gestão de interesses e direitos. E quem estiver administrando interesses e poderes está exercendo uma função estatal. Está sendo Estado. Até pouco tempo a função estatal era exercida só pelo governo. Mas a situação mudou. O desenvolvimento do capitalismo gerou muita injustiça e consequentemente fez aparecer, do lado dos injustiçados, muitos grupos para lutar por seus direitos (os sindicatos, cooperativas, associações, grupos de idade, gênero, etnia, sem teto, sem terra, e também organizações de apoio técnico e financeiro aos grupos populares).
173 Do lado dos capitalistas surgiram também muitos grupos para assegurar seus direito se privilégios (sindicatos e federações patronais, FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, Grupo dos Sete, Blocos Econômicos etc.). Existe, pois, um braço Governamental do Estado. É a dita sociedade política. Existe também um braço civil. É a sociedade civil organizada. O Estado, agora, é a gestão dos interesses e direitos dos diferentes grupos e classes sociais, gestão que é feita pelo aparelho governamental e pelas organizações da sociedade civil. Os empresários estão bem mais avançados do que os trabalhadores na percepção e vivência da transformação da realidade. Eles definem muito bem o que pretendem gerir através de suas organizações civis e o que deve ainda ser gerido pelo governo. Eles usam bem o governo. Eles governam o governo. Os trabalhadores ainda acreditam pouco em si mesmos e em suas organizações. Ainda se entregam muito a “salvadores da pátria”. Acreditam mais em leis feitas pelos adversários do que em suas próprias lutas, quando teriam melhor resultado se batalhassem para ser governo e não para ter governo. A educação na perspectiva popular ajudaria os excluídos, os injustiçados e seus amigos, parceiros e aliados a se situarem bem neste novo contexto. O grande desafio atual é a criação de espaços públicos governamentais e espaços públicos civis, ou espaços públicos geridos por representantes governamentais e por representantes da sociedade civil. Público não é o que está no campo governamental. É o que destina a todos ou à maioria e que ao mesmo tempo é decidido por todos ou por legítimos representantes de todos ou da maioria. Espaços públicos não exclusivamente governamentais são serviços e atividades geridas pelos conselhos ou por representantes de organizações de trabalhadores. Como seria possível um trabalho de Estado Popular dentro do aparelho governamental do Estado? É preciso fazer algumas distinções. Há espaços mais centrais e menos centrais para mudança ou manutenção da ordem capitalista. Um trabalho de Educação Popular em São Paulo deve preocupar aos ideólogos do capitalismo mais do que o mesmo trabalho em Icapuí (CE) ou mesmo em Porto Alegre. O FMI provavelmente presta mais atenção a Brasília do que ao que está acontecendo num pequeno e pobre estado do Nordeste. Um trabalho de Educação Popular deve chamar menos atenção numa universidade do que num órgão militar. Todas essas distinções é para dizer que um trabalho de Educação Popular é possível em qualquer espaço desde que se tenha sabedoria para tomar em consideração os limites e possibilidades de cada espaço. No aparelho governamental é essencial identificar os aliados e não pedir deles o que eles não pode dar, sob pena de sofrerem severas punições. Em algum caso raro, é possível parceria. Em todos os casos é possível identificar aliados e estabelecer alianças. Em muitos casos convém que se atue como oposição, negociando o que for possível, sabendo que só há negociação quando se tem força para ganhar ou ceder alguma coisa. Quando não se tem força, não há negociação. Pode até haver alguma conversa amigável. Mas só conversa. Em geral os espaços governamentais são campos desiguais de luta. É um espaço adverso aos interesses populares. Os seus dirigentes, mesmo sendo aliados dos trabalhadores, não podem deixar de ser um serviço aos grupos capitalistas, que às vezes concedem muito, desde que forçados pela luta dos trabalhadores e desde que seus interesses fundamentais não sejam ameaçados.
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Educação popular e formas de luta Educação Popular é a produção de uma cultura ou de um modo de sentir/pensar/agir mais coerente. É a formação de bons lutadores. Toda a literatura da Educação Popular registra a preocupação prática com a transformação da realidade. Predomina, entretanto, o que na linguagem militar se denomina Guerra de Movimento. É a tomada do poder central. É a marcha para o que se considera a sede de poder. É a tomada do Palácio de Inverno na Rússia ou do Palácio do Planalto no Brasil. Acontece, entretanto, que o poder não mais está num só lugar, numa sede, num palácio. As relações capitalistas, seu estilo de vida, sua cultura, bem como a resistência e as formas novas e alternativas de produzir, governar, viver, pensar, perpassam toda a sociedade. Estão em todos os poros da sociedade. Os capitalistas, por exemplo, instalam suas empresas em todas as regiões de todos os países e com elas vem um modo de produzir, de pensar, de viver, de sentir. É a guerra de posições. Essa parece ser a luta dos novos tempos, ocupar trincheiras e espaços, viver relações diferentes. Viver, já agora, os objetivos pretendidos. A dificuldade é que temos uma educação que só nos prepara para o “Fim da História”. A felicidade está sempre depois: na primeira comunhão, na formatura, no casamento, no nascimento dos filhos, no mercado, no comunismo, na morte, no céu, inferno. Sempre depois. Sempre felicidade ou infelicidade completas. Sempre Hollywood. Talvez, para ser feliz, não seja aconselhável pensar em sistema, em felicidade completa, em ausência de sofrimento, tristezas. Talvez seja uma boa opção se engajar na formação de pessoas mais sabidas e mais fortes para irem reagindo, em cada momento, definindo limites para os adversários, construindo e vivendo intensamente as alegrias, tristezas e sofrimentos inerentes à condição humana em todos os momentos, sem esperar o grande dia da revolução. É preciso, saltar fora da lógica do capital. Conviver com a ordem capitalista, reagindo às suas desgraças e construindo, onde a vida nos colocar, algo diferente e cujo objetivo e sentido sejam a vida e não o lucro e cujo caminho sejam boas relações e não a exploração e a dominação. Educação popular das diferenças biológicas e culturais Na sociedade tudo é histórico, tudo é herdado, tudo é aprendido. Aprende-se a ser trabalhador, patrão, chefe, funcionário, dirigente, base. E no interior de cada classe, categoria ou grupo, se aprende a ser mulher, homem, índio, negro, branco, jovem, velho. Por acaso, dá para negar as diferenças biológicas e culturais entre homens e mulheres; jovens e adultos; índios, negros e brancos? E faria bem para alguém se desfazer das marcas que traz de sua família, do seu sertão, de sua cidade, de seu país? Cultura, ou modo de sentir/pensar/agir, não é para ser venerada, respeitada ou violenta. Modos de sentir/pensar/agir interagem permanentemente com modos diferentes e até antagônicos de sentir/pensar/agir. O que não se justificaria numa perspectiva de Educação Popular seria a imposição de modos de viver, ou a sua absolutização e veneração, ou então o seu congelamento. Na formação de pessoas mais sabidas devem ser criadas oportunidades de intercâmbio de culturas. E as pessoas mudarão quando desejarem mudar e quando tiverem condições objetivas e subjetivas de optar por outro jeito de viver. A Educação Popular de mulheres e homens, negros, brancos e índios; velhos e jovens, ao antecipar em sua metodologia, os objetivos que se deseja alcançar, já os tornará velhos ou jovens, mulheres ou homens, negro sou brancos ou índios, mais sabidos, mais fortes, mais considerados, mais amados, mais felizes.
175 Nenhum sucesso terá quem, numa prática educativa, não tomar em consideração marcas tão profundas como as de gênero, de geração, de etnia, de região... Certamente não pretendem formar pessoas mais sabidas quem tenta lhes impor uma cultura pretensamente superior. E é muito conservador quem deseja parar o mundo, privando as pessoas e grupos do contato com outras pessoas e grupos portadores de marcas biológicas e culturais diferentes e, por isso mesmo, enriquecedoras. O trabalho educativo junto a excluídos, injustiçados e a seus amigos e aliados, está solicitado, no momento atual da globalização de todas as atividades, a formar “cidadãos do mundo, filhos da aldeia”. A sistematização da educação popular Lamenta-se tanto a quase inexistência de uma sistematização da Educação Popular! O que se está querendo ao desejar esta sistematização? Será que se está querendo algo possível? E se for possível, será desejável sistematizar as experiências em que se dá a Educação Popular? Há quem considere alguns programas e experiências em si mesmos como Educação Popular. É a própria experiência que é chamada de popular ou antipopular. Supomos, entretanto, que a Educação Popular não é um programa, nem uma entidade. É um modo e uma perspectiva de atuar em todas as práticas econômicas, políticas, culturais. Por isso, parece impossível fazer uma tipologia dos milhões de práticas diferentes, diferenciadas e mutáveis que acontecem no mundo. As experiências históricas são únicas. São feitas por agentes específicos, em épocas bem determinadas, com objetivos definidos e meios adequados aos fins e ao contexto em que se dá a experiência. Às vezes, parece que se tem nostalgia dos tempos dos paradigmas fechados. Às vezes, parece renascer a tentação de criar categorias que em vez de expressar a riqueza do fenômeno, parece colocá-lo em camisa de força. Seria interessante que ao invés de tipologias, categorias ou algo do gênero, nos contentássemos em aprofundar o sentido da prática educativa concreta que acontece no interior de todos os programas, projetos, intervenções. Pesquisar, portanto, seus objetivos econômicos, políticos e culturais, suas estratégias, suas metodologias, seu planejamento, seu modo de gestão, a sintonia direção-base e os resultados econômicos políticos e culturais alcançados. E iríamos criando nomes que expressem as leis de geração, gestação e transformação do processo em análise. E como não dá para esquecer que o processo fundamental da sociedade é a aliança/enfrentamento de interesses econômicos, políticos, culturais, afetivos, religiosos, alguns já afirmados tentando se perpetuar e outros negados tentando se afirmar, é bom tentar identificar, em cada momento da conjuntura, os parceiros, aliados ou adversários nos órgãos governamentais e nas organizações da sociedade civil, em âmbito local, regional, nacional e internacional.
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EDUCAÇÃO POPULAR E A TERAPÊUTICA MÉDICA Eymard Mourão Vasconcelos*
Introdução: O tratamento passa pela liberdade e pela cultura do paciente Medicar é muito mais que escolher e preservar os melhores cuidados e medicamentos. Tratamos pessoas que, por serem marcadas por uma cultura e por limitações materiais, não se modelam passivamente às nossas orientações. Os pacientes não são quadros em branco onde podemos imprimir nossas conclusões e prescrições, pois já trazem para o atendimento médico suas próprias visões de seus problemas e uma série de outras práticas alternativas de cura. São visões e práticas normalmente não narradas durante a consulta, principalmente se o paciente é de nível socioeconômico baixo. Estamos em uma sociedade onde o saber dos doutores é dominante, tornando ilegítimos os outros saberes e, portanto, motivo de vergonha. Assim, medicar é também um jogo de convencimento e negociação do nosso diagnóstico e prescrição com estes outros saberes e práticas, onde a conduta resultante será um híbrido, fruto da reinterpretação pelo paciente, cidadão livre. Quais são esses saberes e práticas populares? Esta é uma pergunta com a qual os médicos, em geral, não se preocupam conscientemente, apesar de irem desenvolvendo, pela intuição e imitação dos mestres, uma série de estratégias de relação com essas práticas e percepções populares. Denominam essas posturas não refletidas de lidar com a cultura do paciente de “bom senso médico”. São elas que explicam o sucesso de muitos médicos (nem sempre aqueles com melhor capacitação científica) com os seus pacientes. Esse sucesso médico é difícil de ser avaliado pelo próprio clínico, que normalmente continua trabalhando apenas com os pacientes que se integraram às suas condutas. Os insatisfeitos, em geral, não voltam. Se voltam, não costumam falar de suas insatisfações ou das adaptações realizadas. Por que um aspecto tão central na prática médica deve continuar sendo enfrentado intuitivamente? Se buscamos a bibliografia mais atualizada para decidir qual antibiótico usar em um caso de abscesso pulmonar, por que não buscar também bibliografia atualizada para enfrentar esta questão? Há ciências que cuidam de problemas como esse: a antropologia, a sociologia e a educação. Talvez, nós profissionais de saúde tenhamos um pouco de dificuldade em lidar com a natureza aparentemente mais imprecisa das ciências sociais. Mas a gravidade dos problemas de saúde com que lidamos está a exigir mais esse esforço cientifico. A antropologia, que se estruturou como ciência a partir do estudo de povos considerados exóticos e primitivos, passou também, a partir de meados do século, a utilizar o seu método para compreensão da dinâmica cultural dos diversos grupos sociais da civilização ocidental (GUIMARÃES, 1990). A educação, antes voltada basicamente para as questões da escola, passa a refletir também sobre o significado das relações educativas que acontecem nas diversas instâncias e práticas da vida social. A medicina tem concentrado seus esforços no enfrentamento de doenças isoladas através do desenvolvimento de técnicas medicamentosas, cirúrgicas e eletrônicas que atuam no processo de adoecimento e de cura ao nível do corpo biológico. O esforço médico, em geral, corre paralelo, dessincronizado e até mesmo em oposição ao esforço e à busca que a população vem fazendo para enfrentar seus problemas de saúde. A proliferação das chamadas medicinas alternativas (ou paralelas) é um sinal da crescente percepção pela sociedade dos limites da medicina. Com a multiplicação dos Centros de Saúde a partir da implantação do Sistema Único de Saúde, esta questão tornou-se fundamental. Antes, a grande distância entre os hospitais e ambulatórios centrais e o cotidiano da vida popular tornava impossível uma interferência mais significativa dos profissionais nesse nível. Mas os Serviços de Atenção Primária à Saúde *
Professor do Departamento de Promoção da Saúde da UFPB e do Programa de Pós-Graduação em Educação – Educação Popular – e coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação Popular na Saúde.
177 representam uma inovação institucional justamente porque possibilitam essa aproximação. A experiência internacional, como é o caso cubano, tem demonstrado que a sua surpreendente eficiência se dá na medida em que o serviço consegue se inserir profundamente na dinâmica social local. As diferentes práticas populares em saúde Como são estas práticas populares de saúde? Antes de mais nada, é preciso chamar atenção para a heterogeneidade das classes populares. As mudanças da economia tem levado a uma intensa fragmentação e diferenciação da população. Nomes genéricos como “os pobres”, “a comunidade”, “a classe trabalhadora” ou “o povo” tendem a esconder os diferentes modos de vida e de pensamento existentes na população. Mesmo quando aparenta ter um grande grau de homogeneidade, como é o caso de uma favela, na verdade é composta de grupos sociais muito diferentes entre si, tanto do ponto de vista material como cultural (proletários, empregados domésticos, pequenos comerciantes, traficantes de drogas, mendigos, líderes, recém-migrados rurais, famílias antigas e tradicionais, doentes mentais, artistas etc.). O médico, se quer se aproximar da cultura de seu paciente, precisa estar atento para esta diferenciação: de onde provém a renda da família, a que grupo religioso ou racial pertence, é ligado a algum movimento social? Podemos didaticamente dividir as práticas populares de saúde segundo a sua localização social: a – práticas familiares ou caseiras; b – práticas executadas por pessoas que delas auferem renda ou distinção social (raizeiros, rezadeiras e pais-de-santo); c – práticas dos movimentos sociais locais. a – Práticas familiares ou caseiras de saúde O serviço de saúde tende a tratar cada paciente como se fosse um indivíduo solto na sociedade. No entanto, ele, ao adoecer, procura discutir seu problema com amigos e familiares, delineando uma visão sobre o mesmo. Na maioria das vezes são tentadas medidas terapêuticas caseiras. O adoecimento traz uma revalorização da vida familiar e dos laços de solidariedade dos amigos. As orientações e os cuidados prescritos pelo médico se misturam com as do grupo familiar. O tratamento depende do envolvimento de toda essa rede. Por isto a abordagem medica precisa se alargar para o grupo familiar do paciente, principalmente diante dos casos mais complexos. Mas, ao perceber certa crítica ou desconfiança familiar diante de sua prescrição, o médico tende a assumir uma posição de desvalorização dos vínculos que unem esta rede de apoio, tão fundamental para a recuperação do paciente e que, muitas vezes, está fragilizada e em crise pela baixa autoestima e pela opressão vivida por seus membros. Colaborando com esta postura, existe um certo preconceito das categorias profissionais mais intelectualizadas contra a família, vista como instância de coerção à individualidade e a liberdade pessoal. Mas, diferentemente dos grupos sociais mais abastados que podem comprar no mercado muitos dos serviços tradicionalmente fornecidos pela família, no meio popular estes apoios caseiros são fundamentais. As famílias populares podem apresentar-se de formas bastante diferenciadas da família nuclear (pai, mãe e filhos), considerada como modelo de normalidade. É crescente o número de famílias sem a presença do pai ou onde o homem é pai de apenas alguns dos filhos. Costumam ser julgadas como desestruturadas, justificando para o médico uma não implementação de sua prescrição. São comuns as famílias extensas, onde moram na mesma minúscula casa avós, tios, amigos recém-chegados do interior, irmãos casados, mães solteiras etc. É uma situação, muitas vezes, classificada como promiscuidade. Existem ainda famílias vivendo situações de crise (alcoolismo, miséria extrema, conflitos conjugais graves, doença mental, grande número de filhos pequenos, desemprego, conflito com o crime organizado etc.) que não conseguem dispensar os cuidados básicos aos seus membros. Vistas como acomodadas, tendem a ser desprezadas pelos serviços por não dar conta de se enquadrarem na sua rotina
178 (horário de marcação de consultas, execução dos exames laboratoriais, postura atenciosa nos atendimentos e obediência detalhada da prescrição). Neste momento, o setor saúde segrega justamente os mais carentes, atuando de forma semelhante à instituição escolar que os marginaliza através da repetência e evasão escolar. Ao contrário de desprezo e humilhação, essas famílias em situação de risco e com membros (crianças, idosos doentes e deficientes) sem autonomia de buscarem por conta própria seus direitos de cidadãos, requerem um acompanhamento diferenciado. Neste sentido, tem sido uma das prioridades da UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância, o apoio da valorização da abordagem à família nas práticas de saúde (KALOUSTIAN, 1994). Historicamente, tem cabido às mulheres nas várias sociedades a maior responsabilidade com as tarefas domésticas e os cuidados das crianças. Responsável pelo dia a dia do lar é a dona de casa quem convive mais de perto com as precárias condições de vida da família popular, mesmo quando é forçada a trabalhar fora para complementar a renda familiar. É ela quem coordena as iniciativas para se virar com os mínimos recursos existentes, tentando aproveitá-los ao máximo para manter um nível de saúde suficiente para a sobrevivência de todos. É a mulher quem assume os cuidados do recém-nascido e das crianças menores (higiene, alimentação, apoio psicológico e proteção dos acidentes). É a principal responsável pela manutenção da limpeza da casa e do cuidado com o vestuário. Assume o tratamento caseiro das doenças mais simples, seja através do uso de plantas medicinais, seja através de medicamentos indicados anteriormente por profissionais de saúde e cujo uso foi aprendido. Nas doenças mais graves é a dona de casa quem leva as crianças ao médico, enfrenta filas e a burocracia dos serviços, carrega o doente nos ônibus ou no colo de um serviço para outro, aplica os medicamentos e cuidados prescritos, vigia o surgimento de sintomas e sinais de complicações clínicas, controla a vacinação e outros cuidados preventivos. Enfrenta o descaso do Estado para com os doentes das famílias trabalhadoras, brigando para conseguir fichas, dando “jeitinhos” para ter acesso a serviços especiais, denunciando e reclamando quando é grosseiramente injustiçada, implorando consideração etc. Também é a mulher da classe trabalhadora quem toma as maiores iniciativas para superar os conflitos entre os filhos, com o marido e com os vizinhos, tentando manter o equilíbrio psicológico. A educação, a formação de hábitos, o acompanhamento na escola e a orientação do lazer dos filhos são outras tarefas coordenadas pela mulher. Ainda administra a utilização dos alimentos e materiais de consumo disponíveis, faz trocas e empréstimos com a vizinhança e controla as dívidas nos armazéns para que a carência não chegue a graus extremos. Por causa desse seu maior envolvimento com as questões de saúde do lar, as mulheres são as que mais participam das organizações comunitárias e dos grupos reivindicativos locais por melhores condições de vida e saúde. Essas mulheres são, portanto, detentoras de um significativo saber e de uma rica prática em saúde que precisam sem considerados pelos profissionais. Elas (cuidando de si ou trazendo parentes) são as principais presenças populares nos serviços de saúde. Muitas vezes, a aparente apatia e desinteresse que demonstram é sinal de resistência e insatisfação ao modo como são tratadas: uma massa uniforme, carente, sem experiência e insatisfação ao modo como são tratadas: uma massa uniforme, carente, sem experiência nas questões de saúde e, portanto necessitando de ser doutrinada (DIAS, 1987). Os cuidados caseiros narrados durante a consulta devem ser avaliados pelo clínico não apenas por seu impacto direto na biologia do corpo doente, mas também por seu significado na totalidade da vida. Assim, o agasalhar o marido gripo ou o lhe preparar gemada quente é também um sinal de carinho e acolhimento, fundamentais na sua recuperação. É neste sentido que se diz que a medicina popular não sofre da separação, que marca a alopatia, entre o que é biológico, espiritual e psicológico. Com chás, orações, alimentos especiais e carinho, a experiência de adoecer é superada em dimensões que vão além da recomposição do órgão afetado: pode significar o fortalecimento dos laços de solidariedade e gratidão e do sentimento de segurança e felicidade do paciente. Essas práticas, carregadas de dimensões religiosas e atitudes de acolhimento, ajudam o paciente e sua família, em crise pela doença, a reelaborar a experiência de sofrimento vivenciada, reorganizando suas posturas diante da vida. A dor se
179 alivia e surge um novo ânimo para enfrentá-la, quando se percebe seu sentido na história do grupo a que se pertence. O crescente reconhecimento social que vêm alcançando muitas das chamadas medicinas alternativas (homeopatia, acupuntura, naturopatia etc.), que funcionam segundo modelos explicativos fora da lógica científica da nossa medicina, vem tornando cada vez mais evidente o que os filósofos da ciência estão, há algum tempo, buscando ressaltar: o método científico, o mesmo que construiu a fisiopatologia e terapêutica médica, é apenas um dos caminhos possíveis de conhecer e intervir n processo de adoecimento e de cura. O mistério da vida humana extrapola, em muito, o conhecimento científico. É preciso estar aberto e respeitar outras formas de abordagem dos problemas de saúde, entre as quais, a medicina popular. Nós, brasileiros, somos herdeiros de um saber em saúde, acumulado durante milênios, de geração em geração, que pode contar com a flora e a fauna mais diversificadas do planeta e que só ultimamente começa a merecer algum estudo científico. Muitos médicos que conviveram de perto com o arsenal da medicina popular ficaram fascinados com suas curas “inexplicáveis”. Mas são experiências fragmentadas e não sistematizadas. É preciso, portanto, superar a arrogância de muitos profissionais de saúde diante de considerações trazidas por populares (muitas vezes descalços ou com olhar envergonhado) sobre os seus problemas de saúde. b – Práticas de saúde executadas por raizeiros, rezadeiras e pais-de-santo. A medicina popular é um conhecimento difusamente presente na maioria das famílias, baseado na utilização de plantas medicinais, cuidados caseiros e orações. Em cada lugar sempre há os mais entendidos, mas são pessoas que exercem sua atividade profissional habitual e, de vez em quando, orientam alguém que os procura. Não são muitos os locais onde essas pessoas mais entendidas se dedicam essencialmente ao tratamento de doentes, passando, então, a aceitar presentes e pequenas retribuições. São distinguidos como sábios populares. Dificilmente esta medicina popular chega a ser encarada como uma atividade econômica rentável, pois é exercida com grande motivação religiosa. Acreditam que seu saber é um presente de Deus que não pode ser comercializado. Dependendo da ênfase dada às orações na abordagem dos casos, são chamados de raizeiros ou rezadeiras. É através destes sábios populares que a medicina popular deixa de ser um conjunto fragmentado de práticas de cura para se tornar um sistema complexo e articulado de conhecimentos sobre a vida, a doença e a morte. Há um estudo muito interessante de um raizeiro nordestino, baseado no seu depoimento (TIAGO, 1984), que ressalta justamente a dimensão espiritual dessa prática de saúde, normalmente não explicitada nas inúmeras publicações sobre o tema, que tendem a ser apenas uma descrição das plantas medicinais utilizadas. Com a urbanização e a expansão da medicina oficial, essa medicina popular vem se tornando imprecisa em muitas regiões: há muita confusão em relação a identificação das plantas, a dose a ser utilizada e sobre as melhores abordagens. Nas cidades maiores há os vendedores de ervas e plantas medicinais em barracas nas feiras e nas ruas. Apesar de não terem, em geral, um conhecimento muito extenso, eles também fazem consultas e prescrevem. Por serem muito mais comerciantes do que sábios populares, tendem a exercer uma medicina popular muito simplificada: para cada queixa, uma planta e uma venda. As dimensões espirituais e de acolhimento psicológico, tão fortes na medicina popular, são deixadas de lado. É baixa a confiabilidade da identificação das plantas que vendem. Nos últimos anos esse comércio vem se sofisticando, com a organização de indústrias e farmácias. A medicina popular pode, portanto, se apresentar de forma bastante diversificada. Ao mesmo tempo em que é preciso respeitá-la, é necessário saber de suas contradições internas. Muitos pacientes chegam usando remédios caseiros ou perguntando sobre a possibilidade de usá-los. O médico, mesmo não tendo uma opinião acabada sobre cada um desses tratamentos, pode criar um espaço de aprofundamento, na medida em que, manifestado o seu respeito e interesse, explicita o seu pouco conhecimento sobre os recursos da medicina popular e expõe o tratamento que estudou e conhece, com os seus limites e as suas vantagens. O diálogo pode continuar se o paciente coloca suas dúvidas, suas experiências anteriores e as circunstâncias de
180 sua vida que facilitam ou atrapalham cada um dos tipos de tratamento e se o profissional, com o seu conhecimento, opina sobre cada uma daquelas colocações. Mesmo que o clínico não tenha conhecimento sobre o efeito médico de determinada planta, ele tem informações sobre a maneira de diagnosticar e os mecanismos biológicos de cada doença, que podem ajudar a redefinir o seu uso. Tendo poucas informações sobre o efeito constipante do chá de broto de goiabeira na diarreia, tem muito o que opinar sobre o seu uso na medida em que essas diarreias se curam pelos próprios mecanismos de defesa do organismo e que as drogas constipantes podem prejudicar estes mecanismos. Ele pode contribuir para o questionamento do uso de determinada planta para o tratamento de “bronquite”, na medida em que sabe, que o que é chamado de bronquite engloba uma série de doenças diferentes, com diferentes causas e, portanto, exigindo diferentes tratamentos. Em áreas onde é forte a cultura negra e estão presentes o candomblé e a umbanda, o médico está sempre se defrontando com os seus sistemas mágicos de cura, cuja compreensão exige um esforço muito grande. Enquanto os erveiros, de uma forma semelhante à medicina alopática, se voltam para a cura de doenças pré-definidas buscando nas plantas uma intervenção sobre órgãos afetados, os ritos terapêuticos afro-brasileiros atuam essencialmente ao nível do simbólico. Nos seus ritos, se procura retirar, não uma determinada doença, mas os maus fluídos que acompanham o doente e o fazem sofrer, buscando reorganizar as suas relações com o mundo sobrenatural e a sociedade. Os pais-de-santo utilizam também as plantas medicinais na lógica dos raizeiros em muitos casos, mas o que lhes é característico é a utilização de certos vegetais como instrumentos de seus rituais. É o caso da jurema (com seu efeito alucinógeno) e os ramos e folhas para as benzeções. Os pais e mães-de-santo procuram, através de rituais em que se entra em estado de transe, obter a intercessão dos espíritos para resolver as, por eles chamadas, “doenças espirituais”. Neste sentido, é uma prática de cura que se integra com a assistência médica oficial: muitas vezes os pais-de-santo encaminham para o médico o tratamento dos “problemas materiais”. É usual ter pacientes se tratado simultaneamente nos dois sistemas de cura. Pelo caráter exótico destes ritos, é comum os médicos assumirem uma postura de desprezo, sem buscar entender as narrativas dos pacientes que deles fazem uso. No entanto, estudos tem chamado a atenção para a eficácia desses rituais diante de problemas de saúde mental e de dimensões psicológicas das doenças orgânicas. Durante os ritos, o indivíduo em crise existencial vê seus conflitos, contradições, frustrações pessoais se rearticularem dentro de uma nova visão religiosa e global de sua vida, onde os seus males deixam de ser “uma fraqueza” ou “uma inferioridade” para se tornarem resultados de um jogo universal e que podem ser superados ela adesão ao culto, onde passa a encontrar um novo espaço de convivência social, muitas vezes com mais solidariedade e amizade. A partir desta experiência pode-se conseguir um progressivo reordenamento das relações familiares e comunitárias (LOYOLA, 1984). É um desafio para o médico, que também tem suas crenças e ritos, dialogar com outra crença tão diferente, mas que pode centrar no processo de cura de seu paciente. c – Os movimentos comunitários de saúde. Principalmente a partir da década de 1970, os médicos que atuam junto às classes populares vêm se deparando com um novo e importante interlocutor: os movimentos sociais locais. São os grupos de mulheres, associações de moradores, núcleos locais de igrejas pentecostais, grupos de jovens, pastoral da criança, grupos de capoeira, comissões municipais ou locais de saúde, os vicentinos, pastoral da saúde, núcleos locais de partidos políticos, mobilizações em torno de determinada reivindicação, etc. Em geral são formados de um número relativamente pequeno de participantes por grupo, têm formas coletivas de tomada de decisão e um distanciamento pequeno entre as lideranças e os demais participantes. Eles vêm transformando os problemas individuais de saúde em problemas coletivos enfrentados com reflexões e discussões, lutas políticas, criação de redes de solidariedade e manifestações culturais. Mesmo que muitos dos pacientes não pertençam a nenhum destes movimentos, sabem que a eles podem recorrer em caso de uma dificuldade maior e são atingidos por suas atividades culturais. Têm significado um importante espaço pedagógico na formação de pessoas
181 conscientes de seus direitos e capazes de intervir no jogo social, levando assim a um alargamento das possibilidades de cada paciente enfrentar de forma mais intensa as raízes de seus problemas de saúde. Abrem, portanto, para o médico a possibilidade de uma abordagem mais ampla da doença que não se reduza à prescrição de um medicamento voltado para o órgão acometido, mas que busque também intervir nas condições sociais, ambientais e psicológicas de base. Muitos profissionais assumem uma postura defensiva, em relação a esses movimentos, vendo-os apenas como vigias e cobradores de seu trabalho. Por causa deste medo, não se aproximam e assim não percebem a usual receptividade e vontade de aliança. O envolvimento com esses grupos possibilita ao médico o acesso a importantes conhecimentos sobre a realidade local e, ao mesmo tempo, contar com novos aliados e recursos comunitários para o tratamento de diversos pacientes. Mas é importante buscar se relacionar com os movimentos comunitários sem se contrapor a sua autonomia. O título de doutor significa um poder simbólico que tem a força de calar vozes ou fazer das relações com o meio popular uma relação de subordinação. Um método: a construção conjunta do tratamento necessário O modelo de consulta médica tradicional está centrado em uma busca acurada de informações (seja pela anamnese, seja pelo exame físico e laboratorial) que permitam uma sábia decisão do médico sobre o melhor tratamento para o problema apresentado. As tentativas de melhorar a relação com o paciente estão voltadas para a obtenção de dados mais abrangentes para uma melhor decisão terapêutica. Acontece que no atendimento ambulatorial, diferentemente da situação no hospital, onde é pequeno o controle do tratamento pelo paciente, o cuidado médico implementado passa necessariamente pela liberdade do doente e de sua família. A eficácia médica está subordinada à eficácia pedagógica da relação com o paciente e sua família. Na prática clínica, usualmente se recorre intuitivamente a estratégias educativas voltadas para o convencimento do paciente, ou seja, fazê-lo abandonar suas convicções anteriores sobre o problema e aceitar o diagnóstico e a conduta prescrita. Para isto, utiliza-se principalmente de posturas que ressaltam o poder e a legitimidade do saber do médico como falar com autoridade, firmeza e vestir-se de forma diferenciada. A medicina diante de cada caso dispõe de múltiplos meios de investigação que fornecem diferentes graus de precisão ao diagnóstico e tem diferentes formas de tratamento que proporcionam níveis diversos de segurança e de cobertura. Acontece que cada um destes meios de investigação e tratamento tem diferentes custos (dinheiro, tempo, sofrimento, afastamento das atividades e esforço físico) para o paciente e para a sociedade. A decisão de quais recursos vão ser empregados em cada caso não é uma decisão puramente científica, mas baseada também em fatores subjetivos e sociais. Se lembrarmos ainda da constatação, já discutida, de que a medicina científica é apenas um dos caminhos (talvez o mais elaborado) de conhecimento e intervenção no processo de adoecimento e de cura e que os nossos pacientes trazem outras visões e saberes válidos (porque integrados em sua cultura e em sua realidade material de vida) e que não podem ser apagados durante a consulta, não resta outra alternativa que aprendermos a construir as condutas terapêuticas através do diálogo. De um lado, o paciente que conhece intensamente a realidade onde está inserida sua doença e carregado de crenças, saberes e estratégias de intervenção nesta realidade. De outro lado, o médico com conhecimentos científicos sobre o problema, mas também carregado de crenças próprias da cultura do grupo social de onde veio. Na medida em que cada um sabe dos seus limites, é possível estabelecer uma relação pedagógica onde o diálogo não é apenas uma estratégia de convencimento, mas a busca de uma terapêutica mais eficaz por estar inserida na cultura e nas condições materiais do paciente, como também por estar aberta a outras lógicas de abordagem da doença. Agindo dessa forma, se contribui tanto na formação de cidadãos mais capazes de gerirem sua saúde, como na superação dos limites da medicina popular, que são muitos. O desafio é avançar neste sentido em serviços marcados pela precariedade e pelo excesso de demanda. É necessário um esforço teórico sistemático e muita abertura pessoal para compreensão das lógicas culturais do popular, aparentemente tão despropositadas. Este movimento é potencializado se o médico busca também formas de inserção e atuação fora do consultório (VASCONCELOS, 1991).
182 A prática médica acontece cada vez menos em consultórios isolados e cada vez mais em instituições interligadas em amplas redes de assistência onde convive grande número de profissionais. Este fato, se em muitos lugares tem resultado numa fragmentação e superespecialização do trabalho médico que aliena o profissional do significado global de seus atendimentos, em outros locais vem abrindo a possibilidade de se buscar uma nova ampliação da eficácia terapêutica através do trabalho interdisciplinar. A criação de espaços de interação entre os diferentes saberes e olhares trazidos por cada profissão para o enfrentamento de casos concretos, não é um processo espontâneo e fácil. Pelo contrário, é atravessado de conflitos e incompreensões, exigindo um trabalho persistente. Para o médico que tradicionalmente assumiu a posição de comando e decisão nos serviços de saúde, esta reorganização de sua relação com os outros profissionais é particularmente difícil, mas fascinante se consegue superar as barreiras iniciais. Muito se tem falado na construção de uma Medicina Integral ou Holística. São muitas as medicinas alternativas se autodenominando de holísticas. Mas uma Medicina Integral não é uma nova tecnologia que tudo resolve. Também não significa a soma de todas as técnicas e todos os conhecimentos, pois o conhecimento de todos os fatos e o esgotamento de todos os aspectos é algo que o homem não atinge. A medicina só pode ser compreendida pela interrelação de múltiplos aspectos. Assim, a Medicina Integral não é algo já pronto, mas um processo em construção histórica. Não há dúvidas, no entanto, que, hoje, a interdisciplinaridade e a participação popular na construção de condutas médicas mais alargadas são chaves fundamentais no caminhar em direção a Medicina Integral. Referências bibliográficas DIAS, Nelsina. Mulheres, sanitaristas de pés descalços. São Paulo: Hucitec, 1991. GUIMARÃES, Alba Zaluar. Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. KALOUSTIAN, Sílvio. Família brasileira a base de tudo. Brasília: Cortez, 1994. LOYOLA, Maria Andréa. Médicos e curandeiros. São Paulo: Difel, 1984. TIAGO, Zeca. Do fruto à raiz. Cadernos de educação popular. Petrópolis: Vozes, 1984. VASCONCELOS, Eymard. Educação popular nos serviços de saúde. São Paulo: Hucitec, 1991.
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EDUCAÇÃO POPULAR NOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO: potencializando a relação macro micro no cotidiano como espaço de exercício da cidadania Alder Júlio Ferreira Calado*
O presente trabalho forma parte de um dos tópicos constitutivos de um estudo que venho desenvolvendo acerca da natureza multi/inter/transdisciplinar e crítico-propositiva da educação Popular (EP) nos Movimentos Sociais Populares. Corresponde a alguns dos “desafios” apenas enunciados em recente artigo, onde ensaio passos, a título de uma contribuição ao debate acerca do estatuto epistemológico da EP. No final do aludido artigo, dado o caráter do trabalho, mais do que propor uma discussão para aquela oportunidade, limitava-me, antes, a enunciar situações/questões desafiadoras que, ao meu juízo, se interpunham – e continuam a interpor-se – ao atual estado das pesquisas em EP, especialmente no Brasil. Trato, então, de retomar a parte final do referido trabalho – desta feita, de modo mais detido – a propósito de alguns dos desafios e pistas da Educação Popular nos acampamentos e assentamentos dos Sem-Terra. O presente trabalho encontra-se, por conseguinte, estruturado nos seguintes tópicos: 1) situando/explicitando brevemente os conceitos-chave utilizados; 2) movimentos sociais no campo: qual Educação?; 3) pistas para os desafios da EP nos acampamentos e assentamentos dos Sem-Terra; 4) Algumas considerações a título de fecho. Situando/explicitando s conceitos-chave Tratemos inicialmente de explicitar o conceito de “Movimentos Sociais Populares”, empregado neste texto. Ele remete diretamente ao de “Movimentos Sociais”, que entendemos como organizações coletivas empenhadas na luta em defesa de seus interesses econômicos e socioculturais, buscando construir sua identidade, de forma processual, tendo como referência oposta a conduta dos que eles situam como seus adversários ou inimigos. Ainda que não se tenha aqui o propósito de reconstituir sua trajetória conceitual, bastando, para tanto, remeter a trabalhos de autores e autoras tais como, no caso do Brasil: Ilse Scherer-Warren (1987; 1989; 1993), Eder Sader (1988), Maria da Glória Gohn (1991; 1992; 1997), Paulo Krischke & Scott Mainwaring (1986), Martins (1981), Grzybowski (1987), Novais (in Paiva, 1985), Medeiros (1989), entre tantos outros e outras, é útil sublinhar alguns dos seus traços, dentre os mais reconhecidos. o esforço de construção de sua identidade: é característico de um movimento social zelar, sobretudo quando de sua irrupção, pelos valores que o inspiram e lhe dão cara própria. Desde o seu aparecimento, costuma mostrar-se cioso de que tem algo “novo” ou “diferente” a anunciar e a propor, em relação a “tudo o que aí está”; a busca de definir seu campo adverso: o propósito de irromper com cara “nova” enfrenta, desde logo, uma multiplicidade de obstáculos externos que é preciso levar em conta, e em relação aos quais cumpre traçar uma estratégia de enfrentamento; formulação de um projeto ou de objetivos: a construção de sua própria identidade implica, de um lado, o esforço de identificar e superar adversidades interpostas a tal caminhada, e, de outro, perseguir determinado alvo, objetivos ou mesmo um projeto alternativo “ao que aí está”;
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Professor do Centro de Educação, atuando no Curso de Pedagogia, no Programa de Pós-Graduação em Educação – Educação Popular – e coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação em Movimentos Sociais.
184 capacidade de organização e mobilização: perseguir um alvo desse porte pressupõe um esforço coletivo de construção dos meios e caminhos capazes de desaguar no ponto almejado. Esses e outros traços constitutivos do conceito “Movimentos Sociais” permitem estendê-lo para além dos movimentos populares, até porque, como se sabe, nem todo movimento social é necessariamente popular. É o caso, por exemplo, no quadro da sociedade brasileira do período da Constituinte de 1986 – 1988, de um movimento como a União Democrática Ruralista (UDR). Outros exemplos poderiam ser citados.131 Outro ponto a destacar no presente tópico, diz respeito à diversidade de paisagem relativa ao conceito em apreço. Não apenas quanto à diversidade campo/cidade (movimentos sociais no campo e movimentos sociais urbanos), bem como, ainda, no que concerne à distinção entre os movimentos sociais que gira(va)m mais diretamente em torno do processo de produção, e os chamados novos movimentos sociais, estes mais atentos ao que se passa na foucaultiana microfísica do poder, onde as relações do cotidiano se apresentam com uma carga especial de significados. Aqui tratamos especificamente de práticas de EP nos Movimentos Sociais Populares, no Campo. Um segundo conceito cuja acepção é aqui tomada, merece explicitação: Educação Popular (EP). A despeito de já havê-lo feito em outras ocasiões, convém destacar aspectoschave de como ele é aqui assumido. Antes ou mais do que uma modalidade de Educação, EP se me apresenta como uma perspectiva, uma metodologia, uma ferramenta de apreensão/compreensão, interpretação e intervenção propositiva, de produção e reinvenção de novas relações sociais e humanas. Nesse sentido, importa menos delimitar onde se faz EP, se nos espaços formais, na escola, na sala de aula, ou nos Movimentos Sociais, até porque, assim como concebida, EP se faz sempre lá onde se fizerem presentes e atuantes educandos e educadores, enfim, os protagonistas da ação educativa, comprometidos/engajados numa caminhada coletiva, numa perspectiva transformadora da ordem dominante, igualmente ciosos dos meios/caminhos/métodos a serem utilizados, ciosos da íntima associação entre meios e fins. Tal como ocorre a tantas outras categorias trabalhistas nas chamadas ciências humanas, a categoria “Cotidiano” comporta múltiplas abordagens teórico-metodológicas, inspiradas em diferentes concepções sociais de mundo. De minha parte, tributário de uma leitura dialética132 das relações do Cotidiano, assumo esta categoria na acepção de uma malha de relações humanas/sociais e como um parâmetro ou instrumento adequado de aferição da qualidade de nossa práxis de educadores e educadoras populares, inclusive em nossa condição de pesquisadores/as. Refiro-me à extraordinária multiplicidade de experiências e situações em que nos vemos envolvidos, no curso de nossa existência, estendendo-se do ambiente doméstico às macro relações de poder, passando pelas motivações do trabalho, jeitos/modos de gerir/articular os diferentes momentos do nosso dia a dia, de acordo com nossas visões de mundo e de sociedade, nossa posição ética frente às situações de conflito, nossa capacidade de articular teoria e prática, gestos e palavras, enfim: (re)significando continuamente as ações e expressões do nosso corpo, descobrindo suas potencialidades, a partir da tomada de consciência dos limites/sombras/misérias de que também é tecido nosso dia a dia. Com relação ao conceito de Cidadania, assumo-os na acepção de exercício críticopropositivo da condição de protagonistas de sua própria história, que as pessoas e grupos sociais 131
A propósito da capacidade organizativa e de mobilização dos grupos de direitos, focalizados durante um período de recente efervescência, ver, por exemplo, o livro de René Dreifuss. O Jogo da Direita: Petrópolis: Vozes, 1989. Acerca do conceito de “Movimentos Sociais”, ver, e.g.: Ilse SCHERERWARREN. Movimentos Sociais. Ensaio de interpretação sociológica; Florianópolis: UFSC, 1987; Idem. Redes de Movimentos Sociais. São Paulo: Loyoila, 1993; Idem & Paulo KRISCHKE. Uma Revolução no Cotidiano? Os Novos Movimentos Sociais na América do Sul. São Paulo: Brasiliense, 1987. 132 Utilizo aqui o termo “dialética” numa perspectiva predominantemente marxista, que inclui, entre outros, os princípios da interação universal, da unidade (dialética) dos contrários, da natureza historicamente mutável da realidade (a realidade em constante movimento), da associação entre qualidades e quantidade, da omnilateralidade do ter humano, da interdependência entre meios e fins, da prática como terreno adequado para verificação e avanço da teoria.
185 vão historicamente conquistando, mantendo e ampliando, mediante a ativa participação individual e grupal nos processos sociais de decisão, num âmbito que recobre espaços sociais que vão da “Oikia” à “Pólis”, e desta àquela, da escola local à esfera internacional. Feitas algumas considerações conceituais, trato de proceder ao desdobramento da reflexão sobre alguns desafios e pistas com que se defrontam, atualmente, os Movimentos Sociais no Campo, na área da EP. Movimentos sociais no campo: qual educação? Além do MST – seu principal protagonista, nas duas últimas décadas – a luta pela Reforma Agrária reúne um numero considerável de aliados, entre diversos grupos, entidades e movimentos da sociedade civil, incluindo CONTAG, Federações de Trabalhadores na Agricultura, setores de igrejas cristãs (principalmente a Igreja Católica, mediante a CPT, CEBs, alguns serviços e pastorais sociais), ONGs envolvidas com a questão da terra, entre outros. Não obstante a diversidade de grupos protagonistas e aliados, a participação mais decisiva vem sendo mesmo assegurada pelo persistente protagonismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Graças à sua sábia estratégia de combinar ações institucionais e outras de caráter instituinte, o MST vem acumulando importantes conquistas, sem perder o apoio da chamada opinião pública. A despeito de uma mídia bem ajustada ao coro do “pensamento único”, nada simpática a ações instituintes dessa natureza e com essa perspectiva, o fato é que não tem conseguido “enquadrar” o MST. Em vários estados, junto com ou ao lado do MST, numa relação por vezes não isenta de tensão, há de se assinalar a contribuição, na luta pela Reforma Agrária, de outros protagonistas, como os trabalhadores e trabalhadoras rurais animados pela CPT. No caso da Paraíba, por exemplo, a CPT apresenta um trabalho de apoio e de animação às lutas e às ocupações, que goza de amplo reconhecimento, haja vista que dos 88 assentamentos espalhados pelo Estado, uma parte considerável deles deveu-se ao firme engajamento dos trabalhadores e trabalhadoras por ela animados. Por outro lado, sem prejuízo do considerável ritmo das ocupações em curso e anunciadas, o crescente número de acampados e assentados vem impondo a esses protagonistas priorizarem radicalmente a construção de seu Projeto de Educação. Em consequência, temos assistido, de alguns anos para cá, a uma sucessão de atividades voltadas para esse desafio. Encontros, seminários, cursos, debates promovidos com a assessoria de educadores e educadoras de reconhecida contribuição, na área, vêm ajudando o MST a definir melhor seu Projeto de Educação. Para tanto, vale remeter ao já relativamente vasto material produzido e publicado, seja em forma de livros, ou através de revistas, de jornal e outros textos policopiados. Numa leitura desse material específico à Educação, é possível sublinhar algumas das ideias-força que caracterizam seu Projeto de Educação, tais como: zelo pela autonomia relativa: recolher, a partir de dentro do Movimento (mas sem desprezar a necessária interação/colaboração com os “de fora”), elementos de experiências de vida e de trabalho, capazes de suscitar uma reflexão mais apurada rumo à construção coletiva do Projeto; o trabalho como princípio educativo: recorrendo ao acúmulo de reflexões produzidas na área, no Brasil e alhures (PAULO FREIRE, MAKARENKO et al.), priorizar o trabalho como referência privilegiada das práticas educativas, trazendo o cotidiano do acampamento/assentamento para dentro da escola, e levando esta para o dia a dia da roça; romper a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual: comprometer os assentados/acampados em todo o processo educativo (desde a concepção, planejamento, execução, à avaliação), favorecendo-se ao educador/a o exercício de sua condição (também) discente, e ao aluno, o exercício de sua condição (também) docente; cultivar um clima favorável à conquista da condição de sujeito de sua história: exercitar, nas relações do cotidiano, a condição de cidadão/cidadã, de modo a potencializar sua capacidade de tomada de decisões, inclusive no âmbito da “Pólis”.
186 Foi igualmente preocupada com o destino dos assentados e a perspectiva da Reforma Agrária, que a CPT, em parceria com a UFPB, e com financiamento do INCRA, realizou uma pesquisa acerca da qualidade de vida em 11 assentamentos, envolvendo aspectos que vão desde a produção/comercialização, passando pela saúde, pela educação, pela questão de gênero, pela organização, até à subjetividade. Entre vários pontos sobre os quais a pesquisa chamou a atenção dos assentados, um se refere à constatação do elevado índice de analfabetismo reinante nos assentamentos investigados, bem como a outras manifestações de precariedade, em matéria de Educação. Daí o interesse prioritariamente concentrado no enfrentamento desse desafio. É com essa disposição e com base nesses e em semelhantes princípios, que, também na Paraíba, o MST e a CPT vêm tratando de unir forças, na organização de um Plano de Educação nos assentamentos, voltado não apenas para as ações de um amplo trabalho de alfabetização, como também para a capacitação de professores atuando nos assentamentos. Pistas para os desafios da EP nos acampamentos e assentamentos dos Sem-Terra A) Explorar mais a fundo as potencialidades do Cotidiano. A partir de algumas proposições, que formulo acerca do que entendo mais detidamente por Cotidiano, trato, a seguir, de explicitar/detalhar melhor os termos da formulação de cada uma delas, recorrendo a exemplos ilustrativos de suas implicações teóricopráticas. a) O Cotidiano é uma complexa e vasta rede de relações humanas tecida de numerosos fios, que correspondem à multiplicidade de sentidos de que são portadoras ações, práticas, fatos, situações, acontecimentos, circunstâncias que envolvem o dia a dia dos seres humanos e dos grupos sociais (ao caso em tela, os Movimentos Sociais Populares), em lugar, e tempo socialmente determinados, desconstruídos e reconstruídos. Tem-se proclamado reiteradamente – e a justo título – que a realidade social não se deixa apreender a olho nu. Muito menos quando historicamente relativa a uma sociedade, a exemplo da nossa, sabidamente marcada por profundos antagonismos, conflitos, desigualdades entre grupos e classes. Não raro, os setores dominantes tratam de introjetar sua visão social de mundo no conjunto da sociedade, fazendo-a passar como se correspondesse, não a suas próprias ideias e valores, mas às ideias e valores “de todos”. Por conseguinte, aplicam-se empenhadamente em manter, sob seu mais rígido controle, os principais canais de informação e formação da chamada opinião pública, mantendo em torno da realidade social uma espécie de véu ideológico, que, se não impede, por certo dificulta enormemente uma leitura imediata, feita a olho nu. Por outro lado, por mais complexa que a realidade se apresente aos nossos olhos de sujeitos cognoscentes (individual e socialmente limitados), ela não nos resulta inacessível ou impermeável, desde que nos apliquemos em forjar condições/meios/instrumentos que permitam agudizar nossa capacidade de observá-la cada vez melhor, seja por meio de uma permanente leitura crítica do que se passa (análise de conjuntura exercitada como uma contínua leitura objetiva da realidade objetiva), seja mediante uma melhor apuração de nossos sentidos, das multiformes linguagens/possibilidades do corpo. Vale, a propósito, perguntar-nos com quantos fatos, situações, ocorrências estamos cotidianamente a nos deparar, e que, no entanto, simplesmente nos escapam aos sentidos? Quantas vezes nos ocorre constatar, perplexos, que: temos olhos e não vemos (ou vemos, sem nos apercebermos do objeto/sujeito); temos ouvidos e não escutamos (ouvimos sem auscultar); a expressão oral/escrita entre nós padece da exacerbação de duas situações extremas: a uns poucos é dado falar/escrever demais (sem quase exercitar a escuta), enquanto à maioria cabe apenas ouvir, quase sem chance de também dizerem/escreverem o que sentem; nosso olfato não percebe o que vai um pouco além dos odores rotineiros; temos um paladar muito pouco apurado (inclusive, mas não apenas, por razões socioeconômicas);
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esse negócio de ficarmos nos tocando não cai bem (somos herdeiros e reprodutores de uma cultura algo eurocêntrica da fobia ao toque); as potencialidades do coração, da intuição, têm pouco clima de prosperar... As consequências práticas e teóricas resultam inevitáveis. Acostumamo-nos mal a potencializar os nossos sentidos, no exercício crítico de captação da realidade. Deparamo-nos todos os dias com mulheres conduzindo seus filhos em direção à escola, ao médico etc., sem que isso nos remeta a associar a algo mais (relações de gênero, por exemplo). Ainda que, “de boca para fora”, declaremos importante a prática, com frequência nos flagramos em intermináveis exposições orais nas salas de aula, nos cursos, seminários, assessoria, sem retorno significativo quanto ao aprendizado dos alunos/base/parceiros, em razão de um superdimensionamento unilateral do falar, dissociado do recurso a outros procedimentos que envolvam os outros sujeitos da relação no processo não apenas do consumo (do ouvir), mas principalmente da produção de saberes. Não sem razão, em sua milenar sabedoria, os orientar nos alertam de que “Se escuto, esqueço; se vejo, relembro; se faço, aprendo”. Um fazer que implica o recurso às diversas potencialidades dos sentidos se mostra bem mais fecundo e eficaz do que aquele que se exercita pelo recurso a um só sentido. No terreno do Cotidiano, quantas vezes, por ocasião das saudações formais (“tudo bem?” – “Tudo bem!”), perde-se a oportunidade de se relativizar mais as convenções, fazendo-se apelo, por exemplo, à leitura da expressão facial e dos olhos do/a interlocutor/a. Ainda que a boca resvale dificilmente o corpo acompanha (a leitura olhos nos olhos ou das expressões e movimentos do corpo)... Também no terreno mais diretamente ligado à EP tal como visibilizada pelos Movimentos Sociais Populares, convém sublinhar alguns desdobramentos práticos. Imaginemos um trabalho de alfabetização de adultos nos assentamentos e acampamentos dos trabalhadores do MST, onde a ânsia nos levasse a privilegiar técnicas de letramento, sem um prévio ou simultâneo envolvimento dos letrandos no esforço individual e coletivo de definir as “palavras geradoras” resultantes de sucessivas discussões e encontros voltados a identificar seu universo vocabular, a partir dos valores, das práticas e das ideias que caracterizam seu cotidiano. A qualidade das práticas educativas – inclusive a de alfabetização – correspondentes a um processo, no qual os envolvidos tomam parte desde a concepção à execução, distingue-se amplamente, inclusive pelos respectivos resultados, de procedimentos e técnicas que se limitam a repassar exercícios de adestramento, que se revelam até extraordinários quanto ao alcance imediato e quanto à meta de assegurar que os alunos aprendam a “desenhar” o nome... b) A natureza espaciotemporal das relações sociais do Cotidiano comporta diferentes implicações no terreno da EP, uma das quais incide na necessidade de re-significar práticas educativas de forte potencial formativo, com frequência apenas marginalmente tomadas em consideração. As práticas educativas formais e não-formais não se dão in abstracto, numa espécie de vácuo a-histórico. São sempre práticas situadas e datadas, por quanto envolvem sujeitos (individuais e coletivos) com diferentes perfis sócio históricos e culturais: de procedência geográficas diversas, de etnia, de experiências de trabalho variadas, de gênero, de religião, de idade/geração, de classe... É assim que, na dinâmica dos Movimentos Sociais Populares, as práticas de EP assumem feições as mais variadas. Direta ou indiretamente articuladas aos momentos mais densos de experiência de formação (cursos, seminários, encontros etc.), cumpre observar igualmente aquelas práticas pouco visibilizadas, inclusive dado seu caráter de maior espontaneidade, que, no entanto, se mostram de uma eficácia impactante no processo de formação dos sujeitos neles envolvidos. Não raro se têm em mãos relatos de atividades de formação experienciadas por membros de Movimentos Sociais Populares, nas quais, sem prejuízo do impacto produzido por momentos mais formais, se encontram referências privilegiadas a momentos marcantes partilhados nos corredores, nos intervalos entre um compromisso e outro, nas conversas particulares com companheiros/as anônimos/as, de pouca fluência verbal, mas, ao mesmo
188 tempo, portadores de uma história de vida inolvidável e de enorme repercussão sobre os/as companheiros/as que se dispuseram escutá-los. c) É sobretudo no terreno das relações do Cotidiano que se testam a qualidade e o alcance dos projetos individuais e grupais. Por mais generosas que se afirmem as intenções, os propósitos e promessas dos sujeitos (individuais e coletivos), de se empenharem na construção de um mundo mais justo, solidário e fraterno, chegando até a um envolvimento mais direto com instâncias coletivas de mudança naquela direção (sindicato, partido, organização popular...), a história recente e menos recente tem dado provas de que não bastam. Não se nega a importância (e até a necessidade) de envolvimento consciente dos sujeitos individuais naquelas e noutras instâncias do gênero. Nas sociedades modernas – para não ir mais a fundo no túnel do tempo – nenhuma mudança social de porte mais expressivo se conseguiu sem o concurso daqueles ou de agentes ou instâncias semelhantes. Ao visibilizarem melhor o locus da Pólis, continuam a desempenhar relevante função enquanto agentes de mudança. Ocorre que, isoladas de outros loci impregnados das multiformes e difusas manifestações do foucaultiano/guattariano poder molecular, aquelas instâncias veem-se comprometidas em seu potencial transformador. Nisso podem servir de sinal ou testemunho os fatos que acompanharam o desmoronamento do chamado socialismo real. Não só. Exemplos mais próximos confirmam também as experiências desastradas de militantes combativos, no âmbito do partido ou dos embates sindicais, mas pessimamente sucedidos na administração das relações da “Oikia”. Aqui, sem que os algozes se apercebessem, se reproduziam cenas de lutas de classe, em que a mulher e os filhos se transformavam em vítimas da dominação “patronal”... Exemplos de cenas do cotidiano portadoras do mesmo ou semelhante caráter poderiam ser multiplicados. O que dizer de quem declara defender princípios democráticos, socialistas, e sucumbe com frequência à contradição de se negar a ouvir ou dialogar com o diferente? Não me refiro ao antagônico. Aludo a companheiros de partido, de sindicato, às vezes até da mesma tendência... E o que dizer de quem, apoiado numa posição pretensamente classista, nega-se a apoiar as chamadas lutas específicas (das mulheres, dos afrodescendentes, dos índios, dos ecologistas...), sob a alegação de que se trata de posição divisionista? Trata-se – alegam, autossuficientes – primeiro de alcançar o poder; depois virá (?) a organização das lutas específicas... Há, também, os que se pretendem proprietários exclusivos do Marxismo. Do pedestal da academia, soberbamente apoiados em algumas passagens (às vezes pinçadas, fruto de leituras aligeiradas, mal digeridas ou mesmo de alguns trechos) de textos de referência consagrada, arvoram-se a “doutores da Lei” do Marxismo, sem sequer lembrarem que o próprio Marx já confessara não se reconhecer em certas interpretações “marxistas”. Aliás, isso não é exclusivo do Marxismo. Em outros domínios (inclusive no religioso), algo semelhante também se passa. Seja como for, o bom de valores tais como “Comunismo”, “Socialismo” e outros é que não têm proprietários, eles são dos/das que se revelarem, pelas suas práticas, capazes de fazê-los acontecer. B) Priorizar, na prática, o processo de formação de membros da base, sem desprezar a formação de coordenadores/animadores. Não é à toa a permanente insistência, nos relatórios de avaliação de muitos desses movimentos, na necessidade de formação. Nesse processo de formação, há de se levar em conta, entre outros aspectos: a relativa autonomia dos Movimentos Sociais Populares (como se relacionam adequadamente com igrejas, sindicatos, partidos, prefeituras e outras instâncias do poder político; aprendizado contínuo – inclusive pelos membros da base – da prática de análise de conjuntura. Como, por exemplo, enfrentar a poderosa ideologia da mídia, sem se
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recorrer a fontes alternativas de informação, inclusive via Internet, com o apoio de instituições e ONGs idôneas; ênfase no papel educativo e profundamente potencializador da Memória histórica dos oprimidos: de Palmares às atuais lutas nas favelas, os novos quilombos; de Canudos às Ligas Camponesas, sem esquecer a riqueza das romarias de hoje. Há muitos recursos didáticos já disponíveis, inclusive cartilhas e livros de cantos, mas há ainda muita coisa a se fazer; eleger o Cotidiano como referência/parâmetro da qualidade de nossas práticas, na família, na escola, no trabalho, no lazer, nas pastorais, nos movimentos sociais, sindicais, partidários... O chão do Cotidiano se revela como uma teia privilegiada de relações, por meio das quais podemos testar (pela qualidade dos frutos) a consistência de nossos discursos e o alcance de nossas ações; interação dialética entre meios e fins, como exercício de uma ética do Cotidiano – quantas vezes nos flagramos ou somos flagrados a proclamar fins generosos (Reino de Justiça, democracia, sociedade igualitária...) sem a preocupação correspondente com a definição dos meios que nos conduzem à realização daqueles fins. Até que somos bastante críticos em relação aos outros – principalmente se não pertencem ao “nosso” grupo! , mas extremamente tardios e vulneráveis, quando se trata de exercer uma maior autovigilância nos meios que elegemos para alcançar os fins almejados. Com espantosa frequência, somos apanhados apegados ao poder (mesmo a uma nesga de poder...), aos cargos, aos deslizes autoritários, aos deslizes éticos: denunciamos qualquer “cisco” no olho dos outros, mas somos espertos em justificar a “trave” do nosso)... alternância dos cargos – um dos efeitos desastrosos observáveis na gestão, em diferentes instâncias de poder (igrejas, sindicatos, partidos, ONGs... e Movimentos Populares), encontra-se na perpetuação/vitaliciedade dos dirigentes/coordenadores em seus respectivos cargos (ou similares...). Não faltam justificativas: “A está indo muito bem”, “B leva muito jeito para o cargo”, “Preciso de outra gestão para completar minha missão”. Por outro lado, o pessoal da base se omite: “Com Fulano à frente, está bem”, “eu não sei mexer com isso”. Resultado: consolida-se objetivamente o fosso entre direção e base; crescem os riscos de deslizes (o apego ao poder...), tolhe-se a muitos a ocasião de também exercitar o poder participativo, inclusive com possibilidade de melhor desempenho do que outros... Firma-se o sistema piramidal também entre os que dizem combatê-lo...
C) Consciência crítica do exercício da palavra Na malha das relações do Cotidiano, a Palavra sempre aparece como um recurso polissêmico, como instrumento polivalente que tanto pode servir para re-velar/des-velar (de velum=véu), como para velar, para ocultar. Dependendo das situações e dos interesses em jogo, a Palavra trata ora de enfatizar, ora de aumentar, ora de diminuir/reduzir, ora de esconder, ora de focar certos aspectos em relação a – às vezes até em detrimento de – outros...). D) Articular a dimensão classista a novas categorias da realidade atual No caso da sociedade e da educação brasileiras, acentuadamente marcadas pelos conflitos sociais, inclusive os de classe, trata-se de um Cotidiano extremamente pródigo em fatos, ocorrências e situações, de que se servem diferentes setores das classes dominantes para manter e ampliar e – se possível lhes fora – perpetuar o controle das decisões fundamentais da vida social, econômica, política, cultural, ideológica... Basta ver o profundo alcance ideológico dos meios de comunicação de massa, por meio dos quais a Rede Globo, por exemplo, se dá ao luxo de não somente “fazer a cabeça” de enormes parcelas da população, como ainda tem o desplante de fazê-lo, dizendo-se neutra, isenta, independente...
190 Do ponto de vista de uma posição dialética,133 na acepção marxiana – que parece prevalecer entre os clássicos da EP , os pesquisadores e pesquisadoras dessa área, ao exercitarem permanentemente o confronto do resultado de suas pesquisas com as manifestações concretas da realidade, não apenas nada têm a temer, como só têm a ganhar, à proporção que asseguram as condições de uma relação mais íntima entre objeto cognoscível e sujeito cognoscente. Não é certamente o caso de quem tem algo a esconder, sob pena de ver jogados por terra seus interesses de classe dominante. Nesse sentido, desponta como bastante sugestivo o recurso à metáfora topológica proposta por Löwy (1985, p. 218-219), inspirado em Rosa Luxemburgo e em passagens de Mannheim: “Quanto mais elevado é um „mirante‟ ou „observatório‟ (isto é, um ponto de vista de classe), tanto mais ele permite ampliar o horizonte e perceber a paisagem em toda sua extensão; as cadeias de montanhas, os vales, os rios não conhecidos dos observatórios inferiores não se tornam visíveis senão do cume. Evidentemente, nos limites determinados por seu horizonte de visibilidade, os mirantes mais baixos permitem também ver uma parte da paisagem. Em nossa hipótese, o observatório mais alto é o ponto de vista do proletariado.” Na prática, isso implica a constatação da vigência da categoria “classe social”, ainda que se deva proceder aos devidos ajustes que as atuais condições sociohistóricas recomendam e até requerem. Ou seja: o fato de se reconhecer a pertinência e atualidade do conceito “classe social” não isenta os pesquisadores do campo da EP de re-situarem adequadamente a aplicabilidade desta categoria. O que não se admite como razoável é a mera reprodução conceitual, como se o quadro sociohistórico do Brasil de 1997 fosse idêntico ao de Paris de 1871, ao da Rússia de 1917 ou mesmo ao do Brasil dos anos 70... Tal empreendimento ajuda a esclarecer, por exemplo, que não se sustenta mais, na atual conjuntura, a obcecada defesa da velha “classe operária” como “o” sujeito revolucionário, o carro-chefe a “rebocar” o “resto”... Por outro lado, há de ter o cuidado de não sucumbir ao extremo oposto: o de abolir a categoria “classe social”, sob o pretexto de que, estando a classe operária reduzida a cinzas ou fortemente diluída nos subterrâneos da economia informal, só restaria apelar exclusivamente para categorias não classistas, buscando-se apoio nos conceitos que tentam circunscrever a realidade ao espaço exclusivo das micro relações. Partindo dessa observação e sublinhando o que acima se discutiu sobre a vigência de categoria como “classe social” (ou “classe popular”), “trabalho”, “luta de classes” e outras afins,134 tratamos agora de sustentar a necessidade de articulação dialética da categoria “classe 133
Ao privilegiar a perspectiva dialética, em sua acepção marxiana, faço-o tendo em conta o contexto de conflitos sociais predominante nas sociedades de classe, notadamente no modo de produção capitalista. Perspectiva que, longe de me distanciar do diálogo com diferentes (desde que não antagônicas!) grades de interpretação da realidade – inclusive a proposta, entre outros, pelo professor Reinaldo Fleuri e pelo professor Jaques Gauthier, que sublinham as potencialidades das linguagens do corpo – nos tem permitido (a mim e a vários outros pesquisadores em EP, inclusive o professor João Francisco de Souza) ampliar os espaços de interlocução com outros sistemas interpretativos, de modo a propiciar um aprimoramento no manejo de instrumentos de captação de múltiplas manifestações da realidade, para além de sua dimensão conflitiva. Julgo instigante quanto fecunda a reflexão oferecida pelo professor Victor Valla, acerca dos entraves enfrentados por militantes de esquerda em seu esforço de interpretar a fala dos interlocutores das camadas populares. “A crise de compreensão é nossa”... 134 Ainda que com anuanças distintas, em vários trabalhos – inclusive de painelistas – apresentadas por ocasião do IV Seminário Internacional Universidade e Educação Popular (evento que o professor João Francisco de Sousa costuma sublinhar como uma referência de peso, entre outras – é claro – na caminhada recente da EP), realizado em João Pessoa de 26 a 30/07/1994, categoria como essa são trabalhadas. A própria Carta de João Pessoa se mostra sensível aos apelos do contexto, não hesitando em convocar os que fazem EP a “propor e criar novos instrumentos para enfrentar essa estratégia de manipulação e cooptação”. In: IRELAND, Timothy D. (Org.). Op. cit., p. 213. De modo semelhante, a preocupação com a conflitividade característica do atual contexto sociohistórico esteve presente em reflexões como as apresentadas, por exemplo, pelo professor João Francisco de Souza, pelo professor
191 popular” a várias outras de crescente importância na atual conjuntura. Referimo-nos a conceitos tais como: “gênero”, “etnia”, “religião”, “subjetividade”, “ética”, “nação/região/espacialidade”, “idade”, “ecologia”, “cotidiano” ... E não propomos tal empreendimento de articulação por força de algum modismo, nem mesmo por motivação tática. Tampouco se trata de algo que brote da cabeça de um iluminado ou visionário. Com base em vários autores e autoras que lidam com EP ou áreas afins, ainda que isso às vezes se encontre pouco ou nada explicitado, entendemos que a cada dia faz menos sentido lidar com a categoria “classe popular” descolada daquelas categorias, ou pelo menos de algumas delas. Algumas considerações a título de fecho Insistir, com efeito, na abordagem da realidade social e educacional nos assentamentos, acampamentos, especialmente na área de EP, de forma dissociada, por exemplo, da categoria “gênero”, resulta, objetivamente, em ocultar ângulos do fenômeno da exploração/opressão, dos quais a categoria “classe social” ou “classe popular” não é capaz de dar conta, sozinha. Nesse sentido, consideráveis avanços vêm sendo alcançados por pesquisas que privilegiam a categoria “gênero”, sem perder de vista a forte incidência da categoria “classe social”.135 Passo certamente avançado – esse de articular “classe social” e “gênero”, ainda que, por enquanto ainda se trate de uma iniciativa circunscrita quase exclusivamente ao polo feminino desta relação social , não é, porém, suficiente para dar conta da complexidade e extensão das relações sociais no campo da EP. Demanda outras articulações com as demais categorias acima referidas. Outro exemplo: o peso da dimensão ética. Desafio cuja importância nem sempre vem devidamente reconhecida, inclusive por se confundi-la ora com moralismo, ora com mera onda/modismo. Pouco se liga, por exemplo, para a questão da interdependência dialética de meios e fins. Perseguir metas generosas por vias quaisquer compromete a credibilidade do projeto. Também aqui, o Cotidiano se revela um parâmetro social relativamente seguro para atestar a qualidade de nossos projetos. Há toda uma gama de possibilidade de se ilustrar como, na prática, se dão as articulações entre as diferentes esferas da realidade: suas intersecções, suas mútuas interferências, suas influências e implicações multilaterais. As práticas educativas dos Movimentos Sociais no Campo, em sua intervenção inclusive nos acampamentos e assentamentos espalhados pelo Brasil, não têm como escapar do enfrentamento de questões dessa ordem, nas relações do seu Cotidiano. Referências Bibliográficas ANPEd. Programa 19a Reunião Anual ANPEd. Caxambu, 22 a 26 de setembro de 1996. São Paulo, 1996. ANPEd. programa da 20a Reunião Anual da ANPEd. Caxambu, 21 a 25 de setembro de 1997. São Paulo, 1997. ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a educação. São Paulo: UNIMEP, 1996. BANCO MUNDIAL. La Enseñanza superior. Las lecciones derivadas de la experiencia. Washington: Banco Internacional de Reconstrucción y Fomento/BANCO MUNDIAL, 1995. Wojtiech Kulesza (Tek) e pela professora Severina Ilsa do Nascimento, durante o Estágio de Intercâmbio realizado recentemente pelo GT Educação Popular, da ANPEd, na UFPB, em João Pessoa. 135 ver, entre outras: SAFFIOTI, Heleieth. Do artesanal ao industrial: a exploração da mulher; São Paulo: Hucitec, 1981; LOBO, Elisabeth S. “O trabalho como linguagem: o gênero do trabalho”. In: COSTA & BRUSCHINI, 1992, p. 252-265; ESMERALDO, Gema G. O feminismo na sombra. Relações de poder na CUT. Fortaleza: EUFC, 1998; NUENS, Maria José Rosado. Église, sexe et pouvoir (Tese de doutoramento). Paris, EHESS, 1991; O professor Marcelo Augusto Velozo (Dept. de Filosofia/UFPB) coordena um Grupo de Homens, em Olinda – PE, com uma fecunda experiência de articulação das relações de gênero.
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194
POLÍTICAS EDUCACIONAIS PARA O TRABALHO EM CONTEXTOS POPULARES Emília Maria da T. Prestes*
Este texto se propõe a discutir a temática da educação popular, elegendo a preparação para o trabalho como foco central de análise. Pretendo, no conjunto das Políticas Públicas de Educação Profissional propostas pelo Ministério do Trabalho, analisar os cursos de natureza profissional que estão sendo oferecidos as populações portadoras de menor escolaridade e suas perspectivas ocupacionais abordando dois conjuntos de questões: A primeira, mais abrangente e suportada no conceito de exclusão social,136 centralizase na “nova institucionalidade de educação profissional no Brasil”, apresentada pelo Plano Nacional de Educação Profissional – PLANFOR, em sua relação com as singularidades socioeconômicas do Estado da Paraíba. A segunda questão, de natureza mais específica e intimamente relacionada à primeira, procura identificar os sujeitos preferenciais desses Programas de Educação Profissional oferecidos no Estado paraibano, em suas condições objetivas de educação (qualificação) e trabalho (empregabilidade). Em síntese, intenciono compreender a educação popular, em sua relação com a qualificação profissional oferecida pelo Estado, aos trabalhadores, no atual processo de reestruturação produtiva questionando: É possível fazer-se Educação Popular relacionada às atuais Políticas Públicas de educação para o trabalho e renda? Os cursos de educação profissional estarão propiciando aos trabalhadores de baixa escolaridade habilidades para desenvolvimento de uma “nova cultura do trabalho”, aqui entendida como educação popular? Em uma conjuntura de desemprego e exclusão dos menos escolarizados, estas políticas de qualificação ou reciclagem para o trabalho estarão oferecendo-lhes possibilidades de inserção no mercado? Quais estão sendo as chances de trabalho ou alternativas de sobrevivência desses excluídos? Para fins de ilustração empírica, utilizo os recentes resultados de pesquisas efetivadas junto aos egressos desses Programas de Educação Profissional, nos anos de 1996 e 1997. Há ressalvas quanto às conclusões, pois, obviamente, há muito para aprender e apreender sobre a relação entre educação popular e políticas públicas de educação para o trabalho. Trabalho e trabalhadores: em busca de respostas As mudanças exigidas pela nova ordem econômica internacional, incluem a transformação de um antigo modelo de Estado de Bem Estar – para um novo modelo – Neoliberal – orientado para o mercado e iniciativas privadas. No caso brasileiro, a transição do modelo de Estado anterior para o atual vai exigir a implementação de uma série de reformas, notadamente nas suas políticas social, para garantir condições de “governabilidade” e de “governances” (DINIZ, 1997). Nestas contingências, as políticas educacionais orientadas para qualificação e reciclagem do trabalhador tornam-se, sob recomendações do Banco Mundial, uma das poucas Políticas Públicas permitidas pelo novo modelo de Estado neoliberal (AZEVEDO, 1998) pois, a *
Professora do Centro de Educação da UFPB, atuando no curso de Graduação em Pedagogia, no Programa de Pós-Graduação em Educação – Educação Popular – e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Trabalho e Educação. 136 Entende-se a exclusão social com ênfase na múltipla privação: baixa renda, emprego inseguro, moradia pobre, tensão familiar e alienação social (cf., Arjan de Hann e Simon Maxwel, 1998).
195 crise do trabalho e da produção relacionando-se a uma crise de “qualidade do trabalho”, de “eficácia e eficiência” (CANDEIAS, 1999) da produção dos trabalhadores, dificulta o país para atrair capital e expandir os seus projetos de desenvolvimento. O PIB brasileiro, entre 1990 e 1992, havia decrescido em 4,8% (1,6% a. a); sua taxa de desemprego ampliada de 3,7% para 6,5%, e o contingente de desempregados crescido de 2.367.482 para 4.573.345 (PRESTES, 1997). Os baixos índices de escolaridade da população trabalhadora e os altos índices de repetência, reprovação e evasão, atrapalham os propósitos de expansão econômica e perspectivas desenvolvimentistas do país, nos moldes globalizados e neoliberal. Assim, o Ministério da Educação se une ao Ministério do Trabalho para a criação do Programa de Expansão de Educação Profissional – PROEP, utilizando recursos do Banco Interamericano,137 e instaurando políticas voltadas para as questões da educação profissional do jovem, e a qualificação do trabalhador. A lógica adotada é que a reforma do ensino médio e profissional aliada aos programas de qualificação e requalificação do trabalhador, possibilitaria as demandas de jovens alunos e trabalhadores, maior adequação as novas tecnologias e maior oportunidade de inserção nesse novo (e também antigo) mercado. Segundo o Banco Mundial, o “sustento dos trabalhadores na agricultura, na indústria e nos serviços depende cada vez mais da aquisição de aptidões básicas como a alfabetização e as quatro operações” (Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, 1995, p. 42). A realidade brasileira apresenta cerca de 74 milhões da sua População Economicamente Ativa – PEA – com menos de quatro anos de estudos, sendo 30% analfabetos declarados ou funcionais. Objetivando oferecer uma resposta para esta situação o Ministério do Trabalho através da Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional – SEFOR – organizou, no ano de 1996, com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, uma rede de educação profissional em todo o país, integrado ao “projeto mais amplo de modernização das relações capital-trabalho, consolidação da estabilidade econômica e conquista da equidade social no País” (SEFOR, 1996, p. 10). Esta rede, denominando-se “a nova institucionalidade da Educação Profissional no Brasil” – um dos projetos prioritários do governo federal – estruturada através do Plano Nacional de Educação Profissional – PLANFOR – e implementada de forma descentralizada através dos Planos estaduais de Qualificação – PEQS, se dispõe a ofertar programas de educação profissional em “parceiras” com a sociedade civil. Para tal fim, um conjunto de ações relacionadas com a qualificação e requalificação do trabalhador foram planejadas de modo que, até no ano de 1999, houvesse o atendimento de 15 milhões de trabalhadores, cerca de 20% da PEA, oferecendo-lhes condições de “inserção e reinserção no mercado de trabalho, melhoria da qualidade e da produtividade na produção de bens e serviços e elevação da renda pessoal e familiar” (PLANFOR, 1996, p. 24). Estas propostas de educação para o emprego e a renda no entanto, não garantiam a inserção do trabalhador no mercado de trabalho, como tornou claro o próprio promotor da política, o governo federal. Recomendou-se aos estados e aos municípios da federação planejarem estratégias para ampliar as suas oportunidades econômicas – locais e regionais – de forma a criar possibilidades de trabalho à sua PEA. Também foi proposto à sociedade civil, através das suas organizações, movimentos e representações, acompanhar o movimento no mercado para sugerir cursos e treinamentos coerentes com as exigências da produção e capazes de atender, simultaneamente, as necessidades do mercado e da população trabalhadora. Caberia por fim, ao próprio trabalhador encontrar suas alternativas de trabalho e de renda, ou seja, suas possibilidades de “empregabilidade”. A nova institucionalidade da educação profissional e a questão regional O processo de reestruturação produtiva, intensifica-se no país no início dos anos 90. Seus efeitos refletindo-se nos padrões do trabalho e de qualificação dos trabalhadores acentuou 137
Para desenvolver o PROEP o governo brasileiro planejou a quantia de quinhentos milhões de dólares. Estes recursos estão sendo aplicados em projetos de educação profissionais dos diferentes estados brasileiros.
196 os tons das necessidades e das diferenças regionais. A defesa do fortalecimento regional, para consolidação de unidade centralizadora em construção, confronta-se com uma reestruturação estatal e produtiva orientada para a descentralização “de determinadas políticas públicas, notadamente as sociais (saúde, previdência, educação) para os estados e municípios” (GODOY, 1998, p. 1), ampliando o hiato inter-regional o plano econômico e sociopolítico. Entre os anos de 1990 a 1996, a estrutura ocupacional da região nordeste, em um contexto de fraco crescimento econômico, apresentou características diferenciadas daquelas previstas para configurar os novos processos de trabalho. O setor primário por exemplo, ampliou seu contingente de população ocupada de 37,9% para 40,6%. O setor secundário decresceu de 15,8% para 13,1%, e o terciário manteve uma taxa de aproximadamente, 46,3%. As perdas na qualidade do trabalho por falta de cobertura legal, baixos salários, precarização da ocupação ou tipo de setor onde se alojam (geralmente em setores diferentes daqueles que se reestruturam), provocam questionamento sobre as alternativas de trabalho dos segmentos populares nordestinos, frente aos novos padrões do mercado. A chamada flexibilização do trabalho se processa, nesta região, através de ocupações e condições de trabalho extremamente precárias, “no ponto de vista da geração e apropriação da renda” (BARBOSA, 1998, p. 15). As categorias ocupacionais “não remunerados” cresceram a uma taxa de 6,0% a.a e “por conta própria” a 1,1% a.a, as quais, “contabilizadas nos indicadores de precariedade e informalidade do emprego, não contribuem para o aumento da massa salarial (os segundos não têm empregados)” (op. cit., p. 18) sendo “consideradas como aquelas de piores condições de trabalho e de alta sensibilidade aos ciclos econômicos, às mudanças regionais, às áreas rurais e a alguns ramos e atividades econômicas” (op. cit., p. 17). A Política de Qualificação Profissional orientada pelo Plano Nacional de Educação Profissional – PLANFOR – elegendo como prioridade qualificar trabalhadores com baixa escolaridade – 67% da PEA ocupada, apresenta uma escolaridade aquém do 1o grau (SEFOR, 1997), objetiva, simultaneamente, oferecer ao trabalhador as necessárias ferramentas para um trabalho que lhe propicie “a redução da pobreza e a construção da cidadania” (PLANFOR, Trabalho e Empregabilidade, 1996). Apesar desses propósitos, a qualificação para o trabalho não garante os direitos de cidadania, ainda mais quando não vem atrelado a um projeto político, capaz de lhe garantir mudanças em determinadas situações da vida cotidiana. Também fica difícil qualificar uma PEA que apresenta um índice de 49,60% de analfabetismo – o caso da nordestina no início dos anos 90. Aliás, a simples competência de leitura e escrita do trabalhador jovem e adulto não lhe assegura condições de “empregabilidade” no projeto econômico neoliberal, exceto em ocupações que exijam mínimas destrezas e ofereçam mínimos salários. No quadro da situação geral de desemprego, a situação nordestina acompanhava a mesma situação do país. Entre os anos de 1989 a 1996 a taxa de desocupação do Brasil que era de 3,0% subiu para 6,9 – 5.079.895 pessoas estavam excluídas do trabalho – e a do Nordeste saltou de 3,2% para 6,0% da PEA (BARBOSA, 1989, p. 15). É possível que os índices de desemprego da região nordeste influencie os resultados totalizadores do país. Também é preciso atentar para a qualidade das ocupações que referenciam o trabalho. No atual quadro da reestruturação produtiva, as indústrias com tecnologia mais avançada utilizam trabalhadores em condições de aplicarem determinadas competências – “técnicas, metodológicas e social” (MARKET, 1998, p. 7). São estas competências as que exigem uma maior escolaridade do trabalhador, sendo também, às mais propensas a desligarem ou excluírem àqueles que não atendam as suas atuais necessidades. A relação escolaridade e ocupação vem mostrando, nas condições nordestinas, que 6,3% dos desocupados apresentavam 15 anos ou mais de estudo. Este percentual no entanto, decai para 5,1% entre os que não têm instrução ou detém menos de um ano de escolaridade (IBGE-PNDA, In: BARBOSA, op. cit., p. 11). A concentração da PEA ocupada, apresentando ínfima escolaridade de estudo indica que “a qualidade” das atividades de trabalho existentes, a nível regional, dispensa uma maior escolaridade dos seus trabalhadores. Portanto, a reaprendizagem desses trabalhadores “semi-analfabetizados”, aliadas à precarização do estado paraibano, da economia regional e da crise do trabalho, parece não ampliar as suas chances de
197 empregabilidade nos atuais padrões de mercado. O desemprego “de inserção ou de exclusão”, 138 continuam sendo realidade neste estado, apesar das tentativas de qualificação para o trabalho. Assim, a despeito das inúmeras atividades educacionais e amplos recursos direcionados à preparação do trabalhador dos Programas de Qualificação Profissional, quais as possibilidades objetivas de ingresso, permanência ou reinserção desse tipo de trabalhador semiqualificado no mercado nordestino, paraibano, em particular? Quais as possibilidades de trabalho e renda alcançadas pela população mais pobre e menos escolarizada, via a qualificação para o trabalho (AZEREDO DA SILVA, 1997, p. 28-88). Para os trabalhadores que não dispõem da educação básica, qual a alternativa de trabalho que lhes sobra? Machado (1996, p. 25), refletindo sobre a qualificação enquanto objetivação para a capacidade do trabalho, conclui que, no “contexto heterogestionário da divisão e organização do trabalho capitalista”, existe uma lógica de aproveitamento e rejeição, simultânea, do trabalhador qualificado, nem sempre relacionada às suas condições de qualificação e requalificação para o trabalho. Logo, o treinamento do trabalhador através desses Programas Profissionalizantes não lhe oferecendo garantias de inserção no mercado para que servirá? Tiriba (1998, p. 190), estudando as experiências populares de sobrevivência frente ao desemprego e exclusão, diz que os sujeitos desenvolvem capacidades, energia e forças reais para tentar satisfazer suas necessidades básicas. Assim, segundo a autora é importante no atual contexto da globalização e exclusão, questiona-se: “como se organizam os pobres?” “Como enfrentam seus problemas e necessidades”? “Como conseguem gerir a produção sem nenhum, ou quase nenhum, acesso à escolarização? Sendo assim, a pouca escolaridade e baixa qualificação dos muitos trabalhadores nordestinos das classes populares, à medida em que funcionam como fatores excludentes do mercado de trabalho que exige o emprego de alta tecnologia, geram as contradições do modelo produtivo dominante. Possibilitam a formação de novas frentes de produção econômica, possivelmente vinculadas ao mercado informal desqualificado. São estas “novas formas culturais”, emergidas nos setores populares e voltadas a um tipo de produção setorizada que oferecem possibilidades de construção de iniciativas econômicas alternativas e inovadoras dos excluídos. O que ainda não se sabe é se essas formas alternativas atuam como espaços transformadores ou se apenas reproduzem modelos produtivos capazes de fortalecerem, ainda mais, economias excludentes e globalizadas. Educação popular, trabalho e contexto regional O Plano de Desenvolvimento Sustentável do Estado da Paraíba, programou para o período de 1995 a 2010, melhorar a qualidade de vida da população oportunizando-lhe ocupação produtiva através do crescimento econômico (Plano Sustentável, 1996, p. 61). Mas, como bem lembra Nosella (1998, p. 175) entre o mundo real e o mundo das ideias pode existir um descompasso. Transpondo estas intenções para o “mundo real” paraibano, o mencionado Plano de Desenvolvimento reconhece a distância, entre o ideário de criar condições básicas para oportunizar o trabalho e o emprego produtivo da sua população economicamente ativa – PEA – e as condições socioeconômicas concretas do Estado, para “garantir o atendimento das necessidades básicas e a melhoria das condições de vida do trabalhador” (Plano Sustentável, op. cit., p. 80). No ano de 1996, a população residente era de 3.379.297 pessoas – uma taxa de crescimento de 0,5% a.a, em relação à população de 1990 – uma PEA de 1.484.605 indivíduos – crescimento 6,2 vezes mais que a residente. A população ocupada era de 1.442.309 indivíduos a uma taxa de crescimento de 3.2% a.a – 1990/1996 (BARBOSA, 1998, p. 4-6). Neste mesmo ano, foram oferecidos 76.242 novos postos de trabalho formais, dos quais 25.1% para pessoas ingressantes e 74,9% para reemprego. Simultaneamente, eliminou-se 138
O desemprego de exclusão caracteriza-se como a perda do trabalho pelo adulto por idade ou incapacidade de permanência. O desemprego por inserção refere-se às barreiras impostas ao jovem de penetrar no mercado, por falta de experiência ou escolaridade (RAMOS, 1997, p. 86).
198 67.921 pessoas das suas ocupações. A relação entre ambas apresentou um saldo positivo de apenas 10,91% das vagas oferecidas. No tocante aos motivos de demissões, 59.170 pessoas (87.1%) pessoas foram “demitidos sem justa causa”. As “demissões por justa causa” representaram apenas 1,2% do total139 (BARBOSA, op. cit., p. 5). As frágeis bases econômicas da Paraíba, tanto para competir no processo globalizante como para atender as necessidades e organização social da sua população, freiam os fatores endógenos de geração de crescimento e desenvolvimento (HADDAD, 1996, p. 128). Estas históricas e problemáticas condições econômicas e de organização social do Estado, contribuem para a ampliação do desemprego ou “ausência de trabalho” (FORRESTER, 1997), nos moldes da tradicional ou da nova ordem econômica mundial. Há de se ficar atento, no entanto, que a Paraíba, ainda quando seja um Estado com graves e profundas dificuldades para se inserir na economia competitiva, ela não está imune às suas influências e às suas consequências. A globalização vem, gradativamente, modificando o mundo do trabalho, obrigando aos trabalhadores conviverem com novas formas de aprendizagem. Estes processos e aprendizagens explicam as “atividades produtivas, socialmente organizadas, pelas quais os seres humanos interagem criativamente com a natureza material” (GIDDENS, 1998, p. 306; HADDAD, FERNANDO, 97-123); MELO NETO, 1997), transformando e sofrendo transformação da natureza, influenciando e sendo influenciada pelos contextos com quem mantém relações diretas e indiretas. Assim, os reflexos dos processos de trabalho que se dão na totalidade global, entrelaçando-se a regulação, também internacional, dos fluxos de informação e comunicação, refletem-se no particular, no caso, o mundo de trabalho paraibano, gerando transformações localizadas nos campos da produção e das relações sociais concretas. Os padrões socioeconômicos modificados, à medida que destroem referências culturais localizadas, operam transformações na natureza e no próprio sujeito, gerando “processos de aprendizagem” individuais e coletivas desses sujeitos, propiciando novas e subsequentes transformações. As “coisas” (natureza/social) transformadas pelo sujeito impulsionam outras transformações e perdem significações no mundo modificado. Surgem daí necessidades de ressignificações para poderem ajustarem-se a uma nova “práxis” ou seja, ao que Giddens denomina de “constituição da vida social, de práticas regulares produzidas e reproduzidas pelos atores sociais nos contextos contingentes da vida social” (1998, p. 306). Em outras palavras, no âmbito das atuais teorias de desenvolvimento regional, significam surgimento (ou destruição) de condições de endogenia e de sustentabilidade econômica de uma região e seus reflexos nas condições de vida e trabalho das populações ali inseridas. Assim que, no contexto da reestruturação produtiva e dos macros e micros processos excludentes, os trabalhadores, necessariamente, submetem-se a novos processos de aprendizagem, para adaptar-se a uma “nova ordem normativa”, como condição de inserção (ou não inserção) no mercado ou permanência (ou não) no emprego. Naturalmente, os novos processos de aprendizagem do trabalho e do trabalhador não mudam nem o sentido do trabalho nem o do trabalhador, na sua essência e generalidade. Eles são necessidades que se apresentam ao trabalhador no espaço e no tempo. O que vai mudar é o seu direcionamento, orientações e aplicabilidade, que dependerá do perfil do trabalhador, das características do trabalho e do tipo de sociedade e de economia onde está sendo desenvolvida a atividade produtiva. Na Paraíba, os modelos antigos e novos da organização do trabalho, convivem de forma integrada e complementar. Não se pode dizer que os problemas de trabalho e as necessidades educacionais dessas populações urbanas e rurais sejam semelhantes aos problemas e às necessidades dos trabalhadores inseridos em regiões mais desenvolvidas e em economias mais competitivas. Logo, os processos de aprendizagem desses trabalhadores sem maior escolaridade ou sem qualificação para os novos padrões produtivos, tendem a funcionar como embrião propulsor de atividades econômicas localizadas, capazes de darem respostas mais imediatas às necessidades básicas dessas populações excluídas (TIRIBA, op. cit., p. 212/214). 139
O CAGED acrescentou ainda os “desligamentos espontâneos” (10,6%), os aposentados (0,8%) e os mortos (0,3%) (in: BARBOSA, op. cit., p. 6).
199 Com a gradativa redução do trabalho assalariado, ampliam-se as atividades no campo da informalidade do trabalho, processadas em modelos econômicos baseados na descentralização da produção e na flexibilização das relações entre capital e trabalho. Aliás, historicamente, a informalidade do trabalho ocupa posição de destaque na estrutura ocupacional da Paraíba, mascarando a concreta situação do trabalho e dos trabalhadores paraibanos. Como reflete Rodrigues, “O desemprego não se constitui na variável mais relevante. Isto porque as altas taxas de precariedade de informalidade do trabalho representam um elemento perturbador razoável à realidade retratada nas estatísticas do desemprego. Por essa razão considera-se que indicadores de precariedade e de informalidade do trabalho são mais sensíveis às flutuações nas condições do mercado de trabalho” (In: BARBOSA, op. cit., p. 16). Completa essa situação de precariedade e informalidade do trabalho as precárias ocupações e os baixos níveis educacionais da população. No ano de 1996, dos 2,2 milhões de habitantes do Estado, 32,9% não sabiam ler nem escrever, significando que 709 mil pessoas não haviam tido acesso à escola. Na zona rural este percentual é agravado. De uma população de 714 mil habitantes, 47,3% não eram alfabetizados. Distribuídos por faixas de idade, obtêm-se entre os 15 e os 19 anos um índice de 17,3%. Entre 20 e 24 e entre 25 e 29 anos, há uma subida para 22,6% e 24,4%, respectivamente. Agrupandose as faixas de idade verifica-se um índice de analfabetismo de 58,0%, entre os 30 e os 49 anos. A partir daí este montante sobe para 67,9% para um contingente de 209 mil habitantes (Correio da Paraíba, 02 de maio de 1999, p. 3). Estas precárias condições de escolaridade da força de trabalho tendem a agravar o quadro das condições de salários. No âmbito do emprego formal, por exemplo, 38,3% das 76.242 vagas oferecidas no ano de 1996, foram preenchidas por pessoas detentoras das quatro primeiras séries iniciais, cujos rendimentos oscilaram entre meio a um e meio salário mínimos. Nesta situação salarial encontravam-se 62,0% dos empregados que detinham o antigo primeiro grau. Considerando-se que os baixos níveis de escolarização da população é fator impeditivo para um maior investimento do Estado, uma economia competitiva e, consequentemente, maior capacidade de ampliação das condições estruturais de trabalho do Estado; nada mais racional que se ofereça a esta população, com pouca ou nenhuma instrução, serviços educacionais qualificação e orientação – voltados para realizar uma atividade produtiva com níveis de “eficiência e eficácia”, metas perseguidas pelo PLANFOR. No atual momento, tornou-se voz corrente no âmbito dos valores expressos pela “nova ordem normativa”, que formas de aprendizagem, aqui definidas como educação profissional, caracterizam-se como o atributo vital para a chamada “empregabilidade” do trabalhador (CASALI, et al., 1997), independentemente do processo ou forma de trabalho. Nesta ótica da empregabilidade, a educação profissional passa a ser a possibilidade mais concreta de superação da exclusão social, entendida de forma restrita, às questões inerentes a inclusão ou manutenção do trabalhador no mercado ou perspectivas de contemplação das necessidades básicas de sobrevivência e de vida (HAAN e MAXWELL, 1998; TIRIBA, op. cit.). Estes atributos, são necessidades e direitos, historicamente perseguidos pelas classes populares. Qualificação profissional e trabalho O Plano de Desenvolvimento Sustentável da Paraíba reconhece a questão do emprego e do trabalho como problemas estruturais, exigindo diferentes ações de natureza econômica, institucional, financeira e educacional da sociedade, para o seu combate. Reconhece também serem o subemprego e a subremuneração, ressaltadas no estado, provocadores de exclusão e aumento da pobreza. Cerca de 328 mil pessoas, ou seja, 45,5% da população economicamente ativa do meio urbano (IBGE, 1990, In: PEQ/PB, p. 36/7) faziam parte, no inicio desta década, do contingente de subempregados, incluindo-se aí ambulantes, prestadores de serviços e pequenos produtores de bens de reduzido valor econômico. Este contingente se distribuía entre trabalhadores empregados, 43,1%, trabalhadores por conta própria, 25,8%, empregados
200 domésticos, 5,6%, empregadores 2,2% e ocupados, mas sem rendimento, 23,1%. Um montante de 36,1% das categorias: empregados, domésticos e por conta própria, contabilizava até um salário mínimo mensal. Esta população de precária renda ao agregar-se com as 251.629 pessoas sem remuneração congregavam 33,1% da população ocupada do Estado paraibano. Detendo uma “estreita base econômica”, restrita a um setor agrícola retraído, a uma industrialização inexpressiva e a um setor de prestação de serviços precários, o Estado da Paraíba enfrenta também, uma situação de crise fiscal e financeira no setor público. A junção destes fatores dificulta maiores inversões nas obras de infraestrutura econômica e o desenvolvimento de atividades econômicas modernas capazes de propiciar a oferta de novos empregos (PEQ/PB, op. cit., p. 38). No ano de 1996, do contingente de pessoas ocupadas, 38,7% inseria-se no setor primário, 12% no setor secundário e 49,3% no setor terciário (BARBOSA, op. cit., p. 12). As atividades de Extração Mineral, Indústria de Transformação, Serviço Industrial e Utilidade Pública, Construção Civil, Comércio, Serviços, Administração Pública, Agroindústria e outros admitiram 76.242 pessoas e demitiram 67.921, sendo o saldo absoluto de 8.321 postos. Cerca de 70,7% dos demitidos,140 com idades entre 18 e 19 anos, (80,8%),141 percebiam entre um e um e meio salários mínios, detinham escolaridade fundamental inconclusa: 51,5% não haviam concluído o ensino fundamental, sendo que 38,3% possuíam até a 4a série. Como resposta à estas condições atuais de trabalho e renda da população, o Plano de Desenvolvimento Sustentável da Paraíba propaga a necessidade de modernização da infraestrutura econômica, social e de serviços e a preparação do trabalhador, via a Educação Profissional. A qualificação do trabalhador, vista como uma chave quase mágica capaz de abrir os necessários caminhos para o indivíduo penetrar ou permanece no mundo do trabalho, apresenta-se como uma das poucas possibilidades de “empregabilidade e de construção de cidadania”, situações enfatizadas pelo PLANFOR, como também, direitos amplamente defendida da educação popular. Educação popular, trabalho e políticas públicas: uma conclusão inconclusa A formação profissional para aquisição de novas habilidades tem uma multiplicidade de visões e objetivos. Como relata Ciavatta, “do ponto de vista dos empresários a formação profissional visa aumentar a produtividade do trabalho, a qualidade e a competitividade dos produtos, gerar riqueza (...). Quanto aos trabalhadores e às suas necessidades de sobrevivência, parece haver menor clareza quanto às opções concretas de formação profissional para a aquisição de novas habilidades e conhecimentos, para a valorização da sua força de trabalho” (CIAVATTA FRANCO, 1998, p. 102). Pesquisa efetiva na Paraíba nos anos de 1996 e 1997, envolvendo 835 egressos dos Programas de Qualificação e Requalificação Profissional oferecidos pelo PEQ/PB, mostrou que, aproximadamente, 45% deles não haviam completado o primeiro grau. Dentre os 53,0% que trabalhavam, 35,6% não trabalham em ocupação relacionadas com o curso e 47% eram servidores públicos. A renda média individual girava em torno de R$ 410,00 e a mediana em volta de R$ 120,00. Cerca de 42,4% desses egressos, haviam realizado o curso com vista a aprender uma profissão e 37,0% pretendiam melhorar na profissão. Um contingente de 19,3% buscavam encontrar trabalho ao término do curso e 13,6% melhorar o nível de renda. No entanto, 30,0% estavam desempregados há mais de um ano, ultrapassando os seis meses previstos, após a conclusão dos cursos. Considerando as condições educacionais dessa população e as condições estruturais e conjunturais do Estado da Paraíba não é difícil reconhecer as dificuldades dessa população para ingressar e permanecer em sua atividade produtiva formal que lhe ofereça resposta às suas necessidades econômicas e sociais. As necessidades relacionadas a saúde, moradia, lazer, saneamento e educação básica, continuam sendo subtraídas dos direitos sociais de grandes 140
Informações constantes no Cadastro dos Empregados e Desempregados – CAGED. Esta população entre 18 e 19 anos se por um lado foi a que mais sofreu demissão, por outro foi também a mais beneficiada com admissão. 141
201 parcelas de indivíduos. Indivíduos que não dispõem de trabalho ou do devido salário para cobrir estas necessidades. A possibilidade de empregabilidade e da “construção do cidadão produtivo” para Spink (1997, p. 54), é possível de ser pensada através de formas alternativas de trabalho. Estas formas alternativas de trabalho, algumas delas oriundas da criatividade e da solidariedade das classes populares, são capazes de responder à atual crise de emprego servindo “germes de uma nova cultura do trabalho” (TIRIBA, op. cit., p. 191). Esta nova cultura do trabalho, manifestada através de iniciativas econômicas, algumas vezes inovadoras e de caráter solidárias, além de atenderem às necessidades básicas das classes populares, podem se apresentar como uma das respostas ao projeto político dessas classes. Estas iniciativas de trabalhos alternativos podem surgir subsidiadas por novas ou atualizadas aprendizagens adquiridas em cursos profissionalizantes, ainda que estes não contemplem em seus objetivos ou em seus conteúdos curriculares, estes propósitos. Mas, também, estas iniciativas podem se derivar de aprendizagens adquiridas, de reflexão coletiva processada, de aquisição de novas informações e ideias e da socialização vivenciada pelos indivíduos no decorrer dos cursos. Nestas circunstâncias é possível pensar a “empregabilidade e a construção de cidadania” das classes populares através de práticas pedagógicas, configuradas como as “novas aprendizagens”, do trabalho. Novas aprendizagens capazes de articular os conteúdos educativos a empreendimentos produtivos podendo resultar em um projeto político de transformação do cotidiano das classes populares. OL trabalho passaria a ser “princípio e fim educativo”, “fonte de conhecimentos” e gerador de novas práticas sociais. Através dele poderíamos eleger os empreendimentos e atividades produtivos dos grupos excluídos (condições de empregabilidade), como “eixo da educação popular” no contexto da economia globalizada. É pouco provável que tímidas e débeis estratégias econômicas dos setores populares possam contrapor-se aos processos de exclusão social. Elas são também insuficientes para garantir inserção dessas parcelas, privadas da escolarização e informação, na economia globalizada. Também não poderão substituir os benefícios advindos de uma educação escolar, reflexiva, crítica e produtora dos fundamentos “científico-tecnológicos do mundo moderno”. Apesar disso, existe a possibilidade de se pensar educação e transformações, no âmbito das “iniciativas inovadoras e exitosas de trabalho”, efetivadas por populações treinadas nos Programas de Educação Profissional do governo e objeto de regozijo dos próprios formuladores desta política de qualificação para a produção. Como conclui Tiriba (op. cit., p. 215): “Se, de um lado, as atuais estratégias populares de geração de trabalho e renda não podem ser consideradas como uma saída histórica, de outro, elas se configuram como uma nova instância dos movimentos populares, apresentando-se como estratégias de sobrevivência e de vida que podem conter, ainda que de forma limitada e contraditória, as sementes para a construção de uma nova cultura do trabalho.” Assim pensada, a educação popular do início do ano 2000, poderá se vincular à luta pela sobrevivência. Poderá ser produzida no âmbito da educação para o trabalho, na aprendizagem das novas relações de trabalho e na organização econômica dos excluídos. Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti e GOMES, Gustavo Maia. Nordeste: os desafios de uma dupla inserção. In: O real, o crescimento e as reformas. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1996. ALVES, Edgar. Modernização produtiva & relações de trabalho. Perspectiva de Políticas Públicas. Petrópolis: Vozes, 1997. BANCO MUNDIAL. O trabalhador e o processo de integração mundial. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington: D.C., 1995. BARBOSA, Rosângela Jerônimo. O Perfil da Mão de obra Paraibana no Período 1990/96. In. Plano Estadual de Qualificação Profissional. Avaliação do Programa de 1997.
202 UFPB/CCSA/Curso de Mestrado em Economia/Curso de Mestrado em Educação. João Pessoa, 1998 (mimeo). ______. A estrutura populacional e ocupacional da Paraíba – no contexto nordestino e brasileiro – 1990 e 1996. João Pessoa, 1998 (mimeo). BRASIL. Ministério do Trabalho. SENFOR. Educação Profissional. Um projeto para o desenvolvimento sustentado. Brasília, 1995. BRASIL. Ministério do Trabalho. SENFOR. Educação Profissional. PLANFOR. Formando o cidadão produtivo. FAT/CODEFAT, 1997. BRASIL. Ministério do Trabalho. SENFOR/FAT. Política pública de emprego e renda: ações do governo. Brasília, 1997. BRASIL. Ministério do Trabalho. SENFOR. Plano Nacional de educação profissional. PLANFOR. Trabalho e empregabilidade. 1997. CANDEIAS, Cezar Nonato Bezerra. Sociedade atual: conjuntura e política educacionais do Estado brasileiro, 1999 (texto). CORREIO DA PARAÍBA. 32,2% dos paraibanos não sabem ler. 02/05/99: 3. CASALI, Alípio, et. al. Empregabilidade e educação: novos caminhos no mundo do trabalho. São Paulo: EDUC, 1997. DINIZ, Eli. Crise, reforma do Estado e governabilidade. Brasil. 1985-95. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: UEP, 1997. FRANCO CIAVATTA, Maria. Formação Profissional para o trabalho incerto: um estudo comparativo Brasil, México e Itália. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (org.) Educação e crise do trabalho. Perspectiva de final de século. Petrópolis: Vozes, 1998. HAAN, Arjan e Maxwel. Social Exclusion: An Alternative Concept for Study of Deprivation. In: IDS Bulletin. Proverty and Social Exclusion In North and South. v.29, Number 1, jan. 1998. p. 10/19. HADDAD, Paulo Roberto. Os Impactos do novo ciclo sobre os desequilíbrios regionais. In: O real, o crescimento e as reformas. VELOSO, João Paulo dos Reis (organizador). Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. GOVERNO DO ESTADO DA PARAÍBA. Plano de desenvolvimento sustentável. 1996 – 2010. João Pessoa. MACHADO, Lucilia Regina de Souza. Qualificação do Trabalho e Relações Sociais. In: Gestão do trabalho e formação do trabalhador. Fernando Selmar Fidalgo (orgs.). Movimento de Cultura Marxista. Belo Horizonte, 1996.
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203
O ATUAL ESTADO DA ARTE DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL: UMA LEITURA A PARTIR DA V CONFINTEA E DO PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO* Timothy D. Ireland**
Neste ensaio sobre o atual estado da arte da Educação de Jovens e Adultos, pretendo tentar o impossível: conjugar a V Conferência Internacional de Educação de Adultos – V CONFINTEA142 com uma conjuntura cuja característica mais debatida é a globalização e, finalmente, com o atual cenário brasileiro de Educação de Pessoas Jovens e Adultas (o termo politicamente correto de referir-se a EJA na atualidade). Embora as Conferências Internacionais de Educação de Adultos organizadas pela UNESCO sejam momentos formais e oficiais de discussão, também representam a instância macro para a elaboração e divulgação de um quadro do atual estado da arte da EJA em nível mundial. Evidentemente, os documentos formais apresentados, discutidos e aprovados durante a Conferência precisam, de um lado, tentar formular respostas à conjuntura internacional em que o evento se insere e, de outro, apresentar esta conjuntura de uma forma aceitável aos representantes da maioria dos países-membros das Nações Unidas presentes. Mesmo com tais limitações, as Delegações que resultam dessas conferências exercem uma influência sobre os rumos da EDA nos anos subsequentes à conferência. Assim, convido-lhes a acompanhar numa viagem que começa em Hamburgo, dá uma rápida volta pelo mundo que os novos meios de comunicação encurtam cada vez mais, para aterrissar aqui no Brasil que, embora oficialmente representado na CONFINTEA, continua demonstrando uma atitude refratária aos desafios postos para a EDA na próxima década. Fontes extraoficiais sugerem que a direção da SEF/MEC não se sente totalmente identificada com as resoluções de Hamburgo. No caso brasileiro, entende-se que se deveria priorizar e centralizar recursos na escolarização de crianças e adolescentes antes da implementação de políticas que tomam por base o paradigma da educação permanente. Diga-se, de passagem, que este paradigma da educação continuada, ao longo da vida, vem sendo discutido desde a Conferência de Montreal (Canadá) em 1960. 1. As Conferências Internacionais de Educação de Adultos são grandes eventos que acontecem a cada dez anos aproximadamente. A quarta foi realizada em Paris (França) em 1985 e a quinta em 1997,143 em Hamburgo. Nesta última, estiveram presentes 1.507 participantes, incluindo-se ministros e vice-ministros, representantes dos estados-membros da UNESCO, representantes de organizações do sistema da ONU, representantes de ONGs, de fundações e instituições entre outros. A novidade em comparação às conferências anteriores foi a presença de representantes das ONGs, sem direito a voto, mas com direito a voz. 2. A CONFINTEA deve ser situada, também, no contexto das grandes iniciativas tomadas pelas Nações Unidas nesta última década, como a Conferência de Jomtien (1990) sobre Educação para Todos, a Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), a Conferência de Cairo sobre População (1994), de Copenhagen sobre Desenvolvimento Social (1995), de Beijing sobre a Mulher (1995) etc. Estas Conferências, apesar de suas limitações, representam momentos para uma avaliação sobre o tema em questão
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Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na mesa Redonda sobre o mesmo tema no I Encontro Regional de Educação de Jovens e Adultos, promovido pelo NEJA/Departamento de Ciências Humanas, Campus III – UNEB (FFCLJ), Juazeijro. ** Professor do Centro de Educação da UFPB, atuando no curso de Pedagogia, no Programa de PósGraduação em Educação – Educação Popular – e coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos. 142 Realizada em julho de 1997 na cidade de Hamburgo, Alemanha. 143 A primeira Conferência foi realizada no período do pós-guerra em 1949 em Elsinore (Dinamarca), seguindo-se, em 1960, a segunda em Montreal (Canadá) e a terceira em Tóquio (Japão), em 1972.
204 – um estado da arte global. Os objetivos da Conferência de Hamburgo mostram claramente esta perspectiva. 3. O objetivo geral, segundo o programa oficial, era o de destacar a importância da aprendizagem das pessoas adultas, bem como de firmar um compromisso internacional neste campo da perspectiva da educação permanente, com o propósito de: facilitar a participação de todas as pessoas no processo de desenvolvimento sustentável e equitativo; promover uma cultura de paz baseada na liberdade, na justiça e no respeito mútuo; favorecer os processos de autodeterminação de homens e mulheres; desenvolver uma relação sinérgica entre a educação formal e não-formal.144 Nessa perspectiva, a UNESCO e seus membros se comprometeram a envidar esforços para garantir uma participação equilibrada, em termos de gênero e de representação, de todas as regiões do globo, assim como de todos os atores envolvidos. 4. Quais são então os principais destaques da Declaração de Hamburgo? Lembremos que o documento apresenta proposições baseadas nos relatórios regionais resultantes de diferentes processos de consulta – alguns mais, outros menos democráticos – em diferentes regiões do mundo. A Declaração inicia dando ênfase à importância central da Educação de Adultos como chave do século XXI – requisito fundamental para a participação ativa cidadã (1:2).145 O conhecimento se tornou a nova moeda mundial na economia financeira e na economia de capital humano. Ratifica o conceito de educação como um processo permanente sublinhando a primazia da aprendizagem (o título do documento em inglês é The Hamburg Declaration on Adult Learning146 - e não Adult Education, traduzido erroneamente, ao meu ver, para a versão em castelhano como Declaración de Hamburgo sobre la Educación de Adultos147 e, em português, como A Declaração de Hamburgo sobre a Educação de Adultos).148 “O conjunto de processos de aprendizagem, formais ou não formais, graças aos quais os adultos na sociedade na qual pertencem desenvolvem suas aptidões, enriquecem seus conhecimentos e melhoram suas qualificações técnicas ou profissionais ou as reorientam em função de suas próprias necessidades e das necessidades da sociedade (...) A Educação de Jovens e Adultos, considerada como um processo que dura toda a vida, tem por objetivo desenvolver a autonomia e o sentido de responsabilidade dos indivíduos e das comunidades, dar-lhes melhores condições para enfrentar as transformações que afetam a economia, a cultura e a sociedade” (1-3). Mais que isso, a EDA é conceituada como um processo que pode e deve reforçar a capacidade de lidar com as transformações que estão acontecendo na economia, na cultura e na sociedade como um todo (11-5). O documento enfatiza: Globalização, mudanças nos padrões de produção, crescente desemprego e a dificuldade de garantir meios de vida seguros exigem políticas de emprego mais ativas e um aumento no investimento em desenvolver as habilidades necessárias para homens e mulheres poderem participar do mercado de trabalho e de atividades que geram renda (16:19). A questão da alfabetização continua recebendo um ênfase especial (14:11), a exemplo do que ocorre como a questão de gênero (14:13). A Declaração reconhece a importância do 144
UNESCO La educación de las personas adultas: una clave para el siglo XXI, Hamburgo, Alemanha, 14-18 de julho de 1997. 145 Fonte de referência para todas as citações: UENSCO La Educación de las Personas Adultas – la Declaración de Hamburgo y La Agenda para el Futuro, UIE, Hamburgo, Alemanha, 1998. 146 CONFINTEA Adult Education. The Hamburg Declaration. The Agenda for the Future. UNESCO: Hamburg, 1997. 147 CONFINTEA La Educación de las Personas Adultas. La Eclaración de Hamburgo. La Agenda para el Futuro. Unesco, Hamburgo, 1997. 148 MEC Conferência Regional Preparatória e V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos. Brasília: MEC, 1998.
205 papel da EDA na luta por um tipo de desenvolvimento que leve em conta a capacidade do meio ambiente de suportá-lo (15:17). Por último, aponta para um novo papel do Estado, que é o de trabalhar progressivamente em parceria com os setores públicos, privados e comunitários e dentro dos governos onde a promoção da EDA não é mais restrita aos Ministérios de Educação: todos os setores precisam se envolver na promoção e apoio à aprendizagem de adultos (12:18). 5. A Declaração de Hamburgo inicia afirmando que apenas o desenvolvimento centrado no ser humano e numa sociedade participativa, baseada no pleno respeito pelos direitos humanos, conduzirá a um progresso sustentável e equitativo. Uma comparação entre esta visão do desejável e a realidade do processo de desenvolvimento predominante revelará uma dimensão utópica da proposta do documento à dura realidade do processo em andamento. Neste sentido, o documento se baseia numa concepção filosófica bastante otimista da natureza humana: através de um processo permanente de educação, o homem se aperfeiçoará, de acordo com a sua vocação ontológica de ser mais, e, consequentemente, será conduzido pela lógica para compreender a necessidade de se implementar políticas, nacionais e internacionais de desenvolvimento centradas no ser humano. Sem diminuir a importância dessa meta, uma análise superficial da conjuntura internacional pode nos levar, de um lado, a dúvidas cruéis sobre esta concepção otimista da natureza humana e, de outro, sobre a capacidade da educação para atender a todas funções que a EJA está sendo convocada para 149 assumir/desenvolver/desempenhar. Numa rápida análise do documento, identificamos as seguintes áreas em que a EDA, numa perspectiva da educação permanente, terá de contribuir de forma significativa: desenvolvimento centrado no ser humano; criação de uma sociedade participativa; promoção do exercício pleno da cidadania; fortalecimento do respeito integral aos direitos humanos; processo de desenvolvimento ecológico justo e sustentável; promoção da igualdade entre os sexos; avanço da ciência e da tecnologia; desenvolvimento da cultura de paz baseada na justiça; aperfeiçoamento de homens e mulheres em suas qualificações técnicas e profissionais; construção de uma sociedade tolerante e instruída; diminuição da pobreza e para a preservação do meio ambiente; processo de ajuda aos jovens e adultos a desenvolverem a autonomia e o senso de responsabilidade; fortalecimento da capacidade de lidar com as transformações que ocorrem na economia, na cultura e na sociedade; promoção da coexistência, da tolerância e da participação criativa e crítica dos cidadãos em suas comunidades.
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No fundo, tanto a visão otimista da natureza humana como a visão pessimista terminam realçando a importância do processo de aprendizagem para o processo de desenvolvimento, por motivos bastante divergentes. A visão otimista realça a vocação ontológica do homem para alargar constantemente as fronteiras de sua compreensão do mundo físico/natural e de si – a natureza incompleta do homem. Com base na visão pessimista, o estado natural do homem é a barbárie. O processo civilizatório no qual a educação desempenha um papel central constitui uma luta constante contra este estado. Uma analogia talvez fosse à de um fumante inveterado que paga mensalmente uma apólice de seguro de vida. No seu artigo “O futuro da utopia” (1999) Richard Rorty comenta: “No atual momento, os habitantes do Primeiro Mundo estão divididos mais ou menos igualmente entre aqueles que pensam que este mundo nunca chegará a ser muito melhor do que é hoje e aqueles que compartilham a esperança utópica (...). No Terceiro Mundo a proporção provavelmente chega mais perto de nove para um. Nessas partes do mundo é muito mais fácil imaginar uma vida após a morte que seja melhor do que a vida atual do que imaginar que as transformações socioeconômicas que tornarão suportável a vida na terra irão realmente acontecer”.
206 Como o próprio documento aponta, a possibilidade de a EDA vir a contribuir para os avanços relacionados acima dependerá, entre outros fatores, da adoção de políticas públicas Inter setoriais. Sem a articulação de uma política pública nacional da EJA com outras políticas públicas complementares, no caso brasileiro, objetivando a geração de emprego, uma distribuição justa de renda, uma desconcentração na propriedade de terra, o acesso a um sistema de saúde de qualidade etc., não há como a Educação de Jovens e Adultos desempenhar as funções que a Declaração de Hamburgo lhe atribui.150 6. O documento se defronta com uma conjuntura internacional cuja característica predominante é a lógica de reduzir o conceito de desenvolvimento ao aumento da produtividade e da lucratividade a qualquer custo. As grandes decisões sociais e políticas são deixadas para o mercado nacional e, sobretudo, internacional decidir. Neste sentido, as metas e as estratégias propostas para a EDA pela Declaração de Hamburgo precisam ser entendidas como um início de diálogo com a conjuntura internacional entre cujas características mais marcantes a globalização ocupa um lugar de destaque. 7. A noção sobre o significado da globalização já se tornou senso comum. Entretanto, questiona-se: será que existe uma base comum de entendimento? A impressão que se estabelece é de que “globalização” possui o mesmo valor que o termo “vírus” na linguagem média. Serve para “explicar” tudo que não se consegue explicar. Então, será que a globalização é o mesmo fenômeno identificado na internacionalização? Será que significa a mesma coisa que modernização? Será que tem o mesmo significado que homogeneização – redução do mundo a uma geleia global geral? Será que existe uma política de globalização, ou seja, uma nova política de desenvolvimento econômico internacional planejado para enfrentar a necessidade de produzir e de distribuir para satisfazer as necessidades dos cidadãos do Primeiro Mundo e também do Terceiro Mundo? Dos países ricos e dos países pobres? Será que expressa uma nova consciência internacional, uma forma de regular um pouco mais as injustiças sociais e econômicas que nos confrontam e afrontam cada dia que ligamos os nossos aparelhos de televisão ou abrimos os jornais? 8. Há talvez um ponto de consenso sobre o fenômeno da globalização – é que existe, é uma realidade inegável. Depois disso começam os debates: a partir daí, a natureza do processo, as suas tendências e a inevitabilidade do processo são todos pontos de discordância. A esse respeito, Herbert de Souza (1996) escreve: “Afirma-se que a globalização (leia-se capitalismo mundial) reina no mundo de forma definitiva e inevitável. A política do possível é aceitar esse fato. O inteligente, agora, é render-se às evidências da moda. O impossível é mudar esse juízo categórico, à Kant uma perda de tempo, tarefa de ociosos e iludidos.” Na opinião de Benjamin (1998, p. 29), no excelente livro A opção brasileira, a globalização constitui um processo que pode ser assim conceituado: “(...) a parte moderna da economia capitalista deixa de referenciar-se em um conjunto de economias nacionais vinculadas entre si por fluxos de comércio e investimento, para converter-se em uma rede única, tanto no nível produtivo como no financeiro. As cadeias de produção são desmembradas entre diversos países, de modo que as corporações multinacionais ganham um poder ainda maior sobre a divisão internacional do trabalho, hierarquizando as nações (e até os espaços subnacionais) de acordo com seus interesses.” Tora (1997) apresenta dados que confirmam esta afirmação. Segundo ele, as vendas promovidas pelas duzentas empresas multinacionais mais fortes são maiores que o GDP agregado de todas as economias nacionais juntas, excluindo-se somente as nove economias nacionais mais fortes. Se formos elencar, por ordem de magnitude, as cem entidades
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Ireland (1998).
207 econômicas mais poderosas do mundo, somente quarenta e nove seriam nações. As outras todas seriam corporações multinacionais. Podemos, assim, afirmar que a globalização deveria dizer respeito ao modo como o mundo responde à satisfação de necessidades básicas da população mundial através de processos de produção e distribuição que enfrentam cada vez menos fronteiras sejam alfandegárias, financeiras ou nacionais. Neste aspecto, é importante lembrar o que Rorty (1999) comenta sobre o alcance dos avanços tecnológicos vistos como um pilar central do processo de globalização: “(...) a maioria das pessoas que vai nascer no próximo século nunca vai chegar a usar um computador, receber tratamento médico num hospital ou viajar de avião. Essas pessoas terão sorte de aprenderem a usar um lápis e papel e mais sorte ainda se forem tratadas com algum medicamento mais caro do que uma aspirina.” 9. Quais então seriam as principais características da globalização? O cientista político Zaki Laïdi identifica algumas dessas características problemáticas, como por exemplo, a de que a globalização não foi construída sobre um conjunto de valores de natureza universal, mas caracteriza-se, sobretudo, como um processo sem metas a longo prazo e que não se traduz numa ideia de um destino comum, um futuro comum, acrescentando: “Longe de incentivar universalismo, globalização resultou num processo de fragmentação cultural e política e, em muitos casos, ao entrincheiramento de grupos excluídos atrás de identidades locais baseadas no passado?”151 Nessa mesma direção, Rorty (ibidem) denuncia: “O mais assustador do futuro humano é que não existem projeções convincentes de aumento geral no nível da igualdade humana. Ninguém até agora escreveu um roteiro plausível no qual, no ano 2100, uma criança nascida na Bahia ou em Kinshasa (Congo) terá as mesmas oportunidades na vida que uma criança nascida em Munique ou San Francisco.” Outros comentaristas apontam a questão dos enormes avanços no campo da mídia de massa e com isso tem contribuído para “rasgar o véu da ignorância”: os pobres, os excluídos, os marginalizados veem e sabemos que significa moderno ou modernidade. Existe um reconhecimento, por alguns, de que as pressões ou imperativos econômicos que impulsionam o processo de globalização não podem, sozinhos, substituir o conceito de desenvolvimento. Em outras palavras, crescimento econômico não é um substituto adequado para educação, ciência, cultura e comunicação entre povos e nações. Richard Rorty considera que o ponto fulcral de globalização está no fato de que a situação econômica do cidadão de um Estado-nação não é mais controlada pelas leis daquele Estado. Acima das organizações, já existe uma superclasse global que toma todas as principais decisões econômicas e as toma de forma totalmente independente das Câmaras Legislativas e dos eleitores de qualquer país. As consequências disso são evidentes.152 Benjamin (1998, p. 30) considera que o processo de globalização fortalece um mercado que é, concomitantemente, internacional e nacional: “Internacional porque um número crescente de transações ultrapassa as fronteiras dos países. Interno por se inserir na estrutura de decisões das empresas: 2/3 das exportações mundiais já são realizadas entre filiais das mesmas multinacionais, cujo compromisso, evidentemente, é com sua rentabilidade em escala global”. As características negativas mais viáveis da globalização são: o crescimento do desemprego, a fragmentação do mundo do trabalho, a exclusão de grupos humanos, a 151 152
Apud Bindé, op. cit., p. 20. Richard Rorty (1996, p. 462).
208 insegurança na vida social, o abandono de certas áreas geográficas, a concentração da riqueza em certas empresas e países com uma consequente fragilização da grande maioria dos estados. Nesse cenário, existem jogadores-chave, jogadores periféricos e jogadores sentados no banco de reserva sem perspectiva de entrar em campo. 10. Fica, portanto, evidente que o efeito do processo de globalização não está em reduzir tudo a uma massa homogênea. Globalizar não equivale a um processo em que a internacionalização do mercado mundial se traduz em uma normatização de outros processos, como o educacional, o cultural, o ético, o religioso etc. Claramente, alguns dos processos que têm caracterizado amis fortemente o processo de globalização – como o da modernização tecnológica – têm produzido verdadeiras revoluções em alguns campos – como a comunicação e a informática – com profundas consequências para o mundo da educação. Mas o cenário geral se apresenta como extremamente complexo e contraditório. Globalização exige flexibilização, exige um trabalhador com uma formação flexível, apto a mudar de profissão quando o mercado exige, disposto a mudar de cidade ou região na sua busca de emprego, disposto a perder direitos básicos para segurar seu emprego. O conceito de progresso ou desenvolvimento é traduzido pela possibilidade de produzir mais e não pela possibilidade da busca crescente de um mundo igualitário e solidário.153 A conjuntura global que a EDA enfrenta é esta. 11. Qual então a realidade formal da EJA no Brasil? Como afirma Haddad (1992), o esforço de reconhecimento da EJA, enquanto modalidade educativa tem ganhado espaço no plano formal, porém, isto não tem sido traduzido no plano político concreto. Exemplo disto é a persistência de elevados índices de analfabetismo tanto absoluto como funcional e a descontinuidade dos programas educativos para este setor. No Brasil, embora a Constituição Federal de 1988 assegure que a educação é um direito de todo cidadão e um dever do Estado, apontando no artigo 208 o compromisso com a erradicação do analfabetismo, os dados oficiais do IBGE (1991) mostram um quadro desalentador. No Brasil, mais de 18% da população acima de 15 anos são analfabetos. Na Paraíba, em 1995, segundo dados divulgados pelo IBGE, 32,2% da população com mais de 15 anos são analfabetos. Ou seja, numa população de 2.203.301 habitantes, 709.226 formam o contingente de analfabetos. A taxa de analfabetismo é de 37,4% entre os homens e de 27,6% entre mulheres (IBGE – 1991/PNAD – 1995).154 Para se entender melhor o reflexo desses dados no mundo do trabalho, os dados da RAIS-95 (Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho) que retratam a situação dos 35 milhões de trabalhadores que compõem o setor formal da economia (com registro em carteira profissional) revelam o seguinte perfil: 15% sem instrução ou até a 3a série do 1o grau; 33% entre a 4a e a 7a série do 1o grau; 23% com 1o grau completo; 29% com 2o grau completo ou mais (sendo apenas 10% com curso superior).155 Conforme consta na Declaração de Hamburgo, a possibilidade de a EDA responder efetivamente às mudanças provocadas pelo processo de globalização – e aqui nos referimos especificamente ao Brasil – dependerá, entre outros fatores, da adoção de políticas públicas intersetoriais. Esta capacidade de formular respostas exige também que se redimensiona o próprio conceito da EDA, não somente no sentido da permanência do processo e da ótica da aprendizagem em lugar do ensino, mas também em decorrência das mudanças citadas, como um processo de vital importância nos campos do trabalho, da saúde, da agricultura e reforma agrária, da habitação, da nutrição etc. Nas observações gerais sobre Educação de Jovens e Adultos no Plano Nacional de Educação, consta a seguinte afirmativa:
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Neste mesmo sentido, Roty afirma: “Quando o assunto é o progresso – o avanço na realização dos sonhos utópicos de um mundo igualitário, sem classes sociais e sem castas, no qual todas as crianças tenham as mesmas oportunidades, o melhor que podemos esperar do próximo século, com algum nível de expectativa de que se realize, é que esses sonhos continuem a existir. (...) O pior futuro que eu consigo imaginar para a raça humana é um futuro destituído de tais sonhos”. 154 Ireland et al. (1998, p. 4-5). 155 Mehedeff (1998, p. 1).
209 “Nos países desenvolvidos, a Educação de Jovens e Adultos é considerada hoje como educação permanente, oferecida a toda a população, qualquer que seja o grau de escolarização anterior, e tem como objetivo o contínuo desenvolvimento de capacidades e competências necessárias para enfrentar as transformações culturais, científicas e tecnológicas que repercutem inclusive no mercado de trabalho. No Brasil, é necessário assumir uma atitude diversa, pois a Educação de Jovens e Adultos precisa estar orientada, prioritariamente, para o resgate da dívida social em matéria de educação.”156 Acreditamos ser esta perspectiva estritamente escolar importante, mas limitada por não enfatizar a necessidade de enfrentar a “dívida social” em toda sua complexidade e, assim, necessariamente de uma forma intersetorial. Nesse sentido, Werthein (1999) afirma que o binômio conhecimentos básicos – cidadania sobressai pelo fato de que os atuais desafios e impasses demandam soluções que não sejam impostas, mas negociadas publicamente. No plano formal, a Educação de Adultos tem avançado, abrangendo temas como cidadania, direitos humanos, ecologia, gênero, etnia, religião, entre outros, o que amplia a sua dimensão educativa. Porém, esses aspectos, quando vividos no cotidiano das práticas educativas, defrontam-se com uma série de limites, alguns deles paradoxais. Por exemplo: ao mesmo tempo em que é tratada como uma atividade supletiva ou compensatória, a EJA é vista como solução para muitos problemas, mesmo existindo iniciativas diversas nesse campo patrocinadas por diferentes instituições (ONGs, governos, setor privado etc.), predomina o isolamento e a falta de articulação entre as experiências; há experiências riquíssimas, porém sem uma sistematização adequada, entre outras lacunas (GARCIA-HUIDOBRO, 1993). 12. Houve, a meu ver, um retrocesso mesmo com relação ao processo tímido de discussão e articulação deslanchado em 1996, em preparação para a V CONFINTEA, caracterizado pela realização de encontros e reuniões municipais, estaduais e regionais, bem como no nível nacional e latino-americano, objetivando a elaboração de documentos. Tudo isso, de certa forma, representou um esforço no sentido de se traçar um estado da arte em cada nível organizacional/estrutural do país, e de se formar Fóruns/Comissões estaduais e municipais. seria imprudente afirmar, mas ficou a impressão de que esse ímpeto inicial foi perdido ou, pelo menos, suspenso. A este cenário nada encorajador devemos acrescentar o fato de que a Comissão Nacional de Educação de Jovens e Adultos (CONEJA) nunca mais foi convocada após a Conferência Regional Preparatória, realizada em janeiro de 1997. Além disso, há sinais claros indicando que, no atual Ministério, não existe nenhuma predisposição de convocá-la novamente. Embora os dados apresentados pelo MEC sobre o perfil do atendimento no ensino fundamental, nas três esferas de governo, registrem um patamar de mais de 2 milhões de matrículas anuais no período entre 1995 e 1998, e um aumento em termos relativos do orçamento do MEC para a EJA,157 as taxas de conclusão permanecem escandalosamente baixas, ao lado do atendimento limitado, considerando as dimensões do problema. Entende-se, portanto, que o compromisso do MEC para com a EJA, seja de forma restrita (escolarização básica) ou ampla (educação contínua envolvendo as diferentes dimensões da vida adulta) é meramente formal. Apesar disso, sabemos que outros Ministérios (do Trabalho, através dos SINEs, e da Reforma Agrária, por exemplo), a Comunidade Solidária e muitas organizações da sociedade civil desafiam a falta de recursos para continuar oferecendo programas envolvendo a EJA. Mas as informações que possuímos são fragmentadas e muito incompletas, dificultando qualquer tentativa de delinear um quadro aproximado do estado da EJA no Brasil. Assim, os dados existentes se referem basicamente ao atendimento em cursos presenciais de EJA, através dos sistemas federal, estaduais e municipais de ensino, ou por meio de organizações não governamentais receptoras de recursos financeiros do Governo Federal, com base em 156
INEP (s.d, p. 41). MEC/SEF (1999, p. 11) “ Em termos relativos, o orçamento do MEC para EJA cresceu 202% no período de quatro anos, enquanto que o volume de recursos conveniados com as instituições executoras aumentou em 183% nesse mesmo período.” 157
210 convênios. Os esforços das organizações não governamentais que atuam no campo da EJA, mas que não recebem recursos federais, não são contabilizados e permanecem invisíveis no plano formal. Igualmente, as práticas educativas que se enquadram no conceito de EJA, proposto pela Declaração de Hamburgo (ver item 4), mas que não são estritamente escolares evidentemente não são registradas. Mesmo no plano formal, o próprio MEC admite a possibilidade de distorções nas estatísticas oficiais motivadas pela instituição do Fundo de Desenvolvimento e Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – FUNDEF.158 No âmbito local, uma pesquisa realizada no Município de João Pessoa – PB evidenciou as dificuldades encontradas pelas Secretarias Estadual e Municipal de Educação para coletar dados confiáveis e completos.159 13. Finalmente, como conjugar, a curto prazo, Hamburgo e globalização com EJA no Brasil? Apesar de todas as limitações inerentes a um evento internacional que tenta produzir uma declaração que satisfaça a todos os Estados-membros da UNESCO, a V CONFINTEA foi importante por várias razões. Dentre elas, podemos afirmar que oportunizou, pelo menos, no Brasil, o inicio de um processo de articulação entre os atores principais envolvidos em praticas de EJA – o estado, a sociedade civil e outros parceiros (fundações, empresas, non-profits etc.). A Declaração e a Agenda para o Futuro são documentos de referência importantes. Mais do que isso, a Agenda estabeleceu as linhas gerais de uma estratégia de follow-up à Conferência que o Instituto de Educação da UNESCO em Hamburgo, responsável para coordenar o processo, já detalhou numa proposta de ação. Neste sentido, a UNESCO patrocinou, juntamente com o CEAAL, INEA (México) e CREFAL, três reuniões entre os países da América Latina e do Caribe, no sentido de comprometer governos e organizações da sociedade civil com os objetivos estabelecidos nos dois documentos. O Brasil participou da primeira dessas reuniões, envolvendo os países do MERCOSUL e o Chile, realizada em Montevidéu, no Uruguai, no período de 18 a 20 de novembro de 1998. A necessidade de apresentar um documento na reunião de Montevidéu incentivou a realização prévia de um Encontro Nacional em Curitiba – PR, nos dias 29 e 30 de outubro de 1‟998, organizado por uma coalizão composta de representantes do CONSED, da UNDIME, do CEAAL, da UNESCO e da SEF/MEC. Portanto, no caso do Brasil, seria importante tentar resgatar os espaços criados antes de Hamburgo. Judith Marshall desenvolve o conceito de globalização de baixo para cima,160 no contexto do movimento sindical. Seria possível aplicar o mesmo conceito a um conjunto de experiência envolvendo a EDA que se articula com redes semelhantes na América Latina e depois com redes em outros continentes. Na América Latina, já existe um veículo que é o CEAAL (Conselho de Educação de Adultos da América Latina), estruturado com comissões nacionais nos países-membros. A RAAAB (Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora do Brasil), uma articulação brasileira, criada na década de 80, que, em recente encontro no Rio de Janeiro,161 decidiu ampliar o âmbito de suas atividades em consonância com uma definição ampliada de alfabetização, apresenta-se como outra instância. Os Fóruns do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, ao lado de iniciativas incipientes que vêm sendo realizada em Vitória – ES e no Rio Grande do Norte, oferecem outros exemplos importantes dessa organização de baixo para cima. Igualmente, a proposta aprovada no plenário do Encontro Nacional em Curitiba (outubro de 1998), no sentido de se realizar outro Encontro Nacional, em Faxinal do Céu – PR, em setembro de 1999, está sendo articulada pelas mesmas entidades incentivadoras do Encontro de Curitiba, a UNESCO, o CEAAL, a UNDIME, e o CONSED com o MEC, mais uma vez, de reboque. Estes e outros mecanismos são essenciais para manter a EJA, embora superficialmente, na agenda política. Em médio prazo, existe a necessidade de se criar uma 158
MEC/SEF (1999,k p. 5-6). Ireland et al. (1999). 160 Globalization from below. Marshall, Judith. “Globalization from Below: The Trade Union Connections” In: Walters, Shirley (ed.) Globalization, Adult Education and Training. London/New York: Zed Books, 1997, p. 57-68. 161 Encontro Ampliado do Colegiado da RAAAB, realizado no Colégio Assunção, no Rio de Janeiro, nos dias 29 e 30 de março/99. 159
211 Agência Nacional de EJA, nos moldes da Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos, em processo de estruturação em Portugal.162 A existência de um órgão dessa natureza abriria as condições, não somente de se cumprir os compromissos assumidos em Hamburgo, mas, principalmente, de saldar as dívidas históricas com os jovens e adultos das classes populares que não tiveram acesso aos sistemas e programas oficiais de educação. 14. O processo de globalização apresenta enormes desafios para a EDA, seja no âmbito internacional ou nacional, como tentamos mostrar. Entretanto, a EDA jamais poderá perder uma de suas dimensões mais preciosas e pertinentes, que é a de constituir um espaço crítico. A globalização é uma realidade, sim. Mas será que a sua dominação constitui um fato inevitável e irreversível? Será que a função da EJA, agora e no futuro, resume-se a preparar mão de obra para enfrentar as incertezas de um mercado global? Acreditamos que sua função básica é abrir espaços para discussão de outros modelos de desenvolvimento centrados no homem e numa sociedade participativa, baseada no pleno respeito aos direitos humanos e que levem em conta a preservação do meio ambiente e a necessidade fundamental de justiça social. Referências bibliográficas
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LIVRO 2 (coletânea)
EDUCAÇÃO POPULAR ENUNCIADOS TEÓRICOS
VOLUME 2
COORDENADOR.ES Agostinho Rosas José Francisco de Melo neto
JOÃO PESSOA-PB
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO EDUCAÇÃO POPULAR - sistema de teorias intercomunicantes José Francisco de Melo Neto CULTURA E EDUCAÇÃO POPULAR - a apropriação dos entes da cultura Maria das Graças de Almeida Baptista EDUCAÇÃO POPULAR E PRAXIS Rita de Cássia Curvelo da Silva EMANCIPAÇÃO HUMANA E A EDUCAÇÃO POPULAR: um devenir Maria do Amparo Caetano de Figueirêdo EDUCAÇÃO POPULAR E EMANCIPAÇÃO HUMANA Ronney da Silva Feitoza IGUALDADE EM EDUCAÇÃO POPULAR José Luiz Ferreira SUBJETIVIDADE EM EDUCAÇÃO POPULAR Nelsânia Batista da Silva EDUCAÇÃO POPULAR E DIÁLOGO: precisa a educação (popular) ser dialógica(?) Antonio Roberto Faustino da Costa EDUCAÇÃO POPULAR E CRIATIVIDADE Agostinho Rosas CONSIDERAÇÕES
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APRESENTAÇÃO ........................................................................
EDUCAÇÃO POPULAR - sistema de teorias intercomunicantes José Francisco de Melo Neto163 A educação popular pode ser examinada como uma possibilidade educativa veiculada e incentivada tanto pelo Estado como por setores da sociedade civil – sindicatos, partidos políticos, organizações não-governamentais, igrejas e outras instituições. Tem despertado maior interesse como ferramenta de luta, a partir do início do século passado, na organização de setores das classes trabalhadoras. Manifestou-se no seio das práticas políticas dos anarquistas, sobretudo nas duas primeiras décadas, ou mesmo na perspectiva educacional do governo, desde a década de 30, estando presente na legislação ou em projetos da política governamental164, voltados à educação do povo, compreendida como educação popular. Em época mais recente, adquiriu novas dimensões quando a educação popular passou a ser compreendida, também, como aquela propalada em campanhas do tipo Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e, de certa forma, do Movimento de Educação de Base (MEB). Isto ocorreu com maior ênfase durante as quatro últimas décadas, quando passou a absorver as mais diferenciadas experiências educativas nas Américas, na África e outros continentes, com metodologias, linguagens, visões políticas, técnicas didáticas, mecanismos avaliativos próprios e presentes nos distintos movimentos sociais revolucionários do século passado. Nessa perspectiva, assumiu-se como sendo a forma da educação possível aos setores sociais como indígenas, camponeses, trabalhadores, trabalhadores sem terra, moradores de periferias das cidades e outros setores marginalizados das políticas públicas. Contudo, somente a partir da década de 50, com ênfase, no início da década de 60, tem início a demarcação desse campo da educação com as experiências de Paulo Freire165, de modo especial, no âmbito da
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Professor Titular/Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), atuando no Programa de PósGraduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura). Coordena a Incubadora de Empreendimentos Populares – INCUBES/UFPB e o Grupo de Pesquisa em Extensão Popular – EXTELAR.
164
Ver: Kulesza, Wojciech Andrzej. Para a história da educação popular no Brasil republicano. João Pessoa, 2003.
165
A primeira, dentre as muitas experiências, aconteceu no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco, coordenado pelo Prof. Paulo Freire. Registrem-se ainda as ações educativas do Movimento de Cultura Popular (MCP) e da União Estadual dos Estudantes de Pernambuco, do Diretório Central dos Estudantes da Universidade do Recife e o Centro Popular de Cultura (CPC), criado em 1961, no Rio de Janeiro, ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE). Estas ações estenderam-se por vários Estados, destacando-se os projetos implantados na cidade de Angicos e Natal, no Rio Grande do Norte, com a Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”. Na Paraíba, destacaram-se as campanhas: 1) alfabetização-educação de adultos pelo rádio (SIREPA – Sistema Rádio-Educativo da Paraíba); 2) aplicação em larga escala do Método Paulo Freire e do movimento de cultura popular adjacente (CEPLAR – Campanha de Educação Popular); 3) Cruzada ABC – Cruzada da Ação Básica Cristã, pós-abril de 1964, liderada por missionários protestantes e técnicos norte-americanos. Suas experiências chegaram a Osasco (SP) e Brasília. Posteriormente, elaborou-se o Plano Nacional de Alfabetização (PNA-MEC), o Projeto
218 alfabetização. No entanto, análises, tentativas e definições de políticas em educação direcionadas a esse campo da educação continuam. A partir do ambiente de analfabetismo regional, Paulo Freire passou a delimitar a aplicação de sua perspectiva educacional, definindo essa situação como de comunidade ou consciência “intransitiva”, quando os interesses das pessoas estão definidos pelas exigências elementares biológicas de sobrevivência. Por meio da ação educativa, eleva-se esse patamar de consciência para um nível de “transitividade”, onde o humano e também o seu mundo adquirem esferas para além das dimensões biológicas vitais, alçando-se o compromisso para com a sua existência. Esse patamar da “consciência transitiva”, considerado por Freire (1963) de “ingênua” em um primeiro estágio, é caracterizado pela visão das coisas de forma nebulosa e não como fruto da investigação, pela fragilidade dos argumentos, pela desconfiança de tudo que é novo, pela falta de incentivo ao debate ou por suas explicações mágicas. A partir daí, eleva-se para o exercício da crítica estabelecido pelo diálogo, fomentando a socialização dos bens culturais. Em sendo diálogo, é comunicação e, jamais, superposição de „comunicados‟ daqueles que se sentem possuidores desses bens. Isto implica “ter na própria realidade o elemento mediador. O homem comum e o intelectual, permeados pela realidade de ambos e „simpatizados‟ em torno dos objetos, fazem assim a intercomunicação, que é a própria democratização da cultura” (ibid.: 22). Então, há de se perguntar166: um processo educativo que percorre os patamares de consciência do nível da ingenuidade à crítica, por meio da comunicação, inserida no „seio‟ da cultura e promovendo a sua democratização, não se constitui como um sistema aberto de educação com teorias que se comunicam? É um possível sistema que não comporta a investigação por meio de cálculos lógicos, estando desprovido de interpretação. Não se está propondo o exame de um discurso que expresse símbolos primitivos determinadores de combinações simbólicas, construindo regras geradoras de novas regras de inferência que contenham expressões definidoras para outras novas regras. E, muito menos, que o seu percurso de chegada, por meio de formulações axiomáticas, seja a expressão da verdade última. Entende-se como um itinerário que pode expressar-se pelo modo de como se construiu aquele campo de conhecimento, o campo educativo popular, a forma peculiar de seu pensamento, com raciocínios que seguem um trajeto caracterizado por momentos intermediários dessa construção. Trata-se de um conjunto que expresse uma totalidade, estando traduzido nesse discurso. Essa totalidade precisa estar assentada em elementos unitários formados de conhecimentos múltiplos que organizam uma idéia central. A partir do concreto, os experimentos em educação popular e, portanto, o ambiente mais complexo de análise que se desenvolve e que se mantém, reunido como unidade mesma, constituem essa totalidade pelas suas determinações e diferenciações. O resultado é um conjunto expresso por inter-relações diversas, circunstanciadas em um certo tempo e movimento. E isto define a constituição de um sistema com teorias que, necessariamente, será mantido em aberto, comunicativo e em condições para comportar novas composições unitárias. Um sistema que encerra em si teorias traduzidas por proposições ou conjunto de proposições, envolvendo as suas relações e implicações. Essas teorias serão utilizadas na explicação desse fenômeno educativo, em que se tornem possíveis as suas verdades, bem como Nordeste e Projeto Sul (Sergipe e Rio de Janeiro) financiados pelo MEC. Ver: Scocuglia, Afonso Celso (1997). 166
A pesquisa desenvolvida teve como amostra cinco grupos de profissionais no campo da educação popular, num total de noventa e seis participantes: a) na Experiência de Autogestão que vem sendo desenvolvida na Usina Catende-PE (2002 a 2004); b)durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com a participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro (2003); c) com profissionais (alunos/as) de 3 turmas em duas disciplinas Teoria em Educação Popular e História e Filosofia da Educação Popular, no Programa de Pós-Graduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura) (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB (2003 e 2004), coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos.
219 as bases de sua natureza. A partir dessas teorias, tornar-se-á possível a definição de hipóteses que poderão ser úteis nas explicações das realidades definidas. Com isso, estarão expondo os seus métodos, considerando a diferenciação dessas tentativas que conduzem o fenômeno educativo-popular. Todavia, um ambiente de educação não comporta teorias que se apresentem, tão-somente, assinaladas por generalização empírica ou por simples especulação. Em educação popular, são admissíveis teorias que possam se apresentar como expressão de síntese de um conjunto de proposições especulativas, desde que combinadas com proposições geradas das experiências. Com essa possibilidade, admite-se haver a sua formulação, a partir de vários ensaios históricos e outros em desenvolvimento, como um fenômeno educativo que, pelo trabalho humano, assegurem a produção e a apropriação dos bens culturais. De forma mais ampla, esse sistema tem como objetivo explorar e incentivar as potencialidades humanas educativas quanto à produção e apropriação desses bens, na expectativa de mudanças. Experiências e formulações teóricas vêm abalizando seu significado como um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios alicerçados em vivências. Esses princípios, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Porém, mesmo resultando em uma unidade, esta se mantém em aberto, na medida em que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, educação e o popular. Dessa forma, a educação popular manifesta-se por meio do insistente desejo de criação de conhecimentos que busquem fazer história. Nessa construção da história, o ser humano expõe-se a novos temas e provoca o surgimento de novos valores, sugerindo outras formulações, dando origem a novas atitudes e mudando o seu comportamento. É um trabalho humano que se dá em e pela prática do indivíduo. Assim, à medida que humaniza a natureza, também naturaliza a sua dimensão de ser humano167. Expressa, ainda, a sua verdade, no sentido de que o indivíduo deve sair de si mesmo e modelar a própria realidade expressa pelas suas atividades. Nesse movimento, o humano elabora, sistematiza e reelabora o conhecimento, cuja cientificidade se demonstra na sua própria prática coletiva. Constrói-se, dessa maneira, uma metodologia coletiva capaz de tornar-se hábil em atitudes de orientação, sistematização e explanação de idéias. Com ela, preparam-se técnicas de reuniões, exercitando a crítica e a organização geral de entes humanos em suas classes. Através dessa teoria, exteriorizam-se conteúdos gerais que se originam no mundo concreto, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico. Esse modelo vem sendo aplicado, com sucesso, nas ações educativas com moradores de periferias de cidades, operários, camponeses e outras categorias de pequenos produtores rurais, incluindo a educação indígena, não seriada. É um ato pedagógico em contínuo movimento, cuja dimensão qualitativa reclama a forma como se desenvolve a “consciência crítica” de seus participantes e o tempo em que as atividades são conduzidas. A avaliação de seus conteúdos, finalmente, conduz à análise organizativa do conjunto educativo em desenvolvimento. Esse fenômeno educativo cultiva valores éticos promotores de atitudes democráticas, direcionadas para a igualdade e a liberdade. Tais valores efetivam-se como prática para a liberdade, “como gesto necessário, como impulso fundamental, como expressão de vida, como anseio quando castrada, como ódio quando explosão de busca, que nos vem acompanhando ao longo da história. Sem ela, ou melhor, sem luta por ela, não é possível criação, invenção, risco, existência humana” (Freire, 1991: 50). É uma luta coletiva ansiosa por democracia que, para Calado (2003), exigirá atitudes coletivas com dimensões de curto, médio e longos prazos, envolvendo os variados segmentos explorados da população. Caso esses setores estejam ausentes, tal conquista não ocorrerá. Essa luta resultará em um esforço de ascese em que o indivíduo se torna cada vez mais humano, quando inicia a sua descoberta consciente do mundo.
167
Ver: Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência. – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Com destaque ao capítulo que aborda a teoria da cultura.
220 As suas atividades conduzem para uma idéia central – a liberdade. Inicia-se na alfabetização, passa pelos círculos de cultura168, pela educação básica e média, chegando, de forma presumível, à universidade popular e a outros ambientes do conhecimento. Trata-se de um percurso de exercícios forçosamente subversivos, fundamentado na liberdade como expressão da utopia que está prenhe de possibilidades de realização. Esse é o percurso revelado por um sistema educativo. As bases da educação popular tornaram-se mais sólidas com Freire. Os seus programas de alfabetização de adultos originaram-se nas análises e nas críticas às situações existentes, em particular, ao analfabetismo, tentando a superação desse quadro com ações culturais para a liberdade169. O próprio termo “surgiu do reconhecimento da existência da diferença e da oposição entre culturas do povo e cultura da elite” (Brennand, 2003: 61). A sua ação cultural libertadora gestou programas voltados aos setores que estão à margem da sociedade - os oprimidos. Buscou a superação existencial da situação de „dominado‟ daqueles que estão despossuídos dos produtos culturais, a partir da capacidade de leitura. Alimentou-se um desejo de caminhada em que se supera a condição de análise da mera experiência, mesmo que seja tida como ponto de partida. Transgrediu-se, pelo pensar crítico, a visão sensível geradora de um saber apenas existencial ou opinativo, fecundada de uma ação prisioneira da magia. Esse percurso inicia-se por outro sistema que é o de sinalizações, tratado como um sistema universal que descortina a condição de uma comunicação escrita. A questão que se impõe é: Como proceder a essa montagem de sinalizações? “Somente um método dialogal, ativo, participante poderia realmente fazê-lo. Somente pelo diálogo que, nascendo numa matriz crítica, gera criticidade e que implica uma relação de como conseguir esses objetivos” (Freire, 1963: 14). Estabelece-se prontamente o caminho da construção de um sistema educativo popular. O método em construção traz consigo uma teoria de conhecimento que tem como ponto de partida o mundo concreto por meio do levantamento do universo vocabular do grupo em condição de se alfabetizar. Nesse ambiente, desabrocham os seus anseios, suas crenças, suas frustrações e a estética de sua linguagem. Passa-se, em seguida, para um segundo momento de seleção nesse universo vocabular, quando o grupo consegue identificar as palavras que se apresentam mais ricas em fonemas e „pluralidade de engajamento‟ no ambiente onde vive local, regional e nacional. Avança-se, nos momentos seguintes, para o debate, a partir das situações que vão sendo geradas. Possibilita-se, com isto, a elaboração das „fichas-roteiro‟ e dos vídeos auxiliares dos coordenadores na organização da aprendizagem. A partir desse material, avança-se para a definição dos fonemas que irão compor outras palavras, continuando com os círculos de cultura. De acordo com Paulo Freire, esse método anuncia a definição da primeira etapa do percurso educativo, que é a fase da alfabetização infantil. A segunda etapa é a alfabetização de adultos, que abre à educação básica. Essa etapa contribui para a oferta do ensino médio e a organização da universidade popular, conduzindo às etapas finais da criação de um Instituto de Ciências do Homem. Culminará com a concretização de um Centro de Estudos Internacionais. É um método que se funde com a teoria do conhecimento e com a organização estruturante de um possível esboço de currículo, permeado por análises lógicas, semióticas, lingüísticas e filosóficas. Incorpora uma teoria da comunicação, edificando-se a partir de duas categorias fundantes: a comunicação e a cultura. E filosofia da educação “é, entre outras coisas, o estudo deste processo de transferência ou transmissão de cultura, e a teoria e prática da comunicação, que a torna possível” (Maciel, 1963: 29). Pela comunicação, opera-se o sistema, enquanto a cultura torna-se o meio para sua realização, adquirindo maior radicalidade com a necessária socialização dos bens culturais. 168
Ambiente formado por um círculo de pessoas em que, pelo diálogo (educação popular), promovem-se a codificação e a decodificação de seus mundos e suas vidas.
169
Ver os livros de Paulo Freire: Educação como prática da liberdade; Ação cultural para a liberdade e outros escritos; Conscientização; Teoria e prática da libertação; Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire e Pedagogia do oprimido.
221 Assegura-se, assim, a pedagogia dialógica. Isto possibilita que o humano, à proporção que promove a democratização desses bens, realimenta-se com tal produto que lhe é próprio, pois é o seu produtor, passando o sistema a funcionar como um todo que se intercomunica. Por meio desse método dialogal, o humano passa a atuar conscientemente, educa-se e é educado com os demais. Ao se transformar e se comunicar, também transforma e comunica a todos. Ações intercomunicantes mantêm-se estabelecidas em experiências atuais, como a da Usina Catende170, externadas em planos de educação para a aprendizagem de outros valores éticos nas relações humanas. “O presente momento deste projeto exige organização da atividade de formação para os trabalhadores compreenderem a sua ação no interior do processo produtivo da empresa... Este plano está articulado com outras atividades complementares, tais como pesquisa sobre satisfação no trabalho e reuniões, às quintas-feiras, nos engenhos” (Lima, 2001: 1). O projeto é um convite aos trabalhadores demonstrando que, além do domínio dos códigos de linguagem pela comunicação, é urgente a compreensão dos mecanismos de produção. Para além disso, avança-se nos objetivos desse plano de educação no ambiente da indústria, resumido como “a capacitação dos trabalhadores na perspectiva da empresa autogestionária” (ibid.: 2). E isto significa ter por base a dimensão concreta da realidade, pois a sua execução passará pela quebra da visão de que o trabalhador não apresenta condições de gerir um empreendimento produtivo com suas próprias mãos. “Portanto, a formação, como processo permanente de produção da história e visão de mundo de cada um, cumpre, em nossa compreensão, o papel fundamental de ser cimento que agrega diversos fragmentos existentes na consciência dos indivíduos, possibilitando a compreensão do projeto histórico dos trabalhadores” (ibid.: 2). O plano teve início com as discussões dos valores da economia solidária e da autogestão. Em seguida, passou pelas dimensões técnicas específicas para ambos os cursos, como as do plantio da cana, a escolha da agropecuária alternativa para a região e técnicas utilizadas para a produção do açúcar, no interior da usina. Chegou-se, por fim, ao exercício para a aprendizagem dos cálculos de custos das técnicas utilizadas, lastreadas pela educação popular. Abre-se um campo muito vasto para se discutir a lógica e a teoria do conhecimento que essas ações educativas e populares vêm demonstrando. O que se pode ver neste experimento? Uma expressiva série lógico-gnoseológica aparece. O objeto de ação é a realidade que se mostra com sentidos, expresso por sensações, percepções, juízos, verbalização e conhecimento objetivo. Surge uma dimensão que Maciel (1963) apresenta como as três operações do pensamento: a apreensão (operação mental que forma a idéia, expressa pela verbalização da palavra); o juízo (ato de afirmar as suas apreensões); o raciocínio (composição dos juízos entre si, por meio dos conectivos básicos geradores das demais conjunções). Através desse percurso, viabiliza-se a procura da melhoria sustentável das condições de vida dessa população de baixa renda e moradores dos engenhos de propriedade da usina. Isso ocorre por meio da mobilização, do acompanhamento e de suas iniciativas empreendedoras, inclusive de gestão, das articulações políticas dos atores locais, do trabalho sócio-educativo com as famílias da região, dos planos de negócios e projetos de empreendimentos, alimentando a visibilidade do aprender humano171. O projeto identifica-se com a abertura da sociedade à aprendizagem coletiva. Nela, segundo Gonçalves (2000: 37), “direcionam-se as novas formas
170
171
Desde o ano de 1993, os trabalhadores da Usina Catende, no município de Catende, em Pernambuco, uma das várias usinas que faliram na região açucareira nordestina, vêm mantendo a sua sobrevivência e a da usina sob o controle deles próprios, num longo exercício educativo para a autogestão, administrando, economicamente, em dimensões de uma economia solidária. É uma experiência em andamento denominada de Projeto Catende/Harmonia. No seu Plano de Educação foram montados dois cursos técnicos, que foram realizados simultaneamente, sendo um curso em Técnicas de Gerenciamento em Produção Agrícola, para trinta participantes, e o outro em Técnicas de Produção na Agroindústria Açucareira, para outros trinta participantes, e ambos sob a orientação pedagógica da educação popular e da economia solidária.
Vários momentos nos círculos de cultura são coordenados pelo grupo de mulheres, sob a orientação do Centro de Mulheres, da cidade do Cabo/PE.
222 de trabalho e de serviços, articulando-as ao aprender permanente e à flexibilidade adaptativa de seus sujeitos”. O método concebido na alfabetização freirena é aqui usado na mesma base maiêuticosocrática. O diálogo é usado como força motriz da linguagem que se instala e vai se apresentando como caminho, sempre aberto, para uma seqüência de argumentação ou novas definições de gestão para uma autogestão. O procedimento metodológico é sempre dicotômico(dialético) ou de divisão em duas partes; em seguida, uma das partes é tomada para nova definição, que novamente será dividida, dando continuidade ao procedimento. Este método duplo conduz, de início, a uma técnica de argumentação que procura desmontar os conhecimentos prévios de cada participante, bem como os possíveis vícios existentes de pensamento e tidos como verdadeiros e definitivos. O segundo momento é o da maiêutica em que todos se preparam, por meio de perguntas, trazendo as suas verdades. Os exercícios de anamnese (retornos à história da usina e às vezes do/a participante) criam as condições subjetivas desse trânsito do „eu‟ para a própria interioridade. Esse conhecimento é resultante do movimento de perguntas e respostas. Não é um conhecimento gerado de uma simples opinião, daquilo que se pensa ter certeza. Há, portanto, toda uma argumentação que o solidifica. Essa construção é o método utilizado nesse caminho educativo, que não se esgota com o ato de colecionar informações categóricas ou definitivas. O debate sobre a autogestão em Catende apresenta-se, em geral, de forma bastante abstrata, considerando que tentativas dessa natureza não são comuns na região. Para os trabalhadores, o diálogo que se trava na construção da autogestão não é algo para grupos fechados; é uma postura de reflexão desenvolvida nos indivíduos participantes sobre o seu mundo, no qual aprendem como criá-lo e recriá-lo. É um convívio entre sujeitos cognoscitivos, para além de simples sinais de linguagem, na medida em que envolve eventos sociais de relacionamentos entre os atores do processo. “Para nós, não existe democracia sem apropriação coletiva dos meios de produção. A autogestão é um processo de aprendizado, principalmente em áreas de agroindústria em que predomina alto índice de analfabetismo e baixa institucionalidade de organização empreendedora dos trabalhadores. Portanto, autogestão trata-se de nova cultura do trabalho e administrativa se articulando numa estrutura funcional do negócio, em que os resultados finais são coletivamente apropriados” (Usina Catende, 2002: 1)172. Isto expressa as funções psicológicas da abstração e da generalização que Maciel (1963) detecta em Freire, na perspectiva de Pavlov. É um sistema de sinalizações em que, no primeiro momento, há ênfase nas percepções do mundo real e concreto; no segundo momento, pela linguagem, o humano transcende para a criação, em todas as esferas da vida, sendo esta inesgotável. Após esses anos de ações de ensino e aprendizagem para outro estilo de vida, os trabalhadores da usina exibem mudanças quanto ao uso da terra, mesmo que permaneça a cana de açúcar como produto principal. “Mudanças das relações empresa e sociedade, da liberdade de organização e expressão, da moradia, da educação, e que despertam para a questão: o que significa (a usina) numa região dominada secularmente pelo latifúndio, exploração do trabalho, analfabetismo, mandonismo e violência?” (Usina Catende, 2002: 2). Trata-se de uma questão para ser respondida por quem assume a relação homem e mundo, num ambiente com as dimensões culturais apresentadas, expressando, de forma visível, o avanço para a consciência crítica, possibilitada pela comunicação por meio do diálogo. São categorias ou postulados presentes em Freire e que aparecem nesse projeto, incentivando ações que definem pressupostos teóricos formuladores de um sistema intercomunicante.
172
Os textos produzidos na própria Usina Catende, aqui apresentados como mimeografados, estão disponíveis no ambiente de reuniões do Projeto Catende/Harmonia.
223 Nos círculos de cultura173, são discutidas as providências com vista à obtenção de alevinos para os barreiros dos trabalhadores ou a criação de outros animais e implementos agrícolas. Neles, os trabalhadores debatem suas formas de atuação junto à administração central da usina, como a eleição para os vários conselhos existentes, a autogestão, a safra e preços do açúcar, a defesa do projeto Catende/Harmonia e suas dificuldades, a sua participação na Articulação da Mata Sul174, além do mecanismo de falência e a discussão permanente sobre economia solidária e autogestão175. Também nos círculos, os trabalhadores decidem o conteúdo dos cursos promovidos no âmbito da usina, as técnicas de produção para a agroindústria, onde são tratadas questões referentes à economia e à produção, além de todo o circuito da extração do açúcar – do plantio da cana à venda do açúcar no mercado internacional. “A socialização de conhecimentos adquiridos pela vivência, dialogando com os conceitos técnicos, favorece uma nova compreensão da realidade vivida pela produção familiar” (Usina Catende, 2004: 4). Trata-se do estudo de todos esses sinais que tem na linguagem o principal veículo de conhecimento e, na comunicação, o canal da cultura. Linguagem cuja dimensão pragmática verificada nesses aspectos da educação popular é destacada por Maciel (1963). Ele salienta quatro diferenciados níveis da pragmática, dando ênfase ao nível da pragmática existencial social, na semiótica das interpretações das palavras tratadas, e ao nível da pragmática existencial-transitiva, onde os participantes do „círculo de cultura‟ captam a dimensão política e social da palavra. Nesse momento, a cana não é mais uma simples planta, transformando-se em produto de vida, com as interfaces das dimensões de mercado e as conseqüências sociais para a região. Esses sinais compõem os currículos naquele campo de vivências educativas, tornando possível a sua interpretação devido à riqueza de seus fonemas. Merecem destaque os diversos engajamentos dos trabalhadores nesses ambientes, com suas dimensões sociais e políticas. Esses sinais também foram detectados por Melo Neto (1999), num exercício de ação cultural, na Zona da Mata Norte de Alagoas. O estudo foi desenvolvido com membros de sindicato, professores da escola normal, grupo do Mobral, do esporte, clube de jovens, grupo de zabumba e da festa dos guerreiros e artesanato, além de grupos de arte176. Produziu-se um conhecimento que, segundo Fleuri (2002: 211), “significa fundamentalmente construir teóricopraticamente relações humanas”. Expõe-se, com freqüência, a presença do humano no seu meio ambiente, por meio de sinais semióticos ou da linguagem escrita, em autênticos exercícios de codificação, realizados através de debates, de cartilhas, de fichas e vídeos. Os momentos de decifrar esses símbolos reconciliam as dimensões antropológicas e sociológicas do estudo177 e, portanto, desse sistema de educação. “É a única empresa que incentiva o trabalhador para plantar a cana e moer na própria empresa, além de outras culturas. As outras empresas só 173
Compõem a Usina Catende quarenta e oito engenhos (povoados rurais), onde funcionam vinte e três círculos de cultura. Em todos, estão instaladas associações de moradores, espaços de discussão e reflexão daqueles moradores.
174
A Articulação das Entidades na Mata Sul de Pernambuco é um espaço de reflexão em que associações urbanas e rurais, organizações não-governamentais, movimento sindical de trabalhadores rurais e centros de mulheres (várias cidades) se articulam em torno de uma agenda comum para o desenvolvimento sustentável da Zona da Mata.
175
Ver: Cartilhas da Série Catende/Harmonia, volumes 1 e 2. (Material didático dos círculos de cultura).
176
Ver: Melo Neto, José Francisco de e Kulesza, Wojciech Andrzey. Ação cultural no meio rural. In: Resistência popular – possibilidades, ontem e hoje. João Pessoa: Editora da UFPB, 2003.
177
As entrevistas completas, das quais são apresentados trechos, estão no Relatório desta Pesquisa denominado: Usina Catende – entre a doçura e a harmonia. Melo Neto, José Francisco de. Catende, 2003.
224 precisam do nosso trabalho... Isso é de fundamental importância e é a grande diferença para as outras empresas. A gente acredita que os apoios das entidades como a CUT, a Federação e Confederação, os sindicatos e todos que abracem esse projeto muito ajudam” (Amaro Juvino)178.
No entanto, vários são os projetos de instituições de apoio ao Projeto Catende/Harmonia e que, muitas vezes, pulverizam ações, conduzindo para a criação de uma equipe de educação da própria usina como forma de melhor incorporar as atividades educativas. “Então, a ADS (Agência de Desenvolvimento Sustentável) que a gente desenvolveu com a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e tem, inclusive, a ANTEAG (Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária). Estão desenvolvendo coisas muito parecidas. A gente tenta ver uma forma de como somar forças... Isto pressupõe, necessariamente, ter um trabalho educativo para que eles possam trabalhar de forma crítica todo processo” (Isabel Cristina, professora da Catende/Harmonia). Há necessidade de melhoria nos serviços prestados por grupos que contribuem para as ações de desenvolvimento local e da região. Além disso, é preciso criar novos mecanismos, fazendo com que os trabalhadores participem mais diretamente das negociações e decisões do Projeto Catende/Harmonia. Deve-se estabelecer um percurso de negociações que seja assumido e que garanta igual participação dos trabalhadores do campo e da empresa, tendo como pauta a implantação de política, buscando conferir as mesmas oportunidades a todos, de igualdade, de solidariedade e de proteção ao meio ambiente. São elementos de uma teoria política que se sustentam com o exercício da capacidade de gerenciar o empreendimento. A proposta do desenvolvimento local é nova para a região, e as relações sociais insistem em permanecer num tempo passado. “Se ela (usina) fechasse e dividisse as terras para os trabalhadores seria bom – uma reforma agrária. Os donos que colocaram o pessoal para fora disseram, na época, para a gente receber o que nos era devido em terra e dinheiro. Os sindicalistas não aceitaram, com o interesse de tomar conta da empresa. Disseram que a empresa é do trabalhador, o lucro da empresa vai ser dividido pelos trabalhadores e isso nunca aconteceu nem vai acontecer. Eu acho que uma empresa dessas não vai para frente” (José Milton)179.
As discussões continuam centradas nas questões econômicas, no mercado internacional do açúcar e no próprio desenvolvimento do projeto e da região, tendo-se a percepção de que as ações educativas não superam o debate sobre desenvolvimento. A esse respeito, alerta Ireland (2001: 176): “O crescimento econômico não é um substituto adequado para educação, ciência, cultura e comunicação entre povos e nações”. Todavia, os possíveis fatores de sucesso do Projeto Catende/Harmonia passam pela sua capacidade de produção, pelas relações que estejam ao seu favor entre a empresa e o Estado, bem como pela promoção da democracia interna no campo e na fábrica. Passam ainda por essa ação educativa, a partir da empresa, estendendo-se 178
179
Trabalhador rural em engenhos da Usina Catente. Entrevista para esta pesquisa.
Entrevista para esta pesquisa. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Cidade de Palmares – PE. Palmares é um dos cinco municípios abrangidos pelo Projeto Catende/Harmonia, onde a usina tem suas terras.
225 para a região e para o país, trilhando um caminho seguro em que a usina produza cultura, inclusive o açúcar. É preciso observar que, do ponto de vista jurídico, não houve o encerramento da falência. Os usineiros não assistem a tudo isto como expectadores. Acrescente-se, ainda, que uma empresa falida não pode fazer financiamento, investimento em pecuária, nem desenvolver pequenas fábricas. Isto só se viabiliza nas atuais condições, a partir de algum aporte de recursos da cooperação internacional. “Precisamos transformar pessoas em dirigentes para o futuro. Além do problema econômico, há problemas de se planejar estrategicamente a ação dos bons quadros e dos atores existentes em torno do projeto. Todos aqueles dirigentes da Catende são importantíssimos, mas é possível aproveitar, ainda mais, o potencial deles num todo. As pessoas também têm muito potencial e é necessário ajudá-las nisso” (Risadalvo José, assessor do Projeto Catende/Harmonia)180. As críticas são feitas também por parte dos operários, quando apontam a necessidade de que o pessoal da indústria precisa partir para outras alternativas. Para o trabalhador do campo, há o „projeto cana de morador‟ com a posse pelo próprio agricultor da cana plantada e colhida. Nessas críticas, pedem que sejam examinados projetos para os operários da indústria, em seus variados setores. “Nós temos uma carpintaria que está, praticamente, parada; temos uma cerâmica que poderia gerar renda; temos um hospital – a Policlínica Gouveia de Barros - que está, praticamente, parado, além da fundição. Então, nós da indústria temos que criar algum tipo de perspectiva, algum tipo de alternativa para a gente garantir a nossa sobrevivência e não ficar na dependência da Harmonia/Catende e do pessoal do campo” (Francisco José e Edvaldo Ramos, operários da Usina). Cursos são promovidos para fortalecer metodologias de uma pedagogia participada, com a finalidade de “preparar trabalhadores residentes em áreas da usina, as zonas de produção agrícola, para atuar, técnica e solidariamente, no gerenciamento de produção da cana de açúcar e culturas alternativas para o desenvolvimento auto-sustentável” e “preparar trabalhadores para atuarem, técnica e solidariamente, em agroindústrias, no processo de produção do açúcar” (Melo Neto, 2003: 215), com conteúdos específicos, com um peculiar sistema de avaliação dos/as participantes e coordenadores/as dos cursos. Os canais variados e polissêmicos da linguagem cruzam-se. As pinturas, o auditivo, por meio do verbal, os áudios e gráficos estão presentes. Além da associação de fonemas e de palavras, associam-se palavras com as imagens, palavras com novas palavras, imagens com as palavras e imagens com novas imagens do mundo daqueles trabalhadores. Tal compreensão de linguagem pode explicar “o fato de que o indivíduo, ao usar a língua, não apenas exterioriza o pensamento ou transmite informações, mas também realiza ações com a própria linguagem e atua sobre os interlocutores” (Aquino, 2000: 53). Estes são campos de estudo para serem explorados pela teoria da comunicação e pela teoria da cultura, presentes nos exercícios da educação popular, efetivamente, com dimensões intercomunicantes. Resultados semelhantes foram catalogados em pesquisas que procuravam delinear ontologicamente a educação popular, junto a cursos de instituições181 que preparam 180 181
Entrevista para esta pesquisa.
Dados de pesquisas realizadas no período de 2002 a 2004, nos cursos do Centro de Ação Comunitária (CEDAC), de preparação de profissionais em projetos que envolvem educação popular, na cidade do Rio de Janeiro, e com alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura), da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, em três turmas nas disciplinas de História e Filosofia da Educação Popular e de Teoria em Educação Popular. Todos os participantes são profissionais que atuam no campo da educação popular.
226 profissionais para exercerem atividades nesse campo educativo. Durante a realização desses cursos, pesquisas foram desenvolvidas na busca de maior embasamento teórico para sua aplicação e a linguagem utilizada, tendo como fundamento o mundo experiencial dos participantes, definido como ponto de partida – o concreto. A presença do cotidiano entre os participantes desses cursos e suas reflexões foram se transformando em sínteses. A categoria teórica movimento acompanhou as reflexões e a produção coletiva durante o curso e a pesquisa, em um exercício geral de intersubjetividades. Foram coletados, com essa metodologia, os elementos que os educadores/as indicavam como os constituintes da educação popular, expressos abaixo: Quadro 1: Constituintes da educação popular com grau de pertinência182 igual ou superior a 80% dos respondentes.
CONSTITUINTES
RESPONDENTES(%)
Compromisso político Práxis Autonomia Crítica Cultura Diálogo Processo Pedagogia própria Transformação Realidade Empoderamento
100 94 88 88 88 88 88 88 81 81 81
Fonte: Pesquisa no CEDAC – Centro de Ação Comunitária, Rio de Janeiro, 2003. Esses dados reforçam a visão de educação popular expressa como um fenômeno cultural. Esse fenômeno passa a cultivar um tipo especial de ensino e aprendizagem, com teorias explícitas de conhecimento e de comunicação. Contém uma pedagogia própria, com conteúdos e procedimentos de avaliação, e uma base política libertadora efetivada por constituintes como a promoção de empoderamento das pessoas, a transformação e o compromisso político. A mesma pesquisa, realizada no ambiente universitário com alunos que atuam nessa área educacional, apresentou os resultados constantes no quadro que segue: Quadro 2: Constituintes da educação popular com grau de pertinência183 igual ou superior a 80% dos respondentes.
182
Aquele elemento teórico que mais identifica a educação popular. Destaca-se ainda um conjunto de outros elementos de pertinência inferior ao índice definido: metodologia própria, organização/sistema, coletivo, experiência, incentivo aos saberes, cooperação, trabalho, identidade/autoria, emancipação, liberdade, ideologia, subjetividade, ação, construção, produção, identidade, gênero e reflexão.
183
Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina Teoria em Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Curso de Doutorado em Educação da UFPB, em João Pessoa - turma de 2003. Outras categorias teóricas que foram levantados com menor pertinência: produção de conhecimento(metodologia própria), prática, ideologia, autenticidade, experiência, transitoriedade e apropriação do produto da educação popular.
227
CONSTITUINTES Cultura Construção do sujeito Compromisso político Crítica Diálogo Democracia Liberdade Autonomia Identidade Práxis Incentivo aos saberes Trabalho Popular
RESPONDENTES (%) 95 90 90 88 88 85 85 85 85 80 80 80 80
Fonte: Pesquisa entre participantes de projetos em educação popular, João Pessoa, 2003.
Essas categorias teóricas, identificadas para a composição de um conceito em educação popular, parecem ir, pouco a pouco, consubstanciando a possibilidade de que as mesmas formem uma visão da educação popular permeada de princípios éticos. Vão, além disso, constituindo uma filosofia com elementos evidentes de uma teoria de conhecimento. Esses elementos convidam para uma metodologia ou uma pedagogia especial, acompanhada de conteúdos com forte inspiração política para a liberdade, assumida pelas dimensões da práxis, da autonomia e da crítica. Além disso, aproximam-se no mesmo ambiente de pesquisa, considerando outra amostra184, apresentada a seguir. Quadro 3: Constituintes da educação popular com grau de pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes.
184
CONSTITUINTES
RESPONDENTES (%)
Autonomia Compromisso político Incentivo ao conhecimento Construção do sujeito Cultura Diálogo Práxis Trabalho Autenticidade/identidade Crítica Liberdade Saberes
90 90 90 85 85 85 85 85 80 80 80 80
Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina História e Filosofia da Educação Popular, no mesmo Programa de Pós-Graduação - turma de 2003. Outros elementos também foram revelados abaixo do percentual de pertinência definido: democracia, experiência, ideologia, identidade, prática, popular, produção do conhecimento, resgate do sujeito, transitoriedade e apropriação do produto da educação popular.
228
Fonte: Pesquisa entre participantes de projetos em educação popular, João Pessoa, 2003.
Esses elementos teóricos compõem material de discussão pelos participantes em seus ambientes de ensino e aprendizagem. Há, ainda, um exercício cujo objetivo é eliminar aspectos incongruentes do conceito, estabelecendo-se finalmente a educação popular como um conceito possível de orientar práticas educativo-populares. Os dados de outro grupo pesquisado185 apresentam os seguintes elementos constitutivos: ação transformadora, aprendizagem (sentir, pensar e agir), compromisso político, construção do sujeito, crítica, cultura, democracia, diálogo, emancipação, liberdade, práxis, produção e apropriação do conhecimento (metodologia própria), realidade e saberes. Esses elementos indicam a existência de uma teoria de conhecimento que realiza uma pedagogia pautada na crítica, no compromisso político popular e na ética do diálogo. Essa pedagogia volta-se à construção do sujeito, ao empoderamento dos indivíduos envolvidos nessas ações comunicantes, definindo, portanto, um conteúdo e procedimentos de avaliação orientados no próprio processo. Ao reforçarem o compromisso político, a emancipação, a igualdade, a liberdade, a justiça e a felicidade, demarcam políticas que visam à emancipação da pessoa humana. Essas diversas ações educativas seguem os passos indiciários de Freire que, com base em sua pedagogia, passam também a nortear o exercício educativo presente na Usina Catende, nessas várias práticas pesquisas e em outros tantos lugares. Parece, assim, razoável compreender a educação popular como um fenômeno de produção pelo trabalho e de apropriação dos produtos culturais da humanidade. Como um fenômeno da cultura, a educação popular tem nesta as dimensões de bens de consumo e bens de produção. Apresenta a divisão do trabalho e expõe a existência humana, em razão de ser o humano o criador da cultura, alimentando uma teoria da cultura. Com a dimensão ética do diálogo, a educação popular forja um sistema aberto de ensino e aprendizagem, cuja filosofia convida outros valores éticos para expressar o seu fazer. Além disso, aponta para uma teoria do conhecimento referenciada na realidade e em um procedimento da razão, em forma de intersubjetividade, expressando a intersecção do mundo objetivo das coisas, do mundo social das normas e do mundo subjetivo dos afetos – a linguagem - cobrando uma teoria da comunicação. Pressupõe uma linguagem expressa por normas vigentes geradas de manifestações que possam ser justificadas, pois do contrário não serão legítimas nem terão valor dialógico intersubjetivo. É, enfim, um fenômeno educativo pautado por uma pedagogia (metodologia) incentivadora da participação e do empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais. Esse fenômeno é lastreado em uma teoria política direcionada aos anseios humanos de liberdade, de justiça, de igualdade e felicidade, além de estimuladora das transformações sociais necessárias. São dimensões teóricas, práticas e de valores para a vida que promovem a educação popular a patamares com possibilidades para além da ênfase na alfabetização de adultos. É uma filosofia com posturas éticas que sugerem outro estilo de se viver em qualquer ambiente do cotidiano, podendo ser iniciado na educação do lar, na educação infantil, na alfabetização e nos níveis do ensino básico e médio, consolidando-se na educação superior e espraiando-se por todos os níveis de ensino, também, de pós-graduação. Com essa demarcação, parece razoável a interpretação da educação popular como um sistema aberto de teorias intercomunicantes. REFERÊNCIAS AQUINO, Mirian de Albuquerque. Um (tre)jeito felino de construir o discurso. Temas em Educação. Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação-UFPB. João Pessoa: Editora da UFPB, vol 9, 2000. 185
Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina Teoria em Educação Popular, no mesmo Programa de Pós-Graduação, turma de 2004.
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230
CULTURA E EDUCAÇÃO POPULAR - a apropriação dos entes da cultura Maria das Graças de Almeida Baptista
Introdução Os debates desenvolvidos na disciplina Teoria da Educação Popular, acerca da categoria trabalho e a sua história, ou seja, a forma que passou a assumir ao longo da história da humanidade, suscitaram a seguinte questão: como reconstruir essa categoria de forma que a educação possa vir a ser entendida pela escola, pelos professores, enquanto apropriação e produção da cultura, apropriação do trabalho humano, em uma escola unitária? A educação popular, especialmente na escola, depende que essa e outras questões sejam respondidas. Para o desenvolvimento desse trabalho e, sem a pretensão de esgotar a discussão sobre o mesmo, toma-se como fundamentação teórica o materialismo histórico e dialético em Marx, enquanto concepção que compreende os fenômenos como a cultura, o trabalho, enfim, o processo de apropriação dos bens materiais e espirituais como construção histórica, como atividade racional do homem, em constante movimento, perpassado que está pela contradição. O presente trabalho, apropriação do produto da cultural em educação popular, partirá do pressuposto que esse fenômeno encontra-se mediatizado pelo trabalho, portanto, partir-se-á dessa categoria e, nesse caminho, praxis, cultura e apropriação serão incluídas de forma a melhor explicitá-lo. Salienta-se ainda que, ao apresentar essas categorias, buscar-se-á destacar a especificidade de cada uma delas e mostrar como essas categorias estão dialética e necessariamente interligadas. Em relação à categoria trabalho, pretende-se situá-la enquanto fenômeno que explica o processo de transformação da natureza através da ação humana e de apropriação (ou não) do resultado dessa ação. Em relação à categoria praxis, buscar-se-á explicitá-la enquanto fenômeno que melhor define a ação humana consciente sobre a realidade. Uma prática de elevação da condição humana, ou seja, de emancipação de toda a capacidade criadora humana. Em relação à categoria cultura, buscar-se-á analisá-la como mediação entre a ação e a idéia humanas, compreendendo-a não como produto das idéias, mas enquanto fenômeno que tem como base o processo de transformação da natureza, o processo de produção, enfim, o trabalho. Enfim, em relação à categoria apropriação, buscar-se-á explicá-la enquanto ação efetiva do homem sobre a realidade concreta que, ao objetivar-se, gera novas funções, novas necessidades, novas faculdades na atividade e na consciência humana, enfim, novas idéias, novas ações, novas idéias, em um eterno devenir. Portanto, a importância de compreender-se a dinâmica e a importância desse processo para o desenvolvimento de uma educação essencialmente popular.
2
Trabalho de acordo com o princípio fundamental do materialismo histórico – dizia Plekhanov – a história é obra dos homens (VÁZQUEZ, 1968, p. 38).
O trabalho, a vida produtiva, é a vida da espécie. É através do trabalho que os homens agem sobre o mundo objetivo, transformando-o e transformando a si mesmo, e se situam como sujeito do conhecimento e da história. O homem, tendo em vista a sua própria natureza, busca transformar a natureza de forma a torná-la menos hostil à sobrevivência da espécie humana. Nesse processo o homem foi criando instrumentos, buscando servir-se deles para atingir determinados objetivos, ou seja, ele foi dando aos objetos o status de instrumento. Além desse aspecto, a cada novo instrumento criado, novos instrumentos foram sendo necessários, ou os
231 próprios instrumentos já criados foram adquirindo uma nova função, uma função diferente da função para a qual haviam sido criados186. Nesse processo, o homem não só transforma a natureza, mas transforma a si mesmo. Nesse sentido, o trabalho se evidencia pelo seu caráter livre e consciente, ou seja, ele deve significar uma ação consciente, objetiva e intencional do homem sobre os objetos. No entanto, essa significação não condiz com a perspectiva com a qual, hoje, o trabalhador compreende e se relaciona com essa atividade, o que implica necessariamente em questionar-se o porquê dessa mudança e por que as pessoas se tornaram mais criaturas do que criadores do produto de seu trabalho, em que, segundo Marx (1996, p. 47), “a própria ação do homem converte-se num poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado”. Responder a esse questionamento torna-se fundamental quando se aborda o tema educação, e mais especificamente a educação popular, considerando que a apropriação da cultura como processo de construção de novos sujeitos sociais implica em um processo de não passividade e de não subjugação frente ao conhecimento acumulado historicamente. No processo de trabalho, desde o seu primórdio, o homem torna-se capaz de produzir não apenas objetos materiais, mas de produzir a si mesmo e a outros homens, de produzir conhecimento, o que caracteriza a dimensão social do trabalho. Dessa forma, o homem, enquanto sujeito desse processo, constitui-se tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada. Segundo Melo Neto (2004), esse movimento torna a existência natural do homem a sua própria existência humana. A natureza, por sua vez, se torna humana para ele. A sociedade, como conseqüência, é expressão do produto da união entre a natureza e o homem, realizando um naturalismo no próprio homem e um humanismo na própria natureza (op. cit., p.70). Não há, portanto, separação entre a atividade corporal e a atividade espiritual. Quando o trabalhador, no processo de trabalho, transforma o objeto em matéria prima, imprime uma finalidade e objetiva satisfazer a uma necessidade. Essa ação é perpassada pelas condições sociais objetivas em que se realiza tal ação – trabalho. Melo Neto enfatiza que, o humano imprime sobre a natureza o seu desejo de realização. É capaz de realizar aquilo que anteriormente passara por sua consciência, sem, contudo, deixar de entender a anterioridade da realidade sobre a consciência. Estabelece-se nesse tipo de trabalho, uma intencionalidade (op. cit., p. 76). Em determinado momento da história, especificamente com o surgimento da propriedade, o homem vai aos poucos se separando do processo de produção dos instrumentos necessários à transformação da natureza, ocorrendo a separação entre a atividade corporal e a atividade espiritual. Marx (1996, p. 44), em a Ideologia Alemã, destaca que, “a divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual”. O autor (op. cit., p. 29) define três formas de propriedade que se diferenciam tendo em vista as diversas fases de desenvolvimento da divisão do trabalho: a tribal (familial, patriarcal, coletiva e escravocrata), a divisão do trabalho ainda está pouco desenvolvida; na Antiguidade, a comunal e estatal (várias tribos formando uma cidade – por contrato ou por conquista –, privada coletiva, escravocrata, separação entre a cidade e o campo aumenta), a divisão do trabalho está mais desenvolvida. Ao lado e subordinada a essa começa a se formar a móvel e a imóvel (a propriedade coletiva perde espaço para a propriedade privada); na Idade Média, a feudal ou estamental (campo, estrutura hierárquica da posse da terra e 186
Por outro lado, o trabalho é um processo de consumo, tanto por consumir produtos para gerar outros produtos, como por utilizar-se de produtos enquanto meios de produção de novos produtos.
232 vassalagem armada, príncipes, nobreza, clero e pequenos camponeses – servos –, escravos) e a propriedade corporativa (cidade, organização feudal dos ofícios, industrial e comercial, mestres, oficiais e aprendizes e plebe de trabalhadores assalariados), pequena divisão do trabalho. Nas sociedades capitalistas, com a afirmação da divisão social do trabalho, os homens vão perdendo o contato com o produto final de seu trabalho. Dessa forma, o trabalho, enquanto marca do homem sobre a terra, assim como, o produto derivado do trabalho, enquanto resultado de sua ação, deixam de ser vistos como parte de um mesmo processo, o processo de produção, a produção da atividade humana. A vida produtiva deixa de ser a vida da espécie. Segundo Melo Neto (2004), dessa forma, a produção da atividade humana – o trabalho – se torna estranha a sim mesmo, ao homem e á natureza; e torna-se estranha tanto à consciência do homem como à possibilidade de realização da vida humana. Numa situação como essa, perde-se o significado de trabalho social como expressão genuína da vida comunal (op. cit., p. 69). Nesse sentido, o trabalho torna-se alienado quando o objeto, o produto do trabalho, torna-se uma força independente e quando o próprio trabalho não pertence mais ao produtor. No trabalho alienado, o homem distancia-se do produto de seu trabalho, do ato de produção e dos outros homens, individualizando-se. Portanto, o trabalho alienado aliena o homem tanto de sua própria natureza humana (atividade vital), quanto de sua vida humana (relação com os outros). Nas sociedades capitalistas, além de distanciar-se do produto de seu trabalho, o trabalhador se perde no produto, torna-se escravo do próprio objeto, enfim, o trabalhador passa a ser dominado pelo produto, pelo capital, segundo Marx. O produto passa a gerar necessidades que devem ser satisfeitas pelo próprio produto. Além desse aspecto, nesse tipo de sociedade, a força de trabalho é tida como mercadoria e é negociada como tal. No entanto, é através do trabalho, conforme destaca Melo Neto, “que o homem humaniza os próprios sentidos” (op. cit., p. 81). O produto do trabalho deve expressar a conclusão do processo do trabalho humano sobre a natureza e só terá sentido se satisfizer a uma necessidade humana. O autor enfatiza que, sua consciência formada com base nas relações sociais promovidas pelo trabalho se torna condição da natureza social do homem. Sua existência está condicionada e só tem sentido enquanto consciência social, portanto, condicionada e posta em existência pela sociedade (...) o trabalho se mantém como categoria fundante, mantendo a sua centralidade quando se busca a construção de um mundo humanizado (op. cit., p. 81). Quando se reconhece a determinação econômica histórica, reconhecem-se as relações de dominação, de poder, de classe, e se busca superá-las não com pensamentos e atitudes idealistas, mas com uma teoria que permita desvelar essa dominação permitindo aos homens agirem de forma a unir a teoria à prática. O trabalho passa a ser compreendido enquanto expressão e produção de sua humanidade, enfim, enquanto ação do homem no mundo. Ação essa que também se circunscreve no âmbito da apropriação cultural. Nesse sentido, faz-se necessário analisar o conceito de praxis, como forma de distinguir a ação consciente do homem, da ação do homem comum, do homem prático que termina por traduzir-se em uma ação alienada.
233
3
Praxis atividade material do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano (...) atividade humana que produz objetos, sem que por outro lado essa atividade seja concebida com o caráter estritamente utilitário (VÁZQUEZ, 1968, p.3, 5).
Vázquez afirma que, “a praxis é a categoria central da filosofia que se concebe ela mesma não só como interpretação do mundo, mas também como guia de sua transformação. Tal filosofia não é outra senão o marxismo” (op. cit., p.5) É à luz da categoria da praxis que se devem abordar os problemas do conhecimento da história, da sociedade e do próprio ser. Segundo o autor, o homem comum e corrente é um ser social e histórico; ou seja, encontra-se imbricado numa rede de relações sociais e enraizado num determinado terreno histórico. Sua própria cotidianidade está condicionada histórica e socialmente, e o mesmo se pode dizer da visão que tem da própria atividade prática. Sua consciência nutre-se igualmente de aquisições de toda espécie: idéias, valores, juízos e preconceitos, etc. Nunca se enfrenta um fato puro; ele está integrado numa determinada perspectiva ideológica, porque ele mesmo – com sua cotidianidade histórica e socialmente condicionada – encontra-se em certa situação histórica e social que engendra essa perspectiva (op. cit., p. 8). Kosik (1989), ao analisar as diferentes modificações históricas a que foi submetido o conceito de praxis, destaca que, para a filosofia materialista, a praxis, enquanto conceito central, na sua essência e universalidade é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, com ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade (humana e não-humana, a realidade na sua totalidade). A praxis não é atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade (op. cit., p. 202). Baptista (1999) sinaliza que, o pressuposto gnosiológico do materialismo dialético é “a mediação trabalho/praxis dentro da qual ocorre a relação dinâmica sujeito-sujeito, sujeito-objeto, sujeito-mundo” (op. cit., p. 13). Na concreticidade, ressalta a autora, “a praxis é a ação consciente dos sujeitos que une a teoria, compreensão da realidade, à prática (trabalho criativo), transformação do mundo. Essa ação consciente tem como condição a transformação desses mesmos sujeitos” (op. cit., p. 13). Analisando a busca dessa ação consciente, que se daria através de uma filosofia da praxis, Gramsci tece as seguintes considerações: uma filosofia da praxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultura existente). E, portanto, antes de tudo, como crítica do „senso comum‟ (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que „todos‟ são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo uma ciência na vida individual de „todos‟, mas de inovar e tornar „crítica‟ uma atividade já existente) e, posteriormente, da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual (e, de
234 fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada como as „culminâncias‟ de progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, do senso comum popular (apud BAPTISTA, p. 18). Segundo Gramsci, “o senso comum é um „amálgama‟ de diversas ideologias tradicionais e da ideologia da classe dirigente. Tem como traço fundamental o fato de ser uma concepção fragmentada, incoerente, inconseqüente” (apud Baptista, p. 64). Por outro lado Vázquez destaca que, “para que se dê uma verdadeira praxis humana é necessário abandonar e superar a consciência comum construindo uma consciência filosófica da praxis” (op. cit., p.11). Mas o que é uma concepção filosófica da praxis? E qual a sua importância para a educação popular? Vázquez destaca que, para o homem comum e corrente, as coisas apenas são e existem na medida em que satisfazem necessidades imediatas de sua vida cotidiana. O homem comum está preso à satisfação das necessidades básicas, o prático para ele corresponde à dimensão do prático-utilitário. Dessa forma, o ponto de vista da consciência comum coincide como ponto de vista da produção capitalista e das teorias econômicas – como as dos economistas clássicos (...) o prático é o produtivo, e produtivo, por sua vez, é o que produz um novo valor ou mais-valia (...) esse homem comum e corrente não deixa de ter uma idéia da praxis, por mais limitada ou falsa que ela nos possa parecer (op. cit., p. 12, 14). O homem comum não compreende que seus atos práticos contribuem, afirma o autor, para escrever a história humana – como processo de formação e autocriação do homem – nem pode compreender até que grau a praxis necessita da teoria, ou até que ponto sua atividade prática se insere numa praxis humana social, o que faz com que seus atos individuais influam nos dos demais, assim como, por sua vez, os destes se reflitam em sua própria atividade (op. cit., p. 15). Contudo o homem comum não vive em um mundo a-teórico. Seu cotidiano encontra-se condicionado historicamente, ou seja, sua consciência, e conseqüentemente seus atos (individuais), refletem a forma como sua consciência tem sido formada, ou seja, idéias, valores, juízos que determinam uma concepção de mundo apolítica que, em última instância, o afasta de uma praxis revolucionária. Vázquez destaca que “em sua atitude natural, o homem comum e corrente mostra também certa idéia – por mais limitada e obscura que seja – da praxis; uma idéia a que continuará aferrado enquanto não sair da cotidianidade e ascender ao plano reflexivo que é o plano próprio, em sua forma mais elevada, da atitude filosófica” (op. cit., p.1). Vázquez e Gramsci atribuem à filosofia da praxis a única filosofia (teoria) capaz de formar sujeitos conscientes e coletivos, a partir da análise histórica e dialética da ação humana sobre a realidade. Gramsci destaca que é através da filosofia da praxis que se pode trabalhar uma vasta camada de intelectuais, dando “personalidade ao amorfo elemento de massa” (apud BAPTISTA, p. 71). Uma verdadeira significação dos atos e objetos só pode ser apreendida, enfatiza Vasquez, por uma consciência que capte o conteúdo da praxis em sua totalidade como praxis histórica e social, na qual se apresentem e se integrem suas forma específicas (o trabalho, a arte, a política, a medicina, a educação, etc.), assim como suas manifestações particulares nas atividades dos indivíduos ou grupos humanos, e também em seus diversos produtos (op. cit., p. 15).
235
O aperfeiçoamento da consciência é, segundo Vázquez, a própria história do pensamento humano, condicionado pela história do homem ativo e prático. É a história da passagem de uma consciência ingênua ou empírica da praxis à consciência filosófica que capta sua verdade, não uma verdade fixa e imutável, mas uma verdade em constante movimento e transformação. Segundo o autor, “é impossível à consciência comum, abandonada a suas próprias forças, superar sua concepção espontânea e irreflexiva da atividade prática e ascender a uma verdadeira concepção – filosófica – da praxis” (p. 16). Para os marxistas, a praxis social (produção) encontra obstáculos provenientes do predomínio social da propriedade privada, do dinheiro e do Estado. A filosofia da praxis vincula, segundo Vázquez, “praxis e revolução, isto é, a prática produtiva (transformação da natureza mediante o trabalho humano) com a prática revolucionária (transformação da sociedade mediante a ação dos homens), como duas formas inseparáveis da praxis total social” (op. cit., p. 37). A esse respeito, Kosik (1989) adverte para a “obscuridade conceitual das definições de praxis e trabalho: o trabalho é definido como praxis, e a praxis, nos seus elementos característicos, é reduzida a trabalho” (op. cit., p. 202). Segundo o autor, a praxis compreende – além do momento laborativo – também o momento existencial: ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais naturais, como na formação da subjetividade humana, na qual os momentos existenciais como a angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso, a esperança etc., não se apresentam com „experiência‟ passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo da realização da liberdade humana. Sem o momento existencial o trabalho deixaria de ser parte da praxis (op. cit., p. 204). Os marxistas como Lênin, Gramsci e Vázquez destacam que, nas sociedades capitalistas, essa praxis dar-se-ia em grandes organizações de massa como grupos, sindicatos, partidos, dando unidade à massa e formando as mentalidades necessárias à superação das contradições inerentes de forma criadora, revolucionária.187 Segundo Vasquez, “para que essas ações se revistam de um caráter criador, é necessário, também hoje mais do que nunca, uma elevada consciência das possibilidades objetivas e subjetivas do homem como ser prático, ou seja, uma autêntica consciência da praxis” (op. cit., p. 47). Nesse sentido, torna-se mister questionar o papel da escola, enquanto instituição educativa, enquanto aparelho de hegemonia, nessa superação, assim como o papel da educação e, mais especificamente tendo em vista o objetivo da presente reflexão, da educação popular na construção dessa concepção filosófica da praxis, nessa ação consciente no mundo. Portanto, a cultura, enquanto processo de constituição da própria humanidade, deve ser repensada em sentido amplo, ou seja, em relação ao processo de produção (ação no mundo) dos bens materiais e espirituais.
4
Cultura processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa as de efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em idéias as imagens e lembranças, a princípio coladas às realidades sensíveis, e depois generalizadas,
187
A exemplo do MST hoje.
236 desse contato inventivo com o mundo natural (VIEIRA PINTO, 1979 p. 123). A história do homem é a história da própria cultura. O processo de hominização dá-se através da cultura, assim como a cultura traduz esse processo, a princípio orgânico e posteriormente social. A cada fase do desenvolvimento humano, a cultura projeta o nível desse desenvolvimento, que só foi capaz de ocorrer devido a essa ação do homem sobre a sua realidade, com os desafios e obstáculos presentes em cada momento histórico. A cada momento desse desenvolvimento, a cada criação humana, o homem foi aperfeiçoando-se e transformando a realidade e a sua própria existência. Essa transformação do modo de existência tornou o homem, conforme destaca Vieira Pinto, um ser produtor, a princípio inconsciente e depois consciente, de si mesmo. A complicação do modo de vida do homem em surgimento impõe-lhe a necessidade da ação coletiva na realização do seu ser, o que significa a passagem à etapa social da produção da cultura e sua diversificação por efeito da aquisição cada vez mais vultosa de conhecimentos (op. cit., p. 122). Se o homem constitui-se em sua humanidade através da relação produtiva que estabelece com a realidade, se a cultura é o processo de produção da existência humana de forma geral, portanto, a compreensão da cultura pressupõe a compreensão do processo de produção, ou seja, do próprio processo de trabalho humano. Vieira Pinto afirma que, esse processo pode ser entendido em seus dois sentidos, enquanto produção do homem por si mesmo e produção dos meios de sustentação da vida para o indivíduo e a prole. Nesse sentido, a cultura, enquanto processo produtivo, possui uma dupla natureza, segundo o autor, de bem de consumo, enquanto resultado, simultaneamente materializado em coisas e artefatos e subjetivado em idéias gerais, da ação produtiva eficaz do homem na natureza; e de bens de produção, no sentido em que a capacidade, crescentemente adquirida, de subjugação da realidade pelas idéias que a representam, constitui a origem de nova capacidade humana, a de idealizar em prospecção os possíveis efeitos de atos a realizar, conceber novos instrumentos e novas técnicas de exploração do mundo, e criar idéias que significam finalidades para as ações a empreender (op. cit., p. 124). (grifo nosso). Vieira Pinto destaca que, essa compreensão, acerca da dupla realidade da cultura e de seu fundamento no processo da produção, desenvolvida através do objetivismo histórico da cultura, permite compreendê-la em sua totalidade e inferir que “o homem é ele próprio um bem de produção”. O homem, segundo o autor, deve ser um bem de produção de si mesmo, para si mesmo, “sua ação sobre a realidade deve ser utilizada apenas em benefício, de cada homem, para torná-lo mais humanizado na sua compreensão do mundo e nas relações com os semelhantes” (op. cit., p. 126). Se o homem, pelo contrário, tornar-se um bem de produção para o outro, se converte “em instrumento de utilização alheia, desaparece a dignidade que o caracterizava como produtor de si mesmo pela mediação da cultura que fora criando e acumulando, e se estabelece um regime de convivência injusto e desumano” (op. cit., p. 126). Surgem, então, segundo o autor, “as desigualdades de função no processo da hominização comum ou, materialmente falando, no processo de produção social dos bens de que todos necessitam e que deveriam estar ao dispor de todos”. Surgem as classes sociais! Vieira Pinto (1994) conclui que, a cultura por ser um processo histórico, “nas sociedades divididas em classes a cultura tem necessariamente base de classe (...).Onde existem classes em antagonismo, as concepções ideológicas e os produtos materiais da arte não podem
237 deixar de refletir a situação individual de quem os produz”. Dentro dessa perspectiva, conclui: “entendemos por cultura o conjunto dos bens materiais e espirituais criados pelos homens ao longo do processo pelo qual, mediante o trabalho, exploram a natureza e entram em relações uns com os outros, com o fim de garantir a satisfação de suas necessidades vitais” (op. cit., p. 40). A cultura compreende, portanto, os bens culturais materiais, os instrumentos materiais, artificiais de transformação da realidade (máquinas, ferramentas, técnicas, operações manuais), e os bens espirituais, ideais, subjetivos da cultura (idéias, saber, ciência, criações artísticas e ideológicas). Esses bens culturais devem estar dialeticamente relacionados, pois fazem parte do mesmo processo de hominização, de existência humana. Com a divisão social do trabalho e o surgimento das classes sociais, essa relação é alterada, ocorrendo o processo de alienação, ou seja, o aleijamento na posse, na propriedade dos bens culturais. Vieira Pinto (1979) destaca que, o grupo social minoritário valoriza mais a apropriação desta segunda ordem de bens culturais [ideais], que é exclusiva dele, porque a primeira lhe parece firmemente assegurada em suas mãos. Por isso enaltece a posse da idéias e de produtos ideais da cultura, e se julga „culto‟ apenas por este aspecto, enquanto os bens culturais materiais, que exigem a operação direta sobre o mundo físico e, portanto, o emprego da força muscular, são impostos pelas classes dominantes às grandes massas que, por não ter a propriedade deles e só escassamente consumir o que produzem, são consideradas „incultas‟, porque apenas lhes toca o trabalho produtivo nas modalidades mais duras e grosseiras. A falta de propriedade jurídica, social, dos bens de produção termina por se converter numa „propriedade‟ existencial do trabalhador, que, por isso, aparece „inculto‟ aos olhos dos que detêm o usufruto da cultura (op. cit., p. 129).
5
Apropriação da cultura
A partir da análise das categorias trabalho, praxis e cultura, compreende-se que o homem produz e reproduz a cultura por uma necessidade existencial, para se apropriar dela, para expressar e criar a realidade. No entanto, de acordo com a estruturação social presente em cada sociedade, o homem em vez de apropriar-se da cultura, de dominá-la, pode vir a alienar-se a ela, ao transformá-la em uma realidade acima dele, reificando-a. Por outro lado, a cultura deixa de ser um bem consumido e produzido por todos para tornar-se privilégio de alguns, deixa de ser uma propriedade comum do grupo, deixa de ser um bem coletivo e os bens culturais passam, então, a sofrer uma divisão. Esse processo pode ser explicado, segundo Vieira Pinto (1979), através da análise histórica de desenvolvimento da divisão do trabalho. Concomitantemente à divisão social do trabalho, começa a ocorrer a diferenciação na apropriação. Segundo o autor, este processo, que, por ser de distribuição da cultura, não deveria significar sua discriminação, se vê corrompido pela introdução da desigualdade na apropriação do conhecimento e dos bens materiais dele resultante entre grupos sociais, que se destacam, divergem e a seguir se contrapõem uns aos outros (op. cit., p. 127). Como já exposto, o processo de humanização, segundo o materialismo histórico, só tem sido possível através do trabalho. O primeiro ato histórico do homem é a produção de meios para a satisfação de suas necessidades básicas de existência, para a sua sobrevivência, criando uma realidade humana, o que implica a transformação tanto da natureza quanto do próprio homem (DUARTE, 2000, p. 117). Essa atividade humana objetivada torna-se, segundo Duarte, objeto de novas apropriações pelo homem, gerando necessidades de novo tipo, necessidades sócio-
238 culturais, levando o homem a novas objetivações e novas apropriações188. Essa objetivação refere-se não apenas à produção de objetos físicos, mas também de “produtos que não são objetos físicos como a linguagem, as relações entre os homens, o conhecimento, etc.” (op. cit., p.118). (grifo nosso) Duarte (op. cit., p. 120) enfatiza que, ao transformar o objeto em um instrumento, o homem não apenas utiliza esse objeto, mas lhe atribui uma nova função, uma nova significação, que é dada pela atividade social, ou seja, ele se torna um meio para alcançar determinadas finalidades dentro da prática social. Por outro lado, esse processo de apropriação possibilita não apenas o surgimento de novas necessidades, novas funções, mas também de “novas forças, faculdades e capacidades”, na atividade e na consciência do homem. A esse respeito, Vieira Pinto (1979) destaca a função de mediação da cultura nas relações entre o homem e o mundo. Só o homem na sua atividade construtiva cria cultura, porque só ele, ao mesmo tempo em que opera sobre a natureza e obtém produtos do engenho, cria no pensamento idéias que representarão a realidade, a própria ação que pratica, e que por isso podem tornar-se guias e princípios para a organização dessa atividade (op. cit., p. 136). Vieira Pinto destaca a materialidade e a dialética desse processo afirmando que, “se a cultura é simultaneamente ação e idéia, enquanto ação significa a mediação entre duas idéias e enquanto idéia, a mediação entre duas ações” (op. cit., p. 136). Isto implica analisar a cultura como uma abstração gestada na realidade concreta, realidade enquanto geradora dessa necessidade de abstrair para transformar, através de uma nova ação, a realidade e superar os obstáculos postos ao homem. Essa ação sobre a realidade gera abstrações de nova ordem, em um constante movimento e em um eterno devenir. Duarte (2000, p. 122) afirma que, mesmo a produção de algo já existente pode suscitar o aparecimento de novas formas de utilização, que possibilitarão o seu desenvolvimento. Para o autor, compreender os processos de produção do conhecimento socialmente novo ou de apropriação dos conhecimentos já existente como processos históricos, implica analisá-los na relação histórica entre sujeito e objeto, onde cada indivíduo, cada geração deve apropriar-se do que é criado pelos seres humanos. No entanto, nas sociedades capitalistas, a educação, enquanto fenômeno social, reflete as contradições presentes nessas sociedades, portanto, os processos de objetivação e apropriação da cultura, podem ser processos sociais alienantes ao refletirem a reprodução de relações sociais alienadas e alienantes.
6
Apropriação do produto da cultura em educação popular
Gramsci (1995), ao tratar da hegemonia da cultura ocidental sobre toda a cultura mundial, destaca que, 188
Nesse sentido, o homem, ao apropriar-se dos conceitos científicos (cultura), começa a tomar “consciência dos conceitos e operações do próprio pensamento” (VIGOTSKI, 2000, p. 279). No entanto, um conceito científico só poderá ser absorvido, desenvolvendo-se de forma descendente, se o desenvolvimento de um conceito espontâneo tiver criado uma série de estruturas, por outro lado, os conceitos científicos irão fornecer estruturas para o desenvolvimento ascendente dos conceitos espontâneos. Por outro lado, o desenvolvimento dos conceitos científicos não modifica um ou outro conceito espontâneo isoladamente, mas “o conceito espontâneo, ao colocarse entre o conceito científico e o seu objeto, adquire toda uma variedade de novas relações com outros conceitos e ele mesmo se modifica em sua própria relação com o objeto” (op. cit., p. 358). Portanto, no processo de apropriação da realidade, na produção dos bens culturais, o homem vai transformando os bens culturais, dandolhes nova função e, nesse processo de hominização, vai desenvolvendo novas faculdades e capacidades, transformando seus conceitos e, consequentemente, transformando a sua própria existência.
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o que é importante é o nascimento de uma nova maneira de conceber o homem e o mundo, bem como o fato desta concepção não mais ser reservada aos grandes intelectuais, mas tender a se tornar popular, de massa, com caráter concretamente mundial, modificando (ainda que através de combinações híbridas) o pensamento popular, a mumificada cultura popular (op. cit., p. 127). Será que os efeitos da universalização da cultura, enquanto construção de concepções de novo (libertárias), estão totalmente mortos como afirmam os teóricos de Frankfurt? Será que a própria indústria cultural, ou seja, os instrumentos e as idéias utilizados para veicular uma determinada concepção de mundo, não contém em si elementos de sua própria negação? Será que essa concepção não é qualitativamente superior à concepção “mumificada” expressa através da “cultura popular”? A esse respeito e considerando a importância dos intelectuais no processo de construção de novas concepções, o autor escreve, “se leva em conta o processo cultural que se encarna nos intelectuais, não se deve tratar das culturas populares, para as quais é impossível falar de elaboração crítica e de processo de desenvolvimento” (op. cit., p. 126). Em cada momento histórico, a classe dominante define o tipo de sociedade, o tipo de educação, o tipo de escola, o tipo de educadores, o tipo de homem e de ideologia, enfim, de trabalho, de praxis, de cultura que deseja difundir. Dessa forma, a superestrutura fornece o cimento ideológico necessário à sua dominação (isto ocorre em toda a superestrutura, inclusive em outras instituições educativas e com outros sujeitos sociais)189. No entanto, é claro que enquanto reflexo (e não só isso!) do modo de produção contraditório, a superestrutura também contraditória possibilita o surgimento dessas e de outras reflexões que, não sendo dominantes, necessitam ser trabalhadas (dentro dessa mesma superestrutura) de forma que uma educação emancipatória possa vir a ocorrer. A educação popular, enquanto práxis (e, também, não só isso!), precisa estar ligada à vida190, portanto, ao trabalho. Assim, voltamos à questão inicial. A reconstrução histórica da categoria trabalho, enquanto vida, não enquanto domesticação. Mas para isso precisamos pensar diferente, qualitativamente diferente, histórica e dialeticamente (e só por isso diferente!), do que o que querem que se pense! Por fim, deixa-se a seguinte reflexão: o trabalho, apesar da alienação com que tem se caracterizado, ainda expressa essa necessidade humana de criação, ou seja, por mais alijado que esteja do processo de trabalho, da criação da cultura no sentido amplo, o homem, em seu existir, necessita não somente economicamente, mas existencialmente desse ato de criação. Dessa forma, o trabalho, enquanto espaço de contradição, ainda é sinônimo de liberdade, de ação sobre a realidade, de presença do homem no mundo, independentemente das condições históricas em que tem ocorrido essa ação e mesmo que, ao alienar-se, subjugue-se às relações de produção alienantes. Portanto, parece caber a uma educação popular, em primeira instância, repensar esse processo de alienação!
Referência BAPTISTA, Maria das Graças de A. Ideologia e educação: contradições e mudanças: um estudo sobre a concepção do mundo de docentes e discentes. João Pessoa, UFPB, 1999. 192 p. DUARTE, Newton. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teria vigotskiana. Campinas: Editora Autores Associados, 2000. 296 p.
189
Ver, por exemplo, A indústria cultural em A dialética do esclarecimento de Horkheimer e Adorno. 190 Gramsci (1985) e Vieira Pinto (1986) denunciam a separação entre a escola e a vida produtiva e política, denunciando o caráter classista e retórico da escola e atribuindo essa situação a razões políticas e não pedagógicas.
240 GAMBOA, Silvio A. S. A dialética na pesquisa em educação: elementos de contexto. In: FAZENDA (Org.). Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989, p. 91-116. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da História. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. MARX, Karl. A ideologia alemã. 10. ed. São Paulo, Editora Hucitec, 1996. MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária, autogestão e educação popular. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. VIEIRA PINTO, Álvaro. A questão da universidade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1994. _____________. Teoria da Cultura. In: Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1968. VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 496.
241
EDUCAÇÃO POPULAR E PRAXIS Rita de Cássia Curvelo da Silva
Este texto tem como objetivo aportar alguns elementos que possam subsidiar a análise da práxis política dos trabalhadores e trabalhadoras rurais Sem Terra enquanto fundamento da construção de conhecimentos e do aprofundamento de saberes para a ação transformadora da realidade e para a emancipação dos camponeses e camponesas que protagonizam as lutas do MST191, em especial no que se refere aos aprendizados construídos por pessoas jovens e adultas nos processos de organização e ação coletivas do Movimento, ou seja, nas diversas formas de luta por terra, reforma agrária e por um novo modelo de sociedade192. Para tanto, estou me fundamentando no pressuposto de que as formas de luta dos movimentos sociais populares constituem processos educativos extremamente significativos, espaços multidisciplinares de aprendizado193. A práxis cotidiana de segmentos organizados da sociedade, as experiências vivenciadas e lutas engendradas pelas classes subalternas(referenciar este conceito, mesmo que possa ser com uma nota) evidenciam a dimensão educativa e os processos pedagógicos dos movimentos sociais(firmar, também, este conceito). Inseridos em organizações populares de luta pela conquista de direitos historicamente negados, homens e mulheres constroem conhecimentos (dimensão intelectual) e aprofundam saberes (dimensões intelectual, afetiva e prática). Para subsidiar as reflexões propostas, concernentes aos movimentos sociais enquanto espaços educativos e mais especificamente sobre o MST como sujeito pedagógico que, em suas práticas sociais, concretiza processos de educação das pessoas jovens e adultas engajadas nas diferentes formas de luta do Movimento, estou me fundamentando nas concepções de práxis sistematizadas por Adolfo Sanchez Vázquez (1968) e nos conceitos de educação popular enunciados por Ivandro Sales (1999), devido à aproximação das formulações desses pensadores com o significado(marcar também como fez para saberes) e o sentido (idem anterior ...) atribuído no texto a esses dois significantes.
191
Fundado em 1984 no I Encontro Nacional dos Sem Terra, em Cascavel, Estado do Paraná, o MST está atualmente organizado em 23 estados da federação, reunindo 1,5 milhão de assentados(as) e aproximadamente 500 mil pessoas que vivem em acampamentos.
192
O MST, para assegurar a sua continuidade e o alcance de seus objetivos, optou pela combinação de formas diferenciadas de luta (MORISSAWA, 2001): ocupação de terras, acampamentos permanentes e provisórios, marchas pelas rodovias, jejuns e greves de fome, ocupação de prédios públicos, acampamentos nas capitais, acampamentos diante de bancos, manifestações e passeatas nas grandes cidades.
193
O termo aprendizado (produção de conhecimentos e de saberes) é aqui empregado no sentido da aquisição e/ou ampliação de um instrumental lógico-racional e de uma base afetivo-volitiva que propiciam o desenvolvimento dos processos cognitivos e da afetividade, e, portanto, a obtenção de informações e a formação de conceitos, o aprofundamento da consciência moral e a sedimentação de comportamentos éticos, a compreensão crítica do mundo e a ampliação da consciência política, a concretização de ações transformadoras, construções essas resultantes da interação entre pensamento e prática (práxis).
242 1. Práxis e Educação Popular 1.1. Anotações Sobre o Conceito de Práxis A concepção de práxis perpassa toda a história da filosofia, e a história inteira da humanidade, desde a inserção desse conceito na tradição filosófica grega, especialmente nas formulações de Platão e Aristóteles194, até a consolidação da “filosofia da práxis” marxista195, uma nova prática da filosofia e uma filosofia da prática. A releitura, a reinterpretação e o aprofundamento(o termo anterior já não diz isto?) do pensamento de Marx fundamentaram a produção teórica em áreas diversas do conhecimento durante o século XX, especialmente através das análises do marxismo desenvolvidas por Lênin, Lukács, Gramsci e Sartre e, mais recentemente, por meio das idéias de Vázquez acerca da práxis enquanto categoria central da filosofia marxista na abordagem dos problemas do conhecimento, da história, da sociedade e do próprio ser humano. Neste texto, tomarei como referência as reflexões desse filósofo mexicano( é isto mesmo?), considerando a importância, abrangência e atualidade de seus escritos. Vázquez, na obra Filosofia da práxis (1968) define práxis como atividade prática material do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano e afirma que “Toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis” (VÁZQUEZ, op. cit., p.185), uma vez que existem outras formas de atividade, inclusive as biológicas ou instintivas, que constituem atos determinados casualmente, sem a intervenção da consciência no sentido da formulação de um resultado ideal, de uma finalidade (configuração na consciência de uma realidade ainda inexistente). Dessa forma, a elaboração de finalidades e a produção de conhecimento (na indissolúvel unidade pensamento/ação) são resultantes da atividade da consciência, o que permite ao ser humano conhecer para agir e se conhecer agindo. Sendo a práxis uma atividade teórico-prática (ideal/material), apresenta-se como atividade de um sujeito prático numa vertente dupla e simultânea: como uma atividade subjetiva (da consciência) e como atividade objetiva (exercida sobre uma realidade, independente da consciência). A atividade prática caracteriza-se pela ação de um ser humano sobre uma matéria, objetivando a transformação do mundo exterior, este independente da consciência e da existência do sujeito prático. Nessa perspectiva, a atividade subjetiva, no plano meramente psíquico ou espiritual, por não se objetivar materialmente, não se configura como práxis. Então, 194
Embora o termo práxis tenha sido utilizado por Platão – filósofo que isola a teoria das atividades práticas materiais, menosprezando o prático em relação ao teórico –, o conceito de práxis encontra na obra de Aristóteles sua máxima expressão, representando, para esse pensador, uma síntese das ações éticas, econômicas e políticas, uma prática que pressupõe a inseparabilidade entre o agente, o ato ou ação e o resultado (a ação tem seu fim em si mesma, não produz objetos exteriores ao sujeito). Na concepção aristotélica, a práxis difere da poiesis (fabricação, produção), porque nesta o agente, a ação e o produto da ação são termos distintos e separados (a finalidade da ação está fora dela, numa obra, artefato ou objeto).
195
Os traços fundamentais da “filosofia da práxis” são delineados por Marx nas Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2002a), nas quais o filósofo alemão define sua filosofia como a filosofia da transformação do mundo e eleva a práxis à condição de fundamento de toda relação humana e a atividade prática como fundamento, critério de verdade e finalidade do conhecimento. Em A ideologia alemã, Marx e Engels (2002b) apresentam a teoria da práxis revolucionária, práxis que é condicionada histórica e socialmente pela produção humana. No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels (2004) explicam a forma como deve dar-se essa conversão da teoria em atos, respondendo, desse modo, a necessidades práticas, ou seja, uma teoria embasada no conhecimento da realidade, destinada a guiar uma revolução concreta – a revolução proletária – e também uma teoria da organização da revolução, da passagem da teoria à ação.
243 embora a atividade teórica – que se opera apenas no pensamento – possa propiciar conhecimentos imprescindíveis à transformação da realidade, ela não é por si mesma uma forma de práxis, pois, como expressam Marx e Engels (2003, p.137): “Idéias não podem executar absolutamente nada. Para a execução das idéias são necessários homens que ponham em ação uma força prática”. Para Vázquez, o que existe é uma unidade indissolúvel entre teoria e prática, numa relação de autonomia e dependência mútuas. A práxis é o fundamento da teoria: os conhecimentos teóricos e as categorias lógicas são gestados e impulsionados a partir dos conhecimentos empíricos historicamente acumulados, do progresso técnico determinado pela produção e das necessidades práticas fundamentais da humanidade. A prática material produtiva gera novas perspectivas à atividade científica e ao aperfeiçoamento da técnica, num processo em que se juntam e se incorporam mutuamente teoria e prática. Dentre as formas fundamentais de práxis, o filósofo mexicano destaca: a práxis produtiva (transformação da natureza pelo trabalho humano, autoprodução e autotransformação do sujeito); a práxis artística, da produção ou criação de obras de arte (produção tanto material quanto espiritual de uma nova realidade, a partir da necessidade humana de expressão e objetivação); a práxis científica (manifestada pela atuação do pesquisador sobre um objeto material, realizando uma atividade experimental que tem por finalidade o desenvolvimento de uma teoria); a práxis social (que no sentido restrito é a práxis política – cuja forma mais elevada é a práxis revolucionária – de grupos ou classes sociais visando à transformação da sociedade). Partindo da convicção de que o grau de consciência de um sujeito acerca do processo prático e o grau de humanização de um produto criado através de uma atividade prática origina níveis diferentes de práxis, Vázquez identifica as práxis criadora e reiterativa (imitativa) e as práxis espontânea e reflexiva. Na práxis criadora, a formação ou transformação de uma matéria não se reduz a uma duplicação, mas representa a criação de um produto novo, imprevisível, único e irrepetível, pré-existente de modo ideal, mas com existência real tornada possível apenas pela intervenção da consciência e da prática de um sujeito, numa unidade indissolúvel entre o objetivo e o subjetivo. Na práxis criadora “O objeto não é mera expressão do sujeito; é uma nova realidade que o transcende” (VÁZQUEZ, 1968, p.255). A práxis reiterativa ou imitativa se apresenta como uma execução que se reproduz em objetos produzidos conforme um modelo ou uma lei previamente traçada, permanecendo imutável o idealizado: há plena correspondência entre planejamento e realização, ou seja, o resultado real equivale ao resultado ideal. Embora a práxis imitativa contribua para ampliar o já criado, nela não há produção de mudança qualitativa na realidade humana, o que a coloca numa posição de inferioridade em relação à práxis criadora. Por tudo isso, inexiste um lugar no âmbito da práxis revolucionária – como práxis social criadora –, para uma práxis imitativa. A transformação radical das relações sociais e da sociedade impõe a necessidade de que o aspecto criador da práxis humana seja determinante. “Na práxis total humana, inovação e tradição, criação e repetição se alternam e às vezes se entrelaçam e condicionam mutuamente. Mas a práxis determinante é a práxis criadora” (VÁZQUEZ, op. cit, p.279). Há uma estreita relação entre o nível da práxis de um sujeito e a atividade da sua consciência. Logo, a intervenção da consciência no processo prático (consciência prática) é tanto mais elevada quanto mais reflexiva e criadora for o modo de expressão da práxis. Mas mesmo em uma práxis reiterativa, as intervenções da consciência, embora debilitadas ou tendentes ao desaparecimento, não podem ser excluídas. Vázquez difere a consciência prática – “que atua no início ou ao longo do processo prático, em intima unidade com a plasmação ou a realização de seus objetivos, projetos ou esquemas dinâmicos”, buscando a materialização de um resultado ideal em um produto real – da consciência da práxis – a “consciência que se volta sobre si mesma, e sobre a atividade material em que se plasma” (ibid. p.283-284) – a consciência que se sabe a si mesma. Embora distintas, essas consciências não se fragmentam, mas mantêm uma estreita vinculação, na medida em que a consciência da práxis manifesta-se na autoconsciência prática.
244 A análise do papel desempenhado pela consciência na atividade prática permitiu a Vázquez especificar a existência de uma práxis criadora e de uma práxis repetitiva; o grau de manifestação da autoconsciência prática, por sua vez, propiciou a distinção de dois outros níveis da atividade prática humana: a práxis espontânea (em que o sujeito prático tem uma baixa ou ínfima consciência da práxis) e a práxis reflexiva (ação de sujeitos com elevada consciência da práxis). A correspondência entre os níveis prático criador e repetitivo e as práxis reflexiva e espontânea assume peculiaridades de acordo com a forma específica de práxis. O espontâneo não se opõe ao criador nem o reflexivo ao repetitivo. Em se tratando da práxis revolucionária, os problemas do espontâneo e do reflexivo são de suma importância, vez que uma atividade verdadeiramente revolucionária do proletariado, para o marxismo, exige uma elevada consciência da práxis: a atuação da consciência na produção de uma teoria revolucionária que fundamente o processo prático de transformação da sociedade. Nessa perspectiva, a práxis revolucionária tem um aspecto objetivo (possibilidade de transformação efetiva da sociedade) e um aspecto subjetivo (a consciência dessas possibilidades objetivas – consciência da práxis). Apenas quando adquire uma consciência do seu ser, de sua condição de coisa ou mero meio de produção, o sujeito pode agir de acordo com sua missão histórica(há essa missão?) de transformar radicalmente a sociedade capitalista mediante sua(sua é particular? Se for não pode ser) luta de classe. Essas formulações apresentadas por Vázquez, consideradas em relação aos objetivos propostos para a construção deste texto, suscitam algumas problematizações que tentarei discutir tomando por base as relações entre o MST, as formas de práxis manifestadas nos seus processos organizativos e a geração e aprofundamento de conhecimentos e saberes resultantes da atividade teórica e prática, subjetiva e objetiva, dos atores sociais que protagonizam as lutas do Movimento. Nesse sentido, as questões centrais que requerem uma explicação (ainda que provisória) assim podem ser postas: a práxis política dos Sem Terra pode ser identificada com práxis social revolucionária, produtora de conhecimentos e ação emancipadora dos trabalhadores e trabalhadoras rurais que constituem os sujeitos históricos desse movimento social? Em que sentido as ações concretizadas nas formas de luta do MST (práxis política) se configuram como processos de Educação Popular?
1.2.
Educação Popular Como Aprofundamento de Saberes
Processo
de
Construção
de
Conhecimentos
e
Embora no campo da Educação Popular, como é sabido, haja uma pluralidade de perspectivas, concepções teóricas e conceitos acerca dessa modalidade educativa, há concordância nas abordagens de diferentes autores no sentido de que a Educação Popular se manifesta em um imenso leque de espaços formais e não-formais e numa multiplicidade de dimensões sociais nas quais são tecidas as relações cotidianas em diferentes esferas do mundo concreto e da subjetividade humana. Nessa perspectiva, compreendo a Educação Popular como uma prática que, independente dos espaços (formais, governamentais, não governamentais, alternativos) em que se concretiza, se afirma como uma metodologia orgânica, coletiva e participativa que potencializa as condições de captação, apreensão e leitura crítica da realidade e de intervenção dos protagonistas dessa ação educativa na esfera social (econômica, política, cultural), objetivando transformá-la. É nesse sentido que Ivandro Sales (1999, p.115) expressa sua concepção de Educação Popular, concepção essa que serve de referência e fundamentação para as análises explicitadas neste texto: A Educação Popular é um modo de atuar e tem uma perspectiva: a apuração, organização, aprofundamento do sentir/pensar/agir dos excluídos do modo de produção capitalista, dos que estão vivendo ou viverão do trabalho, bem como dos seus parceiros e aliados em todas
245 as práticas e instâncias da sociedade. (...) é a formação de pessoas mais sabidas e mais fortes para conseguir melhor retribuição à sua contribuição econômica, política e cultural; mais sabidas e mais fortes para serem reconhecidas como pessoas e trabalhadoras; mais sabidas e mais fortes para serem tranqüilas e felizes e para terem uma convivência construtiva e preservadora com o meio ambiente físico e humano. (a definição aqui utilizada apresenta duas definições, a propósito. É um modo de atuar ... e é a formação de pessoas...... A questão a ser levantada, diante desta definição, é: afinal educação popular é um modo ou é a formação? Não será possível a simbiose de ambas em uma definição única? Poderá ser ambas? Talvez, seja possível um esforço teórico no sentido da junção pois podem estar em uma única definição.) Em sua abordagem do conceito de Educação Popular, Sales (op. cit., p.111-122) enfatiza a produção do saber, diferenciando saber e conhecimento ao sustentar que o conhecimento é apenas uma das dimensões (intelectual) do saber, este entendido como entrelaçamento dialético entre o sentir, o pensar, o querer e o agir das pessoas, grupos, categorias e classes sociais. O saber inclui intelecto, afetividade, vontade, prática, dimensões humanas que mutuamente se influenciam e se reforçam. O saber é, portanto, cultura: envolve a realidade objetiva e subjetiva das pessoas. No confronto de saberes, nas nossas ações e omissões, assumimos a condição de educadores, sendo nossas relações interindividuais e intersubjetivas, necessariamente, relações pedagógicas. É por essa razão que, nos movimentos sociais – em especial no MST, objeto das reflexões aqui apresentadas –, a educação não se restringe aos muros da escola, mas estende-se a todos os processos de aprendizagem gerados pela experiência cotidiana de luta organizada, situando-se, preferencialmente, no universo da educação informal, designação que, segundo Afonso (1989, p.87), “abrange todas as possibilidades educativas no decurso da vida do indivíduo, constituindo um processo permanente e não organizado”. A prática educativa que no MST poderíamos designar pelo nome de Educação Popular não desconsidera a escola como lugar de formação das pessoas, sendo este um espaço importante dentro da intencionalidade pedagógica do Movimento, de constituir-se como sujeito educativo que produz novas relações humanas e humanizadoras. Para o Movimento Sem Terra, no entanto, é nas ações de luta pela terra e em outras lutas sociais – que dimensionam a práxis política do Movimento – (CALDART, 2000b) que são forjados cidadãos com maior aprofundamento do seu saber, mais capacitados, então, para a transformação do atual modo de organização da sociedade. Em suma, no MST, a Educação Popular pretendida é aquela que deve configurar-se como “produção de uma cultura ou de um modo de sentir/pensar/agir mais coerente. É a formação de bons lutadores” (SALES, 1999, p.119), de sujeitos que experienciam uma práxis de resistência à exploração e à expropriação do modo capitalista de produção e que lutam por justiça social e pela dignidade humana.
2. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Como Espaço de Educação Popular Os movimentos sociais são espaços singulares de construção de conhecimentos e reinvenção de saberes. Nesta perspectiva, a inserção de um sujeito nas lutas pela conquista de direitos civis e políticos, individuais e coletivos (práxis política), parece contribuir para o desenvolvimento de competências discursivas, reflexivas, morais e políticas; para a ampliação de competências e habilidades no domínio cognitivo e afetivo; para a compreensão crítica do mundo e conseqüente expansão da consciência; para o empreendimento de ações transformadoras, objetivando a afirmação da cidadania(precisará caracterizar tal conceito) individual e coletiva. Sendo o Movimento Sem Terra um movimento de massas (incorpora enormes contingentes populacionais) de caráter sindical (uma luta inicialmente corporativa, pela terra),
246 popular (aberto à participação de todos, tanto da totalidade dos membros da família camponesa quanto daqueles que na sociedade desejem lutar por reforma agrária) e político (junção dos interesses particulares e corporativos com os interesses de classe: luta dos(as) trabalhadores(as) rurais contra os latifundiários e contra o Estado capitalista), seus modos de organização e ação coletivas dimensionam a produção de um processo educativo e a emergência de pedagogias da construção de novos conhecimentos e saberes e da formação de novos sujeitos sociais. As formas de luta pensadas e concretizadas pelos Sem Terra são dotadas de alta potencialidade educativa: o MST se configura como “uma coletividade em movimento que é educativa, e que atua intencionalmente no processo de formação das pessoas que a constituem” (CALDART, 2000a, p.199). A partir desses pressupostos – o MST como sujeito pedagógico que desenvolve ações organizativas que resultam em processos educativos – pode-se indagar: que aprendizados são construídos pelos Sem Terra enquanto sujeitos de práticas sociais, engajados nas diferentes formas de luta do Movimento? Qual o significado dos conhecimentos e saberes gestados pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais para a concretização de uma práxis revolucionária, dimensionada na perspectiva da transformação(é a visão marxista? Não hã outra mais ampla?) do mundo (natureza e sociedade) e da emancipação humana(é no sentido moderno?)? As lutas populares são espaços de aprendizagem política que possibilitam tanto a criação de novas formas de conhecimento quanto a vivência de novas relações sociais e interindividuais, implicando na superação de estereótipos e estigmas e na construção de pessoas que, aceitando-se a si mesmas, alteram a sua auto-imagem e auto-estima. Nesse sentido, afirma Guimarães (2001, p.118) que “Os movimentos sociais (...) promovem processos pedagógicos pelos quais o confronto com o outro diferente possibilita a formação da própria identidade”. O MST, devido ao caráter educativo que lhe é intrínseco(explicar isto), assume a condição de espaço privilegiado de aprendizagem e formação da identidade dos trabalhadores e trabalhadoras rurais: construção e a sedimentação de uma identidade coletiva – um movimento e uma organização social e política de massas – e de uma identidade individual – de ser Sem Terra, um sujeito histórico do inacabamento e da incompletude, o qual almeja constantemente alcançar a plenitude, completar-se; pessoas jovens e adultas que, através das vivências coletivas cotidianas do MST, permanentemente se transformam e se constroem enquanto sujeitos formadores de uma organização popular(veja o conceito antes utilizado por você. Mudou o conceito, aqui?) (de luta por terra, reforma agrária e por mudanças na sociedade), mas também por ela condicionados. Nas atividades práticas do MST surgem novos atores políticos que, nas relações sociais e na interação grupal, mediados pelo diálogo e pela reflexão, definem sua identidade de classe e gestam novos projetos de transformação, pautados na utopia de construção de uma sociedade mais justa, participativa e democrática. Há, também, uma estreita relação entre a participação dos indivíduos nas lutas sociais e a construção da cidadania dos integrantes de organizações populares: nas lutas coletivas, os protagonistas dessas ações aprendem a construírem-se como cidadãos. Adquirem consciência de que são sujeitos de direitos (sociais, políticos, econômicos e culturais) e lutam pela aquisição e/ou expansão desses direitos. Nessa perspectiva, o MST tem contribuído para a construção da cidadania ativa dos brasileiros, processo que sempre passou pela organização da sociedade, através das lutas do povo pela democratização do poder. A práxis dos integrantes do Movimento Sem Terra gera a aprendizagem política dos direitos de cidadania, representando, na história social recente do Brasil, um claro avanço à prática democrática. Saber buscar meus direitos, saber quais são os meus direitos, eu aprendi. Nem só o meu direito em termo pessoal, como o coletivo. Por mais que eu sou uma trabalhadora rural, da roça, do campo, mas eu tenho meus direitos e eu sei todos os meus direitos e deveres. Hoje tenho uma concepção de vida diferente, que eu não tinha antigamente: eu não tinha conhecimento político e nem mesmo sabia meus direitos... (Nayane, 21 anos, MST/Bahia).
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Outra dimensão educativa dos movimentos sociais populares é que estes têm se convertido em agentes de politização e aprofundamento da consciência dos seus integrantes. Nos processos coletivos, os protagonistas das lutas sociais adquirem a consciência de sua situação de exclusão social e de opressão e ascendem da consciência de sua alienação à consciência de sua liberdade. “Essa consciência é adquirida através de um longo processo teórico e prático de luta contra sua exploração, ao fim do qual o oprimido – nesse caso o trabalhador – chega à consciência de sua alienação e por sua vez, à de sua libertação” (VÁZQUEZ, 1968, p.77). As diferentes ações coletivas do MST, por exemplo, propiciam a consolidação de uma cultura de resistência à situação de opressão da consciência dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e a organização de uma práxis de libertação da sociedade opressora, vez que a liberdade é uma condição ontológica absoluta da realidade humana, cujo exercício pleno se concretiza na práxis social, no agir humano sobre a materialidade de um mundo objetivo (resultante das muitas práxis que historicamente o criaram). Acredito que pelo lado econômico eu ainda sou o mesmo. Agora se partir pela questão da consciência, eu acredito que sou um novo homem (Benedito, 38 anos, MST/Bahia). Passei a ter aquele olhar crítico, outra concepção de vida, necessidade de estudar, consciência de que tem de lutar para conseguir seus objetivos... (Nayane, 21 anos, MST/BA). Acreditando que é possível superar, através da práxis, a contingência humana, os Sem Terra concretizam ações voltadas para o atendimento às suas necessidades objetivas (condições básicas de produção de sua sobrevivência) e subjetivas (motivações sociais) e, nesse processo, se autoproduzem, constroem o seu próprio ser. Ser definido pela ação e que é liberdade: “O ato é a expressão da liberdade” (SARTRE, 1997, p.541). Os Sem Terra se libertam em seu fazer, em suas ações intencionais sobre um mundo concreto. Também as práticas cotidianas dos movimentos contribuem para a criação de novas relações sociais, com destaque para a implementação de estratégias para a democratização de processos da vida comunitária e consecução da autonomia em relação a outras instâncias e organizações externas. Ressalta Scherer-Warren que nos acampamentos coletivos “as relações comunitárias, com ênfase na solidariedade e na cooperação, desenvolvem-se enquanto um modo de vida e enquanto forma de luta” (1996, p.73). Nesse sentido, os Sem Terra, nas vivências cotidianas, desenvolvem ações solidárias, de auxílio a outras pessoas, visando ao atendimento das necessidades dos(as) assentados(as) e acampados(as) e ao bem-estar da comunidade e da sociedade. Na luta, desenvolve-se um intenso sentimento de lealdade para com os(as) companheiros(as) e uma constante preocupação em defendê-los das ameaças externas que com freqüência incidem sobre os(as) militantes do Movimento. Nas ações práticas do MST, valores humanos e condutas éticas são adquiridos e/ou consolidados: a solidariedade e a cooperação, a justiça, o companheirismo, a beleza e a dignidade são apropriados e/ou sedimentados como valores permanentes, por serem considerados elementos indispensáveis à construção de novas relações sociais e interpessoais e para a formação de homens e mulheres novos, humanizados. Passamos 31 dias presos. Foi uma luta danada, o sofrimento muito grande, um dos maiores da minha vida. Eu não estava no conflito, mas o cara me pegou para dar informação. Eu já tinha alguma experiência e disse: - Não conheço nome de ninguém. Eles queriam informação, mas a gente não pode entregar companheiros, pois seria uma decepção muito grande. Então a gente tem que estar firme na luta, pode até sofrer, mas trair um companheiro, de forma nenhuma. Eles chegaram até a colocar um saco na minha cabeça e me deixar
248 sem respiração (Manoel Inácio, 30 anos, MST/Paraíba. Apud CAVALCANTE, 2002, p.122). Sempre a gente tem que tá não simplesmente pensando no seu, mas em que os outros também precisam ter. E pra que esses outros tenha a gente tem que continuar lutando. Isso é muito importante! (Benedito, 38 anos, MST/Bahia). As lutas sociais possibilitam, ainda, a apropriação de novos conhecimentos por parte de seus protagonistas, por serem um “verdadeiro canteiro da aprendizagem da economia, da política, da sociologia e das capacidades de comunicação, da leitura e da escrita” (NASCIMENTO, 1996, p.39) e um campo propício ao desenvolvimento progressivo de competências cognitivas e à ampliação da competência lingüística e das habilidades de comunicação. Ao se defrontarem com situações-problema diversas nas mobilizações coletivas e em outros espaços vivenciais cotidianos, os(as) trabalhadores(as) rurais Sem Terra adquirem, por exemplo, conhecimentos lógico-matemáticos (no planejamento agrícola e na comercialização da produção), conhecimentos sobre História e Economia (na medida em que refletem sobre o seu próprio passado e analisam a conjuntura econômica, social e política do presente), Geografia (no planejamento da ocupação, na participação nas marchas), Direito (nos confrontos com a polícia e nos conflitos com a justiça); desenvolvem suas capacidades de solucionar problemas práticos; constroem relações interdependentes e autônomas; ampliam suas habilidades de intercomunicação verbal e de interação social. Esses conhecimentos adquiridos contribuem para que os atores sociais engajados na práxis política do MST aprofundem as suas possibilidades de decifração do mundo e leitura crítica da realidade, bem como de autoconhecimento e autocompreensão: uma compreensão da realidade e de si mesmos que possibilita a transformação do mundo e dos seres humanos, através da passagem do pensamento à ação. “O homem age conhecendo, do mesmo modo que (...) se conhece agindo” (VÁZQUEZ, 1968, p.192). Eu não sabia quase nada de nossos povos, eu não aprendi antes, entendeu? Agora eu já sei muitas coisas sobre a realidade do Brasil, a vida humana, as lutas do povo (Anderson, 31 anos, MST/Bahia). Ao agir sobre o mundo, os Sem Terra (sujeitos da história) conhecem a realidade em sua totalidade: compreendem sua situação na sociedade e atingem a consciência de sua situação de classe, da realidade social em sua essência e em suas profundas contradições e da missão histórica de encontrar solução para essas contradições através da luta por sua libertação. O conhecimento se transforma em ação: ação sobre uma realidade para transformá-la em sua totalidade. Essa consciência de classe, segundo Lukács, (apud REALE; ANTISERI, 1991, p.808) é a unidade da teoria e da práxis dos trabalhadores, “o ponto em que a necessidade econômica de sua luta de libertação converte-se dialeticamente em liberdade”. Outra das possibilidades de aprendizagem decorrentes da inserção do indivíduo nos movimentos sociais é apontada por Marta Kohl de Oliveira (1995, p.158) quando ressalta a influência cultural sobre os modos de funcionamento cognitivo dos indivíduos. Esse tipo de atividade [militância em partidos, movimentos da sociedade civil, organizações sindicais, etc], por envolver o engajamento do indivíduo em projetos coletivos que transcendem os dados da experiência concreta individual, favorece o desenvolvimento de uma perspectiva metacognitiva, isto é, que se debruça sobre o real como objeto de reflexão e não apenas de ação. A relação intensa do sujeito com algum tipo de utopia parece promover seu desenraizamento dos dados contextuais do momento e do espaço presentes.
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Através da militância política, ampliam-se as possibilidades de desenvolvimento da capacidade de descontextualização, do controle da própria produção cognitiva e da metacognição das pessoas jovens e adultas. A ação política, especialmente nos contextos urbanos, contribui para a aclaração do processo de letramento e elevação do nível de alfabetismo desses atores sociais (Ribeiro, 1999; Ratto, 1992, 1995). Na zona rural, a participação dos(as) camponeses(as) nas atividades organizativas dos movimentos sociais do campo contribui para a apreensão crítica da realidade e conseqüente socialização política desses sujeitos, na medida em que Os movimentos permitem aos trabalhadores, em primeiro lugar, o aprendizado prático de como se unir, organizar, participar, negociar e lutar; em segundo lugar, a elaboração de uma identidade social, a consciência de seus interesses, direitos e reivindicações; finalmente, a apreensão crítica de seu mundo, de suas práticas e representações sociais e culturais (GRZYBOWSKI, 1987, p.59). É nesse aprendizado prático que os Sem Terra assumem seu papel de agentes históricos, agudizando suas percepções e ampliando suas possibilidades de desvelamento e explicação da realidade. Como protagonistas de uma práxis dimensionada na perspectiva de transformação do mundo e adoção de um novo modelo de sociedade, esses sujeitos vivenciam novas relações interindividuais e sociais, num processo contínuo de organização para a ação transformadora. Quando a gente deixa de aprender durante toda a nossa vida, a gente aprende em um dia de luta, de mobilização, em nossos atos. Tudo que acontece a gente pega como forma de aprendizado mesmo. A gente vai criando uma sensibilidade das coisas e do mundo que ajuda muito ao jovem hoje. A gente aprende muito por aí afora... (Rosemaria, 23 anos, MST/Bahia).
Em suma, no que diz respeito à dimensão educativa dos processos de luta dos movimentos sociais, há um certo consenso(por parte de quem?) na abordagem das lutas sociais como espaços singulares de aprendizagem e de construção de novos conhecimentos e saberes: a militância política dos integrantes dos movimentos sociais contribui para a aquisição de conhecimentos, aprofundamento da consciência, ampliação da capacidade cognitiva, construção e sedimentação de valores, formação da identidade social, afirmação da cidadania(que cidadania?). Quanto aos Sem Terra, por meio de sua atividade prática(teórica, não?), esses sujeitos engendram a transformação do mundo objetivo, processo que resulta também em sua autoprodução e em sua libertação, numa unidade entre circunstâncias e atividade humana: a transformação das circunstâncias (que condicionam o ser humano) não pode separar-se da autotransformação do homem (que modifica as circunstâncias), unidade que define a práxis revolucionária. Por meio de uma práxis contínua e incessante, o sujeito e o objeto se transformam (MARX; ENGELS, 2002a, p.100). A práxis política dos integrantes do MST assume, portanto, o significado de ação prática humanizadora e emancipadora dos trabalhadores e trabalhadoras rurais que integram esse Movimento: uma práxis revolucionária, que objetiva a transformação dos sujeitos, da sociedade e das relações sociais pela ação humana.
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3. Considerações Sobre a Educação Popular na Práxis Organizativa do MST O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra desenvolve processos de organização e de ação coletivas que se configuram como práxis social, concretizada pelo estabelecimento de um vínculo orgânico entre a teoria e a prática. O MST desenvolve uma práxis política que, enquanto ação crítico-prática, é atividade revolucionária voltada para a transformação das relações de opressão sociopolítica ou cultural e para a afirmação da essência humana dos camponeses e camponesas integrantes desse movimento popular. No longo processo teórico e prático de luta contra a exploração a que foram (e ainda são) submetidos, os(as) trabalhadores(as) rurais Sem Terra adquirem consciência de sua alienação e, de forma coletiva, organizam uma luta consciente pela sua emancipação. Os Sem Terra realizam um ato revolucionário na medida em que são, simultaneamente, sujeitos de conhecimento e agentes que, em seus atos, produzem a sua consciência. No MST, os Sem Terra têm a possibilidade de construir conhecimentos através da sua inserção nas lutas e, assim, fundamentar e desenvolver suas práticas e agir sobre as circunstâncias que os condicionam, buscando modificá-las. Nesse processo, transcendem a mera interpretação da realidade e convertem a simples teoria em atos, em ação transformadora sobre o mundo objetivo: uma práxis revolucionária, essencialmente reflexiva e criadora. Mais que apenas a concretização da reforma agrária, o MST define objetivos mais amplos e profundos, de consecução de uma mudança radical na estrutura social brasileira, de pobreza e desigualdade, portanto, injusta e excludente. Em sua experiência imediata – práxis social – desenvolve-se a produção de conhecimentos e saberes transformadores do mundo (natureza e sociedade) e humanizadores dos próprios sujeitos que participam dos processos de luta do Movimento: um processo singular de educação de pessoas jovens e adultas, essencialmente popular e, por certo, insubstituível (parece que é bom não sermos deterministas).
4. Referências Bibliográficas AFONSO, A. J. Sociologia da educação não escolar: reactualizar um objecto ou construir uma nova problemática? In: ESTEVES, A.J.; STOER, S.R. A Sociologia na escola. Porto: Afrontamento, 1989. p. 83-96. CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Petrópolis: Vozes, 2000a. _______. A pedagogia da luta pela terra: o movimento social como princípio educativo. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO – ANPED, 23, 2000, Caxambu/MG. Anais... Caxambu: ANPED, 2000b. 1 CD-ROM. CAVALCANTE, Rita C. Aprendizes da terra: a voz e a resistência do MST na Paraíba. 2002. 232f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2002. GRZYBOWSKI, C. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo. Petrópolis, RJ: FASE/Vozes, 1987. GUIMARÃES, Elias Lins. A ação educativa do Ilê Aiyê: reafirmação de compromissos, estabelecimento de princípios. 2001. 209f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. Tradução Maria Lucia Como. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
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O PROJETO DE EMANCIPAÇÃO HUMANA E A EDUCAÇÃO POPULAR: um devenir196 Maria do Amparo Caetano de Figueirêdo197
Reflexões iniciais Nesse novo milênio estamos vivendo diante de alguns paradoxos: ao mesmo tempo em que avançamos com relação ao progresso tecnológico, por outro lado, caminhamos num sentido quase inverso às nossas capacidades de garantir um norte ético e emancipatório para a nossa vida em coletividade. Há uma ética que atende muito mais aos interesses do mercado, do que a espécie humana. “Quanto maior vem sendo a importância da tecnologia hoje tanto mais se afirma a necessidade de rigorosa vigilância ética sobre ela. De uma ética a serviço das gentes, de sua vocação ontológica, a do ser mais.(FREIRE, 2000, p. 102). Estamos diante de uma sociedade cada vez mais globalizada, tecnologicamente avançada. Contraditoriamente, a maioria da população vive submetida a processos de exclusão sem precedente. Na América Latina mais de 210 milhões de pessoas vivem em estado de pobreza. O Brasil tem 50 milhões de brasileiros abaixo da linha da indigência, que possuem uma renda inferior a R$ 80 por mês. “Quase um terço da população brasileira”. No Estado de Alagoas, 56,84% da população encontra-se abaixo da linha da pobreza, no Piauí 61,26% e no Maranhão 62,37%. Além da pobreza, verifica-se também a discriminação referente às diferenças raciais, étnicas, regionais e sexuais. Pois, os pobres brasileiros, são mais excluídos quando são negros, índios, mulheres e nordestinos. (GENTILI, 2003, p.261). Nesse sentido, Freire reflete sobre o papel e o compromisso da ciência e da tecnologia e a desigualdade social. “A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres” (FREIRE, 1998, p.147). Uma ciência e tecnologia a serviço do processo de emancipação humana. Por outro lado, Boaventura defende uma globalização contrahegemônica, ou seja, uma globalização condizente com um projeto de sociedade que respeite as culturas locais, multicultural e emancipada. Assim como não posso usar minha liberdade de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos outros de fazer e de ser, assim também não poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata acrescentamos, de inibir a pesquisa e frear os avanços, mas pô-los a serviço dos seres humanos. (FREIRE, 1998, p. 149). Portanto, a questão não é a tecnologia, mas o que fazemos dela, a serviço de quem e de qual projeto de sociedade ela está sendo executada. Freire questiona, para que serve esta ética que aí está, que desemprega tantos trabalhadores diante dos interesses do mercado? Nesse aspecto, me alio a Freire quando afirma: a minha música tem outra semântica, defendo a resistência, a luta contra a ética do mercado, por uma ética da vida, da dignidade e da felicidade humana.
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Este ensaio apresenta reflexões acerca do conceito de emancipação enquanto um dos constituintes formuladores do campo teórico-metodológico da Educação Popular, realizado ao longo da disciplina Teoria da Educação Popular, ministrada pelo Prof. José Francisco de Melo Neto, do Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba - UFPB (2004-2005). 197
Mestre em Educação Popular e Doutoranda em Educação Popular/UFPB. Professora do Departamento de Habilitações Pedagógicas, Centro de Educação – UFPB. E-mail: mariadoamparoc@yahoo.com.br.
253 Assim, neste contexto da globalização hegemônica, a educação muitas vezes se encontra pouco vigorosa para dar a sua contribuição no processo de emancipação humana. Diante dessa situação, as idéias sobre emancipação precisam ser (re)discutidas, através de um debate teórico que contemplem os dilemas e as perspectivas da emancipação da humanidade frente às novas configurações societárias instituídas. “O desafio é a construção de propostas concretas para superar dialeticamente os processos socioculturais desumanizantes construindo, igualmente, novas bases filosófico-científicas capazes de orientar um projeto emancipatório de sociedade” (ZITKOSKI, 2003, p.1). Deste modo, a peleja da Educação Popular(EP) pela emancipação humana, demanda sem dúvidas um conjunto de reflexões sobre os múltiplos elementos que conjugam e formulam o conceito de educação popular. Nesse sentido, muitos são os constituintes que têm fundamentado as práticas e concepções da educação popular no Brasil e na América Latina: emancipação, realidade concreta, trabalho, igualdade, práxis, autonomia, liberdade, diálogo, resistência, saberes, entre outras. Segundo Melo Neto (2004, p.137), essas categorias vêm nutrindo “a história e as práticas em educação popular, constituindo-se como elementos essenciais para o seu exercício, fecundando enormemente a sua compreensão e o seu distanciamento de outros sistemas de educação”. Portanto, a elaboração desse texto nasce do desejo e da necessidade de estar aprofundando teoricamente o constituinte emancipação, que tem formado historicamente, em conjunto com outros, o campo de atuação da educação popular198. Nesse sentido, num primeiro momento, será apresentado o debate sobre emancipação realizado por Marx, onde ele faz a distinção entre emancipação política e emancipação humana. Posteriormente, busco compreender no pensamento de Adorno a relação entre emancipação e educação. Em seguida, situo o pensamento de Freire sobre a pedagogia da libertação. Por fim, apresento algumas reflexões desenvolvidas por Boaventura sobre emancipação, enquanto um projeto contrahegemônico diante do atual estágio do capitalismo globalizado. Feitas essas reflexões conceituais, busco destacar como é que a emancipação se afirma, se revela, se institui no âmbito da educação popular. Busco refletir alguns desafios, limites e possibilidades presentes no campo da Educação Popular, vislumbrando a emancipação humana, tendo por base as concepções teóricas de Freire (1987, 1991, 1998, 2000, 2001), Melo Neto (2003, 2004). A educação popular, pelo diálogo, caminha para a superação das formas existentes de opressão, uma pedagogia emancipatória...Uma pedagogia orientada pela interpretação do mundo, considerando que todos se educam pelo diálogo, intersubjetivamente. (MELO NETO, 2004, p. 176). Assim, encontro-me, pois, no desafio de realizar uma provocação teórica-prática sobre as perspectivas de emancipação da humanidade, sem a pretensão de esgotar ou até mesmo concluir este debate. Encontro-me igualmente mobilizada pelo desejo de refletir as possibilidades da atividade da educação popular nessa empreitada emancipatória. Enfim, escrever sobre a emancipação humana é discorrer sobre um conjunto de ações, utopias, lutas, sonhos, projetos, ações humanas em busca da felicidade, da justiça, da liberdade e da fraternidade, o que Marx chamou do “reino da liberdade”. É escrever inclusive sobre a minha 198
Este texto, tem com referência o conceito de Educação Popular, elaborado coletivamente pelos alunos e alunas integrantes da 2ª Turma do Doutorado em Educação da UFPB, enquanto processo da Disciplina Teoria da Educação Popular, ministarda pelo Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto, assim constituído: “Educação popular é um fenômeno de apropriação (trabalho) dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto, constituído de uma teoria do conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdo e técnicas de avaliação processuais, permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade”.
254 vida, pois o sonho e a luta pela emancipação humana tem estado presente nos meus saberes e fazeres individuais e coletivos, nas minhas utopias, nos meus projetos, na minha história de vida. Reflexões sobre o conceito de emancipação Para desenvolver o debate sobre emancipação199 buscarei me fundamentar no pensamento de Marx, Adorno, Freire e Boaventura dos Santos, através das suas construções teóricas sobre este conceito. Nessa perspectiva, a base teórica que sustenta nossas reflexões tem nas idéias de emancipação o ideário de uma sociedade emancipada, tendo a práxis como a síntese dialética entre a teoria (subjetividade) e a prática (objetividade), a partir de uma intencionalidade capaz de alterar os determinantes históricos e sociais dos sujeitos e da própria história. Este ensaio discute basicamente o conceito de emancipação na educação popular, contudo, em alguns momentos do texto, sobretudo no pensamento de Freire, ele torna-se sinônimo de liberdade, por que tanto Freire quanto Marx, vão falar de emancipação na perspectiva também da liberdade, libertação humana. Emancipação em Marx Toda a obra marxista é permeada pela utopia da emancipação humana que é o socialismo, a sociedade comunista. A realização plena do ser, da humanidade por inteiro, uma realização que tanto vai contemplar a satisfação das necessidades materiais, quanto às subjetivas – os aspectos espirituais, os aspectos simbólicos. Em A questão judaica (1978), Marx fundamenta sua concepção de emancipação, a partir do estabelecimento de uma clara e radical distinção entre “emancipação política” e “emancipação humana”. Inicialmente Marx define o sentido da emancipação política. Portanto, este tipo de emancipação se configurou pela superação da forma de sociabilidade feudal, em que o modo de produção estabelecia uma desigualdade jurídica e política explícita entre as classes sociais. Nesse contexto, emancipar-se politicamente não era emancipar-se de uma maneira absoluta, porque a emancipação política não era uma forma incondicional e global da emancipação humana. “O limite da emancipação política torna-se imediatamente evidente no facto de o Estado se poder libertar de uma barreira sem que o homem se tenha realmente liberto da mesma, de o Estado poder ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre”. (MARX, 1978, p.17). (Grifos do autor) Portanto, a emancipação política é limitada, por que ela não vai interferir na estrutura de desigualdade social, representa apenas uma igualdade jurídica, não extingue, antes solidifica a desigualdade social. Não obstante, para Marx, a emancipação política representa um grande progresso e, mesmo que não seja o modelo mais elevado de emancipação humana em geral, é a configuração mais elevada de emancipação dentro do seu contexto. “É certo que não é a última forma da emancipação humana, mas é a última forma da emancipação humana na ordem do mundo actual. Entendamo-nos: falamos da emancipação real, da emancipação prática”. (MARX, 1978, p. 23). Por outro lado, embora a emancipação política seja uma emancipação limitada, ela também é fruto de lutas históricas200, pois ela não é inata ao ser humano, ela é fruto da resistência, organização e lutas que a humanidade tem desenvolvido ao longo de sua história. Portanto, a emancipação humana constitui ao mesmo tempo um anseio humano e uma busca em todos os tempos. 199
O conceito de emancipação, segundo o Dicionário do Pensamento Marxista tem a ver com a liberdade em nível da supressão dos obstáculos à emancipação humana, ou seja, ao múltiplo desenvolvimento das possibilidades humanas e a criação de uma nova forma de associação digna da condição humana. “Dentro da comunidade terá cada indivíduo os meios de cultivar seus dotes e possibilidades em todos os sentidos” (Marx, apud Bottomoro, p. 124). Assim, quanto tratarmos da concepção de emancipação, em alguns momentos do texto, vamos fazer referência ao conceito de autonomia, liberdade e emancipação como sinônimos. 200 Como exemplo destaco as lutas empreendidas pelo fim do apartheid na África do Sul, as lutas dos Quilombos e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Brasil.
255 Deste modo, como a emancipação política tem sua base nos princípios da cidadania, da democracia, tem representado um avanço diante da sociedade feudal. Marx questiona que a crítica não está em quem deve emancipar, e nem quem deve ser emancipado. Mas numa terceira questão: de que espécie de emancipação se trata? Quais as condições que fundam a essência da emancipação reclamada? De fato essa emancipação já é um progresso para a humanidade, porque através dela se teve acesso aos direitos do cidadão. Todavia, essa emancipação ainda não é obra da classe trabalhadora, proletária, não é um ato revolucionário de transformação das relações de produção. Esse modelo de emancipação segundo Marx(1978), vai apenas legitimar o direito do cidadão de ser egoísta, de explorar o outro. Nessa perspectiva, Marx faz uma crítica ao conceito liberal clássico de emancipação, através do questionamento ao direito à propriedade, à liberdade e à segurança, entre outros que são instituídos com a Revolução Francesa. Para o autor, “o direito de propriedade é, pois o direito de usufruir da fortuna própria e de dispor dela “à sua “vontade”, sem preocupações com os outros homens, independentemente da sociedade; é o direito do egoísmo”. É o direito a propriedade, a conservação das propriedades do homem burguês, de sua pessoa egoísta. Por outro lado, este tipo de liberdade individual defendida, assim como a sua aplicação no contexto da sociedade burguesa, faz com que “cada homem veja nos outros homens, não a realização, mas antes a limitação da sua liberdade”. Esse tipo de liberdade aclama, antes de tudo, o direito de “usufruir e de dispor à sua vontade dos seus bens, dos seus rendimentos, do fruto do seu trabalho e da sua indústria”. (MARX, 1978, p.38). Nesse aspecto, a emancipação refere-se simplesmente a “igualdade” conforme o princípio do direito burguês, estabelecido pelo capitalismo liberal. Portanto, essa igualdade é só aparente, pois só vale para alguns. A liberdade é, pois o direito de fazer tudo o que não prejudique os outros. Os limites dentro dos quais cada qual pode mover sem prejudicar os outros são definidos pela lei, tal como o limite entre dois campos é determinado por uma estaca. Trata-se da liberdade do homem considerada como mónada isolada, fechada sobre si própria... Mas o direito do homem, a liberdade, não se baseia nas relações do homem com o homem, mas antes na separação do homem em relação ao homem. É o direito desta separação, o direito do indivíduo limitado a si próprio. (MARX, 1978, p.37). Outra promessa da emancipação política foi o direito a segurança. Nesse contexto, Marx faz uma crítica a este direito, que só existe para assegurar que cada um dos membros da sociedade burguesa tenha a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e das suas propriedades. Pois, a segurança que a revolução francesa veio instituir é a segurança para a burguesia, é a segurança que vai garantir ao ser humano o direito ao seu egoísmo. “É neste sentido que Hegel chama à sociedade burguesa „o Estado da angústia e do entendimento‟” . (MARX, 1978, p.39). Nessa perspectiva, a segurança não tem uma conotação coletiva, um bem coletivo, mas um direito essencialmente individual e vinculada a classe que está no poder. Assim, os pretensos direitos humanos não ultrapassam o homem egoísta, o homem enquanto membro da sociedade burguesa, ou seja,um indivíduo separado da comunidade, ensimesmado, preocupado apenas com o seu interesse pessoal, obedecendo unicamente à sua arbitrariedade privada. Neles, o homem está longe de ser considerado como um ser genérico; muito pelo contrário, a própria vida genérica, a sociedade, surge como um quadro exterior ao indivíduo, como uma limitação da sua independência original. O único laço que os une é a necessidade natural, a exigência e o interesse privado, a conservação das suas propriedades e da sua pessoa egoísta. (MARX, 1978, p.39). Portanto, o conceito de emancipação política constitui, respectivamente, “a emancipação da sociedade burguesa face à política e até à aparência de um conteúdo de ordem geral”. Desse modo Marx observa que a instituição da emancipação política constitui uma comunidade política, uma comunidade cívica, um simples ambiente de que deve servir para a permanência dos chamados direitos do homem, “onde o cidadão é declarado servidor do “homem” egoísta”. Pois o homem não foi emancipado da propriedade, antes ganhou a liberdade da propriedade. Não foi emancipado do egoísmo da indústria, recebeu a liberdade da indústria. Por conseguinte, a revolução política alterou a vida burguesa nos seus elementos, sem revolucionar estes elementos nem os submeter à crítica. Destarte “a emancipação política é a
256 redução do homem, por um lado, ao membro da sociedade burguesa, ao indivíduo egoísta e independente, por outro lado ao cidadão, à pessoa moral”. (MARX, 1978, p.46). (Grifos do autor). Depois que Marx questiona, reflete sobre as limitações da emancipação política, que é a da perspectiva dos direitos, do jurídico, do político, do cidadão burguês, ele vai apresentar a sua proposta de emancipação, que ele chama de “emancipação humana” ou “emancipação humana geral”. Nesse sentido, o marxismo torna-se herdeiro de um conceito mais fértil e mais amplo de emancipação: “emancipação humana geral”, enquanto a mais elevada expressão das potencialidades humanas. Uma vez que a “emancipação humana só é realizada quando o homem reconheceu e organizou as suas próprias forças como forças sociais, deixando, pois de separar de si a força social sob a forma de força política”. Para tanto, Marx pauta sua obra no conhecimento e crítica a sociedade burguesa, vislumbrando alternativas, caminhos, ações instituintes da emancipação da espécie humana. Nessa perspectiva, Marx vai romper com o significado originário do conceito de emancipação na perspectiva jurídica201. Portanto, o conceito de emancipação humana é profundamente distinto da emancipação política. Com a emancipação política, o trabalhador permanece separado da sua comunidade. Esta comunidade, da qual é afastado “pelo seu trabalho é a própria vida, a vida física e espiritual, a moralidade humana, a atividade humana, o prazer humano, a essência humana”. A “verdadeira comunidade humana”. (MARX apud TONET, 1995, p.60). Nos Manuscritos Econômicos – Filosóficos de 1844, Marx explicita os mecanismos que produzem a separação do trabalhador da autêntica comunidade humana, resultando no estranhamento, na desumanização do ser. Pois, o trabalho alienado acabou escravizando o ser humano, transformando-o em objeto. De tal modo que uma proposta de emancipação dentro de um contexto fundado numa forma de trabalho que tem por essência a compra e venda da força de trabalho, ocorre uma dissociação ontológica. Marx também identifica que o trabalho no capitalismo tornou-se somente um meio de sobrevivência, de conservação da existência humana, e a não concretização do reino da liberdade. Segundo este autor, a liberdade constitui o conceito essencial para a compreensão do homem em sua relação concreta com a existência. O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho que é determinado pela necessidade e por objetivos externos; por conseqüência, em virtude da sua natureza, encontra-se fora da esfera da produção material propriamente dita (...) A liberdade neste campo só pode consistir no fato de a humanidade socializada, os produtores associados, regularem racionalmente o intercâmbio com a natureza, submetendo-a ao seu comum controle, em vez de serem governados por ela como por um poder cego, e cumprindo a sua tarefa com o menor dispêndio de energia possível em condições tais que sejam próprias e dignas de seres humanos. (...) o desenvolvimento da potencialidade humana com fim em si mesma, o verdadeiro reino da liberdade que, no entanto, só pode florescer tendo como base o reino da necessidade. (MARX apud D’ACRI, 2003, p.6). Portanto, o reino da liberdade só será instituído quando o ser humano se libertar da necessidade imediata da existência, tornando-se livre para expressar suas possibilidades, suas potencialidades. Nessa perspectiva, a emancipação humana geral só será possível para além do 201
Segundo Pogrebinschi (2004), a origem do conceito de emancipação, em sua formulação latina original emancipatio, deriva de e manu capere, enquanto ato jurídico através do qual o paterfamilias da República Romana tinha autorização para libertar seu filho do pátrio poder. Posteriormente este conceito é retomado pelo projeto do iluminismo, através dos ideários de liberdade e igualdade, inspiradores da Revolução Francesa. Nesse contexto, o conceito de emancipação é também aprestado na perspectiva de auto-emancipação, passando a ser ação do próprio sujeito. Portanto, se na Roma republicana a autoridade que proporcionava a emancipação era o paterfamilias, na Idade Média ela passa a ser o direito emanado do Estado. Tem-se, portanto, a emancipação no campo público, político. O Estado constitui o agente emancipatório, ou seja, um instrumento de realização da emancipação. Entretanto, no século XIX, o Estado constitui o próprio objeto de emancipação, ou seja, a origem da opressão da qual se deseja emancipar. Todavia, somente em Marx o conceito de emancipação se libertará do Estado. Trata-se do termo emancipação humana teorizado por Marx. Para maiores aprofundamentos sobre origem e evolução do conceito de emancipação ver POGREBINSCHI (2004).
257 horizonte burguês. Somente o trabalho no comunismo é capaz de possibilitar a construção de uma autêntica comunidade humana, que tem sido apresentada como caminho para a efetivação de uma revolução social. Revolução social, aqui, constitui uma transformação que altere, a partir da raiz, a velha ordem social. (TONET, 1995, p. 62). Portanto, essa sociedade emancipada inteiramente, só vai ser instituída com a revolução social e deverá ser obra dos próprios trabalhadores explorados. No Manifesto Comunista Marx e Engels afirmam: “a emancipação dos operários tem de ser obra da própria classe operária”. Nesse sentido, a perspectiva de Marx sobre emancipação fundamenta-se no devir do gênero humano, por meio da atuação do proletariado como classe protagonista da história. O que propõe Marx é a “revolução radical” para se efetivar a “emancipação humana geral”. Desse modo afirma Marx, que só com a instituição do comunismo existirá a liberdade plena e o pleno desenvolvimento das potencialidades, graças à propriedade social dos meios de produção. “O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada, da auto –alienação e, pois, a verdadeira apropriação da natureza humana através do e para o homem. Ele é, portanto, o retorno do homem a si mesmo como ser social, isto é, realmente humano”. (MARX, 2005, p.21). Pois, a propriedade privada de um priva os demais, explora-os e limita a liberdade. Marx defende a igualdade social enquanto condição essencial para o mais amplo desenvolvimento da liberdade humana. Assim, para Marx, “o comunismo é a criação das condições para a libertação do homem” (apud GRUPPI, 1986, p.36). Portanto, numa fase mais elevada da sociedade comunista, o trabalho deixa de ser somente uma estratégia de sobrevivência, tornando-se essencialmente a primeira necessidade humana, assim como uma fonte de realização, prazer, criação, expressão das suas potencialidades humanas. “O trabalho não é mais servidão, mas sim libertação, potenciação das faculdades humanas”. (GRUPPI, 1986, p.43). Assim, será superado a limitação jurídica da emancipação política da burguesia. “Cada um contribui de acordo com suas capacidades, cada um recebe de acordo com suas necessidades. (MARX, apud GRUPPI, 1986, p.44). No entanto, concordo com Gruppi (1986), quando reflete que o comunismo é uma projeção ideal, uma meta à qual devemos aproximar-nos. Pois, a afirmar que cada ser humano receberá de acordo com suas necessidades, uma vez satisfeita uma necessidade, apareceram outras. Será difícil uma satisfação definitiva de todas as necessidades humanas trata-se, por conseguinte de um processo. Pois, as necessidades humanas são históricas, estão sempre sendo ressignificadas. Diante dessas breves reflexões sobre o que pensa Marx sobre emancipação, apresento algumas reflexões: Quais as contribuições teóricas de Marx para o constituinte emancipação da EP? O que existe de fundamento nas práticas em educação popular, originárias das concepções de emancipação política e emancipação humana apresentadas por Marx?
Emancipação em Adorno A emancipação da humanidade constitui parte integrante de todo o projeto dos pensadores constituintes da Teoria Crítica ou Escola de Frankfurt202. Estes pensadores desenvolveram nos seus estudos profundas críticas e alternativas à sociedade de sua época e, sobretudo diante da não efetivação de uma sociedade emancipada, inclusive no contexto do chamado socialismo real.
202
A Escola de Frankfurt foi criada na Alemanha em 1923. Contudo, não permaneceu na Alemanha, pois foi “transferida” para os Estados Unidos em 1933, onde permaneceu até 1950, retornando ao país de origem. Seus principais representantes foram: Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas. A Escola de Frankfurt constitui um grupo de intelectuais que formularam uma teoria social crítica, de inspiração marxista. Segundo esses teóricos, a relevância de uma teoria depende fundamentalmente de sua relação com a práxis. Nesse caso, a teoria, para ser relevante, precisa estar relacionada com as questões históricas da sua época, vinculada aos setores progressistas desse período.
258 Horkheimer e Adorno em Dialética do Esclarecimento (1985), denunciam o caráter alienado da ciência e técnica positivista, cujo fundamento comum é a razão instrumental. Nesse estudo, os autores buscam compreender como a razão abrangente e humanística, que deveria está a serviço da liberdade e emancipação humana, se atrofiou, resultando na razão instrumental. Os autores fazem a vinculação entre esclarecimento e liberdade, entre razão e emancipação. Eles refletem que a humanidade, em vez de caminhar em direção à condição verdadeiramente humana, está se afundando em uma nova espécie de barbárie. Dessa forma, o mérito da teoria crítica seria precisamente analisar a formação social dessa barbárie, revelando as raízes desse movimento, que não são naturais, nem acidentais e descobrir as condições para interferir no seu rumo, na construção de uma ação contra a barbárie, que representa a educação para a emancipação. (Adorno, 2003, p.12). Para este texto, vou me deter especificamente na obra desenvolvida por Adorno: Educação e emancipação (2003). Nesse trabalho, Adorno escreve sobre um propósito específico dialogar com os educadores Hellmut Becker e Gerd Kadelbach (1969) sobre o processo educacional e a prática emancipatória no contexto da Alemanha, quando ele vai estar presenciando a barbárie dos campos de concentração. Para Adorno, a educação para a emancipação é a educação contra a barbárie que ocorreu em Auschwitz203, não deixando que ele se repita de outra forma, cotidianamente à nossa volta. Segundo estes autores o problema da emancipação não é unicamente alemão, mas internacional. A educação emancipatória nessa perspectiva constitui um instrumento de criar, educar, e de conscientizar pessoas, para no mínimo resistir a esta barbárie, a essa desumanização, a este extermínio coletivo. Qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão” (Adorno, 1995, p. 119) . Identifiquei no pensamento de Adorno um compromisso com os problemas do seu tempo e com a classe social oprimida. Ele problematiza a finalidade da ciência e da tecnologia, onde temos um mundo tão desenvolvido cientificamente, e ao mesmo tempo tanta exclusão e miséria. Portanto, uma educação que conduzirá à emancipação dos homens precisa levar em conta as condições a que se encontram subordinadas a produção e a reprodução da vida humana em relação à sociedade e à natureza. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto... A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades. (ADORNO, 2003, P. 117). No diálogo com Adorno, Becker (2003) chama atenção para o conceito de “homem emancipado”, pois “é preciso tomar cuidado para não convertê-lo em um ideal orientador”. Por outro lado, Adorno reflete que a idéia da emancipação humana é ainda abstrata, além de encontrar-se relacionada a uma dialética. Assim, as questões abordadas pelos autores pertencem em seu conjunto a uma prática que pretende gerar emancipação, não a própria emancipação por si só. Conforme afirma Becker, é fundamental esclarecer com muita precisão as limitações e debilidades do conceito de emancipação no âmbito das sociedades democráticas. Marx já questionava a perspectiva da emancipação política no século XIX. Nesse aspecto, Adorno destaca a questão da “própria organização do mundo em que vivemos e a ideologia dominante”, quando se trata da efetivação de um projeto de emancipação num contexto capitalista. Pois, “Seria efetivamente idealista o sentido ideológico se quiséssemos combater o conceito de emancipação sem levar em conta o peso imensurável do obscurecimento da consciência pelo existente”. (ADORNO, 2003, p.144).
203
Auschwitz foi um dos campo de concentração crido pelos nazistas em 1940, durante a 2ª Guerra Mundial e representou um dos maiores genocídios contra judeus, ciganos e outros grupos perseguidos pelos nazistas.
259 Nessa perspectiva, considero pertinente as reflexões de Kant: “vivemos atualmente em uma época esclarecida?...Não, mas certamente em uma época de esclarecimento”.(apud ADORNO, 2003, P. 181). Adorno comenta a concepção de emancipação constituída por Kant “como uma categoria dinâmica, como um vir-a-ser e não um ser”. Portanto, o termo emancipação, não deve ser utilizado apenas de forma retórica, vazio como o discurso da maioria dos políticos. Adorno aponta a necessidade de enxergar efetivamente os grandes desafios e dilemas que se opõem à emancipação no mundo atual. Portanto, a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência...Assim, tenta-se simplesmente começar despertando a consciência quanto a que os homens são enganados de modo permanente, pois hoje em dia o mecanismo da ausência de emancipação é o mundus vult decipi em âmbito planetário, de que o mundo quer ser enganado. (ADORNO, 2003, p. 183). Nessa perspectiva, Adorno identifica os limites da educação enquanto possibilidade de emancipação humana. Para o autor, a sociedade como ela está fundada, cultiva o homem não-emancipado. Portanto, “qualquer experimento de conduzir a sociedade à emancipação é reprimida com força, que buscarão demonstrar que, precisamente o que desejamos encontra-se de há muito superado ou então está desatualizado ou é utópico”. (ADORNO, 2003, p.185). Nesse sentido, acho pertinente destacar a persistência desse autor em defender a necessidade de radicalmente adentramos no momento da negatividade dialética, a fim de conseguir aprofundar a crítica a seu extremo para, quiçá sair dessa rua de mão única. Não ingenuamente, esperando como os discursos oficiais que a grande transformação se dará a partir da escola, mas reafirmando o seu papel importante nesse processo – que caminha em conjunto com a emancipação de toda a sociedade dessa situação “escravizadora” que nos submete o capitalismo...Num momento em que os educadores críticos estão desmotivados pela situação imposta pelo capitalismo tardio, ele nos propõe um caminho de resistência e de utopia (ainda que estejamos numa época em que esta palavra esteja fora de moda). (RONDON, 2001, p. 222). Nessa perspectiva, Adorno propõe uma educação para a emancipação, que representa uma “educação que possibilite ao homem elevar-se à maioridade, como afirmava Kant, ou emancipar-se da exploração do trabalho alienado, como afirmava Marx”. (RONDON, 2001, p.219). Becker (2003, p.180), defende a importância de “traduzir a possibilidade de emancipação em situações formativas concretas”. Embora tenha observado no pensamento de Adorno um grande pessimismo, identifico também uma grande esperança. Para compreender o que representa esta educação contra a barbárie e pela emancipação, acho pertinente apresentar os conceitos de Adorno sobre barbárie e educação: Entendo barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de toda esta civilização venha a explodir, aliás, uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade. (ADORNO, 2003, p. 155). (Grifos meus) (educação) Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior, mas também não a mera transmissão de conhecimentos cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua idéia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada
260 enquanto uma sociedade de quem é emancipado. (Adorno, 2003, p.142). (Grifos meus) Adorno e Becker (2003), dialogando sobre o lugar do conceito de emancipação na educação, afirmam que no espaço de emancipação geral, nos deparamos com um conceito fundamentado muitas vezes na própria sabotagem desse conceito. A sociedade atual dita democrática, não só de forma implícita, mas explicitamente na maioria das vezes se coloca contra os pressupostos de uma democracia efetiva. Portanto, Adorno reconhece toda a complexidade da sociedade industrial, os dilemas, o autoritarismo, ele vai inclusive questionar com Beckher o modelo de socialismo da Rússia, que não vai significar um instrumento de emancipação humana. Nesse sentido, estão as colocações de Becker (2003, p.175): Estive durante algumas semanas visitando escolas da União Soviética. Foi muito interessante ver como num país que há muito tempo realizou a transformação das relações de produção mudou extraordinariamente pouco em termos de não educar as crianças para a emancipação e que nessas escolas persista dominando um estilo totalmente autoritário de educar. É efetivamente muito interessante este fenômeno da continuidade mundial do domínio da educação não-emancipadora, embora a época do esclarecimento já vigore há tempos, e embora certamente não apenas em Kant, mas também em Karl Marx haja muitas coisas que se opõem a essa educação não-emancipadora.
Conforme penso, a educação para a emancipação não é tão fácil de ser instituída, pois a educação por si só não é fundamentalmente um fator de emancipação. “Assim como o desenvolvimento científico não conduz necessariamente à emancipação, por encontrar-se vinculado a uma determinada formação social, também acontece com o desenvolvimento no plano educacional”.(MAAR, 2003, p.15). Nessa perspectiva, Kant, Adorno, Freire nos convidam a pensar a sociedade e a educação em seu devir. Só assim será viável fixar alternativas históricas tendo como base a emancipação de todos no sentido de se tornarem sujeitos construtores da história, aptos a interromper a barbárie e realizar o projeto emancipatório (MAAR, 2003). Portanto, o cerne deste experimento vive na compreensão do presente como histórico e na recusa de um curso pré-traçado para a história, atribuindo-lhe um sentido emancipatório construído a partir da elaboração de um passado, que parece fixados e determinados apenas como garantia de sua continuidade, cujo curso precisa ser rompido em suas condições sociais e objetivas (MAAR, 2003, p. 13).
Emancipação em Freire Nas obras de Freire: Pedagogia do oprimido, Educação como prática de liberdade, Medo e ousadia, Pedagogia da esperança, Pedagogia da autonomia, não identifiquei um conceito, um aprofundamento sobre o termo emancipação. Encontrei o movimento teóricoprático de Freire contra a opressão, a desumanização e pela libertação humana. Nessa perspectiva, Paulo Freire vai falar de emancipação enquanto processo de libertação, humanização dos seres humanos. Este autor em seus escritos articula debate sobre a libertação humana na história, enquanto a perspectiva de instituição do socialismo. E, ao mesmo tempo, no cotidiano, no aqui-e-agora, nas práticas miúdas que possibilitam aos seres humanos irem exercitando processos vislumbrando a emancipação humana geral. Fico deslumbrada em toda a obra de Freire com a sua posição na sociedade, na educação, na vida, diante do outro, diante dele mesmo. Suas indicações são sempre no sentido de refletir sobre o papel que temos e a responsabilidade de assumi-lo bem, na construção de uma sociedade mais democrática e humana. Paulo Freire tem um papel importante na feitura dos diversos constituintes que compõem o campo de intervenção da educação popular emergente no Brasil e na América Latina desde os anos 60. Portanto, é fundamental refletir as contribuições desse educador
261 brasileiro no debate sobre o projeto de emancipação que permeia as práticas da educação popular. Emancipação na perspectiva de Freire é apropriar-se e experimentar o poder de pronunciar o mundo, a vivência da condição humana de ser protagonista de sua história. Freire nos possibilita um projeto de educação popular que almeja a libertação, humanização e emancipação humana. A pedagogia freireana caminha “em torno de uma ontologia social e histórica. Ontologia que, aceitando ou postulando a natureza humana como necessária e inevitável, não a entende como uma a priori da História. A natureza humana se constitui social e historicamente”. (FREIRE, 2000, p.119). A Emancipação nessa perspectiva consiste num fazer cotidiano e histórico permeado de desafios, sonhos, utopias, resistências e possibilidades. “Vocacionado à Liberdade, o ser humano busca responder através de sua disposição de cavar, sem cessar, espaços de autonomia, em vista de um renovado compromisso com a causa emancipatória, seja no plano pessoal, seja no âmbito coletivo” (CALADO, 2001, p. 55). Freire comenta um trecho de O capital, quando Marx, debatendo sobre o trabalho humano em face do trabalho do outro animal, afirma que nenhuma abelha se compara ao mais “acanhado” mestre-de-obra. Pois, “o ser humano antes mesmo de produzir o objeto tem a capacidade de ideá-lo. Antes de fazer a mesa, o operário a tem desenhada na “cabeça”. (apud FREIRE, 2000, P. 132). Portanto, do mesmo jeito que o operário tem na cabeça o desenho do que vai produzir em sua oficina, nós, mulheres e homens, temos também na cabeça, o desenho do mundo em que gostaríamos de viver. (FREIRE, 2000, p.133). Tudo isso não representa necessariamente a emancipação, mas já nos motiva a caminhar, a lutar diante desse projeto, sonho, utopia de emancipação da humanidade. Observamos uma relação entre o pensamento de Freire com o de Marx, quando estes afirmam reiteradamente, que a libertação (Freire), assim como a emancipação humana (Marx), não será instituída como dádiva das classes que detém o poder, mas como obra dos próprios trabalhadores. “Não pode ser proposta pela classe dominante. Deve ser cumprida por aqueles que sonham com a reinvenção da sociedade, a recriação ou reconstrução da sociedade”. (FREIRE, 2001, p.49). Nessa perspectiva, Freire defende a concepção de libertação que de certa forma afina-se com o conceito de emancipação humana geral apresentada por Marx. Freire defende a realização do projeto político a favor da libertação: Libertação e opressão, porém, não se acham inscritas, uma e outra, na história, como algo inexorável. Da mesma forma a natureza humana, gerando-se na história, não tem inscrita nela o ser mais, a humanização, a não ser como vocação de que o seu contrário é distorção na história... Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação dos indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a transformação da sociedade. (FREIRE, 1997, p. 100).
Freire reconhece, assim como Marx, o progresso da emancipação política. No caso de Freire, a vivencia da cidadania, mas considera que só com a instituição do socialismo é possível a emancipação geral da humanidade. Para Freire(2001), não podemos abandonar o sonho socialista, sobretudo diante da possibilidade de começar de novo, sem mais referência do paradigma do socialismo soviético, e o modelo autoritário do denominado socialismo real. O discurso contra a utopia socialista – o discurso liberal ou neoliberal – necessariamente e obviamente enaltece o avanço do capitalismo. Eu me recuso a pensar que se acabou o sonho socialista porque constato que as condições materiais e sociais que exigiram esse sonho estão aí. Estão aí a miséria, a injustiça e a opressão. E isso o capitalismo não resolve a não ser para uma minoria. Eu acho que nunca, nunca na
262 nossa História, o sonho socialista foi tão visível, tão palpável e tão necessário quanto hoje, embora, talvez, de muito mais difícil concretização. (FREIRE, 2001, p. 209). Freire não abandona o sonho socialista – a utopia do socialismo. Nas suas últimas obras, Pedagogia da esperança e Pedagogia da autonomia, Freire é claro quando afirma a sua defesa intransigente dos interesses humanos de dignidade, felicidade, fraternidade e amorosidade: “radicalmente sonho e luto por uma outra sociedade”. No entanto, Freire reconhece os limites da efetivação de uma sociedade emancipada no contexto do capitalismo. Por isso Freire reflete o processo de libertação(emancipação) como projeto de sociedade, como possibilidade, um devenir, que inicia-se em casa, nas relações entre pais, mães, filhos, filhas, na escola, nas relações de trabalho... Não importa para Freire o seu grau, o que importa é o seu caráter revolucionário. A educação, tanto a que ocorre nos espaços formais quanto nos informais, constitui um instrumento que possibilita aos seres humanos ir exercitando esse processo de emancipação em nível individual e coletivo. Deste modo, a libertação em Freire contempla a vivência das necessidades matérias e subjetivas, inclui a festa, a celebração, a alegria de viver: Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, tem que ser abrangente, totalizante; ela tem que ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver. E não apenas com a rigorosidade da análise de como a sociedade se move, se mexe, caminha, mas ela tem a ver também com a festa que é vida mesma. Mas é preciso fazer isso de forma crítica e não de forma ingênua. Nem aceitar o todo-poderosismo ingênuo de uma educação que faz tudo, nem aceitar a negação da educação como algo que nada faz, mas assumir a educação nas suas limitações e, portanto, fazer o que é possível, historicamente, ser feito com e através, também, da educação. (FREIRE, 2001, p. 102). O processo de libertação humana no pensamento de Freire contempla o processo de humanização tanto do oprimido quanto do opressor. Destarte, essa luta unicamente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem reconstruir sua humanidade, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade de ambos. “E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertarse a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos”.(FREIRE, 1991, p.30). Deste modo, essa libertação não acontecerá por eventualidade, todavia pela práxis de sua busca, pelo conhecimento e reconhecimento imprescindível da luta por ela. “A libertação, por isto, é um parto... O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos”. Portanto, A pedagogia do oprimido (1991), constitui a pedagogia dos homens e das mulheres na práxis204 pela emancipação humana. A origem da pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, está estabelecida em dois momentos distintos: O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação. (FREIRE, 1991, p. 41). 204
De acordo com o pensamento Freire (1991), a práxis é a reflexão e a ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo.
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De tal modo que a superação dessa contradição é um processo que traz ao mundo novos seres, não mais opressores, nem oprimido, mas homem libertando-se, emancipando-se. No entanto, essa libertação, ou seja, emancipação, não pode ocorrer em termos genuinamente idealistas. (FREIRE, 1991, p.35). “Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores” (FREIRE, 1991, p.32). A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (FREIRE, 1987, p.30). Nesse sentido, Freire argumenta contra a concepção bancária de educação. Educação que não promove a emancipação, ao contrário, reduz o ser humano ao “autômato”, que constitui a negação de sua ontológica vocação de ser mais, numa concepção de homem como ente “vazio” a quem o mundo “encha” de conteúdos, constituído numa consciência particularizada, mecanicistamente compartimentada: Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio” a “educação” “bancária” mantém e estimula a contradição. (FREIRE, 1987, p. 59). Freire desenvolve uma concepção dialógica da educação fundamentada numa compreensão problematizadora do ato de conhecer, na consciência de classe oprimida e na intencionalidade de mudar o mundo. Propõe uma educação que, eliminada a roupagem alienada e alienante, consista em uma força de transformação, emancipação e libertação humana. Conseqüentemente, se não é autolibertação, pois ninguém se liberta sozinho, por outro lado, não é libertação de uns feita por outros. Nesse processo de libertação, Freire afirma que ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens e as mulheres se libertam em comunhão mediatizados pelo mundo. Portanto, Freire não acredita na auto-emancipação. Para ele a emancipação (libertação) é um ato social. Veja o diálogo de Freire (2001, p.135) com o educador norte-americano Ira Shor sobre esse assunto: Não existe uma auto-emancipação pessoal? (pergunta Ira)... Não, não, não. Mesmo quando você se sente, individualmente, mais livre, se esse sentimento não é um sentimento social, se você não é capaz de usar sua liberdade recente para ajudar os outros a se libertarem através da transformação global da sociedade, então você só está exercitando uma atitude individualista no sentido do empowerment ou da liberdade (responde Freire). Portanto, na perspectiva da educação libertadora proposta por Freire, a ação educativa tem limites. Representa um instrumento de contestação do status quo, principalmente no que diz
264 respeito às questões da dominação de classe, sexo ou raça, contribuindo para a compreensão e transformação da realidade. Todavia, a libertação humana implica um sentido mais profundo, uma transformação radical da sociedade que aí está. Nesse sentido, Freire(1997) afirma que a finalidade da educação constitui um ato de libertação humana. Destarte, intercedidos por uma leitura crítica do mundo, mulheres e homens são convocados ao ato de instituir uma nova educação, sociedade, humanidade. Assim sendo, a emancipação é uma conquista, e não uma concessão. Portanto, demanda uma luta ininterrupta. Nessa perspectiva, Freire não defende uma libertação enquanto ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Em Freire, a liberdade é condição imprescindível ao movimento de busca pela emancipação em que estão inscritos os homens e as mulheres como seres inconclusos. Freire, Adorno, Kant falam, portanto da emancipação como um devenir: O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desumanização. O sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz. (FREIRE, 1997, p. 99).
Emancipação em Boaventura dos Santos Boaventura dos Santos aporta uma nova concepção de emancipação. Esta perspectiva nasce do aprofundando da teoria democrática, que contempla uma nova equação entre subjetividade, cidadania e emancipação. Segundo este pensador, no contexto atual, o socialismo encontra-se liberto da caricatura grotesca do “socialismo real” e torna-se, portanto disponível para voltar a ser a utopia de uma sociedade mais justa e de uma vida melhor para todos. Santos coordenou um projeto de pesquisa de âmbito internacional intitulado: Reinventar a emancipação social: Para novos manifestos. O ponto central desse projeto é que a atuação e a concepção que estearam e deram credibilidade aos ideais modernos de emancipação social encontra-se no momento atual fortemente questionados pela globalização. Este fenômeno embora não sendo novo, tem adquirido nas duas últimas décadas uma amplitude tal que tem redefinido os contextos, as configurações, os objetivos, os meios e as subjetividades das lutas sociais e políticas. A idéia, portanto desse projeto é que esta forma de globalização, embora hegemônica, não é a única e de fato tem sido progressivamente confrontada por uma outra forma de globalização, uma globalização que o autor chama de “alternativa”, “contrahegemônica”. Santos (2003, p.14), vai teorizar sobre a globalização numa perspectiva emancipatória, instituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que, através de vínculos, redes e alianças em nível local, nacional e internacional, lutam contra a globalização neoliberal mobilizados pelo desejo de um mundo mais justo e pacífico que acreditam possível e a que sentem ter direito. A emancipação não é mais do que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidades das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social. (Santos, 2003, p.277). Conforme o pensamento de Santos(2003, p.35), é nesta esperança de globalização alternativa e no seu embate com a globalização neoliberal que estão sendo pensados e instituídos os novos caminhos da emancipação social. Desse modo, esta visão alternativa de globalização defendida por Santos, vai se fundamentar no marxismo perante a idéia da
265 importância das articulações internacionais das lutas no contexto do capitalismo global. Essa perspectiva de emancipação emergiu no I Fórum Social Mundial em Porto Alegre e se fortalece até os dias atuais. Boaventura vai situar a emancipação humana na perspectiva de que Um Outro Mundo é Possível, a partir da construção coletiva dos vários movimentos e setores populares que se organizam e lutam por uma vida melhor. Portanto, o conceito de emancipação (a globalização contra-hegemônica) proposta por Santos, é baseada na construção de cidadanias emancipatórias que articulam o local e o global por intermédio de redes e de coligações mundiais, a partir de um conjunto de lutas, de diferentes povos, culturas, formas: Urge identificar caminhos, sementes, formas diversas e alternativas de emancipar os sujeitos e de os capacitar na luta contra a exclusão. Acima de tudo, é importante perceber que não existe uma, mas muitas formas de dominação e emancipação. Assim como a hegemonia tem muitos rostos, também a resistência se desdobra em múltiplas agências e estruturas. (CRISTINA SANTOS, 2003, p.364). Portanto, segundo Santos, o êxito dessas lutas emancipatórias, vai demandar um conjunto de alianças que seus protagonistas poderão estabelecer em redes. “No início do século XXI, essas alianças têm de percorrer uma multiplicidade de escalas locais, nacionais e globais e tem de abranger movimentos e lutas contra diferentes formas de opressão”. (SANTOS, NUNES, 2003, p.64). Portanto, esses movimentos têm sido travados em um contexto histórico, onde se observa a emergência de diferentes lutas e atores coletivos distintos: as mulheres, os ambientalistas, os movimentos anti-racistas, os indígenas. Deixou de ser possível atribuir a um ator coletivo por excelência, como o proletariado global, o papel principal das lutas dirigidas contra formas diferentes de opressão e de dominação, envolvendo a emergência de uma correspondente diversidade de sujeitos coletivos. Por outro lado, torna-se necessário reconceitualizar a escala espacial dessas lutas, que são travadas nos espaços nacionais, supranacionais e subnacioanis em que opera o capitalismo. (SANTOS, NUNES, 2003, p.35). Portanto, Santos vai identificar a necessidade de instituir lutas multiculturais emancipatórias, do reconhecimento da diferença, contra a uniformização e a padronização. Este pensador vai trabalhar o conceito de emancipação no âmbito da problemática de gênero, etnia, raça, ecologia. Desse modo, a globalização hegemônica, ao mesmo tempo em que sucinta novas formas de racismo e exclusão também tem criado condições para a emergência do multiculturalismo. No entanto, alerta o autor, este pode ser tanto conservador quanto emancipatório. Santos defende o multiculturalismo emancipatório, que se baseia no reconhecimento da diferença e no direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além da diferença de vários tipos. No entanto, a igualdade ou a diferença, por si sós, não são aspectos suficientes para uma política emancipatória. Portanto, o debate sobre os direitos humanos e sua reinvenção como direitos multiculturais, bem como a luta das mulheres, dos povos indígenas, mostram que a afirmação da igualdade com base em pressupostos universalistas, bem como os que determinam as concepções ocidentais, individualistas, dos direitos humanos, leva muitas vezes à descaracterização e negação das identidades, das culturas e das experiências históricas diferenciadas. (SANTOS, 2003). Nesse contexto, as políticas emancipatórias e a invenção de novas cidadanias colocam-se no terreno do conflito entre igualdade e diferença, entre o requisito do reconhecimento e o imperativo da nova distribuição da justiça social. No entanto, “a afirmação da diferença por si só pode servir de justificativa para a discriminação, exclusão ou interiorização, em nome dos direitos coletivos e de especificidades culturais”. Nesse aspecto, Santos (2003, p.64), propõem que para abolir este dilema se faz indispensável defender a
266 igualdade sempre que a diferença originar inferioridade, e defender a diferença sempre que a igualdade referir-se à descaracterização. Assim, a partir das várias reflexões conceituais aqui tecidas, defino a emancipação humana enquanto um processo em construção permanente, que tem como base a instituição de uma ética humanizadora, comum a todas as pessoas, cuja proposição principal constitui o acesso e o usufruto de todos os seres a uma vida digna, plena, livre e feliz. Nesse sentido, estou tentando fazer uma reflexão da herança teórica de Marx, Adorno, Freire e Boaventura sobre o conceito de emancipação à luz de um contexto profundamente diferente da sua época, caracterizado atualmente por uma sociedade globalizada. Por conseguinte, discutir a constituinte emancipação na EP necessariamente nos remete a uma problematização desse debate, tentando compreender e transcender os desafios postos pelo capitalismo no contexto atual, assim como visualizar proposições concretas de superação desses limites.
Educação popular e emancipação A história da educação “popular” emerge da necessidade de contestar o discurso formal da igualdade e do Estado de direito, instituído desde a Revolução Francesa (emancipação política), e tem sido desenvolvida na América Latina enquanto uma educação aberta aos camponeses, indígenas, mulheres, trabalhadores rurais, moradores de favelas, populações que historicamente têm sido excluídas do usufruto dos bens materiais e culturais produzidos socialmente. Nesse sentido, é uma educação que defende a transformação geral da sociedade (emancipação humana). Tem como metodologia o desenvolvimento de uma consciência crítica que recusa o autoritarismo da educação formal, almejando a superação da dicotomia entre sujeito e objeto, teoria-prática, objetividade-subjetividade no processo educativo social. Desse modo, a educação popular tem se confrontado com as práticas que propagam uma falsa neutralidade política e científica, a partir da afirmação de concepções e práticas emancipatórias da humanidade. Pois, “se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante”. O que Freire quer dizer “é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade, nem tampouco é a perpetuação do „status quo‟”.(FREIRE, 1998, p.127). Portanto, a educação popular submerge da compreensão de que a educação é um processo permanente de afirmação da condição do ser de sujeito histórico. Sua proposição desde seus primórdios nos anos 60 constitui estimular processos que promovam a libertação, emancipação, autonomia individual e coletiva. Essa perspectiva de educação se fundamenta no pensamento marxista, na concepção de Homem construtor da sua história e da sua cultura, enquanto ser da práxis. De acordo com Melo Neto, a educação caracterizada popular está relacionada: as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação... Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. (MELO NETO, 2003, p.52). Na perspectiva desse autor, o conceito de popular refere-se a uma ação que contemple os seguintes elementos que se relacionam entre si, no entanto diferenciando-se: tem uma origem nas maiorias (povo), ou a ele esteja encaminhado, tem o político como componente de promoção de hegemonia dos setores majoritários da sociedade, no aspecto metodológico, vislumbra uma prática para o exercício da cidadania crítica e geradora de ação. No tocante a dimensão ética e utópica, fundada em princípios de solidariedade, tolerância e justiça pela busca incessante de alternativas de vida e de felicidade. (MELO NETO, 2003).
267 Paulo Freire nas suas diversas obras expressa a sua compreensão de educação popular vinculada às ações com os oprimidos. Freire propõe uma metodologia que facilite o processo de emancipação do indivíduo e da sociedade, na esperança de superação da opressão, exploração e desigualdade social. Nessa perspectiva, Freire coloca que uma das primordiais tarefas da educação crítica radical libertadora (popular) “é trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta”. Assim, a educação popular defendida por Freire é aquela que persegue o sonho da construção de uma nova sociedade, reinventando-se sempre com uma nova compreensão do poder, passando por uma nova compreensão da produção, uma sociedade em que a gente tenha gosto de viver, de sonhar, de namorar, de amar, de querer bem. Esta tem que ser uma educação corajosa, curiosa, despertadora da curiosidade, mantenedora da curiosidade. (FREIRE, 2001, p.101). Freire indaga a favor de quem e contra quem são desenvolvidas as práticas de libertação e emancipação humana no processo educativo. Como é que a prática em educação se articula a outras ações vislumbrando a construção de uma nova sociedade? Nesse aspecto, Freire está atento para os limites da educação como prática de liberdade. Para ele, a educação é modelada pela sociedade segundo os interesses dos que detêm o poder, e sozinha não vai instituir uma sociedade emancipada. Portanto, Freire enfatiza que embora a educação não seja a “alavanca da transformação social", a transformação plena da sociedade, não obstante, é um processo educacional. Da mesma forma compreendo que o conceito de emancipação vai para além do conceito de transformação social, pois posso fazer uma transformação social sem necessariamente haver a emancipação humana. A exemplo tem-se a experiência da Rússia socialista, da revolução cubana, do socialismo real. Sei que o ensino não é a alavanca para a mudança ou a transformação da sociedade, mas sei que a transformação social é feita de muitas tarefas pequenas e grandes, grandiosas e humildes! Estou incumbido de uma dessas tarefas. Sou um humilde agente da tarefa global de transformação. Muito bem, descubro isso, proclamo isso, verbalizo minha opção. (FREIRE, 2001, p.60). No contexto atual, o desafio da educação popular é estimular e possibilitar, nas circunstâncias mais diferentes, a capacidade de intervenção e transformação do mundo na perspectiva da emancipação humana contemplando a diversidade cultural. Nesse sentido, Freire (2000), destaca a experiência tanto dos Quilombos quanto dos camponeses das Ligas e os semterra de hoje, o protagonismo histórico desses sujeitos sociais: anteontem, ontem e agora sonharam sonham o mesmo sonho, acreditaram e acreditam na imperiosa necessidade da luta na feitura da história como “façanha da liberdade”... Se os sem-terra tivessem acreditado na “morte da história”, da utopia, do sonho; no desaparecimento das classes sociais, na ineficácia dos testemunhos de amor à liberdade; se tivessem acreditado que a crítica ao fatalismo neoliberal é a expressão de um “neobobismo” que nada constrói; se tivessem acreditado na despolitização da política, embutida nos discursos que falam de que o que vale hoje é “pouca conversa, menos política e só resultados”, se, acreditando nos discursos oficiais, tivessem desistido das ocupações e voltado para suas casas, mas para a negação de si mesmos, mais uma vez a reforma agrária seria arquivada. (FREIRE, 2000, p. 61).
268 Dessa forma, Freire desenvolve uma discussão centrada na educação libertadora enquanto educação democrática, desveladora, desafiadora, um ato crítico do conhecimento, da leitura da realidade, da compreensão de como funciona a sociedade, a escola, como também, os processos educativos que se dão no interior dos movimentos sociais e das práticas em educação popular. Em uma de suas últimas obras: Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (1998), Freire apresenta diversos saberes imprescindíveis à ação educativa. Destaco dois saberes abordados por Freire fundamentais na constituição de uma educação popular emancipatória: “é o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo” (FREIRE, 1998, p. 85). Outro saber é o de que, “como experiência designadamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo”. (FREIRE, 1998, p.110). Por fim, tem-se na obra de Freire uma educação a favor da emancipação humana, uma educação a favor da decência contra o despudor, da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Defende a luta contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Se coloca contra a ordem capitalista neoliberal vigente que concebeu este contra-senso: “a miséria na fartura”. Se coloca contra o desengano que consome e imobiliza a humanidade. (FREIRE, 1998, p. 116). O avanço da ciência e/ou da tecnologia, pode legitimar uma “ordem” desordeira em que só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias em dificuldades até para sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que sua fome é uma fatalidade do fim do século. Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da “justa ira” dos traídos e dos enganados...Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à “fereza” da ética do mercado.(FREIRE, 1998, p. 114,145). A partir dessas reflexões, identifico vários significados, concepções do conceito de educação popular e interfaces com o conceito de emancipação e de outros constituintes que compõem a gênese teórico-metodológica da educação popular: ação transformadora da sociedade, vínculo com a classe trabalhadora, libertação dos oprimidos, autonomia, cidadania ativa, protagonismo da classe popular. Portanto, a maioria desses conceitos se inscreve numa perspectiva de mudança da sociedade, de instituir uma configuração humano-social justa e fraterna. Assim, diante dessas reflexões sobre as concepções de educação popular, observa-se que os projetos em educação popular na atualidade precisam buscar uma saída teórico-prática que responda aos desafios e as possibilidades postas pelas novas configurações humano-sociais. Precisam tornar-se projetos atrelados à busca de realizações de novas relações sociais, pautadas em outros fundamentos. Podem estar voltadas à construção de um novo estilo de vida...Elas parecem ter significado à medida que sejam conduzidas a processos que mantenham o humano como centro dessas realizações e o trabalho impulsionador de sua emancipação, assegurando a existência da própria vida humana resultante de sua intervenção na natureza (MELO NETO, 2004, p.85). Afinal, a EP essencialmente ela tem uma marca, de perspectiva de classe social oprimida, excluída. Em alguns momentos de sua história ela se sustenta na perceptiva da
269 transformação radical de que Marx vai discorrer. Transformar a sociedade capitalista pela raiz, a partir da instituição da sociedade socialista. Noutros momentos, tem-se a perspectiva da sociedade democrática, a partir das mudanças sociais, das reformas, a emancipação política da que trata Marx. Todavia, tem sido o conceito de emancipação humana teorizado por Marx que tem nutrido a maioria dos projetos, das práticas, e dos sonhos no âmbito da educação popular desde os seus primórdios nos anos 60 até os dias atuais.
Vislumbrando a emancipação humana na educação popular Após a feitura desse texto, muitas reflexões permanecem em aberto: Emancipação em que nível? Como conduzir uma prática emancipatória em um contexto cada vez mais opressor, individualista, cujas leis maiores estão sendo as do mercado, a da luta pela sobrevivência imediata? Como conduzir um projeto de “emancipação humana geral” em um globo cada vez mais apartado por políticas neoliberais, excludentes e discriminatórias? Nesse contexto de grandes questionamentos postos pelo capitalismo atual, pergunto: para onde caminha ou poderá caminhar a humanidade?. No contexto atual é visível os limites impostos pelo projeto de globalização hegemônica. Este projeto institui um discurso fatalista, conservador e alienatório, condições inclusive necessárias para sua efetivação. Nessa perspectiva, estou de acordo com Freire (2000), quando declara que o discurso da impossibilidade de mudar o mundo é o discurso de quem, por diferentes razões, aceitou a acomodação, até mesmo por lucrar com ela. Freire sublinha a necessidade do aprendizado constante da “leitura do mundo”, exigindo fundamentalmente a compreensão crítica da realidade, que envolve, de um lado, sua denúncia, de outro, o anúncio do que ainda existe, mas poderá existir: a emancipação humana. No pensar freireano a leitura do mundo é um que-fazer pedagógico-político, ou seja, é uma ação política que envolve a organização dos grupos e dos setores populares para intervir na reinvenção da sociedade. (FREIRE, 2000). Compreendendo, obviamente, que ninguém é sujeito da emancipação de ninguém. A emancipação vai se dando no cotidiano e na história. Parafraseando Paulo Freire, os homens e as mulheres se educam e se emancipam em comunhão. Portanto, a história da humanidade é contada a partir da peleja humana em busca da sua liberdade, emancipação. Na perspectiva da emancipação política, verificamos que esta representou para a humanidade apenas a legalização e o acesso apenas para uma minoria de direitos no campo jurídico. Tivemos a esperança da emancipação humana no leste europeu, contudo, ela tentou construir uma liberdade apenas na perspectiva das condições matérias, mas a liberdade humana foi cerceada. Atualmente, o desafio permanece vigente, instituir uma emancipação humana que contemple tanto os aspectos matérias, quanto os subjetivos. Não podemos pensar em emancipação apenas na perspectiva social, ou econômica, ou política, ou cultural, mas geral que possibilite ao ser humano expressar-se ao máximo na sua capacidade, criatividade, potencialidade, realização e felicidade. É nessa perspectiva que a pedagogia da autonomia defendida por Freire está centrada em experiências estimuladoras da coragem, da responsabilidade, uma educação como prática de liberdade. (FREIRE, 1998, p. 121). Nessa esperança, o processo de emancipação no âmbito da educação popular vislumbra instaurar um processo permanente de transformação social, através de uma prática que possibilite aos sujeitos sociais a vivência da autonomia, participação na tomada de decisões. Assim sendo, debruçar-se sobre os processos emancipatório no âmbito da educação popular é também falar de autonomia, liberdade, resistência, e conseqüentemente da luta dos setores populares pelo acesso e usufruto de um conjunto de bens materiais e simbólicos, fruto do seu trabalho e do trabalho da humanidade. É trazer à tona as diversas formas de lutas, resistências, esperanças e manifestações de sujeitos sociais, nos vários lugares, sentidos, formas, realizados pelos vários povos, culturas, utopias em defesa de uma vida mais digna, humana e justa que vem sendo construída historicamente pela humanidade. Afinal, o processo de emancipação humana através das práticas em educação popular constitui uma utopia, ou pode vir a ser uma realidade? No meu entender, no âmbito da
270 sociedade de classes, as práticas em educação popular, na perspectiva emancipatória é sempre limitada, incompleta, um devir, um processo em construção, pois os obstáculos estruturais emperram sua realização efetiva. Desse modo, a consolidação da emancipação geral da humanidade passa pelas transformações profundas no âmbito das relações sociais de produção. No entanto, mesmo diante de todos esses limites, há várias práticas em EP que estão ocorrendo a partir de ações concretas, embora restritas, conduzidas por sujeitos coletivos, que almejam a humanização, a liberdade, a dignidade, a felicidade, enfim a emancipação humana. Estas práticas em educação popular “emancipatória”, vêm sendo desenvolvidas pelos diversos setores da sociedade, no âmbito das Organizações Governamentais, das Organizações NãoGovernamentais e dos Movimentos Populares, a partir de uma outra lógica de sociedade munida de valores, tais como a cooperação, a fraternidade, a solidariedade. Desse modo, acredito inspirada em Freire (2000), que a educação que tem como princípio a emancipação humana tem sentido porque o mundo não é fundamentalmente isto ou aquilo, “porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo”. A educação para a emancipação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem e que podem saber e fazer. A educação para a emancipação “tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem na haveria porque falar em educação”. (FREIRE, 2000, p. 40): A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo, mas com o mundo e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele se adaptar. É neste sentido que mulheres e homens interferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele. É por isso que não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos fazem e que nos torna, portanto históricos. Portanto, diante de tantas reflexões sobre a emancipação humana e a educação popular, encontro esperança e luta nas colocações de Freire: pergunta ele: a emancipação humana “é um sonho possível ou não? Se é menos possível, trata-se, para nós, de saber como torná-lo mais possível” (responde ele). Acredito que o legado histórico das lutas sociais pela emancipação humana é este: que aspectos da emancipação política podemos considerar um avanço enquanto mecanismo de fortalecimento do projeto de emancipação maior da humanidade? E continuar caminhando rumo a emancipação humana geral...Pois muitos caminhos já foram feitos e muitos ainda serão criados, percorridos... Referências ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. A Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. 3. ed. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. BOTTOMORE, Tom. (ed). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. D'ACRI ,Vanda. Trabalho e saúde na indústria têxtil de amianto. S Paulo Perspectiva. vol.17 no.2 S Paulo . ISSN 0102-8839 CALADO, Alder Júlio. Paulo Freire: sua visão de mundo, de homem e de sociedade. IN: LIMA, Maria Nayde dos Santos, ROSAS, Argentina Rosas (Orgs.) Paulo Freire – Quando as Idéias e os Afetos se Cruzam. Recife, Ed. Universitária UFPE/ Prefeitura da Cidade de Recife, 2001. FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989. _______. Pedagogia do oprimido. 19ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. _______.Pedagogia da esperança. Um reencontro com a pedagogia do oprimido. 1997, Paz e Terra. São Paulo.
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272
EDUCAÇÃO POPULAR E EMANCIPAÇÃO HUMANA
Ronney da Silva Feitoza
FAZ ESCURO MAS EU CANTO Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar. Já é madrugada, vem o sol, quero alegria, que é para esquecer o que eu sofria. Quem sofre fica acordado defendendo o coração. Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia. (“Faz escuro, mas eu canto”. Thiago de Mello, 1966)
Introdução Discutir a emancipação humana, como um dos constituintes da Educação Popular (EP), requer explicitar as idéias em torno do projeto de libertação humana, que se inscreve na perspectiva do materialismo histórico e dialético, sendo a liberdade uma luta pela humanização e hominização e contra a coisificação. Investidas teóricas deste porte se apresentam como necessárias, marcadamente na contemporaneidade (ou “pós-modernidade”), que, como expressão filosófica e estética do neoliberalismo, do culto ao individualismo, da apologia pós-estruturalista, vêm buscando desqualificar todas as perspectivas coletivas, através do argumento do subjetivismo e as novas demandas sociais, atingindo frontalmente os conceitos “clássicos” , como o da emancipação, pela opção reformista como nova síntese histórica. O conceito deriva do latim emancipare, relacionando-se ao processo, individual e coletivo, de considerar pessoas ou grupos independentes e representa o processo histórico, ideológico, educativo e formativo de emancipar indivíduos, grupos sociais e países da tutela política, econômica, cultural ou ideológica (PIZZI, 2005). É retomado pelo ideário iluminista, assentado nas relações com a liberdade e igualdade, tendo, contudo suas raízes na Roma republicana, quando começam a fazer sentido as reflexões sobre as sociedades democráticas. De Roma, portanto, herda o viés legal e do Iluminismo, as inspirações do ideário de justiça, liberdade e igualdade. Emancipar-se só é possível, no contexto de sociedades democráticas, por exigir um exercício anterior de noções como liberdade, igualdade, autonomia e desalienação, pois para exercer a emancipação, é necessário viver em sociedade, usufruindo direitos civis, políticos e sociais, nos âmbitos individual e coletivo, o que se desdobra em questões morais e éticas. Para Kant (apud RODHEN, 2004), a atitude crítica é o eixo definidor de uma pessoa livre e emancipada, com posições independentes e exame crítico apurado. Os humanos
273 precisariam alcançar a maioridade e a autonomia, processualmente, já que Kant atribuía este sentido ao esclarecimento, o que só poderia ocorrer em situação de liberdade, propiciada pelo uso da razão e no contexto iluminista. Ainda assim, Kant não definiu o momento do Iluminismo como o final do caminho, reconhecendo que a exacerbação do uso da ciência e da razão, poderiam conduzir à não liberdade. A liberdade estaria conquistada, à medida que fossem respeitadas as leis estabelecidas pela razão, através do livre arbítrio humano, onde liberdade e emancipação significariam agir em conformidade com a lei moral que nos outorgamos a nós mesmos. Liberdade, do latim libertas, tem correlações políticas, éticas e filosóficas. Politicamente, relaciona-se ao exercício da cidadania, leis e direitos. Do ponto de vista ético, significa independência e autodeterminação. O ser humano discute se é possível ser livre, independente de determinações externas, já que há condicionamentos biológicos, psicológicos e sociais que extrapolam o viés individual. Para os neoliberais, a liberdade também se limita aos vínculos individuais, contudo, cada um seria responsável para conseguir estas condições de ser livre. Há os sentidos valorativo e moral, que também agregam definições e intenções, próximas ao que se consensuou como justiça, ética e desenvolvimento individuais. Este aspecto deriva do pensamento de Platão, dos estoicistas, inscrevendo-se na tradição cristã, pois se articula a idéia de liberdade vinculada à fé e moral, sendo a liberdade o bem supremo. É importante, ainda, articular a idéia de emancipação e educação com a Revolução Francesa e o Iluminismo, porque neste momento a educação adquiriu papel social central, como mediadora dos processos sociais plurais e opostos, acentuando o aspecto da ideologia. Contudo, o conceito seguiu herdeiro de suas fontes (a revolução francesa e o idealismo alemão), mais do que como uma possibilidade concreta de realização dos sujeitos, até a retomada por Marx, buscando o rompimento de sua herança (o Direito) e sua inscrição na história dos sujeitos concretos. Aproximações com a Paidéia Grega Jaeger (1989) destaca que, na Antiguidade Clássica, a preocupação central dos gregos estava posta no ideário educativo e na política, sendo, portanto: digno de nota que o ideal de liberdade, que impera como nenhum outro da época da Revolução Francesa para cá, não desempenhe nenhum papel importante no período clássico do helenismo (...) É a dignidade, em sentido político e jurídico, que fundamentalmente aspira a democracia grega (p. 380). Isto se explica porque ser livre era apenas o contrário de ser escravo, o sentido filosófico e político que temos hoje, advém do moderno conceito de liberdade, no século XIX. Assim, liberdade era “dádiva” dos livres, para comprar, exprimir idéias e viver naquele contexto. A discussão deste conceito em Sócrates tem, porém, a relevância de por em debate a idéia de emancipação, mas limita-se ao interior humano (a natureza humana). Pensar em emancipação na Grécia helenística, nos remete ao viés individual, deste domínio do humano sobre a sua natureza. O conceito mais próximo à emancipação traduz-se em autonomia, vinculada a independência da polis sobre os demais estados, sem o vínculo ético que atribuímos hoje. Ser autônomo, para Sócrates (apud JAEGER, 1989), significava a independência do Homem em relação à parte animal da sua natureza. Na “República” de Platão, em sua alusão ao Estado ideal, há referências ao homem e seu valor interior e contradições na relação com o Estado real. O homem justo, que realiza seu sentido na Terra, é um ser em contradição com o “Estado dentro dele próprio”. Ser liberto é conhecer a obra divina, o que fundamenta o ideário cristão, até os nossos dias. Os
274 debates sobre a democracia e a Paidéia grega são então, os legados para a humanidade, em suas lutas por emancipação. A distinção ao ideário da Antiguidade Clássica se põe na direção de sua significação para a educação e para o sentido do humano na história, conforme assinala Jaeger (1989): o início da história grega surge como princípio de uma valoração nova do Homem, a qual não se afasta muito das idéias difundidas pelo Cristianismo sobre o valor infinito de cada alma humana nem do ideal de autonomia espiritual que desde o Renascimento se reclamou para cada indivíduo. (...) O princípio espiritual dos gregos não é o individualismo, mas o “humanismo” (p. 7; 10). Para os gregos, o homem pleno (livre) é o que recebe e usufrui a formação educativa e esta idéia surge articulada a um projeto educativo, onde o espírito humano abandona o adestramento e uma educação fincada na exterioridade, pela reflexão da essência educativa, o que é um dos elementos fundantes da Educação Popular.
A Emancipação como Ideário Iluminista Para o Iluminismo, crucial era a emancipação humana, dando o norte da ideologia liberal, para a qual, a libertação dos indivíduos conduziria à emancipação da sociedade em geral. Contudo, o Iluminismo não materializou sua ideologia, desencadeando o que Rousseau205 definiu como limite entre uma idéia revolucionária e sua materialização (contradições). As teses da Revolução Francesa foram relegadas para a maioria e se tornaram privilégios da burguesia nascente (teor ideológico), apresentando problemas em questões como igualdade, individualidade e a hegemonia dos projetos das classes sociais. A burguesia pósrevolucionária objetivou privilegiar os interesses materiais e políticos de sua classe, buscando ajustar os demais, aos vieses ideológicos da dicotomia entre os que necessitavam da educação para se adequar e os demais, seus “ideólogos”. As contribuições de Rousseau também são demarcadas pelas condições objetivas do século XVIII, quando a educação burguesa passa a ser controlada pelo Estado e suas proposições incorporam a tese de uma educação autônoma e criativa, como fundamento de seres humanos sociáveis e cidadãos. Daí a educação ter um sentido crucial, junto com as saídas individualistas, na disseminação de idéias e comportamentos que justificariam as desigualdades, baseando-se no saber racional, na noção de autonomia e nas relações de subordinação de classe, postos pelo capitalismo emergente, explicita Mészáros (2004):
A nova tendência intelectual surgiu em uma sociedade pósrevolucionária, na qual não mais havia espaço para a idéia da emancipação humana universal- em qualquer sentido significativo do termo-sobre a base de classe original do movimento iluminista (p. 464).
205
Rousseau (1712-1778) influenciou com seus escritos os teóricos do liberalismo e das revoluções do século XVIII, através de suas teses sobre a liberdade, individualidade e bondade, inerentes ao humano. Explicava a desigualdade pelo afastamento do ser humano de sua natureza (íntima e exterior), propondo um retorno a esta natureza, nestes termos: “... estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém”. (apud MARCONDES, 1999).
275 O Positivismo deu sustentação a este modelo educativo, ao justificar a ordem capitalista e a acomodação pela via educativa, como forma de não desvelar a dominação de uma classe sobre a outra (status quo), através do uso da razão. Na atualidade o problema se acentua, à medida que temos as roupagens neoliberais deste discurso. Contrário ao ideal positivista, Hegel buscou explicar as contradições do ideário iluminista (e sua promessa emancipatória), com sua dialética histórica, que tinha como ápice o Espírito Universal e assim, defendeu o Estado germânico, como o estágio mais elevado da vida humana. Portanto, a dialética histórica encontrava-se “estática”, contrariando as possibilidades de emancipação humana, já que a estas cabia serem instrumentos do espírito do mundo. Neste aspecto, o pensamento marxista se confronta com o hegeliano, ao afirmar que a emancipação era inconcebível dentro da estrutura do “absoluto na Terra” hegeliano. Para Marx, o próprio Estado representava a alienação dos indivíduos sociais em relação ao poder mais abrangente de tomada de decisões. (MÉSZÁROS, 2004). Sendo necessária à emancipação, a crítica da ideologia de cada época e das organizações das sociedades democráticas, fincadas nos ideais de liberdade, novamente esta reflexão nos remete a Marx (apud MÉSZAROS, 2004): A libertação, diz Marx, é um ato histórico, não um ato mental. (...). A transformação, através da divisão do trabalho, dos poderes (relações) pessoas em poderes materiais não pode ser dissipada descartando-se da mente a idéia que se tem dela, mas só pode ser abolida pelos indivíduos quando novamente sujeitam estes poderes materiais a si mesmos e abolem a divisão do trabalho. Isso não é possível sem a comunidade. Somente dentro da comunidade cada indivíduo possui os meios para cultivar seus dons em todas as direções; por isso, a liberdade pessoal só se torna possível dentro da comunidade. (...) Na comunidade real, os indivíduos obtêm sua liberdade por meio de sua associação. (p. 488489, grifo nosso). A tese dos interesses coletivos solaparem os individuais é rechaçada, o que torna os argumentos pós-estruturalistas obsoletos e infundados, já que no marxismo, autonomia individual e emancipação humana se complementam, demonstrando os distanciamentos entre o pensamento liberal e o pensamento marxista: o viés de classe social é um dos eixos estruturais do marxismo; a mão invisível do Estado e suas “mediações”, o argumento do liberalismo, para justificar as desigualdades. O liberalismo trata de indivíduos abstratos; o marxismo, de sujeitos concretos. A Síntese Marxista Em Marx (2002), emancipação é um projeto que insere a libertação de todos os homens, através do reconhecimento do reino da liberdade (afirmação como sujeito e minimização como objeto), aspectos em que corrobora Lukács, ao inscrever a inserção crítica, como marco dos homens em seu processo de transformação. O viés marxista gramsciano de emancipação destaca grande importância à educação popular, baseada em princípios humanistas e científico-técnicos, para viabilizar a emancipação ideológico-cultural e econômico sócio-política. Para Marx, emancipação difere da perspectiva liberal, para a qual liberdade significa ausência de coerção e ação individual. No marxismo, ser livre é ser autodeterminado, com base no que também propuseram Spinoza, Rousseau, Kant e Hegel. Há, portanto, uma relação direta entre liberdade e emancipação, pois, para os marxistas, a emancipação se dá quando vão sendo eliminados os obstáculos à liberdade, pela associação entre homens e mulheres. As análises de Marx sobre a liberdade pessoal esbarraram nos limites da sociedade capitalista, fincada nas leis de mercado. Daí, apesar das liberdades individuais terem sido alavancadas no liberalismo (ao menos para a classe burguesa), as críticas dos marxistas
276 abordam os limites formais da democracia burguesa. Porém, as críticas internas ao próprio pensamento marxista, conforme acentua Bottomore (1997), acentuam que: É um erro pensar que o desmascaramento da ideologia burguesa implica denunciar as liberdades burguesas como ilusórias. Antes, é preciso mostrar que, em certos casos (...) elas restringem ou mesmo impedem o exercício de outras liberdades mais valiosas, e que, em outros ainda (...) são aplicadas de maneira excessivamente limitada (p. 124). Engels (1980) situa a emancipação em relação direta com a independência econômica, com a participação de homens e mulheres no mundo do trabalho em escala social. Emanciparse, em primeira instância, pensamos, passa pelo referencial econômico, pelo gerenciamento da própria existência. Posteriormente, mas estritamente relacionados e não hierarquicamente, teremos de considerar as significações sociais: emancipação como plenitude da ação política, afetivo-emocional e social. O processo emancipatório constitui-se em uma totalidade de aspectos, dos quais o trabalho produtivo social, afirmo, é prioritário em relação aos demais. Engels e a maioria dos autores marxistas tratam a emancipação sempre como um processo coletivo, de classe. Atualmente, os neomarxistas estão incorporando às determinações econômicas (sociais e de classe) as questões de gênero e de etnia, bem como a possibilidade de serem considerados os projetos e anseios pessoais, não diluídos, mas articulados dialeticamente no processo de emancipação coletiva, onde necessidade e liberdade são os pólos contraditórios mais problemáticos. Importantes, neste particular, são as contribuições de Souza Santos (1994) acerca das utopias trazidas pelo marxismo, suas vinculações com a modernidade e os possíveis caminhos na pós-modernidade. O marxismo, como apoio teórico e como projeto político-social, se “desfez no ar?” Quais as possibilidades de analisarmos as lutas por emancipação, com o eixo da luta de classes? Ao contrário, precisamos compreender a efetividade dos referenciais marxistas, dentro da contemporaneidade. Souza Santos (1994), reconhece a pertinência de categorias como classes sociais/lutas de classes para a análise da sociedade capitalista. O autor, contudo, nos remete à reflexão sobre as consideráveis mudanças ocorridas na sociedade, que nem sempre acompanharam as análises do marxismo clássico. Para tanto, destaca a formação das classes médias e a opressão a que estão submetidas, bem como a importância que as questões como raça, etnia, religião e sexo vêm adquirindo neste novo contexto. Considerando a contemporaneidade como eixo de construção de novos homens e mulheres em relações emancipatórias, Gramsci (1982) reforça o papel da escola e das atividades dos intelectuais como formadores destes novos grupos de pessoas no exercício de suas funções próprias de seres também pensantes e, portanto, intelectuais. Em que sentido este conceito se relaciona com a condição humana emancipatória? Esta relação se dá à medida mesmo em que reflitamos sobre os homens e mulheres, que a educação desta nova sociedade (emancipatória) poderá promover, pois a educação significa a luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, o domínio da natureza, buscando criar o homem “atual” à sua época. (Gramsci, 1982). A formação desta nova condição humana emancipatória deve estar na base de uma educação popular crítica, comprometida com o tornar homens e mulheres “atuais”à sua época, observando o processo de luta para essa transformação e elevação do biológico ao natural. A emancipação aparece como um dos nexos, demonstrando o caráter de desafio constante para a construção deste sentido. Por isto, não é possível resolvermos problemas deste tempo, com soluções prontas de outros contextos, afastando-nos do presentismo. Expressa está a concepção política na idéia de construção de novos homens e mulheres, rompendo com o individualismo e com as apologias reformistas, propondo a condição humana emancipatória. Entendo a condição humana emancipatória nestes limites e neste ponto questiono em que medida a educação popular tem se colocado como alternativa para uma participação crítica, um novo fazer educativo, dentro da idéia de forjar as condições para o desenvolvimento e fortalecimento da emancipação humana. Que EP serve a este projeto? Necessário se faz qualificar a educação popular emancipatória, entendendo a emancipação como autodeterminação, que conduz ao controle
277 humano sobre a natureza, rompendo com o modo de produção capitalista. A perspectiva coletiva de emancipação aponta para um projeto utópico, de modo análogo ao que propuseram os teórico-críticos, destacadamente na obra de Adorno (2000). Mészáros (2004), em sua análise sobre ideologia, autonomia e emancipação, situa que a ideologia se constituiu como um limite para o projeto emancipatório das “massas enganadas”, na definição de Adorno. Exacerba-se a idéia da ideologia, como falseamento da realidade e a autonomia, como caminho para a emancipação, sendo que tais conceitos estariam ficando restritos ao campo teórico. O conceito de ideologia surge na época moderna e tem seu ápice na filosofia marxista. A ideologia é então a forma de representação, no plano da consciência, que serve para mascarar a realidade fundamental, que é de natureza econômica. Löwy (1992) esclarece que para Marx, ideologia é um conceito pejorativo (falsa ilusão), pois trata da consciência deformada da realidade que se dá pela ideologia dominante. Lênin (apud LÖWY, 1992) já define ideologia como qualquer concepção de realidade social ou política, vinculada aos interesses de certas classes sociais (existiria uma ideologia burguesa e outra proletária). Passa a significar então, qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe. Ainda para Löwy206 (1992), a ideologia pode ser definida como visão social de mundo (conjuntos estruturados de valores, representações, idéias e orientações cognitivas). Estas visões podem ser ideológicas, legitimando, justificando, defendendo e mantendo a ordem social do mundo ou utópicas, cuja função seria a crítica, a negação e a subversão da ordem vigente, apontando para uma realidade ainda não existente. Articulada à conquista da autonomia e emancipação, deve estar a crítica da ideologia, pois que a idéia de uma falsa consciência (consciência social), deixa de ressaltar o poder da ideologia, como anúncio do novo (reação) ou como mascaramento da realidade, o que ocupou por tempos os teóricos socialistas. Contribuições da Teoria Crítica Adorno (2000) propôs a difusão da educação política, como eixo do projeto emancipatório, acentuando que educação não seria esclarecimento da consciência ou o único fator de emancipação, tendo em conta que esta também contribui para acentuar a barbárie. O processo de desvelamento da realidade deve levar ao entendimento de uma educação e sociedade em seu devir: O núcleo desta experiência reside na compreensão do presente como histórico e na recusa de um curso pré-traçado para a história, atribuindo-lhe um sentido emancipatório construído a partir da elaboração de um passado, que parece fixado e determinado apenas como garantia de sua continuidade, cujo curso precisa ser rompido em suas condições sociais e objetivas. (p. 12-13).
Emancipar-se significa, para Adorno (2000) ter decisões conscientes e independentes, através de uma consciência verdadeira, sendo ainda um dos nexos de uma sociedade verdadeiramente democrática. Porém, na sociedade moderna, cada vez mais emancipação se torna sinônimo de abstração, necessitando de inserção no pensamento e na 206
“as ideologias não são simplesmente uma ou outra idéia, uma mentira ou uma ilusão, são um conjunto muito mais vasto, orgânico, de valores, crenças, convicções, orientações cognitivas, de doutrinas, teorias e representações (...). As ideologias correspondem aos interesses, posições, aspirações, tensões, das diferentes classes sociais”. (p. 28-29).
278 prática educativas, pois é importante o enfrentamento da organização do mundo e dos vieses ideológicos, que superam a educação e limitam as possibilidades emancipatórias. Emancipação é conscientização, racionalidade e ao mesmo tempo, adaptação dos homens ao mundo, no sentido de ensejar orientações para que estes homens e mulheres se situem no mundo. Neste aspecto, acentua a ambigüidade do conceito de educação para a consciência e racionalidade. Uma educação emancipatória deve desenvolver princípios individuais e sociais (adaptação e resistência), sendo sugerido pelo autor que a educação deveria fortalecer a resistência mais que as condições de adaptação dos humanos e humanas. A educação informal teria importância marcante no desenvolvimento de condições sociais de igualdade, pois caberia à esta educação, ser um exercício de preparação para a superação permanente da alienação: “... A Educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação (...) pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais” (ADORNO, p. 148; 151). Destaca a relação entre anti-individualismo e atitude colaboracionista e relaciona emancipação com as sociedades democráticas, considerando que uma educação sem indivíduos é opressiva, repressiva. Daí problematizar sobre o modo como se educa, inferindo que se procuramos cultivar indivíduos da mesma maneira a cultivarmos plantas que regamos com água, então isto tem algo de quimérico e de ideológico. Neste trecho, retoma Kant, para o qual o esclarecimento é a saída dos homens de sua auto-inculpável menoridade, onde democracia e formação de vontade são inseparáveis. Há um viés individual da emancipação, tratado por Adorno (2000) destacando a autonomia e a preservação das diferenças. O projeto emancipatório já denuncia que vivemos em uma sociedade não profundamente democrática, acentuando que “a emancipação precisa ser acompanhada de uma certa firmeza do eu, da unidade combinada do eu, tal como formada no modelo do indivíduo burguês (p. 180). A emancipação é um vir-a-ser e está articulada ou condicionada às heteronomias da organização da sociedade capitalista (contradições sociais), desviando as pessoas de sua consciência. A educação para a emancipação deve ter como norte servir mais à contradição e à resistência, que à conformação e adaptação. As sociedades mantêm os homens não emancipados porque, mesmo no contexto de transformação, há resistências e um grande teor de repressão. Uma das questões fundamentais da modernidade foi apontar para a maioridade kantiana, como síntese racional, que levaria os seres humanos ao esclarecimento e que a educação (como acesso ao pensamento racional) significaria emancipação. Esta mesma crença na necessidade da educação para a emancipação humana é corroborada por Rousseau e Comenius, nos séculos XVII e XVIII. Os caminhos que o conhecimento científico e o uso da racionalidade tomaram, demonstraram algumas das limitações destas utopias. Os teórico-críticos não deslegitimaram a razão, mas seu veio instrumental, conforme destaquei em Adorno (2000), quando este afirmara a autonomia e a emancipação como nexos da educação crítica, para confrontar a barbárie humana. Esta razão crítica tem como elementos cruciais o estímulo à transformação do mundo e à emancipação humana, portanto, se opõe as teses idealistas, ao imobilismo e as saídas individualistas, de corte “pós-moderno”. Educação E Emancipação em Paulo Freire Na obra de Freire, pensar a emancipação é buscar o seu contraditório: a opressão. Esta condição de opressão tem o recorte de classe social, em suas obras iniciais, pois seriam estes grupos os necessitados do sentido de liberdade, autonomia e emancipação, passíveis de conquista pela práxis revolucionária destes sujeitos. Porém, assim como percebo nos escritos de Kant, Rousseau, Hegel e Marx, os aspectos individuais também concorrem para que uma nova sociedade (emancipada) se construa. Freire (1980) acentua que os oprimidos vivem sob os ideais humanos dos opressores, e por isto, a práxis da libertação é um dos exercícios para esta superação.
279 O conceito de “homens novos” se aplica, pois há que se superar os modelos autoritários (para além de trocar de papéis com os opressores) e individualistas: somente os oprimidos podem libertar os seus opressores, libertando-se a si mesmos. (...) É, pois essencial que os oprimidos levem a termo um combate que resolva a contradição em que estão presos, e a contradição não será resolvida senão pela aparição de um “homem novo” e nem o opressor nem o oprimido, mas um homem em fase de libertação (p. 59). As lutas por emancipação perpassam a confiança nos humanos, a busca pela superação da contradição oprimido/opressor e a constituição de “homens novos”, em relações de liberdade, igualdade e emancipação. Freire (1979) acentua a necessidade de uma educação humanizante, circunscrita às sociedades e homens concretos, superadora da alienação e potencializadora da mudança e da libertação social: Que cada vez mais cortasse as correntes que a faziam e fazem permanecer como objeto de outras, que lhe são sujeitos. (...) A opção, por isso, seria de ser também, entre uma “educação para a domesticação”, para a alienação e como educação para a liberdade. “Educação” para o homem- objeto ou indivíduo para o homem sujeito (p36).
Educação Popular e Emancipação: Possibilidades e Contradições na Conquista do Reino da Liberdade Será possível pensar em uma educação popular emancipatória? Uma vez superado o reino da necessidade, a partir do estabelecimento dos consensos sociais mínimos, postos pelo ideário da Modernidade, poderemos caminhar em direção à emancipação e ao reino da liberdade? Seremos alçados ao reino concreto da liberdade, quando os meios de produção se tornarem propriedade social e os homens e mulheres dominarem a natureza, assenhorando-se desta e de si próprios, o que traz vinculação direta ao projeto emancipatório. Conforme situou Engels (2005), a humanidade procederia ao salto do reino da necessidade ao reino da liberdade, pelo conhecimento e domínio das necessidades da natureza, contrariando o pensamento kantiano, para o qual não haveria liberdade, enquanto estivéssemos submetidos à necessidade. O materialismo histórico e dialético serviu e serve como instrumento teóricometodológico para a E P, porque tais estudos partiram de sistemas concretos, cujo foco está na tentativa de emancipação humana e na necessária transformação do mundo, o que me leva a refutar as teses de que este é o fim deste método, como compreensão, interpretação e intervenção na realidade. E mais ainda: há condições objetivas para a construção de uma educação popular emancipatória? Buscando esta possibilidade , buscarei delinear alguns modos de apreensão e análise do fenômeno da E P, para visualizar meu entendimento do conceito. Em seqüência pretendo retomar as contribuições histórico-conceituais, para pontuar as contribuições para a E. P. emancipatória e suas possibilidades, no quadro da emancipação humana. EP aponta para o exercício da cidadania, junto aos grupos populares. Freire (1991) reforça esta tese, ao relacionar educação e organização popular como princípios básicos, intimamente ligados à prática política: “... Entendo a educação popular como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica” (p. 19). É fundamental, portanto, qualificar a E. P. de que necessitam os movimentos sociais, para potencializar seu projeto emancipatório. “Adjetivar” a Educação Popular é demarcar a diferença desta, da educação das aristocracias, reconhecer sua existência e o caráter marcadamente compensatório, buscando anunciar novas perspectivas.
280 É neste cenário controverso que se torna crucial recuperar o sentido amplo da educação, enquanto produção social de homens e mulheres e o sentido restrito, como escolarização e letramento (NUNES, 1999). Estes elementos podem qualificar a EP para a emancipação, reconhecendo que não cabe à educação propagar a emancipação humana, mas potencializar espaços, práticas, experiências para o exercício das idéias emancipatórias, que podem contribuir para a organização dos grupos em sua práxis revolucionária. Assim as várias interlocuções neste estudo, apontaram para a constituição de sociedades democráticas - base da emancipação. Em que sentido a E P pode ser emancipatória e contribuir para o processo de hominização, como prática de resistência e emancipação, diante do mundo excludente e globalizado? Retomo Nunes (1999) para explicitar estas possibilidades: A educação popular não pode aceitar a lógica do mundo globalizado (...) tem que continuar como um núcleo sadio de resistência política, de ampliação da participação cultural, coletiva, de recuperação da fala autêntica, relações de respeito, familiaridade e diálogo. (...) promover a decisão coletiva sem clientelismo e assistencialismo. Responsabilidade no que decide, solidariedade orgânica e afetiva, fraternidade, consciência crítica, palavra autêntica e coração solidário (...) são estas categorias que a E. P. precisa para que o núcleo popular venha a ser um dia o modelo hegemônico (p. 7-8).
Penso que a E.P. se tornará hegemônica se forem se construindo, no âmbito da sociedade, novas relações econômicas, sociais e culturais, que assumam estas categorias como foco. Se esta não pode alterar concretamente a natureza de classe do Estado, em que direção pode fomentar a emancipação humana e a aproximação do reino da liberdade? Cabe esperarmos a revolução ou a organização popular e a educação crítica podem alinhavar um projeto emancipatório? Gramsci (1982) recomendava o instruir, agitar e organizar, como eixos desta luta. Como Nogueira (2004), entendo que pela E.P. pode-se intensificar ou aprimorar a democratização de procedimentos institucionais que pautam ações de cidadania, visando melhoria de condições na vida pública cotidiana. As possibilidades emancipatórias podem surgir das interações pedagógicas, para além do conhecimento transmitido.
Contribuições da Educação Popular para a Emancipação Humana Diante destas provocações, busco concluir (provisoriamente), retomando alguns eixos articuladores desta reflexão, na direção da EP emancipatória, que se articula com os propósitos do reino da liberdade, em Marx. Um destes aspectos se situa na qualificação da E.P, que para Sales significa (1994): descobrir e aumentar as capacidades que a gente tem e não sabe que tem nas dimensões afetivas, intelectuais e práticas. (...) Penso em E. P. mais como uma perspectiva e uma proposta a ser vivenciada onde a vida for nos colocando, do que como um tipo de atividade. É a operação do sentir/pensar/agir em todos os momentos da vida (p. 117118). Uma EP emancipatória necessita estar fincada na constituição de novas relações econômicas, sociais e culturais, caminhando na direção do reino da liberdade e deste modo, alguns princípios orientadores podem ser pontuados, a partir da interlocução com os autores, num viés histórico-conceitual, tendo como fundamento o trabalho com sujeitos concretos:
281 A EP pode contribuir efetivamente para a constituição de sociedades democráticas, pois a emancipação exige democracias: democracia de processos institucionais; novas interações pedagógicas, são espaços para a E P; O conhecimento e o domínio processual das necessidades da natureza; O materialismo histórico e dialético ainda se apresenta como uma das possibilidades vigorosas, no campo teórico-metodológico da E. P; A mobilização, organização e capacitação dos grupos populares, como um dos pilares da construção de uma nova hegemonia (teses de Freire); A articulação com os movimentos sociais populares da América Latina e dos demais países, para criar redes de comunicação em E. P pelo mundo, pode contornar os vieses atomizantes destas ações; A valorização do núcleo autêntico da EP precisa incorporar as dimensões afetivas, intelectuais e práticas (Sales, 1994); Conscientização e Emancipação surgem como ideário iluminista, são reforçados na Teoria Crítica (Adorno) e reinventados em Freire e prosseguem fundantes da EP; A recuperação da razão crítica, rechaçando a razão instrumental e buscando a relação entre os diversos saberes, combatendo os dogmas, para superação da alienação; A supressão da opressão, sendo educação para a humanização, onde os oprimidos eduquem a si mesmos e aos opressores, nas lutas pela busca do reino da liberdade. A utopia emancipatória é o norte e insere o desenvolvimento da autonomia, o desenvolvimento cultural, ético, estético, político e pedagógico das pessoas. A EP emancipatória tem a vida, a existência concreta como norte e compromisso e se relaciona ao conceito de autonomia, amadurecimento, plenitude educacional, cultural, ética, estética, política e pedagógica das pessoas (NUNES, 2003). Tem como horizonte as utopias que alimentam os projetos, nas dimensões valorativas já abordadas, mas aqui aprofundadas por Melo Neto (2004): Ser popular é tentar alternativas. É estar realizando o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trata os elementos já efetivados e tentativas de novas realizações. (...) A utopia da democracia tem um valor permanente e deve ser vivida sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços da realização e da não –realização, estas são suas contradições e dificuldades maiores. Entretanto, não podem transformar se em agentes impeditivos da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de liberdade e de felicidade”. (p. 159). Entendo que esta trajetória é um devir dialético, onde parece crucial atentarmos para as ponderações de Mészáros (2004) sobre as perspectivas emancipatórias das classes trabalhadoras no século XXI. Deste modo, não há como pensarmos o projeto socialista, em suas possibilidades históricas, sem ter como eixo o poder da ideologia emancipadora: Sem esta, as classes trabalhadoras dos países capitalistas avançados não serão capazes de se tornar “conscientes de seus interesses”, muito menos de “lutar por eles”- em solidariedade e espírito de efetiva cooperação com as classes trabalhadoras das “outras”partes do único mundo real- até uma conclusão positiva. (p. 546). Tais desafios projetam a necessidade desta EP latino-americana, fazendo o movimento consciente de se vincular a outros movimentos ao redor do mundo, como forma de sonhar novos mundos e o ideal emancipatório.
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IGUALDADE EM EDUCAÇÃO POPULAR José Luiz Ferreira
Introdução A disciplina Teoria da Educação Popular foi articulada de forma a desenvolver, com a participação da segunda turma do doutorado, um conceito para a Educação Popular. Na elaboração desse conceito diversas categorias apareceram, constituindo cada uma delas, em um novo constituinte da Educação Popular. Depois de um processo de discussão chegou-se ao seguinte conceito: É um fenômeno de apropriação (trabalho) dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto, constituído de uma teoria do conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdo e técnicas de avaliação processuais, permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade. No processo de construção do conceito três etapas foram básicas. A discussão de textos, a indicação de constituintes e a sistematização destes constituintes em três grupos, selecionados a partir de uma organização, por grau de importância, dada a cada um deles. No primeiro grupo, com valores iguais ou superiores a 80%, ficaram os seguintes constituintes: apropriação do produto da educação popular, ação transformadora, aprendizagem, autonomia, construção do sujeito, crítica, cultura, classe social, democracia, diálogo, emancipação, experiência, felicidade, liberdade, identidade, pedagogia, práxis, popular, produção do conhecimento, saberes, trabalho, realidade e totalidade. No segundo bloco estão os constituintes localizados na faixa de 60 a 79%: autenticidade, compromisso político, ideologia, incentivo ao desejo de saber, prática, poder popular, processo, empoderamento e igualdade. Por fim, o bloco três consta dos constituintes abaixo de 60%, transitoriedade, lócus, organização/sistema. A igualdade é a categoria que neste texto procuro compreendê-la, refletindo sobre sua participação no contexto do conceito de educação popular. Para tanto inicio o texto discutindo o rastreando o conceito de igualdade, respaldandome em textos de Norberto Bobbio e Aristóteles, para em seguida trazer alguns discursos da educação popular em relação à igualdade. Por fim, procuro deixar minha impressão a respeito do que significa a igualdade no contexto do conceito da educação popular, para compreender o seu aparecimento no conceito que produzimos a partir das atividades desenvolvidas em sala de aula. Rastreando o conceito de igualdade. A discussão da igualdade é muito recorrente em uma sociedade de classes, desigual, como a brasileira. Ela se dar na busca constante pelas eliminações das desigualdades construídas no campo social. As reivindicações no sentido da igualdade estão apoiadas na idéia de que todos os indivíduos são portadores dos mesmos direitos fundamentais, um dos valores políticos centrais da modernidade; e são alimentadas pela contradição entre esses ideais e as desigualdades verificadas cotidianamente nas oportunidades de educação, trabalho e autonomia social para homens e mulheres. Do ponto de vista teórico, seu arcabouço recorre basicamente aos
285 princípios da igualdade de direitos e da liberdade individual, movendo-se no campo previamente definido da cidadania e dos direitos civis. O conceito de igualdade parece mesmo vago, genérico, que, se não for especificado, nada significa. Estamos muito em contato com ele em nossas leituras e discursos, particularmente no campo da educação. No caso da educação popular o aparecimento dos discursos e práticas que buscam a superação das desigualdades, a equidade entre sujeitos, a igualdade de condições e de direitos políticos, sociais e civis, é freqüente. Uma vez comprometida com as causas mais importantes das classes populares, denuncia e reivindica condições iguais para todos. Mas de que igualdade estes discursos realmente falam? Que igualdade a educação popular costuma postular? Igualdade é a qualidade de igual, é um nivelamento de coisas. Ser igual é ter elementos idênticos ao outro. É estar no nível do outro. Ter os mesmos direitos do outro. No âmbito do cristianismo somos todos filhos de um Deus único, somos então todos irmãos, iguais perante Deus. Idéia esta, que, secularizada através da doutrina da natureza humana comum, acabou por instituir a fraternidade e se constituir num dos três princípios da Revolução Francesa. Na matemática, por exemplo, igualdade corresponde a partes iguais, um membro igual ao outro. O próprio símbolo da igualdade, duas retas paralelas, mantém a mesma distancia até o infinito. Qualquer alteração nessas medidas recai em um outro símbolo, maior, menor, diferente. Mas é no campo da política que a igualdade tem um papel importante. O reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de toda a família humana é o fundamento da liberdade, da paz e da justiça no mundo. A Declaração dos Direitos Humanos207 afirma o principio da inadmissibilidade da discriminação e proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, é o que prescreve o Art. 5º da Constituição Federal do Brasil. A igualdade é condição para a instalação de uma democracia. Sócrates evoca a velha constituição ateniense, contrapondo-se às outras constituições que, pressupondo a desigualdade dos homens pela qual alguns são servos e outros senhores, deram origens a tiranias e oligarquias. “Nós e os nossos – conclui -, nascidos irmãos da mesma mãe, não pretendemos ser entre nós servos e senhores, mas a igualdade de nascimento nos obriga a buscar também a igualdade legal e a não ceder a ninguém mais, a não ser no apreço da virtude e da inteligência”, Bobbio (2000, p. 378). Hobbes, afirma que”a natureza fez os homens tão iguais na capacidade física e intelectual” (Leviatã, cap. XIII). O homem, a mulher como pessoa, para ser considerado(a) como pessoa, deve ser, enquanto indivíduo, livre; enquanto ser social, deve estar com os demais indivíduos numa relação de igualdade. Liberdade e igualdade são valores que servem de fundamento à democracia. No campo das teorias políticas a igualdade pouco se distancia da liberdade. No que concerne à igualdade, há de se perguntar de imediato: igualdade entre quem? Igualdade com relação a que coisas? Seguindo os passos de Bobbio (1997, 2000), há uma estreita ligação entre as sociedades liberais e as sociedades igualitárias. Como entender a perspectiva de uma sociedade igualitária numa sociedade liberal? Ou de outra forma, como buscar a igualdade numa sociedade desigual? Em resposta a estas questões, Bobbio (2000) coloca quatro alternativas: 1) Igualdade de alguns em alguma coisa 2) Igualdade de alguns em tudo 3) Igualdade de todos em alguma coisa
207
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26/08/1789, em seu Artigo 1, diz: Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser fundamentadas senão sobre a utilidade comum.
286 4) Igualdade de todos em tudo. Analisando estas alternativas Bobbio (2000) diz que a primeira não é significativa para uma sociedade igualitária, pois poucos seriam contemplados com a igualdade e ainda assim só em alguma coisa. A segunda corresponde a um igualitarismo parcial ou limitado, pois só alguns teriam direito a tudo. A terceira alternativa nada tem a ver com uma sociedade igualitária. Quando se colocam direitos para todos de acordo com determinados critérios, estabelece-se princípios liberais que não comportam a igualdade. Como ser igual se as regras levam a desigualdade? É a quarta alternativa que caracteriza uma sociedade igualitária. Essa seria aquela em que todos os homens e todas as mulheres seriam iguais em tudo. É uma sociedade ideal na qual o maior número de pessoas teria acesso ao maior número de bens. A doutrina prega a idéia de cada um, buscando o melhor para si, estará promovendo o progresso da coletividade. A capacidade de cada um é um principio que orienta a vida em comunidade. Para Bobbio, o critério da necessidade é o mais adequado a uma sociedade igualitária. Marx afirmou, “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Para Buonarroti208 (apud Bobbio, 2000, p. 300), dado que todos têm as mesmas necessidades e as mesmas faculdades, que exista portanto para todos uma só educação, uma só nutrição. Eles se contentam com um único sol e um único ar para todos: por que não deveria bastar para cada um deles a mesma quantidade de alimentos?. Bobbio (2000, p. 300) também coloca que os homens podem ser considerados de fato mais iguais em relação à quantidade e em relação à quantidade das necessidades do que em relação à quantidade e à qualidade da capacidade demonstrada nesta ou naquela atividade ou trabalho prestado nesta ou naquela obra. Pensando assim, a quantidade e a qualidade segundo as necessidades vão na direção de que ninguém tem duas bocas ou duas barrigas. Também há de se considerar que os indivíduos não comem a mesma quantidade. Crianças geralmente comem menos que os adultos, mas Buonarroti lembra que “em moral, em política, e em economia, a igualdade não é uma identidade matemática e não se altera por pequenas diferenças” (Ibidem). O critério da necessidade parece mais justo “a natureza fez os homens mais iguais em relação às necessidades do que em relação às capacidades e a possibilidade que, segundo as diferentes capacidades, têm de cumprir este ou aquele trabalho na sociedade”, (Bobbio, 2000, p. 301). Todavia a capacidade não é um critério descartado. Se é certo que todos devem trabalhar, e aí reside a perspectiva da igualdade quanto a direito ao trabalho, é certo também que todos só não devem como não podem fazer o mesmo trabalho. Da mesma forma, se lutamos pelo direito de todos comerem, não é a mesma coisa afirmar que todos vão comer a mesma coisa e na mesma quantidade. Que critérios estabelecer para oferecer diferentes trabalhos? Para Buonarroti é o critério da capacidade o mais justo: “a igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pelas necessidades do consumidor” (Ibidem). Nas doutrinas liberais o critério da capacidade serve para justificar as diferenças de fortunas, de riquezas. Nas doutrinas igualitárias serve para justificar as desigualdades de deveres. Para o estabelecimento de uma sociedade igualitária, qual deve ser o ponto de partida? E qual deve ser o ponto de chegada? Numa perspectiva liberal o ponto de partida é igual para todos, todavia o vencedor será aquele que mostrar-se mais capaz, o melhor. No ponto de 208
Filippo Buonarroti, é um autor que, em 1828, publicou a obra Conspirations pour l´égalité de Babeuf, considerada por Bobbio como um dos textos mais completos, por apresentar um protótipo de uma sociedade igualitária.
287 chegada, todos são desiguais. Numa perspectiva igualitária, o que conta são os pontos na chegada, não importando a posição que ocupa. Aqui coloca-se a igualdade de oportunidade, de chances. Se tomarmos o exemplo de uma corrida, como o próprio Bobbio (1997, 2000) lembra, há de se reconhecer que cada um dos competidores tem características individuais que o faz diferente do outro e que se expressarão no resultado final. Numa sociedade igualitária leva-se em conta a igualdade dos resultados, com as diferentes posições ocupadas na linha de chegada. Numa sociedade liberal, jogando para cada competidor a responsabilidade de ganhar segundo suas próprias capacidades, larga-se na mesma linha, mas chega-se em posições diferenciadas, instituindo-se os vencedores e os perdedores. Segundo Bobbio (2000, p. 302), um dos temas recorrentes nos escritos dos iguais é o reconhecimento de “que todos tenham o bastante e ninguém tenha demais”. Duas possibilidades Bobbio vê para se conseguir uma maior igualdade entre os membros de uma sociedade. A primeira é estender as vantagens de uma categoria a outra categoria que dessas vantagens esteja privada. Cita o exemplo da extensão dos direitos políticos de quem sabe ler e escrever aos analfabetos. Esse procedimento é típico das doutrinas não igualitárias, pois além de ser utilizado pelas doutrinas liberais, nada tira dos que detêm o poder ou o direito em questão. A segunda possibilidade é tirar de uma categoria que detém privilégios, vantagens de que goza de modo que possam deles obter os benefícios também os não privilegiados. Neste caso pode-se citar como exemplo a reforma agrária, pois não é possível dar as terras aos posseiros sem tirá-la dos proprietários. Para Bobbio a igualdade econômica é a adequada para se instituir uma sociedade mais igualitária ou menos desigual. Não se consegue fazer uma distribuição de renda sem que ninguém tenha renda superior a um certo máximo e uma renda inferior a um certo mínimo, sem que se tire de alguém para passar para outro. As teorias políticas que tentam desafiar o problema da igualdade, terminam por se confrontarem com as diferenças entre as desigualdades naturais e as desigualdades sociais. Aí se encontram, de um lado, quem defende a maioria (ou todas) as desigualdades que caracterizam a vida social como sendo naturais. Do outro, estão àqueles que atribuem ao social a razão da maioria (ou todas) das desigualdades da vida em sociedade. Seja de um lado Rousseau, para quem a natureza fez os homens iguais, mas a sociedade os tornou desiguais. Seja Nietzsche, para quem os homens são por natureza desiguais e apenas a sociedade, com a sua moral do rebanho, com sua religião da compaixão e da resignação, tornou-os iguais. Firma-se a oposição entre os igualitários, que condenam as desigualdades sociais e os inigualitários, que em nome da desigualdade natural, condenam a igualdade social. Sabemos que a diferença fundamental é que, entre as desigualdades naturais e as desigualdades sociais, são estas últimas que podem ser alteradas e até eliminadas. Não restam dúvidas que muitas das desigualdades sociais são construções sociais, articuladas com vistas ao predomínio de uns sobre outro, no estabelecimento de poder de poucos sobre muitos; na definição de governos tiranos e oligárquicos, na contramão da democracia, da participação de todos nos destinos de uma sociedade. Igualdade e justiça A justiça pode ser entendida como “a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e ainda como princípio do acordo que mantém uma ordem social”209. A justiça é, portanto, a guardiã dos direitos, tanto em sua forma legal quanto na sua aplicação aos casos específicos. Se “todos são iguais perante a lei‟, é porque “todos têm garantias legais”, ou ainda, “todos têm iguais direitos”. À justiça cabe a igualdade entre os cidadãos. Para Aristóteles “a igualdade parece justiça, e efetivamente o é: porém não de modo geral, e sim apenas entre os iguais. A desigualdade também parece que o é, e efetivamente não para todos, somente o é entre os que não são iguais” (A política, p.91). Para ele não tem como pensar a diferença entre os que são iguais. Aos iguais o igual, aos desiguais o desigual.
209
Retirado do site www.enciclopedia.com.br.
288 Aristóteles dar dois significados a justiça210: um é o de legalidade, no qual para ele justa é a ação em conformidade com a lei, e o outro significado é o que identifica justiça com igualdade. Para ele justo é o homem que respeita as leis, é a ação que se orienta pela lei e justas são as próprias leis. Mas também é justa uma ação, uma lei, um homem que respeita ou institui uma relação de igualdade. Além das questões anteriormente colocadas sobre o que vai se igualar e igualar o que ou, com que ou com quem, acrescenta-se, como será feita a distribuição? De que forma a distribuição será justa? O que seria uma igualdade desejável e uma indesejável? Teremos que ver os critérios de justiça, aqueles critérios que nos permitem compreender como, em cada situação, duas ou mais pessoas possam ser consideradas iguais e que esta igualdade seja considerada justa. Seria justo partes iguais para todos? Ou, de acordo com o pensamento de Aristóteles, seria mais justo oferecer partes iguais a um grupo relativamente grande? A perspectiva de uma sociedade igualitária tende a se constituir naquela em que o maior número de pessoas passam a receber o maior número de bens. Como permitir que todos tenham direito à educação? Ao aprendizado do ler e do escrever, de forma que o acesso seja justo? Numa economia liberal aceita-se a igualdade de direitos, embora, de fato, nem todos usufruem de certos direitos. Se o liberalismo estimula o sucesso individual, a desigualdade é aceita como um critério de diferenciação na seleção econômica e social. O princípio, a cada um segundo suas necessidades e suas referências culturais, que fundamenta as políticas de desigualdade fomenta, por um lado, a segregação social e faz com que as pessoas se relacionem somente com aquelas que lhe são mais afeitas, e por outro, chegar às experiências baseadas no principio de que, quem tem mais recebe mais, e quem tem menos recebe menos. Desta forma ao se elaborar princípios de equidade, termina-se por se instituir princípios de iniqüidade. Se todos fossem iguais em tudo, bastaria apenas um critério, “a todos a mesma coisa”. Mas como todos não são iguais em tudo ou em nada, a igualdade não pode meramente ser pensada como algo que iguala uma coisa a outra, uma pessoa a outra. O igual pode ser diferente ou os desiguais podem ser iguais. Recorrem-se às diferenças ou semelhanças para a distribuição de ônus e de bônus. Aqueles que são iguais em um critério podem ser desiguais em outro e vice-versa. Mas qual a semelhança ou a diferença mais relevante para o estabelecimento de uma regra ou oferecimento de um bem? Se a estatura não é relevante para adquirir o direito ao voto, é relevante para se fazer jogador na seleção brasileira de vôlei ou no serviço militar. Se o condicionamento físico não é um critério para se escrever, certamente poderá ser para uma carreira militar. Em alguns casos a definição de critérios torna-se um elemento complicador, pois pode aparecer mais de um em uma mesma situação, sendo necessário eliminar alguns em detrimento de outro. A escolha de determinados critérios passa também por juízos de valor que, além de não serem passíveis de demonstração e sustentáveis através de argumentos contra ou a favor, são historicamente mutáveis. Em síntese, a igualdade não parece fácil de ser compreendida, pois na própria formulação pode estar colada a sua própria negação. Educação Popular e igualdade Num país com tantas diferenças sociais, políticas, econômicas, culturais, não é difícil encontrar quem lute pelo resgate da igualdade entre as pessoas. A América Latina e o Caribe constituem uma região onde predomina a desigualdade. Desde a década de 80 (séc. XX), a pobreza e a desigualdade social dispararam. Nem mesmo com a expansão econômica nos anos 90, a América Latina conseguiu melhorar a distribuição de renda. Dados da Cepal em 2001, apontam que, de 1980 a 1999, a porcentagem da população em situação de pobreza ficou na casa dos 43,8%, mesmo que este percentual tenha chegado a 48,3% em 1990. O Brasil é o campeão em concentração de renda em mãos de uma minoria. 210
Ver em Ética a Nicômaco, Livro V.
289 A região também é uma das mais injustas. Foi-se criando uma distância cada vez maior entre os que, de um lado têm uma boa educação e uma boa situação econômica, e, de outro, os que correm um duplo risco, ter uma educação deficiente e viver na pobreza. A lógica parece insistir em oferecer menos a quem ganha menos ou nada tem. Uma política que vise a igualdade é uma política que procura igualar o acesso à educação e que busca a igualdade nos resultados. As políticas atuais parecem insistir nesse caminho. Os resultados é que não seguem a mesma lógica. Além de terem acessos diferentes, os resultados também não são os esperados. Uma parte dos pobres termina o ensino fundamental, uma parte menor termina o ensino médio e uma porcentagem muito pequena chega à universidade. A superação das diversas desigualdades é, na verdade, o pano de fundo de muitas ações desenvolvidas pela educação popular. Que sentido tem a luta pela democratização da educação, do acesso a novas tecnologias, a novas formas de avaliação, a conteúdos que representem a própria histórica dos educandos, se não é a de oferecer a quem tem menos ou quase nada uma educação possível, libertadora, alegre e igual? Muito mais do que apenas conseguir um determinado direito, está a sua aplicabilidade. Seja no campo formal da educação, seja na esfera do não formal, a educação, em várias manifestações pleiteia a igualdade. Os movimentos pela igualdade de gênero têm, nessa categoria, a base de suas reivindicações. A luta é pela equiparação de direitos ainda não conquistados e o efetivo cumprimento daqueles que a própria Constituição e outras leis garantem a ambos os sexos ou propriamente às mulheres. Se a terra não pode ser igualmente distribuída para todos, é certo reconhecer que todos têm igual direito a um pedaço de terra para, no mínimo, morar e cultivar. A desigualdade social é a razão da concentração de terras em mãos de poucos e muitos sem um lugar para se alojar. Eis, entre tantos motivos, uma das razões do Movimento Sem Terra211. O movimento pela educação escolar busca enfrenta historicamente problemas com relação ao acesso e as condições de permanência, desde as condições mínimas de operação da escola aos resultados finais, significando assim que sendo a educação um bem geral e para todos, todos aqueles que à escola cheguem devem sair com resultados satisfatórios, com conhecimentos construídos e preparados para a vida e para o trabalho. A educação no Brasil tem uma história de perdas e ganhos que se desenvolve desde o período de colonização. A separação de senhores e escravos já instituía também diferenças na aprendizagem das primeiras letras. Nem todos podiam ter esses conhecimentos. Para Paiva (1987, p. 26) a educação do povo só começou a ser valorizada como processo sistemático quando a revolução industrial na Europa passou a exigir o domínio das técnicas da leitura e da escrita por parte de um maior número de pessoas, (...) tornou-se ainda mais importante quando o desenvolvimento do capitalismo permitiu percebê-la como um importante instrumento de ascensão social” Ainda no século XIX a educação não era estendida a todos. Kulesza (1999, p. 78) mostra como era pensada, : Ler e escrever, as primeiras operações da aritmética, alguns rudimentos de gramática e o catecismo, eis aí tudo. Para as classes inteiramente pobres, e que vivem do trabalho manual nas regiões inferiores da sociedade, talvez uma tão acanhada instrução possa
211
A Lei N. 4.504 - de 30 de Novembro de 1964 – Estatuto da Terra, em seu Art. 2º diz: É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
290 em rigor bastar. Mas de certo não basta para aquelas outras classes que medeiam entre as operarias e as cientificas, classes importantíssimas, em que reside toda a força da comunidade, em que se encontra o negociante, o fabricante, o lavrador, o artista e o empregado público. O compromisso com a mudança social atravessou décadas, mantendo-se ativo nas várias propostas de educação popular. Beisiegel (1982) dizia que essa perspectiva nos situava em oposição a todos os que procuravam encontrar no processo educativo um instrumento de preservação das desigualdades que marca a ordem vigente. Reivindicamos uma sociedade mais justa e esta idéia envolve, entre outros elementos, menos privilégios para as minorias dominantes e menos miséria para as maiorias dominadas” (Beisiegel, 1982, p. 64). Paiva (1987) entende educação popular como aquela oferecida a toda a população, gratuita e universal e também aquela voltada para as camadas populares. A Educação Popular, entre tantos significados que a ela foram produzidos, é entendida como “aquela voltada à cultura do povo que está à margem dos processos escolares e da produção, ou excluído das realizações culturais” (Melo Neto, 1999, p. 47). Nestas enunciações percebe-se que nem todos têm ou tiveram acesso a uma educação de qualidade, gratuita e universal, apesar do reconhecimento de que na lei a igualdade é um principio que rege a Constituição Brasileira. Se retomarmos o conceito construído por nós, identificamos nele várias categorias, entre elas trabalho, cultura, sistema, pedagogia, poder, participação, técnicas de avaliação, todas articuladas em prol dos anseios humanos, a exemplo da liberdade, justiça, igualdade e felicidade. Seja em que situação for, a educação popular visa a humanização do ser humano. Visa a sabedoria, que é mais do que a erudição, segundo Sales (1999). E ainda segundo ele, nessa fase do capitalismo, exclui-se pessoas, regiões, ramos de produção e países. E, se nesse processo for necessário sucumbir com o solo, o ar, a floresta, crianças, mulheres, não será difícil que isto aconteça. Parece então que a igualdade não será a regra a ser seguida. Na esteira da história são as camadas populares as principais a sofrerem as ações do capital financeiro. A igualdade na educação popular Pensar a igualdade no contexto e do discurso da educação popular, só me é possível, neste momento fazendo muito mais indagações do que afirmações. Quando se fala de igualdade, quando se reivindica direitos não se atenta para outros elementos ali implícitos. Os direitos à igualdade das mulheres em relação aos homens não passam pelo entendimento de que as mulheres seriam iguais em tudo, mas exatamente reivindicam também a sua própria diferença. Em certo sentido, querem também ser desiguais. Qualquer lei assegura, em primeiro plano, uma primeira forma de igualdade, a igualdade formal. No caso particular da relação entre os gêneros masculino e feminino, a igualdade requer uma visão mais ampliada. Se todos os homens e mulheres são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, nada poderá fazer de que um seja superior ao outro no campo da convivência social. E é na construção social dos gêneros que reside a possibilidade das mudanças, o que significa de certa forma uma igualdade, mas de outra forma a manutenção das diferenças. Se tomarmos a educação como uma referência para entender a igualdade, algumas questões precisam ser elaboradas. A que tipo de educação estamos a nos referir? É o direito a todos irem à escola? Permanecer nela e de lá sair para a universidade? Como equiparar as forças para que o filho ou a filha do trabalhador possa ter as mesmas condições para chegar ao objetivo desejado em relação aos filhos e filhas das famílias mais abastadas? Se o problema estiver nas famílias, não será na escola que se equiparará, mas no seio das famílias. Parece então que ao reconhecer que a desigualdade na concentração de renda, notadamente influente no padrão de vida, já é um dado de que a igualdade ao acesso e à permanência na escola é aparente. Nada parece igualar os desiguais. O problema é maior do que se possa imaginar. É uma questão de construção de uma nova sociedade. Ou será que uma vez entendendo as
291 diferenças pessoais, de mérito, de capacidade das pessoas, a igualdade só poderá acontecer entre pessoas que reunam características iguais? O direito à terra, a moradia, à saúde, à educação, ao lazer, entre outras possibilidades de equiparação dos sujeitos, não significa necessariamente a certeza de que todos terão estes benefícios e se os tiver, não serão na mesma quantidade. O acesso aos bens culturais só é possível, de forma igualitária para todos, no plano da realização formal, da lei enquanto regra da justiça, pois mesmo que todos tenham acesso aos diversos bens, nem todos terão em igual quantidade e qualidade. O princípio aristotélico da igualdade numérica, “serem igual e identicamente tratados no número e volume das coisas recebidas”, não se consolida numa sociedade de classes, liberal, capitalista. Reivindicar, portanto uma sociedade mais justa, igual para todos, significa entender as diferenças existentes e considerar o acesso ao bolo com partes desiguais, desde que todos tenham parte na distribuição. A reforma agrária, por mais que seja justa, não equiparará o volume de terras dos grandes latifundiários aos novos posseiros. Em tese, a perspectiva da igualdade termina por se consolidar no reconhecimento das desigualdades. Os discursos da educação popular apontam para um conceito de igualdade genérico, às vezes utópico, exprimindo idéias contraditórias ao próprio discurso. Penso que a categoria igualdade como um constitutivo da educação popular deve ser sempre explicativo do que se pretende, de quem estar reivindicando e de como será distribuído, socializado os bens. Bibliografia
ARISTÓTELES. A Política. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2004. ARISTOTELES. Metafísica: livro I e livro 2; Ética a Nicômaco; Poética. Seleção de textos de José Américo Motta Peçanha. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Série os Pensadores. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organização de Mechelangelo Bovero. São Paulo: Elsevier, 2000. KULESZA, Wojciech A. Educação Popular e Educação Básica na história do Brasil. In: SCOCUGLIA, Afonso Celso e MELO NETO, José Francisco (orgs). Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999. MELO NETO, José Francisco. Educação Popular: uma ontologia. In: SCOCUGLIA, Afonso Celso e MELO NETO, José Francisco (orgs). Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999. PAIVA, Vanilda Pereira. Educação Popular e Educação de Adultos. São Paulo: Loyola, 1987 SALES, Ivandro da Costa. Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar (alimentando um debate). In: SCOCUGLIA, Afonso Celso e MELO NETO, José Francisco (orgs). Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999.
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SUBJETIVIDADE EM EDUCAÇÃO POPULAR Nelsânia Batista da Silva
O presente texto procura evidenciar questões levantadas em uma pesquisa realizada sobre a produção de subjetividades e a educação popular, no contexto da Feira Agroecológica e Solidária212. A existência da Feira Agroecológica se dá a partir da organização do movimento de luta pela terra, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da igreja católica. E mesmo reconhecendo o seu caráter econômico como fundamental, desde a sua origem, existem outras dimensões que acompanham a sua trajetória e a sua forma de organização. Os princípios que a embasam seguem um caminho compartilhado com os movimentos sociais populares na sua lógica de organização. É organizada por agricultores e agricultoras de assentamentos de reforma agrária, situados nos municípios de Sapé e Cruz do Espírito Santo. Os produtos são cultivados sem utilização de agrotóxicos e de produtos químicos que degradam a natureza, numa vertente ecologicamente responsável, preservando a vida e o ambiente. Segundo um de seus participantes, a feira foi gerada a partir da necessidade dos trabalhadores e trabalhadoras de se organizarem para atender a sua sobrevivência. Esse processo foi ocorrendo através da articulação dos diversos assentamentos existentes na região que se reuniam freqüentemente para refletir sobre sua realidade. A organização da Feira ocorre através de reuniões, encontros e assembléias, baseada em regimento e estatuto construído coletivamente, com princípios éticos compartilhados por todos. Para a sua sustentabilidade existe um fundo de feira213 coletivo, com contribuições semanais de todos os participantes. A Feira é uma produção humana, construída num contexto histórico, que para sua compreensão buscaremos analisá-la a partir de sua dimensão subjetiva através da educação popular. Para compreender essa produção, discutiremos como se dão as construções subjetivas num contexto de organização que se concretiza com a realização da feira, mas que não perde o seu caráter subjetivo, sem o qual, o concreto deixaria de existir. Esta preocupação remete à construção do pensamento psicológico que tem suas bases epistemológicas na filosofia. Na Grécia antiga, Sócrates e Platão concebiam o humano com a dualidade corpo e alma. O conhecimento estava no mundo das idéias, necessitando ser ativado pelo processo educativo. Já para Aristóteles, corpo e mente eram indissociáveis, compreendendo o humano como uma “tabula rasa”, sem nenhum conhecimento pré-existente. O conhecimento dava-se na realidade do mundo concreto. O conhecimento a respeito do sujeito nas origens do pensamento psicológico era centrado basicamente no indivíduo, sem uma compreensão das relações existentes com o mundo. Nesse sentido, subjetividade era vista como algo individual, pertencente unicamente ao indivíduo. Porém, os behavioristas concebiam um antagonismo entre o indivíduo e o seu meio, em que o comportamento se dava a partir das determinações ambientais. A perspectiva de compreender a subjetividade de forma individualizada, centrada no indivíduo, ainda prevalece com fortes tendências hegemônicas. E apesar do avanço desta compreensão, em função da humanização do sujeito, diferenciando-o dos outros animais, 212
A Feira Agroecológica e Solidária acontece nas sextas-feiras, no campus I, João Pessoa, da Universidade Federal da Paraíba. 213 Fundo de Feira é uma poupança coletiva, em que todos os participantes contribuem com uma porcentagem de sua arrecadação semanal. Esse recurso é utilizado para a organização, manutenção das necessidades coletivas e para pequenos empréstimos dentro do próprio grupo. Os empréstimos são parcelados, sem cobrança de juros, num acordo considerando a condição de pagamento da pessoa.
293 podendo transformar a vida. Nisto, há uma perspectiva de naturalizar as questões relacionadas ao psicológico, distanciando do mundo material. Essa concepção naturalista e individualista do humano afasta-o de pensar uma postura de humano, capaz de transformar sua realidade social. Com uma visão em que há um distanciamento do mundo subjetivo do mundo concreto, é como se um existisse independente do outro, como se não se desejasse olhar além do indivíduo em si mesmo. A forma de compreender o mundo e intervir nele, neste caso na organização de uma Feira Agroecológica e Solidária e em bases à economia solidária, também, depende de uma construção subjetiva de mundo. Mas que subjetividade é essa que se está falando? Essa categoria apresenta-se como algo complexo em um meio de concepções que surgem especialmente num momento que aparece como tema emergente, nos dias de hoje. Em uma experiência dessa natureza, destaca-se a importância da subjetividade enquanto construção humana com o seu mundo, num movimento permanente em que ao transformar o mundo, o sujeito também se transforma, numa relação entre o individual e o social. A organização de uma feira, com as características da agroecologia e solidariedade, significa transformar as relações estabelecidas no próprio ato de sua realização – as mudanças concretas advindas dessa possibilidade de produzir, vender e ratear recursos de forma coletiva, fortalecida por atividade educativa e popular. Estabelece-se um amplo campo de subjetividade que na concepção de Vygotsky (1998: 40): [...] “essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social”. Nesse sentido, o sujeito está em relação com ele mesmo, com os outros numa relação intersubjetiva e com o mundo concreto, dele não podendo se dissociar. Assim, não se pode compreender o sujeito em si, a não ser na sua relação com o mundo. A perspectiva de subjetividade vai sendo constituída historicamente pelo humano. A história humana tem demonstrado uma capacidade de atuação, que a partir da necessidade, o sujeito cria, experimenta, constrói jeitos de viver. Ao se desenvolver enquanto humano, foram construindo linguagem, valores, economia e toda uma cultura que os faz ser como são. Há uma construção cultural coletiva acumulada que mesmo antes de sua existência concreta numa sociedade, já estavam presentes dimensões como linguagens, valores, economia, enfim um mundo que perpassa o ser psicológico do sujeito. Segundo Bock e Gonçalves (2005:124): “ os sentidos produzidos pelos sujeitos são únicos, mas têm sua fonte no mundo dos significados, nos mundos da cultura e do social. No entanto, o sujeito os constrói a partir de sua experiência pessoal histórica que é única”. Vão se construindo jeitos de ser, de sentir, de se expressar no mundo, considerando a história de vida do sujeito, na sua intima relação com o mundo. Contudo, isso não significa a negação das dimensões biológicas, mas a evidência da dimensão subjetiva na constituição humana que se define, neste caso, pela educação popular. Nessa perspectiva, a educação popular e a psicologia sócio-histórica vêm subsidiar essa compreensão. Segundo Gonçalves e Bock (2003: 96): [...]Nessa perspectiva, compreender o indivíduo é compreender ao mesmo tempo a relação indivíduo sociedade, superando a dicotomia. Não há uma sociedade externa ao indivíduo; não há um indivíduo a priori ou independente da sociedade. Desvendar os processos subjetivos e sua constituição é desvendar a relação entre o psicológico e o social, compreendida aqui como uma relação de constituição mútua. As relações existentes na experiência em análise são compreendidas na relação histórica do humano com o concreto e o social. Nesta concepção, o humano é um ser de transformação, mesmo existindo os condicionantes do mundo material. Como o humano é um ser em permanente movimento de transformação, faz pensar que é possível transformar a realidade em função da vida. Mas o movimento é permeado por uma realidade contraditória, em que a ideologia hegemônica acompanha as construções subjetivas. O
294 humano se constitui como um ser que não age exclusivamente pela sua compreensão de mundo, mas existe uma ideologia que perpassa o seu ser, mesmo que nem se perceba, provocando incoerência na sua relação com o mundo. Segundo Reich (2001: 17): A ideologia social, na medida em que altera a estrutura psíquica do homem, não só se reproduz nele, mas também – o que é mais importante – se transforma numa força ativa, num poder material, no homem que por sua vez se transforma concretamente e, em conseqüência, age de modo diferente e contraditório. Então, as percepções, as ações e o pensamento do sujeito apresentam-se permeados de contradições que tornam mais complexa a compreensão da realidade e aquilo que pertencente ao indivíduo. Afinal, existe esse indivíduo independente da realidade? Existe uma diversidade de dimensões que perpassa o indivíduo, a todo instante, e que vai além de uma leitura apenas objetiva, fortalecida por ações educativas em bases populares. A perspectiva de perceber a realidade e o poder de intervir nela possibilitam o desenvolvimento da criatividade, sensibilidade, inteligência, busca de um conhecimento que subsidiem as intervenções humanas voltadas às classes populares - dos que estão a margem, dos que estão distantes do acesso ao conhecimento e ao poder de intervir em função de melhorar suas vidas. É nesse sentido que se afirma a importância de uma educação - educação popular, voltada para esse público. Entende-se que essa intervenção não se dá em si, mas na ação humana sobre o mundo. Nessa relação, o humano transforma a sua realidade e é transformada por ela. Quando a gente decidiu trabalhar agroecologicamente, é tudo educativo, existem alguns atropelos porque quando você está aprendendo claro que em algum ponto você vai chegar a errar, mas está criando aquela capacidade de não errar mais. Então o educativo está cada vez mais fortalecendo a consciência das pessoas, a questão de reclamar, perder a timidez, a vergonha que você tinha em chegar perto de uma pessoa e falar.214 O processo educativo, compartilhado numa perspectiva de educação popular possibilita que os sujeitos reflitam sobre seu mundo, ampliem sua realidade e criem outros jeitos de atuar que podem projetar o futuro, agir com intencionalidade pensando em função melhorar a vida. Quebrar com algo que parece naturalizado e ir além daquilo que se apresenta como determinante. Para o sujeito compreender a possibilidade de intervenção no mundo se faz necessário também compreender a complexidade algo em movimento historicamente construído. E que mesmo entendendo a sua lógica, a intervenção não é total, porém existem as possibilidades que são ampliadas ou restritas pela intervenção humana. Se a realidade estabelece-se de uma certa forma, é por conseqüência da ação transformadora humana. À medida que se entende a possibilidade do poder refletir, de intervir, de transformar o mundo e a si mesmo é que se pode avançar para além dessa realidade. A transformação social, a favor da vida, base dos valores de uma Feira Agroecológica e Solidária, deve considerar o movimento dialético entre as questões individuais e coletivas. Porém, quando se está pensando numa outra lógica de sociedade, com valores construídos diferentes dos alimentados por uma lógica individualista, pode-se ir pensando de que forma o bem coletivo poderia existir sem esmagar o sujeito e suas peculiaridades. Como pensar nesse movimento que possibilite a combinação das necessidades individuais e coletivas sem cair num certo tipo de coletivismo que esmaga o indivíduo e nem no individualismo, tão somente. Mas, que sujeitos e que sociedade são estes?
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Membro da Feira, pertencente ao assentamento Dona Helena, em entrevista realizada para essa pesquisa.
295 A questão é que esses caminhos podem ser pensados, considerando uma estratégia de intervenção do ser humano como construtor de outras subjetividades que alimentem outra lógica de sociedade, direcionada para todos e para todas. Mesmo reconhecendo-se as adversidades que essas proposições enfrentam, é por elas existirem que há uma necessidade de transformações sociais que já estão acontecendo. Só a perspectiva de transformação de valores, em função da vida e não do capital, já faz diferença, como mostra esse esforço coletivo da Feira Agroecológica e Solidária. E isso se dá num processo que não pode ser de um indivíduo, mas de produções subjetivas e intersubjetivas. A perspectiva do sonho não pode ser perdida desde que pensada, desejada, construída, gerada, alimentada, aprofundada e inspirada por homens e mulheres que querem construir outro tipo de sociedade para se viver melhor. A Feira Agroecológica e Solidária, em bases de outra economia, não pode perder de vista as satisfações humanas, durante o percurso de transição para outro tipo de sociedade. Na perspectiva de Calado (2000: 272): É fundamental seu respeito à indissociabilidade entre um rumo libertário e seus respectivos métodos/meios que aqui tomamos como um processo de utopia em construção. Utopia que contemple aspectos e dimensões ao mesmo tempo macro e micro-estruturais, capazes de impregnar as diferentes dimensões do cotidiano e de projetar-se na busca incessante de criar e manter condições favoráveis a um tipo de sociabilidade que faça justiça às aspirações mais generosas do gênero humano. Um humano que possa realizar-se em todas as suas dimensões, pela crítica, na liberdade de expressão, com sensibilidade, criatividade, amorosidade, vivacidade e com a produção. Na concepção de Marx (2001: 141): [...] apropriação sensível da essência e da vida humanas, do homem objetivo, das criações humanas para e por meio do homem, não deve considerar-se apenas no sentido do ter. O homem apropria-se do seu ser unilateral de uma maneira compreensiva, portanto como homem total. Todas as suas relações humanas com o mundo – visão, audição, olfato, gosto, percepção, pensamento, observação, sensação, vontade, atividade, amor – em síntese, todos os órgãos da sua individualidade, como também os órgãos que são diretamente comuns na forma, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento perante o objeto a apropriação do referido objeto, apropriação da realidade humana. Afirmar-se enquanto sujeito, com possibilidade de viver todas as dimensões da vida, é tornar-se mais humano, mais gente, e isso se dá, no campo do social e da realização do seu ser enquanto sujeito transformador de si e do mundo, mesmo em uma micro dimensão como essa da Feira. Isso não tira o reconhecimento das subjetividades inerente à lógica do capitalismo. Nesse sentido, as transformações são processos em curso que precisam ser reafirmados. Através do esforço coletivo de todos e todas que não concordam com a lógica destrutiva da vida, de todos que sonham com a transformação social, no sentido de construir caminhos para uma lógica humanizante. Para tanto, o processo educativo provocador de outras lógicas de produção de subjetividades que favoreçam a vida faz-se necessário. Afirmara-se também no pensamento de Freire (1996: 136): É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a
296 esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógica progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica. Parece sonhador, mas são nas experiências permeadas por contradições, com todos os valores inerentes ao humano, que se podem experimentar outras possibilidades. Esses caminhos são difíceis e de fragilidades evidentes porque são processos em construção, numa direção contrária ao sistema econômico dominante. As relações configuram-se no processo em que o grupo realiza atividades de aprendizagem que alimentam vínculos, dando sustentação ao desenvolvimento do grupo. Constrói-se uma cultura, que de acordo com o pensamento de Vygotsky (1998) passam a ser incorporadas psicologicamente pelos sujeitos. Nesse sentido, percebe-se que as resistências iniciais podem impossibilitar o processo de desenvolvimento do grupo, tendo em vista que é preciso um enfrentamento da realidade no sentido de construir outros caminhos. No grupo, pessoas e realidades se transformam. A partir do olhar sobre a realidade, as pessoas percebem o poder ser diferentes. Esse olhar não se dá de forma individual. Surge a necessidade de um compartilhar de diversos olhares, fortalecendo o processo coletivo. As realidades podem ser evidenciadas, as limitações, os impedimentos conscientes e inconscientes podem ser trabalhados subjetivamente. O grupo é lugar fértil para as construções subjetivas, pois o individual e o coletivo estão em permanente interlocução e diálogo. No grupo, as idéias interconectam-se, evidenciam-se, relacionam-se de forma intensa. As relações intersubjetivas acentuam-se, possibilitando outras conexões e outros diálogos. Esse processo de organização do grupo nasceu num grupo, veio mantendo a sua ética, a sua responsabilidade, tanto com a produção familiar, com a alimentação da família, também com a produção para os consumidores, então isso cria aquele grande relacionamento, aquele grande laço com as famílias que produzem e as famílias que consomem, então a gente está mantendo um pacto de responsabilidade.215 No grupo, as subjetividades entram em conexão direta e indiretamente com outras subjetividades. Uma feira é um grupo com todo tipo de conexões diretas e intersubjetivas. Como o ser humano vive sempre em contato com outros, as subjetividades não são produções individualizadas, mas fazem parte do seu contexto e são produzidas socialmente, permeadas por ideologias de mundo, pelas pessoas, pelas regras estabelecidas, pelas estruturas e pela política. Segundo Marx (2001), assim como a sociedade produz o homem, também, é por ele produzida. No caso da Feira, aquelas pessoas que a fazem ser, estão construindo o ser delas mesmas. Nesse sentido, entende-se que realidades e subjetividades podem ser transformadas. O indivíduo não consegue separar a sua realidade objetiva da subjetiva, pois elas estão em permanente relação. Dessa forma, as realidades objetivas são construções permeadas por subjetividades, alimentadas pelas afetividades do grupo. Veja o depoimento de uma pessoa que pertence a grupo da feira: A relação que a gente tem, acho que é como uma amizade que se tem um com o outro, entendeu. Eu acho que é uma amizade muito profunda. Tanto na experiência da hortaliça, como na experiência da convivência do trabalho, a gente tem essa ligação. Aquele aconchego, um com o outro, que a gente não sabe nem explicar como é aquilo ali, é muito interessante.216
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Membro da Feira, pertencente ao assentamento Padre Gino, em entrevista realizada para essa pesquisa.
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Membro da Feira, pertencente ao assentamento Padre Gino, entrevista para esta pesquisa.
297 Subjetividades essas que não se dão apenas no plano consciente. Estão também na invisibilidade da práxis, marcada pela história de vida do sujeito e por seu contexto social e econômico. O ser humano é um ser essencialmente de relações e, à medida que vai se relacionando, também vai construindo as suas subjetividade. Para Bock e Gonçalves (2005: 121): Estamos usando o termo subjetividade para designar essa configuração – que nunca fica pronto – do processo de transformação do mundo, no âmbito do sujeito; desse sujeito que atua no mundo, que vive o mundo, que faz o mundo, transformando-o e submetendose a ele. Estamos usando dimensão subjetiva para falar sobre a dimensão dos registros simbólicos e emocionais. No entanto, esses registros, além de estarem no campo da subjetividade do sujeito, também estão no campo coletivo, pois se objetivam como leis, valores, regras, significados, ideologias, teorias, ciência e discursos. Assim toda realidade social tem uma dimensão subjetiva. A subjetividade materializa-se na realidade vivenciada pelo humano, acompanhadas de sua objetivação pelas práticas sociais. Analisar o que acontece com o sujeito nas suas relações grupais é compreender as múltiplas dimensões que estão presentes em suas vidas. Assim como outras práticas humanas, a construção do saber está permeada por dimensões subjetivas que não se dão apenas em ambientes formais. As classes populares que não têm acesso ao saber acadêmico e constroem um outro tipo de saber. Todos os conhecimentos precisam ser analisados no seu interior com um olhar crítico e problematizador. Nesse sentido, para sua autenticidade, é necessária a participação de todos os envolvidos. E em se tratando de grupos sociais, a formação se dá no processo de luta, ou seja, nas reuniões, nos encontros, nos seminários, nos cursos de formação, nas visitas de intercâmbio de experiências, nas comemorações, nos contatos e nas conversas informais. Mesmo reconhecendo os processos educativos, decorrentes da luta, esses não bastam. A educação popular com sua metodologia torna-se necessária, acompanhada dos valores da educação de jovens e adultos, devido ao analfabetismo existente em grupos dessa natureza. Assim, pode-se estabelecer uma educação que seja mais cuidadosa com as pessoas. Essas relações desencadeiam em produção de outras realidades que vão se transformando, pautadas pela subjetividade e objetividade. Dessa forma, Barros (2001: 86) compreende o grupo como estratégia que produz outras relações, outras conexões, outras possibilidades de intervenções e de intersubjetivações: Assim, o grupo, como estratégia de formação, opõe-se a utilização do grupo como, simplesmente, mais uma técnica.” [...] O que ganha lugar de destaque é a processualidade, o inventar modos de “aprender”, o poder olhar o texto, o contexto e o fora do texto como fluxos que se atravessam constituindo formas. Nessa concepção, o grupo apresenta-se como uma estratégia na educação popular, capaz de potencializar a produção de conhecimento, de compreender as múltiplas relações que se dão na realidade, de constituir outros modos de existir, de pensar a realidade, de outras possibilidades de intervir no processo de transformação da vida. No processo grupal há toda uma construção subjetiva que permeia o individual e o coletivo. Nesta concepção, não existe um determinismo histórico, porque os sujeitos estão em movimento, buscando outras possibilidades e construindo outras subjetividades. Centrada na concepção de indivíduo, a psicologia adotou como instrumentos de análise psicodiagnóstico, a psicometria, o aconselhamento, as técnicas de dinâmica de grupo e a análise individual. Sem entrar a fundo nessa discussão, a questão que se coloca é se essas abordagens têm dado conta em responder os problemas que se têm desenvolvido por homens e mulheres na sociedade.
298 Entre os humanos, suas ações concretas estão cheias de subjetividades. Por mais concreto que seja um determinado objeto, havendo a intervenção humana também existe a subjetividade. A presença dos humanos se concretiza nas ações dos sujeitos no mundo. Daí que a compreensão da subjetividade se dá nas construções históricas, numa relação entre sujeito e mundo. Segundo Bock (2003: 22): “Nossas concepções sobre subjetividades deveriam unir o mundo objetivo com o mundo subjetivo, a fim de compreendê-los como construções históricas a partir da atuação transformadora do homem sobre o mundo.” A compreensão das produções humanas nessa direção se faz necessária tendo em vista que é exatamente por sua capacidade de pensar, analisar, agir e criar que o humano pode atuar na sua realidade com intuito claro de transformação. Para Furtado (2003: 254): “Trata-se de buscarmos referências que definam esse ser da transformação, que estudem sua subjetividade e que relacionem tal subjetividade dialeticamente a condições objetivas de transformação social.” Existe uma produção em movimento que independe do que se pense e queira. O próprio sistema se encarrega de alimentá-la de forma invisível e sutil por meio de leis, de instituições, de comunicações, de relações, enfim da sociedade civil e política em geral. Nesse sentido, se faz necessário pensar por dentro do pensamento psicológico que vem se desenvolvendo no social: a que tipo de sociedade cada um está servindo? E que projeto de sociedade deseja-se? Tendo em vista que a construção das subjetividades ocorre nas relações dos sujeitos e mundo, Lane afirma (2003: 112): [...] a humanidade é conquista e construção humana que se põe na cultura, nos instrumentos e na linguagem, permitindo que cada homem, ao nascer candidato à humanidade, possa apreender e aprender as formas de ser, de sentir e pensar; possa registrar o já criado e possa imaginar e criar o novo, transformando a humanidade. A preocupação central nesse momento é o humano. Tendo em vista que não se está só no mundo e que o ser humano só existe relacionado com o seu ambiente, não se pode conceber uma subjetividade que só consiga entender indivíduo separado da sua realidade social. O conhecimento científico também tem subsidiado a produção capitalista, levando à perspectiva de que esse conhecimento serve aos propósitos da exploração humana. Nem sempre está voltado ao empenho para uma vida melhor dos produtores dos entes culturais. Considerando o conhecimento produzido a partir de uma educação popular e sua importância no processo educativo em movimentos sociais populares e em grupos populares, pode-se perceber como fundamental a base de construção de outra perspectiva de sociedade. Porém, ela só não é suficiente para dar conta da concretização das transformações. Nesse sentido, buscamos abordar a produção de subjetividades como base na construção de uma sociedade, seja qual for sua perspectiva. Mas não é qualquer tipo de sociedade que interessa às classes populares. Esse sistema competitivo e excludente não tem dado respostas aos problemas sociais produzidos socialmente. Por isso, buscamos compreender a abordagem da economia solidária, presente nessas feiras, que aponta como foco diferenciado de outra lógica, fundamentada em princípios de cooperação, de solidariedade e respeito à vida, a partir de alternativas concretas de se viver, como é o caso da Feira Agroecológica Solidária. Não existe o processo de concorrência entre nós, se eu não tenho um produto, não tem ganância nenhuma entre o grupo, ninguém disputa a essa questão de cliente, você está vendendo, você não chama cliente, não existe esse processo, existe um entendimento entre todo mundo, que todos têm a possibilidade de vender o seu produto e ficar com a sua renda e seguir aquilo que é determinado pelos critérios do regimento interno da feira.217 217
Membro da Feira, pertencente ao assentamento Padre Gino, em entrevista realizada para essa pesquisa.
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Mesmo num ambiente da Feira, este é espaço de convivência que se evidenciam os conflitos de interesse no interior da própria classe, num diálogo que traz consigo os confrontos e as disputas por interesses coletivos e individuais num campo de disputa. E a riqueza é que a diversidade de pensamento é colocada no espaço público, assumindo uma responsabilidade, entendendo que a educação popular não escamoteia as diferenças e, assim, as subjetividades podem se expressar. Aprende-se, contudo, a refletir e a lidar com as diferenças. A esse respeito Ieno Neto (2005:47) afirma que: [...] As práticas de autonomia e emancipação, portanto, não escamoteiam as diferenças e os conflitos, mas os coloca como oportunidade dos assentados aprofundarem suas análises sobre o que querem construir nos assentamentos e a partir deles e, frente ao que se apresenta como diferente, assumir publicamente a responsabilidade por suas decisões. Para isto, fundem-se as possibilidades de concretização de subjetividades e as ações educativas e populares. Esse processo de construção de subjetividades cobra o exercício de práticas educativas que contribuam para que essas atitudes de aprendizagem estejam presentes. As diferenças, confrontos e contradições estão presentes no cotidiano desse grupo. A diferença é que esses conflitos são expressos e podem se propor soluções individuais e coletivas. Um processo educativo, pela educação popular, que possibilita um espaço permanente de discussão e superação de problemas de vivência e sobrevivência em grupo, num movimento permanente. Assim, a educação popular aponta, nessa Feira, para uma aliança entre o subjetivo e o concreto num movimento indissociável, pois um alimenta-se do outro. Segundo o pensamento de Vieira Pinto (1979), a educação seria uma forma de apropriação dos bens culturais que os humanos criaram e desenvolveram ao longo da história. Mas, é por demais conhecido que o acesso aos bens culturais não ocorre de forma eqüitativa, além de não atender aos interesses dos mais desfavorecidos economicamente. A educação, dentro ou fora da escola, como se apresenta está produzindo subjetividades mas é pela educação popular que destaca o olhar do sujeito ao mundo para a sua transformação como um processo permanente. Nesse sentido, a educação popular destaca a vida no contexto histórico, cultural, econômico, ideológico permeando a ação dos sujeitos e alimentando sua criação, suas idéias, seus sentimentos e amor. É exatamente por essa capacidade humana de pensar sobre sua própria realidade que se insiste na possibilidade de intervenção sobre os condicionantes sociais pelos caminhos da educação popular. Tendo em vista, os princípios pelos quais se baseia, considerando o humano como centro do processo educativo, que ao se educar também considera os outros que se educam entre si. Sendo uma educação pela práxis, os conhecimentos teóricos estão sempre relacionados com o mundo da vida dessas pessoas. A experiência analisada mostrou a presença necessária da educação popular nesse processo de construção de subjetividades, expressa em suas reflexões, suas propostas e suas variadas perspectivas de vida, centrada no outro, na inserção objetiva de sua prática, na realização concreta da Feira Agroecológica Solidária. A educação popular contribuindo ativamente na quebra de condicionantes sociais, através da luta pela terra, num percurso permanente até a construção de uma alternativa econômica. Essas e outras alternativas vêm demonstrando que, mesmo reconhecendo as fragilidades dos processos em curso, a educação popular ajuda na desconstrução da idéia de modelo único de sociedade estabelecida. Pela educação popular, têm surgido reações no cotidiano dessas pessoas, nas formas de organização sentidas e pensadas estrategicamente pelos sujeitos que desejem construir essas alternativas. Estas, também, não podem e nem precisam ser únicas. Construídas na diversidade precisam ter um eixo de princípios que as guiem, porém sem perder de vista as necessidades humanas para além do econômico. Essa Feira Agroecológica Solidária
300 é um ambiente de produção de subjetividade e bens econômicos, aprimorada nos exercícios da educação popular. Na perspectiva de Calado (2003: 26): Não basta que apenas o rumo seja socialmente generoso, oposto portanto ao do projeto capitalista dominante. Importante também que os caminhos, os valores e o próprio jeito de caminhar dos protagonistas sejam igualmente alternativos. E aqui começa uma longa e interminável caminhada de aprendizado, de autoavaliação e de aquisição de novas atitudes por parte dos que se pretendem protagonistas (individuais e coletivos) de um processo alternativo de globalização.
Um projeto coletivo que procura sustentar-se em princípios libertários não se sustentará simplesmente num exercício utópico praxeológico, mas esse caminho fortalece-se mesmo, no cotidiano. Um exercício de experimentação de sujeitos que pensam, sentem e agem no intuito de um outro jeito de viver. O processo educativo, na perspectiva da educação popular com seus valores éticos de transformação, contribui para a produção da cultura, da subjetividade, da criação da existência humana para além da mera reprodução, pois instiga os sujeitos a pensarem, a refletirem, a criarem e a intervirem no mundo propositivamente. REFERÊNCIAS BARROS, Regina D. Benevides. Grupo: uma estratégia na formação. In Athayde, Milton, BARROS, Maria Elizabeth; BRITO, Jussara e NEVES, Mery Yale (Orgs.). Trabalhar na escola? Só inventando o prazer. Rio de Janeiro: IPUB/ CUCA, 2001). BOCK, Ana Mercês Bahia. Psicologia e compromisso social. São Paulo: Cortez, 2003. BOCK, Ana Mercês Bahia; GONÇALVES, MARIA da Graça M. Indivíduo-Sociedade: uma relação importante na psicologia social. In. Bock, Ana Mercês Bahia. (Org.) A Perspectiva sócio-histórica na formação em psicologia. Petrópoles: Vozes, 2003. ______, Ana Mercês Bahia; CONÇALVES, Maria da Graça Marchina. Subjetividade: o sujeito e a dimensão subjetiva dos fatos. In: REY, Fernando González. (Org.). Subjetividade, complexidade e pesquisa em psicologia. São Paulo: Pioneira Thompson, 2005. CALADO, Alder Júlio Ferreira. Tecelão da utopia: uma leitura transdisciplinar de Paulo Freire. In RODRIGUES, Luiz Dias e VASCONCELOS, Eymard Mourão.(Orgs) Novas configurações em movimentos sociais. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2000. ______. O labirinto da educação popular. In BRENNAND, Edna Gusmão de Góes. João Pessoa: Editora Universitária, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. FURTADO, Odair. Psicologia e o compromisso social. In: BOCK, Ana Mercês Bahia.(Org.). Psicologia e o compromisso social. São Paulo: Cortez, 2003. IENO NETO, Genaro. Assentamentos rurais e desenvolvimento: em busca de sentido – Projeto Lumiar na Paraíba. Tese de Doutorado, UFPB/CCHLA/PPGS. João Pessoa, 2005. LANE, Silvia T. M. Emoções e Pensamento: uma dicotomia a ser superada. In. Bock A. M. B. A Perspectiva sócio-histórica na formação em psicologia. Petrópoles, RJ: Vozes, 2003. MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001. REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001. VIGOTSKI, Levi Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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EDUCAÇÃO POPULAR E DIÁLOGO: precisa a educação (popular) ser dialógica(?)
Antonio Roberto Faustino da Costa
O diálogo é imanente à intersubjetividade, sendo portanto imprescindível à subjetividade ou O diálogo é imanente à subjetividade, sendo portanto prescindível a intersubjetividade
O “Outro” Descoberto O fim das descobertas imperiais, “profecia” escrita no final do último milênio pelo professor Boaventura de Sousa Santos, parece bastante sugestiva para instaurar este “diálogo” Como supõe o título, a preocupação em pauta é dimensionar as razões e conseqüências das descobertas imperiais no segundo milênio depois de Cristo, o que coincide particularmente com a história dos impérios europeus, ou melhor, do império Ocidental. Apesar do ato da descoberta ser recíproco (quem descobre também é descoberto) e terem sido muitos os descobridores, o Ocidente acabou se tornando hegemônico. Não por acaso, restou ao descoberto assumir um ou mais desses três estigmas – o Oriente, a natureza e o selvagem.A descoberta imperial é constituída por duas dimensões: uma – empírica – o acto de descobrir, e outra – conceptual – a idéia do que se descobre. Ao contrário do que pode parecer, a dimensão conceptual precede a empírica: a idéia que se tem do que se descobre comanda o acto da descoberta e o que se lhe segue. O que há de específico na dimensão conceptual da descoberta imperial é a idéia da inferioridade do outro. A descoberta não se limita a assentar nessa inferioridade, legitima-a e aprofunda-a. O que é descoberto está longe, abaixo e nas margens, e essa `localização´ é a chave para justificar as relações entre o descobridor e o descoberto após a descoberta. (Santos, 2002, p.23) A construção da inferioridade, a partir de múltiplas estratégias de imposição econômica, política e cultural, é condição sine qua non, portanto, para consolidar a descoberta imperial. Começa pelo fato de que a descoberta do Oriente, onde até então nasceram as civilizações e os impérios, constitui a mais importante do segundo milênio, não apenas do ponto de vista geopolítico, como sobretudo histórico-antropológico. Em outras palavras, marca a transformação do Ocidente em centro da história universal. Até o século XV, a Europa e o Ocidente como um todo “formam a periferia de um sistema-mundo, cujo centro está localizado na Ásia Central e na Índia. Só a partir de meados do milênio, com os descobrimentos, é que esse sistema-mundo é substituído por outro, capitalista e planetário, cujo centro é a Europa.” (Santos, 2002, p.25) Além de se tornar uma rivalidade civilizacional maior do que o conflito Norte-Sul, a formulação de que a Europa/Ocidente representa a consumação absoluta da história universal encontra em Hegel sua concepção mais bem elaborada. “A idéia bíblica e medieval da sucessão dos impérios (translatio imperii) transforma-se em Hegel no caminho triunfante da Idéia Universal dos povos asiáticos para a Grécia, desta para Roma e, finalmente, de Roma para a Alemanha.” (Santos, 2002, p.25) Se isso não se deu de forma “natural”, por um lado, coube às cruzadas dobrar o Oriente temível e temido através da guerra e da exploração comercial, enquanto, por outro, coube às futuras ciências e humanidades enquadrar o mesmo sob o signo
302 do orientalismo, isto é, da não racionalidade, restando ao Ocidente dar conta do seu controle e assistência ao seu desenvolvimento. O desenvolvimento científico ocidental, igualmente, foi crucial à construção e consolidação da descoberta da natureza. Lugar da exterioridade, a natureza também constitui lugar de inferioridade e irracionalidade, pelo menos, até enquanto não se dispõe de conhecimento suficiente para domina-la e usa-la, plenamente, como insumo fundamental ao novo sistema capitalista que se expande a partir da Europa. Neste caso, recorre-se a estratégias de poder e dominação que transformam tanto a natureza como o selvagem que aí vive em “duas faces do mesmo desígnio: domesticar a `natureza selvagem´, convertendo-a num recurso natural. É essa vontade única de domesticar que torna a distinção entre recursos naturais e recursos humanos tão ambígua e frágil, no século XVI, como hoje acontece.” (Santos, 2002, p.33) A conversão, escravidão e genocídio de inúmeras populações ameríndias e africanas foram legitimados, portanto, por essa concepção dominante e extremamente apropriada à terceira e última grande descoberta do segundo milênio. “O selvagem é a diferença incapaz de se constituir em alteridade. Não é o outro porque não é, sequer, plenamente humano.” (Santos, 2002, p.29) Desta feita, muito antes de Hegel, foi Aristóteles quem deixou de herança o estigma que irá marcar, milenarmente, os povos inferiores. Conforme sua teoria da “escravatura natural”, tendo a natureza criado uma parte superior para mandar e outra inferior para obedecer, é natural que o homem livre exerça domínio sobre o escravo, o marido sobre a mulher e o pai sobre o filho. Obedecer significa, justamente, privar-se da vontade e da razão e se deixar tutelar por quem as tem em pleno e legítimo usufruto. Em meados do século XVI, em pleno período do descobrimento da América, a máxima aristotélica vai nortear a chamada “disputa de Valladolid”, convocada pelo rei Carlos V e protagonizada por Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda que confrontam dois discursos paradigmáticos a respeito da natureza e dominação dos povos indígenas. Muito bem inspirado em Aristóteles, Sepúlveda defende veementemente a guerra contra os índios que não passariam de seres inferiores, animalescos, pecadores, em suma, “escravos naturais”. Como a integração à nova civilização resulta em benefício dos aborígines, se estes resistirem à justa dominação dos seres superiores, acabarão culpados pela sua própria eliminação. A inferioridade dos índios, contesta por sua vez Las Casas, é usada para justificar uma brutal exploração em nome da fé e dos bons costumes. Ao paradigma da descoberta imperial, construído e legitimado com base na violência civilizadora do Ocidente, contrapôs Las Casas a sua luta pela libertação e emancipação dos povos indígenas, quem considerava seres racionais e livres, dotados de cultura e instituições próprias, com os quais a única relação legítima era a do diálogo construtivo assente em razões persuasivas suavemente atractivas e exortativas da vontade (Santos, 2002, p.31). Como provou a história moderna e contemporânea, prevaleceu o paradigma de Aristóteles/Sepúlveda, até porque se apresentava compatível com as necessidades da civilização ocidental e as vocações do capitalismo emergente, mais tarde, hegemônico e globalizado.218 Ainda que Boaventura de Sousa Santos em nenhum momento sugira e, por isso mesmo, possa até soar uma imprudência, o que interessa aqui insinuar, de modo especial, é a seguinte analogia: a descoberta da educação, do mesmo modo, representa uma descoberta imperial, no caso, da sociedade moderna ocidental sobre a criança e, por extensão, sobre o povo. O que implica dimensionar, desta feita, as reais possibilidades e limites do “diálogo construtivo” tão bem proclamado por Las Casas que, ao invés de Aristóteles, deveria ter em mente Sócrates, traduzido através de Platão.
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“Expulsa das declarações universais e dos discursos oficiais é, contudo, a posição que domina as conversas privadas dos agentes do Ocidente no Terceiro Mundo, sejam eles embaixadores, funcionários da ONU, do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional, cooperantes, empresários etc. É este discurso privado sobre pretos e índios que mobiliza subterraneamente os projetos de desenvolvimento, posteriormente enfeitados publicamente com declarações de solidariedade e direitos humanos.” (Santos, 2002, p.32)
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2 O “Nós” Descoberto Conforme o professor José Francisco de Melo Neto, preocupado essencialmente com a verdade, a virtude e a conduta reta Sócrates é quem primeiro introduz a técnica de perguntar e responder, objetivando estabelecer de forma lógica o confronto de pontos de vista entre interlocutores. A arte do diálogo, que tem como base o método da argumentação (logos), vai encontrar sua forma mais elaborada na própria dialética. De légein a logos, de dialégein a dialégesthai (um agir que originará diálogo), há um processo de superação e manutenção de conceitos anteriores que irão fundamentar a análise da unidade entre pensamento e palavra, da unidade entre ato comunicativo e um ato reflexivo da intersubjetividade e subjetividade ou mesmo a busca de um horizonte que fundamenta a relação entre aquilo que se `diz´ e aquilo que se `é´. Com essa origem, dialética se confunde com a descoberta grega do logos e o seu exercício, em Platão, é o próprio ato de filosofar. (Melo Neto, 2003, p.6) Nesses termos, a filosofia compreende uma atitude que não se confunde com afirmações categóricas, dogmáticas nem definitivas. Parte do pressuposto, não obstante, da necessidade de superação permanente dos conhecimentos e das certezas prévias por uma verdade mais profunda que se situaria na própria interioridade dos sujeitos. Dialógico, por excelência, esse procedimento acaba conduzindo “a educação para as bases, necessariamente, de uma episteme (ciência), distanciando-se do plano instável da doxa (opinião). Platão, com a herança socrática, marca a direção da luta crítica (dialética) com as formulações educativas de seu tempo e com a tradição histórica de seu povo” (Melo Neto, 2003, p.12). Na direção da episteme, torna-se fundamental à Plantão chegar à compreensão da virtude que expressa a totalidade e cuja essência ou equivalência é o saber. Na ausência deste estaria a grandeza socrática, cuja melhor tradução é o diálogo estabelecido com um escravo de Mênon, fazendo o primeiro “descobrir conhecimentos da geometria que nunca havia estudado.” (Melo Neto, 2003, p.18) Aristóteles/Sepúlveda, certamente, descobriria que o outro não se tratava apenas de um “homem simples e de pouca cultura”, mas um ser inferior, animalesco e irracional, que precisaria do conhecimento exterior, de uma civilização verdadeiramente humana, racional e superior (Santos, 2002). Sócrates/Platão, por seu turno, vai levar o outro a descobrir que o saber se encontra no próprio interior de cada um, independentemente de ser homem livre ou escravo. O que importa, na verdade, é que a busca do conhecimento parte de um desejo imanente de descoberta que transcende a mera e simples assimilação passiva. Em Platão, a força de Sócrates está no diálogo, na condução dos encaminhamentos de suas questões. Em algum momento, se admite o ponto de chegada para uma compreensão definitiva do algo em discussão. No momento seguinte, pelo encanto de sua arte dialógica, deixa-se escapar o resultado aparentemente alcançado. Dirige-se no sentido de que cada um realize o seu próprio encontro. Assim, é que a nova paidéia não se encontra possível de `ensino´, algo aceito pelos sofistas, e, desse ponto de vista, mostra com razão a impossibilidade de que a educação humana seja encerrada, apenas, na instrução, a perspectiva sofística. (Melo Neto, 2003, p.23) No caso de Sócrates/Platão, portanto, a estrutura interna do pensamento é essencialmente dialógica, pressupondo a necessidade de aproximação entre o escrito e o oral, onde vai estar necessariamente presente o contexto e/ou o outro. Daí se estabelecer, por excelência, uma relação intersubjetiva, demarcada, ao mesmo tempo, por um diálogo interior e um diálogo exterior. Através da técnica da pergunta e da resposta, que subentende a postura do
304 ouvir, abre-se a perspectiva de surpreender a si próprio e ao outro com quem se dialoga, tendo entretanto como horizonte último e justo a plena verdade. Além de criar as possibilidades necessárias para a realização da maiêutica - a aprendizagem consigo próprio através do estabelecimento de um interlóquio com o outro, o pensamento socrático-platônico institui o diálogo como condição sine qua non para a razão política. Pode-se interpretar a filosofia de Platão como um `iluminismo ético´ e, portanto, denunciadora ao considerar uma autoconsciência marcada pelo conflito da idéia de autonomia do sujeito e uma ética do discurso, apoiado no diálogo pela dialética. E esta é uma ética que tem seus fundamentos em princípios da ação comunicativa – da intersubjetividade. Contudo, esta nova época de um reino da intersubjetividade, pautada, agora, em bases ao idealismo alemão, será realizada por Habermas, em sua teoria do agir comunicativo. (Melo Neto, 2003, p.41) Adiando por enquanto a intersubjetividade de Habermas, parece útil fazer uma digressão para convocar a este “diálogo” Bakhtin e Vygotsky, especialmente, a partir de suas concepções acerca da subjetividade e da dialogicidade. Conforme a professora Maria Cláudia Santos Lopes de Oliveira, o elemento central da noção de linguagem de Bakhtin (1895-1975) “é a defesa do caráter dialógico das atividades discursivas, coerente com sua visão de mundo pluralista e polissêmica. Vygotsky (1896-1934), contemporâneo de Bakhtin, é um dos pilares da psicologia sócio-histórica” (Oliveira, 2003, p.85). Antes deles, apesar de Sócrates/Platão haver instaurado o diálogo como método filosófico para alcançar a verdade, vai ser a vez do pensamento fenomenológico-existencialista conceber o diálogo como o contexto em que a comunicação de consciências consegue se realizar. Nos desdobramentos da filosofia da linguagem, com a especial contribuição de Bakhtin, a idéia de diálogo é ampliada para comportar tanto a descrição de uma forma particular de interação comunicativa, como ainda um modo específico de enfocar a atividade discursiva, em que todo enunciado é visto como marcado, necessariamente, pelo outro. (Oliveira, 2003, p.78) Lançam-se Bakhtin e Vygotsky, por isso mesmo, contra a filosofia da consciência, também conhecida como filosofia do sujeito219. Sua origem remonta as duas principais correntes de compreensão moderna do conhecimento: de um lado, a tradição realista/empirista (de Locke e Hume) que concebe o conhecimento como constituído do mundo exterior para o mundo interior do sujeito, a quem não se atribui qualquer papel de intervenção; de outro, a tradição idealista/racionalista (Descartes e Kant) que separa o empírico da razão, cuja constituição tem como base estruturas forjadas a priori. Em ambas as vertentes, “o ato cognitivo é regido pelo postulado da equivalência entre o objeto real e o epistêmico. Em outras palavras, o objeto do conhecimento – de domínio seja dos sujeitos, seja da ciência – é o objeto reconstruído nos sujeitos na forma de uma representação mental.” (Oliveira, 2003, p.75) O que acaba fazendo a filosofia da consciência é levar até as últimas conseqüências a concepção engendrada na Grécia clássica do conhecimento como representação, cuja função é estabelecer a relação entre o real e a consciência, trazendo até esta a realidade externa. O conhecimento, nesse sentido, diz respeito ao resultado do encontro entre sujeito e objeto, ou ainda, à correlação entre objeto real e objeto de conhecimento, na medida em que o sujeito internaliza “algo” em relação ao qual mantém o objeto relação de equivalência. Decorre daí a 219
Ao criar a figura conceitual do sujeito, explica o professor Jorge Luis Acanda, a filosofia moderna “manifestaba su rechazo a la ideología clerical-feudal y su interpretación del hombre como ser pasivo y subordinado a un orden invariable por divino. Con el término sujeto se quiso expresar la capacidad activa y transformadora del ser humano, el carácter racional de su actividad y su pensamiento.” (Acanda, 2001)
305 noção de sujeito da representação, cuja subjetividade reside no centro da vida emocional, do juízo e da consciência e cujas fronteiras entre o mundo subjetivo e objetivo, entre o eu e o outro encontram-se nitidamente demarcadas. Resumindo, esse sujeito é o que Taylor (1986) vai qualificar como monológico e desengajado, enquanto Bannel (1999) o define como desencarnado, porque despido de referências sociais ou históricas. Sua mente, dotada de racionalidade irrestrita, geograficamente situada no cérebro, é capaz ainda de submeter o conhecimento produzido a critérios de objetividade e validade, condições para a aproximação à verdade. (Oliveira, 2003, p.76) Essa concepção de subjetividade tornou-se preponderante não só nos diversos campos tradicionais da ciência, como também do conhecimento cotidiano, objeto das humanidades e ciências sociais. No caso particular da educação e da psicologia, como o modelo se aplica muito mais ao sujeito adulto, pouco contribuiu não obstante para dar conta das especificidades inerentes ao processo de construção do conhecimento por parte das crianças e adolescentes. Essa crítica tem assento em Bakhtin e Vygotsky e chega à atualidade através das correntes teóricas que concebem a subjetividade - e o conhecimento aí incluído – como imersa na intersubjetividade220. Em sendo interativa e não podendo se reduzir as suas partes constituintes, a intersubjetividade constitui o contexto que se produz entre os sujeitos, ou seja, o território sociocultural concreto no qual os indivíduos interagem e se tornam sujeitos (Oliveira, 2003, p.89), como já havia preconizado a concepção hegeliana: A diferencia de Kant, que entendía las estructuras que condicionaban la actividad racional del hombre como estructuras a priori, existentes desde siempre en la razón humana, Hegel las interpretó como estructuras históricas, que cambiaban con la evolución de la sociedad. Esas estructuras históricas condicionaban no sólo la actividad cognoscitiva, sino toda las formas de subjetividad social. (Acanda, 2001) Nessas circunstâncias, a subjetividade não mais se define pela sua dimensão interna (a consciência, as representações etc.), mas pela sua dimensão externa que remete, diretamente, às práticas sociais e aos significados compartilhados. O sujeito, agora, define-se pela sua experiência social, ação no mundo e transformação deste. Através da linguagem, participa de redes de ação e interação dialógica, cuja multiplicidade de forças sociais envolvidas no universo histórico-cultural o faz constituir, ao mesmo tempo, em sujeito singular e plural. O conhecimento, por sua vez, compreende uma “atividade semiótica e socialmente mediada de interpretação da realidade e de si, por sujeitos integrados em contextos de co-participação social.” (Oliveira, 2003, p.82) Importante é que os processos de significação gerados pelo compartilhamento ou interação dialógica não são prioridade nem propriedade privada dos interlocutores. Como reflexo até das práticas discursivas constituírem produções histórico-culturais, os discursos inscrevem-se e pertencem ao próprio campo mais amplo da intersubjetividade, informando inclusive sobre a totalidade das relações sociais aí envolvidas. A linguagem é, pois, um instrumento intersubjetivo e social. Através do discurso, os diferentes grupos e frações de grupo estabelecem entre si fronteiras simbólicas que os protegem e marcam uma posição diferenciadora em relação à parcela da sociedade por eles representada como o outro, o não-grupo. É contra o pano de fundo do estabelecimento de assimetrias sociais, de hierarquizações e estratificações que permeiam, com raras exceções, as relações entre 220
As concepções de hegemonia de Gramsci e de saber/poder de Foucault (ambos de origem marxista) compartilham, do mesmo modo, da preocupação em compreender os sujeitos como resultados de processos históricos. “A la luz de estas concepciones, y de la propia experiencia histórica de este siglo que termina [século XX], pensar a los sujetos como intersubjetividad y precisar el perfil de su autonomía significa necesariamente reconsiderar el modo clásico en el que, hasta ahora, entendíamos la relación entre educación y estructuras de poder. El ser humano se objetiva a través de un conjunto de prácticas, discursivas y no discursivas. Estas prácticas están siempre mediadas por `instancias de verdad´, estructuras que valoran, le dan un sentido y una orientación a las diversas formas de objetivación de la persona. Esas `instancias de verdad´ son la esencia del poder, y por lo tanto de su reproducción.” (Acanda, 2003)
306 interlocutores, fazendo do discurso a arena da disputa ideológica e de explicitação das relações de poder, que a capacidade retórica e argumentativa dos falantes se desenvolve, podendo chegar a ressignificar o jogo de forças no qual os sujeitos em interação discursiva se encontram. Refirome aqui ao que Garcez (1998), aliando-se a Bakhtin, denomina de competência enunciativa do falante a capacidade de manter-se no lugar de sujeito da enunciação, de `tomar a palavra´. (Oliveira, 2003, p.84) Posta a importância da intersubjetividade, faz-se necessário chamar a este “diálogo” a contribuição de Habermas que visa superar, por seu turno, a filosofia da consciência herdada por Adorno e Horkheimer, principais teóricos da Escola de Frankfurt. Não é por acaso que a grande preocupação habermasiana relativamente à problemática da linguagem o aproxima tanto de Bakhtin e Vigotsky. “A manutenção do debate e da possibilidade de avanços sociais, além de seu otimismo para com a humanidade fazem Habermas encontrar na linguagem as condições para tal exercício, formulando uma teoria da intersubjetividade ou da ação comunicativa.” (Melo Neto, 2003, p.42) Antes de tudo, Habermas propõe a superação da razão instrumental por uma razão comunicativa, isto é, a transcendência do primado das teorias científicas por uma teoria crítica, capaz de confrontar a filosofia tradicional, criticar o sistema social, organizar a racionalidade humana e resgatar a sua dimensão emancipadora. Conforme a professora Barbara Freitag, isso implica uma ética discursiva que se define, por um lado, na contramão da teoria da moralidade de Kant, Durkheim e Piaget e, por outro, numa tentativa de síntese: “é kantiana ao aceitar a autonomia do homem como télos da moralidade, é durkheimiana quando reconhece a importância do social e é piagetiana quando admite que os princípios que orientam a ação moral não são inatos, mas objeto de uma construção psicogenética.” (Freitag, 2003, p.61) A proposição da razão comunicativa, em conseqüência, acaba instaurando a mudança do paradigma da consciência (estruturado na relação sujeito-objeto e preso ao domínio teórico ou prático dos objetos) para o paradigma da linguagem (estruturado na relação sujeito-sujeito e direcionado ao entendimento) (Melo Neto, 2003, p.48) que a define como uma prática social resultante das capacidades interativas, cognitivas e comunicativas dos sujeitos (Oliveira, 2003, p.97) Desse modo, transforma a linguagem em ponto de partida e de chegada da reflexão e do conhecimento da sociedade sobre si mesma e o mundo dos objetos. Nesse sentido, a razão comunicativa é acima de tudo essencialmente dialógica. “Ela não mais se assenta no sujeito epistêmico mas pressupõe o grupo numa situação dialógica ideal. A verdade produzida nesse novo contexto é processual e depende dos membros integrantes do grupo.” (Freitag, 2003, p.49) Superando a razão inata, subjetiva e monológica kantiana, Habermas postula uma transparência intersubjetiva que se baseia em um diálogo capaz de confrontar e avançar, progressivamente, as competências lingüística e cognitiva de cada sujeito participante. Assim como Bakhtin e Vygotsky, Habermas compartilha da abordagem pragmática que considera que a comunicação em seu conjunto constitui o eixo de atenção da linguagem. A pragmática compreende esta não só como meio de comunicação através do qual se estabelecem as interações sociais, senão também como contexto em que se produzem e negociam os significados. “Assim, a linguagem estará superando a sua função de representação (verdade dos fatos), enfocando a dimensão interativa (ego e alter, contraindo relações interpessoais – uma interação) e a função expressiva (intenção ou subjetividade dos falantes).” (Melo Neto, 2003, p.50) Através do diálogo, a língua tanto pode ser ressignificada como, dependendo justamente da circunstância, até transformada. Daí emergir a preocupação em dimensionar, desta feita, até que ponto as mudanças intersubjetivas podem provocar impactos em níveis mais expressivos da sociedade. Notadamente, quando se considera que a “elevação da consciência e a emancipação que, para Marx, seriam efeito do trabalho social, Habermas, à moda de Hegel, atribui às relações sociais lingüisticamente mediadas.” (Oliveira, 2003, p.97)221 221
Embora tenha colocado a interpretação dialético-materialista da produção no centro de sua concepção, Marx já assinalava algo extremamente importante: “Al producir su vida material, los hombres establecen entre ellos una red de relaciones sociales, que condicionan a la vez sus formas de
307 Apesar de J. Wertsch chamar atenção de que se trata de uma questão ainda pouco compreendida, ressalta Oliveira (2003, p.86), sobretudo com Habermas é possível tratar da subjetividade no âmbito das práticas interativas e discursivas, dimensionando a ação comunicativa além dos pequenos grupos. Sem incorrer no erro de Durkheim, confundindo as sociedades reais com o ideal de sociedade, mas evitando também o pessimismo pós-moderno a la Lyotard, Habermas defende a sobrevivência da razão comunicativa no contexto societário de hoje, exigindo a institucionalização do discurso (teórico e prático) em todos os níveis e em todas as áreas de sociedade, ou seja, a renegociação permanente, por parte de todos os membros da sociedade, da verdade do saber acumulado e da validade das normas estabelecidas, assim como da veracidade de todos os participantes do discurso. (Freitag, 2003, p.58) Aqui, em que pese soar idealista, a perseguição do consenso absoluto através do diálogo ganha importância cada vez maior, não devendo ser confundida com atitude ingênua de conformação ao status quo. Mas como condição fundamental para a existência de interação social e reabilitação da esfera pública, através de atos de fala capazes de - antes de se transformarem em atos de poder - constituírem atos de compartilhamento e compreensão em sentido filosófico. Considerando que a comunicabilidade, o diálogo e o consenso são imanentes à própria humanidade, Habermas acredita que cabe a uma “pragmática universal” colocar-se o desafio de construir as bases do “entendimento possível” em nível planetário, o que, em hipótese alguma, deve ser alcançado em decorrência de coerções ou injunções externas. Ao contrário, deve pressupor a colaboração recíproca, através da qual os sujeitos “interagem num processo de aproximação da verdade sobre o objeto do diálogo. Sua base é racional pois se baseia em convicções comuns. Com esta compreensão do entendimento se dará a chegada ao consenso – uma razão comunicativa.” (Melo Neto, 2003, p.53) A razão comunicativa, por assim dizer, resulta de um acordo racionalmente social, em que os interesses particulares são sobrepujados e as manifestações individuais de subjetividade superadas pelo princípio da cooperação de um saber coletivo e compartilhado. Esse processo de cooperação é conduzido pela argumentação que deve culminar no entendimento último sobre o mundo objetivo, social e subjetivo. “A comunicação indica que em cada situação definida, os participantes podem modificar sua definição inicial da situação, tornando-se parte de novas interpretações que os demais atores deram a ela, instalando a possibilidade do diálogo ilimitado.” (Melo Neto, 2003, p.60) Habermas não esquece, porém, de reclamar condições gerais de simetria como essenciais ao estabelecimento da ação comunicativa: todos os sujeitos participantes em um discurso devem ter oportunidades iguais de empregar os atos de fala; todos devem ter oportunidades iguais de efetuar afirmações, problematizar, dar explicações etc.; todos devem ter oportunidades iguais de expressar seus desejos, sentimentos e atitudes; e todos devem ter oportunidades iguais de empregar atos de fala regulativos, como exigir e dar razão, proibir e permitir etc. A ação comunicativa, nesses termos, “torna-se um conceito normativo, um padrão ideal a ser buscado e um critério de evolução social. Uma sociedade organizada com bases neste tipo de ação, referenciada no diálogo, apresenta um alto nível de racionalidade, representando também maior avanço social.” (Melo Neto, 2003, p.61)222 Expressando a indissociabilidade entre o mundo objetivo das coisas (o cognitivoinstrumental), o mundo social das normas (o prático-moral) e o mundo subjetivo dos subjetividad. Esas relaciones sociales son tanto (y simultáneamente) relaciones de los hombres con los objetos (relaciones objetuales) como relaciones de los hombres entre sí (relaciones intersubjetivas).” (Acanda, 2001) 222 Não deixa de ter como horizonte a concepção habermasiana um modelo de sociedade muito próximo ao ideal socrático/platônico, no qual a educação é concebida “como um centro para a existência própria do Estado. Só o seu desenvolvimento gerará homens excelentes. Contudo, se há um Estado ideal ele, em si mesmo é completo, descaracterizando qualquer tipo de mudança. Seu progresso será expresso, unicamente, pelo desejo de sua conservação. O homem justo e a cidade justa são, profundamente, semelhantes. Atingindo esse ideal, Platão identifica a estrutura do Estado com a da educação. A realização do Estado estará, assim, condicionada à própria realização da verdadeira justiça.” (Melo Neto, 2003, p.33)
308 sentimentos (o prático-estético), o pensamento habermasiano aposta num processo educativo através da razão comunicativa, orientadora de relações humanas e sociais mais democráticas e em favor de um mundo melhor. Pressupõe, desse modo, uma intersubjetividade promovida pela prática do diálogo e uma pedagogia crítica mediada e consubstanciada na práxis. Uma práxis de um novo tipo que procura “elevar a humanidade à razão científica universal, de conformidade com normas de verdade, transformando-a numa humanidade renovada a partir de seus fundamentos...” [...] Uma teoria social que se reafirma por uma reinterpretação das necessidades históricas e práticas, dos fins, dos valores e das normas, orientando-se para uma práxis emancipadora. Contudo, este exercício praxeológico intersubjetivo, presente o diálogo, no campo da educação, será realizado na vasta experiência de Paulo Freire. (Melo Neto, 2003, p.62-63) A teoria e a prática pedagógicas freireanas encontram no diálogo o alicerce para a experiência crítica e dialética entre educador e educando. Se não despreza do educador sua competência técnica e instrumental, leva-o a estabelecer como princípio ético por excelência a necessidade do entendimento democrático com o educando. “A práxis social com momento de processos educativos passa a se constituir como o fundamento do desenvolvimento histórico da sociedade, estando sempre presente o diálogo.” (Melo Neto, 2003, p.64) Central em Freire é a concepção de que ninguém se educa nem muito menos se liberta senão através de uma ação/produção cultural e coletiva. “Sem o diálogo torna-se impossível a comunicação entre falantes e ouvintes e a educação promotora da construção do ser humano transformador.” (Melo Neto, 2003, p.71) O diálogo aí inscrito, aliás, não pode ser qualquer diálogo, mas sobretudo aquele cuja exigência política o torna capaz de conduzir, inexoravelmente, à educação problematizadora que prepara o homem para a captação e intervenção no mundo, inclusive através do respeito e valorização dos atos de fala de cada sujeito participante no processo de interação. O diálogo, na ação pedagógica de Freire, é promotor da colaboração entre o eu e o tu, alimentando a possibilidade de que eu e tu se tornem sujeitos de seus próprios mundos. Há um diálogo que pelo ato da fala se torna comunicação, efetivando-se como instrumento de colaboração. O diálogo também funda a colaboração. Mas para realizar a colaboração, pela visão de que ninguém se liberta sozinho, o diálogo é orientado para que possa promover a união, na perspectiva da liberdade. O diálogo assume a dimensão de que só será se servir para unir para a libertação. (Melo Neto, 2003, p.78) A união ou unidade, cuja base é o diálogo, deve levar necessária e concomitantemente à organização política e à ação cultural. O que implica uma organização comprometida com a transformação das estruturas sociais, evoluindo pari passu com uma ação dirigida à superação da cultura alienante e alienada. “Portanto, a prática pedagógica de Freire contém uma teoria da educação que vislumbra uma permanente e ilimitada experiência dialógica, voltada à tarefa histórica, de que os oprimidos possam não só se libertar como também libertar os seus opressores.” (Melo Neto, 2003, p.80) Como dizia o próprio Freire, para ser autêntica é imprescindível que a revolução venha a encerrar uma revolução cultural. O diálogo em Freire, por isso mesmo, é condição sine qua non para os sujeitos abandonarem o estágio de domesticação e atingirem um processo de conscientização, superando a consciência ingênua ou intransitiva por um estágio de consciência essencial a uma educação devotada à responsabilidade política e social. Cabe à educação e à pedagogia, nesse caso, manterem “a busca permanente pela consciência crítica223, sem deixar de priorizar o ato de conhecimento que se realiza via diálogo.” (Melo Neto, 2003, p.69) A partir daí, instaura Freire a pedagogia do diálogo que elege como projeto apostar na liberdade como condição para o diálogo permanente entre homens e mulheres, visando o estabelecimento e fortalecimento de processos crescentes de autonomia individual e coletiva. 223
Conforme enfatiza a professora Edna Gusmão de Góes Brennand, o “que caracteriza a consciência intransitiva é a falta de motivação, ausência de compromisso, dificuldade de discernimento, interpretação simplista da realidade. Ao contrário, a consciência crítica desenvolve constantemente a capacidade de revisões e reinterpretações, a segurança na argumentação, a facilidade para o diálogo, abertura à transformação.” (Brennand, 2003, p.87)
309 Uma pedagogia que vai fornecer bases teóricas para a compreensão da educação não só como instrumento de elevação do padrão cultural, mas também, como meio de integração dos marginalizados sociais ao padrão médio do saber de sua sociedade e de seu tempo histórico, como instrumento de democratização e de formação da cidadania, daí a sua denominação de popular. (Brennand, 2003, p.61) Lança Freire, em suma, as bases da educação popular, cuja metodologia toma como ponto de partida a emergência de uma consciência democrática que coloca em xeque o autoritarismo da educação tradicional e bancária, marcada pela distinção categórica dos papéis de sujeito e objeto no processo pedagógico. “Segundo Freire a razão se expande no diálogo. O seu caráter relacional dá força à exteriorização da razão subjetiva e permite ao indivíduo participar da construção de sua história de forma consciente, reflexiva.” (Brennand, 2003, p.91) 3 O “Eu” Descoberto O estabelecimento de relações dialógicas “entre os iguais e os diferentes” e “mesmo quando as relações de poder são assimétricas” tende a ser “componente fundante” da educação e, particularmente, da educação popular (Melo Neto, 2003). À luz de Sócrates/Platão, Bakhtin, Vygotsky, Habermas ou Freire, parte-se do pressuposto de que a atividade comunicativa representa, a um só tempo, “um território singular para a transformação dos sujeitos e da sociedade, contexto privilegiado de crítica da realidade social, assim como instrumento fértil na conquista de autonomia e de emancipação pessoal.” (Oliveira, 2003, p.87)224 O grande desafio, no entanto, é tornar esse fundamento ético-pedagógico capaz de transcender os microcontextos e fazer com que a ação dialógica estenda-se às situações mais amplas da vida em sociedade, horizonte em relação ao qual a própria pedagogia do diálogo parece conter limitações: Consideramos fundamental e coerente no discurso de Freire a compreensão dos estágios da consciência, mas, ao nosso ver, ele se detém na discussão genérica da formação da consciência de cada indivíduo sem relaciona-la com sua inserção nos grupos onde estão inseridos. Freire não interpreta o desenvolvimento da consciência a partir das perspectivas sócio-morais e não reconhece que a capacidade de julgar passa por estágios de aprendizagem que vai da infância até a fase adulta tendo como ponto de referência as relações normativas. Possivelmente a tônica dada à questão da consciência individual é o fato desta ser o terreno onde ele visualiza a possível influência da educação, embora o seu objeto seja a educação de adultos onde o aprendizado básico para as interações lingüísticas já tenha sido adquirido em etapas anteriores. O discurso de Freire vai na direção de que a liberdade da consciência individual esclarecida e forte é o germe que permite alguma esperança. (Brennand, 2003, p.87) Na verdade, quando se parte para contextos sociais cada vez mais amplos, a oportunidade de condições de interlocução também tende a se tornar complexa. A começar pelo fato de que, reconhece Oliveira (2003, p.98), “como a estrutura normativa da ação comunicativa é interdependente de um contexto institucional (portanto, ideológico), é de se supor a existência de contextos problemáticos, que dificultem a obtenção do consenso, favorecendo a instalação de crises.” Em que pese os inegáveis avanços políticos, a própria sociedade contemporânea não pode automaticamente ser confundida com uma civilização marcada pela expansão do regime democrático que pressupõe condições ideais para a competência comunicativa, as situações dialógicas e as práticas discursivas. Com efeito, ao constituir uma sociedade capitalista com todas as suas contradições econômicas e conflitos sociais, a solução dos seus graves problemas não pode se restringir à esfera da razão comunicativa ou da ética discursiva. Apesar de acreditar na sobrevivência desta em instâncias como a ciência, os parlamentos e os tribunais, Habermas reconhece a necessidade de outras formas de ação, como a própria ação instrumental, capaz de melhor equacionar 224
Segundo Melo Neto (2003, p.82), o mérito de Platão, Habermas e Freire é ter conduzido “esta dimensão ativa do diálogo à radicalidade última. Todos mantiveram aquilo que constitui o papel da filosofia, isto é, o seu caráter próprio questionador para a busca de conclusões. Eles não toleraram que o diálogo, expresso por suas condições psicomotoras, afetivas, racionais ou outras fosse, meramente, discursivo ou desacompanhado de uma necessária ação eficaz.”
310 problemas de natureza técnica. Nos casos em que nem a ação instrumental nem a comunicativa apresentam-se eficazes, “admite a ação estratégica, cuja função primordial consistiria em estabelecer as condições materiais e políticas para que a ação comunicativa e, no contexto dela, o discurso prático possam entrar em ação.” (Freitag, 2003, p.53)225 No caso particular da educação, como sugere Peters (2003, p.74), a situação de ensino e aprendizagem dialógica na sociedade de “massa” costuma ser mais a exceção do que a regra (inclusive, na própria universidade onde são formados os educadores226). O problema, aliás, quase sempre inquietou a educação popular, marcada em seus inícios por um estilo expansionista e um ritmo de campanha próximos à política e à metodologia de massa. O princípio ético e pedagógico de se colocar contra toda idéia de massificação acabou submetido, na prática, à “tensão entre a necessidade de atingir a massa e as exigências de um processo de conscientização.” (Bezerra, 1980, p.30) A temporalidade da educação moderna, tradicionalmente marcada por uma terminalidade expressada através de séries letivas (semestres, anos) e avaliações baseadas em resultados definitivos (exames, certificações), é outro componente que não tende favorecer o diálogo, seja socrático-platônico seja habermasiano. No primeiro caso, o que importa não é chegar a desfechos, mas exercitar ad infinitum a argumentação (Melo Neto, 2003, p.11); no segundo, o “novo princípio regulador, a norma universal que também será a máxima moral de cada um, não é um dado a priori, mas o resultado último de um longo processo argumentativo, viabilizado pelo discurso prático.” (Freitag, 2003, p.52) Soma-se a isso que a razão comunicativa, por excelência, é definida como a razão pública que compreende a dimensão mais ampla em que, por intermédio do discurso e da intersubjetividade, as ações sociais são examinadas e legitimadas (Oliveira, 2003, p.97). Acontece que o campo tradicional formado pelas classes, instituições, movimentos e lutas sociais, inaugurado desde a modernidade, acabou na sociedade contemporânea cedendo lugar à mídia que assume status de campo político-ideológico exponencial e fundamental à expansão (Lévy, 2003), reprodução ou transformação da esfera pública (Habermas, 2003), incluindo-se aí o projeto de radicalização democrática preconizado pela ética discursiva. A versão original da democracia, restrita ao “debate público de todos os cidadãos da polis na ágora” (Freitag, 2003, p.58), ganha na contemporaneidade dimensão sem precedentes, passando a depender das configurações assumidas pela mídia como "sistema cultural e espaço de conflito" (Gohn, 2000, p.47). O problema nesse caso é que, além de não se ocupar a esfera pública como deveria para fazer face a todo um movimento de direita em favor do recrudescimento da educação conservadora, o espaço de debate em torno das políticas econômicas, sociais e educacionais raramente encerra condições ideais ou iguais de interlocução. Isto é, toda instituição, política e prática – e principalmente aquelas que agora dominam a educação e a sociedade em geral -, estabelece relações de poder nas quais algumas vozes são ouvidas e outras não. Embora não esteja predeterminado que as vozes ouvidas mais claramente serão também as vozes daqueles que têm a maior quantidade de capital econômico, cultural e social, o mais provável é que isso venha a acontecer. Afinal de contas, não existimos numa arena eqüitativa. (Apple, 2003, p.244) 225
Talvez, insista Habermas numa ação político-filosófica do tipo preconizado por Sócrates/Platão, “ao coincidir o poder político com o espírito filosófico. Daí seriam resolvidos os males da sociedade presente. Cria-se, assim, a tese platônica de que não acabará a miséria política do mundo enquanto os filósofos não detiverem o poder político, sendo capazes de governar o Estado por ele idealizado. Os filósofos deveriam tornar-se reis ou os reis resolverem as questões do Estado de forma filosófica.” (Melo Neto, 2003, p.35) 226 O que contraria diretamente o Estado concebido por Sócrates/Platão que necessita conter um elemento capaz de continuar “a viver e agir conforme o espírito de seu fundador, conduzindo para a questão central do `diálogo´: a da educação dos educadores. Este está resolvido pelo governo dos filósofos. Guardiões com a melhor educação e que possuam o maior grau das qualidades de sabedoria prática, de talento e de preocupação com o o bem comum. Estes, por sua vez, expressarão o produto máximo da educação, tendo como conseqüência o papel de serem os educadores supremos das cidades.” (Melo Neto, 2003, p.32)
311 Além disso, apesar de assumir importância fundamental na sociedade, o fato de o processo pedagógico caracterizar-se como uma atividade com a intenção deliberada de prover ensino, fundando e diferenciando a educação de outros tipos de interação social (Moore, 1986), também, parece entrar em conflito com a experiência dialógica227. Entendendo as interações como sistemas abertos, concordamos com Morin [...] ao declarar que, no contexto interativo “a ação escapa à vontade do ator, para entrar no jogo das inter-retroações recíprocas”, de tal modo que as conseqüências últimas de uma ação não são previsíveis e/ou controláveis. Ainda para Morin, “a estratégia de ação é a arte de atuar na incerteza” [...], ao modo de um jogo. (Oliveira, 2003, p.91) Não sem razão, a tendência da pedagogia é “abusar” daquela intencionalidade, da qual também não escapa a educação popular. Em seu anseio de transformar o outro, de imprimir as finalidades políticas, econômicas, sociais e culturais da educação228, muitas vezes, não usa exatamente a dimensão retórica e persuasiva da comunicação para educar229 nem, muito menos, para legitimar um discurso230. Notemos que o desejo de persuadir provém do desejo de reconhecimento, o que não deixa de lembrar, segundo Huisman, a dialética do mestre e do escravo de Hegel. O desejo de persuadir nada mais é, no fundo, do que o desejo de que o outro ou os outros reconheçam o conteúdo significativo da minha mensagem. Ele pode ser encontrado na disputa oratória, nos debates públicos, nas defesas de tese ou então na relação amorosa. (Gauthier et al, 1998, p.382) O problema do reconhecimento, ao que tudo indica, encontra-se muito próximo ao problema da conversão. Considerando que a política pressupõe uma relação entre sujeitos iguais mediada pela persuasão, ressalta Lovisolo (1990, p.96), a forma que a educação popular dispõe para escapar à relação de poder encerrada pelo ato pedagógico é de supor que a potencialidade da conversão (conscientização) encontra-se no próprio educando. “Pela formação da consciência crítica, Freire anteviu o germe de um poder latente não exercitado pelas massas marginais que, não estando inseridas no processo de aquisição do saber médio do seu tempo, ainda guardam suas atitudes mágicas ou ingênuas: o diálogo.” (Brennand, 2003, p.89) Por isso mesmo, não se trata de uma educação para os sujeitos, ao estilo da educação bancária, possuidora de “um estranho humanismo que se reduz à tentativa de impedir que os indivíduos se descubram na sua experiência existencial em confronto com a realidade em constante devenir.” (Brennand, 2003, p.95) A educação popular, em contrapartida, pressupõe ser exercida plenamente com os próprios sujeitos, em que o educador assume a função de animar, facilitar ou colaborar com o “parto” do processo de descoberta e construção do
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“O termo `diálogo´ é usado aqui para descrever uma interação ou série de interações que possuem qualidades positivas que outras interações podem não ter. Um diálogo é intencional, construtivo e valorizado por cada parte. Cada parte num diálogo é um ouvinte respeitoso e ativo; cada uma elabora e adiciona algo à contribuição de outra parte ou partes. Pode haver interações negativas ou neutras; o termo `diálogo´ é reservado para interações positivas, onde o valor incide sobre a natureza sinérgica da relação entre as partes envolvidas. O diálogo em uma relação educacional é direcionado para o aperfeiçoamento da compreensão por parte do aluno.” (Moore, 2002) “A educação popular tem como princípio recusar a neutralidade de valores da educação convencional e afirmar que toda educação serve para propósitos possíveis de definição. Daí não ocultar que pretenda se constituir numa educação política não apenas porque busca formas de democratizar o poder político, mas também porque pretende contribuir para aprofundar processos de distribuição social do conhecimento disponível e provocar mudanças na sua forma de produção tendo em vista o desenvolvimento da solidariedade e da justiça social.” (Brennand, 2003,p.61-62) Ainda que não equivalha ao princípio da dialética socrático/platônica (Melo Neto, 2003, p.17), “se todo ensino comporta uma retórica, ele permite que os alunos se tornem mestres de tal retórica, ao invés de suporta-la contra a vontade. O verdadeiro aluno é aquele que não está destinado a permanecer aluno. E o verdadeiro ensino, aquele que não se reduz a uma propaganda ou a um doutrinamento, aquele que ensina sua própria retórica, isto é, os meios e os métodos através dos quais ele ensina, para que o aluno possa assim tornar-se mestre.” (Reboul apud Gauthier et al, 1998, p.383-384) Na perspectiva de Bakthin, o discurso constitui “o produto híbrido e dinâmico de características pessoais dos interlocutores em jogo, bem como das características institucionais, sociais, políticas e culturais do contexto em que ele se produz.” (Oliveira, 2003, p.93),
312 conhecimento por parte do educando231. O risco aí implícito, já advertiam Bourdieu e Passeron (1982, p.30), é queas contestações mais radicais de um poder pedagógico inspiram-se sempre na utopia autodestrutiva de uma pedagogia sem arbitrário ou da utopia espontaneísta que outorga ao indivíduo o poder de encontrar nele o mesmo princípio de sua própria “expansão”. Todas essas utopias se constituem um instrumento de luta ideológica para os grupos que, através da denúncia de uma legitimidade pedagógica, visam a assegurar-se o monopólio do modo de imposição legítima. Insiste-se, de todo modo, em trabalhar efetivamente com os educandos, pois isso concorre para transforma-los em sujeitos de sua história, vindo servir ainda “à trajetória dos frutos de tal conversão” (Brandão, 1984, p.175). Configurando ademais propostas de natureza incrementalista ou gradualista, cabe aos educadores tão somente “potenciar” a construção e elaboração do mundo pelos próprios educandos (Lovisolo, 1990, p.169) Nesses termos, o confronto entre saberes cede lugar ao diálogo entre culturas ou à síntese cultural, ou mesmo, a uma experiência de pesquisa participante “que toma como objeto do conhecimento, os conhecimentos científicos e populares existentes sobre a realidade social” (Souza, 1989, p.39). No máximo, concebe-se que os “conhecimentos são cooperativos, pois dependem sempre da mediação de um outro com quem o aprendente, face ao conhecimento em elaboração e a partir de matrizes semióticas, estabelece uma relação triádica.” (Oliveira, 2003, p.105) O desenvolvimento dessa relação tem como destino, justamente, conduzir a lógica da distribuição de atitudes (poder) e competências (saber) a seu ápice de equilíbrio e expansão (Brandão, 1985, 1988). Com efeito, pretende-se não somente redimir o papel da ciência no mundo contemporâneo, como também dissipar ou relativizar a assimetria das relações de poder e dos valores do saber no processo de interação. Postulando um processo de aprendizagem mútuo, a relação educador-educando é concebida como análoga à situação em que qualquer antropólogo aprende diretamente com o próprio povo sobre a sua cultura232. No entanto, o que o aluno pode aprender do e com o educador – a consciência crítica – é uma coisa que o educador já possui, ou pelo menos possui os mecanismos para a sua geração. O educador, de fato, pode aprender sobre os modos de pensamentos dos alunos, sobre suas formas de aprendizagem, sobre os modos e padrões de seu grupo cultural. Porém, não é para aprender essas coisas que o educador se faz educador; ao contrário, é para transmitir ou elaborar juntamente com os alunos suas consciências críticas ou ensina-los a ler, coisa que ele já sabe. A educação popular, então, não pode ser comparada – como, por vezes, pareceria ser sua pretensão – a um encontro entre especialistas, entre cientistas, ou entre políticos que se realiza para trocar pontos de vista. Aqui, podemos pensar que existe igualdade e até supor que cada um aprende com o outro ou conjuntamente, porquanto a qualidade que está sendo trocada é a mesma, e os que trocam possuem a mesma autonomia233. 231
Não deixa de fundar grande influência aí o ideal dialógico de Sócrates/Platão: “A procura pelo saber é o desafio para Platão e é, exatamente, na ausência do saber, onde se encontra a grandeza socrática. A imagem que faz é a das dores do parto. Interpreta essas dores como expressão completamente nova de saber contida nas estranhas de Sócrates. Tem-se aquele conhecimento do interior da alma que está expresso no `diálogo´ de Mênon, consistindo na intuição das idéias. Platão, em Mênon, descobre a oportunidade de mostrar, através do diálogo com o escravo, que o conhecimento está no interior de cada um. Em si mesmo está a raiz desse conhecimento.” (Melo Neto, 2003, p.21) 232 “Este projeto civilizatório, pautado pelo diálogo, apresenta-se como aquilo que pode ser feito pela geração que educa e a geração educanda, em processo educativo onde distinções entre educador e educando jamais ultrapassam as formalidades e atribuições dos papéis sociais, porque na realidade, pelo apresentado, cada educador se educa como cada educando educa. Um projeto exigente da ação voltada à própria humanização do homem e que precisa ser construído coletivamente.” (Melo Neto, 2003, p.81) 233 “Nas últimas etapas do desenvolvimento mental, diria Piaget, é parte indissociável da equilibração majorante a construção da capacidade de confrontar os próprios conhecimentos com os dos outros, submetendo-os à avaliação social, com o objetivo de promover a coordenação dialógica de pontos de vista, ou seja, o consenso. A autonomia intelectual exige do sujeito que seus conhecimentos passem pela prova do outro, das estruturas normativas da sociedade e da linguagem. O pensamento formal é, assim, sócio-cêntrico, construído sobre a base da ação cooperativa mediada pela linguagem.” (Oliveira, 2003, p.105)
313 Esta, evidentemente, não é a situação entre o educando e o educador, ou a situação existente entre o agente e o grupo de educação popular. (Lovisolo, 1990, p.143) Não obstante, descobre ainda a educação popular que - assim como os educadores - os educandos também são intelectuais ou filósofos, na acepção socrático/platônica que aproxima a filosofia do amor ou da busca eterna e incessante de Eros pela perfeição e felicidade. Busca esta que conduz à verdadeira educação, isto é, à educação pela filosofia234. Há pouco mais de trezentos anos atrás, essa busca já fora na verdade retomada e aprofundada pelo próprio iluminismo que definiu a si mesmo como um movimento filosófico destinado, essencialmente, ao aperfeiçoamento do indivíduo e da sociedade. “La problemática del sujeto, por lo tanto, resulta ser un punto de confluencia entre la teoría de la educación y el pensamiento filosófico.” (Acanda, 2001) O perigo aí existente é o educador acabar se tornando altamente etnocêntrico, valorizando no educando (cujo saber tem formas próprias de expressão) aquilo que valoriza na sua própria cultura. “Pelo pensar crítico, resultante da consciência crítica, supera-se aquele pensar ingênuo e nada promotor da ação humana na natureza, pondo fim a todo tipo de mistificação do conhecimento e das explicações do mundo.” (Melo Neto, 2003, p.68) O que remete a um dos paradoxos mais freqüentes à educação popular que é o fato de a valorização e construção do saber do educando efetuarem-se nos marcos conceituais e metodológicos da própria tradição científica ocidental (Lovisolo, 1990, p.162). Para Freire, todas as crianças têm o direito de ser formadas de acordo com o avanço da ciência, sem o obstáculo da ideologia autoritária que marca e sufoca. As crianças, jovens e adultos das classes populares, não podem continuar seguindo a vida, indiferentes aos acontecimentos de seu tempo e seu espaço. Precisam ser desafiados pelas idéias que combatem e que defendem. Evidentemente que, fora dos padrões de educação livresca e autoritária, mas por uma educação denunciante da opressão e anunciante da liberdade, isto é, uma educação para a participação. (Brennand, 2003, p.100) Desde que superado o autoritarismo, resta portanto aproximar a linguagem teóricoconceitual à realidade concreta dos educandos e consubstanciar o rigor científico como base da consciência crítica. No diálogo autêntico estabelecido através de uma relação horizontal pautada na liberdade de expressão, educadores e educandos devem atuar como sujeitos e sua reflexão conjunta conduzir à criticidade racional. “A apropriação que as classes populares possam fazer das teorias não pode realizar-se senão a partir do próprio pensamento ingênuo, mas em direção à superação.” (Brennand, 2003, p.93) Na verdade, parafraseando Lovisolo (1990, p.141), por mais que a relação esteja baseada no diálogo ou na intersubjetividade, não se elimina que é a cultura acadêmico-científica que, por intermédio dos educadores, educa os educandos. No fundo, a educação popular acaba refletindo algo caro à tradição cultural do Ocidente que é valorizar e pretender conciliar coisas opostas (Lovisolo, 1990, p.139). “Por isso, não dicotomizo as duas dimensões: senso comum do senso filosófico, na expressão de Gramsci. Começa-se do concreto para chegar a uma compreensão rigorosa da realidade. Não compreendo conhecimento científico ou crítico que não se submeta ao teste da realidade.” (Freire apud Brennand, 2003, p.92) Não resta dúvida, acentua Brennand (2003, p.93), “que é a partir do diálogo entre o pensar ingênuo e o pensar racional que uma razão aberta pode se instaurar. Esta razão agrupará as necessidades da correção racional, mas, também, a emergência do simbólico.” O problema aí é que, pelo próprio fato de a razão comunicativa reclamar, por excelência, manifestar-se de forma racional, o que tenderá a prevalecer no final das contas como “razão aberta” será o pensamento racional investido de dialógico. É como se pretendesse 234
“Os deuses, por sua vez, não aprendem pois trazem consigo a sabedoria. Já os ignorantes e tolos, sem nada saberem, se julgam possuidores de elevados conhecimentos, restando ao filósofo a situação intermediária entre a sabedoria e a ignorância, reconhecendo a sua própria ignorância e procurando adquirir o conhecimento.” (Melo Neto, 2003, p.27)
314 conduzir, até as últimas conseqüências, o que a lógica capitalista impõe como caráter dual da modernidade: “por un lado impone la racionalización y por el otro provoca el desarrollo de la subjetividad.” (Acanda, 2001) Conforme explica Chaui (1989, p.20-21), essa contradição decorre principalmente de uma espécie de “oscilação incessante” que ora concebe a cultura popular sob o ponto de vista ilustrado, ora romântico e, nos “casos mais interessantes”, sob uma perspectiva de conciliação. Trata-se, nesses casos, de uma tentativa de encontrar a conciliação entre saberes em meio à própria dicotomia dos marcos do pensamento ocidental – iluminismo versus romantismo. Por um lado, defende-se que o importante é recolher do tipo ideal romântico as afirmações sobre o ser (“ingênuo”) e, por outro, do tipo ideal ilustrado, as asserções referentes ao dever ser (“crítico”) (Lovisolo, 1990). A bem da verdade, reside aí uma matriz conceitual transformada em economia política e simbólica que determinou a definição do ser civilizado e do ser selvagem. “Se é verdade que dominaram as visões negativas do selvagem, não é menos verdade que as concepções pessimistas do `Nós´, de Montaigne a Rousseau, de Las Casas a Vieira, estiveram na base das visões positivas do selvagem, o `bom selvagem´.” (Santos, p.2002, p.30) A pretensão, em todo caso, é fazer prevalecer um ser mais perfeito e plural, capaz de atuar plena e conscientemente sobre a realidade onde está inserido. Ademais, reconhece a educação popular que o educando ao qual destina sua proposta de desencantamento do mundo não lhe é exterior mas, pertencendo ao mesmo contexto, apenas caracteriza-se por uma outra lógica ou temporalidade cultural. Assim, a comunidade territorial e lingüística, entre esse outro interior e a intelectualidade dos educadores, forma dois mundos num mundo que deveria ser apenas um. A relação etnologia/história condiciona a argumentação da educação popular, dando-lhe características próprias nos seus intentos de conciliar os dois mundos, sociedades ou culturas, transformados em relação entre educadores e educandos e, em linguagem político-social, entre intelectuais e povo. Quando o modelo do relacionamento rejeita explicitamente a destruição ou domínio de uma sociedade sobre outra, de uma cultura sobre outra, impõe-se como única via transitável a conciliação, embora ela seja paradoxal e, de fato, inconciliável. (Lovisolo, 1990, p.90) Ao invés exatamente de acabar se instituindo através de um diálogo livre entre educador e educando em que ambos se colocam como intérpretes, pesquisadores e decodificadores da realidade (Brennand, 2003, p.89), tal conciliação é posta em xeque por uma relação contraditória que estabelece uma intersubjetividade desigual a priori. De uma parte, temse a presença do educador, representante de uma instituição (ainda que seja a educação popular) “que dispõe da autoridade dum saber reconhecido e valorizado pela sociedade, e da outra, a presença daqueles que não têm esse saber e que vivem a experiência secular de não achar lugar para o saber que lhes é inerente.” (Muñoz, 1981, p.86) Não por acaso, o fato de o educador se predispor a desvendar o mundo com os educandos não tende a implicar, necessariamente, a modificação substancial da assimetria do saber. Nem mesmo parece ser solução imputar ao educador a função apenas de especialista de um método de ensino capaz de tornar o educando sujeito de sua própria aprendizagem. Apesar de conter “um potencial de mudança que vai desnudar as regras constitutivas que silenciosamente estruturam os métodos pedagógicos” (Brennand, 2003, p.97), no final das contas, continua sendo o educador que detém o saber sobre os métodos e procedimentos essenciais ao dialógo. “De porta-voz de verdades, transformou-se num dominador de métodos.” (Lovisolo, 1990, p.141) A maneira forte ou autoritária de se relacionar com o educando é, pois, substituída por uma maneira suave que, através da participação e de métodos não diretivos, fomenta a relação dialógica. O que parece não escapar tão facilmente à “relação de interdependência que constitui em sistema as técnicas de imposição da violência simbólica, características do modo de imposição tradicional assim como daquele que tende a substituí-lo na mesma função.” (Bourdieu e Passeron, 1982, p.31-32) Talvez tomando como base a crítica socrático/platônica à idéia sofística de conceber a educação como instrução (Melo Neto, 2003, p.23), o próprio Brandão (1986, p.160) já insinuava suspeitar de descoberta tão cara à educação popular:
315 Até que se prove o contrário, fazendo variar apenas o conteúdo da opressão, qualquer modalidade de prática de mediação entre o poder e os outros será uma forma consagrada de exercício legítimo do próprio poder. A exigência de novas idéias e práticas emergentes de troca de poder e saber entre os homens tornará a recriar o imaginário e o trabalho de outros modos de pensar e viver a educação, até quando – quem sabe? -, em um mundo plenamente humano, a própria educação deixe de ser necessária, pelo menos nos limites em que até hoje temos conseguido imagina-la. Nos limites de hoje, sugere Acanda (2001), urge acima de tudo compreender a distinção entre indivíduo, sujeito e subjetividade, a partir do próprio reconhecimento de que todo indivíduo encerra uma subjetividade, porém nem todo ele – por conta disso – logo constitui um sujeito. A interpretação dialética concebe o sujeito como uma totalidade, resultante de relações sociais caracterizadas pela sua capacidade de ação e autoprodução. Precisamente la intención de la filosofía crítica y de una teoría crítica de la educación ha de ser la de revestir a todo individuo con la capacidad de ser sujeto, es decir, de conformar consciente y autónomamente su vida, capacidad de la que usualmente no disfruta, o lo logra sólo en un sentido muy limitado. Es preciso reconstruir la subjetividad de modo tal que incluya esos poderes trascendentes al individuo como condiciones constitutivas de la individualización y a la vez como resultados de la interacción de los individuos. La autonomía de los individuos ha de entenderse no en oposición a, sino como forma organizacional particular de las fuerzas sociales que, por otro lado, condicionan su subjetividad. Ello implica la necesidad de desarrollar un concepto de sujeto basado en una teoría de la itersubjetividad (lo que, por otra parte, no es otra cosa que continuar el programa marxiano, aunque algunos no quieran admitirlo). 4 Considerações Finais Continuar o programa marxiano, ao que tudo indica, implica assumir posturas que exigem suspeitar ou descobrir-se a si mesmo. Em primeiro lugar, rever e repensar a problemática das identidades como central na luta contra a opressão, tanto econômica quanto sobretudo cultural. “Pero debemos tener en cuenta que la tarea de fondo no es la de defender las identidades ya existentes, sino la de reconstruirlas en consonancia con un proceso liberador y desenajenante.” (Acanda, 2001) Em segundo lugar, desprender-se das formas de subjetividade e identidade não só impostas pelas instituições dominantes conforme reputa o mesmo Acanda, como também por aquelas instituídas graças a nossa argumentação e cooperação235. Se, como sujeitos críticos, chegamos à conclusão de que o mundo que está aí e a sua educação são opressores e alienantes, só nos resta mesmo denunciá-los e transforma-los. Quando conseguirmos engendrar com os educandos condições objetivas e subjetivas de experenciar esse desafio, muito bom. Caso não, continuando convictos de nossa missão, que nos lancemos ostensivamente à vanguarda de um movimento capaz de descobrir a eles os melhores e mais avançados instrumentos que a ciência e o pensamento universal acumularam ao longo de sua história e que ajudaram, inclusive, a consubstanciar experiências coletivas contrahegemônicas. Caso ainda assim não formos bem sucedidos, que sejamos fortes para admitir e superar (mesmo contra “nossos” princípios éticos) o caráter “contraditório” do povo que, às vezes, não tem nem muito menos almeja possuir verdade ou razão (Braudillard, 1985, p.28). Se, em todo caso, um dos caminhos a trilhar seja o do diálogo, que não percamos a oportunidade de abusar da democracia, mesmo em sua versão moderna ou contemporânea. Caso isso não se mostrar plenamente possível, que utilizemos a autonomia que conquistamos para descobrir a cidadania daqueles que (comparativamente a nós) ainda se encontram na menoridade de sua autodeterminação. Como o conhecimento é intersubjetivo e a subjetividade é produto dessa intersubjetividade, evidentemente, o conhecimento não consta a priori nem, muito menos, precisa apenas ser “descoberto” no próprio sujeito educando. Pois, resulta justamente da 235
“A racionalidade dialógica, pública e constituída no plano das interações discursivas contextualizadas, por meio das quais os sujeitos em interação se auto-constroem, ao mesmo tempo em que constituem e transformam a realidade, ganha corpo em duas formas complementares de interação dialógica: a argumentação e a cooperação.” (Oliveira, 2003, p.101)
316 relação que este estabelece com o mundo e com os outros, incluindo os sujeitos educadores. O que implica a descoberta de um outro, por excelência diferente, a cuja formação agregaram-se instrumentos e procedimentos que não podem mais facilmente ser descolados nem desprezados. Pelo contrário, precisam urgente e organicamente ser valorizados, capitalizados e, sobretudo, socializados. Referências Bibliográficas ACANDA, Jorge Luis. La problemática del sujeto y los desafíos para la teoría de la educación. Crecemos, Recinto de Río Piedras, v.5, n.2, 2001. Disponível em: http://www.filosofia.cu/contemp/acanda009.htm. Acesso em: 30 maio 2004. APPLE, Michael W. Educando à direita: mercados, padrões, Deus e desigualdade. São Paulo: Cortez, 2003. BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1985. BEZERRA, Aída. As atividades em educação popular. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.). A questão política da educação popular. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. p.16-39. BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.). O educador: vida e morte: escritos sobre uma espécie em perigo. 6.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.). Pesquisa participante. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pensar a prática: escritos de viagem e estudos sobre a educação. São Paulo: Loyola, 1984. BRENNAND, Edna Gusmão de Góes. Paulo Freire e a pedagogia do diálogo. In: ____(org.). O labirinto da educação. João Pessoa: Ed.UFPB, 2003. p.57-102. CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 4.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. FREITAG, Barbara. A questão da moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de Habermas. Brasília: SOS-Imprensa/UnB, 2003. GAUTHIER, Clermont et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí-RS: Unijuí, 1998. GOHN, Maria da Glória. Mídia, terceiro setor e MST: impactos sobre o futuro das cidades e do campo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. LÉVY, Pierre. Pela ciberdemocracia. In: MORAES, Denis de (org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2003. p.367-384. LOVISOLO, Hugo. Educação popular: maioridade e conciliação. Salvador: OEA/UFBA/EGBA, 1990. MELO NETO, José Francisco de. Diálogo em educação. João Pessoa, 2003. MOORE, Michael. Self-directed learning and distance education. Journal of Distance Education, 1986. Disponível em: http://cade.athabascau.ca/vol1.1/moore.html. Acesso em: 23 nov.2004. MOORE, Michael. Teoria da distância transacional. Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a Distância, v.1, n.1, jul.2002. Disponível em: http://www.abed.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=23&sid=69&UserActiveTe mplate=1por. Acesso em: 15 nov.2004. MUÑOZ, Jorge Vicente. Sobre as instituições que fazem educação popular. Boletim de Intercâmbio, Rio de Janeiro, v.2, n.7, p.56-67, jul./set.1981. OLIVEIRA, Maria Cláudia Santos Lopes de. Entre outras vozes: uma abordagem dialógica da subjetividade e do conhecimento. Temas em Educação, João Pessoa, n.12, p.70-112, 2003.
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318
EDUCAÇÃO POPULAR E CRIATIVIDADE Agostinho Rosas
Apresentação Criatividade em Educação Popular trata-se de um trabalho cuja reflexão se deu no contexto da Disciplina Teoria da Educação Popular, coordenada pelo Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto. Tomando como referência a metodologia adotada, a experiência compartilhada em sala de aula foi mediada pelo interesse comum delimitado pela ementa da disciplina236 e complementado pelos questionamentos individuais (em Anexo) elaborados durante a construção do programa pelos doutorandos. No decorrer de um ano, professor e alunos(as) se envolveram com debates impulsionados pela busca permanente de argumentos explicativos acerca da educação popular. Pretendíamos criar uma prática pedagógica orientada pelo concreto real de cada um e uma dos protagonistas237 articulando reflexões delimitadas ora pela leitura crítica da literatura especializada, ora pelos argumentos constituídos no interior do próprio debate, e assim procedemos. Em um primeiro momento nos empenhamos em identificar elementos de aproximação das histórias vividas por cada um e uma da educação popular tal como idealizada naquele instante da sala de aula. Posteriormente, num esforço coletivo, passamos a nos envolver com a construção conceitual de educação popular tomando como referência nossas histórias, nossas referências. Neste sentido, selecionamos constitutivos que se tornaram objetos de nossos estudos individuais. Cada um e uma dedicaram-se ao estudo de um constituinte que passou a ser o ponto de partida para nossas reflexões quanto à consistência argumentada do conceito produzido coletivamente sobre educação popular. Dentre os constitutivos elencados, criatividade em educação popular assume, aqui, a condição de objeto de estudo, de reflexão teórica consubstanciada pelo propósito de análise do conceito construído sobre educação popular. Para tanto, tendo clareza da diversidade de teorias que buscam explicar criatividade se encontram em sua maioria fora do contexto da educação popular, busco-se nas idéias de Paulo Freire em Educação como prática da liberdade os elementos fundantes ao debate sobre criatividade em educação popular. Com isto posto, a direção das reflexões tomou a seguinte orientação: 1) localização e delimitação do conceito de educação popular adotado (Conceituando Educação Popular; 2) retrospecto acerca do conceito de criatividade (Conceituando Criatividade; 3) criatividade em Educação como prática da liberdade (criar e recriar em Paulo Freire); as conotações atribuídas ao conceito de homem e mundo em educação libertadora, e 4) criatividade como um dos constitutivos da educação popular. Com o primeiro tópico objetiva-se contextualizar o processo pelo qual o conceito de educação popular fora construído nas discussões desenvolvidas no interior da disciplina Teoria da Educação Popular do Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGE-UFPB e delimitar sua trajetória quanto à aproximação ou distanciamento do constitutivo criatividade. Com o segundo, pretende-se discorrer acerca da evolução conceitual de criatividade na tentativa de 236
Temas históricos, filosóficos e políticos, centrais em educação popular, a serem desenvolvidos: historicidade, cultura, totalidade, teoria e práxis, educação – diálogo e conflito, popular, cultura popular, educação popular, práxis educativa popular e outras dimensões éticas. 237
O termo protagonista é utilizado neste ensaio para identificar cada um dos doutorandos que constituem a segunda turma do Curso de doutorado em Educação Popular promovido pelo PPGE/UFPB.
319 esclarecer o cenário teórico argumentativo que gira em torno de criatividade. Com os dois últimos tópicos, delimitar o ângulo do olhar sobre criatividade afunilando na direção do debate pertinente à educação popular. Neste sentido, com o terceiro tópico adentrar nas primeiras idéias de Paulo Freire com a intenção de identificar significado à criatividade quando emerge no campo da Educação como prática da liberdade. Por fim, com o último tópico refletir acerca da aproximação ou distanciamento da criatividade enquanto um dos constitutivos da educação popular. Introdução Da Pré-História à contemporaneidade o homem conviveu e convive com a diversidade de problemas e a necessidade de envolver-se elaborando soluções. Vários têm sido os estudos que apontam um olhar explicativo sobre processo criativo e ações pedagógicas no cenário da educação formal e informal. No Brasil, nos anos 80 e, com maior intensidade na última década do século XX, Alencar e Virgolim (1994) publicaram um estudo reunindo onze experiências bem sucedidas sobre expressão e desenvolvimento da criatividade, fazendo referência à educação. Nesta época, outros trabalhos são desenvolvidos envolvendo arte, propaganda, ciência, no Brasil e fora dele. Mais recentes são, no entanto, aqueles que se direcionam às novas tecnologias e a indústria do entretenimento com jogos informatizados e criatividade. O conceito de criatividade, assim, vai tomando significados durante os tempos, aproximando processo e produto criativos como expressão da capacidade humana. Aos poucos, criatividade passa a ser compreendida como condição humana. Adquire visibilidade no interior das relações que o homem estabelece consigo, com outros homens e com o mundo. De início, contudo, criatividade foi termo associado ao sobrenatural, ao domínio da fé em Deus. Era Deus que, através dos homens, era criativo. O homem, neste sentido, seria dotado de um “dom” que o diferenciaria dos demais homens, na medida em que se encontrava entre os escolhidos por Deus para desempenhar o papel divino. Noutra direção, numa época em que se associava criatividade a traços de loucura, verificava-se tendência em explicar o ato criativo como conseqüência de um estado patológico da estrutura emocional humana. Contudo, será com as últimas décadas do século XX que criatividade passará a ser objeto de interesse de estudos que procuram explicar o processo-produto de criação. Entre os psicólogos, destacam-se os estudos que procuram associar criatividade à capacidade inteligência humana ou, noutra direção aos que se dedicam à identificação das características de personalidade de pessoas criativas, à superdotação (gênio/talento/aptidão), aos elementos de inibição da criatividade. Já os sociólogos interessados em explicar a origem da criação e demanda coletiva, sua propagação social, terminam por contribuir apresentando argumentos que vão colocar em debate as técnicas de estimulação favoráveis à expressão de ações criativas. Neste sentido, a educação assume papel de relevância na medida em que delimita seu campo de estudo associando tanto argumentos da psicologia quanto da sociologia que pretendem teorizar acerca da criatividade. Este aspecto, em especial, é de interesse específico ao estudo em causa, na medida em que se assume a hipótese de que os conceitos desenvolvidos pelas ciências humanas e sociais não dão conta da semântica que envolve criatividade em educação popular. Conseqüentemente, com este estudo, pretende-se interpretar o fenômeno criatividade, destacando a relação criar/recriar como constituinte na educação popular. Associa-se, assim aos esforços de investigação e teorização sobre criatividade sem, contudo, perder sua especificidade didática com a qual se vai estabelecer unidade epistemológica em educação popular. Com isto, o estudo vai adotar o conceito produzido pelos doutorandos em educação pela UFPB para delimitar a amplitude da educação popular em seu contexto político, social, cultural, tomando como referência para o debate as idéias de Paulo Freire sobre criatividade inserida na obra Educação como Prática da Liberdade. Muito das idéias produzidas por Paulo Freire, em grande parte as que deram base ao seu pensamento sobre educação, foram influenciadas pelas suas experiências no Recife, no Movimento de Cultura Popular (MCP), e nas experiências pioneiras de alfabetização com
320 adultos no Brasil, realizadas em Recife/PE (Casa de Dona Olegarina) e em Angicos, interior do Rio Grande do Norte e, posteriormente, quando em condição de exílio do Chile para a Europa e daí aos Estados Unidos, teve suas idéias ampliadas para o mundo. Este último aspeto, por conseqüência do contexto político da Ditadura Militar imposto ao Brasil em 1964, pelo Golpe Militar, vai explicar os motivos pelos quais os escritos de Paulo Freire só tomaram forma e publicação a partir de seu exílio no Chile. É exceção sua Tese de concurso público para o ensino da cadeira de História e Filosofia da Educação de Belas Artes de Pernambuco (Educação e atualidade brasileira de 1959) que mesmo tendo sido editada sob o formato de livro, não recebeu caráter comercial238. Quando no Chile, porém, retoma o texto dando-lhe forma para publicação, recebe o título de Educação como prática da liberdade239. Conceituando Educação Popular Favorecidos pela abordagem metodológica assumida na disciplina Teoria da Educação Popular/PPGE/UFPB (2004), as discussões em torno do conceito de educação popular tomou forma a partir da diversidade de histórias de vida enunciada por cada um dos protagonistas que a constituiu. Em sua continuidade, foram postos em debate conceitos identificados por cada um e uma, enriquecidos pela leitura especializada. Desta iniciativa vai resultar a construção coletiva de um conceito de educação popular. Nossa tarefa, então, passou a ser constituída pela análise crítica sobre o conceito com o propósito de verificarmos sua consistência teórica. A estrutura desta definição, contudo, teve como intenção coletiva responder ao problema proposto: o que é educação popular? Deste problema foram extraídos vários enunciados (Quadro 1) e em seguida sintetizados como: fenômeno de apropriação e produção dos bens culturais (empoderamento); teoria de conhecimento que tem como ponto de partida a realidade, o cotidiano; metodologias que instrumentalizam o processo de democratização; campo pedagógico que detém um conteúdo, uma avaliação; teoria política que seja pela democracia, liberdade, ação transformadora e emancipadora, práxis. Quadro 1: Síntese dos conceitos atribuídos à educação popular Educação popular é Educação popular é Educação, É um processo e uma práxis aquela: difusa porque é um mobilização, político-educativa, processo de organização das dimensionada na perspectiva que se volta para os construção classes populares. da setores /camadas permanente, Instrumento do apreensão/produção/reformula populares; buscando uma ação processo de ção, expressão e socialização que se manifesta em sóciodemocratização, a do conhecimento das classes diferentes lócus de transformadora partir da criação e populares, visando o atuação; através do acesso robustecimento de desvelamento e interpretação que não tem ação aos saberes plurais. um poder popular e da realidade, para a construção exclusiva na A transformação do pode ocorrer em de uma ação coletiva escolarização, mas na indivíduo em sujeito diferentes espaços organizada de intervenção, compreensão do requer uma formais e nãotransformação das condições processo social e aprendizagem formais. de exploração e dominação de político que o sujeito cotidiana do pensar, trabalhadores(as). Educação se encontra. do agir e do sentir. popular comporta dimensões tais: cultura popular, diálogo, ética, autonomia, liberdade, libertação, felicidade e emancipação humana. 238
Após a morte de Paulo Freire a Cortez Editora em parceria com o Instituto Paulo Freire retoma Educação e atualidade brasileira dando-lhe forma de publicação comercial (2001). 239 Este livro vai se tornar a primeira grande obra de Paulo Freire que representa, neste estudo, o ponto de partida para a análise sobre os termos criar e recriar associados à educação popular.
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As reflexões elaboradas neste ambiente multifacetado de experiências e histórias de vida tomaram rumo de aproximação à resolução do problema („o que é educação popular‟) na medida em que se sabia precisar o que não atendia ao conceito de uma educação que se fizesse popular. Neste sentido, o processo metodológico vivido na construção coletiva das soluções ao problema, em si, expressa uma dimensão didática favorável ao agir criativo, ao mesmo tempo em que representa uma investida diversificada de abordar o fenômeno (educação popular) enquanto instância de ensino e aprendizagem. A partir deste procedimento didático algumas inquietações puderam ser levantadas: Seria este procedimento uma das características da educação popular? Que constitutivos poderiam ser listados de maneira que exalte a essência de uma educação popular a partir do conceito desenvolvido? Que argumentos poderiam ser elaborados para consubstanciar cada um dos constitutivos listados como expressão articulada a educação popular? Diante destas inquietações o passo seguinte foi o de montar um conceito extraindo constitutivos consistentes à argumentação coletiva, como explicação do fenômeno educação popular (atentos à singularidade dos protagonistas). Conceito este que tomou a seguinte forma: Educação popular é um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituída de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processual, permeada de uma base política e cultural estimuladora das transformações sociais e, orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade. Dentre os constitutivos propostos, criatividade (Quadro 2) vai emergir tardiamente, durante as reflexões de outros constitutivos que já se encontravam em debate. Este, assim como o processo pelo qual se deu a construção coletiva do conceito para educação popular, deve ser compreendido como ação flexível à produção de conhecimentos em que se faz pela reflexão autêntica dos protagonistas e que preserva a condição do agir criativo. Quadro 2: temas levantados a partir do conceito construído Apropriação do produto da Empoderamento Organização/sistema educação popular Experiência Pedagogia Autenticidade Emancipação Pedagogia (metodologia Autonomia Saberes própria) Ação transformadora Trabalho Práxis Aprendizagem (sentir, pensar e Transitoriedade Prática agir) Totalidade Popular Compromisso político Felicidade Poder popular Construção do sujeito Igualdade Processo Crítica Ideologia Produção do conhecimento Cultura Identidade (metodologia própria) Democracia Incentivo ao desejo de saber Realidade Diálogo Liberdade Lócus Para o debate em causa, „criatividade em educação popular‟, trata-se de tema pertinente, uma vez que a expressão criativa emerge de homens e mulheres mediados pelo mundo. Emerge na diversidade de sujeitos(as) em relação no e com um contexto favorável ao desvelamento de situações-problemas/desafios que são apropriados da realidade autêntica aos mesmos sujeitos(as). Emerge como processo criativo. Caso contrário, este processo tende a ser inibido fragmentado pelae obstacularização das idéias e iniciativas, tal como afirma Von Oech (1988) em Um toc na cuca, referindo-se às barreiras mentais contra a criatividade.
322 Com isto, pelo momento, fica a intenção de analisar aquele conceito sob a dimensão da criatividade implícita nas conotações de pluralidade, transcendência, criticidade, conseqüência e temporalidade introduzidas como categorias que afirmam o homem como ser de relações e não apenas de contatos, expressas por Paulo Freire (1967). Conceituando Criatividade: breve retrospectiva Historicamente, o termo criatividade assumiu diversas faces. Na Antigüidade, acreditava-se que os Deuses atribuíam poderes aos humanos tornando-os criativos. Desta maneira, criatividade, não sendo uma característica humana, encontrava-se associada a uma dádiva divina, a um Dom lançado por Deus (Alencar, 1986; Kneller, 1978). Platão, de acordo com Wechsler (1993), através da sua teoria da imortalidade e das idéias (Teoria da Reminiscência), identificava o homem através de sua aproximação com a razão divina. Nesta direção Kneller (1978), comenta que o artista, no momento da criação, perde o controle de si e age guiado por um poder superior, divino. Escreve Platão (In: Kneller, 1978, 32). E por essa razão Deus arrebata o espírito desses homens (poetas) e usaos como seus ministros, da mesma forma que com os adivinhos e videntes, a fim de que os que os ouvem saibam que não são eles que proferem as palavras de tanto valor quando se encontram fora de si, mas que é o próprio Deus que fala e se dirige por meio deles. Em outras épocas criatividade esteve associada aos conceitos de bruxaria ou como sinal de desajustamento e loucura. Neste sentido, Alencar (1986), refere-se aos trabalhos desenvolvidos por Witty e Lehman (1965), em que sugerem “a relação entre criatividade e doença mental ou entre (…) instabilidade nervosa” (Ob.cit., 12). No entanto, estas idéias já se encontravam na Antigüidade. Naquele tempo, criatividade também esteve associada como estado de loucura. “Sua aparente espontaneidade e sua irracionalidade são explicadas como fruto de um acesso de loucura” (Kneller, 1978, 33). Com isto, muitos artistas e cientistas foram interpretados como loucos, lunáticos na medida em que, pela busca de sua superação, tendiam a “forçar ao extremo a própria natureza” (Ob.cit., 34), colocando-se numa nuance de limiar entre insanidade e “a resolução crucial de um conflito” (Kneller, 1978, 34). Ilustrando este cenário, Kneller (1978,33), exalta a declaração do duque Teseu: O lunático, o amante, o poeta São todos densos de imaginação: Alguém enxerga mais demônios do que no inferno, Pois este é o louco; o amante, desvairado, Vê beleza de Helena em fonte egípcia: O olhar do poeta, a rolar em descanso Corre do céu à terra, e desta ao céu; E, enquanto a imaginação vai encarnando Os corpos de coisas ignotas, a pena do poeta Dá-lhes formas, e a simples fantasmas Atribui habilitação e nome. Na Modernidade, criatividade passa a ser identificada como conseqüência da inteligência humana. Neste sentido, estudiosos intrigados com questões ainda não esclarecidas, a exemplo dos “lampejos de inspiração” existentes em alguns “indivíduos privilegiados” (gifted ou talentosos240), dos estudos sobre características individuais, “traços” de personalidade, os quais deram vez ao pensamento científico na tentativa de explicar o processo criativo como conseqüência da inteligência humana. É deste tempo, durante o século XVIII, que se verifica o 240
Estes termos estiveram atrelados aos estudos que relacionam criatividade, produção criativa, características de personalidade com indivíduos classificados como gênios ou superdotados.
323 registro de associações entre criatividade e alta inteligência (gênio241). Ainda de acordo com Kneller (1978), Kant referia-se à criatividade como “um processo natural, que criava suas próprias regras; também sustentou que uma obra de criação obedece a leis próprias, imprevisíveis; e daí concluiu que a criatividade não pode ser ensinada formalmente” (Ob.cit., 35). Portanto, os gênios devem “trabalhar independentemente de regras”, ao mesmo tempo Kant vai admitir que existam “aspectos do processo criador que podem ser ensinados. As fontes de originalidade e espontaneidade devem permanecer seguramente escondidas da investigação racional, porém os materiais que revelam essas qualidades devem ser transformados em produtos inteligíveis” (Hallman in Kneller, 1978, 35). Este aspecto que conduz ao debate acerca dos elementos que constituem a criatividade, numa relação com a capacidade de inteligência humana, extrapola a relação que Kant defendia. Hoje, criatividade como conseqüência da inteligência humana, supera a dimensão de gênio e espalha-se como característica humana. De acordo com Brown (1989), pelo menos quatro abordagens foram dirigidas à identificação de aspectos relativos à criatividade e inteligência. Algumas das teorias mais antigas são desprezadas tendo em vista as novas descobertas. Dom, lampejo de idéias, loucura, bruxaria são termos superados pelo entendimento de que “todo ser humano apresenta certo grau de habilidades criativas e que estas habilidades podem ser desenvolvidas e aprimoradas através da prática e do treino” (Alencar, 1986, 12). Nesta direção, criatividade deve ser compreendida como fenômeno humano mediado pela inteligência e influenciada pela aprendizagem. Este aspecto nos remete a Álvaro Vieira Pinto (1969), quando se refere à cultura como produto da produção humana. Para ele, “cultura é, (...), o processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa as de efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em idéias as imagens e lembranças (...) desse contato inventivo com o mundo natural” (Pinto, 1965, 123). Portanto, na medida em que homem/mulher experimentam culturas, vivem culturas, também são responsáveis pela criação e recriação de culturas. Criando e recriando culturas mediadas pelas “respostas originais aos desafios do ambiente” (Ob.cit., 122) homem/mulher sofrem influência das culturas que produziram. Retomando Brown (1989) e a relação criatividade-inteligência, é no início do século XX que se verifica maior ênfase nos trabalhos que procuram explicar criatividade: a) como “um aspecto da inteligência”, a exemplo dos testes de Quociente de inteligência (QI) de Binet e o Modelo de Estrutura da Inteligência de Guilford; b) como “uma grande parte do processo inconsciente” - Brown (1989) menciona o trabalho de Henri Poincaré (1913) ao concluir que: “a consciência de fracasso na resolução de um problema, coloca em ação o processo inconsciente que leva a uma combinação randômica de idéias, algo que pode emergir como uma apropriada solução criativa” (Ob.cit., 5) -. Para Kneller (1978), também comentando Poincaré, atribui a esta relação entre consciência e inconsciência o conceito “novidade”. Neste sentido, expressa que “a novidade criadora emerge em grande parte do remanejamento de conhecimento existente – remanejo que é, no fundo, acréscimo ao conhecimento” (Ob.cit., 16-17); c) como “um elemento da solução de problema” – refere-se aos estudos que procuram identificar os passos desenvolvidos durante o processo de resolução de problemas. Para Brown (1989), são exemplos os estudos de Dewey (Problem solving em 1910); Wallas (Createve production em 1926); Rossman (Invention em 1931) e, d) como “um processo associativo” que está relacionado com os estudos que pretendem articular processo criativo à associação de idéias, experiências, fatos como conseqüência da cognição humana. Como expoente desta categoria de estudos, Brown vai identificar os princípios de criatividade desenvolvidos por Spearman em 1931242. Assim como Brown (1989), Guilford e Hoepfner (1971), vão afirmar que poucos foram os estudos envolvendo produção criativa e inteligência. Com isto, o desenvolvimento de pesquisa articulando inteligência e produção criativa, avançou lentamente. De acordo com estes autores destacam-se os trabalhos realizados a partir da análise fatorial elaborados por Garnett 241
Gênio expressa a capacidade de sujeitos com talento diferenciado da maioria dos indivíduos em sua época. 242 “O modelo básico de Spearman implica em um processo ativo em que associações com uma idéia inicial pode ser liberada de sua própria relação e, assim, conduzir a alguma coisa completamente nova” Brown (1989, 5).
324 (1919), identificando a categoria “talento”; Hargreaves (1927), “fluência” e “originalidade”; Thurstone (1938), “fluência da palavra” e Fruchter (1948), que adicionou um fator de análise denominando-o como “fluência associativa”. Além destes trabalhos, identificaram pesquisas que tomaram a direção de identificar o processo criativo de gênios. Semelhantemente, Wechsler (1993) identifica diversidade de significados associados à criatividade. Este aspecto, de acordo com a autora, aproximando-se de Brown (1989) trata-se de um “fenômeno complexo, (...), com múltiplas facetas”, o que tem motivado pesquisadores a compreenderem os “processos de pensamento criativo, modalidades da produção criativa, características da personalidade criativa, tipos de ambientes facilitadores da criatividade e combinações entre quaisquer dessas formas” (Ob.cit., 1). Assim, explicar o processo pelo qual o homem expressa seu potencial criativo, inovador, parece ser tema de interesse atual. De certa maneira, as pesquisas têm se dividido em dois grandes grupos. Um que discute aspectos relacionados aos processos criativos, estes procuram analisar os tipos de pensamentos que predominam na descoberta criativa, bem como os passos utilizados pelo indivíduo para se atingir a produção criativa. Outros lidam com o produto criativo, priorizam a originalidade, seja sob a perspectiva do produto frente ao próprio indivíduo, seja pela relevância que o produto exalta para o social. Este aspecto é fundamentalmente relevante na medida em que disponibiliza argumentos explicativos sobre a dimensão natureza e cultura, atribuindo reflexões acerca do significado do processo e do produto criativo no e com o social. Na continuidade do que apontou Wechsler (1993), quanto às investigações que têm como objeto de estudo as características de personalidade de indivíduos que se apresentam criativos, procura-se identificar as atitudes e os comportamentos de homens e mulheres considerados criativos. Àquelas que lidam com os aspectos do ambiente social, procurando informações referentes aos elementos que favorecem ou inibem a expressão de atitudes e comportamentos criativos. A estes se associa Howard Gardner (1996) estudando acerca da capacidade criativa, “configurações de personalidade, arranjos sociais e agendas criativas, lutas e realizações” (Ob.cit., 8) de sete pensadores da época moderna: Freud, Einstein, Picasso, Stravisky, Eliot, Graham e Gandhi. Na ocasião, pretendeu Gardner (1996) esclarecer o processo criativo pelo qual a obra destes homens e mulher viveram de modo a identificar uma “busca de padrões – para revelar semelhanças e diferenças instrutivas” (Ib.Id.). Contudo, a tentativa de unidade em torno de uma definição comum, parece ainda estar muito distante. Para os defensores da abordagem biológica ou genética, a hereditariedade é “considerada como componente principal na criatividade” (Wechsler, 1993, 3), são os códigos genéticos que, internamente, transmitem a capacidade criativa. De acordo com Vernon (1989), apesar das dificuldades de se construir argumentos que expliquem o comportamento criativo a partir da genética, decorrentes da “complexidade do problema e a dificuldade em coletar evidências objetivas” (Ob.cit., 93), estudos têm identificado relação entre fatores hereditários e ambientais influenciando o comportamento criativo. Para Vernon (1989), “os genes são necessários à preparação da transmissão de qualidades hereditárias, mas eles não determinam a altura, inteligência e criatividade. Eles interagem com as condições ambientais ou experiências e não produz um efeito fixo, mas uma certa „cadeia de reações‟ (Wechsler, 1993, 93). Com isto avançam os estudos que procuram relacionar natureza e ambiente, como escreve Vernon (1989) em “O problema natureza e educação em criatividade” (Ob.cit., 93). Para Hennessey e Amabile (1988), ao discutirem acerca dos aspectos que interferem no processo criativo, fazem referência à relevância das condições sociais e ambiente como elementos que promovem motivos primários ao agir criativamente. Juntam-se a estes estudos, os que procuram explicações relacionando comportamento criativo e conduta social, bem como os efeitos da criatividade no social. Estes aspectos, mais recentes à criatividade, vão dimensionar a aproximação entre processo e produção criativa, à maneira como os indivíduos se apresentam na sociedade. Pode-se tomar forma, e assim ocorreu, com as pesquisas que tentaram verificar a origem da natureza criativa no homem, na tentativa de localizar indicadores de criatividade e de sua projeção na sociedade. Afinal, criatividade é para todos os homens, ou um privilégio de poucos? Será a criatividade algo da natureza humana ou proveniente da aprendizagem? De outra maneira, sob a perspectiva psicológica, Alencar (1986) e Wechsler (1993)
325 comentam acerca de várias abordagens que procuram explicar criatividade. Dentre elas, a comportamentalista, a Gestalt, a psicanalista, a humanista e a desenvolvimentista que procura explicar criatividade a partir de dados psicogenéticos. Para os comportamentalistas, representados aqui por Skinner (in Wechsler,1993), “a criatividade seria também formada por associações entre estímulos e respostas, caracterizada pelo fato de que os elementos associados não parecem como estando relacionados. O comportamento criativo resulta das variações de comportamento selecionadas pelas suas conseqüências reforçadoras” (Ob. cit., 4). De tal forma que a expressão do comportamento criativo é conseqüência dos reforços positivos, estimulando o indivíduo a responder ao estímulo doravante a variação situacional de outras experiências, cujas respostas foram condicionadas. Implica numa associação de idéias. Isto, contudo, não vai explicar o emergir de idéias espontâneas, oriundas, aparentemente, de nenhuma associação, bem como as idéias originais. De acordo com Alencar (1986), na Alemanha do início do século XX, Wertheimer (pensamento produtivo), Koffka e Köhler (aprendizagem por insight) vão desenvolver experimentos na área de percepção, pensamento e solução de problemas. Sob a perspectiva psicológica alemã Gestalt representa “um problema existente quando há tensões não-resolvidas, tensões estas que resultam da interação de fatores perceptuais e da memória” (Alencar, 1986, 31). A solução de uma Gestalt se dará na medida em que seja reestruturado o campo perceptivo. Neste sentido, a produção de resposta para uma Gestalt exige, de um lado, novas combinações de experiências e, de outro, que estas experiências estejam conectadas aos aspectos que produziram tensões até então não-resolvidas. Criatividade, assim, advém das tensões em que “o sujeito criativo estaria sempre procurando soluções para falhas na informação” (Wechsler, 1993, 5), ou o fechamento de uma Gestalt. O pensamento produtivo, deste modo, resulta em mudanças, no aperfeiçoamento das estruturas, como comenta Alencar (1986). Ainda de acordo com esta perspectiva psicológica, criatividade pode estar relacionada com insight, uma solução proveniente do exercício de orientar a atenção para a solução de um problema, mas que no momento da elocução, o indivíduo encontra-se voltado para outros aspectos que não aquele que produziu tensão. Trata-se do momento em que a resposta emerge, súbita e inesperadamente. Para Freud, visão psicanalista, criatividade “é uma forma inconsciente de solução de conflitos” (In Wechsler, 1993, 6) “ressaltando o papel da fantasia e da imaginação” (Alencar, 1986, 26). Nesse sentido, Wechsler (1993) refere-se ao comportamento criativo como um substituto e continuador das brincadeiras infantis. O “prazer e alegria seria uma reminiscência do jogo da criança, que explora o mundo e o põe à prova através do sonhar acordado, é um substitutivo dos jogos imaginários infantis” (Ob.cit., 6). Diante de desejos não satisfeitos, o adulto como a criança, envolvendo-se com fantasias, trama a “realização de um desejo e a correção de uma realidade insatisfatória” (Alencar, 1986, 26), sublima criando outros impulsos satisfazendo as necessidades ao nível da fantasia. Ainda nesta direção, Calvin Taylor (1988) ao classificar estudos acerca da criatividade e psicologia propõe uma classe que chamou de psychoanalytic ou dynamic onde enquadra entre outros, Kris (1951) através da associação que fez referindo-se às formas de criatividade como interações de força que se faz entre o consciente e o inconsciente. Para Alencar (1986), Kris propõe duas fases para explicar criatividade: a primeira, inspiração, “o ego perde temporariamente o controle dos processos de pensamento para permitir uma regressão ao nível subconsciente do pensamento” (Ob.cit., 27); reduzindo os efeitos do pensamento lógico, racional, formula-se novas idéias através da fantasia. É nesta fase em que o processo criativo toma forma. Na segunda fase, elaboração, as idéias são avaliadas rigorosamente através da lógica, do racional. Entre os humanistas, criatividade é inerente ao ser humano. Para Rogers (1977), o processo criativo terá lugar quando certas condições interiores existirem no homem: “abertura às experiências, lugar interno de avaliação e habilidade para viver o momento presente” (Rogers, In Wechsler, 1993, 8). Na opinião de Wechsler (1993), a perspectiva humanista rogeriana supera o conceito de criatividade como intuição e espontaneidade e amplia sob a perspectiva da obtenção da auto-realização. É, assim, uma questão de saúde mental em que a expressão do potencial criativo do indivíduo pode ser reprimida ou incentivada, segundo suas barreiras psicológicas. Para Alencar (1986), esta teoria de criatividade reflete uma visão
326 terapêutica, uma vez que apenas uma pessoa saudável psicologicamente, vive a criatividade construtiva. Nesta direção, pode-se dizer que o ambiente e as relações desenvolvidas entre e com os indivíduos, na medida em que dá expressão à liberdade, interfere elevando a tendência de expressão da criatividade. De acordo com Rollo May (1976), criatividade representa um grau elevado de saúde emocional, normal, expresso no ato de auto-realização. Ainda sob o entendimento das teorias psicológicas, os que a abordam sob a perspectiva do desenvolvimento, a exemplo de Piaget, “a imaginação criadora viria do processo de assimilação, em estado de espontaneidade. A criatividade não diminuiria com a idade, mas sim seria integrada com a inteligência, de maneira mais geral, em um processo de acomodação” (Wechsler, 1993, 10). Estes estudos procuram explicar o processo criativo através de fases que indicam o desenvolvimento da criatividade associado ao desenvolvimento biológico humano. Para Lesner e Hillman (1983 In Wechsler, 1993) o desenvolvimento da criatividade se dá em três fases: “enriquecimento criativo interno” que se estende da infância à adolescência; “enriquecimento criativo externo”, dá adolescência à fase adulta, e “auto-avaliação criadora” a qual se inicia com a velhice. Sob o ponto de vista psicoeducacional, mais especificamente sob a leitura da teoria cognitivista, Wechsler (1993) refere-se ao estudo realizado por J. P. Guilford (1967) através do qual atribui à mente humana condição tridimensional. Guilford e Hoepfner (1971) ao comentarem acerca do Modelo de Estrutura do Intelecto - SI (Structure-inetellct model), advertem que a condição tridimensional do modelo implica na intercessão das diferentes categorias de informação (operação; conteúdo e produto). De um lado as operações desenvolvidas ao se pensar (cognição; memória; produção convergente; produção divergente e avaliação); de outro, as questões relacionadas com o conteúdo sobre o qual se pensa (opera cognitivamente), classificado pelas categorias figural (forma de imagens visuais ou auditivas); simbólico (sob a forma de códigos ou símbolos); semântico (emprego de palavras ou frases) e comportamental (representações sob a forma de ações, situações de relacionamento interpessoal, motivação e emoções) e, há ainda a terceira categoria que identifica os produtos que resultam desse processo, os quais podem ser de unidade (itens isolados da informação); classes (itens agrupados por características comuns); relação (ligação entre dois itens da informação a partir do ponto de contato); sistemas; transformações e implicações, que representam formas mais complexas de organização, reestruturação, mudanças e conexões de informações. Portanto, as diversas combinações possíveis vão resultar na diversidade e variedade de situações que envolve conteúdo e produto. No entanto, segundo Guiford e Hoepfner (1971), a aplicação do SI exige a compreensão de que o cruzamento entre as categorias de informação reúne uma subcategoria de cada uma das categorias de informação, por vez. Assim, o desempenho de uma habilidade implica na seleção de um conteúdo, uma operação cognitiva e de um produto. Neste contexto, Guilford (1977) ao escrever sobre “aumento de inteligência e criatividade (improving intelligence and criativity), indica que o pensamento criativo está nas relações com a produção divergente (categoria operação), seja qual for o conteúdo ou produto. A produção divergente implica na idéia de que é necessário construir respostas diferentes e alternativas ao mesmo problema, indicando que o pensamento criativo ocorre através da resolução de problemas. De acordo com Wechsler (1993), a produção divergente, conseqüente da multiplicidade de respostas, pode ser avaliada, principalmente, através da fluência (capacidade de gerar grande número de idéias), flexibilidade (mudança no significado ou interpretação de algo), originalidade (produção de respostas diferentes ou incomuns/respostas não freqüentes numa dada população) e elaboração (habilidade necessária para julgamento e organização). Guiford vai destacar, ainda, “a importância de se estar aberto à novas experiências, ser tolerante às ambigüidades e de ser sensível às novas informações, como sendo as características mais importantes da personalidade criativa” (Werchsler, 1993, 15). Sob a perspectiva da teoria educacional e criatividade, Werchsler (1993, 16) refere-se a Paul Torrance definindo criatividade como: tornar-se sensível a falhas, deficiências na informação ou desarmonias; identificar as dificuldades ou os elementos faltantes; formular hipóteses a respeito das deficiências encontradas; testar e retestar
327 essas hipóteses e, por último, comunicar os resultados encontrados”. Com isto pode-se verificar a influência de Guilford no pensamento de Torrance, em que se combina pensamento convergente com o divergente. Enquanto que em Guilford a criatividade é conseqüência do pensamento divergente, para Torrance nas fases de consciência do problema e de avaliação das hipóteses, o pensamento convergente é acionado como meio de obtenção de informações e de respostas, respectivamente. Semelhante a Guilford, Torrance avalia criatividade a partir de quatro fatores cognitivos: fluência (quantidade de idéias expressas), flexibilidade (mudança de classes ou de categorias nas idéias), originalidade (idéias incomuns) e elaboração (embelezamento ou detalhamento das idéias). No entanto, considera, ainda, as características emocionais (humor, movimento, resistência ao fechamento de idéias e extensão dos limites, etc.). Neste sentido, Fleith (1994), ao escrever sobre treinamento e estimulação da criatividade no contexto educacional cita David (1987), ao afirmar que “ensinar criatividade envolve encorajar e reforçar algumas características de personalidade como independência, curiosidade e humor” (Fleith, 1994, 114). Reúnem aspectos relacionados com a capacidade de coletar informações do ambiente, assim como, aspectos delimitados pelas características emocionais em que o indivíduo se encontra no processo criativo. Os estudos de Torrance vieram contribuir, em muito, com a relação entre criatividade e educação. Permitiram análises acerca de estratégias que proporcionam incentivos, desafios ao pensar e agir divergente. A escola convencional, segundo Torrance, “premia e reforça o raciocínio lógico e convergente, onde os alunos devem sempre encontrar a melhor e única resposta para o problema ao invés de possíveis soluções” (Wechsler, 1993, 18). A educação posta desta forma distancia-se do incentivo à expressão de comportamentos criativos. Faz uso de modelos punitivos e de reforço de condicionamentos que conduzem à resposta certa, como maneira de melhorar a aprendizagem. Na opinião de Wechsler (1993), trata-se de modelos que causam efeitos temporários e que exigem contínuas repetições. O conteúdo da aprendizagem ao perder seu significado para o indivíduo que aprende, vai exigir constante reforço no sentido de preservar a memorização daquilo que seja o objeto da aprendizagem. De acordo com Von Oech (1988), este modo de agir provoca “bloqueios mentais”, não exige comportamento criativo, diferentemente, se faz através do incentivo à rotina, à praticidade. Contrário a esta perspectiva de educação, Torrance propõe que a aprendizagem seja estimulada através dos referenciais da criatividade, em que considera os interesses individuais e da motivação interna, com efeito, duradouro. Próxima a esta abordagem, a perspectiva sociológica e criatividade discute, fundamentalmente, os efeitos do ambiente no processo criativo. Para Wechsler (1993), “a questão que se coloca é a de como a sociedade, com suas regras e imposições, pode permitir o desabrochar da criatividade” (Ob.cit., 20). Deve-se considerar que as regras sociais vão se constituir em critérios de avaliação das produções, definindo sua legitimidade criativa. Ou seja, um produto criativo expressa seu significado através do reconhecimento social, quanto à sua utilidade. Este panorama pode ser reforçado através de Amabile (In Wechsler, 1993) quando propõe que o estudo acerca da criatividade leve em consideração as referências “amplas da sociedade na qual o indivíduo está inserido” (Ob.cit., 21). Em seus estudos demonstra que as pessoas podem sofrer diversos efeitos da relação no e com o ambiente, o qual pode ser estimulador, recompensador, assim como pode ser repressor, punitivo. Nesta mesma direção, Cuéllar (1997), fazendo crítica às prerrogativas desenvolvidas nas pesquisas sobre criatividade, comenta: “a humanidade tem obtido muito mais êxito em escrever sua imaginação nas artes, na ciência e na tecnologia do que na elaboração e na inovação em matéria de novos esquemas sociais” (Ob.cit., 102). Este aspecto coloca-nos diante da reflexão sobre o modo de ser e estar de homens e mulheres na e com a sociedade. Ao mesmo tempo em que nos coloca frente ao debate acerca dos elementos sócio-culturais responsáveis pela exclusão de direitos de grande parte da população. Indica, ainda, a necessidade de construir argumentos que venham denunciar as disparidades sociais, anunciando proposições favoráveis à expressão da cidadania. Portanto, pensar criatividade sob o olhar do viver em coletividade, converge na direção das dimensões
328 ética e política das atitudes humana, frente aos novos desafios de enfrentamento das desigualdades e formas de exclusão sociais. Diante do universo destas abordagens ainda se poderia falar das que discutem criatividade sob a perspectiva da sua localização nos hemisférios cerebrais ou sob a intervenção das abordagens psicodélicas, estas que “enfatizam a expansão da consciência, ajudando as pessoas a abrir novas fontes de inspiração” (Wechsler, 1993, 23), estas, no entanto não serão tratadas com mais detalhes neste texto. As faces identificadas na criatividade estão, assim, relacionadas com a abordagem assumida por aquele que ao pensá-la, cria. De certo, determinar o termo que transmita a melhor idéia, a mais adequada, ou a mais correta acerca da definição de criatividade, (…), não seria uma maneira de inibir outras? Não quedaria em assumir os encantos do feitiço, criatividade…é? Seja como for, criatividade continua em aberto, não há uma definição universal. Enquanto o objeto de interesse pelo estudo sobre criatividade está centralizado na descoberta de características de uma pessoa criativa, para uns, para outros, o encanto está em testar o quanto de criatividade há nos homens e mulheres. Com isto, criatividade vem despertando interesse na busca de descobertas de novas soluções aos problemas que o homem capta; sejam eles de ordem econômica, política, psicológica, cultural, histórica, sejam problemas orientados pelas dimensões da individualidade ou da coletividade, pensar criatividade sugere ser tarefa que nos remete ao campo da educação, forte aliada no incentivo de atitudes mediadoras à expressão de comportamentos criativos, inseridos num contexto ético-planetário. Conseqüentemente, a complexidade planetária, a qual se refere Morin (2001), exige, dos novos estudos, envolvendo criatividade e educação, atenção sobre a dimensão da cultura local sem perder o foco na velocidade que as novas tecnologias impõem às produções humanas. Criatividade e educação, assim posto, sugerem novas reflexões na busca de argumentos explicativos acerca das prováveis transformações no modo de ser e estar das pessoas na sociedade frente à diversidade cultural. Por conseguinte não será qualquer forma de produção ou produto criativo que atenderá ao contexto da educação quando delimitada sob as características da educação popular. Isto sugere a questão: como vem sendo abordada a criatividade na temática da educação popular? Criar e recriar em Paulo Freire Expressando preocupação com o contexto educacional brasileiro, a obra de Paulo Freire atribui fortes e constantes evidências da importância que criatividade exerce em seu pensar e agir educacional. Antes mesmo de delimitar o significado de criatividade, Freire (1967), em Educação como prática da liberdade, anuncia seu entendimento de homem como „ser de relações e não só de contatos‟, que não estando apenas no mundo interage com ele. Criatividade, neste contexto, deve ser assumida como vocação ontológica humana. Como tal, exige não apenas a participação do homem/mulher nas relações que estabelecem, mas impõe a condição de homem/mulher-sujeito na e com a criação/recriação. Supera, assim, a condição de pessoafora de si e do mundo. Diferentemente assume a permanente presença ativa, conscientemente autêntica de homem, de mulher em libertação. Com isto, Paulo Freire vai desenvolver sua compreensão de educação como instrumento necessário ao processo de libertação humana. É bem verdade que na obra de Paulo Freire criatividade é tema que perpassa por sua obra expressando-se como característica humana, fundante ao estado de transcendência libertadora. Transcendência que se afirma no existir de cada um(a) ao perceber-se em sua inconclusão. Para Freire (1967), a criatividade reside na condição humana de pensar e agir criticamente; de refletir para tomar decisões conscientes e comprometidas com outros homens e mulheres, com as relações que constroem com o mundo e de onde capta os elementos de sua existência. Neste sentido, sem perder de vista a dimensão da razão, propõe que a afetividade seja mediadora às decisões que homens e mulheres tomam, justamente por entender que a capacidade humana de amar seja essencial às relações que constroem. Amorosidade vai constituir-se em vocação ontológica condicionadora da atitude criativa.
329 É neste cenário teórico que se coloca a discussão sobre criatividade em educação popular. O agir criativo em educação popular deve diferenciar-se de outras práticas educativas, na medida em que se assume como conseqüência radical243 da condição humana que reflete na autonomia de ser homem em libertação para amar, sentir, pensar e agir. Estes aspectos remetem-nos à aceitação das idéias elaboradas por Paulo Freire como referencial para a análise da criatividade como constitutivo da educação popular. Criatividade e as primeiras idéias de Paulo Freire em educação Paulo Freire (1967), em Educação como prática da liberdade aponta as conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de conseqüência e de temporalidade como fonte de explicação argumentativa acerca do processo de libertação humana. Por extensão, o processo de descoberta, que revela a ação de criar e recriar, pode ser explicado através destas mesmas conotações. Antes, contudo, referente ao termo descoberta como expressão do agir criativo, Wechsler (1993), fundamentada na teoria do intelecto de Jean P. Guilford, vai afirmar que dentre as operações cognitivas, o pensamento divergente é o que proporcionará descobertas criativas. Em sua opinião, a produção divergente leva à “formulação de alternativas variadas a partir da informação dada, procura diferentes soluções para o problema” (Ob.cit., 12). Com isto, associam criatividade à solução de problemas como respostas diferentes e alternativas para um mesmo problema. Gardner (1996), também se referindo à produção divergente, a identifica como estrutura mental favorável ao processo criativo. Para Freire (1967), este aspecto vai se tornar fundamental à execução prática do processo de alfabetização de adultos. Todo o ambiente da educação popular envolvendo os jovens e adultos a partir do sistema de alfabetização desenhado por Freire, desde suas experiências com os „círculos de cultura‟, vão ser influenciados pelo incentivo à diversidade. Antes mesmo de apropriar-se da palavra, os sujeitos(as) em alfabetização são orientados pela „leituramundo‟, pela apropriação dos elementos diferenciadores do que se convencionou chamar de natureza do que se expressa pela denominação de cultura244. Contrariamente, a esta perspectiva, a produção convergente permite a descoberta de respostas pré-definidas, como comenta Gardner (1966): “pelas medidas padrão, considera-se que as pessoas inteligentes são convergentes – pessoas que, a partir de certos dados ou de um problema difícil, conseguem chegar à resposta certa” (Ob.cit., 19). Através do pensamento convergente, homens e mulheres são conduzidos à descoberta de uma única resposta previamente determinada. Conseqüentemente a indicação de fatores determinantes na maneira de pensar e agir são indicadores contrários ao criar/recriar. Os propósitos de uma educação regida pela intensidade/determinação do pensar convergente, mesmo que estimulando práticas de aprendizagem pela resolução de problemas, trata-se de uma prerrogativa de modelos educacionais orientados pela prática pedagógica conservadora. Uma educação que se distancia da práxis libertadora e democrática; uma forma de educação que traduz a expressão da educação bancária245. Aprendizagem, neste sentido, sob o incentivo da descoberta de respostas universalmente certas decorre da capacidade humana de inteligência e, de certa maneira, encerra-se nela mesma. Distancia-se do contexto e das relações que homens e mulheres, em libertação, captam e são protagonistas. Torna homens e mulheres em “coisa adestrada”. Visto que, preservando a intenção da resposta certa, única possível, caminha na direção do que Freire (1967) chamou de “domesticação” do ser humano. Diferentemente de uma práxis libertadora, a educação bancária provoca a estagnação social. Diante do anunciado pela história política-econômica mundial, que acena na direção de alternativas para a solução de problemas emergentes, a educação bancária, fixa o tempo da aprendizagem ao tempo previsto para a resolução do problema, identificando as 243
Ver Paulo Freire (1967, 50). Ver Álvaro Vieira Pinto (1969 – Teoria da Cultura). 245 Educação bancária é termo utilizado por Paulo Freire (1970) para referir-se aos modelos de educação conservadores, tradicionais em sua estrutura e estética. 244
330 velhas soluções, como extrato da nova aprendizagem. Impede o desenrolar da transformação social, em seu lugar massifica as soluções convergindo para a manutenção do contexto social. Noutra direção, homens e mulheres envolvem-se num processo criativo pela leitura da “palavramundo” e da “palavra-ação” como expressões de seu próprio “quefazer” social, ético, estético, político, cultural246. Tomam consciência de que ao aprender produzem cultura, estruturam valores políticos, educacionais, psicológicos, sociais ao mesmo tempo em que sofrem influência desta mesma produção. De um lado, convivendo numa e com uma sociedade que estimule o pensar divergente, supõe-se estimular, também, o desempenho criativo. De outra maneira, sendo esta sociedade repressora, a expressão do agir criativo tende a distanciar-se da práxis libertadora em que homens e mulheres se associam numa ação revolucionária pela transformação social. Na medida em que se relacionam, homens e mulheres estabelecem contatos com desafios que capta do mundo247 e que orientam seu agir. Nesta direção, Paulo Freire vai referirse à pluralidade como conotação que exige, dos homens e mulheres, o respeito à diversidade histórica, cultural dos sujeitos em relação. Os desafios captados nas relações, assim posto, expressam uma pluralidade na sua singularidade. Portanto, os desafios tanto consagram elementos comuns aos homens e mulheres, como são expressos sob a singularidade que caracteriza a especificidade histórica de cada um e uma. O processo criativo orientado pelo reconhecimento da pluralidade humana e dos desafios que os homens e mulheres captam e criam/recriam, estão condicionados pelo “jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se” (Freire, 1967, 40) na trajetória de seu agir e pensar. Semelhantemente ao proposto por Jean P. Guilford, Paulo Freire entende que criar e recriar são condições humana e têm influência da capacidade inteligência. Neste sentido, os homens e mulheres agindo através da expressão do pensar divergente, investem sua ação escolhendo a melhor resposta (que não é negação das demais respostas). Testa sua aplicabilidade. Age com consciência diante do desafio. Decide. No entanto, Paulo Freire adentra, além dos condicionantes da inteligência humana, noutros que estão alicerçados no interior das relações que homens e mulheres desenvolvem. Pluralidade, como uma das cinco conotações da esfera humana, permite-nos refletir sobre a relação entre criatividade e privilégios, criatividade e cidadania. Este aspecto vai nos conduzir ao entendimento que Paulo Freire faz acerca do que é da natureza e o que é da cultura. Assim, a inteligência como capacidade humana apresenta-se no campo dos elementos da natureza, enquanto que os desafios que homens e mulheres captam da sua realidade, as idéias que formulam elaborando dinamicidade em seu agir criativo, são expressões da sua produção inteligente, portanto estão na esfera cultural. Como tal, o agir criativo denota a condição histórica pelas quais os homens e as mulheres são protagonistas. Não há privilégio em criatividade. Contudo, sob o olhar da diversidade cultural entre homens e mulheres, sob a maneira como homens e mulheres se posicionam em suas relações, o agir criativo pode sofrer opressão, decorrendo daí inibição de ações criativas. Na negação ou opressão da Pluralidade humana o agir criativo é inibido, provoca a sectarização que massifica desapropriando homens e mulheres de sua „vocação ontológica de ser mais‟, de ser coletivamente mais. Para Freire (1967), o homem na condição de “sectário nada cria porque não ama. Não respeita a opção dos outros. Pretende a todos impor a sua, que não é opção, mas fanatismo. Daí a inclinação do sectário ao ativismo, que é ação sem vigilância da reflexão” (Ob.cit., 51). O agir criativo, em sintonia com a perspectiva educacional libertadora, diferentemente 246
Apesar do termo „cultura‟ ser indicado por Paulo Freire a partir de Erich Kahler (Historia Universal del Hombre), Álvaro Vieira Pinto (1969) vai delimitar „cultura‟ com significado que pode expressar as idéias que Paulo Freire efetivou ainda quando nos Círculos de Cultura, no MCP. Diz-nos Álvaro Vieira: “A cultura, criação humana resultante da resolução da contradição principal do homem, aquela existente entre ele e a natureza. (...) A cultura como produto do processo produtivo” (Ob.cit., 119). 247 De acordo com Paulo Freire (1967, 39), “para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida”.
331 da sectarização, tem delimitada sua amplitude na expressão mais profunda do que Paulo Freire chamou de „radicalização‟248. Se expressa na medida em que homens e mulheres assumem-se política e criticamente, centrados no reconhecimento que fazem como sujeitos revolucionários no exercício de sua cidadania. Como homens e mulheres radicais vivem os seus tempos, não apenas estando neles, mas com eles. Transcendem como sujeitos revolucionários, conscientes de sua finitude terrena, ao mesmo tempo em que se reconhecem através de sua condição de estar sendo, e de sendo estar. Percebem-se em seu „inacabamento‟ espiritual, que para Freire (1967) expressa a ligação entre o plano humano e o religioso, “cuja plenitude se acha na ligação com o Criador. Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou de domestificação, mas sempre de libertação” (Freire, 1967, 40). Daí pode-se especular sobre o motivo pelo qual Paulo Freire comumente associa a ação de criar à de recriar. O agir criativo/recriativo guardam íntima relação com a existência humana de quem cria/recria, de tal maneira que, homens e mulheres ao viverem seu tempo, vivendo discernem sobre seu tempo e suas atitudes. Criam, criando, na medida em que transitam conscientemente pela sua historicidade e cultura. O agir criativo/recriativo, assim, decorre de seu estar no e com o mundo. Transcendem, transcendendo, legitimados pelo reconhecimento social de suas ações. Por conseguinte, o agir criativo/recriativo exige dinamicidade, autenticidade e ação radical de todos e todas que se posicionam criativamente frente aos desafios que captam. As relações construídas, entre homens e mulheres que estando no mundo se fazem com ele, são relações que não se esgotam na passividade dos sectários. São relações forçosamente em movimento traduzindo a amorosidade entre os sujeitos e sujeitas em libertação. Não há privilégios entre os homens e mulheres que, em transcendência, comungam suas experiências criando/recriando soluções aos desafios que captam de sua realidade. Não se massificam como sectários, diferentemente agem como protagonistas que não se ajustam aos desafios, mas que os confrontam critica e sensível às diversidades de seu tempo. Assim vai escrever Freire (1967, 43): A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas. A capacidade criadora, definida por Paulo Freire, encontra-se diretamente associada ao significado que os homens e mulheres atribuem a sua integração ao mundo. E isso denota a compreensão de que sua radicalidade decorre de seu reconhecimento como sujeitos enraizados, autênticos e amorosamente críticos. A criticidade249, como conotação que explica a condição humana de estar no e com o mundo e com outros homens e mulheres („homem como ser de relações‟), expressa a posição contrária à acomodação e ajustamento dos homens e mulheres há 248
“A radicalização, que implica no enraizamento que o homem faz na opção que fez, é positiva, porque preponderantemente crítica. Porque crítica e amorosa, humilde e comunicativa. O homem radical na sua opção, não nega o direito ao outro de optar. Não pretende impor a sua opção. Dialoga sobre ela” (Freire, 1967, 50). 249 Criticidade para Freire (1967, 61) “implica na apropriação crescente pelo homem de sua posição no contexto. Implica na sua inserção, na sua integração, na representação objetiva da realidade”.
332 um tempo unidimensional e a uma cultura da qual não se fazem protagonistas. Criticidade é, assim, instância fundamental do agir criativo, visto que não há expressão de criatividade quando há exploração que nega o homem ou mulher em detrimento de outro ou outra. Agir criativamente exige integração, autenticidade nas ações. Opõe-se a qualquer forma de opressão ou ação desumanizadora que „coisificam‟ e „domesticam‟ o homem. Por isso, afirma Freire (1967), “salienta-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época” (Ob.cit., 44). A importância da captação destes temas extraídos da realidade histórica e cultural pelo homem está na delimitação de sua afirmação enquanto sujeito ou objeto; enquanto ação humanizadora ou desumanizadora; enquanto sujeito radical ou indivíduo sectário. Demanda conseqüência tanto sob atitudes orientadas por ideologias conservadoras, de dominação e opressão, portanto antidemocráticas, como, em condição antagônica, atitudes de integração cujas relações humanas são construídas a partir do reconhecimento que homens e mulheres fazem quanto aos valores, aspirações, inquietações que captam dos desafios de sua época e cultura. De um lado, a atitude descrita transcorre sob influência de uma consciência que transita alienada e alienante entre homens e mulheres que se apresentam “incapazes de projetos autônomos de vida, buscam nos transplantes inadequados a solução para os problemas do seu contexto” (Ob.cit., 53). Neste caso, as relações entre os homens, emergindo como estruturas de controle e dominação, transformam as ações humanas em puro ativismo assistenciais(L). Conseqüentemente as relações tomadas pela imposição à força de uns sobre outros convergem na direção da exaltação de privilégios, rupturas na cidadania. O processo criativo tende a ser inibido e aceito como mito ou fantasia proveniente do imaginário que uns fazem dos privilégios de outros. De outro lado, as conseqüências transitam sob a consciência crítica que homens e mulheres elaboram dos desafios que captam de sua realidade. Em reflexão homens e mulheres envolvem-se numa busca permanente de ser mais, transformando os desafios que captam em „quefazeres‟ autênticos. Este aspecto demanda do entendimento que Paulo Freire faz quando se refere ao processo de libertação nas relações humanas - “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (Freire, 1987, 52). Este processo que se faz ao fazer em comunhão, de modo incisivo, nos adverte quanto ao contexto da educação que se faz ao fazer libertação. Coloca-nos diante da vocação humana de ser, sendo e de estar, estando em libertação. O agir criativo, como conseqüência das relações que homens e mulheres constroem em sua existência, neste contexto, expressa atitude revolucionária de todos e todas que ousam, amorosa e criticamente, reconhecer-se em libertação. De tal forma que, para Freire (Ob.cit., 52): Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engaja na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua „convivência‟ com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita ao nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis. Por conseguinte, o agir criativo é conseqüência do „engajamento‟ que homens e mulheres optam, negando „pseudoparticipações‟ nas ações que decide. Engajamento, este, que se faz captando os desafios e agindo através da práxis libertadora. Neste sentido, criatividade não finda em si mesma como operação da inteligência humana. Mas a transcende pelo reconhecimento que homens e mulheres elaboram acerca da diversidade histórica e cultural de cada um e uma; a transcende na medida em que se posicionam dialeticamente através da „açãoreflexão-nova ação‟. Sob a conotação de temporalidade, o agir criativo pode ser explicado a partir do contexto situacional em que homens e mulheres agem. Diferente dos outros animais, o homem vive um tempo multidimensional. Produzem cultura ao existir num tempo que se faz passado,
333 presente e futuro. Atribuem significado aos desafios captados de suas realidades, refletindo sobre e a partir delas de maneira a estabelecerem sua autonomia e autenticidade no agir criativo. Criatividade explicada sob a perspectiva expressa por Paulo Freire, superando os conceitos constituídos historicamente, cada um em seu próprio tempo, incrementa significados outros que vão além das iniciativas que a relacionaram como „dom‟, loucura, bruxaria ou, noutra dimensão, como conseqüência da inteligência. Para Paulo Freire, criatividade estar associada ao processo de emancipação democrática dos homens e mulheres que se reconhecem como ser de relações. Por conseguinte, o agir criativo toma corpo na medida em que as relações humanas sejam orientadas pelo engajamento amoroso, autêntico de cada um e uma. O agir criativo expressa, em si, argumentos da pluralidade, da transcendência, da criticidade, da conseqüência e da temporalidade das relações humanas, entre sujeitos em libertação. Criatividade e educação, assim postas, orientadas sob o olhar de Paulo Freire, nos colocam diante da inquietação de que não será qualquer expressão de criatividade que irá converter a ação humana em práxis emancipatória. Antes se torna fundamental esclarecer o contexto da educação em que o agir criativo tomará expressão. Criatividade como um dos constitutivos da educação popular Este tópico que poderia ser chamado de considerações finais toma, aqui, outro formato, na medida em que se pretende exaltar a sua condição temporal frente ao conjunto de uma obra que se faz fazendo. Torna-se ousadia por se compreender em seu inacabamento, como estrutura maior construída por várias mãos. Desta maneira, criatividade em educação popular, tema proposta para esta reflexão, ganha espaço argumentativo quando localizado no interior da produção (conceito de educação popular) desenvolvida pelos doutorandos. Interage a partir da reflexão orientada pelo pensamento freireano sobre criar e recriar, indicando a esfera em que o conceito construído pode ou não expressar aproximação com o constitutivo criatividade. Para tanto, o conceito construído fora subdividido (sem perder sua dimensão de totalidade) em partes que expressam, em si, um conjunto de conteúdos significativos à reflexão sobre criatividade como um dos elementos que constituem educação popular. Tomando as idéias de Paulo Freire como expressão da educação popular e criatividade, que respalda a práxis educativa como meio de intervenção política de homens e mulheres em relação, assume-se a perspectiva orientadora da superação dos conceitos que delimitam criatividade como capacidade inerente da inteligência humana, e sem negar a relevância do pensamento divergente no agir criativo, apropria-se como elementos fundamentais ao criar/recria e descobrir as vocações humanas de amorosidade, de ser mais, de diálogo. Criatividade, assim, implica em ação inteligente individual, pela sua condição natural, no entanto, encontra-se, engajada num contexto histórico e cultural com o qual homens e mulheres interagem. Contexto em que os sujeitos captam os elementos para sua produção. Neste sentido, o conceito construído possibilita fazer uma inferência na direção do reconhecimento da educação popular como um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem. Tal como Paulo Freire, entender educação popular, associando-a a produção e apropriação dos produtos culturais, indica abertura nas relações entre os sujeitos com o mundo e com outros sujeitos; indica cultura como conseqüência da produção humana, ao mesmo tempo em que afirma o reconhecimento de que produzir cultura exige, dos homens e mulheres, conhecimento e cidadania para tornar a produção uma ação de „criação ou recriação‟ centrada no que Paulo Freire definiu como „vocação ontológica do homem‟, a busca de ser mais em comunhão. Implica em autonomia e consciência crítica, comprometida com o social para decidir a partir dos desafios que capam de suas realidades. A educação popular, assim, é constituída de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas como sujeitos(as) coletivo. Como tal, o agir criativo deve responder aos princípios de uma teoria de conhecimento que explique o humano na sua condição humanizadora, frente aos aspectos da sua realidade. O empoderamento, neste sentido, deve ser compreendido sob a demanda política de pessoas que interagindo entre si, tomam
334 consciência de que sua libertação encontra-se diretamente associada à libertação dos demais. A educação, orientada por esta perspectiva teórica, torna-se popular na medida em que tem delimitado seu campo de intervenção numa ação que não se divorcia de sua dimensão filosófica em defesa do humano em processo de humanização. Portanto, uma ação que se faz em reflexiva, resultando numa nova ação, cuja sua expressão esteja fundamentada pelos argumentos da práxis libertadora. Como educação popular, o agir criativo é expressão de homens e mulheres que se encontram protagonistas de suas decisões. De homens e mulheres que têm clareza de que suas ações iniciam com relações que elaboram e retornam sob a condição de respostas aos desafios que captou. Por conseguinte, demanda conteúdos e técnicas de avaliação processual recorrentes às conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de conseqüência e de temporalidade, com as quais os sujeitos e sujeitas engajam-se produzindo cultura. Aprendem a tomar decisões mediante relações que constituem em seu universo comunicativo, dialogando com outros homens e mulheres, assim como dialogando com o mundo, com sua realidade. Os conteúdos, assim entendidos, são dotados de significado e geradores de novos conteúdos. A avaliação, em sua condição processual, responde, qualitativamente, aos desafios captados, os quais, para Paulo Freire, consagram-se sob a condição de „situações limites‟ mediadas pelo „inédito viável‟ de cada um e uma. Conteúdo e técnica de avaliação, quando articulados à criatividade como um dos constitutivos da educação popular, expressam maneiras de agir sob orientação do pensar divergente, amoroso, dialógico, conscientemente crítico. Encontram-se, o pensar e o agir criativo de homens e mulheres, protagonistas de seu tempo, permeados de uma base política e cultural estimuladora das transformações sociais e, orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade. Diferentemente, demandaria numa educação que não se deve traduzir como popular. Por fim, entendendo a educação popular a partir do conceito analisado, pode-se deduzir que há uma relação implícita em seus conteúdos, os quais apontam o agir criativo na direção da práxis libertadora. Conseqüentemente, para que criatividade seja explicada sob a condição de constituinte da educação popular, há de se pensá-la sob os aspectos que a condicionam a esta particularidade de se pensar educação, tais como sua aproximação com o contexto multicultural que permeiam as relações humanas; criatividade implica na capacidade humana de inteligência para pensar e tomar decisões, a partir da dinamicidade posta ao agir dialético frente à diversidade dos desafios captados. Agir criativamente implica num ato de amor ao homem, à mulher e ao mundo. A criação e recriação, produtos da cultura e da criação humana, expressam em si, como afirma Álvaro Vieira Pinto (1969) “duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a principalmente social na segunda, sem contudo em qualquer momento deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente” (Ob.cit., 122). Guardam estreita relação com a condição em que homens e mulheres se posicionam no e com o mundo. Há de se pensar, criatividade, sob a complexidade que constitui o universo das relações humanas, sem, no entanto, afastar-se do humano no processo de humanização da humanidade.
335 Biliografia ALENCAR, E.M.L.S. (1986). Psicologia da Criatividade. Porto Alegre: Artes Médicas. ALENCAR, Eunice M. L. S. de e VIRGULIM, M. R. Angela (1994). Criatividade: expressão e desenvolvimento. Organizadoras; Petrópolis/RJ: Vozes. BRANDÃO, Carlos Rodrigues (2002). A educação popular na escola cidadã. Petrópolis RJ: Vozes. BROWN, Robert T. (1989). Creativity: What are we to measure? In: Handboock of Creativity; Edited by John A. Glover; Royce R. Ronning and Cecil R. Reynolds. Chapter 1; 3-32. New York: Plenum Press. CUÉLLAR, Javier P. de (1997). Nossa diversidade criadora: Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento. Organizador: Javier Pérez de Cuéllar. Tradução de Alessandro Warley Candeas; revisão técnica de Lúcia Helena L. Morelli. Campinas, SP: Papirus; Brasília: UNESCO. FLEITH, Denise de S. (1994). Treinamento e estimulação da criatividade no contexto educacional. In: Desenvolvimento e Expressão da Criatividade; (Org. Ângela Virgulim e Eunice Alencar), Cap. 7 (pp 113-141). Petrópoles/RJ: Vozes. FREIRE, Paulo (1967). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ____________ (1987). Pedagogia do Oprimido. 17a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra. GARDNER, Howard (1994). Estrutura da mente, a teoria da inteligências múltiplas.. Trad. Por Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. ____________ (1996). Mentes que criam: uma anatomia da criatividade observada através das vidas de Freud, Einstein, Picasso, Stravinsky, Eliot, Graham e Gandhi. Trad. Por Maria Adriana Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas. GUILFORD, J. P. (1967). The nature of human intelligence. New York: MacGraw-Hill. GUILFORD, J. P. (1977). Way beyond the IQ: guide for improving intelligence and creativity. Buffalo, New York: Creative Education Foundation. GUILFORD, J. P. e HOEPFNER, Ralph (1971). The analysis of Intelligence. New York: MacGraw-Hill. HENNESSEY, Beth A. e AMABILE, Teresa M. (1988). The conditions of creativity. In: The nature of creativity: Contemporary psychological perspectives, organizado por Robert J. Sternberg. New York: Cambridge University Press. KNELLER, George F. (1978). Arte e ciência da criatividade. Tradução de J. Reis. 5a edição. São Paulo: IBRASA. MORIN, Edgar (2001). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora de Assis de Carvalho. 3a edição. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO. MAY, Rollo (1976). A coragem de criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. PINTO, Álvaro V. (1969). Ciência e Existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. Série Rumo da Cultura Moderna; vol. 20. Rio de Janeiro: Paz e Terra. TAYLOR, Calin W. (1988). Various approaches to and definitions of creativity. In: The nature of creativity: Contemporary psychological perspectives, organizado por Robert J. Sternberg. New York: Cambridge University Press. VERNON, P. E. (1989). The Nature-Nature Problem in Creativity. In: Handbook of Creativity. Perspectives on Individual Differences. Chapter 5; 93-110. Edited by John A. Glover, Royce R. Ronning and Cecil R. Reynolds. New York: Plenum. VON OECH, Roger (1988). Um “Toc” na cuca: técnicas para quem quer ter mais criatividade na vida. Tradução de Virgílio Freire. São Paulo: Livraria Cultura Editora. WECHSLER, S.M. (1993). Criatividade: descobrindo e encorajando. Campinas/SP: Editorial Psy.
336
Anexo Questões levantadas pelos doutorandos(as) como aspectos de sua preocupação primeira frente à educação popular A ampliação de referenciais na educação popular(Europa, América Latina, África...); O estabelecimento do campo e o espaço da educação popular; A socialização das experiências em educação popular; A necessidade da presença de temáticas de várias regiões do país; A produção de texto em educação popular; A sistematização e a teorização das experiências pelos próprios militantes: a teoria e a prática; O conceito de educação popular; A incorporação de novos elementos(gênero, ecologia ...) em educação popular; O publico e o privado em educação popular; A subjetividade de quem faz educação popular; A vulgarização da educação popular como não existência de conteúdo ou algo sem qualquer sistematização; A metodologia da educação popular; A teoria em educação popular; A preparação para o exercício da educação popular; A grande dificuldade para a teorização das práticas; As políticas públicas para educação popular; A definição de educação popular diante da pós-modernidade, qualidade total, capital humano, interculturas...; A criatividade em educação popular; A diferença: educação popular e educação formal; A educação popular leva a que e a onde? A ordem das mudanças pretendidas - local, regional, nacional, individual ...? O campo de trabalho em educação popular. O que faz um educador popular? A dimensão do popular no programa de pós(esta disciplina pode ajudar muito); As mudanças de paradigmas sufocam a educação popular. Os movimentos sociais estão sendo financiados e cai o seu papel diante das atuais políticas. As lideranças não estão mesmo com a mão na massa; Escassez de teorização sobre as práticas; As organizações sociais têm pouco registro daquilo que fazem; A escassez de recursos para a educação popular que gera voluntarismo, sobretudo, e improvisação; As dificuldades de inserção nas organizações culturais. CONSIDERAÇÕES
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INDIVIDUAL
LIVRO 1
EDUCAÇÃO POPULAR - enunciados teóricos -
JOÃO PESSOA – PB 2004
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COLEÇÃO EXTENSÃO POPULAR Organizador: José Francisco de Melo Neto
Títulos publicados: Extensão universitária - uma análise crítica José Francisco de Melo Neto Extensão universitária – diálogos populares José Francisco de Melo Neto (org.) Música e mudança – uma experiência em educação popular Hector Jorge Rossi Extensão universitária, autogestão e educação popular José Francisco de Melo Neto
Extensão universitária é trabalho José Francisco de Melo Neto Educação popular – enunciados teóricos José Francisco de Melo Neto Títulos a publicar: Diálogo em educação José Francisco de Melo Neto Extensão popular (coletânea) ------------------------------------------------------------------------------------------------------------GRUPO DE PESQUISA EM EXTENSÃO POPULAR – EXTELAR ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Apoios: - USINA CATENDE – PE. Companhia Agrícola Harmonia . - ANTEAG – Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária/SP.
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SUMÁRIO
- APRESENTAÇÃO- INTRODUÇÃO............................................................. - OUTROS CAMPOS PARA EDUCAÇÃO................ - ENUNCIADOS PARA UMA EDUCAÇÃO POPULAR:
a) a experiência histórica........................................... b) a cultura.................................................................. c) o popular................................................................ d) o concreto............................................................ e) o trabalho............................................................ f) autonomia/liberdade/igualdade......................... g) odiálogo - CONSIDERAÇÕES................................... - REFERÊNCIAS.....................................
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APRESENTAÇÃO
Este ensaio insere-se no esforço de construção conceitual para a educação popular, ou se não um conceito, pelo menos a delimitação de um campo da educação, em que seja possível delinearemse características que apenas, a esse tipo de educação, fazem parte. A busca de constituintes dessa educação, tida como emancipadora, mas que os dias de hoje cobram maior distintivo em suas bases práticas, cobrando elementos teóricos que as fundamentem. Este é um esforço de apresentação de constituintes com dimensões formadoras para um conceito para educação popular, tendo como aspectos centrais às experiências de vários educadores populares e as reflexões que ora estão em desenvolvimento em várias ações educativas, espalhadas no país. Assim, é que são apresentados a experiência histórica, a cultura, o popular, a realidade, o trabalho, a autonomia, a liberdade e a igualdade como componentes fundantes para a realização de práticas em educação – educação popular -, lastreados pela dimensão ética do diálogo.
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Introdução Educação tem sido, para muitos, uma palavra com significado meramente simbólico. Resiste, contudo, a qualquer tentativa de compreensão que a transforme em fórmula abstrata ou mesmo vazia. Sua etimologia remete ao grego paidagogein ou ao latim educare, como algo intrínseco às relações humanas e sociais ou, mais precisamente, como um fenômeno de apropriação da cultura. É tema de uma ampla interpretação, assim como cultura. Esta é entendida como expressão da criação humana, fruto das complexas operações que o animal humano vem apresentando, historicamente, no trato com a natureza material e suas lutas para a sobrevivência. Nessas operações, o humano descobriu a sua capacidade de aprender, estabelecendo nesse momento o fato pedagógico, isto é, a condição de aprendizagem que traz consigo e que continua em desenvolvimento, com maior velocidade que qualquer outra espécie animal. A educação realiza-se de forma espontânea, em qualquer lugar. Acontece de forma reflexiva ou sistemática quando se definem técnicas apropriadas na busca de se obter melhores rendimento educativo (a teoria pedagógica). Entretanto, a operacionalidade (preceitos e leis) e as opções de técnicas ou metodologias desse processo educativo sistematizado são demarcadas por uma política de educação. É neste sentido que cabe questionar quanto ao direcionamento desejado para os processos educativos: aonde se deseja chegar com essa teoria pedagógica, gerada dos fatos pedagógicos e permeada de uma política de educação, voltada às maiorias sociais? Qual é a educação que interessa às classes trabalhadoras, em exercício de valores democráticos? Ora, o significado de educação também não pode prestar-se para absorver qualquer experiência como se fosse educativa e, muito menos, do interesse dos oprimidos. Há, inclusive, um tipo de experiência que se diz popular, mas que busca, através de outras técnicas, promover a inculcação do silêncio nas mentes das classes despossuídas da sociedade, roubando-lhes a sua inerente capacidade de indignação. A condição de aprender - o fato pedagógico - terá maior adequação ao expressar a relação do humano com o mundo, baseada nas dimensões do trabalho. Este é o ponto de partida que parece necessário para uma educação que se paute pelos interesses das maiorias, considerando que o trabalho é a fonte de sua existência. O significado da anterioridade do mundo em processos educativos fundamenta-se no aspecto de que o conhecimento, a partir das coisas concretas, pode incitar as forças humanas à promoção de mudanças. Uma teoria pedagógica será convidativa ao expressar a arte pedagógica de determinar as técnicas mais apropriadas para um melhor aproveitamento educativo. Essas técnicas ajudarão a pensar, agir e descrever o mundo, com base nas relações humanas e o próprio mundo, como expressão dialética de um movimento de análises e novas sínteses que externarão, possivelmente, através da história e da crítica, os anseios gerais ou locais das transformações necessárias. É uma relação de síntese do sujeito com o mundo; uma leitura assentada na história e instigada pelo exercício da crítica ao outro e a si mesmo. Políticas de educação, por outro lado, traduzidas em leis ou preceitos, reclamam as muitas possibilidades de organização dos trabalhadores e a promoção da cidadania (crítica e ativa), dando ênfase aos processos de participação em toda a dimensão da vida. É o desvelamento dos espaços sociais, como a casa, a escola, a comunidade e a cidade, tornando-os efervescentes ambientes de solidariedade. As ações em políticas de educação podem conduzir para um novo agir político, indo além da razão instrumental apegada aos fazeres do dia-a-dia, simplesmente. Vão ao encontro de outra razão que promova a comunicação através do diálogo, definida em contraponto aos modelos autoritários e opressores da tradição secular, acompanhada de princípios éticos valorizadores do humano e não das coisas, educando para uma nova estética política e, assim, estabelecendo outros patamares de civilização. Patamares educativos, lembrando Paulo Freire, que espantem o medo da liberdade, da igualdade e da felicidade.
344 Outros campos para educação Em processos educativos das classes trabalhadores, tais princípios tornam-se uma necessidade, considerando o longo caminho a ser percorrido na perspectiva da aprendizagem de outras formas de gerenciamento de seu trabalho, de seus empreendimentos e de sua vida. A educação se constitui como componente necessário nessa busca de superação dos padrões estabelecidos pelo modo de viver do sistema capitalista. Ao assumir uma orientação para tais valores, esta passa a cobrar conteúdos e metodologias adequados ao incentivo de suas características. Uma educação voltada aos desejos e interesses dessa maioria da população; uma educação voltada ao popular. Em várias experiências em andamento, a educação popular tem se apresentado como em condições de promover uma aprendizagem voltada a estes valores. Contudo, não há uma homogeneidade em se falar sobre educação popular. Beisiegel (1992), ao discutir as políticas da educação popular no país, aponta suas diferenciadas possibilidades, destacando a experiência de Paulo Freire e a educação popular veiculada pelo Estado. Mesmo esta pode se prestar para a contribuição à qualidade de vida das pessoas, podendo também ser exercida por meio de um discurso libertador ou voltado às dimensões de uma economia promotora de solidariedade. Normalmente, está dirigida para o atendimento dos interesses do Estado. Busca-se, entretanto, uma educação que se preste a realizar a vivência democrática entre aqueles que estão a viver de seu trabalho. Iniciada a partir da realidade que se vive e, sobretudo, marcada pela dimensão teórica do trabalho, a experiência pela busca da autogestão na Usina Catende250, por exemplo, decorrente de sua dimensão251, tem propiciado questões que desafiam as práticas educativas implementadas. Tais práticas, talvez, sejam incitadoras às demais tentativas de educação em experimentos de economia voltada ao bem estar de seus partícipes, exercitando outro estilo de viver. Este movimento na usina prescreve uma rigorosa organização das atividades de educação que precisam trazer consigo o processo produtivo da empresa como ponto de origem. Vários são os projetos educativos e entidades que estão atuando na sede da usina e nas áreas de engenhos, promovendo permanentes ciclos de debates e sucessivos seminários. São desafiadores tanto o número de trabalhadores envolvidos como um conteúdo voltado aos princípios252 abrigados no projeto Catende/Harmonia. 250
O projeto Catende surgiu no interior das lutas trabalhistas do início da década de 90. Inicialmente, concentrou suas atenções nos direitos às indenizações dos tempos de trabalho de 2.300 trabalhadores rurais, demitidos em 1993. Essas lutas, coordenadas pelos sindicatos de trabalhadores rurais e pela FETAPE, passaram por reivindicações de direito ao emprego (1994), reforma agrária (1995/6), manutenção do patrimônio como reserva de valor para pagamento dos direitos trabalhistas (1996) e construção da Empresa dos Trabalhadores, a Companhia Agrícola Harmonia (1998) (Projeto Catende, 2002).
251
A Usina Catende emprega, aproximadamente, 2.500 trabalhadores (rurais e operários) vinculados diretamente às suas atividades, com um total de 48 engenhos, povoados onde reside boa parte deles. Em época de moagem, o momento da colheita da cana, aproximadamente 70 mil pessoas ficam envolvidas com a usina, de forma direta ou indireta, uma grande parte da população de cinco municípios na região da Mata Sul de Pernambuco.
252
Princípios básicos do Projeto da Empresa dos Trabalhadores (Cia. Harmonia): exploração em escala empresarial, combinada com o regime de agricultura familiar; fortalecimento do processo de organização dos trabalhadores, integrando a Catende/Harmonia com as lideranças acumuladas em seis sindicatos de trabalhadores e em cerca de vinte associações de moradores dos engenhos da usina; conselho de administração eleito dentre os trabalhadores acionistas, mas a gestão em caráter executivo, com transparência assegurada pelos mecanismos de representatividade previstos no estatuto; capacitação e garantia da melhoria da produtividade no trabalho; diversificação agrícola e industrial; propósito de que “nenhum trabalhador/acionista permaneça analfabeto ou volte a passar fome”; trabalho em regime de autonomia (autonomia de custos de produção), com a empresa assumindo o recolhimento do INSS de todos os acionistas. O encerramento da falência, a consolidação do processo produtivo e a articulação da diversificação da agricultura de escala e familiar, com o aumento da variedade de produtos industrializados constituem seu quadro de metas.
345 É sabido que o processo de falência253 em usinas de açúcar na região nordestina tem sido um malogro estrutural, pois vem acompanhado de um total destroçamento dos parques industrial e rural existentes, por parte de seus antigos proprietários. A dependência da usina do canavial de terceiros chegou a 80%, desaparecendo praticamente a produção própria, importante para a sua manutenção, bem como dos contratos de venda de açúcar existentes. Há uma destruição quase total dos recursos da produção. A educação insere-se nessas situações como componente na ajuda à reconstrução do plantio da cana, à atuação junto a credores para evitar o fechamento da unidade fabril, ao incentivo para outras relações sociais, preparando novo cenário para a efetivação do projeto dos trabalhadores254. Precisa desenvolver-se uma educação que faça ver aos trabalhadores que eles não estão sozinhos e se constituem como uma classe, onde o valor da solidariedade é uma marca. Contudo, mesmo que o apoio ao projeto Catende/Harmonia seja marcante255, abre a desafiante tarefa de manter em suas mãos a coordenação geral desses apoios, direcionando-os às metas do projeto. Estando a usina inserida na própria cidade de Catende, os problemas da cidade são também os seus problemas e vice-versa. Um projeto educativo, nesse ambiente, não pode deixar de considerar a realidade da cidade. O que conta mesmo para um efetivo e abrangente projeto no campo da educação são as relações intrínsecas entre a cidade e a indústria. Estão presentes questões da educação básica no município que atingem diretamente os filhos dos trabalhadores. Dessa forma, abre-se uma perspectiva de como promover a atuação da usina nesse campo específico, envolvendo a Prefeitura e o Estado que estão firmemente burocratizados em seu sistema educacional, dificultando uma abertura aos problemas maiores da região. A presença de projetos encetados por entidades não-governamentais reabre novas atividades também no campo da saúde, apresentando um espaço de ampla atuação educativa devida à inter-relação da saúde com os demais problemas locais. Todavia, a definição dos conteúdos de capacitação, nessa área, precisa ser guiada pela realidade - a origem das políticas de educação, suas metodologias e conteúdo para todo projeto de busca à autogestão. Nesse sentido, é que a discussão256 sobre cooperativismo e gestão empresarial com destaque para a autogestão envolve temáticas presentes em todos os encontros promovidos em engenhos ou mesmo no ambiente da fábrica e inseridos nos conteúdos educacionais. O avanço de um empreendimento falido para uma economia solidária é um momento de transição da tradição de empresariamento capitalista para uma outra forma de gestão da economia. É a tentativa de implementação de outra cultura, quebrando a hierarquização exacerbada nesse processo produtivo e a compreensão estabelecida de que a exploração é algo natural e assim deve ser. Há a criação de novos direitos, orientada por práticas participativas. Investe-se na superação de uma racionalidade prisioneira da técnica, adquirindo dimensões emancipatórias, sem promover a separação do mundo das necessidades e do mundo da liberdade.
253
Em 1995, o quadro dos credores trabalhistas dos usineiros falidos atingiu um total de 1.986 processos, sendo 4.937 o número de reclamantes.
254
Passados três anos da falência (1998), já se faz uma moagem com 51% de cana própria, aproximandose do nível de auto-sustentação econômica.
255
Entidades que acompanham e apóiam a luta na Usina Catende e que procuram soluções novas no cenário envelhecido da Zona da Mata: CONTAG, FETAPE, CUT, CPT, FASE, CEAS RURAL, CENTRU, STR`s da região de Catende e de toda a zona canavieira; associações de trabalhadores; fornecedores de cana da região; expressiva maioria da sociedade da cidade de Catende e algumas prefeituras, além da presença de grupos de profissionais da Universidade Federal de Alagoas e da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
256
Problemas sempre presentes em atividades de incubadoras tecnológicas de cooperativas populares (ITCPs) e marcantes também no desenrolar das ações de um projeto em economia solidária: a definição da atividade econômica, viabilidade econômica, articulação de redes, o mercado, a inovação tecnológica, as questões jurídicas, tributárias e contábeis e os aspectos educativos e de relações humanas.
346 Seja em cooperativas ou em outros modos de promover a administração para uma outra economia, enfrentam-se problemas ligados à falta de compromisso político da maioria das pessoas, ao desgaste de assessores, aos desvios do projeto original gerado em incubadoras ou dos princípios de cooperativas e da autogestão, à ausência de lideranças, ao trabalho assistencial, à falta de visão empreendedora, à falta de criatividade para novos produtos e, sobretudo, de forma determinante, à sustentabilidade financeira do empreendimento257. As dificuldades para a organização no local de trabalho aparecem juntas. Estão presentes nas mais simples agremiações (Associações de Moradores de Engenho) até nos mais complexos sistemas associativos. No caso dessas associações, são desenvolvidos muitos esforços para que se firmem como entidades estimuladoras do desenvolvimento das pessoas e de sua defesa econômica, social e cultural. Carece de tempo para se tornarem instrumentos dos próprios trabalhadores, propiciando a organização dos pequenos produtores, prestando serviços sem fins lucrativos ou assumindo-se como ferramentas educativas. Nos espaços dessas associações, surgem dificuldades elementares como a listagem de nomes para a composição de chapas para a direção da entidade, a definição de suas metas orientadoras aos associados em processos eleitorais, a manutenção da burocracia financeira da entidade, além dos encaminhamentos no trato de sua própria representação. Os mecanismos de comunicação são desafiantes para serem absorvidos por aqueles que dirigem os empreendimentos e, também, por grande parte dos trabalhadores associados. Surgem obstáculos na lida com a comunicação, comprometendo questões originárias desde a elaboração de ofícios ou mesmo panfletos, os contatos com rádios e a articulação com os grupos que apóiam a empresa. A comunicação é quase anulada quando do envio de notícias para jornais. Mais desafiadora ainda é a tarefa da construção dos próprios meios de divulgação. Em contatos com a imprensa, os comunicados precisam ser exatos para informarem as atividades da empresa, alimentando de forma otimista a sua imagem pública. Em carta aos jornais, a direção da Catende/Harmonia informa as ações voltadas “para erradicar a fome e o analfabetismo e estruturar a empresa em bases produtivas, eficientes e competitivas, fortalecendo mecanismos de transparência administrativa, produtividade no trabalho e socialização dos benefícios” (Para o Jornal Cana, 2002). Essa prática pode virar rotina no âmbito da administração geral dos projetos semelhantes, acompanhados de forte apelo educativo. Pela educação, estão sendo reclamados cursos com a maior abrangência possível, pois refletem as questões vindas da complexidade da realidade. Cursos para plantador de cana, plantador de banana, criador de gado, para formação técnica de operários da fábrica, para formação técnica de trabalhadores do campo para além do simples plantio, curso para autogestão no campo e na fábrica, para bordadeiras ou mesmo para prevenção de doenças. Adicionam-se as questões do meio ambiente que estão imbricados, de tal maneira que não é educativa a sua realização de forma separada. Uma educação será cada vez mais interessante quando definidora de processos educativos para toda a região e não apenas à usina, contribuindo com a sistematização de uma política educativa e pedagógica, voltada ao preparo de quadros políticos e técnicos, para auxiliar todo o processo organizativo que estiver em curso, no projeto. A organização curricular de cursos em tais empreendimentos passa por princípios norteadores da vida das pessoas, seja como indivíduo ou como ações em coletividade. A história da região, os aspectos da produção da cana e de culturas alternativas258 e o gerenciamento pela autogestão259 são elementos também imprescindíveis. A discussão de novos valores de vida das pessoas exigirá a definição desses princípios de forma coletiva, pois prescinde a definição desse 257
Ver o texto: Unisol Cooperativas – Os sindicatos de trabalhadores e a Unisol, no sítio eletrônico do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – São Paulo.
258
O projeto de Criação de Cabra de Leite, Plantando Milho e Criação de Gado Leiteiro são alguns desses projetos alternativos.
259
A Anteag tem marcado presença no Projeto Catende/Harmonia com os cursos de Autogestão – O caminho dos trabalhadores da Usina Catende (Anteag, 2000). A FASE e o IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) se fazem presentes com projetos de pesquisa, sendo que este instituto desenvolve, atualmente, o projeto Empresa de Autogestão: por uma cultura do trabalho cidadã.
347 novo homem e dessa nova mulher, para o exercício de seus direitos e deveres, a efetivação da cidadania. É o momento de se poder dar ênfase a princípios preconizados por cursos (Anteag, 2002) como o direito de votar e ser votado para qualquer cargo, o controle da gestão da empresa pela participação direta ou indireta (deliberações de conselhos), as tomadas de decisão coletivas, transparência administrativa, solidariedade, preservação do meio ambiente e valorização das pessoas. Aos educadores cabem os desafios de ter em mãos as informações sobre que tipo de participante está acompanhando o programa educativo e a evidência que as aulas, em geral para jovens e adultos, são para eles e com eles. Pretende-se um tipo de educação que pede o ordenamento permanente de conteúdos e demais entes constituintes do currículo. Educando-se jovens e adultos em conformação com essas exigências de aprendizagem, contemplam-se ações da vida da comunidade com a elaboração de outros mecanismos contributivos para a organização popular, com novas atividades para esses tempos de capitalismo. Um conjunto de conteúdos que colabore para a formação da identidade daqueles indivíduos, externando com clareza que esta é produto da síntese das relações das diferenças existentes entre esses trabalhadores. Identidade que não se constrói fora dessas relações, não sendo tarefa exclusiva do um, dando-se, portanto, em intrínseca relação com o outro. Na Usina Catende, foram postos em evidência os círculos de cultura260, acompanhando a orientação freireana de práticas de alfabetização capaz de habilitar para a leitura da realidade. “Alfabetizar-se é uma aquisição ampla. Não é somente ler e escrever palavras, frases, textos soltos e descontextualizados. Ler a realidade é ler o espaço e a atuação dos homens” (Adozinda, 1996). Exige-se um currículo que vai, pouco a pouco, compondo elementos para que participantes da educação possam estar também concorrendo para um novo modelo de desenvolvimento rural e social, estando presente a superação da instabilidade familiar, as enfermidades crônicas261, a falta de alimentos e a oscilação permanente da produção e do trabalho, além da pauta do movimento das mulheres de Catende, em conjunto com os Centros de Mulheres das cidades de Palmares e do Cabo. Para além da alfabetização262, nos círculos de cultura, valores éticos são componentes que não podem faltar, compondo um quadro de aprendizagem que possibilite o conhecimento das coisas com maior profundidade, vivendo e aplicando princípios, aprendendo a viver com os demais, contribuindo para a formação de suas capacidades, de forma autônoma. A entressafra é o momento de maior apreensão por parte de todas as instituições da região. É um convite para todos que atuam na empresa, inclusive a equipe dirigente, envolverem-se com maior afinco no exercício de solidariedade, com maior possibilidade de definição de estratégias e de execução de plataformas para a economia solidária. Nesse aspecto, todo projeto voltado à autogestão pode se tornar, efetivamente, um projeto cultural amplo. A educação nesse tipo de empreendimento precisa transcender a dimensão da produção do açúcar e do álcool, podendo se constituir em um projeto industrial de cultura, abrangendo a organização de todos os setores da vida das pessoas. O caminho para a autogestão abre desafios ao planejamento das atividades, na definição dos problemas mais urgentes a serem enfrentados, desde a composição da equipe de educação, sabendo-se que não caberá apenas a essa equipe o trabalho educativo das massas no entorno do projeto. São desafios a formação de novos educadores, sua recomposição e o aumento da equipe. São comuns as dúvidas metodológicas e outras intrínsecas aos membros da própria equipe como partes do conjunto - a sua transitoriedade como equipe e a necessária perspectiva 260
“O conteúdo dos círculos de cultura deverá tematizar conhecimentos sistematizados e questões referentes à prática social, fundamentais para o exercício da cidadania, para o enfrentamento de problemas da vida cotidiana e do mundo do trabalho” (do texto mimeografado pela equipe de educação da usina: O que é círculo de cultura?(2000).
261
Ver: Vasconcelos, Eymard Mourão. Educação popular e a terapêutica médica. In: Educação popular – outros caminhos. Org. José Francisco de Melo Neto e Afonso Scocuglia. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 1999a.
262
O Programa Harmonia Meu Futuro (Alfabetização para jovens e adultos) contemplou como temas geradores: a família, a comunidade, a moradia, o trabalho, a saúde, o lazer e a cultura da terra.
348 de pesquisa e sistematização. Surgem alternativas pedagógicas, políticas ou econômicas, sendo indispensável à análise a respeito de seus encaminhamentos. Deve-se verificar se a sua direção aponta para o fortalecimento de uma empresa popular e do poder da comunidade. Mas não só desafios práticos estão surgindo nessas experiências. O trabalho com empresas com caráter essencialmente capitalista e os possíveis direcionamentos para ações de economia solidária são problemas que merecem ser discutidos. O papel que exerce o Estado nessas experiências pode ser redimensionado, considerando a importância do mesmo, sobretudo quando os seus executivos são pessoas voltadas à melhoria da vida das classes trabalhadoras. Nessa relação, muitos dirigentes partidários que estão em governos estaduais ou municipais insistem em contribuir com esses projetos com desejos, simplesmente, de manter a tradição manipuladora da política local. Neste cenário, o incentivo à perspectiva de autonomia num ambiente pouco favorável ao sustento das pessoas fica comprometido, além de pôr em risco a realização de todo o ideário do planejamento sustentável. Em projetos de extensão universitária, em atividades de pesquisa e para outros organismos de apoio aos trabalhadores se coloca a dificuldade de promover a educação no embate entre o simples repasse de um conhecimento estabelecido para um outro conhecimento produzido com os que atuam nesses movimentos. Na pesquisa, somam-se as técnicas de sistematização das experiências, adicionando-se mais obstáculos com a inserção de questões de gênero, de raça e da ética. Aspectos teóricos são desafiadores a essa construção educativa, inserida em contextos de economia solidária. “Deveremos pensar em algum tipo de ação educativa que articule as diversas dimensões: a organização, a empresa e o negócio, a competência técnica, o olhar político e o poder. Não nos enganemos! Na medida em que vamos dando o conhecimento para esse povo, os mesmos passarão a ter um importante instrumento de poder. Para onde vamos?” (Silva, 2001a: 3).
Aos educadores para exercícios democráticos de gestão é desafiante o tratamento com os diversos tipos de saberes envolvidos e com os seus próprios saberes que precisam expressar uma certa competência como colaboradores, contribuindo, efetivamente, para uma economia popular. Será importante a valorização desses saberes nos processos cotidianos da vida, como uma instância privilegiada, para se poder compreender a elaboração e a reelaboração de um conhecimento para a sobrevivência humana, para a produção de si mesmo como humano e da sociedade. As questões de gênero se colocam como um desafio em um local de aprendizagem na área rural onde predomina, de forma mais forte, o machismo, mesmo que os agentes da equipe da usina sejam mulheres. Há um desafio explícito e conceitual de que o conhecimento escolar é útil enquanto se manifeste como elemento de aprendizagem de outros tipos de conhecimentos, para além da aquisição de técnicas da escrita e da leitura. À escola cabe a tarefa de contribuir na organização desse conhecimento e da cultura. O educador, por sua vez, precisa tornar-se um coordenador da educação, expressão de um processo em que a ciência e a vida caminham passo a passo, em uma relação constante, transformando-o em agente de mudanças (Gramsci, 1968). São provocadores os mecanismos intrínsecos da linguagem em mutação de um ambiente, essencialmente rural - os engenhos - para a linguagem que se mescla com a da cidade, pois a usina é uma empresa da cidade. Freire (1983a,1986 e 1993) já alertara que a aprendizagem das letras e da escrita é antes de tudo a aprendizagem e leitura do mundo. Isto pode ser traduzido em compreender o seu contexto, localizar-se no espaço social mais amplo, a partir da linguagem de sua própria realidade. Por outro lado, há educadores, mesmo no campo popular, que ainda vêem a escola como uma agência transmissora de padrões civilizatórios, não entendendo que a escola só acontece por meio de um debate permanente com os distintos universos de linguagem, simbólicos e culturais. Enfim, são os desafios da construção da subjetividade não no sentido da dimensão subjetiva particular, interna ao indivíduo, mas na visão de que seja a produção da sensibilidade das pessoas, de seus pensamentos e desejos e de suas ações. Uma produção, sim,
349 de modelos próprios, mas em interação permanente com o mundo, não se constituindo como dado de uma pessoa ou um ponto fixo na pessoa (Kastrup, 1999). Em um ambiente que interage a realidade da cidade com a do campo, é instigadora a compreensão da própria escola em contraponto à visão de que a escola formal detém o desenvolvimento e a civilização e que o ambiente rural representa o atraso e a ignorância. Com essa visão, continua sendo convidativa a questão da temporalidade de programas em educação para jovens e adultos nos espaços para a democratização dos ambientes sociais. Esses programas precisam tornar-se projetos nada temporário e muito menos compensatório, mas que, enquanto permanentes, garantam a participação e o exercício do controle democrático das entidades civis, criadas pelos próprios trabalhadores rurais ou urbanos. No aspecto da didática geral dessas experiências, vem à tona a combinação entre o local, o geral e o singular. Aos que desenvolvem projetos de educação para jovens e adultos, esse desafio está presente em cada momento. Ora, o humano fixa, de forma contínua, vínculos com a natureza. Com a sociedade, relaciona-se de forma singular. Com a espécie trata de sua dimensão geral como um elemento e com todos os demais seres vivos na natureza. O indivíduo é singular, porque único, contendo uma generalidade quando se assemelha a outros seres humanos. Enquanto semelhante (geral), relaciona-se consigo mesmo, possibilitando a sua inserção na sua humanidade e na natureza. Dessas relações impõe-se a compreensão de possíveis pistas para desafios maiores como o discernimento, por parte dos educadores, dos tantos saberes gerados nas práticas de vida e que estão em movimento. Para Lima (2002)263, as práticas em Catende trazem possibilidades conceituais no que concerne à participação, à cooperação e ao cooperativismo. Estas vão ocorrendo dentro das condições do ambiente e trazem o desafio da compreensão desses conceitos, em economia solidária, onde esteja acontecendo a “apropriação coletiva dos meios produtivos”. Para ele, a mudança na base material, ou seja, infra-estrutura não cria as condições para uma superestrutura verdadeiramente democrática. Entende, ainda, que não existe democracia sem apropriação coletiva dos meios de produção. Dos pesquisadores, por meios de projetos em extensão universitária, exige-se a manutenção da necessária desconfiança de se estar ou não, pensando o novo. Exercícios educativos que estejam pautados como ponto de partida na realidade, sabedores de que existem alternativas de vida, mas que os trabalhadores não estão obrigados a assumirem-na, mesmo se construídas por eles. O processo de organização se concebe como uma permanente busca de alternativas para ampliação do espectro de possibilidades de formas justas de vida. Isso ocorre, sobretudo, se a ação educativa apresenta o significado de que o ato de educar não é um mero repasse de conhecimento e, sim, um exercício para tornar os outros, também, entes reflexivos – uma educação, necessariamente, popular. Enunciados para uma educação popular a) A experiência histórica O campo da educação tem vivenciado várias experiências que se colocam como educação popular. Em projetos de extensão universitária, as suas metodologias podem se inserir em educação popular. Metodologias de aplicação de projetos extensionistas têm tido destaque desde o início do século passado, chegando às Américas, através de abordagens em extensão. No Brasil, vão destacar-se com a criação das universidades livres, no Amazonas e em vários Estados. Nesse modelo de universidade, a mais importante foi a de São Paulo que funcionou de 1891 a 1917. Em todas essas experiências, é marcante a sua veiculação ao conjunto educativo que se chamou de educação de adultos (Ireland, 2002). A educação nas universidades livres caracterizou-se por conferências semanais, abertas ao público, a respeito de variadas temáticas, desvinculadas do movimento social, além de desprovidas de conotação mudancista. Apesar de estarem direcionadas aos trabalhadores, mantinham-se ignoradas pelas próprias classes populares. Essas experiências, a rigor, estavam mais prisioneiras do 263
Assessor do Projeto Catende.
350 idealismo político de grupos da comunidade acadêmica do que da busca de respostas às necessidades e interesses da população. Em contrapartida, são dessa mesma época as escolas sindicais ou escolas partidárias, criadas por anarquistas e socialistas, mas que não detinham o apoio de segmentos universitários. Fávero (1980: 192) faz ver que a Universidade Livre de São Paulo, em estudos sobre a extensão universitária, tinha por objetivo “realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e das artes, por meio de cursos sintéticos, conferências, palestras, difusão pelo rádio, filmes científicos e congêneres”. Consistia de um conjunto de atividades voltadas para a população, porém distantes da mesma. Tudo isso era entendido como um processo de educação para as massas - uma educação popular. Durante todo o século passado, várias foram as campanhas que levantaram a perspectiva de uma educação voltada ao povo264. É importante realçar a presença dos estudantes em movimentos sociais pela educação com esta perspectiva, lembrando as campanhas de alfabetização de adultos e de cultura popular por meio dos Centros Populares de Cultura e do Movimento de Educação de Base (MEB), este nascido no início da década de 60, dirigido pela Igreja Católica, e os Movimentos de Cultura Popular (MCPs). O MEB continua até hoje com suas atividades em todo o país. Fleury (1988: 34) chega a caracterizar as práticas que vêm desenvolvendo como de um movimento engajado nas lutas das classes menos favorecidas. “Realiza programa de educação através do rádio e desenvolve uma metodologia de animação popular”. Na mesma época, inicia-se aquilo que foi se transformar em uma das mais importantes experiências nesse campo - a campanha De pé no chão também se aprende a ler. Experiência iniciada na cidade de Natal, espalhou pelo país inteiro os germes do que veio a se chamar o método Paulo Freire para alfabetização. Esse método teve como marca as campanhas na cidade de Recife, no início da década de 60, com o apoio do governo de Miguel Arraes, no Rio de Janeiro, em Brasília, em São Paulo, e a Campanha de Educação Popular (CEPLAR), na Paraíba. O método Paulo Freire passou a estar presente nos processos populares dos movimentos de alfabetização de adultos, no país e no mundo, firmando uma perspectiva revolucionária para a educação. Todavia, o Estado também vem desenvolvendo atividades no campo da educação de adultos, promovendo a alfabetização das classes subalternas da sociedade. Foram marcantes as campanhas do MEC, no período da ditadura militar, como a do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Nessas campanhas, incentivava-se a participação dos universitários em seus projetos de extensão universitária, destacando-se o Centro Rural Universitário de Treinamento de Ação Comunitária (CRUTAC), o Projeto Rondon e a Operação Mauá. Na década passada, foram relevantes práticas em outras perspectivas, por todo o país. Várias ações em extensão merecem relevo, como as da extensão universitária da Universidade de Brasília (1989), da Universidade de Ijuí, no Rio Grande do Sul, e da Universidade Federal da Paraíba (1996), a exemplo do Setor de Estudos e Assessorias aos Movimentos Populares (SEAMPO), do Projeto Escola Zé Peão, do Centro de Referência e Pesquisa da Saúde do Trabalhador (CERESAT), na área da saúde, e outros. Mais recentemente, em um movimento coordenado pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão Universitária, praticamente todas as universidades brasileiras assumiriam atividades de extensão, até por força da lei, contemplando metodologias de educação popular. Em todas essas experiências, vêm se configurando exigências e acumulando discussões prático-teóricas em torno desta temática. As reflexões em educação de jovens e adultos afirmam-se por meio de um movimento nacional que promove encontros nacionais com regularidade. Em relação à discussão do letramento, a dimensão do que seja popular é vista pelos Van Der Poel (1997)265 à medida que pessoas jovens e adultas no meio rural precisem estar conscientes da questão agrária, da relação do trabalho com o patrão, da questão da mulher ou da pouca rentabilidade de sua atividade. Para 264
Beisiegel, Celso de Rui. Estado e Educação Popular: um estudo sobre educação de adultos. São Paulo: Pioneira, 1974.
265
Casal de professores universitários que atuam na zona rural e assessoram a educação fundamental, no município de Campina Grande, PB. Ver o livro: Van Der Poel, Cornelius Joannes e Van Der Poel, Maria Salete. Letramento de pessoas jovens e adultos na perspectiva sócio-histórica. João Pessoa: Editora União, 1997.
351 eles, contudo, é importante e necessária a aprendizagem da solução desses seus problemas. Configuram uma metodologia de educação popular nos seguintes termos: “Os participantes do processo educativo não devem, apenas, saber que o problema existe, mas têm que saber os porquês da questão e como solucioná-la” (ibid.: 118). As análises de Brandão (1983), na década de 80, apontavam para a existência de diferenciados modelos em educação popular. O autor via, inclusive, como dinâmica das relações entre esses modelos, a não superação de algum por outros. Para ele, “a regra é a coexistência de modelos tradicionais, hegemônicos e emergentes” (p, 79). Diante da variedade de possibilidades em educação popular266, no momento político que se vive, este debate parece cobrar reflexões sobre os vários elementos que podem estar conjugados, traduzindo uma formulação conceitual sobre a educação popular para as condições atuais. Se a premissa pode ser aceita, é razoável a delimitação de vários constituintes para a sua compreensão, podendo ser fundado a partir de um conjunto de categorias que tem estado sempre presente nesses exercícios educativos, isto é: cultura, popular, realidade concreta, trabalho, igualdade, autonomia/liberdade e diálogo. São referencias que vêm alimentando a história e as práticas em educação popular, constituindo-se como elementos essenciais para o seu exercício, fecundando enormemente a sua compreensão e o seu distanciamento de outros sistemas de educação. Além do mais, sendo a educação uma ação política, na perspectiva freireana, as mudanças que estão ocorrendo cobram a atualização desse debate. Assim, se justifica essa busca, expressão de uma síntese conceitual que colabore para a manutenção dos questionamentos e de práticas em projetos sociais, onde a dimensão educativa transformadora esteja presente, a exemplo de projetos de extensão universitária como as incubadoras populares para uma economia solidária, voltados à autogestão.
b) A cultura Análises e práticas em educação popular originam-se, normalmente, da compreensão de cultura. O método Paulo Freire de alfabetização, por exemplo, tem início com a definição de um universo vocabular, definido a partir da cultura naquele ambiente. Contudo, a perspectiva de cultura apresenta expressiva dificuldade em sua conceituação. Mesmo entre os profissionais vinculados ao campo que se diz cultural, não há uma compreensão, sequer, aproximada de seu significado com aceitação generalizada. O que existe mesmo é um cipoal de concepções que 266
Vários e importantes pesquisadores no campo da educação popular, como Vanilda Paiva, Osmar Fávero, Celso de Rui Biesiegel, Luiz Eduardo Wanderley, Carlos Rodrigues Brandão (sobretudo em suas obras da década de setenta e oitenta) vêem dificuldades na conceituação da educação popular, considerando a diversidade de movimentos onde pode ser exercitada. Outros pesquisadores vêm contribuindo para o avanço do debate sobre as mais diferenciadas questões nesse campo. É possível citar alguns como Timothy Ireland, em educação de jovens e adultos; Eymard Vasconcelos, no campo da educação popular e saúde; Wojciech Kulesza, na metodologia e história das ciências e educação popular; Alder Júlio Calado, em movimentos sociais e educação popular; Luiz Rodrigues, nos aspectos psicológicos da educação popular e outros, no Programa de Pós-graduação em Educação Popular, da Universidade Federal da Paraíba. Acompanham pensadores como Etore Gelpi, na busca de novos paradigmas para a educação popular; Michel Seguier com suas análises sobre a criatividade coletiva; Osmar Fávero, na história da educação popular; Francisco Vio Grossi, na educação de adultos na América Latina; Alfonso Lizarburu, Oscar Jara, João Francisco de Sousa e Sérgio Haddad, além de outros. Há importantes arquivos de organismos que mantêm a sua atuação em educação popular, como o do Centro de Documentação e Informação (CEDI), o Centro Pastoral Vergueiro e o Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (CEPIS), o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU) e mais recentemente o Instituto Paulo Freire., em Pernambuco, e O Centro Paulo Freire – Estudos e Pesquisas, em Pernambuco. Além destes, há um conjunto de organismos que atuam no campo de economia solidária, podendo contribuir ainda mais para a discussão em educação popular, como a ANTEAG, a FASE e ADS/CUT e outros.
352 mais expressam um “ninho de casaca-de-couro”, na acepção viva de Jackson do Pandeiro267. Apesar desse elemento complicador, é tido por outros como um alimento para diferenciadas perspectivas culturais. Pode-se observar que a multiplicidade conceitual de cultura também traduz e expressa, do ponto de vista político, a visão alicerçada nas bases explicativas e dominantes da sociedade, em seus variados modos de produção. Entre os gregos, cultura e religião estiveram interligadas, expressando as explicações da natureza, porém cheias de atributos religiosos. Essa visão de cultura já era idealizada em Homero, tornando a beleza o ideal educativo e dominante daquela cultura, presente até os dias de hoje. Contudo, é Hesíodo, outro poeta grego, que, sem negar o ideal homérico, apresenta outra base para a educação. Elege o trabalho como referência para a educação grega do homem e da mulher. Entretanto, verifica-se entre os sofistas a separação entre a religião e a cultura. Apesar dessa separação, só tem significado de totalidade ao assumir como cultura e como conteúdo da cultura, também, o mundo da cultura espiritual: “o mundo em que nasce o homem individual, pelo simples fato de pertencer ao seu povo ou a um círculo social determinado” (Jaeger, 1995: 354). Tudo isso, entretanto, expressa visões idealizadas sobre cultura de diferenciados setores dominantes da sociedade, em suas épocas. Mas o que se deseja resgatar é a perspectiva conceitual de cultura, embalada pela categoria teórica movimento e fruto inerente de cada modo de produção. Isto é, a perspectiva do conceito de cultura nos marcos da produção, expressa na visão de Álvaro Vieira Pinto268. A produção é expressivo parâmetro de universalidade, considerando a sua presença em todos os tipos de grupos sociais, presentes nos mais diferenciados rincões e em qualquer tempo da história humana. E aí, como produto do processo produtivo, cultura é uma criação do próprio homem. É resultante das diferenciadas formas de tentativas do humano no trato com a natureza material, na medida em que está sempre em luta pela própria sobrevivência. A sua capacidade intelectiva e manual possibilitou um maior crescimento e intensidade desses fazeres de sobrevivência. Esses produtos, daí gerados, constituem-se todos como produtos culturais. Dessa capacidade, foram sendo criados os instrumentos de sobrevivência e todos os tipos de expressão espiritual, inclusive, e, posteriormente, as religiões. Cada uma foi inventada em determinado tempo e lugar, prisioneira das condições da cultura estabelecida e veiculada nos anseios de dominação de cada povo (construção de impérios) ou sendo impingida a cada povo perdedor. Tudo isso foi sendo transmitido e conservado de geração para geração. O início da cultura não é, portanto, datado, mas coincide com o processo de hominização. “A criação da cultura e a criação do homem são na verdade duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a principalmente social na segunda, sem, contudo, em qualquer momento deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente” (Pinto, 1979: 122). Como se vê, as dimensões culturais presentes nos gregos estão mais ampliadas com essa perspectiva. Os produtos culturais são aqueles gerados dos mecanismos nos mais variados processos produtivos e os gerados da dimensão social presente nas relações humanas. Nesse sentido, torna-se ente cultural o museu, o quadro de famoso pintor, as esculturas de famosos escultores, etc. São expressões culturais os óculos ou lentes usadas no cotidiano, a caneta, a ferramenta de trabalho, o computador, a peça teatral, o trator, o software, o processo de
267
Cantor e compositor paraibano, tido como um dos nomes da trilogia da música popular nordestina, juntamente com Luiz Gonzaga e Luiz Vieira. O pássaro casaca-de-couro faz seu ninho de gravetos de espinheiros entrelaçados, de difícil acesso a outros bichos, chegando, às vezes, a um metro de cumprimento.
268
Filósofo brasileiro. Ver: Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
353 produção de conhecimento e a tecnologia. Todos estes entes são frutos do processo produtivo e resultante da dimensão manual e intelectiva da espécie humana. A cultura, na perspectiva apresentada, isto é, como produto do processo produtivo, adquire dupla natureza. Cultura, expressa pelo bem produzido, torna-se bem de consumo, enquanto resultado expresso em coisas e artefatos e subjetivado em idéias gerais do mecanismo produtivo. Cultura se converte, ainda, em bem de produção, subjugando a realidade e submetendo-a às suas reflexões, gerando novos produtos e novas técnicas de exploração do mundo, dando-lhes, pelas idéias, significados e finalidades para as suas ações. Dessa perspectiva conceitual de cultura resultam dois fenômenos, sendo mais explicitados no atual modo de produção – o capitalismo. O primeiro diz respeito ao acervo cultural, que é cheio de máquinas e entes tecnologizados, além das tantas idéias geradoras dos processos produtivos. Não se produz sem idéias. Os setores dominantes, por sua vez, valorizam mais a segunda dimensão, as idéias, considerando que já controlam os bens materializados. Há, então, a exaltação às posses das idéias e desvalorização do trabalho próprio da produção daqueles entes materiais. O segundo resultado é o apoderamento dos bens materiais produzidos, frutos das idéias geradoras dos bens culturais. Assim, o trabalhador - o produtor cultural - além de ter perdido os bens materiais produzidos por ele mesmo, também está excluído dos bens ideais geradores dos produtos culturais. A partir dessa visão, pautada no marco da produção, torna-se possível dessacralizar as marcas ideológicas das outras perspectivas de cultura, quaisquer que sejam, imputando aos mais aquinhoados o ter cultura e convencendo os demais de que têm cultura àqueles que, tãosomente, estiveram na escola. Pode-se afirmar que estes, apenas, também têm cultura. Numa sociedade de pouco acesso aos tantos meios de socialização do conhecimento, certa visões só aprofundam a “apartação social”, fortalecendo a dominação por parte dessas elites. Portanto, cabe aos que produzem os entes culturais - bens materiais e bens ideais - o resgate da posse de seu próprio processo de se tornarem humanos, edificando os vetores de sua libertação, sendo esta ação fortalecedora de sua sabedoria269 e necessariamente popular. c) O popular Os conteúdos da educação entre os povos têm sido quase os mesmos, isto é, de ordem ética e prática. Nessa primeira dimensão, inserem-se as orientações principistas para o bem viver como, por exemplo: honrar deuses, pais, mães e outras regras de conduta como as da prudência ou, até mesmo, definidas através de mandamentos. A segunda dimensão volta-se a aspectos comunicativos do conhecimento de profissões acumuladas por um povo, denominada pelos gregos de techne. Paralelamente ao processo educativo dentro dessas perspectivas, desenvolve-se uma sabedoria, expressa por essas regras, preceitos de prudência e mesmo superstições, baseadas na tradição oral que, no caso dos gregos, tornou-se pujante na poesia rural gnômica de Hesíodo270. A formação pela educação, como se vê, toma dois rumos distintos. Assume, em primeiro lugar, um rumo dominante que passa a criar um tipo humano pautado por um conjunto de idéias préfixadas, cabendo-lhe o seu alcance. Esse tipo elevará como fundamental a idéia de beleza, constituindo-se como o componente central do processo educativo. A educação torna-se a busca pelo belo. Nesta perspectiva, está o pensamento de Homero, sendo indiferente tomar-se como essencial a utilidade das coisas. Assim, constrói-se o ideário dominante na Paidéia grega em que “a formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação” (Jaeger, 1994: 25). Contudo, é do campo que vem uma outra percepção do significado da educação e da formação, muito próximo, cronologicamente, dos tempos homéricos. Forma-se uma tradição 269
A sabedoria popular antecede a tecne e o saber científico. Na filosofia de Platão e Aristóteles, a tecne adquire o significado atual da palavra teoria, contrapondo-se à mera experiência. Teoria em função de uma prática (Aristóteles), diferente da perspectiva de Platão como teoria da “ciência pura”.
270
Homero e Hesíodo, poetas gregos, que viveram entre os séculos VIII e VII a.C. e marcaram a educação e a formação humana, grega e ocidental.
354 que, mesmo entre os gregos, daria outra função à poesia, ao objeto dos poemas, relacionando-se com outro público e distanciando-se da perspectiva homérica. O poeta Hesíodo traz para o processo de educação humana a experiência de seu trabalho, a experiência do agricultor, dirigindo-se a seus conterrâneos, agricultores gregos e pequenos proprietários. Está na poesia hesiódica não mais a medida do homem pela sua árvore genealógica, mas pelo seu trabalho, que o torna independente e feliz. Como se vê, essas duas fontes permeiam os processos educativos dos gregos. Em Homero, há uma esfera social dominante voltada ao mundo e à cultura dos nobres. Uma fonte que daria maior ênfase a uma educação para a qualidade tanto dos nobres como dos heróis, valorizando o heroísmo expresso pelas lutas, em campo aberto, entre cavaleiros nobres e seus adversários. Em Hesíodo, especialmente no seu poema os Erga271, há uma poesia arraigada a terra como representação da vida campestre, rústica, simples, suscitando outra fonte da cultura grega: o valor do trabalho. Nesta perspectiva, o poeta vê o mundo através de duas lutas sobre a terra e que são distintas, sobressaindo-se, todavia, a luta abaixo narrada: “Desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico apressado em plantar, semear e casa beneficiar; o vizinho inveja ao vizinho apressado atrás da riqueza; boa Luta para os homens esta é; o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao carpinteiro, o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo”. Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a Luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos” (Hesíodo, 1996: 23-24).
Além disso, a vida no campo expressa o seu heroísmo através da luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores, reclamando disciplina e contendo qualidades de valor educativo permanente para o humano: Por trabalho os homens são ricos em rebanhos e recursos E, trabalhando, muito mais caro serão aos imortais. O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é! (Hesíodo, 1996: 45). Hesíodo passa a condenar o ocioso e o compara a zangões de colmeias que destroem os esforços das abelhas, salientando, ainda mais, o papel do trabalho no processo de educação humana, exigindo uma vida de trabalho: “Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho” (Jaeger, 1994: 85). Em “Os trabalhos e os dias”, o poeta exprime maiores detalhamentos da vida no campo, sobretudo, na segunda parte, as tradições e as regras sobre o trabalho do campo em suas várias estações do ano, regras de vestuário de acordo com as estações, suas máximas morais e suas proibições. “A sua forma, o seu conteúdo e a sua estrutura revelam imediatamente a sua herança popular (grifo nosso). Opõem-se totalmente à cultura da nobreza. A educação e a prudência na vida do povo não conhecem nada de semelhante à formação da personalidade total do homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza igual no uso das armas e das palavras, nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavaleiresco. Em contrapartida, impõe-se uma ética vigorosa e constante, que se conserva imutável através dos séculos, na vida material dos componentes e no trabalho diário da sua profissão. Este código é mais real e mais próximo da Terra, embora lhe falte uma grande meta ideal” (ibid.: 91).
271
Denominados, posteriormente, de Os trabalhos e os dias.
355 Hesíodo, pela primeira vez, preenche essa lacuna, juntando a esses elementos culturais, em forma de poesia, a idéia de direito, expressa através de sua vida de trabalho, no sentido de combate às usurpações promovidas por seu próprio irmão, transformando-se num devoto fervoroso do direito (dike). O trabalho e a justiça tornam-se componentes intrínsecos de suas bases educativas. Para ele, não há um sem a existência do outro. Em seus versos expressa: “A tribo dos imortais irão, abandonando os homens, respeito e justiça distributiva; e tristes pesares vão deixar aos homens mortais. Contra o mau força não haverá!” (Hesíodo, 1996: 37). Não há saída, portanto, para o poeta, entendendo-se que, caso não exista respeito pelo trabalho, também estará comprometida a justiça. Nesse sentido, acrescenta: “O excesso é mal ao homem fraco e nem o poderoso facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona quando em desgraça cai; a rota a seguir pelo outro lado é preferível: leva ao justo; Justiça sobrepõe-se a excesso quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo” (Hesíodo, 1996: 39). É bom lembrar a figura de Prometeu que furtou o fogo de Zeus, repassando-o aos humanos e, por isso, foi merecedor de castigo. “Oculto retém o deus o vital para os homens; senão comodamente em um só dia trabalharias para teres por um ano, podendo em ócio ficar” (Hesíodo, 1996: 25). O raio do soberano do Olimpo não mais seria orientado em proveito dos mortais, não mais garantiria o sustento através do produto da terra, de forma natural. O surgimento do trabalho é expressão do conflito entre Zeus e Prometeu e, também, da separação entre deuses e humanos que viviam juntos. “Agora, o homem deverá trabalhar sua terra para conseguir frutos. É o fim da idade do ouro, cujo mito marca claramente a oposição entre a fecundidade e o trabalho” (Hesíodo, 1979: 13). A obra “Os trabalhos e os dias” constitui um fecho da expressão educativa fundada na forma descritiva da terra, através do trabalho cotidiano, revelando a totalidade da vida, seu ritmo e beleza, justeza e honradez, que fundamentam a ordem moral do mundo, englobando, ainda, uma ética do trabalho e da profissão que não vivem separados no pensamento hesiódico. Esse rico tesouro experiencial deriva, através da vida e do trabalho, de uma tradição milenar já bastante enraizada, externando um vigor dessa sua realidade que deixa de lado o convencionalismo poético de alguns cantos homéricos. Um vigor que só estimula, com toda a plenitude, a vida de trabalho no campo. Hesíodo torna-se um arauto dessa intimidade com a terra, planeando os próprios valores nesse estilo de viver, encontrando, mesmo na aspereza e nas atividades do dia-a-dia, um significado e uma finalidade. “Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular (grifo nosso), excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a sua própria forma e o seu ethos exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida” (Jaeger, 1994: 103).
O conteúdo dos poemas de Hesíodo tem compreensão limitada aos camponeses, marcados pelo seu estilo de viver e de se identificar com as características próprias da vida campesina. Já o conteúdo moral implícito é acessível a qualquer povo. Mas, a identificação maior da educação grega não está no campo. É na polis onde se realiza a formação mais marcante e acabada. Todavia, importância igual, ou mesmo maior, foi dada a Hesíodo pelo povo grego, ao torná-lo um educador orientado para os ideais do trabalho e da justiça. Desde a sua época, censurava senhores venais quando do exercício de sua função de julgamento, atropelando o direito. Direito que se transforma em luta de classe, antecipando-o
356 como um reclamo universal. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos” (Jaeger, 1994: 134). A dimensão do ser justo passa a ter significado concreto entre os gregos, como aquele que obedece à lei e se regula por suas disposições e, mesmo na guerra, está cumprindo o seu dever. Habitualmente, as virtudes foram expressas em quatro: a fortaleza, a piedade, a justiça e a prudência; mas é na justiça que todas estão concentradas, considerando que esta, no sentido mais geral, para além do jurídico, engloba a totalidade das normas morais e políticas. Nessa organização de Estado, fundamentado na noção do direito para todos, é que foi se pautar a vida na polis grega, criando a figura do cidadão, um novo tipo para uma nova comunidade. A presença, agora, do Estado passa a dar dupla conformação política na vida humana: uma vida privada e uma vida pública, no espaço da polis. Uma rigorosa distinção estabelece-se entre aquilo que lhe é próprio e aquilo que é comum. Um modo de vida que deixa de lado a dimensão da educação hesiódica, pautado pela idéia do trabalho, impregnado de um conteúdo da vida rural. Embora reconhecendo esta importância, o processo civilizatório grego tomou um rumo completamente diverso. A dimensão educativa marcante, em Hesíodo, estava voltada à realidade mesma. Além disso, exigia dessa realidade o ponto de partida para o seu desenvolvimento. Era um tipo de educação que buscava a afirmação daquele que se educava. Educação fora de qualquer dimensão ideal, mas sim fruto do ambiente, possibilitando a dimensão de universalidade, exigida por qualquer processo educativo. A educação nesses moldes conduz para a afirmação do educando ao se voltar à sua realidade e, sobretudo, por ter nessa realidade o ponto de partida e o ponto de chegada do ato educativo. Enquanto se afirma, procura, incessantemente, a justiça como a medida necessária ao indivíduo, definindo a reivindicação do direito para todos. Estão se constituindo, dessa maneira, os elementos constantes do processo educativo, voltados a todos aqueles que não são reconhecidos (as maiorias da população ou os populares), sendo-lhes negada a justiça. A procura por justiça e pela afirmação de um povo, de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do processo educativo, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, durante a Idade Média. Está presente, inclusive, nos dias atuais, como uma marca dos movimentos sociais populares, o grande esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como forma de definição de seu campo de ação política e educativa. Para Calado (1999: 23), essa busca de construção da identidade “implica, de um lado, o esforço de identificar e superar adversidades interpostas a tal caminhada e, de outro, perseguir determinado alvo, objetivos ou mesmo um projeto alternativo ao que aí está ”. Este aspecto do popular já se esboçara em comunidades antigas, como a judaica, com as mesmas características construtoras de identidade. A Bíblia narra vários episódios mostrando revoltas populares presentes na história do povo judeu. Revoltas em que o povo lutava pela sobrevivência e pela afirmação de sua identidade e por justiça igual para todos. Nos primórdios da Idade Média, são marcantes os movimentos de contestação contra a cobrança obrigatória do dízimo e o acúmulo de terras, por parte da Igreja Cristã. Para o historiador Hoonaert (1986), constituíram-se como “um grande movimento popular”. Ainda na Idade Média, segundo Calado (1999), ocorreram vários movimentos sociais populares com características semelhantes àquelas presentes na Antigüidade e, marcadamente, com dimensões subversivas à situação em vigor. Expressaram sua própria afirmação e resistência aos ditames e mecanismos de controle social da época, sobretudo à poderosa Inquisição. O referido autor destaca os cátaros ou albigenses, apresentando a sua indignação diante da ordem religiosa vigente e seu combate sistemático ao estado de violência e de corrupção que se ampliava com a nobreza feudal e pela hierarquia eclesiástica. Eram movimentos compostos de gente simples, das classes populares. É marcantes a presença dos valdenses e as beguínas que, juntos, apresentavam em comum (como marca do popular contida nesses movimentos) a contestação e a resistência, definindo as suas próprias alternativas. “Ao mesmo tempo em que se insurgem contra as práticas e os métodos do establishment eclesiástico, tratavam de anunciar uma ordem alternativa à de
357 então, por seu discurso e por suas práticas, por meio das quais, mais do que propriamente inovar, buscavam recuperar os valores fundantes do Cristianismo” (ibid.: 81).
Na modernidade, são freqüentes os movimentos que marcam as lutas pela superação da situação política dominante. Sobressaem-se as revoluções liberais modernas e dentre estas a revolução francesa que trouxe ao cenário das lutas políticas setores sociais simples ou populares, lutando por liberdade, fraternidade e igualdade (justiça). Uma revolução realizada por vários setores sociais e marcadamente pelos setores populares, definindo alternativas para uma vida digna. Contudo, é em Marx que se encontra um avanço fundamental na busca por alternativa, em “O manifesto comunista”. Nessa obra, ele aponta como bandeira à classe proletária (classes trabalhadoras, classes humildes, classes populares) a necessidade de luta e de alternativa, ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999: 30). Fecundou os movimentos de libertação, em todo o século XX, com a sua célebre exortação: Proletários de todos os países, uni-vos. Mas, durante o século XX, o que foi entendido como popular? O que revelaram os movimentos sociais que atuaram na organização do povo, na organização dos trabalhadores? Nos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade, várias experiências de grupos políticos272 e partidos políticos trazem o termo popular em suas bandeiras de lutas, seus projetos ou nas formulações políticas. A insurreição de 1935, no Brasil, orienta-se por um “programa de governo popular, nacional, revolucionário”273. Esse programa tinha no popular a expressão de interesses das “grandes massas da população”, adquirindo a dimensão de controle direto das ações políticas pelo povo, buscando a democracia e a liberdade de expressão. A Frente Popular do Chile trazia nas suas formulações internas a necessidade da ampliação da própria Frente, reconhecendo a insuficiência da unidade, envolvendo, simplesmente, a classe operária. Tratava-se de uma frente política que via no conceito de popular a possibilidade de se contar com outros e novos aliados. Com esta mesma perspectiva, surgiu o Partido Popular, no México274, que passou a veicular uma compreensão do termo com maior abrangência do que aquela da Frente, considerando que pelo popular é possível um grupo político de cooperação com o governo. A esse respeito, Löwy (1999: 168) esclarece: “A elevação do nível de vida do povo interessa tanto ao proletariado e aos camponeses, quanto às pessoas de classe média e aos membros das organizações burguesas progressistas. Defender sua soberania e a independência da nação interessa ao proletariado, aos camponeses, à pequena burguesia da cidade, à grande burguesia progressista do país”. Recentemente, também no Chile, deu-se a composição entre o MIR e a Unidade Popular275 que saíram da clandestinidade, após a vitória de Allende. Tinham no popular a 272
Para uma visão mais completa desses grupos políticos, com textos que os orientaram nas ações políticas, ver: Löwy, Michael. O marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1999.
273
É um documento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente político-militar do PCB com a ala esquerda do „tenentismo‟ que lideraram a sublevação de 1935.
274
O Partido Popular foi fundado, no México, por Vicente Lombardo Toledano; depois passou a se denominar Partido Popular Socialista (PPS). Um partido de oposição fundado para cooperar com o governo.
275
Unidade Popular se constitui como uma coalizão de partidos de esquerda. O MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), nessa frente, desenvolve-se, sobretudo, a partir das frentes de massas Movimento Camponês Revolucionário, Movimento dos Favelados, Frente de Trabalhadores Revolucionários, junto com a ala esquerda da Unidade Popular, a esquerda cristã e outros. O MIR contrapõe-se estrategicamente ao PC chileno que defendia aliança das forças populares com a burguesia nacional.
358 perspectiva de poder autônomo, independente e alternativo ao Estado burguês, combatendo a estratégia reformista de que as massas estivessem subordinadas à democracia desse tipo de Estado. No Brasil, o Partido Comunista do Brasil (PC do B)276 lançou a “guerra popular”. Ao mostrar o caminho para essa guerra, expressou uma concepção voltada à ampliação dos agentes dessa revolução: o povo. Para o partido (ibid.: 434), “a luta armada em que se empenhará o povo brasileiro terá um profundo conteúdo popular, englobando as mais amplas massas da população”. Outro movimento marcante na história política da esquerda no Brasil deu-se com a criação do Partido dos Trabalhadores277. Este formulou uma política como “estratégica democrática e popular, devendo conduzir um programa com as mesmas características”, ou seja, o socialismo petista. Trata-se de uma perspectiva que concebe o popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da classe trabalhadora, na construção da democracia. “Na verdade, a democracia interessa, sobretudo, aos trabalhadores e às massas populares” (Resoluções, 1998: 429). O Programa democrático e popular, projeto de sociedade para o país, só se concretizará através de uma perspectiva de ampliação (aliança) e resistência desses atores sociais que vislumbram as transformações sociais. Nesse sentido, o popular tem um nítido componente classista, abrangendo as classes trabalhadoras, os camponeses, os setores médios da sociedade, além de setores da pequena burguesia. Popular ainda aparece em movimentos como o do Exército Zapatista de Libertação Nacional278, inserido no caudal teórico reivindicatório e traduzido pela aspiração de democracia e liberdade. “Nossa luta se apega ao direito constitucional e é motivada pela justiça e pela igualdade” (Primeira Declaração da Selva Lacandona, In: Lowy, 1999: 515). Nesse contexto de luta pela vida, também no Brasil, em especial decorrente da questão fundiária surge, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST)279. Defendendo a reforma agrária, preocupa-se com o consumo popular como expressão dos que estão sem qualquer tipo de assistência. “Dessa forma, tanto os pequenos produtores familiares, como os produtos destinados ao mercado interno para consumo popular, sempre estiveram à margem das prioridades da pesquisa agropecuária e da assistência técnica, mantida pelo Estado” (ibid.: 519). Mas essa discussão conceitual passa por intelectuais, basicamente por aqueles que atuam no campo da educação popular. Paulo Freire, por exemplo, em duas de sua ampla obra, “A Educação como Prática de Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, externa seu entendimento de popular como sinônimo de oprimido. Trata-se daquele que vive sem as condições elementares para o exercício de sua cidadania, considerando que também está fora da posse e uso dos bens materiais produzidos socialmente. A educação popular, isto é, tendo como ponto de partida a realidade do oprimido, pode se tornar um agente importante nos processos de libertação do indivíduo e da sociedade. O popular adquire, a partir da ótica da cultura do povo, um significado específico no mundo em que é produzido, baseando-se no resgate cultural desse povo. Os processos simbólicos, dessa forma, têm razão no ambiente da própria comunidade, porém no sentido da ampliação do horizonte cultural das classes. O conceito é o elemento adjetivante da educação, enquanto propõe a construção das utopias libertárias, na tentativa de superação da exploração do oprimido. Para Jiménez (1988), é importante a construção dos
276
Até o final da década de 60, o PC do B negou-se comprometer com processos de luta armada, realizando, contudo, a sua própria experiência, de orientação maoísta, na década de 70 - uma guerrilha rural na Amazônia - sendo dizimada pela ditadura militar.
277
O Partido dos Trabalhadores(PT) foi criado em fevereiro de 1980. Decide, no seu VII Encontro Nacional, adotar o socialismo petista, inspirado numa tradição marxista anticapitalista, expresso por uma visão de cultura política pluralista, propondo-se democrático e libertário.
278
Surgiu em Chiapas, México, em 1994. Esse movimento arrasta consigo a tradição de luta do povo mexicano. Uma organização guerrilheira de tipo novo enquanto não aspira à derrubada e tomada do poder, mas a luta com a sociedade civil mexicana pela conquista de democracia e justiça.
279
É um movimento do final de século XX, no Brasil. Atento às questões agrárias, em 1995, lançou um programa de reforma agrária para o país. É um movimento que se reivindica de nenhuma doutrina política, mas nas suas análises sobre o país está explícita a influência do marxismo.
359 setores populares com o papel de defender seus interesses, construindo também a sua própria identidade cultural. Manfredi (1980) associa o popular, vinculado à educação, no sentido de prática para a autonomia, enquanto seja capaz de gerar um saber-instrumento e, sobretudo, quando contribui para a construção de direção política. Wanderley (1979 e 1980) vincula o conceito de popular ao de classes populares280 como algo que é legítimo, que traduz interesses dessas classes, podendo adquirir o significado como algo “do povo”. No senso comum, povo é entendido como sendo aquele segmento de poucos recursos, posses e títulos. É um sentido dicotômico, fixado pelas expressões como elite-massa, em que o termo “massa” exprime pessoas desorganizadas e atomizadas. Outra compreensão percebe na expressão “do povo” um conjunto de indivíduos iguais e com interesses comuns com pequenos conflitos, apenas. Na visão nacional-popular, “o povo” é identificado como aquele conjunto de pessoas que lutam contra um colonizador estrangeiro, ou a visão “de povo” expressando as classes subalternas da sociedade, tendo por oposição as classes dominantes. Há ainda o conceito de “povo” como o segmento social dinâmico, aberto e também conflitivo, sendo, portanto, histórico e dialético, enquanto que se dinamiza e se atualiza de forma permanente. O termo popular tem se apresentado com diferenciados significados, como se pode ver em Bezerra (1980). Ao estudar as novas dimensões entre as práticas de educação popular, no final da década de 50 e início dos anos 60, a autora mostra um conceito atrelado a essas práticas direcionadas para o exercício da cidadania, no sentido de que as maiorias possam assumir o seu papel sócio-político naquela conjuntura. O conceito retoma uma política de resistência, como uma necessidade para os grupos populares (do povo) na busca de mudanças, “no estabelecimento de melhor padrão de funcionamento da sociedade” (ibid.: 26). Na compreensão de Brandão (1980: 129), o popular vincula-se à classe e à liberdade, ao mostrar que “o horizonte da educação popular não é o homem educado, é o homem convertido em classe. É o homem libertado”. Para Beisiegel (1992), o popular vem atrelado às práticas educativas em educação popular. Nesse sentido, a origem desse agir educativo, historicamente, está também nas hostes do Estado e suas formulações têm sido geradas nas elites intelectuais. Todavia, esses processos expressam um entendimento como algo necessário, sendo útil à preparação da coletividade para a realização de fins determinados. Souza (1999) vincula o popular aos movimentos sociais populares. Esses movimentos expressam correntes de opiniões capazes de firmar interesses diante de posicionamentos contrários dos dominantes. Elas são externadas sobre os vários campos da existência individual e coletiva desses setores da sociedade. Nesse sentido, o autor considera os “segmentos sociais explorados, oprimidos e subordinados, cujos temas, quase sempre de maior incidência em suas vidas, em seu cotidiano, são: trabalho, habitação, alimentação, participação, dignidade, paz, direitos humanos, meio ambiente, gênero, gerações etc” (ibid.: 38).
280
“Classes populares serão entendidas no plural, compreendendo o operariado industrial, a classe trabalhadora em geral, os desempregados e subempregados, o campesinato, os indígenas, os funcionários públicos, os profissionais e alguns setores da pequena burguesia”. Luiz Eduardo W. Wanderley, Educação popular e processo de democratização. In: A questão política da educação popular. Brasiliense, 2a. São Paulo, 1980.
360
Projeto de Casa Popular Essa questão conceitual também passa pelo debate sobre comunicação. Nesse sentido, é necessária a apresentação da perspectiva do popular no seio da comunicação nos movimentos sociais. Assim, pode adquirir também outras conotações, como enfoca Peruzzo (1998: 118): a) o popular-folclórico, que abrange expressões do senso comum, presentes nas festas, danças, ritos, crenças costumes e outras formas; b) o popular-massivo, que se inscreve no universo da indústria cultural, adquirindo três outras dimensões: a apropriação e a incorporação de linguagens, de religiosidade ou outras características do povo; a influencia e a aceitação de certos programas massivos de rádio e TV; as programações voltadas aos problemas da comunidade, entendidos como de utilidade pública; c) o popular-alternativo, que se situa no universo dos movimentos sociais. Esta última forma caracteriza-se como algo novo, na medida em que vincula a comunicação popular a algo voltado às classes subalternas da sociedade, às “lutas do povo”, adquirindo duas possibilidades, segundo Canclini (1987): a primeira concebe o popular como sendo algo libertador, revolucionário e portador de conteúdos críticos, concretizando-se através de alternativas marcantes no início da década de 80; a segunda nasce nos anos 90, diante das mudanças que vinham ocorrendo. Nessa concepção, o popular apresenta-se numa perspectiva dialética e mais flexível, como algo que contribua para a democratização da sociedade e da cultura. Na perspectiva do popular como algo que promove a democracia, segundo Rodrigues (1999: 23), há a exigência de que os grupos que compõem o povo precisam se comportar democraticamente. Para ele, “muito mais através de ações que de palavras, a educação popular objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua”. Esclarecedora, contudo, é a perspectiva do popular no campo da saúde, como expressão daqueles que são trabalhadores ou seus filhos. São os infectados por várias doenças ao mesmo tempo. A esse respeito, Vasconcelos (1999: 21) aponta: “Diarréia, escabiose (sarna), verminoses intestinais, impetigo (perebas), micoses cutâneas, doenças venéreas, infeccões exantemáticas agudas (como catapora, rubéola e sarampo), resfriados, pediculose (infestação por piolho), pneumonia, tungíase (bicho-de-pé), faringites e outras doenças infecciosas e parasitárias fazem parte da rotina diária das famílias das classes populares brasileiras”.
361 Mas que compreensões281 estão sendo veiculadas por aqueles que vivenciam, dirigem ou assessoram movimentos sociais? Nessa passagem de século, as concepções continuam muito variadas. Dirigentes de movimentos sociais, no campo do sindicalismo, estão compreendendo o popular “como toda e qualquer ação que provoque transformação, defendendo os interesses da maioria da população”282. É uma perspectiva que insere a visão classista no conceito, compreendendo como classe a maioria da população. Para outros dirigentes de movimentos fora da estrutura sindical, o popular significa “ações ligadas a uma parcela da sociedade que não tem acesso aos direitos, ao trabalho, enfim ao mínimo de condições para uma vida digna” 283. Outra percepção vincula-o ao projeto político-popular como “um projeto de transformação social que saia dos modos de produção, organização e valores capitalistas, tendo uma concepção socialista de justiça social” 284. Ser popular é um exercício de transcendência do modo de produção capitalista. Pode ainda conter uma metodologia que contenha “procedimentos de ação política que se articulem com as demandas dos excluídos”285. O popular implica, originariamente, uma vinculação aos setores excluídos (povo) dos bens culturais produzidos socialmente pela sociedade. Expressa, ainda, algo que “vem do povo, da classe subalterna da sociedade, atendendo aos interesses desta classe”286. Ou mesmo como “aquilo que seja realizado na perspectiva de transformar a realidade, de conscientizar e libertar” 287 . É importante destacar, nesse percurso conceitual, as diferenciadas alternativas apresentadas por dirigentes partidários que têm em suas formulações estratégicas de sociedade a dimensão do popular, como os que defendem um “programa democrático e popular” para o país. É fácil perceber-se quão variadas têm sido as compreensões do termo entre militantes partidários ou de movimentos sociais, refletindo-se em suas ações políticas nas cidades onde vivem. Tornou-se possível, dessa maneira, a „catalogação‟ das visões externadas, em quatro grandes blocos, como mostra o quadro a seguir. Há um bloco daqueles que compreendem o popular como algo que é, necessariamente, originado nas classes sociais, em particular na classe trabalhadora, também disseminadas em conceitos como: as maiorias, o povo, a população, os mais sofridos ou os excluídos. Um outro bloco vislumbra o popular como algo que se expressa por encaminhamentos dirigidos a essas maiorias, pautado em procedimentos. Nessa concepção, ser popular é tornar-se expressão de uma metodologia, mas só terá significado quando expressar uma visão de mundo em mudança, contendo em suas ações a dimensão de propor saídas para as situações de miséria vividas pelo povo. É uma visão que exige iniciativas no plano político, normalmente, originais, pois marcam a própria autonomia desses movimentos definidores de um novo tecido social embasado em outros valores e objetivos. Esta perspectiva, entretanto, é bastante minoritária entre os ativistas dos movimentos sociais. Há, ainda, outras visões, pouco expressivas quantitativamente ou prisioneiras da idealização existente nesses movimentos sociais populares. 281
Pesquisa desenvolvida no período de fevereiro de 1999 a junho do ano 2000. Foram entrevistados dirigentes de movimentos populares (Acorda Mulher, da cidade de Bayeux, Grande João Pessoa; Projeto Beira da Linha, Bayeux; Movimento Nacional de Meninos/as de Rua, João Pessoa); de organizações não- governamentais (SAMOPS, João Pessoa; SEAMPO, João Pessoa; Núcleo de Educadores Populares da Paraíba – Rede EQUIP de Educadores, João Pessoa; AGEMTE, João Pessoa); movimento sindical (Sindicato dos Professores, Sindicato dos Servidores em Saúde, Sindicato de Servidores Federais); organizações de assessoria aos movimentos sociais (PRAC/UFPB, Mulheres de Teologia do Partido dos Trabalhadores) e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas do Estado da Paraíba.
282
Entrevista com dirigente do Sindicato dos Professores da Rede Oficial do Estado.
283
Entrevista com dirigente do Movimento Acorda Mulher, Bayeux/PB .
284
Entrevista com dirigente do Projeto Beira da Linha, Bayeux/PB.
285
Entrevista com dirigente do Movimento Nacional de Meninos/as de Rua/PB.
286
Entrevistas com assessorias do SEAMPO/UFPB; Rede de Educadores/EQUIP/Pb e AGEMTE/PB.
287
Entrevistas com dirigentes do Sindicato dos Servidores da Saúde e Sindicato dos Servidores Federais/PB.
362
Concepções de popular 288
CAMPOS TEÓRICOS DAS CONCEPÇÕES
QUANTITATIVOS DAS CONCEPÇÕES
1. ORIGEM Algo é popular quando tem origem no povo, nas maiorias. Alguns indicadores289: vem da base; vem da experiência do povo; vem da tradição do povo; vem das classes desprivilegiadas; vem das maiorias.
20,68% das compreensões externadas apontam para a visão de que algo é popular quando tem essas origens.
2. METODOLOGIA Algo é popular quando traz consigo um procedimento que incentive a participação, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a 51,73% das compreensões externadas apontam busca da cidadania. para a visão de que algo é popular se expressar mecanismos que contribuam para o exercício Alguns indicadores: algo referente ao povo da participação. Popular como sinônimo da humilde; ampliando canais de participação; própria prática. exercitando participação ativa; possibilitando tomada de decisão; ouvindo e implementando decisões; promovendo novas formas de intervenção das massas. 3. POSICIONAMENTO POLÍTICOFILOSÓFICO Algo é popular se expressar um cristalino posicionamento político-filosófico diante do mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias. Alguns indicadores: assumindo as lutas do povo; atendendo interesses da população; resgatando a visão de um mundo em mudanças; propondo melhoria de vida do povo; trazendo a perspectiva do povo.
21,84% das compreensões externadas apontam para a visão de que ser popular é posicionar-se diante do mundo, tomando um posição promotora de mudanças.
4. OUTROS ASPECTOS Foram apresentadas outras concepções trazendo as possibilidades de que ser popular passa pelo institucional. Pode ter origem no
5,71 % compreendem a questão do popular
288
Entrevistas aplicadas a vinte e oito dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas da Paraíba, e a quinze dirigentes de movimentos sociais populares.
289
Oitenta e sete foram selecionados para as concepções de popular.
363 institucional, como sindicatos, associações ambientalistas, etc. Outros entendem que ser popular é uma questão de consciência.
como algo que deverá estar na consciência de cada indivíduo.
Alguns indicadores: Algo que vem de associação (comunidades de base, movimentos dos sem-terra, sindicato); uma questão de consciência.
Como se vê, popular adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as atuais exigências. Nessa perspectiva, é possível mostrar um movimento conceitual que envolva os elementos que sempre estiveram presentes nos variados momentos históricos e outros que foram sendo assimilados com o tempo. A pesquisa mostra essa dialética entre os elementos constitutivos do conceito. O termo relaciona suas dimensões constitutivas, ao mesmo tempo em que se diferencia de cada uma delas, porém mantendo-as na sua unidade conceitual. Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que se tornam uma exigência social. Algo pode ser popular se tem origem nos esforços, no trabalho do povo, das maiorias (classes), dos que vivem e viverão do trabalho. Mas a origem apenas não basta. A ação popular, inclusive, pode nascer de agentes externos, evitando-se, contudo, todo tipo de populismo que porventura possa surgir. Todavia, é preciso ter-se conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. É preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias. Ao se definirem a direção e os interesses envolvidos, entra em cena uma segunda dimensão conceitual, que é a dimensão política. Ser popular é ter clareza de que há um papel político nessa definição. Essa dimensão política deve estar voltada à defesa dos interesses desses setores das maiorias ou das classes majoritárias. Em um segundo momento, essas ações políticas são, necessariamente, reativas às formulações ou às políticas que deverão estar sendo impostas a essas maiorias. Reativas no sentido de busca de alternativas ou de estratégias que conduzam às iniciativas para um plano político geral de sociedade. Reativas enquanto geradoras de ação própria e, normalmente, original, retirada da prática do dia-a-dia, ou quando se tornam capazes de compor um novo tecido social com outros valores e objetivos. Ser popular, portanto, significa estar relacionando as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação. É estar se externando através da resistência às políticas de opressão, adicionadas às políticas de afirmação social. Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. Contudo, esse fazer político pode se expressar de várias maneiras ou através de diferenciadas metodologias. A metodologia que confirma algo como popular tem o sentido de promover o diálogo entre os partícipes das ações. Sobretudo, deve ser contributiva ao processo de se exercer a cidadania crítica. Cidadania que se constitua como um exercício do pensamento, na busca das questões com as suas dimensões positivas e negativas contidas em qualquer ente de desejo de análise. Mas a cidadania não se resume à análise. É preciso também que o indivíduo se prepare para a ação, para desenvolver metodologias que exercitem o cidadão para a crítica e para a ação. Sua direção aponta no sentido de afirmação de sua própria identidade como indivíduo, como grupo ou como classe social. Busca ainda promover as mudanças que são necessárias para a construção de uma outra sociedade, mesmo que pondo em risco a ordem para que todos tenham direitos, e assim a justiça, efetivamente, seja igual para todos.
364 Essa metodologia, entretanto, rege-se por princípios éticos oriundos também das exigências do trabalho. Ser popular é estar dirigido por princípios voltados às maiorias. Nesse contexto, reafirma-se como fundamental o princípio do diálogo, oferecendo condições para a promoção do pluralismo das idéias. Este deve ter condições de promover princípios como a solidariedade e a tolerância, sem cair no relativismo ético, na busca incessante da promoção do bem coletivo. Esse conceito arrasta para si definições envolvendo as utopias tão necessárias para os dias atuais. Ser popular é tentar alternativas. É estar realizando o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trará os elementos já efetivados e tentativas de novas realizações. Isto só ocorre, contudo, quando da sua realização mesma, caminhando para aquilo que, efetivamente, é o necessário. A utopia da democracia tem um valor permanente e deve ser vivida sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços da realização e da não-realização, estão as suas contradições e suas dificuldades maiores. Entretanto, não podem transformar-se em agentes impeditivos da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de liberdade e de felicidade.
d) O concreto Essa busca radical cobra uma metodologia que seja voltada às perspectivas de atendimento desses sonhos. A teoria do conhecimento dessa metodologia exige que os dados contribuam para gerar um conhecimento necessário e ainda se preste para atender os interesses das classes que se libertam. Os constituintes metodológicos para o campo da produção do conhecimento podem ser os da metodologia dialética e os da teoria política da hegemonia290. A dialética a ser adotada se externa como um método que se eleva do abstrato ao concreto. De forma triádica, pode-se expressar como um movimento em torno dos seguintes vetores: o concreto real, a abstração e construção teórica de um novo concreto - o concreto pensado. Mas, como se desenvolverá a análise em uma experiência de educação ou mesmo de uma sociedade? Nesse aspecto é preciso considerar o método de análise da economia política. Em Marx, esse é um método que se inicia sempre pelo real e pelo concreto, parecendo esta a forma correta. No estudo de um país, parece ser correto iniciar-se pela população que se constitui na base e no sujeito social da produção. Porém, uma observação mais atenta, segundo ele, mostra que a população, mesmo sendo tão concreta, é, na verdade, uma abstração. Por conseguinte, esse método é falso. A esse respeito, Marx (l978: 116) afirma: “A população é uma abstração, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Por seu lado, estas classes são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. Chegados a este ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas”.
290
Uma das interpretações gramscianas de hegemonia é desenvolvida por Miriam Limoeiro Cardoso em seus dois livros: La Construcción de conocimientos: cuestiones de teoría y método; Ideologia do Desenvolvimento-Brasil: JK-JQ.
365 Assim, o pensamento pode mover-se por dentro de suas partes do universo, apreendendo as suas interconexões e o conjunto no qual elas se fundem. Contudo, é em Limoeiro Cardoso (1990: 19) que se encontra um acompanhamento mais explícito sobre o desenvolvimento desse método, que está subdividido em seis partes: “A primeira trata do método em geral e indica um movimento que é exclusivamente teórico, passando-se totalmente no abstrato. A segunda afirma a anterioridade do concreto. A terceira propõe e resolve uma relação específica entre o real e o teórico, desdobrando as relações entre as categorias mais simples e as mais concretas. A quarta precisa a condição da produção das abstrações mais gerais a partir do desenvolvimento concreto mais rico. A quinta indica que é no último modo de produção já estabelecido, porque o mais complexo, rico e variado, que se torna possível a inteligibilidade não só dele mesmo, como também de todas as sociedades anteriores. A sexta retorna ao método, estabelecendo que a ordem das categorias deve seguir uma hierarquia teórica, em função da sua importância correlativa dentro da sociedade mais complexa, base das abstrações mais gerais e categorias mais simples, e não em função do seu aparecimento histórico”. Para a autora, esta divisão vai possibilitar uma segunda apreensão do método, que está assim exposta: 1. Do abstrato para o concreto pensado. Na crítica ao método da economia clássica, considera-se que esta inicia sua análise a partir do concreto. Este concreto só pode ser entendido à medida que se vão descobrindo as suas determinações. A realidade social é determinada e não uma obra natural. Há relações específicas que a determinam, respondendo a uma certa causalidade. Nesse sentido, a realidade social é determinada e só é possível a sua explicação, quando também se apreenderem as suas determinações. Na suposição de que não existam determinações essenciais, a realidade é concebida como se esgotando no mundo dos fenômenos. Para Marx, no entanto, a realidade é determinada, é produto de determinações que não se encontram no mundo fenomenal. Desse modo, enquanto o pensamento não alcançar as relações profundas (não-aparentes) entre os fenômenos, apenas conseguirá descrevê-los, jamais explicá-los. O concreto real, de que partem os economistas clássicos, apresenta um sentido que não é previamente dado, mas sim “adquirido pela ação do pensamento, na abstração” (ibid.:21). Este concreto real é uma abstração. “Assim, um procedimento como este não parte do concreto, como se supõe, e sim da abstração, e não pode sequer procurar condições para reencontrar o concreto, porque supõe, enganosamente, que já o incorpora à análise desde o início” (ibid.: 21). O real, nesse sentido, se apresenta com um caráter caótico. Havendo uma ordem no real, essa ordem não pode ser considerada como já-dada. Ela só pode ser atingida pelo pensamento que a investiga, aprofundando-se no mesmo. Essa investigação, contudo, não terá respostas imediatas dos dados ou contatos do real, mas será produto da reflexão que, informada pela teoria, vai em busca da realidade externa. Possibilita-se, assim, a compreensão da formulação de Marx em que “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações”. A totalidade real se constitui, portanto, do conjunto das determinações, juntamente com o que elas determinam. Nas análises de experiências em educação popular que sejam feitas com métodos que contemplem as perspectivas empíricas, não se pode atingir essa totalidade real onde essas práticas de educação se exerçam, valendo-se daquele método. A partir de uma análise que procede do real, não se consegue reproduzi-lo enquanto totalidade significativa. Este traz, em si mesmo, um impeditivo para tal conhecimento. Em Marx, segundo a autora, há uma proposta de procedimento novo: “do abstrato (determinações e relações simples e gerais) ao concreto (que então não é mais „uma representação caótica de um todo‟ e sim „uma rica totalidade de determinações e de relações diversas‟)”. O método de Marx vai do abstrato ao concreto. “E o mais importante, este concreto é um concreto novo, porque pensado. É um concreto produzido
366 no pensamento, para reproduzir o concreto real (as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento)” (ibid.: 23). 2. Anterioridade do concreto. O movimento de produção/reprodução do concreto, no caminho de volta, e o que constitui esse concreto a que se chega precisam ser explicitados, considerando que o concreto é concreto porque se constitui em síntese de múltiplas determinações. “O caráter de concreto está estreitamente vinculado ao de determinação. O que conta de fato são as determinações. Atinge-se o concreto quando se compreende o real pelas determinações que o fazem ser como é” (ibid.: 24). O concreto é síntese de muitas determinações e, assim, é uma totalidade: “unidade determinante/determinado”. Esse processo aparece, então, no pensamento como expressão de uma síntese, porquanto é unidade do diverso, como resultado e não como ponto de partida. Ele não se constitui simplesmente de um dado, mas é o resultado de um elaborado processo de pensamento. “E se esse processo começa cientificamente no abstrato, seu verdadeiro ponto de partida é o real. Está dito, explicitamente, que o verdadeiro ponto de partida do pensamento é o real, que é o ponto de partida da percepção e da representação. O papel do real para o pensamento e para o conhecimento não é, pois, eliminado como se, por ser o abstrato o campo próprio do teórico (em que se move o pensamento para produzir conhecimento) para ele, teórico, o real não existisse senão sob a forma pensada. Uma coisa é afirmar que o concreto só faz parte do teórico como concreto pensado; outra coisa diferente é afirmar que o concreto real não se relaciona com o teórico (abstrato), sob a alegação de que o teórico só pode afirmar do concreto o que sabe dele, isto é, o que tem precisado sobre ele. A perspectiva seguida por Marx é a que ele explicita, de que o concreto aparece no pensamento como resultado, embora seja o verdadeiro ponto de partida. O pensamento parte do concreto (real), ainda que só se torne verdadeiramente científico quando retoma o concreto, pensando-o, a partir do abstrato (suas determinações atingidas pelo pensamento originado no concreto”(ibid.: 25).
Nesse momento, tem-se em Marx, segundo Limoeiro Cardoso, um triplo movimento. O primeiro parte do real, porém se afastando cada vez mais dessa realidade, através da abstração, atingindo conceitos mais simples desse real. O segundo é o início da atividade científica propriamente dita, onde se tem como caótica a representação do real. Nesse movimento, não se parte do real ou de sua representação imediata caótica e abstrata. Parte-se dos conceitos mais simples produzidos pelo movimento anterior. Esse movimento seria a busca pela especificação das determinações gerais e simples, configurando um movimento de reconstrução teórica. Finalmente, o terceiro movimento é o da construção teórica de reprodução do concreto. De forma simplificada, os movimentos podem ser representados, através dos seguintes vetores básicos: 1o)
real
______________ (concreto)
abstrato
2o)
abstrato
_______________ .... concreto
abstrato
3o)
abstrato
_________________ concreto (pensado) Para a autora, “com o segundo movimento se iniciaria o que Marx aponta como método cientificamente correto (ibid.: 27). Dessa forma, o conhecimento científico do real tem início com a produção crítica das suas determinações. Essa produção se dá ao nível do teórico, das categorias. Porém, constituindo-se como crítica da produção anterior, ela só se realiza quando
367 da existência de um desenvolvimento teórico “razoável e disponível”. “É daí que o método para produzir esse conhecimento se eleva do abstrato ao concreto” (ibid.: 32). 3. Relação categorias/real. Foi abordada, até agora, a afirmativa de Marx segundo a qual os conceitos mais simples permitem chegar a uma inteligibilidade do real. Limoeiro Cardoso supõe também a exposição desses conceitos a partir de uma abordagem que parta do próprio real. Acrescente-se que esse real, como ponto de partida, também é uma abstração das determinações que se expressam naqueles conceitos simples. Além disso, afirma a existência do real fora do pensamento, que é anterior a ele. Estabelecido o conceito, na primeira parte da discussão do método, e o real, na segunda, busca-se a relação existente entre ambos, na terceira. Nesse sentido, a autora salienta que ”para produção teórica, o pressuposto básico é que ela seja comandada pelos conceitos mais simples, para ser possível a reprodução do concreto no pensamento” (ibid.: 32). Além disso, dando-se sustentação a esse pressuposto, tem-se o mais geral - o da exterioridade e independência da realidade - a tese materialista fundamental291. As categorias mais simples, para a autora, não se apresentam em Marx com existência independente, sem nenhuma característica histórica ou natural. A exigência fundamental de sua existência está na admissão do concreto vivo, isto é, expressando-se como relação unilateral e abstrata de um todo concreto já dado. “É sobre ele que se erigem as categorias, mesmo categorias as mais simples, que não são capazes de captá-lo no plano do teórico a não ser parcialmente, unilateralmente” (ibid.: 33). Quanto à discussão do simples originário, empreendida por Marx, Limoeiro Cardoso vê um movimento em três dimensões. A discussão passa por uma análise de que as categorias simples têm ou não existência independente e anterior às categorias mais concretas. O primeiro momento desse movimento consiste em que “as relações mais simples sempre pressupõem relações mais concretas - relações estas expressas em categorias mais concretas, no sentido de que se referem a um grau mais baixo de abstração” (ibid.: 34). As categorias simples expressam, assim, relações simples, e estas não existem antes de relações mais concretas, expressadas também em categorias mais concretas. Uma análise que, convém salientar, não se dá apenas no campo de categorias teóricas. O segundo momento se dá de forma mais complexa, a partir da exemplificação de Marx, em que a posse se torna a relação jurídica mais simples. Acontece que não há posse sem a família, superada apenas quando se inicia com a distinção que é feita entre posse e propriedade. “A posse é uma relação simples, que exige uma relação mais concreta, como a família”. Aí também se insere, para superação dos questionamentos, a questão da evolução histórica real, influenciando tanto na diferenciação como na produção das categorias. É importante, portanto, se entender que “a categoria mais simples exige um certo grau mínimo de desenvolvimento para que possa seguir a relação mais simples que ela exprime” (ibid.: 37). Apresenta-se, até agora, uma contradição. No primeiro momento, o mais concreto é anterior ao mais simples; no segundo, o mais simples se torna anterior ao mais concreto292. Ao discutir a questão, a autora mostra que esta é uma contradição, mas que não é produzida por pura negação. O segundo momento não é pura negação do primeiro; é outro momento. No primeiro, o concreto é real, é o dado. “As categorias mais simples são as mais abstratas(abstrações simples). A relação proposta é uma relação real, com sua contrapartida pensada: família - posse; comunidade de famílias - propriedade. No segundo momento, o concreto pertence ao plano do pensamento. A relação dinheiro e capital é uma relação entre categorias pensadas. O real aparece relacionado com cada uma
291
Salientam-se, então, algumas questões suscitadas, tais como: 1) o motivo por que as determinações do real são formuladas através de conceitos simples; 2) a simplicidade originária dessas categorias; 3) o fato de as categorias simples terem ou não existência independente e anterior às das mais concretas; 4) a evolução histórica do real, que são questões postas e analisadas por Limoeiro Cardoso (1990: 32-44).
292
Esta aparente aporia é resolvida em Miriam Limoeiro Cardoso (op. cit.: 38-41).
368 destas categorias através dos diferentes graus do seu desenvolvimento e da sua complexidade” (ibid.: 39). Assim, pode-se entender que é numa sociedade mais complexa, em experiências também mais complexas, onde a categoria mais simples se apresenta mais desenvolvida teoricamente. Em sociedades com grau de desenvolvimento menor, a categoria mais simples também existe, porém é parcial no sentido de não impregnar “todas as relações do setor a que se refere”. Este se constitui no terceiro momento, onde se analisa a categoria simples, como o dinheiro, por exemplo. De forma sintética, a autora sistematiza esses três momentos da seguinte forma: “1o) concreto
simples
- relações mais concretas são anteriores a categorias mais simples; - fundamento: relação concreto/abstrato (abstração simples). 2o) simples
concreto ( complexo)
- categorias mais simples são anteriores a relações mais complexas (expressas em categorias mais concretas); - fundamento: relação simples/complexo (concreto). 3o) complexo (concreto)
simples
- Fundamento: a categoria mais simples só tem seu desenvolvimento completo numa sociedade complexa, enquanto que as categorias mais concretas podem ter seu desenvolvimento completo anteriormente” (ibid.: 42). Contudo, as categorias teóricas e o real se relacionam. Fazem surgir a constatação de que o simples não é a origem. As categorias mais simples exigem um substrato mais concreto, isto é, uma certa organização social, um todo vivo. Também se observa que o processo histórico real vai do mais simples ao mais complexo. Aqui, e nesse sentido, o mais simples pode preceder o mais complexo. Contudo, é no mais complexo - completo - que o simples pode estar mais desenvolvido. Agora, ele pode ser pensado de forma teórica e mais completa. 4. Produção das abstrações mais gerais. Identifica-se uma quarta parte, no texto da autora, ao se descobrir que é na sociedade mais complexa que a categoria mais simples se completa. É aí também onde se alcança o elo específico entre o real e o conceito. Ela conclui: “O abstrato de que se deve partir para começar a produção do conhecimento, que se fará no concreto pensado, já não depende só da produção teórica anterior, que se utilizará, criticando. Estas produções teóricas e o movimento que as produz despontam numa íntima conexão com o real e o seu movimento próprio” (ibid.: 44). Pode-se entender de que forma a categoria trabalho é uma categoria simples. Ora, a idéia de trabalho é bastante antiga, contudo, como categoria econômica, é recente. O trabalho é a relação daquele que produz com o produto. A categoria, entendida como trabalho em geral, já estava presente em A. Smith. O trabalho em geral, gerador de riqueza, retira deste qualquer determinação possível que possa conter. Tem-se, desde aí, o trabalho em geral, indo além da formulação anterior, econômica, de trabalho manufatureiro, comercial e agrícola. Como trabalho em geral, não se pensa em particularidades da relação entre produtor e produto, mas nas formas de trabalho no seu caráter comum. Para a autora (ibid.: 45), “aparece aqui a primeira especificação precisa da categoria simples: a sua generalidade. O trabalho é uma categoria
369 simples, quando ele é pensado como trabalho em geral, como trabalho sem determinações, como trabalho, simplesmente”. É no atual estágio de sociedade que se vive com a diversidade de formas de trabalho, uma sociedade mais complexa, onde a categoria simples completa o seu desenvolvimento. A categoria trabalho, em sendo mais simples, se torna, pela diversidade de formas de realização, mais geral. E isso só é possível na sociedade mais complexa. A sociedade que possibilita a existência da categoria mais simples, no caso, o trabalho em geral, é aquela em que concretamente existe o trabalho em geral. A sociedade mais complexa possibilita o deslocamento do trabalhador, mesmo especializado, para outro ofício. As experiências autogestionárias mais complexas é que também possibilitarão maior contribuição teórica, inclusive, para a educação popular. Dos movimentos em educação popular de maiores complexidades sairão, assim, as bases de novos elementos para uma formulação teórica desse tipo de educação, possibilitando a sua compreensão em momentos passados. Nesse tipo de sociedade, tem-se o trabalho em geral, como a categoria mais simples, mais abstrata, criada na sociedade mais complexa. Esse desenvolvimento teórico “não depende exclusivamente da capacidade e da disponibilidade teórica. Em última instância, a produção teórica deriva de condições reais” (ibid.: 46). As categorias mais simples detêm as abstrações mais gerais. São definidas pela simplicidade, pelo alto grau de abstração, pois são úteis a todas as „épocas`, exatamente, pela sua generalidade. 5. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. A análise feita até agora apresenta o método como um caminho, o papel do abstrato (conceito simples, determinação) na reprodução do concreto no pensamento, a relação da abstração com a realidade e a importância da fase do desenvolvimento da realidade social para a produção das abstrações mais gerais. Esta última incorpora, em si mesma, a própria história. A teoria desenvolvida aponta para a educação ou para a economia numa perspectiva histórica, residindo nela também a determinação, em última instância, da totalidade social, que é uma totalidade histórica. A análise dessa totalidade remete, por sua vez e necessariamente, para o conhecimento da educação ou da economia (no caso), considerando a história um estudo do determinante da totalidade social. Convém destacar que a sociedade em estudo é a sociedade burguesa. O presente significa não o contemporâneo ou o que está ocorrendo, mas “o último modo de produção completo, o modo de produção capitalista” (ibid.: 53). Portanto, é nesse tipo de sociedade, mais complexa, onde é possível a criação de categorias as mais simples e, conseqüentemente, mais complexas e mais abrangentes, possíveis de serem utilizadas em análises de sociedades menos desenvolvidas. 6. A ordem das categorias. Esta é a última parte do texto do método. É o momento em que se trata do plano de análise e da ordem das categorias nesse mesmo plano. Nessa fase, a questão é como fazer essa análise e por onde começá-la. Convém destacar que a realidade concreta existe independentemente de estar sendo pensada ou mesmo depois de ser pensada. Sua independência a localiza fora do espírito, caracterizado por atividades apenas teóricas. As categorias criadas têm todas, como base, o pressuposto da anterioridade da realidade, mas destas “não são mais que parciais em relação a ela”. As categorias não conseguem, senão de forma unilateral, dar conta do real em toda sua completude. Isso exige organização dessas categorias para que se possa chegar ao conhecimento mais abrangente e mais profundo da realidade. E aí de novo surge a questão: qual é o princípio organizador dessas categorias? Limoeiro Cardoso busca resposta para a questão apresentando os diferentes modos de produção, tentando mostrar como a agricultura, num determinado modo de produção, se constituiu numa atividade principal. Conseqüentemente, a renda fundiária e a propriedade vão se constituir em categorias que expressam essas dominâncias. Na sociedade burguesa, por sua vez, o capital é ponto de partida e de chegada de tudo, e se estabelece, no capitalismo, como categoria principal diante da renda fundiária. Finalmente, afirma a autora: “A ordem das categorias, portanto, responde à ordem de importância relativa das relações que expressam, importância que é relativa à capacidade das relações em determinar a organização da produção. Tem precedência teórica a categoria que expressa as relações mais determinantes” (ibid.: 54).
370
Com esse método, Marx analisou a sociedade burguesa. Desenvolveu uma visão metodológica que ajuda a definição por um exercício de produção de conhecimento, em condições de oferecer dados para as mudanças que estão sendo construídas. Como método geral, tem início no campo das abstrações (as determinações mais simples), reproduzindo essa sociedade no pensamento. Chega às determinações, teoricamente, ao realizar a análise crítica de conceitos gerados na empiria da economia clássica. Torna também possível a análise na educação, na marcha para uma educação comprometida com mudanças. Esta é uma crítica que apresenta o confronto dos conceitos com a realidade. Há uma suposição primeira, presa à exterioridade e à anterioridade do real, e uma outra, que é a mutabilidade histórica. Na busca das mudanças das condições históricas, são produzidos determinados conceitos. Conceitos simples - os mais abstratos - só são possíveis em sociedades mais complexas – as experiências mais abrangentes. E ainda, a ordem dos conceitos trabalhados não é a do seu aparecimento histórico, mas sim uma ordem significativa para a sociedade em estudo, tendo na hierarquia teórica o princípio que rege essa ordem. Um trabalho que procura realizar um esforço teórico na busca de atuais e sustentáveis categorias para a compreensão de mudanças também em educação, estando politicamente definidos para dar impulso às transformações mais profundas – uma educação popular, necessariamente.
e) O trabalho O trabalho possibilita o caminho das abstrações que conduz à definição de categorias do real, buscando aquelas categorias mais simples, porém com possibilidade de maiores explicações para a situação em que se encontram a realidade e as situações de determinação, onde estão acontecendo atividades de educação. O trabalho se constitui como elemento constante na dimensão do popular, sendo o fazer educativo, efetivamente, o trabalho em si mesmo. Na educação voltada aos interesses dos trabalhadores, o trabalho intelectivo dos atores dessa educação percorre o caminho da produção de abstrações mais gerais com condições explicativas da situação de vida daquela comunidade ou grupo social. Com essas abstrações mais gerais, torna-se possível a compreensão da situação do momento em que se vive, possibilitando além disso maiores e melhores explicações históricas das determinações de cada momento histórico dos objetos de estudo. Assim, torna-se possível a definição daqueles instrumentos teóricos, das categorias teóricas que possibilitam, finalmente, definir-se de que forma montar a análise e por onde começá-la, buscando resposta às questões levantadas. É um processo de trabalho que vislumbra a produção do conhecimento social e útil, capaz de tentar superar a realização do trabalho alienado. Este trabalho social gera um produto que também apresenta suas contradições, mas que se constituirá, sobretudo, como uma mercadoria social, na medida em que é produzida por aqueles que realizam a educação de cunho popular. É um produto, seja conhecimento teórico ou tecnológico, que precisa ser gerenciado pelos produtores principais, tornando possível a socialização desse produto, caracterizando esse momento como o da devolução das análises ou outros produtos culturais aos seus produtores. Vive-se, nesse momento, a apropriação dos bens culturais, por meio desse trabalho intelectivo ou técnico. Isto possibilita um novo agir sobre a realidade, gerando conhecimento nas ações pedagógicas, aprimorando, ainda mais, a capacidade de aprender desses atores, buscando dimensões outras de facilitação dessa aprendizagem, elaborando outras teorias em educação, e ainda desenvolvendo as suas habilidades políticas para intervirem na elaboração da própria política da educação com novas normas e orientações pedagógicas. Um trabalho que, do ponto de vista ontológico, orienta-se para a realização das necessárias transformações, buscando-se a superação de processos de exclusão e promotores de injustiças. O trabalho, enquanto categoria que embase a educação popular, se concretiza nas ações do coordenador de grupo de educação, dos educandos e por todos, como construção teórica de categorias que os instrumentalizem para análises sobre a realidade e as questões comunitárias.
371 Um trabalho que irá se expressar, também, como um direito e um dever das pessoas. As necessidades de transformação contidas na ação pelo trabalho são expressão das necessidades da comunidade ou da população para gerar riquezas para todos. O trabalho como condição básica do existir humano – a produção de sua sobrevivência. Com essa dimensão, o trabalho provoca, de forma intrínseca, a necessidade de participação na criação e na transformação do meio ambiente, da vida, da história. Do ponto de vista econômico, possibilitando gerar ocupação para todos, promove a subsistência também de todos. Trabalho como expressão de apoderamento dos bens culturais produzidos pela humanidade. A posse de bens culturais, de forma geral, vai favorecendo a caminhada pela igualdade, liberdade e autonomia das pessoas.
f) A autonomia/liberdade/igualdade Autonomia pode ser entendida como a condição de cada um de poder governar-se por si mesmo e de forma independente293. Interliga-se com a liberdade, tendo em Kant o significado da capacidade que o indivíduo tem de agir por si mesmo. Como liberdade, autonomia pode traduzir um sentido político. É de Spencer a conhecida formulação de que “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”. Há, de forma explícita, uma delimitação para o exercício da autonomia, traduzida pela limitação direta do exercício da liberdade. Liberdade de poder exercer os direitos elementares da pessoa, como o de expressar o seu pensamento de forma oral ou escrita. Isto, contudo, traz em si mesmo a responsabilidade pela ação ou as conseqüências dos atos. Particularmente a forma oral, em que a educação popular se realiza, já lembra Freire, tem o papel de quebrar o silêncio incrustado nas pessoas. Autonomia e liberdade em educação popular adquirem uma dimensão particularmente filosófica, trazendo a discussão de sua realização em sentido absoluto, total. É possível a sua efetivação in totum? E os condicionantes sociais, políticos, econômicos, biológicos, psicológicos que a limitam? Ora, Sartre encontra no ser humano a possibilidade de realização da liberdade. Para ele, “o homem é livre - porque somos aquilo que fazemos do que fazem de nós”. O ser do homem e o seu ser livre não apresentam diferenças. São, ao mesmo tempo, seus constituintes e seus constituídos. Pode-se vislumbrar na autonomia um sentido de pensamento. O direito inalienável que a pessoa traz consigo de externar o seu pensamento, em sua forma estrita. Isso mostra a luta da pessoa pela liberdade de expressar o seu pensamento. Sempre se pode lembrar Voltaire: “Não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizêlo”. É a expressão, possivelmente, mais elevada da clareza e da necessidade da liberdade de pensamento do outro. Assegurar essa liberdade ao outro é a garantia do desejo de liberdade para o eu, um desejo intrínseco promovido nas metodologias de educação popular. Autonomia, como liberdade de, traz consigo um sentido também ético. Ética aqui entendida como expressão do direito que tem a pessoa de agir sem constrangimento de qualquer força externa. Liberdade esta tão reivindicada e defendida por René Descartes, que na educação popular se concretiza pela promoção do diálogo.
g) O diálogo O diálogo como componente educativo faz parte da tradição grega, presente nos exercícios filosóficos de Platão, por meio de seus conhecidos diálogos294. Compõe igualmente, nos dias de hoje, o cerne do pensamento harbemasiano, constituindo-se no elemento ético básico de toda a formulação e exercícios educativos freireanos. Como um exercício teórico, torna-se prático na educação, tendo sua relevância como um projeto político-filosófico por meio da ação educativa, marcantemente, em processos de educação popular. 293
Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia. 6a. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
294
A obra de Platão chegou, até nós, por meio de seus Diálogos.
372 É mais que conhecido o limite da natureza e da inteligência de cada pessoa, impossibilitando a visão global de tudo, sozinha. Mas cada um pode se comunicar e tomar conhecimento das idéias e sentimentos – sofrimentos, divergências e perspectivas - dos demais, tornando possível a discussão ou momentos educativos de ensinamentos e de aprendizagens. O diálogo, como uma capacidade humana de perguntar e responder ao outro, assegura essa possibilidade. Historicamente, o diálogo é apresentado com Sócrates ao introduzi-lo como técnica de perguntar e responder, à procura da verdade. Como arte de dialogar, adquire a metodologia do confronto de perspectivas entre aqueles que dialogam, definida a partir de critérios de coerência lógica. Originariamente, a arte do diálogo (diá-lógos) é a própria dialética. Vê-se que o advérbio diá que, entre outros, assume valores espaço-temporais (através, entre, durante), causais, modais (com), bem como de estado ou condição. Como prefixo verbal, diá também adquire uma variedade de significados, entre os quais divisão e separação. Como base para a dialética, podem ser encontradas expressões várias como dialégein para significar, entre outras coisas, escolher, selecionar ou mesmo sua forma derivada dialésgesthai com a significação de conversar com, raciocinar com. Constitui-se ainda do verbo légein, que é rico de sentidos, vários deles convergindo para o significado de escolher cuidadosamente, contar, ou mesmo ainda a expressão dialégein com a significação de desenvolver (de forma completa) um discurso. De légein a lógos, de dialégein a dialégesthai (um agir que originará diálogo), há um processo de superação e manutenção de conceitos anteriores que irão fundamentar a análise da unidade entre pensamento e palavra, da unidade entre um ato comunicativo e um ato reflexivo, da intersubjetividade e subjetividade ou mesmo a busca de um horizonte que fundamenta a relação entre aquilo que se “diz” e aquilo que se “é”. Com essa origem, dialética se confunde com a descoberta grega do lógos e o seu exercício, em Platão, é o próprio ato de filosofar. O diálogo, em Platão, se mostrará como elemento constituinte da própria estrutura do pensamento e distanciada da formulação sofística que o tem, apenas, como o principal instrumento de poder político, demarcando, inclusive, pela diferença entre a escrita e a palavra, o campo da linguagem. É, ainda, em Platão, um pensamento que se afirma com a ética na política. Diálogo, portanto, como fundamento desse espaço privilegiado à aprendizagem e ao exercício ético. As experiências em educação popular, tão externadas nas obras de Paulo Freire, conduzem à legitimação dessa ética, sendo marcante também no pensamento de Habermas. Diálogo como espaço à educação expresso pela relação intersubjetiva e estrutura do pensamento. Uma atitude que tem desafiado as relações humanas e o seu exercício educativo, considerando que o percurso do assumir e do experimentá-lo abre sempre o risco de o sujeito perder o seu mundo, mas que, na verdade, está ganhando-o na abertura, pelo mesmo diálogo, para o outro, educando-se no outro e educando-o, também. Nas práticas em educação popular, renascem dimensões filosóficas que compuseram a formação do homem grego, o marco ocidental para a educação, tendo em Sócrates o seu maior fenômeno pedagógico que constitui o diálogo como a marca educativa ocidental, estando na essência dos exercícios educativo-políticos e populares. O diálogo, em educação popular, provoca processos de reconstrução crítico-hermenêuticos constantes quando dos dizeres e fazeres que vão se externando nas obras de seus próprios partícipes. É hermenêutico, pois se trata de um exame interpretativo daquilo que vai sendo gerado no ato educativo e adquirindo dimensão didática à medida que se promove a escrita. No aspecto filosófico, essa prática se torna crítica enquanto dialética, ao se ter no diálogo o percurso ético, fundamentado na idéia da autonomia do sujeito ou uma ética do discurso, presente no pensamento habermasiano e que permeia o pensamento freireano. Habermas elege como tema central de suas análises a racionalidade da sociedade atual, definindo-a como razão instrumental295, expressão de meios para se alcançar algum fim determinado. Sua análise mostra que tanto o desenvolvimento técnico como a ciência, voltada à 295
Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
373 aplicação prática e como produto dessa razão instrumental, são responsáveis pela perda da autonomia do sujeito, visto que está submetido às regras dessa dominação técnica. A crítica, para Habermas, portanto, terá um papel de superação dessa situação estabelecida pela razão instrumental, no sentido da recuperação da dimensão de interatividade humana e de uma outra racionalidade não instrumental, baseada no agir comunicativo entre sujeitos iguais, livres e em condição de sua emancipação em relação à dominação técnica. Sua crítica à objetividade da ciência e à verdade do conhecimento científico passa pela redução do conceito de razão no positivismo, meramente, como procedimento metódico e lógico-formal, considerando que a razão instrumental não se aplica à moral e à prática humana. Estas serão, necessariamente, as dimensões que deverão estar presentes na razão dialógica e comunicativa, estabelecendo uma teoria da intersubjetividade comunicativa. A impossibilidade da ação emancipatória entre os sujeitos, produzindo relações assimétricas na sociedade, é realizada pela ideologia. O desmascaramento dessa distorção será promovido pela crítica, ao retomar, assim, a razão emancipatória. Habermas estabelece uma teoria da ação comunicativa que tem no diálogo um esteio para sua realização. A razão comunicativa, portanto, só existe pelo processo dialógico estabelecido entre os atores em uma mesma situação. Uma razão pautada por interações espontâneas, dando, contudo, maior rigor ao discurso. Razão como procedimento argumentativo, quando dois sujeitos se põem em acordo com a verdade, justiça e autenticidade. A verdade, assim, vai se erigindo, de forma dialógica, seguindo a lógica do melhor argumento. Uma razão que promove o surgimento da significação das coisas, pessoas e relações consensualmente elaboradas e respeitadas, resultantes do diálogo entre o ego e o alter. Diálogo que está presente na obra de Paulo Freire, tomando forma na sua visão de liberdade e de educação. A sua pedagogia não enaltece aquele que ensina (o professor), mas aquele que coordena as atividades de docência, promovendo a prática do diálogo. O diálogo é a condição essencial de sua tarefa de coordenador que se afirma sem imposição e cuja condição de aprendizagem associa-se à tomada de consciência da situação vivida pelo educando. Esta situação se concretiza à medida que se desenvolve o diálogo do homem com o homem. Assim, ele constrói a liberdade como um modo de ser e define o seu próprio destino, só podendo ser sentido na história dele mesmo. A educação popular, pelo diálogo, caminha para a superação das formas existentes de opressão, uma pedagogia emancipatória, presa a um juízo existencial onde se faz necessária a liberdade da prisão da ignorância e da inconsciência. Sua tarefa educativa tem como ponto de partida o assumir a liberdade e a crítica como o modo de ser do homem. Uma pedagogia orientada pela interpretação do mundo, considerando que todos se educam pelo diálogo, intersubjetivamente. A dialética e hermenêutica, tão presentes e necessárias no exercício educativo popular, historicamente, têm se apresentado como opostas, sendo isto, porém, apenas de forma aparente. Nas práticas educativas populares, é fácil de se ver que a dialética, enquanto crítica, exige o dado, o espaço histórico e o sentido. Este irá constituir-se como elemento que conduz à interpretação do mundo vivido, na visão habermasiana. Ora, a crítica, ao exigir a interpretação, direciona a dialética para a hermenêutica. Pela hermenêutica será apresentada a identidade do algo em debate e pela dialética será acentuada a sua diferença e o seu contraste. Nesta discussão do diálogo como elemento de origem, a interpretação possibilitada pelo instrumento hermenêutico, diante dos vários sentidos e pelo instrumento da crítica, provoca possíveis rupturas ético-filosóficas que são, necessariamente, educativas e, fortemente, da educação popular. Em Platão, o diálogo vai se apresentando como um caminho (método – meta + hodós) sempre aberto para uma seqüência de argumentação ou novas definições. E qual o método? Um procedimento sempre dicotômico (dialético) ou de divisão em duas partes; em seguida, uma das partes será tomada para nova definição, que novamente será dividida, dando continuidade a este procedimento. Este método duplo conduz, de início, a uma técnica de argumentação que procura desmontar os conhecimentos prévios, tidos como verdadeiros e definitivos daquele que está sendo questionado pelo mestre, através da ironia. O segundo momento – a maiêutica - decorrente do primeiro, prepara o discípulo, por meio de perguntas, para que o mesmo traga à luz a verdade que há dentro de si mesmo.
374 Contudo, é pela anámnesis (reminiscência) que se constitui a condição (subjetiva) desse trânsito, exigindo o diálogo para a sua concretização. Maiêutica, portanto, como um movimento dialógico para se chegar à verdade, um caminho do „eu‟ para a própria interioridade. Este procedimento dialogal, portanto, conduz a educação para as bases, necessariamente, de uma episteme (ciência), distanciando-se do plano instável da doxa (opinião). Assim, Platão, com a herança socrática, marca a direção da luta crítica (dialética) com as formulações educativas de seu tempo e com a tradição histórica de seu povo – com a sofística, a retórica, a matemática, legislação e Estado, astronomia, medicina, poesia e música. Procura encontrar o caminho para essa meta ao apresentar o problema da essência do saber e do conhecimento, além de outras temáticas presentes, até hoje, no processo educativo humano, tais como: a virtude, a política296, um novo saber297, o amor, a justiça e a escatologia. Em Platão, é razoável a compreensão de que a estrutura interna do pensamento é dialógica. O pensamento, o discurso ou a razão se tornam a mesma coisa, expressos por um diálogo silencioso da alma, exigindo a possibilidade de transição da esfera da subjetividade para a da intersubjetividade. Esta possibilidade se concretiza a partir deste mesmo diálogo da alma com ela própria. É o diálogo se expressando como um agir (dialégesthai) que acontece internamente no pensar. Assim, passa a oferecer as condições de realização de si com o outro, estando incluído na ação concreta do falar. Do ponto de vista hermenêutico, a partir dessa forma literária do diálogo, há uma necessidade de conexão do escrito com o oral. No oral, está presente o contexto e este contém o outro em condição de ouvir, passando a existir uma relação intersubjetiva, estabelecendo uma ética do ouvir. Expressa-se, dessa maneira, uma unidade na obra platônica ao tematizar o diálogo, que é concreto e um processo intersubjetivo. Este processo, de forma dialética, significa que o eu remete-se ao outro e, ao se remeter ao outro, volta-se a si mesmo. Há, em Platão, um diálogo interior, aquele que a alma realiza em si mesma, e um diálogo exterior, em relação ao outro, que são dimensões de um mesmo processo, isto é, o caminho da ascensão da alma em direção ao mundo das idéias. A ação pelo diálogo exterior abre a perspectiva de surpreender-se de forma dupla, em relação a si e ao outro, enquanto se pergunta ou se responde. Este processo dialógico abre a condição de tornar possível a aprendizagem consigo mesmo através do outro (a maiêutica). Isto também põe em exame a formulação de que “sei que nada sei”, abrindo a condição de se estabelecer como um princípio ético, implicando uma postura de ouvir. Mas, este pode se apresentar como um princípio epistêmico, enquanto uma ascensão dialógica ao mundo das idéias. Esta é uma forma de ver essa ascensão com o outro. Abre-se um caminho dialético que se realiza pelo diálogo em direção à verdade. Promove, dessa forma, uma visão do outro não mais como uma sombra do não conhecimento. Considerando a estrutura interna do pensamento como sendo dialógica, em Platão, a relação dialógica é uma relação intersubjetiva do pensamento e tem como base a dialética. Assim é que se estabelece o diálogo como a base dos alicerces da razão política. A perspectiva platônica pode ser interpretada como denunciadora, ao considerar uma autoconsciência marcada pelo conflito da idéia de autonomia do sujeito e uma ética do discurso, apoiada no diálogo pela dialética. E esta é uma ética que tem seus fundamentos em princípios da ação comunicativa - da intersubjetividade. Este reino da intersubjetividade está, hodiernamente marcado em Harbermas, em sua teoria do agir comunicativo298. 296
A política será depois “virtude” cuja possibilidade de ser ensinada é o tema central de que trata Ménon (um diálogo de Platão).
297
O „diálogo‟ Mênon ou Da virtude insere-se na obra: Platão – diálogos: Mênon – Banquete – Fedro. Com tradução de Jorge Paleikat, com notas de João Cruz Costa e estudo bibliográfico e filosófico de Paul Tannery. Ediouro/81271.
298
Habermas, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estúdios prévios. Madrid: Ediciones Cátedra, S,A., 1997.
__________. Teoria de la acción comunicativa II – Crítica de la razón funcionalista. Madrid: Taurus ediciones, 1987.
375 Em Habermas, a razão comunicativa expressa a interseção do mundo objetivo das coisas, do mundo social das normas e do mundo subjetivo dos afetos. Assim, resgata o diálogo exigido na esfera social da cultura. Questiona valores e normas. Torna possível a reconquista do terreno da razão instrumental dominante, ao restabelecer a capacidade da ação comunicativa para todos. É a partir dos conceitos de razão comunicativa e de mundo da vida que Habermas aposta num processo educativo pela comunicação, tendo no diálogo a base que pode conduzir a um mundo melhor, em que as relações humanas e sociais sejam mais transparentes e menos violentadoras. Propugna por uma práxis de um novo tipo que procura “elevar a humanidade à razão científica universal, de conformidade com normas de verdade, transformando-a numa humanidade renovada a partir de seus fundamentos” (Habermas, 1975: 294). Uma teoria social que se reafirma por uma reinterpretação das necessidades históricas e práticas, dos fins, dos valores e das normas, orientando-se para uma práxis emancipadora. Contudo, este exercício praxeológico intersubjetivo, presente o diálogo, no campo da educação, é realizado na vasta experiência de Paulo Freire. Para Freire (1983a), o homem existe no tempo. Está dentro, mas também está fora, enquanto herda, incorpora e modifica esse mundo. O homem e o mundo estão impregnados de um sentido conseqüente. Sua presença no mundo não se dá de forma passiva. Não se reduz apenas a uma das dimensões da vida, seja a natural ou a cultural. A sua ingerência não é de expectador. Acontece em ambas as dimensões. Volta-se à realidade na busca de realizar-se pela transformação, tanto de si mesmo como da natureza. Este nível de consciência se destaca, segundo Freire (ibid.: 61), por substituir explicações mágicas por princípios causais e: “Por procurar testar os „achados‟ e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência de responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a argüições”. Há, ainda, uma perfeita relação entre o diálogo e a intersubjetividade. O diálogo só acontece entre sujeitos. “O diálogo é um bom ponto de partida e um bom ponto de chegada para recuperar a igualdade. Nas relações face a face – e as relações entre educador e educando o são – a recuperação da democratização reside em poder estabelecer uma ação comunicacional que vise construir a identidade do oprimido e posicioná-lo na luta pela libertação” (Russo et al. 2001: 120). Ora, sem identidade, não há condição de libertação por parte do oprimido. Sua identidade é componente do mundo da vida, sua exterioridade, a razão do outro, tendo aí o início do caminho para a liberdade. Liberdade que se constituirá como elemento utópico, pois se afirma num pensamento que virá sem um receituário definido e sem a inexorabilidade histórica. Com o estabelecimento da dialogicidade como fundamento em sua pedagogia popular, Freire (1983) cobra um diálogo verdadeiro para que haja a promoção de valores éticos no processo educativo. Com isto, admite que a sua existência se dará quando firmada a condição de, também, pensar de forma verdadeira. “Finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade” (ibid.: 97).
376
Considerações Como expressão de síntese, é possível vislumbrar-se desta discussão, a partir das várias experiências históricas e recentes que a educação popular pode ser abalizada na perspectiva de um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios e experiências que, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Mesmo expressando uma unidade, é um sistema aberto que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, a educação e o popular e vice-versa. Um sistema aberto de trabalho educacional detentor de uma filosofia que, por sua vez, pressupõe as seguintes dimensões: uma teoria do conhecimento, metodologias dessa produção de conhecimento, conteúdos e técnicas de avaliação, sendo sustentada por uma base política. Essa teoria do conhecimento tem como pressuposto inicial a realidade e um fazer história compreendido à medida que surgem novos temas ou que se aprendam e realizem valores inéditos. História quando o homem faz novas formulações, mudando as suas maneiras de agir, pensar e relacionar-se com os demais humanos. Vai se constituindo como um trabalho humano, em que se dá em e pela prática do indivíduo, enquanto humaniza a natureza e naturaliza a dimensão de ser humano. A sua verdade exige o debruçar-se sobre a própria realidade, sob a forma de atividade prática. Detém, por sua vez, uma metodologia capaz de possibilitar que cada um se transforme em protagonista de sua própria história, à medida que seja útil à organização de seus pares, sistematizando e reelaborando os conhecimentos de sua classe. Presta-se para o desenvolvimento das habilidades e de atitudes como: orientar, dirigir e organizar debates e reuniões, sistematizar e expressar idéias e opiniões, reunir, criticar e sintetizar informações. Além disso, requer a percepção da importância e necessidade de organização e troca de informações entre os próprios trabalhadores. Contém conteúdos e avaliação originados da própria realidade, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico, pois ele está sendo dirigido aos e pelos moradores de periferias de cidades, camponeses, trabalhadores e demais categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto e nos mais diferenciados ambientes do campo ou da cidade ou nas diversas instituições da sociedade civil, inclusive nas escolas de educação formal. Exige pensar que tudo está em movimento, inclusive, o ato pedagógico. Recorre-se à análise do processo que também está em movimento. A avaliação dos conteúdos da educação popular, por sua vez, só terá sentido quando for conduzida para a análise organizativa de todo processo educativo em desenvolvimento. A educação popular é alimentada por uma base política enquanto promotora da superação do silêncio imposto a cada um, pela preparação intelectual dos trabalhadores, pela construção moral dessa classe e pela capacitação para o exercício da direção política, acompanhada dos valores e fundamentos em todas as suas dimensões, fomentando, inclusive, práticas autogestionárias. Destaque-se a necessidade da produção do conhecimento e não simplesmente a promoção de uma relação entre saberes acadêmicos e saberes populares. Essa produção de um conhecimento transpõe a dimensão meramente de troca de saberes. Isto ocorre nas ações extensionistas, nos exercícios de autogestão e em tantas outras possibilidades, mas não se constitui, simplesmente, de processos relacionais. Vislumbra-se a produção do conhecimento acadêmico com a participação da comunidade na busca de autonomia própria. Os processos em educação popular podem expressar resistência às formulações de uma ética e de uma moral utilitária que fomentam e enfatizam a individualidade em nome, prioritariamente, de um benefício pessoal. A ela contrapõe-se a ética da comunicação, do diálogo, da responsabilidade social, da democratização, da justiça social, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças, das escolhas individuais e grupais, elementos que potenciam a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas, na construção de outras formas de racionalidade. Assim, é que se abrindo ao campo das mudanças, possibilita o exercício do empoderamento das pessoas, a ênfase em sua individualidade quando contribui à construção das identidades, tanto do indivíduo como coletivamente, enfatizando os aspectos subjetivos, com
377 destaque às questões de gênero, sob o manto especial da produção das coisas para ser assegurada a vida. A resistência à massificação e ao nivelamento passa a dar sentido às diferenciadas metodologias de educação popular. Esta, ao utilizar uma perspectiva dialética, contribui, decisivamente, para o encontro de estratégias e de condições de lutas para as transformações da realidade. Enfim, uma resistência construtiva de utopia como a busca por liberdade. Uma liberdade no sentido político, ético e filosófico, que mostra as limitações dessa própria liberdade, considerando a existência do outro, com a clareza de que o humano não é um ser acabado, posto que histórico. Assim, várias questões continuam desafiando as práticas educativas populares que, mesmo vislumbrando a competência, assuma um significado para a produção, para o social, para a tecnologia e, sobretudo, para a cultura. As realidades são muito distantes uma das outras e as práticas em educação popular acompanham essas realidades, porém, será interessante a pesquisa para detectar similitudes de relações presentes nos variados processos, na perspectiva de se contribuir com maior clareza para esse trabalho educativo tão diferenciador mas tão semelhante pelas definições de suas buscas, alimentando uma teoria pedagógico-popular, cujos vetores político-humanistas reforcem as lutas coletivas por liberdade, por igualdade, por justiça e por felicidade.
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LIVRO 2
UNIVERSIDADE POPULAR
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APRESENTAÇÃO Este texto objetiva contribuir para o debate sobre a Universidade Popular no Brasil, ante o potencial existente para sua efetuação. Apresenta uma rápida visão da atual sociedade com o domínio estabelecido do capital sobre o trabalho. Nesse modelo, o trabalho intelectual não é destinado às classes trabalhadoras, restando-lhes, tão somente, o seu trabalho manual e aprofundando-se, dessa forma, o processo de alienação. Em seguida, faz um breve histórico sobre a criação da universidade, resgatando-se os debates de projetos de universidade no Brasil, nas últimas décadas, com destaque para a implantação da extensão universitária. Com isso, descortina-se, concretamente, a visão da extensão, como extensão popular, concebida como trabalho social e útil, com a intencionalidade de promover mudanças, permeadas de valores éticos que ajudam no esforço de superação da alienação. Em síntese, sugere caminhos para a discussão dessa utopia realizável da Universidade Popular.
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SUMÁRIO
Resumo Introdução Universidade idealizada Universidade no Brasil Extensão universitária Extensão popular Universidade Popular Considerações Referências bibliográficas
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UNIVERSIDADE POPULAR299
Resumo Este trabalho objetiva contribuir com o debate sobre a Universidade Popular, seguindo os passos do método histórico-comparativo, por meio de uma análise dialética em três movimentos teóricos: a) uma síntese com a caracterização das visões dominantes de universidade; b) uma análise histórica com pensadores modernos e contemporâneos que trataram da questão, com reflexos nas perspectivas de universidades no Brasil, surgindo a extensão universitária como produto das contradições existentes; c) uma nova síntese na qual se expõe a possibilidade de criação da Universidade Popular, a partir de práticas extensionistas, definindo uma visão do que seja popular e, em consequência, extensão popular e caminhos que conduzem à Universidade Popular. Nesse sentido, adota-se o popular como visão filosófica de mundo que prioriza as demandas da maioria da população, com metodologia própria para as relações humanas, pela ética do diálogo. O texto dá ênfase especial à atividade universitária, capaz de reafirmar a totalidade perdida - ensino, pesquisa e extensão -, recuperando o conhecimento como um bem social emancipador e, necessariamente, coletivo. Palavras-chave: Universidade. Popular. Universidade Popular.
Introdução O momento em que se vive, sob o domínio do capitalismo monopolista, tem como uma de suas características a ênfase na separação entre o trabalho manual e o trabalho mental ou intelectivo. Essa separação afasta os trabalhadores diretamente da produção de ideias, em especial, quando são alijados de sua capacidade de pensamento, repassando-se a outrem essa função primordial da vida humana. Destaca-se um tipo de racionalidade, denominada de instrumental, segundo o pensamento habermasiano, a qual leva o homem a ser visualizado, única e exclusivamente, como força produtiva e não como alguém que também pensa. Para Braverman (1987), essa separação entre mão e cérebro é algo decisivo, como uma medida simples na divisão do trabalho no atual modo de produção capitalista, sendo inerente a esse modo de produção. A visão socialista critica esse estilo de vida, demonstrando que tudo transforma-se em dinheiro, que é apropriado pela classe dominante. A esse respeito, Marx (1978: 15) já chamava a atenção também para o controle das “superestruturas intelectuais, artísticas e filosóficas de toda a sociedade, monopolizando a cultura do passado, do presente e mesmo, se os não impedissem disso, do futuro”. Esse modelo continua na organização do trabalho, na sociedade industrial, com reforço do liberalismo, passando por novas formas e novas substâncias em processos de mudanças. Persiste atualmente com o trabalho na sociedade pós-industrial, que se diz trabalho de menos, mesmo que se esteja trabalhando muito mais, com reforço das novas tecnologias. O maior tráfego das tecnologias da informação, possibilitando mais e melhores comunicações, faz o homem trabalhar em qualquer parte em que esteja. Contraditoriamente, as novas organizações do capitalismo têm tornado evidente a necessidade e a importância de se trabalhar coletivamente e de forma solidária. Diante disto, Masi (1999) enfatiza a necessidade de se revolucionar mentes e materiais. Assim, o 299
Universidade Popular. José Francisco de Melo Neto. Editorada Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa: 2012.
386 conhecimento, como um dos produtos desse trabalho, adquire dimensões multifacetadas. Exige, ainda, maior diálogo entre as especialidades, como mostram Cunha e Laudares (2009), diante da informalidade do próprio trabalho e de sua mundialização, além da necessidade de “diálogos multidisciplinares”. Esse problema atinge todos os setores da sociedade, inclusive a instituição universitária, em sua atividade de extensão, de ensino e da produção do conhecimento, por meio da pesquisa. Diante desse quadro, cabe a pergunta: Que tipo de universidade assumirá o papel de contribuir para a superação dessa produção do conhecimento e do ensino, passando a realizá-los em bases coletivas (solidárias), indo além da separação entre mão e intelecto? O texto assume a posição de que essa universidade é possível e que já vem sendo exercitada, particularmente na América Latina, com dimensões que a caracterizam como popular e, por isto, Universidade Popular. Universidade idealizada300 Com suas origens na Idade Média, a discussão sobre a universidade vem tomando melhor forma teórica nos tempos atuais, transformando-se em objeto de estudo de pensadores que expuseram as suas compreensões sobre o papel desse instrumento de produzir ensino e conhecimento novo. Ao considerar algumas conexões entre concepção de educação universitária e seus arranjos institucionais atinentes às condições sociais de seus participantes, além de fazer observações sobre as formas de acesso e de suas finalidades, Wolff (1993) identifica quatro modelos de universidades: a) universidade como expressão de um santuário do saber; b) universidade como um campo de treinamento para profissionais liberais; c) universidade como agência de prestação de serviço; d) universidade como um ambiente de preparação de indivíduos para assegurar e conduzir o sistema social estabelecido, entendendo-se como uma crítica aos demais modelos. A universidade como expressão de um santuário do saber, para o autor citado, originase na própria história da instituição universitária. Nela enfatiza-se a imagem de uma torre de marfim, fazendo-se congregar na universidade obstinados eruditos, tentando um saber exclusivo do grupo. O erudito é aquele que domina as artes, bem como as letras clássicas e modernas, como expressão do humanismo. Este compõe-se de um corpo sacro ou secular, constituindo-se de atividades que se convencionou denominar de humanidades. A universidade como um campo de treinamento para profissionais liberais expressa a visão de Wolff de universidade para os dias atuais. Trata-se daquela instituição que se presta, tão somente, à preparação para profissões liberais. Traz consigo a tradição das universidades medievais, originadas na Europa, nos séculos XI e XII, exclusivamente, nas áreas de Direito, Medicina e Teologia. Esse modelo de universidade se consolidou no tempo, mantendo suas características marcantes na atualidade. Essa visão de profissão liberal traz consigo um conjunto de categorias ocupacionais aceitas socialmente, vindo a ser denominadas de “profissões”. Seu status sobrevive ainda hoje, pelo incentivo permanente, com o aceno de melhores salários e maiores demandas da própria sociedade. Não se nega a necessidade de cuidar da saúde, com ênfase na Medicina. Há também a compreensão de que existem momentos na vida societal em que se garanta o direito das pessoas, destacando-se a profissão liberal do advogado. A teologia ficou limitada, basicamente, aos religiosos. Como agência de prestação de serviço, a universidade identifica-se como uma tendência diante do que está estabelecido. Configura-se como um agregado complexo de instituições, realizando serviços educacionais de pesquisa, de consultoria, entre outros. Está ilustrada no estilo de Clark Kerr, ex-reitor da Universidade da Califórnia, e muito presente em Harvard, criando o conceito de “multiversidade”. Por fim, a universidade, como um ambiente de preparação de indivíduos para assegurar e conduzir o sistema social estabelecido, representa uma crítica aos demais modelos identificados. Trata-se de um antimodelo de universidade, que se baseia na instituição 300
O interesse não é fazer uma longa listagem de pensadores que debatem a temática, mas, tão somente, destacar algumas ideias centrais desse debate, citando alguns deles, do exterior e do país.
387 formadora, unicamente, de quadros políticos e de teóricos em geral, para a sustentação de governo. A universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, foi a mais atingida pelas críticas estudantis à sua função precípua como formadora desses profissionais, gerados a partir de convênios diretos com o Estado. Em conseqüência, as salas de aula estavam abarrotadas de estudantes, dificultando os contatos e as relações entre alunos e professores. Os protestos estudantis aproximavam-se, no geral, das reivindicações proletárias. Para Wolff (1993:73), esses estudantes “querem ver-se, a todo custo, como vítimas, sofredores, os explorados, os miseráveis da comunidade universitária”. A universidade é posta como se fosse uma fábrica capitalista, cujos bens de consumo são os diplomas, com os estudantes na condição de consumidores. Para o autor, essas visões de universidade expressam perspectivas platônicas, na medida em que começam pela definição e demonstração de ideais a serem incorporados, para, só depois, pensar-se na realidade. São modelos que se prestam mais às lutas políticas de reformistas ou revolucionários, devido ao desencontro desses dois polos. Ou, então, seguem um modelo aristotélico, que se caracteriza pela procura de “universais das coisas”. Partem da caracterização da instituição, procurando encontrar os ideais que nela estejam presentes. Em outro momento de grandes debates - de forma particular, na Europa, alastrando-se por todo o mundo na década de 1960 - a instituição universitária e todo o sistema educacional, em especial, o francês, sofreram críticas que demandaram novos estudos sobre a universidade. Esses debates alimentaram a discussão, projetando modelos que estão caracterizados por Drèze e Debelle (1983), em seu livro Concepções de Universidade. Nessa obra, são expostas cinco concepções de universidade, divididas em dois grandes blocos: a) concepções que formam o ideário das universidades do espírito; b) concepções que levam à denominação de universidades do poder. No primeiro bloco, há duas visões de universidade: na primeira, é concebida como um centro de educação, cuja finalidade é a aspiração do indivíduo ao saber, tendo como principal idealizador o cardeal Newman301. Para ele, a educação deve ser geral e liberal, permeada de um saber universal, adotando uma pedagogia que valoriza o desenvolvimento intelectual sustentado nas seguintes bases: o indivíduo procura a ciência e a educação para toda a vida; a universidade é para o ensino mais que para a pesquisa. Na segunda visão, a universidade é caracterizada uma comunidade de pesquisadores, originária das ideias de Karl Jaspers302, cuja finalidade é atender à aspiração da humanidade para a verdade. Segundo ele, a pedagogia dominante deve ser direcionada para a promoção da liberdade acadêmica. A universidade deve ser um ambiente de pesquisa, orientada por dois princípios: o da unidade do saber e o da unidade do ensino e da pesquisa. Dentro desse primeiro bloco, vislumbra-se o que seria uma terceira visão de universidade, tendo por expoente Whitehead303. Caracteriza-se por ser um núcleo de progresso, considerando que a sociedade tem demonstrado essa aspiração. A pedagogia dessa visão requer que seja atribuído o papel criador ao docente. Aos estudantes cabe a tarefa de serem capazes de aplicar princípios gerais desse conhecimento, assegurando um papel útil à educação. No segundo bloco, a visão de universidade do poder, Drèze e Debelle (1983) identificam um primeiro modelo intelectual inspirado, principalmente, em Napoleão304. Nesse
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Hohn Henry Cardinal Newman. Clérigo religioso católico inglês. É mais conhecido por suas obras teológicas, tendo escrito um célebre trabalho nesse campo de conhecimento: The Idea of a university. 302 Karl Jaspers. Filósofo alemão falecido em 1969. Sua principal obra, nesse campo, é Die idee der universitat. Ele escreveu, entre outros livros, Bomba atômica e o futuro do homem. 303 Alfred North Whitehead, filósofo inglês falecido em 1947. Destacou-se no campo da lógica contemporânea, juntamente com Bertrand Russell. Em educação, escreveu: The aims of educations. 304 Talvez, uma precisão maior de uma universidade francesa possa não existir, mas há em Napoleão um conjunto de ideias-força que marcaram profundamente a universidade na França. Também não produziu um conjunto de concepções comparável às dos filósofos anteriores, já que a filosofia nunca foi a sua especialidade. Além disso, há outras contribuições contemporâneas ao debate, citando alguns nomes como: a) Jacques Drèze, l´université dans la sociétè contemporaine et le devenir de Louvain. In: La Revue Nouvelle, Jun, 1965; b) Gursdorf, G. L´université en question. Paris, Payot, 1964; c)
388 modelo, a finalidade da instituição é assegurar a estabilidade política do Estado. O ensino deve ter rigorosa hierarquia e programas uniformes, instituído por uma rede também uniforme de escola para a elite e para as classes trabalhadoras. Os abalos da conjuntura política francesa, à época, levaram Napoleão a restaurar um Estado forte, desejando o domínio total sobre as pessoas. Trata-se da ideia de uma universidade a serviço do Estado, integrada por uma corporação de professores. Para ele, só se faz uma nação com organização e ordem. Como segundo modelo desse bloco, os autores expõem o sistema de organização do Conselho de Ministros da antiga União Soviética, pautado pelo ideário do marxismo-leninismo. Via-se a universidade como um fator de produção, cuja finalidade era a edificação da sociedade comunista. Essa determinação exigia forte centralização da atividade acadêmica, aproximandose do modelo napoleônico, mas com um apelo a todas as forças produtivas dos estados que compunham a União. O ensino era funcional, planificado e inserido no processo produtivo. Desse modo, procurava dar sua contribuição à produção da nação, acompanhando as demais sugestões dos diferentes setores produtivos. A qualificação docente era algo permanente e priorizava a qualidade, bem como a produção de manuais didáticos para os estudantes. Em todos esses esforços de edificação de universidade, observa-se a presença marcante, de um lado, da visão dominante e idealista de universidade, e de outro, da perspectiva funcional voltada à organização da nação pelo fortalecimento do Estado. As demandas da população, a pedagogia para um pensamento crítico e a pesquisa que produza um conhecimento emancipador estão ausentes nesses ideários acadêmicos. Mas, esse debate esteve presente em parte da Europa, essencialmente na Inglaterra, avançando pelo horizonte da necessidade de que o conhecimento precisava chegar ao povo. Este, porém, não estava nas salas das universidades, mas nas fábricas, no campo e nas ruas. Na procura de caminhos para o atendimento dessa compreensão, inicia-se um movimento, em boa parte da Europa, pugnando por uma universidade popular. Surgem ações desenvolvidas por profissionais da universidade e de outros segmentos, com o objetivo de “levar” conhecimento ao povo. Havia, portanto, a ideia de que o povo não tinha conhecimento, sendo necessário encontrá-lo nos ensinamentos dos doutos dessas instituições. Nesse debate, surgiram os primórdios da extensão universitária. A extensão universitária toma corpo com o surgimento das universidades populares europeias, no século XIX. Tinham como objetivo disseminar os conhecimentos técnicos, segundo enfatizam Rocha (1989), Fagundes (1986) e Botomé (1992). Como se vê, a finalidade original de uma universidade popular já nasceu aprisionada às visões dominantes de universidade. Todavia, para os dias atuais, esse tipo de instituição exige a abertura de outros horizontes. Mesmo uma organização que se propunha voltar-se aos interesses dos trabalhadores nunca esteve imune à crítica. Em relação a esses movimentos por universidades populares, afirma Gramsci (1987: 17): (...) estes movimentos eram dignos de interesse e merecem ser estudados; eles tiveram êxito no sentido em que revelaram da parte dos simplórios um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma forma superior da cultura e de uma concepção de mundo. Faltava-lhes, porém, qualquer organicidade, seja de pensamento filosófico, seja de solidez organizativa e de centralização cultural; tinha-se a impressão de que eles se assemelhavam aos primeiros contatos entre mercadores ingleses e negros africanos: trocavam-se berloques por pepitas de ouro. Esta é uma crítica aos intelectuais que, mesmo com fortes desejos de “servir ao povo” e à classe trabalhadora, teriam outro papel: o de compreender as formas de vida e as propostas dessa classe. Na verdade, esses intelectuais expressavam um horizonte dominador de seus saberes, mesmo na pretensão de repassá-los ao povo. Apesar desse questionamento, ocorreu o
Aulard, A. Napoléon et le monopolie universitaire. Paris, Colin, 1911; d) Ricoeur, Paul. Faire l´université. Esprit: 1162-72, mai-jun, 1964.
389 desdobramento dessas ideias, em particular, o debate político contemporâneo sobre a universidade305 e o conteúdo de projetos, no Brasil, acentuadamente nas últimas décadas.
Universidade no Brasil A implantação da universidade no Brasil chegou atrasada, em relação a outros países da América Latina, como o Peru, onde foi criada no século XVI. No Brasil, isto só veio a ocorrer no início do século XX, nas décadas de 1920 e 1930, com a criação da Universidade de São Paulo, da Universidade do Distrito Federal e da Universidade de Manaus, dentre outras, embora já houvesse faculdades isoladas, desde o século anterior. Todo o esforço de criação da universidade no Brasil estava permeado pelo receituário dominante daquelas universidades já estabelecidas, especialmente das europeias, estando, portando, muito longe do atendimento das demandas do povo. No campo da educação, até hoje há certa dúvida teórica e prática sobre a existência ou não de um sistema brasileiro de educação. Apesar de se falar em um sistema, existe dificuldade de relacionamento e cooperação entre escolas da União, dos Estados e dos Municípios, mesmo estando estabelecido constitucionalmente o papel de cada um desses entes. Com maior evidência, é a partir da década de 1960, com a implantação da ditadura militar no país, que se radicaliza a disputa das ideias e dos projetos políticos de universidade. Afinal, a quem e a que se destina a universidade? A visão de que é um projeto político, sempre em disputa, firmou-se com mais intensidade, nas últimas décadas. O debate intensificou-se a partir, sobretudo, da formulação de projetos educacionais diferenciados no governo Sarney, tais como: a criação do Grupo de Estudos e Reestruturação do Ensino Superior (GERES), a divulgação do projeto de universidade pelo movimento docente nacional, através de seu sindicato (ANDES)306 e o projeto articulado pelo movimento dos servidores federais, através da Federação das Associações de Servidores das Universidades Brasileiras (FASUBRA). Na década de 1980, com a criação da propalada Comissão de Alto Nível, instituída pelo Ministério da Educação, o projeto de universidade passou a ter como ideário marcante a sua racionalização. Essa visão de universidade já estivera presente em projetos anteriores, como, por exemplo no acordo MEC-USAID (o acordo da discórdia, que motivou fortes reações estudantis) e no Relatório Meira Mattos. Essas opiniões também apareceriam no Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), criado naquela década. As aspirações de universidade no Brasil nortearam-se pelas diferenciadas concepções apresentadas anteriormente. Há universidades com visões idealizadas com horizonte espiritualista e outras com horizonte de fortalecimento do poder. Existem instituições que enfatizam mais o ensino, sobretudo aquelas de caráter privado, e outras que dão destaque, em maior ou menor intensidade, à pesquisa. Existem institutos que desenvolvem pesquisa apenas em determinados ramos do conhecimento, como física e matemática. Instituições há que, além de promoverem o ensino, esforçam-se na realização da produção do conhecimento pela pesquisa, desenvolvendo projetos sociais no campo da extensão universitária. Esta chegou ao Brasil junto à concepção estadunidense de vendas de tecnologias, particularmente de tecnologia rural, como forma de atender ao mercado. Nessa época, uma visão permeava toda a concepção da universidade no Brasil: a pretensão pelo desenvolvimento, pelo progresso, sempre com base na situação econômica, sociocultural e política do país. Cabia ao governo a decisão de se inserir nas poucas brechas de desenvolvimento deixadas pela dependência econômica dos países dominadores. Diante dessa situação, restava à universidade afirmar-se como fator de desenvolvimento. Nesse cenário, surgiu o acordo MEC-USAID, cujo relatório destacou, entre as suas conclusões, o fato de que a universidade era inadequada para atender ao crescimento econômico brasileiro. 305
Não se pretende restaurar todo o debate histórico da questão universitária no Brasil. Destaca-se apenas a disputa de projetos, nas últimas décadas, com algumas de suas passagens mais marcantes. 306 A proposta do ANDES – Sindicato Nacional, presente no Caderno ANDES n. 2, foi publicada em julho de 1986, com o seguinte título: Proposta das Associações de Docentes e da ANDES para a Universidade brasileira, reeditado em julho de 1996.
390 Tavares (1980: 24) assinala o seguinte trecho do citado relatório: “... se conseguirmos ajudar essas universidades, teríamos mais segurança de que o Brasil seria uma sociedade livre e um amigo leal dos Estados Unidos”. Salientando a edição pela ditadura militar do Decreto n o. 477, para conter a insatisfação estudantil, Romanelli (1987: 226) afirma: “As medidas de contenção do protesto se revelavam, assim, a única via capaz de impor a ordem e, ao mesmo tempo, as reformas. Essas medidas definem os aspectos assumidos pela reforma geral do ensino”. Em síntese, o acordo MEC-USAID mostrava a concepção de universidade, naquele contexto, como instituição formadora de quadros para o Estado, implantada autoritariamente. Em contrapartida, nos objetivos do projeto de universidade proposto pelo movimento docente nacional, estavam presentes valores das distintas concepções de universidade. Semeavam-se assim as primeiras ideias de uma universidade idealista, instituída como centro de educação, como núcleo de progresso e como comitê de pesquisadores. As concepções de universidade na perspectiva de fortalecimento do poder tornaram-se mais concretas quando algumas delas, no Brasil, passaram a formar quadros para os governos estaduais e para o governo central. Do projeto do GERES, a pesquisadora Miriam Limoeiro (1989) passa a cobrar o procedimento de elaboração desse documento e analisa a sua proposta de avaliação, estando submetida à ótica do binômio autonomia-avaliação, sendo esta a sua questão central. Por sua vez, Tavares (1998: 56) destaca a concepção de universidade contida naquele relatório que contemplava dois tipos de instituição: a) a universidade do ensino em que a pesquisa científica não era uma atividadefim, sendo substituída pelo uso do método científico incorporado à prática didática do cotidiano; b) a universidade do conhecimento, considerada modernizante, baseada no desempenho acadêmico e científico, protegida das flutuações de interesses imediatos. Ao lado de suas críticas ao modelo de universidade do governo, as entidades divulgavam projetos alternativos, os quais, como um conjunto de propostas, eram discutidos nos vários encontros promovidos por esses movimentos. Nesses projetos, foram expostas para o debate nacional questões como: o ensino público e gratuito; o padrão unitário de qualidade; a autonomia da gestão financeira e a função social da universidade voltada às “maiorias da sociedade”. O movimento dos servidores públicos federais formulou outro projeto, por intermédio de sua entidade, a FASUBRA, intitulado “Universidade dos Trabalhadores”, passando depois a denominar-se “Universidade Cidadã para os Trabalhadores”. O projeto da FASUBRA estava fundamentado em cinco pontos básicos: a) a defesa do ensino público e gratuito, entendendo-se que a universalização do ensino só se seria possível a partir da extensão da rede pública com a garantia da gratuidade; b) a autonomia e democratização como elementos imprescindíveis para a definição de seus planos administrativo, financeiro, didático-pedagógico, técnico-científico e político (autonomia e democratização só serão asseguradas se estiverem vinculadas entre si); c) o controle pela comunidade universitária, que se vincula aos seus movimentos políticos internos, com capacidade de intervir na gestão da universidade; d) a defesa do padrão único de qualidade, sendo assegurada a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão; e) o compromisso social, considerando que “a universidade tem por objetivo, através do ensino, pesquisa e extensão, contribuir para romper as desigualdades sociais e superar a alienação individual e coletiva” (SINTESPB, 1995: 16). O projeto de universidade do Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES) estava fundamentado nos itens: a) manutenção e ampliação do ensino público e gratuito; b) autonomia e funcionamento democrático da universidade, com base em colegiados e cargos de direção eletivos; c) estabelecimento de um padrão de qualidade para o ensino superior, estimulando a pesquisa e a formação intelectual; d) dotação de recursos públicos orçamentários suficientes para o ensino e a pesquisa nas universidades públicas; e) criação de condições para a adequação da universidade à realidade brasileira; f) garantia de direito à liberdade de pensamento nas contratações e nomeações para a universidade, bem como no exercício das funções e atividades acadêmicas (Cadernos ANDES, 1996). O debate contínuo desses projetos teve como um de seus méritos alertar para o processo de privatização das
391 universidades públicas brasileiras. Os movimentos sociais viam uma progressiva aceleração do empresariamento do ensino superior, algo que veio a se confirmar na década seguinte, sob a tutela do governo de Fernando Henrique Cardoso, tendo continuidade no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Aspectos importantes emergiram das análises desses projetos realizadas pela União Nacional dos Estudantes (UNE), destacando-se o Projeto Alfabetação (UNE, 1990) e apontando-se a necessidade de um projeto de universidade nacional que possibilitasse a unificação dessas lutas. Vislumbra-se, nessas formulações, a possibilidade de um caminho próprio para a universidade, sugerido em ambos os projetos. O projeto da FASUBRA destacava que a universidade precisaria contribuir para a superação das desigualdades no país, eliminando a alienação do povo. No projeto do ANDES, enfatizava-se a necessidade de a universidade definir-se como uma instituição de interesse público, adequando-se à realidade brasileira. Aparentemente, essas propostas não oferecem concepção muito distintas das existentes na tradição do ideário acadêmico. Ademais, as questões que se manifestavam como inovadoras nesses projetos geralmente não se mostravam com possibilidade de execução. Nesse sentido, fundamenta-se a crítica de Fávero (1992), alertando que não basta formular reivindicações de que, por exemplo, o ensino deva ser público e gratuito, se não existirem encaminhamentos para a obtenção da verba pública para a sua efetivação. Para a autora, a força das reivindicações, e mesmo das concepções, situa-se nos limites de suas possibilidades de efetivação. Outras críticas são feitas por pensadores do país307, manifestando que a universidade, em seu modelo, está cumprindo o seu papel. Porém, não se nega que ela se mantém voltada aos setores da burguesia nacional e não à classe dos trabalhadores. Portanto, não contempla nem o ensino nem a pesquisa, de acordo com a realidade do país e, muito menos, as necessidades das maiorias da população. Isto faz com que a universidade no Brasil caminhe com suas crises, resumidas por Oliveira (1999), como: a) crise de hegemonia, quando perde espaços no ensino, na pesquisa e na prestação de serviços para outras instituições; b) crise de legitimidade, ao não cumprir os seus objetivos, pondo sua credibilidade em questão; c) crise institucional, quando não consegue angariar os recursos necessários do Estado. Esta é uma situação que se manteve no governo Lula e perdura no atual. Em, consequência, as universidades aumentam as matrículas com a oferta de novos cursos, acompanhados da compra de vagas no setor privado. Normalmente, esses novos cursos expõem limitações físicas, comprometendo seu adequado funcionamento. Mendonça (2000), Sousa (2000), Bernheim (2001), Jezine (2006), Vasconcelos (2006), Pinheiro (2011) e Cananéa (2011), para citar apenas alguns, ao discutirem a questão, enfatizam a necessidade de que a universidade esteja comprometida socialmente pelo exercício da extensão. Para os citados autores, deve ser restabelecida a sua função social, aplicando-se elementos novos nesse debate. Essa ideia, alicerçada em experiências e vivências por todo o país, pode ajudar na abertura dos caminhos, de modo que a universidade contribua para a superação da alienação com a emancipação do povo. As ideias que estão surgindo passam pela possibilidade da organização da extensão universitária, de forma que a instituição assuma sua dimensão social, associando-se à realidade e às raízes do país308.
Extensão universitária A extensão universitária apareceu no conjunto dos debates sobre as universidades populares na Europa. Na Inglaterra, teve grande expansão a partir da promoção de cursos “livres” para a população, com o objetivo de disseminar os conhecimentos técnicos. 307
Podem ser citados Azis Ab`Saber, Florestan Fernandes, Álvaro Vieira Pinto e outros que, atualmente, constroem o Movimento Docente. 308 Ver a revista Temas em Educação. Nos. 8/9, do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFPB, 1999. Dois ensaios: 1) Em busca de modelos e medidas para a avaliação popular (Luiz Dias Rodrigues). 2) Universidade no Brasil : o embate de projetos (José Francisco de Melo Neto). Ver também, Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil.
392 Posteriormente, foi implantada nas universidades dos Estados Unidos, localizadas mais na área rural, com o específico objetivo de vender tecnologia agrícola. Por isso, foi caracterizada como uma atividade que adotava uma visão cooperativa ou rural. Outras possibilidades desenvolvidas como simples transmissora de conhecimento foram consideradas de extensão universitária. Essas visões estiveram marcadas pelo desejo de ilustrar as comunidades. Para Tavares (1996: 27), a extensão universitária continuou voltada a preparar técnicos e, “por outro lado, dispensar o mínimo de atenção às pressões das camadas populares, ainda que cada vez mais expressivas e mais reivindicativas”. A atividade de extensão se consolidou com a oferta de cursos para as pessoas que não podiam frequentar uma instituição universitária e que desejavam obter algum grau de instrução. Na América Latina, essa prática esteve vinculada diretamente aos movimentos sociais. Merece atenção, nesse percurso histórico, o Movimento de Córdoba, de 1918, em que os estudantes argentinos, pela primeira vez, enfatizaram a relação entre universidade e sociedade. Como conseqüência, a atividade de extensão na Universidade de Córdoba procurou fortalecer a função social da universidade, enfatizando a preocupação com os problemas nacionais, propondo a união da América Latina em torno das lutas contra as ditaduras e o imperialismo estadunidense. Esse movimento se fez presente no Brasil, no meio estudantil, a partir de 1938, com a criação da União Nacional dos Estudantes. Essa vinculação com as questões políticas gerais era alimentada por influências da extensão que já vinha sendo praticada pelas universidades populares criadas no país. A mais importante delas foi a Universidade Popular de São Paulo, marcada em seus cursos pela vinculação com a filosofia positivista, a partir da divulgação da cultura das elites, conforme lembra Rocha (1989). O ideário de extensão universitária foi fortalecido com a difusão cultural originária desde o Congresso Universitário, realizado em 1908, na cidade do México. Os aspectos políticos desse Congresso foram absorvidos pelo movimento dos estudantes da América Latina, particularmente no Brasil. Como resultado, defendeu-se uma extensão pautada pela transmissão de saberes e métodos de ensino e pesquisa, buscando sempre a liberdade de pensamento. Entendia-se que, pela difusão cultural, poder-se-ia integrar a universidade à vida social da população. Durante o Congresso realizado na Bahia, em 1961, a UNE priorizou a discussão sobre reforma universitária e manifestou o desejo de que a universidade fosse aberta ao povo, tanto por meio de serviços como pela promoção de cursos a serem oferecidos pelas instituições universitárias. Com base nessa compreensão, definiu-se o papel da extensão como “trincheira de defesa das reivindicações populares através da atuação política da classe universitária na defesa de reivindicações operárias, participando da gestão junto aos poderes públicos e possibilitando cobertura aos movimentos de massa” (UNE, 1961: 56). A concretização desse propósito ocorreu com a criação dos Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE, cujas ações eram pautadas nessas perspectivas: abrir a universidade ao povo e, por outro lado, levar os estudantes à realidade. Na execução dessa proposta, tem-se o seguinte impasse: Como se realizaria este papel, examinando que, sendo a universidade órgão de Estado, também assumiria o encargo de gestora e defesa das reivindicações operárias? Nas décadas de 1970 e 1980, a universidade no Brasil, sob o controle da ditadura militar, recomendou novas tarefas a serem desenvolvidas pela extensão, mesmo acompanhando o discurso dos estudantes daquele Congresso da Bahia. Para a execução dessas novas tarefas, buscou-se a inserção social dos estudantes. Para que tivessem contatos com a realidade, instituíram-se os programas denominados de Projeto Rondon e Operação Mauá. Dentro do ideário do regime militar, o projeto Rondon conduziu estudantes a todas as partes do país. Com menor intensidade, a Operação Mauá esteve mais direcionada aos estudantes da área tecnológica. Além disso, foi criado o Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária – CRUTAC, como uma modalidade de estágio para os estudantes que participassem desses programas de governo. Apesar de adotarem um discurso semelhante àquele proclamado pelos estudantes no Congresso da Bahia, os militares mudaram a metodologia de efetuação, invertendo os polos ideológicos da extensão, suprimindo a sua dimensão organizativa das classes trabalhadoras e a sua capacidade de mudanças.
393 Em consequência, a extensão ficou aprisionada aos ideários de progresso e desenvolvimento, cumprindo as iniciativas governamentais por meio desses vários programas. Para Cordeiro (1986: 51), de uma maneira geral, as iniciativas no campo da extensão universitária têm se curvado à influência cultural dominante do autoritarismo e do elitismo, esclarecendo: “Esses processos podem se constituir em um só, e a extensão, enquanto momento de vivência comunitária, poderá ser um eixo importante para as mudanças que se quer promover”. Mas essa mudança de eixo exige outras metodologias e outros processos educativos, a partir da adoção de novas pedagogias e princípios éticos, de modo a não se traduzir apenas como expressão de um fazer técnico. Esforços para se encontrar tal eixo norteador estão, atualmente, sendo desenvolvidos em diferenciadas experiências por toda a América Latina. É a partir dessas experiências que começam a ser plantados os novos esteios para a organização universitária, no sentido de contribuir-se para a superação do afastamento entre prática e teoria, bem como do distanciamento entre as atividades manuais e intelectuais. Há, nesse sentido, um avanço conceitual definido pelo Conselho de Pró-Reitores de Extensão das Universidades, em seu I Fórum, em 1987, em que a extensão, em princípio, aproxima-se das formulações reivindicadas. Nesse Fórum (BRASIL, MEC, 1987, 1), a extensão foi assim conceituada: Processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade. A extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica que encontrará, na sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será associado àquele conhecimento. Este fluxo que estabelece a troca de saberes sistematizado, acadêmico e popular, terá como consequência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira regional; a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizada deste processo dialético de teoria/prática, extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social. A partir de uma simples leitura do texto, observa-se que o conceito de extensão adotado no citado Fórum está muito próximo daquilo que a crítica aponta sobre as concepções de universidades. De acordo com o texto transcrito, a extensão precisa articular o ensino e a pesquisa, de forma indissociável. Portanto, tem uma função viabilizadora e transformadora da relação entre universidade e sociedade, adotando uma visão de mão dupla. O propósito é que as ações extensionistas enriqueçam a universidade e a comunidade com a troca de saberes acadêmicos e populares inseridos na realidade brasileira, podendo a extensão ser compreendida como um trabalho interdisciplinar. Parece até que se está diante de uma universidade ou de uma prática alternativa à tradição universitária. Não é discutida, todavia, a metodologia nem a forma como ocorrerão esses movimentos dialéticos. O conceito explicitado não caracteriza o trabalho e a sua finalidade, nem questiona o direcionamento dos produtos das ações de extensão. Além do mais, por um viés político, propõe a manutenção da sociedade nas bases estabelecidas, procurando integrar tudo que favoreça à visão integradora da sociedade. Apesar disso, adota uma compreensão de extensão que vai além das expectativas desenvolvidas desde as suas primeiras formulações, pois coloca a dimensão do trabalho como centro dessa ação. Mesmo assim, o conceito continua permeado da compreensão funcional da sociedade. Não se discutem princípios como liberdade e emancipação, e muito menos os caminhos para se chegar à indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, enfatizando, tão somente, a funcionabilidade da sociedade que precisa estar integrada. Este tem sido o papel da ação extensionista. A universidade parece manter essa postura. Extensão popular
394 É preciso ressaltar que o papel da extensão não é apenas o de se revelar como atividade de ratificação ou de integração da sociedade, por intermédio das práticas de dominação. Há exercícios acadêmicos em desenvolvimento que pretendem assegurar outros sentidos a esse fazer acadêmico. Experiências diferenciadas vêm sendo tentadas desde o início da década de 1960, como as de Paulo Freire, no SESI de Recife. Mais recentemente, as atividades de extensão passaram a ter um caráter processual na Universidade de Brasília, à época do reitorado de Cristóvão Buarque, cuja base ainda se mantém. Projetos há que adotam práticas extensionistas semelhantes, como os desenvolvidos na Universidade de Ijuí, no Rio Grande do Sul, e o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação Popular (NEPE), na Universidade Federal do Amazonas. Merecem destaque os projetos de extensão na Universidade Federal da Paraíba, como os desenvolvidos no Setor de Estudos e Assessorias aos Movimentos Populares (SEAMPO), a prática do Estágio de Vivência, em que estudantes dos cursos da área de saúde inserem-se nas comunidades durante semanas, quando da realização de seus cursos de graduação; a Incubadora de Empreendimentos Solidários, na qual os trabalhadores se organizam para a produção solidária, projeto adotado, praticamente, em todas as universidades públicas. Grupos consolidados em atividades de pesquisa em projetos de extensão, bem como em movimentos sociais vêm dando contribuições nesse campo, firmando a pesquisa em projetos de extensão popular309. Existem outros projetos em andamento, não só em universidades onde esses grupos atuam, em geral de forma isolada, expressando outra visão de mundo, outro papel para extensão universitária. Essas atividades de pesquisa nos projetos de extensão apontam para outra concepção de universidade, em que se possam fomentar, na pesquisa e no ensino, elementos emancipadores, no intento de se desenvolver um pensamento crítico. No ensino, disciplinas em nível de mestrado e doutorado aceitam a participação de pessoas interessadas naquelas temáticas, em geral pessoas que vivem-nas em seu cotidiano, sem qualquer interesse de exercício acadêmico e, apenas, como momentos de atualização, expressando a parte prática de certas teorias. O projeto CERESAT310 (Centro de Referência de Saúde do Trabalhador) é uma dessas experiências em extensão, realizada no campo da saúde. O projeto está vinculado à Universidade Federal da Paraíba, através do Núcleo de Saúde do Trabalhador (NESC). Foi criado por um grupo de profissionais da universidade, com diferenciadas formações acadêmicas, composto de médicos, geógrafos, economistas, nutricionistas, fisioterapeutas, enfermeiros, psicólogos, dentre outros. Esses profissionais estavam preocupados com a necessidade de realização de um trabalho interdisciplinar, relacionando a saúde e os processos de saúde com o processo de produção. Os dados apresentados no quadro a seguir mostram a presença de novos elementos nessa experiência, que se projeta para além do panorama dominante da extensão. Os números exprimem visões de mundo, de sociedade, de Estado, bem como concepções de práticas sociais, concepção de extensão e natureza das ações extensionistas, abrindo espaço para outras práticas e concepções no campo da extensão. O quadro contempla a caracterização daquele projeto em várias dimensões como distribuição dos temas e itens, por segmento. Nessa distribuição de temas, nota-se uma ampliação de certos aspectos que permeiam as ações extensionistas, traduzindo sua concepção e caminhos para novas práticas na universidade. O quadro foi organizado a partir da definição de dez grandes temas de interesse da pesquisa, detectados em textos e em entrevistas envolvendo participantes do projeto, tendo sido eles coordenadores, executores de projetos, membros da comunidade, além de documentos do projeto, apresentando as frequências desses indicadores.
309
Ver Melo Neto, J. F. Extensão popular. João Pessoa: Editora da UFPB, 2006. Os dados apresentados sobre o projeto CERESAT, Projeto Escola Zé Peão e Projeto Praia de Campina são resultados de pesquisa realizada na década de 1990, fazendo parte das discussões no campo da Extensão, promovidas pela UFPB. Ver MELO NETO, José Francisco. Extensão universitária – uma análise crítica. João Pessoa: Editora da UFPB, 2001.
310
395
CENTRO DE REFERÊNCIA DE SAÚDE DO TRABALHADOR - CERESAT DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO Temas
1 - Concepção mundo
2 - Concepção sociedade
3 - Concepção Estado
Itens
A C % 09 02 8 92 89 02 01 04 03 9 4 6
A % 1.1 - Visão que privilegia o mercado 07 de 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) 06 aperfeiçoando a sociedade. 1.3 - Visão transformadora 87 2.1 - Conjunto de instituições 04 de independentes 01 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 5
B % 06 02
de
11 4 55 0
22 3.1 - Estado árbitro: acima das 2 classes/autonomia. absoluta 33 3.2 Estado instrumento: 3 instrumento manipulador. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: ( contradições 45 de classe ) 00 4 - Configuração dos 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 55 interesses sociais 4.2 - Interesses voltados a grupos 7 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 43 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 02 5 - Concepção de prática social 5.2 - Processo em consonância com 98 as classes dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida 33 6 Relação independente 8 universidade-sociedade 30 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 26 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 66 7 – Concepção de 1 extensão universitária 7.2 - Via de mão dupla 06 7.3 - Trabalho social (construção de nova hegemonia) 33 8.1 - Trabalho técnico com discurso 00 8 - Natureza do modernizador trabalho social na 8.2 - Trabalho técnico com discurso 09 extensão de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso 91 transformador 9.1 - Agente de interesses do 11 9 - Papel do agente mercado ( capital ) institucional 9.2 - Agente neutro da instituição 4 9.3 - Agente comprometido com as 22 classes dominadas 85 8 10 – Pedagogia da 0.1 - Pedagogia tradicional 00 extensão universitária 0.2 Pedagogia crítica e transformadora 10
B D % 09 01 9 91 00 3 901
C D F % %F Fi % Fgi teitens ma 1136 07 336 02 1 8 9 1 1840 0 26 1668 991 443 02 443 02 1 9 1 1799 9 25 17139 96
6 00 06 119 0 116 550 11 00 1 10 41 4 3 3 0 36 33 10 66 7 00 0
03 00 07 22 11 66 1 0 8 4 7 76 90 35 05 03 06 9 9 95 97 94
02 226 4 9425 3 72
66 55 33 5 8 1 11 33 55 6 1 3 6 2 24 9 13 22 66 66 9 6 2 08 00 01 3 6 63 34 37 02 00 04
441 117
119 04 9 9 4 423 96
6 0
555 223 1 1 2
4 01 35 00 10
55 33 5 11 6 4 44 31 23 00 00 1 1 10 10
4
5 591 7
4442 9 6
51
0
7
0
3
0
1 1175 17 9
1
1
0
5
0
742 2
2
349 4
5
1
448 05 1 316 3 47
885 221
0
8
1167 117
223
2
01
111 1155
02
06 08 09 889 08 9 9 9 8 1 92 92 87 1063 92 66
332
2
554 113 5 333
00 00 1 1 5 549 100
157 3
2
549 1
8
396 0 0 0 0 A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos Fi - Frequência de indicadores Fgi - Frequência geral dos indicadores
Na pesquisa, cada um dos itens continha um conjunto de indicadores para se chegar a esses números, a partir de entrevistas ou análises dos documentos do projeto. Os dados expressam: a respeito à concepção social desses agentes acadêmicos; sua visão da relação universidade e sociedade; o papel do agente institucional (o seu próprio papel); a concepção de extensão que defendem. Mesmo que haja pessoas com distintas visões de sociedade e de extensão universitária, indicadas com três possibilidades (tema 7), a extensão aparece como um trabalho social, e não apenas como uma atividade de mão única ou mão dupla, ideias tão arraigadas em décadas anteriores. O sentido de extensão como trabalho social, com expressivo percentual de 47% de respondentes, pretende que essa atividade universitária seja um processo educativo, cultural e científico, porém voltado à estruturação de uma hegemonia das classes trabalhadoras. O trabalho estrutura-se com a própria classe subalterna, especialmente voltado à organização dos seus diferentes setores. De acordo com esse entendimento, a universidade e a comunidade apropriam-se do projeto e de seu produto final, o conhecimento. Assim concebida, a extensão passa por processos que se realimentam desse fazer, marcados por uma relação imanente entre teoria e prática. Na abordagem do Projeto Escola Zé Peão, o quadro apresentou um percentual para o tema concepção de extensão com esses mesmos indicadores: 43% para a concepção de extensão como via de mão única, 5% para a concepção de extensão como via de mão dupla e 53% para a visão de extensão como trabalho social. Na análise do projeto Praia de Campina, esses percentuais se mostraram com os seguintes valores: extensão como via de mão única, com 60%; extensão como via de mão dupla, com 18% e extensão como trabalho social, com 21%. Esses dados inspiraram outra pesquisa mais ampla, abrangendo duas décadas (1980 e 1990), sobre as concepções de extensão, a partir de projetos ligados à UFPB, mostrando os seguintes resultados311: na década de 1980, concepção da extensão como via de mão única, com 68,92%, e na década de 1990 com 51,93%; na década de 1980, concepção da extensão como via de mão dupla, com 11,33%, e na década de 1990, com 25,95%; na década de 1980, visão da extensão como trabalho social útil, com 19,75%, e na década de 1990, com 21,97%. Constata-se um decréscimo percentual na presença dos indicadores apontando a visão da extensão como via de mão única nas décadas de 1980 e 1990. Em contrapartida, observa-se um crescimento do sentido de extensão como via de mão dupla como resultado da aplicação do conceito, adotado pelo Fórum, presente nos projetos dessas décadas. Realça-se também o aparecimento da perspectiva de reconceituação da extensão como um trabalho social útil, nos vários projetos e atividades. Essa última concepção sugere a seguinte questão: Que dimensões carece ter o trabalho, de modo a torná-lo um fundamento filosófico da extensão? Por sua importância filosófica, o trabalho pertence a instâncias fundamentais na vida da sociedade. Pela educação, em seu sentido mais amplo, garante-se a preservação dos conhecimentos do passado, que são transmitidos às novas gerações. Essa transmissão dá-se por um processo de acumulação de conhecimentos, essencial à qualidade de vida material e espiritual da humanidade. O trabalho institui-se, portanto, como fator de criatividade do humano. Essa dimensão natural do trabalho foi realçada por Marx (1983:149), considerando-o como uma relação do homem com a natureza:
311
Pesquisa desenvolvida no período de maio de 1998 a setembro de 2000 pelos alunos/as Sílvio Carlos Fernandes da Silva, Karla Lucena de Souza, Izabel Marinho da Costa e Andréa Tavares A. Magalhães, como bolsistas do PIBIC/CNPQ/UFPB, sendo coordenada pelo Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto. A pesquisa analisou, além de outros aspectos das atividades extensionistas, as concepções de extensão presentes nessas atividades, na Universidade Federal da Paraíba, nas décadas de 1980 e 1990. Seguiu o mesmo itinerário metodológico dos projetos já apresentados.
397 Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. A partir das análises desses projetos, a concepção de xtensão como trabalho vem se estabelecendo de forma pouco expressiva, embora tenham surgido dados que apontam para esse ponto de vista conceitual. Com a ampliação das atividades extensionistas em que o humano defronta-se com a natureza, também se realiza, a partir dela própria, uma síntese do particular com o universal, possibilitando a ação social. O entendimento de extensão como trabalho social útil opõe-se à visão fragmentada do trabalhador em relação ao processo produtivo, no modo de produção capitalista, determinada pela divisão social do trabalho. Assim conduzida, a extensão pode efetivar e fomentar, entre seus participantes, a necessidade da conquista de cidadania como um processo de formação de cidadão crítico e ativo, consciente e sujeito de transformação, superando o idealismo contemplativo e interpretativo da natureza. Dessa forma, a extensão passa a ser exercida pela universidade e por membros da comunidade sobre a realidade objetiva. Trata-se de um trabalho coparticipado, que traz consigo as tensões de seus componentes em ação e da própria realidade objetiva. Nesse trabalho social, são estabelecidos os objetos de pesquisa para a realização e estruturação do conhecimento novo ou para as reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados são os constituintes da outra dimensão da universidade: o ensino. É um trabalho de imaginação do objeto para a pesquisa. Por sua vez, a extensão configura-se e se concretiza como um trabalho social útil, imbuído da intencionalidade de pôr em mútua correlação o ensino e a pesquisa, mirando mudanças. É um trabalho social, por não ser exercido como uma tarefa individual; é útil, levando em conta que esse trabalho pretende expressar algum interesse e atender a determinadas necessidades humanas. É um trabalho que tem na sua origem a intenção de fomentar o relacionamento entre ensino e pesquisa. Focaliza a realidade objetiva, de modo que seus resultados retornam aos produtores. Isso mostra a extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica fundamental, na busca da superação da dicotomia entre teoria e prática, convidando para os exercícios teóricos e práticos no interior do conceito de trabalho. Sem perder de vista as metodologias adotadas nesses exercícios práticos no interior de projetos em extensão, assiste-se à necessidade de se enfatizar os princípios éticos necessários para a sua efetivação, como o respeito às outras pessoas do grupo e a importância dessas relações para a promoção do outro. De acordo com esses princípios, é preciso afastar o autoritarismo reinante nas práticas sociais, de uma forma muito geral. Mesmo compreendendo a extensão como um trabalho social útil e com a intencionalidade de mudanças, suas metodologias precisam avançar para alcançar a dimensão ética do diálogo e da promoção do outro (alteridade), ampliando as mudanças necessárias às relações entre participantes de projetos e membros da comunidade. Consegue-se, dessa maneira, inserir um novo elemento conceitual para a extensão universitária que adquira a feição do popular. Assim, transforma-se em extensão popular, assegurando elementos para uma concepção de Universidade Popular. Dessa forma, a universidade passará a assumir uma postura mais concreta para contribuir, pela extensão, com a formação de um novo projeto social. Universidade popular O conceito de extensão será considerado, a partir de agora, como um trabalho social útil, cuja intencionalidade adquire um duplo viés: incrementar a indissociabilidade ensino e pesquisa e anunciar mudanças que venham combater a alienação. Dessa forma, a extensão constitui-se como um traço universal de todo o movimento, em que a sociedade, ao mesmo
398 tempo que produz o homem, é produzida por ele. Na extensão, as outras atividades da universidade (o ensino e a pesquisa) são redimensionadas nessas bases. Trata-se de um trabalho que produz conhecimento e, também, o humano como indivíduo, bem como, os demais humanos. Partindo da realidade, este trabalho supera a mera idealização de tantos objetos de pesquisa e ensino, muito comum no ambiente acadêmico. Por seu caráter coletivo, procura superar a divisão do trabalho a que as atividades universitárias, também, estão submetidas. Dessa forma, a extensão é trabalho social útil, com enfática intencionalidade de mudança. Imagina atender as necessidades da maioria da população, tornando-se elemento responsável pelo processo criador do humano. A extensão retoma o próprio papel do trabalho no processo de universalidade do indivíduo, ao resgatá-lo como sujeito do conhecimento e de sua história. A atividade da extensão não pode ser consagrada como um produto do indivíduo, pois, em sua essência, busca a universalização de seus produtos, expressando-se, portanto, como trabalho social, coletivo. Ela adquire a característica inerente ao trabalho, que consiste na inseparável ligação da atividade laboral, pura e simples, com a forma social da existência humana. Enfim, revela-se em sua dimensão política central, que é a contribuição às mudanças, pois o seu exercício contém e potencializa esse vetor. Daí a intencionalidade presente no seu conceito. Contudo, mesmo como trabalho e com as características postas, a extensão não realizará o seu intento sem a garantia de valores éticos que necessitam estar contidos na vivência do indivíduo e externados nas suas relações com o outro. O trabalho do extensionista conclama a formação desse outro humano, ao resgatar valores que pareciam estar esquecidos: o respeito ao outro e a promoção do diálogo312. A extensão adquire a dimensão do popular que, para os tempos de hoje, se manifesta com variadas percepções, conforme o quadro seguinte313. CONCEPÇÕES DE POPULAR 314 (Total de 87 indicadores selecionados das concepções de popular) CAMPOS TEÓRICOS DAS CONCEPÇÕES 1. ORIGEM - Algo é popular quando tem origem no povo, nas maiorias. Alguns indicadores: algo que vem da base; vem da experiência do povo; vem da tradição do povo; vem das classes desprivilegiadas; vem das maiorias. 2. METODOLOGIA - Algo é popular quando traz consigo um procedimento que incentive a participação do outro; um procedimento de animação do outro, ou seja, um meio de 312
QUANTITATIVO DAS CONCEPÇÕES 20,68% das compreensões externadas em todo o material coletado apontam para a visão de que algo é popular quando tem essas origens.
51,73% das compreensões externadas nas entrevistas apontam para a visão de que algo é popular quando expressa mecanismo para
Ver Melo Neto, J. F. Diálogo em Educação (Platão, Habermas e Freire). João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2011. 313 Pesquisa desenvolvida no período de fevereiro de 1999 a junho do ano 2000. Foram entrevistados dirigentes de movimentos populares (Acorda Mulher, da cidade de Bayeux, Grande João Pessoa; Projeto Beira da Linha, Bayeux; Movimento Nacional de Meninos/as de Rua, João Pessoa); de organizações não-governamentais (SAMOPS, João Pessoa; SEAMPO, João Pessoa; Núcleo de Educadores Populares da Paraíba – Rede EQUIP de Educadores, João Pessoa; AGEMTE, João Pessoa); de movimentos sindicais (Sindicato dos Professores, Sindicato dos Servidores em Saúde, Sindicato de Servidores Federais); de organizações de assessoria aos movimentos sociais (PRAC/UFPB, Mulheres de Teologia do Partido dos Trabalhadores) e de dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas do Estado da Paraíba. Ver José Francisco de Melo Neto. O que é popular? In: Edna Gusmão de Góes Brennand (orga.). O labirinto da educação popular. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2003. p. 33-57. 314 Esta pesquisa foi realizada com vinte e oito parlamentares e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em toda as regiões geográficas da Paraíba e com quinze dirigentes de movimentos sociais populares.
399 veiculação e promoção da cidadania. Alguns indicadores: algo direcionado ao povo humilde; algo que amplie canais de participação; que exercite a participação ativa; algo que ajude o outro a contribuir para tomadas de decisão, ouvindo e implementando decisões; promovendo novas formas de intervenção das massas. 3. POSICIONAMENTO POLÍTICO E FILOSÓFICO – algo é popular quando expressa um posicionamento político e filosófico diante do mundo, trazendo consigo a dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias; um posicionamento para mudanças das situações alienantes em que se vive. Alguns indicadores: algo que ajuda o outro a assumir as lutas do povo e de si mesmo; algo que atende interesses da população; que resgata a visão de um mundo em mudanças; que propõe melhoria de vida do povo; que traz a perspectiva do povo. 4. OUTROS ASPECTOS: Foram apontadas outras concepções expressando que ser popular passa pelo campo institucional. Algo que tem origem no âmbito institucional, como sindicatos, associações ambientalistas, etc. Outros entendem que ser popular é uma questão de consciência. Alguns indicadores: algo que vem de associações (comunidades de Base, movimentos dos Sem-Terra, sindicatos, sendo uma questão de consciência.
contribuir para o exercício da participação. Popular como sinônimo da própria prática.
21,84% das compreensões externadas nas entrevistas apontam para a visão de que ser popular é posicionar-se diante do mundo, tomando um posição promotora de mudanças.
5,71 % das compreensões externadas apontam para a visão de popular como algo que deve estar na consciência de cada indivíduo.
Como se observa no quadro, a expressão “popular” adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito. Esse conjunto de concepções está inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as exigências do tempo presente. Com essa configuração, evidencia-se uma base conceitual envolvendo elementos que sempre estiveram presentes nos variados momentos históricos. Portanto, têm condições de ser aplicados à extensão universitária. Esta pesquisa mostra essa dialética presente entre os elementos constitutivos do conceito. As diferentes concepções de popular acolhem todas as suas dimensões instituídas, ao mesmo tempo em que se diferenciam de cada uma delas, mantendo-as, porém, na sua formulação conceitual. Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se manifestam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias, apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que tornam-se uma exigência social. Reforça-se a compreensão de que extensão, assumindo as características do popular (extensão popular), caminha como contributo à construção da Universidade Popular. Algo consegue ser popular se tem origem no trabalho do povo, das maiorias (classes), dos que vivem e viverão do trabalho. Mas a origem apenas não basta, visto que pode nascer de agentes externos, evitando-se todo tipo de populismo que porventura possa surgir. Todavia, é preciso ter conhecimento da direção em que se está apontando aquilo que se pretende popular. É
400 preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com as lutas das maiorias, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias. Após serem fixados a direção e os interesses envolvidos, entra em cena uma segunda dimensão conceitual, que é a política. Ser popular é ter clareza de que há um papel político nessa compreensão. Essa importância política cresce, estando voltada à defesa dos interesses dessas classes majoritárias. Em um segundo momento, essas ações políticas são reativas às políticas que são impostas a essas maiorias. Reativas no sentido de experimentar alternativas ou estratégias que conduzam às iniciativas para um plano político geral de sociedade; ou ainda enquanto geradoras de ação própria e original, retirada da prática do dia-a-dia, ou quando são capazes de compor um novo tecido social com outros valores e objetivos. Ser popular significa relacionar as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo de forma permanente o seu constituinte, que é a contestação. Esse instrumento de luta se externa por meio da resistência às políticas de opressão, adicionadas com políticas de afirmação social. Uma ação é popular e, também a extensão é popular, quando forem capazes de contribuir para a construção da direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. Esse fazer político tem oportunidade de se instalar de várias maneiras ou através de diferenciadas metodologias. A metodologia que confirma algo como popular desenvolve-se no sentido de promover o diálogo entre os partícipes das ações, precisando, sobretudo, ser contributiva ao processo de se exercer a cidadania crítica. Essa cidadania requer um exercício do pensamento, na análise das questões surgentes com as suas dimensões positivas e negativas contidas em qualquer ente objeto de análise. Mas a cidadania não se resume à teoria; é preciso que o indivíduo se prepare para a ação. Portanto, as metodologias precisam contribuir no sentido de exercitar o cidadão para a crítica e para a ação. Mas qual a direção dessa ação? Ela aponta no sentido de afirmação da própria identidade como indivíduo, como grupo ou como classe social. Pretende promover as mudanças necessárias para a edificação de outra sociedade, mesmo que arriscando a ordem, assegurando direitos à justiça e que ela seja igual para todos. Na extensão popular, essas possíveis metodologias reger-se-ão por princípios éticos oriundos das exigências do trabalho. Nesse contexto, reafirmam-se como fundamentais os princípios éticos do diálogo e da promoção do outro, abrindo as condições para a promoção do pluralismo de ideias. Sem esse pluralismo, não há como se instalarem condições para a promoção de outros valores éticos, como a solidariedade, a tolerância e a promoção do bem coletivo, evitando o risco de cair no relativismo ético. Esse conceito pode ser exercitado na extensão popular, arrastando para si definições envolvendo as utopias tão necessárias para os dias atuais. Ser popular ou participar de atividades pela extensão popular é experimentar alternativas. É realizar o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trará os elementos já realizados e as tentativas de novas realizações. Isto só ocorre, contudo, quando da sua efetivação, caminhando para aquilo que se faz necessário. Trata-se de ações em extensão para promover a utopia da democracia como valor permanente, a ser vivido sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços tanto da realização dessas ações como no da não-realização, estão as suas contradições e suas dificuldades maiores. A Universidade Popular, assumindo essas características, será vivida e prosperará com esse tipo de postura popular. Trata-se de novas características, pois o elemento dominante no trabalho acadêmico é o estímulo ao individualismo, o afastamento nas relações entre docente e aluno, a incessante pretensão de promoções decorrentes das exigências de carreira, além da disputa insana por financiamentos públicos para projetos de pesquisa e outros. A Universidade Popular apropria-se dos esforços para tornar os conhecimentos acessíveis à população, pois o conhecimento só tem sentido como um bem social e coletivo. As pesquisas e seus produtos podem ser coletivizados, mesmo que haja lideranças nessas pesquisas e nas atividades de ensino. Esse esforço de se adjetivar a universidade de popular está na necessidade de que a pesquisa adquira a dimensão da emancipação, revelando-se como uma pesquisa também popular, em seu conteúdo e nas relações com os seus atores. Por sua vez, o
401 ensino com esse foco assume o desempenho pela crítica, em que as possibilidades de positividade e negatividade estão sempre presentes nas análises e encaminhando as suas determinações coletivas. A extensão popular conquistará o seu papel de recepcionadora das demandas oriundas dessas maiorias da população, tornando-se útil, também, na ajuda ao ensino e à pesquisa. A Universidade Popular, nesse novo contexto, assume a responsabilidade de realização dessa síntese dialética, produto da concretude do ensino e da pesquisa pela extensão. A Universidade Popular irá incrementar a socialização do conhecimento pelo ensino, também. O conhecimento referenciado socialmente será produzido tanto nas pesquisas básicas como nas pesquisas de ponta. Estas serão incentivadas pelas técnicas do método científico, do método fenomenológico e do método dialético, em suas variadas expressões. A produção do conhecimento na Universidade Popular é um campo aberto para as diferenciadas metodologias e técnicas de pesquisa. O ensino se norteará pelas práticas educativas populares, pois a educação popular precisa ser dominante também no campo da institucionalidade. A Universidade Popular não significa a destruição da universidade tradicional, mas o avanço em suas bases teóricas, políticas e filosóficas. A Universidade Popular é a expressão da síntese dialética das formulações, exercícios e ideias presentes na instituição universitária. Ela não será produto de espíritos iluminados como na Idade Média, nem se destacará como um centro de educação, mesmo que almeje o saber. Também não será só uma comunidade de pesquisadores, mesmo que seja um espaço de se produzir conhecimento, com lugar reservado ao pesquisador. Não terá compromisso com o progresso social, se este estiver limitado a atender apenas a grupos isolados dominantes. Não será, por outro lado, a universidade exclusivamente de promoção do poder, como modelo intelectualizado, nem uma máquina produtora de qualquer tipo de sociedade, pois essa opção é social e não institucional, mesmo que estejam sendo formados profissionais para a construção de um outro tipo de sociedade. A Universidade Popular será uma instituição sem “sustos” com o novo século. Funda-se como uma aventura humana, conforme expressão de Cristóvão Buarque (1994), presente na odisseia da humanidade em sua existência. Assume expectativas do movimento docente nacional. Será uma universidade pública, gratuita, de qualidade socialmente referenciada. Será autônoma para poder desenvolver as mais diferenciadas pesquisas, democrática em suas relações internas e nas escolhas de dirigentes; será laica para garantir de que as diferentes religiões possam, inclusive, estar representadas nesse mundo escolar, desde que não queiram impor os seus credos religiosos. Será uma universidade crítica para garantir que o conhecimento não se torne mera repetição daquilo que se estabeleceu. Por tudo isso, será uma universidade popular por ser capaz de contribuir, com princípios éticos, para o desenvolvimento humano em bases tidas como populares. Cabe, então, a pergunta: como poderia acontecer a Universidade Popular? As mais diferenciadas experiências estão em curso. Em escala ampliada, é possível delinear-se uma limitada sugestão. Apontar-se-ia a extensão popular como um caminho primeiro. Assim, os alunos e alunas iniciariam os seus estudos, no primeiro semestre, inseridos nas diferenciadas comunidades para detecção de seus problemas básicos, com o apoio de professores e com base na metodologia da pesquisa-ação. Também, adotar-se-iam outros tipos de levantamento em bases de dados nas instituições existentes nos Estados. Esses dados serviriam de referência para as discussões pela comunidade, juntamente com as equipes responsáveis pela sua sistematização. Este seria um trabalho para todos os alunos/as de qualquer curso superior. No primeiro semestre, a instituição inteira estaria envolvida com esse levantamento social. Os resultados desse primeiro semestre seriam indicados como fios condutores para todos os cursos da instituição, até o último período de formação. Nas disciplinas, poderiam estar presentes inclusive pessoas com interesse naquele conteúdo de conhecimento, sem necesariamente estarem vinculados à universidade, contribuindo com suas próprias vivencias aos jovens estudantes. Seriam as fontes inspiradoras para a organização curricular em cursos das áreas tecnológicas, da saúde, educação, artes e demais cursos da área humanística. A base inicial seria sempre o mundo real da sociedade em que a instituição está inserida. Esse trabalho inicial estaria acompanhado pela metodologia da educação popular, como um fenômeno humano de produção e apropriação dos produtos culturais. Educação popular expressa por um
402 sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituído de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas e dos grupos, com conteúdos e técnicas de avaliação processual, permeada de uma política estimuladora de transformações sociais e orientada para a liberdade, a justiça e a igualdade. Considerações Apesar de toda essa configuração, continuam presentes os desafios do ensino das ciências e da produção do conhecimento. A Universidade Popular tem por objetivo a socialização e a aplicação do conhecimento adquirido pela humanidade. Passa a ser herdeira desse conhecimento com o compromisso de repassá-lo a todos os povos, em especial àqueles com maiores dificuldades econômicas, geradas, em sua maioria, pela exploração do sistema do capital em que estão envoltos. A Universidade Popular cuidará da preparação de profissionais para o mundo do trabalho, empenhando-se em atender as necessidades de cada nação. Dedicarse-á à educação do indivíduo, estimulando o aprendizado ético da solidariedade entre os povos. A Universidade Popular será instrumento de mudanças, na medida em que intentará reverter a realidade em que esteja instalada. A superação mais radical pretendida é o aproveitamento das contribuições daqueles que colaboraram para a humanidade, de alguma maneira, nos limites e potencialidades de cada conjuntura. Nessa ação desafiadora buscará a condição de possibilidade de que a todos os setores da sociedade sejam asseguradas suas expressões, mantendo-se, contudo, o olhar voltado àquelas necessidades das maiorias da população. A Universidade Popular assegura que não se fecharão caminhos para as potencialidades individuais e de grupos, sem haver garantias de novas aberturas e possibilidades. Por fim, os fazedores da Universidade Popular estão cientes das dificuldades de se caminhar nessa direção. Portanto, é preciso haver mais discussões quanto a outros valores éticos fundantes sobre o processo educativo popular e o seu estabelecimento. Todas as temáticas desse campo permanecerão em aberto, como o currículo com as características populares, o sistema de avaliação, o financiamento público, as mudanças nas relações humanas, a institucionalidade e a efetivação de um conhecimento crítico e emancipador. Sabe-se que para se alcançar tudo isso é muito difícil, mas não se está iniciando agora. Também, não cabe a sua valorização como agente impeditivo da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de felicidade.
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405
LIVRO 3
JOSÉ FRANCISCO DE MELO NETO
EDUCAÇÃO POPULAR – enunciados teóricos
Volume 3
João Pessoa, 2014
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COLEÇÃO EXTENSÃO POPULAR Organizador: José Francisco de Melo Neto
Títulos Publicados Extensão Universitária: uma análise crítica. José Francisco de Melo Neto Extensão Universitária: diálogos populares (coletânea). José Francisco de Melo Neto (org.) Música e Mudança: uma experiência em educação popular. Hector Jorge Rossi Extensão Universitária, Autogestão e Educação Popular. José Francisco de Melo Neto Extensão Universitária é trabalho. José Francisco de Melo Neto Extensão Popular. José Francisco de Melo Neto Incubação em empreendimentos solidários populares: fragmentos teóricos (coletânea). Francisco Xavier, Iolanda Carvalho, José Francisco de Melo Neto Educação Popular: enunciados teóricos. José Francisco de Melo Neto Educação Popular: enunciados teóricos. Vol. II (coletânea). Agostinho Rosas e José Francisco de Melo Neto Educação popular: enunciados teóricos. Vol. III José Francisco de Melo Neto Usina Catende: para além dos vapores do diabo. José Francisco de Melo Neto e Lenivaldo Marques da Silva Lima. Diálogo em Educação: Platão, Habermas e Freire. José Francisco de Melo Neto Universidade Popular. José Francisco de Melo Neto Educação Paraibana: fragmentos. José Francisco de Melo Neto Colônia Leopoldina: 30 anos de lutas populares por mudanças e cidadania (1983-2013). José Francisco de Melo Neto
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Título a publicar Universidade Popular e Pesquisa GRUPO DE PESQUISA EM EXTENSÃO POPULAR – EXTELAR
Apoios: CE/UFPB (Centro de Educação); INCUBES/UFPB (Incubadora de Empreendimentos Solidários); PRAC/COEP (Pró-Reitoria de Ação Comunitária/UFPB), PPGE/UFPB (Programa de Pós-Graduação em Educação).
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APRESENTAÇÃO Entendido o diálogo como elemento ético fundante para a educação, a educação popular o assume e se configura, por sua vez, como um sistema aberto de ensino e aprendizagem, cuja filosofia convida outros valores éticos para expressar o seu fazer, a exemplo da solidariedade e da justiça. Além disso, aponta para uma teoria do conhecimento referenciada na realidade e em um procedimento da razão, em forma de intersubjetividade, expressando a intersecção do mundo objetivo das coisas, do mundo social das normas e do mundo subjetivo dos afetos – a linguagem – definindo a sua teoria de comunicação. Também, passa a pressupor uma linguagem expressa por normas vigentes geradas de manifestações que possam ser justificadas, pois do contrário não serão legítimas nem terão valor dialógico intersubjetivo. É, enfim, um fenômeno educativo pautado por uma pedagogia (metodologia) incentivadora da participação e do empoderamento das pessoas e, em especial, de grupos, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais. Esse fenômeno humano é lastreado em uma teoria política direcionada aos anseios humanos de liberdade, de justiça, de igualdade e felicidade, além de estimuladora das transformações sociais necessárias. Essa filosofia aponta para uma teoria de conhecimento pautada, necessariamente, pelo mundo real, onde tem a origem desses conhecimentos. Com uma pedagogia que lhe é própria. Traz consigo mecanismos também próprios de avaliação e definição de seus conteúdos. A explicitação política constitui elemento de sua essência mesma, acompanhada de valores éticos que forjam personalidades para além das expectativas do mundo capitalista que tanto reforça o individualismo. Educação Popular é um tipo de educação que se constitui como algo de mudança e construção de novos jeitos de vida e de relacionamento humano. Este livro apresenta reflexões de um conjunto de constituintes desse tipo de educação que podem contribuir ao avanço dos estudos teóricos do tema, seguindo a trilha dos livros anteriores: Educação popular – constituintes teóricos, volumes 1 e 2. A educação popular, enquanto educação, alimenta esse fenômeno humano de ensino e aprendizagem, pautado pelo trabalho, sendo este o responsável pela criação dos entes formadores da cultura humana e, inclusive, da própria educação popular. Os textos que seguem, com exceção o último tema, já foram editados em outros momentos. Aqui, apenas, estão apresentados de forma tal a facilitar o contato do leitor com esse esforço de contribuição ao avanço de ideias e ações em Educação Popular. O autor
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 1. O QUE É POPULAR?
...
2. EDUCAÇÃO POPULAR – dimensões histórico-ontológicas.
...
3. EDUCAÇÃO POPULAR - sistema de teorias intercomunicantes.
...
4. PAULO FREIRE E O DIÁLOGO.
...
5. EDUCAÇÃO POPULAR E „EXPERIÊNCIA‟.
...
6. EDUCAÇÃO POPULAR E UNIVERSAIS: dimensões ontosemânticas. ... CONSIDERAÇÕES.
...
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O QUE É POPULAR315? A sabedoria popular antecede a techne316 e o saber científico317. Os conteúdos da educação entre os povos têm sido quase os mesmos, isto é, de ordem ética e prática. Nessa primeira dimensão, inserem-se as orientações principistas para o bem viver como, por exemplo: honrar deuses, pais, mães e outras regras de conduta como as da prudência ou, até mesmo, definidas através de mandamentos. A segunda dimensão volta-se a aspectos comunicativos do conhecimento de profissões acumuladas por um povo, denominada pelos gregos de techne. Paralelamente ao processo educativo dentro dessas perspectivas, desenvolve-se uma sabedoria, expressa por essas regras, preceitos de prudência e mesmo superstições, baseadas na tradição oral que, no caso dos gregos, tornou-se pujante na poesia rural gnômica de Hesíodo318. A formação pela educação, como se vê, toma dois rumos distintos. Assume, em primeiro lugar, rumo dominante que passa a criar um tipo humano pautado por um conjunto de idéias pré-fixadas, cabendo-lhe o seu alcance. Esse tipo elevará como fundamental a idéia de beleza, constituindo-se como o componente central do processo educativo. A educação torna-se a busca pelo belo. Nesta perspectiva, está o pensamento de Homero, ou indiferente ou não tomando como essencial a utilidade das coisas. Assim, constrói-se o ideário dominante na Paidéia grega em que a “formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação” (Jaeger, 1995: 25). Contudo, é do campo que vem uma outra percepção do significado da educação e da formação, muito próximo, cronologicamente, dos tempos homéricos. Forma-se uma tradição que, mesmo entre os gregos, dará outra função à poesia, ao objeto dos poemas, relacionando-se com outro público e distanciando-se da perspectiva homérica. O poeta Hesíodo traz para o processo de educação humana a experiência de seu trabalho, a experiência do agricultor, dirigindo-se a seus conterrâneos, agricultores gregos e pequenos proprietários. Está na poesia hesiódica não mais a medida do homem pela sua árvore genealógica, mas pelo seu trabalho, que o torna independente e feliz. Como se vê, essas duas fontes permeiam os processos educativos dos gregos. Em Homero, há uma esfera social dominante voltada ao mundo e à cultura dos nobres. Uma fonte que dará maior ênfase a uma educação para a qualidade dos nobres e dos heróis, valorizando o heroísmo expresso pelas lutas, em campo aberto, entre cavaleiros nobres e seus adversários. Em Hesíodo, especialmente no seu poema os Erga319, há uma poesia arraigada à terra como representação da vida campestre, rústica, simples, suscitando uma outra fonte da cultura grega: o valor do trabalho. Nessa perspectiva, o poeta vê o mundo através de duas lutas sobre a terra e que são distintas, sobressaindo-se, todavia, a luta abaixo narrada: Desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico apressado em plantar, semear e casa beneficiar; o vizinho inveja ao vizinho apressado atrás da riqueza; boa Luta para os homens esta é; 315
Pesquisa realizada entre militantes políticos de movimentos sociais populares e/ou partidários de uma alternativa social, democrática e popular. 316 Na filosofia de Platão e Aristóteles adquire o significado atual da palavra teoria, contrapondo-se à mera experiência. Teoria em função de uma prática (Aristóteles), diferente da perspectiva de Platão como teoria da “ciência pura”. 317 Capítulo do livro: O labirinto da educação popular. Edna Gusmão de Goes Brennand (org.) João Pessoa: UFPB/PPGE/Editora Universitária/UFPB, 2003. 318 Homero e Hesíodo, poetas gregos, que viveram entre os séculos VIII e VII a.C. e marcaram a educação e a formação humana, grega e ocidental. 319 Denominados, posteriormente, de Os trabalhos e os dias.
411 o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao carpinteiro, o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo. Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a Luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos (Hesíodo, 1996: 23-24). Além disso, a vida no campo expressa o seu heroísmo através da luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores, reclamando também disciplina e contendo qualidades de valor educativo permanente para o humano. Por trabalho os homens são ricos em rebanhos e recursos E, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais. O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é! (Hesíodo, 1996: 45). Hesíodo passa a condenar o ocioso e o compara a zangões de colméias que destroem os esforços das abelhas, salientando, ainda mais, o papel do trabalho no processo de educação humana, exigindo uma vida de trabalho: “Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho” (Jaeger, 1994: 85). Em “Os trabalhos e os dias”, o poeta exprime maiores detalhamentos da vida no campo, sobretudo, na segunda parte, as tradições e as regras sobre o trabalho do campo em suas várias estações do ano, regras de vestuário de acordo com as estações, suas máximas morais e suas proibições. A sua forma, o seu conteúdo e a sua estrutura revelam imediatamente a sua herança popular (grifo nosso). Opõem-se totalmente à cultura da nobreza. A educação e a prudência na vida do povo não conhecem nada de semelhante à formação da personalidade total do homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza igual no uso das armas e das palavras, nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavaleiresco. Em contrapartida, impõe-se uma ética vigorosa e constante, que se conserva imutável através dos séculos, na vida material dos componentes e no trabalho diário da sua profissão. Este código é mais real e mais próximo da Terra, embora lhe falte uma grande meta ideal (ibid.: 91). É bom lembrar a figura de Prometeu que, furtando o fogo de Zeus, repassando-o aos humanos e, por isso, é merecedor de castigo. “Oculto retem o deus o vital para os homens; senão comodamente em um só dia trabalharias para teres por um ano, podendo em ócio ficar” (Hesíodo, 1996: 25). O raio do soberano do Olimpo não mais será orientado em proveito dos mortais, não mais garantirá o sustento através do produto da terra, de forma natural. O surgimento do trabalho é expressão do conflito entre Zeus e Prometeu e, também, da separação entre deuses e humanos que viviam juntos. “Agora, o homem deverá trabalhar sua terra para conseguir frutos. É o fim da idade do ouro, cujo mito marca claramente a oposição entre a fecundidade e o trabalho” (Hesíodo, 1979: 13). A obra “Os trabalhos e os dias” constitui um fecho da expressão educativa fundada na forma descritiva da terra, através do trabalho cotidiano, revelando a totalidade da vida, seu ritmo e beleza, justeza e honradez, que fundamentam a ordem moral do mundo, englobando, ainda, uma ética do trabalho e da profissão que não vivem separados no pensamento hesiódico. Esse rico tesouro experiencial deriva. através da vida e do trabalho, de uma tradição milenar já bastante enraizada, externando um vigor dessa sua realidade que deixa de lado o convencionalismo poético de alguns cantos homéricos. Um vigor que só estimula, com toda a plenitude, a vida de trabalho no campo. Hesíodo torna-se um arauto dessa intimidade com a terra, planeando os próprios valores nesse estilo de viver, encontrando, mesmo na aspereza e nas atividades do dia-a-dia, um significado e uma finalidade.
412 Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular (grifo nosso), excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a sua própria forma e o seu ethos exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida” (Jaeger, 1994: 103). O conteúdo dos poemas de Hesíodo tem compreensão limitada aos camponeses, marcados pelo estilo próprio de viver e de se identificar com aquelas características próprias da vida campesina. Já o conteúdo moral implícito é acessível a qualquer povo. Mas, a identificação maior da educação grega não está no campo. É na polis onde se realiza a formação mais marcante e acabada. Todavia, importância igual, ou mesmo maior, foi dada a Hesíodo pelo povo grego, ao torná-lo um educador que está orientado para os ideais do trabalho e da justiça. Desde a sua época, censurava senhores venais quando do exercício de sua função de julgamento, atropelando o direito. Direito que se transforma em luta de classe, antecipando-o como um reclamo universal. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos” (Jaeger, 1994: 134). A dimensão educativa marcante, em Hesíodo, estava voltada à realidade mesma e além disso, exigia dessa realidade o ponto de partida para o seu desenvolvimento. Um tipo de educação que busca a afirmação daquele que se educa. Educação fora de qualquer dimensão ideal e sim, fruto do ambiente, possibilitando a dimensão de universalidade, exigida por qualquer processo educativo. A educação nesses moldes conduz para a afirmação do educando ao se voltar à sua realidade e, sobretudo, por ter nessa realidade o ponto de partida e o ponto de chegada do ato educativo. Enquanto se afirma, procura incessantemente, a justiça como a medida necessária ao indivíduo, definindo a reivindicação do direito para todos. Estão se constituindo, dessa maneira, os elementos constantes do processo educativo, voltados a todos aqueles que não são reconhecidos (as maiorias da população ou os populares), sendo-lhes negada a justiça. A procura por justiça e pela afirmação de um povo, de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do processo educativo, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, durante a Idade Média. Está presente, inclusive, nos dias atuais, como uma marca dos movimentos sociais populares, o grande esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como forma de definição de seu campo de ação política e educativa. Para Calado (1999: 23), essa busca de construção da identidade “implica, de um lado, o esforço de identificar e superar adversidades interpostas a tal caminhada, e, de outro, perseguir determinado alvo, objetivos ou mesmo um projeto alternativo „ao que aí está‟ “. Este aspecto do popular já se esboçara em comunidades antigas, como a judaica, com as mesmas características construtoras de identidade. A Bíblia narra vários episódios mostrando revoltas populares presentes na história do povo judeu. Revoltas em que o povo lutava pela sobrevivência e pela afirmação de sua identidade e por justiça igual para todos. Nos primórdios da Idade Média, são marcantes os movimentos de contestação contra a cobrança obrigatória do dízimo e o acúmulo de terras, por parte da Igreja Cristã. Para o historiador Hoonaert (1986), constituíram-se como “um grande movimento popular”. Ainda na Idade Média, segundo Calado (1999), ocorreram vários movimentos sociais populares com características semelhantes àquelas presentes na antigüidade e, marcadamente, com dimensões subversivas à situação em vigor. Expressaram sua própria afirmação e resistência aos ditames e mecanismos de controle social da época, sobretudo à poderosa Inquisição. O referido autor destaca os cátaros ou albigenses, apresentando a sua indignação diante da ordem religiosa vigente, e seu combate sistemático ao estado de violência e de corrupção que se ampliava com a nobreza feudal e pela hierarquia eclesiástica. Eram movimentos compostos de gente simples, das classes populares. É marcante a presença dos valdenses e as beguínas que, juntos, apresentavam em comum (como marca do popular contida nesses movimentos) a contestação e a resistência, definindo as suas próprias alternativas.
413 Ao mesmo tempo em que se insurgem contra as práticas e os métodos do establishment eclesiástico, tratavam de anunciar uma ordem alternativa à de então, por seu discurso e por suas práticas, por meio das quais, mais do que propriamente inovar, buscavam recuperar os valores fundantes do Cristianismo (ibid.: 81). Na modernidade, são freqüentes os movimentos que marcam as lutas pela superação da situação política dominante. Contudo, é em Marx que se encontra um avanço fundamental na busca por alternativa, em “O manifesto comunista”. Nessa obra, ele aponta o encaminhamento, à classe proletária (classes trabalhadoras, classes humildes, classes populares), a necessidade de luta e de alternativa, ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999: 30), fecundando os movimentos de libertação, em todo o século XX, com a sua célebre orientação: Proletários de todos os países, uni-vos. Mas, neste final e início de séculos, o que vem sendo entendido como popular? O que revelam, nesse sentido, os movimentos sociais que atuam na organização do povo, na organização dos trabalhadores? Nos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade, várias experiências de grupos políticos320 e partidos políticos trazem o termo popular em suas bandeiras de lutas, seus projetos ou nas formulações políticas. A insurreição de 1935, no Brasil, orienta-se por um “Programa de governo popular nacional revolucionário”321. Esse programa tem no popular a expressão de interesses das “grandes massas da população”, adquirindo a dimensão de controle direto das ações políticas pelo povo, buscando a democracia e a liberdade de expressão. A Frente Popular do Chile traz nas suas formulações internas a necessidade da ampliação da própria Frente, reconhecendo a insuficiência da unidade, envolvendo simplesmente, a classe operária. Trata-se de uma frente política que vê no conceito de popular a possibilidade de se contar com outros e novos aliados. Com esta mesma perspectiva, surge o Partido Popular, no México322, que veicula uma compreensão do termo com maior abrangência do que aquela da Frente, considerando que pelo popular é possível um grupo político de cooperação com o governo. A esse respeito, Löwy (1999: 168) esclarece: A elevação do nível de vida do povo interessa tanto ao proletariado e aos camponeses, quanto às pessoas de classe média e aos membros das organizações burguesas progressistas. Defender sua soberania e a independência da nação interessa ao proletariado, aos camponeses, à pequena burguesia da cidade, à grande burguesia progressista do país. Também no Chile, dá-se a composição entre o MIR e a Unidade Popular323 que saem da clandestinidade, após a vitória de Allende, tendo no popular a perspectiva de poder autônomo, independente e alternativo ao Estado Burguês, combatendo a estratégia reformista que sejam as massas subordinadas à democracia desse tipo de Estado. Já aqui, no Brasil, o Partido Comunista
320
Para uma visão mais completa desses grupos políticos, com textos que os orientaram nas ações políticas, ver: Lowy, Michael. O marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1999. 321 É um documento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente político-militar do PCB com a ala esquerda do „tenentismo‟ que lideram a sublevação de 1935. 322 O Partido Popular é fundado, no México, por Vicente Lombardo Toledano que depois passou a se denominar Partido Popular Socialista (PPS). Um partido de oposição fundado para cooperar com o governo. 323 Unidade Popular se constitui como uma coalizão de partidos de esquerda. O MIR, nessa frente, desenvolve-se, sobretudo, a partir das frentes de massas Movimento Camponês Revolucionário, Movimento dos Favelados, Frente de Trabalhadores Revolucionários, junto com a ala esquerda da Unidade Popular, a esquerda cristã e outros. O MIR contrapõe-se estrategicamente ao PC chileno que defendia aliança das forças populares com a burguesia nacional.
414 do Brasil (PC do B)324 lança a “guerra popular”. Ao mostrar o caminho para essa guerra, expressa uma concepção voltada à ampliação dos agentes dessa revolução: o povo.. Outro movimento marcante na história política da esquerda no Brasil é a criação do Partido dos Trabalhadores325 que formula uma “Estratégica democrática e popular”. Trata-se de uma perspectiva que concebe o popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da classe trabalhadora, na construção da democracia. “Na verdade, a democracia interessa, sobretudo, aos trabalhadores e às massas populares” (Resoluções, 1998: 429). Aqui, o popular tem um nítido componente classista, abrangendo as classes trabalhadoras, os camponeses, os setores médios da sociedade, além de setores da pequena burguesia. Popular ainda aparece em movimentos como o do Exército Zapatista de Libertação Nacional326, inserido no caudal teórico reivindicatório e traduzido pela aspiração de democracia e liberdade. “Nossa luta se apega ao direito constitucional e é motivada pela justiça e pela igualdade” (Primeira Declaração da Selva Lacandona, In: Lowy, 1999: 515). Nesse contexto de luta pela vida, também no Brasil, em especial decorrente da questão fundiária surge, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST)327 que defende a reforma agrária, com forte dimensão popular. Mas essa discussão conceitual passa por intelectuais, basicamente por aqueles que atuam no campo da Educação Popular. Paulo Freire, por exemplo, em suas duas importantes obras, “A Educação como Prática de Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, externa seu entendimento de popular como sinônimo de oprimido. Daquele que vive sem as condições elementares para o exercício de sua cidadania, considerando que também está fora da posse e uso dos bens materiais produzidos socialmente. O popular adquire, a partir da ótica da cultura do povo, um significado específico no mundo em que é produzido, baseando-se no resgate cultural desse povo. Os processos simbólicos têm razão no ambiente da própria comunidade, porém no sentido da ampliação do horizonte cultural das classes. O conceito é o elemento adjetivante da educação, enquanto propõe a construção das utopias libertárias, na tentativa de superação da exploração do oprimido. Para Jiménez (1988), é importante a construção dos setores populares com o papel de defender seus interesses, construindo também a sua própria identidade cultural. Manfredi (1980) associa o popular, vinculado à educação, no sentido de prática para a autonomia, enquanto seja capaz de gerar um saber-instrumento e, sobretudo, quando contribui para a construção de direção política. Wanderley (1979 e 1980) vincula o conceito de popular ao de classes populares328 como algo que é legítimo, que traduz interesses dessas classes, podendo adquirir o significado como algo “do povo”. O termo popular tem se apresentado com diferenciados significados, como se pode vê em Bezerra (1980). Ao estudar as novas dimensões entre as práticas de educação popular, no final da década de 50 e início dos anos 60, o autor mostra um conceito atrelado a essas práticas direcionadas para o exercício da cidadania, 324
Até o final da década de 60, o PC do B, nega-se a comprometer com processos de luta armada, realizando contudo, a sua própria experiência, de orientação maoísta, na década de 70 - uma guerrilha rural na Amazônia - sendo dizimada pela ditadura militar. 325 O Partido dos Trabalhadores(PT) foi criado em fevereiro de 1980. Decide, no seu 7 o. Encontro Nacional, adotar o socialismo petista, inspirado numa tradição marxista anticapitalista, expresso por uma visão de cultura política pluralista, propondo-se democrático e libertário. 326 Surge em Chiapas, México, em 1994. Esse movimento arrasta consigo a tradição de luta do povo mexicano. Uma organização guerrilheira de tipo novo enquanto não aspira à derrubada e tomada do poder, mas a luta com a sociedade civil mexicana pela conquista de democracia e justiça. 327 MST, um movimento deste final de século, no Brasil. Atento às questões agrárias, em 1995, lançou um programa de reforma agrária para o país. É um movimento que se reivindica de nenhuma doutrina política, mas nas suas análises sobre o país está explícita a influência do marxismo. 328 “Classes populares, pois serão entendidas no plural, compreendendo o operariado industrial, a classe trabalhadora em geral, os desempregados e subempregados, o campesinato, os indígenas, os funcionários públicos, os profissionais e alguns setores da pequena burguesia”. Luiz Eduardo W. Wanderley, Educação popular e processo de democratização. In: A questão política da educação popular. Brasiliense, 2a. São Paulo, 1980.
415 no sentido de que as maiorias possam assumir o seu papel sócio-político naquela conjuntura. O conceito retoma uma política de resistência, como uma necessidade para os grupos populares (do povo) na busca de mudanças, “no estabelecimento de melhor padrão de funcionamento da sociedade”(ibid.: 26). Na compreensão de Brandão (1980: 129), o popular vincula-se à classe e à liberdade, ao mostrar que “o horizonte da educação popular não é o homem educado, é o homem convertido em classe. É o homem libertado”. Para Beisiegel (1992), o popular vem atrelado às práticas educativas em educação popular. Nesse sentido, a origem desse agir educativo, historicamente, está também nas hostes do Estado e suas formulações têm sido geradas nas elites intelectuais. Todavia, esses processos expressam um entendimento como algo necessário, sendo útil à preparação da coletividade para a realização de fins determinados. Souza (1999) vincula o popular aos movimentos sociais. Esses movimentos expressam correntes de opiniões capazes de firmar interesses diante de posicionamentos contrários dos dominantes. Elas são externadas sobre os vários campos da existência individual e coletiva desses setores da sociedade. Nesse sentido, o autor considera os “segmentos sociais explorados, oprimidos e subordinados, cujos temas, quase sempre de maior incidência em suas vidas, em seu cotidiano são: trabalho, habitação, alimentação, participação, dignidade, paz, direitos humanos, meio-ambiente, gênero, gerações etc” (ibid.: 38). Essa questão conceitual também passa pelo debate sobre comunicação. Nesse sentido, é necessária a apresentação da perspectiva do popular no seio da comunicação nos movimentos sociais. Assim, pode adquirir também outras conotações como enfoca Peluzzo (1998: 118): a) o popular-folclórico, que abarca expressões do senso comum, presentes nas festas, danças, ritos, crenças costumes e outras formas; b) o popular-massivo, que se inscreve no universo da indústria cultural, adquirindo três outras dimensões, envolvendo: a apropriação e a incorporação de linguagens, de religiosidade ou outras características do povo; a influencia e a aceitação de certos programas massivos de rádio e TV; as programações voltadas aos problemas da comunidade, entendidos como de utilidade pública; c) o popular-alternativo, que se situa no universo dos movimentos sociais. Esta última forma caracteriza-se como algo novo, na medida em que vincula a comunicação popular a algo voltado às classes subalternas da sociedade, às “lutas do povo”, adquirindo duas possibilidades, segundo Canclini (1987): a primeira concebe o popular como sendo algo libertador, revolucionário e portador de conteúdos críticos, concretizando-se através de alternativas marcantes no início da década de 80; a segunda nasce nos anos 90, diante das mudanças que vêm ocorrendo. Nessa concepção, o popular apresenta-se numa perspectiva dialética e mais flexível, como algo que contribua para a democratização da sociedade e da cultura. Na perspectiva do popular como algo que promove a democracia, segundo Rodrigues (1999: 23), há a exigência de que os grupos que compõem o povo precisam se comportar democraticamente. Para ele, “muito mais através de ações que de palavras, a Educação Popular objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua”. Esclarecedora, contudo, é a perspectiva do popular no campo da saúde, como expressão daqueles que são trabalhadores ou seus filhos. São os infectados por várias doenças ao mesmo tempo. A esse respeito, Vasconcelos (1999: 21) mostra que: Diarréia, escabiose (sarna), verminoses intestinais, impetigo (perebas), micoses cutâneas, doenças venéreas, infeccões exantemáticas agudas (como catapora, rubéola e sarampo), resfriados, pediculose (infestação por piolho), pneumonia, tungíase (bicho-de-pé), faringites e outras doenças infecciosas e parasitárias fazem parte da rotina diária das famílias das classes populares brasileiras.
416 Mas que compreensões329 estão sendo veiculadas por aqueles que vivenciam, dirigem ou assessoram movimentos sociais? Neste final de século, as concepções continuam muito variadas. Dirigentes de movimentos sociais, no campo do sindicalismo, estão compreendendo o popular “como toda e qualquer ação que provoque transformação, defendendo os interesses da maioria da população”330. É uma perspectiva que insere a visão classista no conceito, compreendendo como classe a maioria da população. Para outros dirigentes de movimentos fora da estrutura sindical, o popular significa “ações ligadas a uma parcela da sociedade que não tem acesso aos direitos, ao trabalho, enfim ao mínimo de condições para uma vida digna” 331. Uma outra percepção vincula-o ao projeto político-popular como “um projeto de transformação social que saia dos modos de produção, organização e valores capitalistas, tendo uma concepção socialista de justiça social” 332. Ser popular é um exercício de transcendência do modo de produção capitalista. Pode ainda conter uma metodologia que contenha “procedimentos de ação política que se articulem com as demandas dos excluídos”333. O popular implica, originariamente, uma vinculação aos setores excluídos (povo) dos bens culturais produzidos socialmente pela sociedade. Expressa, ainda, algo que “vem do povo, da classe subalterna da sociedade e atendendo aos interesses desta classe”334. Ou mesmo como “aquilo que seja realizado na perspectiva de transformar a realidade, de conscientizar e libertar” 335. É importante destacar, nesse percurso conceitual, as diferenciadas alternativas apresentadas por dirigentes partidários que têm em suas formulações estratégicas de sociedade a dimensão do popular, como os que defendem um “Programa democrático e popular” para o país. É fácil perceber-se quão variadas têm sido as compreensões do termo entre militantes partidários ou de movimentos sociais, refletindo-se em suas ações políticas nas cidades onde realizam suas políticas. Tornou-se possível, dessa maneira, a „catalogação‟ das visões externadas, em quatro grandes blocos, como mostra o quadro a seguir. Há um bloco daqueles que compreendem o popular como algo que está, necessariamente, originado nas classes sociais, em particular na classe trabalhadora, também disseminadas em conceitos como: as maiorias, o povo, a população, os mais sofridos ou os excluídos. Um outro bloco vislumbra o popular como algo que se expressa por encaminhamentos dirigidos a essas maiorias, enfim, pautado em procedimentos. Nessa concepção, ser popular é tornar-se expressão de uma metodologia, mas só terá significado quando expressar uma visão de mundo em mudança, contendo em suas ações a dimensão de propor saídas para as situações de miséria vividas pelo povo. É uma visão que exige iniciativas no plano político, normalmente, originais, pois marcam a própria autonomia desses movimentos, que constrói um novo tecido social embasado em outros valores e objetivos. Esta perspectiva, entretanto, é bastante minoritária entre os ativistas dos movimentos sociais. Há, ainda, outras visões, pouco expressivas quantitativamente ou prisioneiras da idealização existente nos movimentos sociais populares.
329
Pesquisa desenvolvida no período de fevereiro de 1999 a junho do ano 2000. Foram entrevistados dirigentes de movimentos populares (Acorda Mulher, da cidade de Bayeux, Grande João Pessoa; Projeto Beira da Linha, Bayeux; Movimento Nacional de Meninos/as de Rua, João Pessoa); de organizações não governamentais (SAMOPS, João Pessoa; SEAMPO, João Pessoa; Núcleo de Educadores Populares da Paraíba – Rede EQUIP de Educadores, João Pessoa; AGEMTE, João Pessoa); movimento sindical (Sindicato dos Professores, Sindicato dos Servidores em Saúde, Sindicato de Servidores Federais); organizações de assessoria aos movimentos sociais (PRAC/UFPB, Mulheres de Teologia do Partido dos Trabalhadores) e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas do Estado da Paraíba. 330 Entrevista com dirigente do sindicato dos professores da rede oficial do Estado. 331 Entrevista com dirigente do Movimento Acorda Mulher, Bayeux, Pb 332 Entrevista com dirigente do Projeto Beira da Linha, Bayeux, Pb. 333 Entrevista com dirigente do Movimento Nacional de Meninos de Rua/Pb. 334 Entrevistas com assessorias do SEAMPO/UFPB; Rede de Educadores/EQUIP/Pb e AGEMTE/Pb. 335 Entrevistas com dirigentes do Sindicato dos Servidores da Saúde e Sindicato dos Servidores Federais/Pb.
417
CONCEPÇÕES DE POPULAR 336
CAMPOS TEÓRICOS DAS CONCEPÇÕES
QUANTITATIVO DAS CONCEPÇÕES
1. ORIGEM Algo é popular quando tem origem no povo, nas maiorias. 20,68% das compreensões externas apontam Alguns indicadores: vem da base; vem da para visão de que algo é popular quando tem experiência do povo; vem da tradição do povo; essas origens. vem das classes desprivilegiadas; vem das maiorias, ...
2. METODOLOGIA Algo é popular quando traz consigo um procedimento que incentive a participação, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a 51,73% das compreensões externadas nas busca da cidadania. entrevistas apontam para visão de que algo é popular se expressar mecanismo para contribuir Alguns indicadores: direcionado ao povo para o exercício da participação. Popular como humilde; ampliando canais de participação; sinônimo da própria prática. exercitando participação ativa; possibilitando tomada de decisão; ouvindo e implementando decisões; promovendo novas formas de intervenção das massas; ...
3. POSICIONAMENTO FILOSÓFICO
POLÍTICO
E
Algo é popular se expressa um cristalino posicionamento político e filosófico diante do mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias.
21,84% das compreensões externadas nas entrevistas apontam para a visão de que ser popular é posicionar-se diante do mundo, tomando um posição promotora de mudanças.
Alguns indicadores: assumindo as lutas do povo; 336
Entrevistas aplicadas a vinte e oito dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em toda as regiões geográficas da Paraíba e quinze dirigentes de movimentos sociais populares.
418 atendendo interesses da população; resgatando a visão de um mundo em mudanças; propondo melhoria de vida do povo; trazendo a perspectiva do povo; ...
4. OUTROS ASPECTOS Surgem outras concepções trazendo as possibilidades de que ser popular passa pelo 5,71 % compreendem a questão do popular institucional. Pode ter origem no institucional, como algo que deverá estar na consciência de como sindicatos, associações ambientalistas, cada indivíduo. etc. Outros entendem que o ser popular é uma questão de consciência. Alguns Indicadores Algo que vem de associação (comunidades de Base, movimentos dos Sem-Terra, sindicato...); uma questão de consciência.
Total de indicadores selecionados das concepções de popular: 87 (oitenta e sete) indicadores. Como se vê, popular adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as atuais exigências. Nessa perspectiva, é possível mostrar um movimento conceitual que envolva os elementos que sempre estiveram presentes nos variados momentos históricos e outros que foram sendo assimilados com o tempo. A pesquisa mostra essa dialética entre os elementos constitutivos do conceito. O termo relaciona todas as suas dimensões constitutivas ao mesmo tempo em que se diferencia de cada uma delas, porém mantendo-as na sua formulação conceitual. Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, se tornam uma exigência social. Algo pode ser popular se tem origem nos esforços, no trabalho do povo, das maiorias (classes), dos que vivem e viverão do trabalho. Mas a origem apenas não basta. Esta, inclusive, pode nascer de agentes externos, evitando-se, contudo, todo tipo de populismo que porventura possa surgir. Todavia, é preciso ter-se conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. É preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias. Ao se definirem a direção e os interesses envolvidos, entra em cena uma segunda dimensão conceitual, que é a dimensão política. Ser popular é ter clareza de que há um papel político nessa definição. Essa dimensão política deve estar voltada à defesa dos interesses desses setores das maiorias ou das classes majoritárias. Em um segundo momento, essas ações políticas são, necessariamente, reativas às formulações ou às políticas que deverão estar sendo impostas a essas maiorias. Reativas no sentido de busca de alternativas ou de estratégias que conduzam às iniciativas para um plano político geral de sociedade. Reativas enquanto geradoras de ação própria e, normalmente, original, retirada da prática do dia-a-dia, ou quando se tornam capazes de compor um novo tecido social com outros valores e objetivos. Ser popular, portanto,
419 significa estar relacionando as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação. É estar se externando através da resistência às políticas de opressão e adicionadas com políticas de afirmação social. Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. Contudo, esse fazer político pode se expressar de várias maneiras ou através de diferenciadas metodologias. A metodologia que confirma algo como popular vai no sentido de promover o diálogo entre os partícipes das ações e, sobretudo, que seja contributiva ao processo de se exercer a cidadania crítica. Cidadania que se constitua como um exercício do pensamento, na busca das questões com as suas dimensões positivas e negativas contidas em qualquer ente de desejo de análise. Mas, a cidadania não se resume à análise. É preciso também que o indivíduo se prepare para a ação, para desenvolver metodologias que exercitem o cidadão para a crítica e para a ação. Mas para que essa ação? Sua direção aponta no sentido de afirmação de sua própria identidade como indivíduo, como grupo ou como classe social. Busca ainda promover as mudanças que são necessárias para a construção de uma outra sociedade, mesmo que arriscando a ordem para que todos tenham direitos, e assim a justiça, efetivamente, seja igual para todos. Essa metodologia, entretanto, rege-se por princípios éticos oriundos também das exigências do trabalho. Ser popular é estar dirigido por princípios voltados àquelas maiorias. Nesse contexto, é que se reafirma como fundamental o princípio do diálogo, oferecendo condições para a promoção do pluralismo das idéias. Este deve ter condições de promover princípios como a solidariedade e a tolerância, sem cair no relativismo ético, na busca incessante da promoção do bem coletivo. Esse conceito arrasta para si definições envolvendo as utopias tão necessárias para os dias atuais. Ser popular é tentar alternativas. É estar realizando o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trará os elementos já realizados e tentativas de novas realizações. Isto só ocorre, contudo, quando da sua realização mesma, caminhando para aquilo que, efetivamente, é o necessário. A utopia da democracia, como valor permanente a ser vivida sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços da realização e da não-realização, estão as suas contradições e suas dificuldades maiores. Entretanto, não podem transformar-se em agentes impeditivos da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de liberdade e de felicidade.
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EDUCAÇÃO POPULAR: dimensões histórico-ontológicas337 Constituintes empíricos Experiências várias, no campo da educação, forma ou estão sendo relatadas e compreendidas como atividades em educação popular. Elas têm se originado, ora de setores organizados da sociedade civil, ora de instâncias do próprio Estado. Cada experiência apresenta suas características próprias, onde se destacam metodologias, avaliações e formas de desenvolvimento dessas atividades, todas se identificando como atividades no campo da educação popular. É possível constatar-se que atividades com apelo popular têm se desenvolvido também no Brasil, a partir de universidades como a Universidade Livre de São Paulo, que funcionou de 1911 a 1917. Ali se realizavam conferências desprovidas de conotação de classe social, tendo em vista que vinham desvinculadas dos movimentos sociais da época, que eclodiam em forma de greves. Várias outras iniciativas semelhantes a estas foram sendo promovidas, tendo como origem a universidade, caracterizando-se por estarem voltadas à população, mas ignoradas pelas próprias classes populares. Pode-se destacar que essas experiências estavam muito mais presas ao idealismo de segmentos da comunidade acadêmica do que à busca de respostas às necessidades e interesses da população. São dessa mesma época as iniciativas educacionais originárias dos trabalhadores e definidas como escolas partidárias ou escolas sindicais tanto anarquistas quanto socialistas, mas que não encontraram apoio de segmentos universitários. Na universidade, as tentativas de algum segmento voltadas a atividades em educação popular foram conduzidas pela extensão universitária, compreendida como realização de cursos, solução de problemas sociais ou mesmo divulgação ou propaganda de ideias e princípios salvadores dos altos interesses nacionais. Em estudos sobre a extensão universitária, dessa época, na Universidade de São Paulo, Fávero (1980, p. 192) faz ver que ela tinha por objetivo “realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e das artes, por meio de cursos sintéticos, conferências, palestras, difusão pelo rádio, filmes científicos e congêneres”. Era um conjunto de atividades voltadas para a população não participante da comunidade acadêmica e, particularmente, para o povo. Tratavase de um processo entendido como de educação para as massas, um processo de educação popular. Segundo a aludida pesquisadora, essa perspectiva foi posteriormente assumida pela Universidade do Distrito Federal. Dentre os seus objetivos, encontrava-se o de “propagar as aquisições da ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de extensão popular” (ibid., p. 192). O que se vislumbrava nesse conjunto de atividades era a existência de um discurso pelo popular, mas que, segundo Fagundes (1986, p. 434), sua realização “acabou sendo feita em nome das classes subalternas, mas em benefício das classes dominantes”. Esse discurso pelo popular estava presente nas mais variadas correntes políticas surgidas no Brasil e em diferentes instituições da sociedade civil ou do Estado, tendo sido assumido pelas facções de direita e de esquerda em toda a história do país. São marcantes as políticas getulistas e as do início da década de sessenta – as reformas de base de Jango. Ainda, nos dias de hoje, há políticas que, mesmo adquirindo diferenciadas conotações ideológicas, expressam esse mesmo conteúdo discursivo. Mas, não só através de instituições de Estado foram formuladas políticas para o país. Também vários movimentos sociais se apresentaram à sociedade com suas formulações mudancistas voltadas às perspectivas do povo. A UNE, em seu Congresso da Bahia (UNE, 1961, p. 26), ao discutir a reforma universitária, apresenta os traços marcantes da extensão 337
Capítulo do livro: Educação Popular – outros caminhos. Melo Neto, José Francisco & Scocuglia, Afonso Celso. Editora da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa:1999. (título: educação popularuma ontologia).
422 universitária. Esse documento trata de dois aspectos básicos: a análise da realidade brasileira e da universidade no Brasil. Destaca-se, no texto, o capítulo que discorre sobre a reforma universitária, definindo suas diretrizes, passando a assumir um “compromisso com as classes trabalhadoras e com o povo”. É nessa perspectiva que se defende a abertura da universidade ao povo, prestando serviços e gerando cursos a serem realizados pelos estudantes nas faculdades. Esses cursos iriam propiciar-lhes o conhecimento da realidade e, com isso, a universidade – a extensão – os conduziria à realidade do país. Caberia, ainda, à universidade, através da extensão, a conscientização das massas populares, despertado-as para seus direitos. O Movimento Estudantil se engaja, nessa época, nas campanhas de alfabetização de adultos e de cultura popular através dos Centros Populares de Cultura, no Movimento de Educação de Base (MEB) e nos Movimentos de Cultura Popular (MCPs). Essas campanhas estavam envolvidas (e continuam até hoje, no caso do MEB) em práticas educativas no campo da educação popular. Ao fazer uma análise sobre o MEB, Fleuri (1988, p. 34) observa: A partir de seu primeiro encontro de coordenadores, em dezembro de 1962, o MEB se define como um movimento engajado com o povo na luta pela transformação social, em defesa das classes menos favorecidas. Realiza programa de educação através do rádio e desenvolve uma metodologia de animação popular. O esteio necessário ao processo de animação popular – processo político e preparador para a participação política – é a educação popular. É nesse contexto de promoção da cultura popular que se origina o método Paulo Freire. Na perspectiva de alfabetização dos setores subalternos da sociedade, desenvolve-se a campanha “De pé no chão também se aprende a ler” em Natal, no Rio Grande do Norte. Em Osasco (SP), bem como na Paraíba, inicia-se a aplicação desse método através da Campanha de Educação Popular (CEPLAR). Tratava-se do método que serviu também de base à elaboração do Plano Nacional de Alfabetização, em 1964, mas que foi suspenso com o golpe militar. Vários foram os programas instituídos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), com a ditadura militar, a partir da década de setenta, que conduziram estudantes e professores a realizarem atividades em educação popular, sendo mais marcante o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Através das universidades, o MEC tratava de obter o apoio as suas campanhas por meio da extensão universitária. Programas como Centro Rural Universitário de Treinamento de Ação Comunitária (CRUTAC), Projeto Rondon e Operação Mauá são apenas algumas dessas iniciativas. Nesta última década, o Ministério da Educação e Desporto institui um programa de extensão a ser aplicado pelas universidades federais, buscando a articulação do ensino e da pesquisa, no sentido de atender as demandas da sociedade. Propõe democratizar o conhecimento acadêmico, promovendo a participação da sociedade na vida universitária e formar o profissional-cidadão. Pretende, também, contribuir para as reformas das concepções e práticas curriculares e, ainda, para a formulação do conceito de “sala de aula”. Efetuando sua política para o ano de 1996, o Ministério da Educação e Desporto definiu o Programa de Fomento à Extensão Universitária voltado à integração com o ensino fundamental. Tal programa abrange três linhas básicas: “formação inicial e continuada de professores do ensino fundamental (1a a 4a séries); produção de material didático; educação de jovens e adultos” (BRASIL/MEC, 1996, p. 1), através de exigências de metodologias educativas voltadas à educação popular. Por outro lado, também surgem de contextos institucionais, no caso da universidade, experiências que se externaram de forma a buscar exercícios de superação de práticas educativas dominadoras. Destacam-se, já na década de sessenta, a extensão praticada na Universidade de Pernambuco e, na década de oitenta, as tentativas de extensão como caráter processual da Universidade de Brasília (1989). Na década atual, nascem projetos de extensão como na Universidade de Ijuí, no Rio Grande do Sul; projetos de extensão na Universidade Federal da Paraíba (1996), como o SEAMPO (Setor de Estudos e Assessorias aos Movimentos Populares), Projeto Escola Zé Peão, CERESAT (Centro de Referência e Pesquisa da Saúde do
423 Trabalhador), e outros projetos em andamento em várias universidades, onde profissionais atuam, as mais das vezes, de forma isolada, porém, pondo em prática a educação popular. Quanto aos estudos sobre a aplicação de métodos em educação popular, convém destacar que, em relação ao Método Paulo Freire, em Brasília, existe conclusões que indicam diferenciados níveis de questionamentos. O primeiro nível diz respeito ao trabalho do grupo, destacando as dificuldades de localização de documentos referentes àquela experiência. O segundo se situa em relação à alfabetização de adultos, propriamente dita, que, para Barros (1982, p. 28), é traduzida assim: Parece implícita certa identidade entre as proposições iniciais dos planejadores de Brasília e daqueles que participaram da experiência: crença no homem, expectativas de mudança para um sistema social mais justo, espaços abertos, compartilhados por todos sem barreiras de classes... O terceiro nível de questionamento foi estabelecido em relação ao conteúdo político do método. Nele, destaca-se a limitação da experiência a um curto espaço de tempo – de julho de 1963 a março de 1964 – e aponta-se a perspectiva do governo João Goulart em buscar o apoio das bases populares. Sendo assim, o método rápido de alfabetização possibilitava maior número de eleitores para si. A esse respeito, Barros (ibid., p. 28) acrescenta: “Parecem claros, também, nas ocorrências de 1964, a força dos mecanismos de resistência e, após a derrubada de Goulart, os objetivos subjacentes ao sistema, onde predominam a dominação e alienação”. Nesta análise, a dimensão da resistência e a superação da alienação aparecem intrínsecas ao método de alfabetização na perspectiva de educação popular. Em experiências institucionais mais estudadas e conhecidas, como é o caso da cidade de Lages, em Santa Catarina, a participação popular foi a meta a ser alcançada. Ao cuidar da organização popular e construir a força do povo, a direção do sistema educacional, em seus encontros com a comunidade, objetivava, segundo Alves (1980, p. 74): Na prática, o projeto lageano, além de enfatizar o concreto, realça o comunitário. Em todas as escolas, no campo e na cidade, há Conselhos de Pais de Alunos, que participam da direção escolar e colaboram na solução dos problemas que se apresentam. Em relatos de operários, por todo o país, sobre as suas lutas e processos de organização, aparecem dimensões multivariadas quanto à perspectiva da educação popular. O depoimento a seguir destaca a necessidade de que as decisões políticas nesses movimentos precisam ser tomadas em comum. Portanto, expressa um dever ser ao formular um princípio ético organizativo e uma prática (moral) que promova a cidadania. Assim, a exigência de que as decisões devam ser tomadas em comum acordo decorre do próprio fato de serem elas tomadas em conjunto. Segundo o relato de um dos operários, tomar a decisão em comum significa estar a serviço de cada companheiro toda a sua capacidade de trabalho, toda a sua capacidade de pensar; é você se colocar a serviço para cada companheiro daqueles também se colocar a serviço da própria classe, passar a pensar na sua própria classe. Então, somente a partir das decisões em comum é que a gente deixa de ser aquele elemento importante e individual. As decisões tomadas em comum realmente ajudam o pessoal a se colocar a serviço da própria classe (CEP-2, 1981, p. 41). Esse relato não expressa a concepção de uma equipe de educadores discorrendo sobre o conhecimento popular, mas é uma expressão do próprio conhecimento popular, sendo este operário considerado como agente da educação popular (ibid., p. 7). A partir dos contatos de trabalhadores brancos com os indígenas da região amazônica, muitas lições ficam ao homem branco que, através de depoimentos, vê que o civilizado na selva é o índio. De dentro dos seringais, onde os bichos e a floresta estão sendo tragados, vem essa lição que o seringueiro exibe de forma lúcida. O branco mata vinte bichos para atender ao
424 comércio de peles dos animais, mesmo necessitando de apenas um para sua alimentação. O índio realiza o abate apenas daquela quantidade que o satisfaz como o civilizado da selva. O seringueiro Thiago (1984, p. 29) emite uma opinião que parece inquestionável: O civilizado na selva é o índio. Isso eu digo e repito sem medo: a civilização, o índio é mais do que nós. Porque é o seguinte: ele não estraga. Então o branco esgota aquela reserva que tem, que serve prá muito tempo, e depois vai atrás de tomar aquela propriedadezinha onde eles tão se mantendo. São lições que dão a conhecer, no cotidiano dos trabalhadores, um quadro de procedimentos e processos que mostram formas diferenciadas de aprendizagem e de abordagem da natureza. Essas formas parecem também indicar possibilidades de educação popular. Nos processos de educação popular, há propostas que se apresentam procurando mostrar o que pode ocorrer com os animadores de ações populares. Para Der Weid (1982, p. 49), apresentam-se vários aspectos, como: “O caminho percorrido, os problemas que foram sendo colocados pela realidade e como o viver e pensar essa realidade foi modificando minha cabeça, forçando uma mudança na minha própria proposta de trabalho”. Tem-se uma concepção de que, ao se avaliar um trabalho em educação popular, esta precisa contemplar os caminhos que estão sendo percorridos, mostrar as relações que estão ocorrendo com o viver e o pensar, bem como as mudanças em uma perspectiva subjetiva – a cabeça – e possíveis novos itinerários do próprio trabalho educativo. No campo da saúde, vários pesquisadores, ao darem a conhecer as ações integradas através da ótica de educação popular, como Kopf (1986, p. 83), expressam seu trabalho da seguinte maneira: Uma prática social, na qual indivíduos ou equipes técnicas e comunidade participam como sujeitos de um processo educativo e de cunho libertador. Processo esse que envolve o entendimento e a assimilação da realidade individual e coletiva e a capacitação para a ação, atrás da reflexão conjunta sobre as condições de vida e as ações programadas. Esta é uma visão que vislumbra o trabalho coletivo, buscando desenvolver ações de forma conjunta, sob uma perspectiva de libertação ou de educação popular, propiciando o entendimento sobre as condições de vida e definindo, assim, as ações a serem realizadas. Da mesma forma, pode-se verificar que, em experiências de escolha das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA) em Hospital Universitário, Araújo (1994, p. 4) mostra que tentativas de criá-las sem trabalho educativo sobre a sua importância podem redundar em fracasso, acrescentando: Só a partir do momento em que os trabalhadores vislumbraram que, mesmo eivada de restrições enquanto modalidade de organização por local de trabalho a CIPA poderia constituir num instrumento para transformação das condições de trabalho, é que ele tornou-se viável. Os dois relatos, envolvendo a área da saúde, expressam atitudes no campo da educação popular que vão ao encontro da individualidade de seus participantes ou promotores. Relatos de educadores vinculados à perspectiva da educação popular e integrados a núcleos de comunidade apontam que esse trabalho tem sido relevante para todos aqueles que estão envolvidos nessas atividades. Mostram ainda que essas ações têm se tornado experiências gratificantes não só pára os estudiosos da pedagogia, mas para todos os técnicos das diversas formações acadêmicas. É uma oportunidade de cada um rever-se a partir do compromisso com grupos populares. Sobre a educação de adultos, Mazza (1986, p. 59) afirma: “Vimos com eles, que foram educados pela escola da vida: ela que os ensinou, ela que os afastou da escola das letras. A experiência deles é uma linguagem sem letras ou, como eles dizem, sem estudo”. Contudo,
425 pode-se questionar o motivo pelo qual todas essas coisas realizadas por esses adultos não se apresentarem com alguma importância. Suas experiências permanecem silenciosas, merecendo pouca ou nenhuma atenção. Neste relato a pesquisadora destaca a necessidade do resgate das experiências de vida dos indivíduos para se poder ter uma perspectiva da importância dos processos de educação. São desafios para serem estudados sob uma ótica da educação popular, exigindo trabalho social de forma interdisciplinar. As discussões voltadas às questões da terra, como a reforma agrária, exibem um celeiro de experiências de educação popular, no trato com a educação rural de jovens e adultos. É notória a ênfase que os líderes sindicais e os do Movimento dos Sem-Terra têm dado á educação nos assentamentos rurais. Destacando sempre a importância da conquista da terra e a consolidação da posse, através da produção e comercialização de seus produtos, os movimentos sociais no campo e, hoje, de forma singular, o MST, em suas lutas pela democratização da sociedade, despertam todo o campo e a cidade para a necessidade da participação política dos trabalhadores. Visam, em última instância, o agrupamento com outras forças sociais para atuarem na política e superarem a administração elitista e histórica das oligarquias as quais, historicamente, têm marcado o processo de desenvolvimento no país. Essa perspectiva política é vista por Vinhas (1980, p. 140) da seguinte forma: Os líderes sindicais, ao sugerirem repetidamente a necessidade de “participação dos trabalhadores” nos projetos de reformas e em sua execução, pensam em uma democracia e política de massas. Porque têm testemunhado pessoalmente a prática no mundo rural, sempre restrita às elites. As práticas educativas que se desenvolvem nos assentamentos ou em parcerias com sindicatos rurais são projetos permeados de atividades de forte apelo popular, isto é, caracterizam-se como práticas em educação popular. A educação popular vai tornando o mundo da concretude o seu ponto de partida quando de seu conhecimento. É um processo educativo que pode acontecer também através do tijolo sobre tijolo. Não esconde mais que o homem pode estar sentado sobre a pedra e não estar pensando apenas na pedra, mas também em si. É o que mostra Silveira (1993, p. 179), em suas experiências em educação popular, no Rio Grande do Norte: O tijolo é a molécula, com seus átomos virtuais à espreita. E desata sobre os homens ta-te-ti-to-tu já-je-ji-jo-ju la-le-li-lo-lu essa espreita. Esses homens forjados na pedra e agora do chão, do gado e das fêmeas, tinham letras e quando um tijolo ia junto de outro, conversavam entre si. A fala dura e perdura entre eles e é isso que lê natureza e cultura. Sujeito a sujeito. Transformação a transformação. Os mais variados trabalhos de política organizativa em setores sociais e, hoje, mais presentes em movimentos sociais criam possibilidades ou reforçam ditames elementares nos processos educativos no campo da educação popular. Ao fazer uma análise dos movimentos sociais, Calado (1993, p. 34) afirma que novos horizontes axiológicos se colocam, despertando para as chamadas lutas específicas das categorias ou setores sociais, como as mulheres, negros e outros, arrematando: De qualquer modo, o certo é que um número crescente de militantes engajados nas lutas sociais – uns como marxistas, outros como animadoras e animadores de movimentos comunitários – passaram a ver, com cautela ou
426 mesmo desconfiança, o que se convencionou chamar de “política do prato feito”, ou seja, toda tentativa de impor, de cima para baixo ou de fora para dentro, uma linha de trabalho, ainda que em nome de pretensos ideais revolucionários. A necessidade da participação política se afirma nas práticas em processos de educação voltados às classes subalternas da sociedade. Nessa participação também se externa o caminho necessário da discussão ao buscar a superação de práticas com caráter autoritário. São práticas que passaram a mostrar o potencial político e educativo da Igreja de Base, voltado à comunidade mais carente da sociedade, vindo a ser chamada de Igreja dos Pobres e com forte apelo às transformações da sociedade. Seu projeto político, considerado embrionário pelo citado autor, já comportara traços que, hoje, ainda mais expõem à vista sua importância, em face da sua atualidade, como, por exemplo: Rejeição ao modelo capitalista de organização social; atitude de desconfiança em relação ao espírito da competição e ao individualismo; promoção do espírito de cooperação exercitado em ambiente comunitário de partilha e solidariedade; promoção do respeito às diferenças individuais (ibid., p. 32). No que concerne às pesquisas voltadas ao ensino da língua portuguesa em curso supletivo, trabalhadores de várias categorias estão exigindo metodologias novas que possam atender suas expectativas em relação à escola. Nesse sentido é que operários na indústria de construção civil e de confecções; trabalhadores do comércio; os permutáveis, isto é, aqueles que pouco tempo passam em seus trabalhos, tendo em vista a mudança frequente em seus empregos; os biscateiros e outros são alunos, em potencial, dos cursos supletivos. É essa realidade que levou Sousa e Silva (1992, p. 32) a chegar à seguinte conclusão: “Não propomos que a escola adote o pressuposto de Freire sobre o privilégio da leitura do mundo em relação à leitura das palavras, mas cremos que as determinações da história do aluno devem ser consideradas”. São exigências, portanto, de metodologias para outra forma de educação. Existem relatos de contatos de trabalhadores com mecanismos de organização, tanto da fábrica quanto também de entendimentos da não exigência de organização. Contudo, eles descobrem que é preciso haver organização. Na verdade, a partir da ideia inicial de sua superação através de sua destruição, descobre-se que a organização é fundamental, seja no próprio setor do trabalho, seja nas formas de se encaminharem reivindicações ou exigências para o exercício do trabalho na fábrica. São processos de lutas pautados por mecanismo que, às vezes, pode levar a quebrar a cara, mas sempre buscando seu aperfeiçoamento através de metodologias de organização de base popular, necessárias à sistemática do desorganizar e organizar em bases novas. O anseio por essa nova organização é que constitui o processo de busca e de criação da liberdade de cada indivíduo e de todos. São experiências de educação popular contribuindo para essa busca. Para Vicente – operário – a discussão sobre organização veio perturbar muito as cabeças de todos os trabalhadores da fábrica onde trabalhou. Em seu depoimento, relata: Faz dois anos que a gente não aceita mais nada de negócio organizado dentro daquelas metas, aquela coisa toda pronta. Até que a gente chegou ao ponto de desorganizar mesmo, deixar tudo desorganizado para ver como é que dá. Mas mesmo dentro da desorganização, a gente está organizado. Porém, chegamos à conclusão agora, e isso é o que está mais mordendo a nossa cabeça, é que precisa mesmo haver outra forma de organização dentro daquilo que a gente está fazendo (CPE-5, 1983, p. 43). Essa busca passa pelo local de trabalho onde as pessoas atuam e se voltam para a sociedade que também reflete a organização desse mesmo trabalho. Isto é, a descoberta da necessidade de organização é uma descoberta para se poder sonhar com a liberdade.
427 Outros aspectos que têm sido levantados em experiências de educação popular são os questionamentos às formas de produção de conhecimento. Normalmente, vêm sendo feitos levantamentos em projetos de pesquisa, especialmente naqueles dirigidos às carências de populações ou de comunidades e, a partir daí, desenvolvem-se análises e ações. Ora, é exatamente esse tipo de diagnóstico possível de ser utilizado em práticas de educação popular o qual pode falsear o processo de produção do conhecimento. Um simples diagnóstico reduz a realidade a uma coleta e a uma análise de dados armazenados. Aqueles em relação aos quais estão sendo aplicados os questionários tornam-se meros informantes, descartando-se o que está acontecendo com esses mesmos informantes. Em pesquisas de educação com perspectiva popular, consagra-se a discussão dos próprios critérios de verdade a serem utilizados como referendo ao conhecimento produzido. Em experiências com pequenos produtores rurais, Sales (1987, p. 35) alerta para os critérios de verdade que “não poderá estar em coincidências estatísticas ou na lógica do raciocínio. Estará na eficácia do serviço que se quer prestar. Estará, sim, no avanço ou recuo da prática dos interesses que se pretende ver afirmados”. A discussão sobre a produção de conhecimento através da educação popular, por sua vez, não pode tornar-se uma ingênua valorização do que é popular ou vulgar, sacralizando afirmativas pouco sustentáveis, como a de que o povo é que tem toda a verdade. Sabe-se que, dentro da cultura popular, existem outros elementos advindos da ideologização dominante. Assim é que se faz necessária sua desideologização, tornando possível a descoberta desses elementos. Nos processos educativos, podem-se examinar questões metodológicas ou mesmo possibilidades trazidas pelo material didático de acordo com as últimas conquistas tecnológicas ou até a utilização do material de sucata. Este tem sido exposto como uma discussão em educação e em educação popular, considerando-o popular, muitas vezes, por se entender como se os recursos tecnológicos não fossem uma exigência para qualquer processo educativo, mesmo para uma proposta popular. Para Freire & Guimarães (1982, p. 47), a questão não está na utilização ou não de elementos alternativos (sucata) em procedimentos de educação popular, justificando: Isso poderia dar uma excelente educação, se a escola realmente fosse capaz, como política, de aproveitar os recursos naturais, aqueles fragmentos de mundo com que as crianças brincam, por exemplo. Seria a partir exatamente da brincadeira delas com esses pedaços de coisas e com essas coisas, que elas poderiam compreender a razão de ser das próprias coisas. Para ambos educadores, o problema está, na verdade, no abandono que vem sofrendo a escola por parte de autoridades, particularmente, a escola das classes populares. O importante passa a ser, portanto, garantir “o direito de as massas populares dizerem „porquê‟”, dentro de uma educação promotora, necessariamente, do diálogo. Na busca dos porquês parece estar também a base da construção do conhecimento novo e mais elevado, segundo Van Der Poel (1997). Os seus trabalhos de letramento em áreas rurais de pessoas jovens e adultas mostram que não é suficiente o estar consciente da questão agrária, da relação do trabalhador com o patrão, da questão da mulher ou da pouca rentabilidade da pesca e da agricultura. Destaca-se, também, como necessária a aprendizagem da solução dessas questões, configurando-se uma metodologia para educação popular pautada na seguinte dimensão: Estes problemas necessitam ser estudados e aprofundados. Os participantes do processo educativo não devem, apenas, saber que o problema existe, mas têm que saber os porquês da questão e como solucioná-la. Assim, necessitase construir um conhecimento de um nível mais elevado que revele as causas e as soluções (ibid., p. 118).
428 As discussões se tornam mais complexas a partir da relação da educação com os atuais movimentos sociais.338 Estes, hoje, têm suscitado variadas dúvidas sobre a educação. Perguntase como deve ser a educação ou mesmo, em se realizando, quais são as suas finalidades e a quem está servindo. Questiona-se o conteúdo que vem sendo desenvolvido em práticas educativas, bem como as suas formas metodológicas. Em seus estudos sobre a educação e movimentos sociais no campo, Nascimento (1996) tem buscado soluções, mostrando também como estão acontecendo essas relações, as quais só podem ser compreendidas e desenvolvidas sob a ótica da educação popular. Mas, para a aludida pesquisadora, a pedagogia dessa educação popular precisa ultrapassar o conceito de conscientização e de valorização da cultura popular para assumir a noção de conflito, o que implica tensões permanentes, numa prática educativa radical, que se coloca em relação com outros processos sociais, de construção de uma nova cultura e de um projeto de sociedade, de formação da identidade de classe e de construção da cidadania (ibid., p. 13). Na mesma perspectiva, vários movimentos de igrejas, sobretudo da Igreja Católica, constituíram-se aplicando técnicas e desenvolvendo metodologias no campo da educação popular. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são um exemplo mais marcante nesse sentido. Setores da Igreja Católica, através da orientação de várias dioceses, acentuaram sua preocupação com as camadas desprivilegiadas da sociedade, assumindo formas de resistência, em várias partes do país, contra as formas ditatoriais e policialescas como foram e ainda continuam sendo tratadas as questões dessas classes. As CEBs foram criadas no interior da Igreja Católica e desenvolveram suas atividades à procura de sua própria forma de expressão tanto no campo religioso como no campo da educação comprometida com as classes subalternas da sociedade. Em suas metodologias de trabalho educativo, as CEBs nunca buscaram um modelo preestabelecido. Com isso, têm assumido, durante os anos, diferenciados tipos e formas de atuação. Hoje, sua atuação vem sendo reduzida, mas, para Camargo (1981, p. 69), “... percebese, em linhas gerais, que atravessam transformações que as levam a constantemente reformular seus objetivos, suas prioridades de atuação, seus métodos a partir de procedimento a vitalidade desse movimento que, mesmo com menor intensidade, se mantém até os dias de hoje. Experiências relatadas no interior do movimento social há muito, vêm apontando para a necessidade de mudanças no comportamento político das lideranças e na forma de organização do próprio movimento. Outras temáticas começaram a surgir, tais como: a participação das mulheres nas atividades sindicais, a questão da terra, que é tratada de forma mais enfática, pelos sindicatos rurais, e a questão da assistência à saúde. Ressalte-se que o sistema de organização tradicional dos sindicatos, com presidente, secretário e tesoureiro, por exemplo, passou a ser questionado, abrindo-se a possibilidade de serem adotadas outras formas organizacionais, como o rodízio na direção da entidade ou a direção colegiada. A experiência do Sindicato Rural de Santa Maria da Vitória e Coribe, no e Oeste da Bahia, é ilustrativa nesse aspecto: No nosso Sindicato não existe poder definido do Presidente, Secretário e Tesoureiro, e ninguém fica fixo na sede do Sindicato como Diretor. Quando a gente começou esse trabalho, à gente pensava numa forma diferente do que seria a diretoria. Depois disso, não foi decidido mesmo pela gente, foi decidido pelas reuniões que cada diretor do Sindicato não ficasse efetivamente na sede como era de costume ficarem os três efetivos, mas sim que cada um deles trabalhasse na sede e trabalhasse na roça, porque assim a pessoa sente mais todos os problemas do trabalhador (CEAS, 1985, p. 32).
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A diversidade dos movimentos sociais tem gerado dificuldades para conceituação de educação popular, segundo alguns pesquisadores como Celso de Rui Beisiegel, Vanilda Paiva, Luiz Eduardo Wanderley e Carlos Rodrigues Brandão, sobretudo, em suas obras das décadas de setenta e oitenta.
429 São procedimentos práticos quanto ao agir da política sindical e da sua organização intera que mostram a importância da discussão para a aprendizagem e promoção da democracia interna entre os trabalhadores, exigindo metodologias novas através de uma educação que seja voltada aos seus interesses. Richardson (1983), pesquisando sobre a pobreza rural, desenvolvimento e educação, ressalta o papel da educação rural no Brasil e destaca a necessidade da participação dos camponeses no processo educativo e de uma educação que promova a autoconfiança e um maior relacionamento entre promotores de programas educativos com os próprios camponeses. Talvez, esteja apontando para a necessidade de outras metodologias norteadoras da educação no meio rural. Ainda no que diz respeito à análise de prática pedagógica em educação popular339 tendo como alunos trabalhadores e trabalhadoras de variadas idades, e tendo como animadores culturais os próprios operários, militantes sindicais e professoras, alertam-se para aspectos desse ensino e, particularmente, da metodologia da educação popular. Uma experiência assim só torna possível uma compreensão, segundo Di Grigorio (1983, p. 101), quando permeada da seguinte metodologia: O ensino era desenvolvido por meio de temas que expressassem a realidade que aqueles trabalhadores viviam, no seu dia a dia e tinha como objetivo fazer com que eles redescobrissem a sua cultura de origem (do povoado de onde procediam) recuperassem o seu passado, refletissem sobre o presente, para questionar as possibilidades futuras. Há de se perguntar qual é a lição essencial a ser tirada dessas experiências e de tantas outras que estão em andamento em todo o país e em todo o mundo. Parcelas significativas dessas atividades são desconhecidas, mas estão contribuindo para a educação daqueles que vivem à margem da sociedade dominante. Experiências educativas, sejam com operários ou camponeses, com indivíduos ou com sujeitos coletivos manifestam as diferenciadas formas de análise do mundo. São experiências sinalizadoras da exigência de uma educação fomentadora da participação política dos trabalhadores, demonstrando sua recusa ao tradicional modo de organização social, agravado, ainda mais, hoje, tendo em vista a adoção de formas mais elaboradas de exclusão da maioria da sociedade. Dentro desse modelo, a educação é vista não como um direito de todos, por conta da dificuldade de seu acesso, do fracasso gerado no seu interior que atinge, sobretudo, os filhos das classes subalternas. O que se observa é uma escola que culpa o aluno pelo seu fracasso ou mesmo a professora e a família desse aluno. O seu conteúdo se apresenta distante da realidade daqueles alunos, enfatizando muito mais uma ética do cada um por si. As experiências relatadas são portadoras das mais variadas formas de educação que buscam a superação e, às vezes, a suplência da educação formal, sendo entendidas como educação popular. Tudo isto só torna mais intensa a questão: Afinal, o que é educação popular? Na trilha do conceito A tentativa de responder a questão – o que é educação popular – requer uma abordagem sobre o adjetivo popular, que qualifica esse tipo de educação. Considera-se que o substantivo esteja, de certa forma, com o seu significado explícito desde a Paidéia grega. O popular se converte em qualificativo de uma educação peculiar. O termo abarca muito mais complexidade do que explicações. Suscita uma difícil caracterização de fenômenos bastante extensivos, pondo em dificuldade o seu entendimento. Para Beisiegel (1982, p. 50), o popular, ao qualificar a educação, educação popular – está associado a uma prática qualquer. O referido autor esclarece que se trata, em todos os casos, “de uma educação concebida pelas „elites intelectuais‟ com vistas à preparação da coletividade para a realização de certos fins. É 339
Experiência em educação popular levada a efeito junto aos trabalhadores de Borgomisto, bairro da periferia da Grande Milão, na Itália, entre 1970 e 1980.
430 nestas modalidades da „educação do povo‟ que o processo educativo explicita com maior clareza suas dimensões ideológicas e suas funções de controle social”. O seu significado carece de um esclarecimento tanto sobre a natureza quanto sobre a extensão do fenômeno que o qualifica. Contudo, relativiza-se essa aparente impossibilidade teórica quando as atividades em processos educativos estão sendo relacionadas com as estruturas de dominação. O conceito de popular se torna definido, na medida em que aquelas atividades se orientam atuando “junto a segmentos „populares‟ da coletividade, a sua condição de classe e às potencialidades transformadoras inerentes a essa condição” (ibid., p. 50). A caracterização de popular transcende, dessa maneira, o sentido que se dá quando o termo está relacionado a grupos sociais específicos ou a fenômenos culturais, como a música popular. Essa perspectiva apresenta um movimento que se externa pela relação com certa condição sociocultural. É um tipo de movimento da cultura que expressa um estar no mundo, sendo esta a condição própria das classes subalternas. Nessa compreensão, inexiste a perspectiva necessária de uma alternativa de sociedade. No sentido de condição de classe, o termo popular adquire uma dimensão política e programática, buscando, necessariamente, uma alternativa social. Assim, tem-se, na primeira compreensão, uma expectativa de formas de expressão das classes populares, destacando-se o tempo e o espaço; na segunda, elabora-se um projeto de nova sociedade. Isto facilita a compreensão das observações de Garcia (1982, p. 57) quanto à busca da conceituação de educação popular, situando-a como um terreno pantanoso. Afirma que educação popular tem sido apresentada com várias significações e denominações, trazendo consigo as denominações de educação de adultos, educação de base, educação extra-escolar, educação permanente, animação etc. O popular, por sua vez, destaca-se como algo que “está sendo promovido pelos intelectuais organicamente vinculados às classes dominantes, tendo em vista transformar situação de classe em situação de massa, do povo, de cidadão comum”. O citado autor admite a compreensão de educação popular vinculada aos interesses do povo e ressalta o fato de, mesmo “historicamente, a educação popular ter sido proposta pelas classes dominantes não impediu que se explicitassem interesses das classes dominantes” (ibid., p. 57). De qualquer maneira, entende-se o popular ou a educação popular como aquela voltada à cultura do povo que está à margem dos processos escolares e da produção, ou excluído das realizações culturais. Várias são as dificuldades que se manifestam na conceituação da educação popular. Gajardo (1994, p. 278) mostra que exemplos e experiências de educação popular, em diversos países, não apresentam um princípio educativo e, muito menos, uma coesão básica no debate sobre as perspectivas desse tipo de educação. A conceituação de educação popular é difusa, sem clareza e sem precisão. Além do mais, persiste uma falta de clareza teórica sobre os fins e as funções de uma educação que esteja voltada aos setores populares. Dessa forma, torna-se possível observar a existência de diferenciadas faces do que vem sendo chamado de educação popular. Essas faces estão condicionadas a cada momento histórico, o qual, por sua vez, depende da intensidade das mobilizações sociais. Fleuri (1988, p. 36) mostra as vertentes desse tipo de educação e identifica a primeira como sendo aquela voltada à ampliação da educação escolar para todos os cidadãos. A educação popular, aliás, passou a ser identificada, nos movimentos sociais, pela busca da escola pública, desde o final do século passado. Outra vertente da educação popular é aquela dirigida às camadas sem escolarização e denominada de educação de adultos, inserindo-se nessa perspectiva as várias campanhas de alfabetização como: a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos, iniciada em 1947; a Campanha Nacional de Educação Rural, em 1952; a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, que teve seu auge em 1959 e 1960; a Mobilização Nacional contra o Analfabetismo em 1962; o Programa de Emergência, que durou apenas seis meses; a Cruzada de Ação Básica Cristã,340 que viera ter apoio do governo a partir de 1966; o Movimento
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Para maior conhecimento sobre a ação educativa da Cruzada ABC, ver: PRESTES, Emília Maria da Trindade. A dimensão política da educação de adultos: história da Cruzada de Ação Básica Cristã –
431 Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) criado em 1967, expandindo-se a partir de 1970. Mais recentemente, na década de noventa, destaca-se a tentativa de implantação do Plano Decenal de Educação, visando acabar, principalmente, com o analfabetismo no país, no prazo de dez anos, mas que já está esquecido pelos governantes. Várias dessas campanhas de educação de adultos tiveram apoio da UNESCO (United Nations Education Social and Cultural Organization) e, na década de sessenta, da USAID (United States Agency Internacional Development). Essas campanhas estavam também voltadas à perspectiva de promoção e aceitação popular no sistema político-econômico imposto, especialmente, durante a ditadura. Com isso, cria-se um meio institucional de veiculação de uma possibilidade da educação popular. A terceira vertente é a educação popular difundida pelos movimentos sociais, considerada como educação autenticamente popular, sendo constituída pelo conjunto de práticas educativas desenvolvidas pelas próprias classes populares (ibid., p. 39). Têm-se, como exemplos, as escolas criadas e dirigidas por socialistas e anarquistas, no início do século, bem como aquelas surgidas com os movimentos sociais na década de sessenta, revigoradas na segunda metade da década de setenta, envolvendo entidades, organizações não-governamentais e assessorias aos movimentos sociais. Historicamente, pode-se constatar a existência de, pelo menos, três movimentos distintos que se entrecruzam no campo da educação popular. O primeiro, expressa as lutas de intelectuais e educadores pela educação popular básica para todos os indivíduos da sociedade; o segundo evidencia-se através das campanhas desenvolvidas pela institucionalidade, através do Estado, sobretudo; o terceiro está marcado pela criação e direção das escolas e das práticas escolares da formação de quadros entre os operários. Cada vertente educativa traz consigo uma concepção de educação popular. Para Wanderley (1985, p. 26), as diferenciadas práticas educativas junto aos setores populares têm manifestado duas marcantes possibilidades de realização da educação popular. São possibilidades antagônicas, considerando-se o seu direcionamento também pelo Estado, ao buscar a oferta da educação escolar àqueles excluídos prematuramente da escola. São iniciativas da classe dominante, considerando ser esta mesma classe a definidora das políticas estatais, visando à sustentação do sistema capitalista. Não se pode esquecer, contudo, que muitas das iniciativas do Estado, no sentido de possibilitar a educação para o povo, estavam voltadas aos interesses das classes dominadas. Mas, sobretudo, a partir de educação popular, que passou a excluir as realizações sistemáticas do Estado no campo do ensino. Do outro lado, estão às iniciativas educacionais patrocinadas por grupos e instituições que dão apoio aos movimentos sociais, buscando alternativas de sociedade. Trata-se de uma modalidade de educação popular que é produzida pelas classes populares e para as classes populares, sendo guiadas pelos seus interesses de classe. Para a sua efetivação, dá-se preferência aos processos informais em que a vida do dia a dia dessas comunidades está presente. Educação popular como um trabalho pedagógico voltado à construção de uma sociedade cujo poder esteja sendo encaminhado para as mãos dos responsáveis pela produção social – os trabalhadores. Ao analisar a sociedade capitalista, Fleuri (1988, p. 42) afirma o seguinte: A educação popular, propriamente dita, opõe-se às diferentes formas de intervenção educativa realizadas pelas agências da classe dominante junto às classes “populares”. Constitui-se como o conjunto de processos educativos desenvolvidas pelas classes “populares” em suas lutas pela construção de sua hegemonia e de sua resistência à exploração e à dominação capitalista. Por sua vez, Brandão (1984, p. 172) busca construir o que ele denomina de trabalho alternativo da educação popular. Nesse sentido, compreende-se que esse trabalho é um tipo de educação voltado às classes populares ou classes subalternas. Caracteriza-se, segundo o autor, não em ser ela “ofertada a sujeito, categorias, grupos ou classes populares, mas em realizar-se ABC. Dissertação de Mestrado em Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação Popular – UFPB. João Pessoa, 1984.
432 como um trabalho de mediação entre classes sociais através da educação”. Acrescenta que “este tipo de educação serve, independente de sua origem de classe e o seu horizonte político, a um projeto de mudança social”. Esse processo pode apontar para projetos políticos variados, desde o modelo de democracia formal liberal, passando por um projeto de democracia participativa e até mesmo para um projeto de sociedade socialista. O autor destaca, ainda, que, nesse tipo de trabalho educativo, não há uma forma linear e única para o seu desenvolvimento. A realidade enuncia a coexistência de modelos estabelecidos e de modelos emergentes. É um processo educativo que busca a superação de dualidades do tipo: sociedade civil versus educação popular e outras oposições binárias. O importante mesmo é o discernimento a respeito de qual projeto de mudanças está sendo desenvolvido por determinados setores, seja no âmbito estatal ou no âmbito da sociedade civil. Para o autor (ibid., p. 179), a educação das classes subalternas abrange tendências que buscam mudanças modernizadoras ou revolucionárias. A segunda subscreve possibilidades variadas de acordo com a conjuntura. Sendo assim, setores do Estado ou da sociedade civil podem aproximar-se de um modelo ou de outro. Aliás, não há modelos puros do ponto de vista conceitual ou de práticas educativas. Bezerra (1977 e 1978), ao analisar as atividades em educação popular, entende que essas práticas se desenvolvem do particular para o universal; do individual para o coletivo; do sensorial para o concreto; do imediato para o mediato; do percebido para o não-percebido, enfim, do relacionado para o não-relacionado. Puiggrós (1994, p. 24), todavia, destaca que a história da educação popular na América Latina encontra dificuldades paradigmáticas em torno dos conceitos de classe ou de povo que têm permeado suas práticas, embora buscando também uma alternativa conceitual. Nesse sentido, externa uma possibilidade de educação com o povo, educação popular ou educação libertadora, como “uma educação que quer ser autônoma e produtora de autonomia de classe, dialogal, comprometida, participante, crítica, conscientizadora, livre e libertadora”. Isso mostra que tem havido várias tentativas de conceituação e de organização em tipologias, por parte dos pesquisadores, no campo da educação popular.341 Pode-se salientar, entretanto, a tipologia desenvolvida por Brandão (1994, p. 43), que sugere três alternativas de modelos de educação com as classes populares. 1) Modelos de educação produtores de “benefícios do saber escolar” (alfabetização, supletivo etc.), associados direta ou indiretamente a agências mediadoras de controle do trabalho de organização popular. 2) Modelos de educação associados direta ou indiretamente ao trabalho político dos movimentos populares de libertação social através da construção histórica de uma nova hegemonia. 3) modelos de educação tornados expressão de todo um sistema de trabalho educacional em sociedades transformadas através do trabalho político das classes populares. 341
Destaquem-se: Timothy Ireland, desenvolvendo pesquisa no campo da Educação de Adultos, na Paraíba; Etore Gelpi, buscando as novas abordagens paradigmáticas para as categorias teóricas como Trabalho, diante dos processos globais em desenvolvimento na Educação de Adultos, na UNESCO; Michel Seguier, que realiza em suas pesquisas a crítica à institucionalidade, analisando também a criatividade coletiva; Francisco Vio Grossi, pesquisador da Educação de Adultos na América latina; Vanilda Paiva, pesquisando políticas em Educação de Jovens e Adultos, no Rio de Janeiro; Celso Rui Beisiegel, pesquisando o papel do Estado nas políticas de educação popular, em São Paulo; Alfonso Lizarzaburu, pesquisador da formação de profissionais para os processos; Afonso Celso Scocuglia, pesquisador no campo da história da educação popular, na Paraíba; Oscar Jara, que vem contribuindo também à teoria da educação popular, a partir de suas experiências no Peru e Costa Rica; João Francisco de Sousa, em Pernambuco; Eymard Mourão Vasconcelos, pesquisando a temática educação popular e saúde, na Paraíba; Luiz Eduardo Wanderlery que tem apresentado uma tipologia baseada em três orientações: educação popular com orientação de integração, nacionalpopulista e de libertação; Sérgio Addad, além de outros.
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Convém evidenciar, no estudo de Brandão (1977), a divisão que apresenta de educação popular em formas primitivas e formas atuais. Como formas primitivas, destaca as campanhas de alfabetização, tanto aquelas filantrópicas como as confessionais, e as campanhas de promoção oficial. Considera também o ensino complementar de emergência, com ênfase na educação básica, no supletivo e nos cursos de madureza, nos ginásios de pobres, além dos cursos profissionalizantes, destacando aqueles para a formação de mão de obra operária. Como formas atuais, salienta a educação fundamental no desenvolvimento socioeconômico. Nas formas atuais, está contemplada, ainda, a educação popular, caracterizando-se como educação de base, bem como a educação popular do sistema Paulo Freire, que expressa a superação da educação bancária, na compreensão desenvolvida na Pedagogia do Oprimido. Uma aproximação conceitual A busca pelo conceito de educação popular remete, inicialmente, ao campo de trabalho especifico que constitui esse tipo de educação. O campo específico é o simbólico, o cultural. A cultura, considerada como fruto da visão de mundo de um grupo ou sociedade ou como seu modo de vida, ou ainda como a produção de transmissão dos significados que um grupo elabora para sua intervenção na realidade. Através do simbólico, esses grupos constroem suas identidades. É um processo decorrente do relacionamento do ser humano com a natureza. Esse processo possibilita não só a comunicação com a própria natureza, como também descobre as identidades de objetos e sujeitos, além das diferenças entre os próprios humanos. Nesse relacionamento com a natureza, o humano busca a sua auto-realização, à medida que colhe experiências novas e, assim, apresenta as condições para responder criativamente aos desafios do ambiente. Ele desenvolve instrumentos ainda não existentes, condiciona-os e dálhes uma finalidade. Essa relação, segundo Pinto (1979, p. 123), expressa a cultura, que é assim entendida: O processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa-as de efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em ideias as imagens e lembranças, a princípio coladas as realidades sensíveis, e depois generalizadas, desse contato inventivo com o mundo natural. Convém destacar que esse é um processo histórico constituído por efeito da relação produtiva que o homem efetua sobre a realidade que o circunda. O humano produz e é também o consumidor. A cultura torna-se um produto do processo produtivo, assumindo uma dupla natureza, convertendo-se em bem de consumo, enquanto objetivada em coisas, porém, subjetivada através das ideias e, em bem de produção “no sentido em que a capacidade, crescentemente adquirida, de subjugação da realidade pelas ideias que a representam, constitui a origem de nova capacidade humana, a de idealizar em prospecção os possíveis efeitos de atos a realizar” (ibid., p. 124). Os entes concretos, frutos desse movimento – ações, ideias e novas ações – que constituem o trabalho humano, são os entes culturais. Em consequência, toda a produção humana é fruto e expressão de sua cultura. Pode-se, então, ver que as atividades no campo da educação e as da educação popular espraiam-se no espectro da cultura, como parte dela, sendo prisioneiras necessárias da intervenção das ideias sobre a natureza e da produção das mesmas, tendo como anterioridade da natureza concreta às ideias. Este é um movimento teórico que emerge a partir das práticas educativas. De forma singular, essas práticas em educação popular, presentes no mundo complexo da cultura, estão permeadas de conhecimento científico, saberes, símbolos, criações artísticas e técnicas, fabricação de objetos, máquinas e todos os possíveis artefatos gerados pela inteligência humana, na tentativa de promover a explicação tão ampla que lhe é colocada diante de tal diversidade da produção humana, em particular, da produção daqueles que vivem de sua força de trabalho.
434 De modo geral, os produtores dessa diversidade estão fora da posse e da utilização dos saberes e conhecimentos gerados da produção cultural humana, da qual a educação faz parte. Educação relacionada e orientada ao contexto popular342 que, em seu sentido amplo, caracteriza o povo que dele se origina e a ele pertence. Povo que representa as camadas mais baixas, economicamente, da sociedade – os mais pobres , os trabalhadores do campo e da cidade, os explorados, os oprimidos (Paulo Freire). A educação voltada ao popular insere-se, dessa maneira, no marco da produção, podendo utilizar-se desses conhecimentos, em mais um elemento de socialização dos produtos culturais, destacando, assim, não só a sua produção, como também a sua comercialização, elementos essenciais para a afirmação de identidade e de resistência cultural das classes populares.343 Um sistema educativo As experiências em educação popular e as formulações teóricas enunciadas asseguram a possibilidade de se apresentar educação popular como um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionadas entre si e ordenados segundo princípios e experiências que, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Mesmo expressando uma unidade, contudo, é um sistema aberto que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, a educação e o popular e vice-versa. A educação, presente na cultura, é entendida como um processo de formação do humano no seu tempo, enquanto se faz ser humano, consistindo em um fato histórico. É um fato social, tendo em vista que esse processo, enquanto se constrói na individualidade de cada humano, está ocorrendo, ao mesmo tempo, entre humanos. Ao relacionar-se com toda a sociedade e sendo esta constituída de classes, entende-se, ainda, que esse processo é diferenciado entre os humanos, refletindo as contradições geradas dessa situação social. Assim é que esse processo educativo e cultural se desenvolve e está dependente do processo econômico da sociedade que possibilita a realização da educação, condicionando os meios materiais necessários para a execução do trabalho educacional, definindo sua extensão e profundidade. As atividades realizadas no processo educativo se constituem como uma modalidade de trabalho – trabalho social , considerando-se que a educação visa à formação dos membros da sociedade para desenvolverem outras ou novas atividades também sociais. Como trabalho social, a ação desse trabalho é, deliberadamente, criadora de um produto também, mais humano. É pelo trabalho social que se vai transformando a natureza e criando cultura. É esta a dimensão fundamental desse tipo de educação como trabalho social, isto é, atividades educativas produtoras de cultura, buscando o conhecimento do mundo onde o humano atua. Dessa forma, expressam-se atividades concretas, cujo desempenho depende de cada situação histórica, além disso, efetuando-se em uma sociedade permeada de contradições de classe, a educação popular também se expressará de forma contraditória, trazendo consigo a conservação e a criação do novo saber, de um novo conhecimento, a conservação e a crítica da existência. A filosofia Educação popular se apresenta, assim, como um sistema aberto de trabalho educacional detentor de uma filosofia que, por sua vez, pressupõe uma teoria de conhecimento, metodologias dessa produção de conhecimento, conteúdos e técnicas de avaliação, sustentada por uma base política. Enquanto um sistema aberto, é capaz de relacionar a educação com o popular; a escola ou todo o ambiente de aprendizagem com a sociedade. Ao mesmo tempo, nutre-se da diferenciação política contida na opção pela dimensão do popular. 342
Ver: PINTO, João Bosco Guedes. Reflexões sobre as estratégias educativas do Estado e a política de educação popular. In: Perspectivas e dilemas da educação popular. Introdução e Organização de Vanilda Paiva. Rio de Janeiro: Graal, 1984. 343 Classes populares – Com base nas relações que as constituem, elas significam a classe trabalhadora do campo e da cidade. Incluem ainda as suas frações de classes, estando empregadas ou desempregadas, absorvendo até os pequenos proprietários de terra.
435 Ao se constituir em uma unidade – teoria e prática social – expressa, todavia, uma relação e uma diferença entre teoria e prática. Educação popular é um sistema aberto de trabalho educacional que, ao se realizar, configura a dimensão de prática social. Um sistema que pode efetivar-se através da instituição estatal a partir de modelos de educação com caráter de suplência (alfabetização, ensino supletivo etc.), através de movimentos sociais que buscam a construção histórica de nova hegemonia ou no âmbito das sociedades que vivenciam ou vivenciaram modelos de sociedade alternativos ao modelo dominante. Como um sistema aberto, a educação popular pode efetivar-se tanto através da escola – o ambiente tradicional – quanto através da organização da educação formal ou informal. A educação popular, como um sistema aberto de trabalho educativo, é depositária de uma filosofia – expressão da atividade da razão humana sobre as práticas educativas em desenvolvimento – defrontando-se com a totalidade do real. É detentora de um processo de investigação sobre os princípios norteadores dessas práticas, sobre a sua fundamentação e justificativa das ações humanas recorrentes para o exercício dessas práticas. Educação crítica que se volta à investigação dos pressupostos da educação e da própria educação popular, à consciência dos limites tanto dos pressupostos quanto do trabalho educativo, aos entes gerados dessas práticas, sobretudo, ao conhecimento e à cultura. A educação popular, como uma crítica, nutre-se do trabalho educativo em movimento, que se processa através da luta dos contrários, inerentes à sociedade. A categoria teórica – movimento – sustenta essa perspectiva de educação, pois, tal como Heráclito344 já constatara, “tudo se faz por contrastes; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (fr. 8). Uma filosofia que procura pensar as contradições da realidade, o modo de compreendê-las, como é vista em sua essência contraditória e em permanente transformação. A teoria do conhecimento A educação popular, ao conter tal perspectiva filosófica, expressa-se como um processo de produção de conhecimento, sendo este uma aproximação crítica da realidade. Essa aproximação, por sua vez, a partir da busca de sua estrutura e processo, torna-se possível através de uma visão de totalidade determinada, a qual só se dará através da dialética, possibilitando uma prática educativa renovadora. Nesse sentido, Freire (1980, p. 40) mostra que “também fiz história quando, ao surgirem os novos temas, ao se buscarem valores inéditos, o homem sugere uma nova formulação, uma mudança na maneira de atuar, nas atitudes e nos comportamentos”. Ao se constituir como uma crítica, o trabalho intelectivo na educação popular, debruçando-se sobre o ente de desejo de ensino-aprendizagem ou de conhecimento, adquire uma dimensão de negatividade, enquanto procura mostrar que, mesmo o que está estabelecido pode não ser. Por outro lado, apresenta, ao mesmo tempo, a dimensão da positividade ao apontar que se algo está estabelecido, pode adquirir outra conformação distinta daquela, abrindo a expectativa de mudança. Se expressa dessa maneira, uma teoria de conhecimento que tem, na prática, o fundamento e o limite do conhecimento e do objeto humanizado. Este como fruto da ação humana, é objeto de conhecimento. Contudo, é necessário destacar-se que, para além desse fundamento e desse limite, a educação popular reconhece a existência da natureza exterior que ainda não se tornou objeto da atividade prática humana. Enquanto esta se mantiver em sua dimensão natural, sem a intervenção da prática humana, permanecerá como uma coisa em si. Esta pode apresentar-se como em condições de possibilidade de se transformar em objeto da práxis humana e, dessa maneira, em objeto de conhecimento. Mesmo existindo essa natureza sem a práxis humana, anterior à história, o que se constitui como um processo de trabalho educativo humano – educação popular – é aquele que se dá em e pela prática do indivíduo, enquanto humaniza a natureza e naturaliza à dimensão de ser humano. Nesse sentido, Vázquez (1977, p. 155) assevera: “O conhecimento só existe na prática, e é o conhecimento de objetos nela integrados, de uma realidade que já perdeu, ou está em vias de perder, sua existência imediata, para ser uma realidade mediada pelo homem”. 344
Heráclito – pensador grego, pré-socrático, de cuja obra restaram apenas fragmentos.
436 A educação popular se externa, portanto, como um processo de produção de conhecimento. Assume a temporalidade desse processo, considerado a práxis – atividade real, material, adequada a finalidades – o critério de verdade para esse conhecimento. Sendo a práxis condicionada historicamente, assim também é o conhecimento. Nessa teoria de conhecimento, o ponto de partida que abre a possibilidade para o conhecimento é a realidade concreta. A verdade objetiva, contudo, buscada através dessa teoria, é também um problema de ordem prática. A educação popular busca um exercício verdadeiro da ação educativa na própria prática educativa, pois é aí, na prática, que se pode demonstrar a verdade, a realidade e o poder, o caráter terreno de pensamento humano. Ainda segundo o referido autor, “para mostrar sua verdade, tem que sair de si mesmo, plasmar-se, adquirir corpo na própria realidade, sob a forma de atividade prática” (ibid., . 156). Contudo, essa teoria de conhecimento, constituinte da educação popular, mesmo reconhecendo na prática o critério de verdade para o seu conhecimento, nem por isso se mantém fechada, pretendendo conter o único conhecimento. Mesmo na possibilidade de uma teoria se confirmar através da prática, nem por isso, pode-se aceitar, de forma dogmática, que esta é a expressão final da verdade daquele conhecimento. Mesmo que os objetivos planejados sejam atingidos, nem por isso pode ser atestada como verdade única e acabada. A verdade do conhecimento não pode estar prisioneira da adequação à aplicação exitosa ou fracassada. O êxito ou o fracasso não constituem, necessariamente, a verdade. Portanto, na educação popular, a prática não fala por si mesma. Assim, qualquer fato prático carece de análise e interpretação, tendo em vista que este não se revela a partir de uma mera observação imediata – uma apreensão intuitiva. O critério de verdade está na prática, mas só após uma interação da abstração ou da teoria sobre essa prática mesma. A metodologia de produção do conhecimento A teoria de conhecimento contida na educação popular expressa uma metodologia de produção do conhecimento que traz para o centro do processo educativo a categoria teóricoprática – o diálogo, sendo este traduzido não no sentido restrito de busca de consensos ou conciliações para se evitar disputas ou confrontos ideológicos de classes. Trata-se do diálogo como exercício concreto de se poder aceitar o risco de não prevalecer o seu ponto de vista ou opinião. O diálogo é aqui entendido como expressão da possibilidade da existência de outro patamar comum, dependente de outro registro do ser humano que torne possível a tomada de um caminho com características que se aproximem de universalidade ou de um caminho da verdade. Um diálogo que possibilite, por exemplo, ao saber técnico (conhecimento científico, não sendo confundido com o saber dominante), uma relação com o saber popular não de forma unidirecional, vertical e autoritária, mas sim horizontal, bidirecional e participativa. Pelo diálogo é que se pode tornar mais fácil uma prática de superação de valores e atitudes contidos no conhecimento e na educação dominantes que atingem a formação de todos. Pelo diálogo crítico também busca-se a superação de metodologias, presentes inclusive em educação popular, que expressam a mistificação do conhecimento e suas metodologias, prestando-se, apenas, para a sua própria reprodução. Em não fundando uma teoria que contribua para o povo avançar, vem justificar a questão levantada por Kulesza (1998, p. 5): “Não estaria simplesmente instrumentalizando o povo para que ele se conforme melhor ao sistema, apagando qualquer esperança que possa ter havido de emancipação”. Com ênfase no diálogo com as dimensões relacionais colocadas, exigem-se procedimentos educativos que garantam aos trabalhadores, conforme mostra Manfredi (1986, p. 49): 1) a possibilidade de serem protagonistas do processo de sistematização, reorganização e reelaboração do conhecimento, e que possam caminhar para estabelecer uma nova síntese entre o chamado conhecimento científico e o saber que provém de sua própria prática coletiva de classe; 2) a possibilidade para desenvolverem as seguintes habilidades e atitudes: orientar, dirigir e organizar debates e reuniões, sistematizar e expressar
437 ideias e opiniões; reunir, criticar e sintetizar informações, perceberem a importância e a necessidade da organização e da troca de informações entre os próprios trabalhadores. Através do diálogo, é possível, inclusive, exercitar-se no próprio saber perguntar, a partir da realidade cotidiana. Segundo Freire & Faundez (1985, p. 48),é na realidade que estão as perguntas essenciais, sendo este o caminho para o conhecimento. Perguntas que buscam um processo educativo transformador dos próprios saberes e do ser humano, ao vislumbrar a transformação da realidade concreta, isto é, aquela constituída de fatos, de dados, acrescida das percepções apresentadas pela população, povo ou comunidade, uma relação dialética entre subjetividade e objetividade. Um processo que significa por em prática a teoria do conhecimento apresentada, tendo na metodologia – ação educativa em si – momentos de criação e recriação do conhecimento. Há de se perguntar: Como se desenvolve tal processo dialético que ordena o movimento da abstração à realidade concreta? Ao estudar o método de análise da economia política, Marx (1978) descobre que esse método inicia-se sempre pelo real e pelo concreto, parecendo esta a forma correta. No estudo de um país, parece ser correto iniciar-se pela população, posto que esta se constitui na base e no sujeito social da produção. Porém, uma observação mais atenta, segundo ele, mostra que a população, mesmo sendo tão concreta, é, na verdade, uma abstração. Por conseguinte, esse método é falso. O próprio Marx (ibid., p. 116) esclarece: A população é uma abstração, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Por seu lado, estas classes são uma palavra vazia de sentido, se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. Chegados a este ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas. Este é o método dialético que se apresenta útil como realização de uma metodologia de produção de conhecimento em educação popular. Assim é que o pensamento pode mover-se por dentro de suas partes. No universo, apreender as suas interconexões e o conjunto no qual elas se fundem. Contudo, é em Limoeiro Cardoso (1990, p. 19) que se encontra um acompanhamento mais explícito sobre o desenvolvimento dessa metodologia de busca de conhecimentos, que é subdividido em seis partes: A primeira trata do método em geral e indica um movimento que é exclusivamente teórico, passando-se totalmente no abstrato. A segunda afirma a anterioridade do concreto. A terceira propõe e resolve uma relação específica entre o real e o teórico, desdobrando as relações entre as categorias mais simples e as mais concretas. A quarta precisa a condição da população das abstrações mais gerais a partir do desenvolvimento concreto mais rico. A quita indica que é no último modo de produção estabelecido, porque o mais complexo, rico e variado, que se torna possível a inteligibilidade não só dele mesmo, como também de todas as sociedades anteriores. A sexta retorna ao método, estabelecendo que a ordem das categorias deve seguir uma hierarquia teórica, em função da sua importância correlativa dentro da sociedade mais complexa, base das abstrações mais
438 gerais e categorias mais simples, e não em função do seu aparecimento histórico. Trata-se de uma apresentação metodológica dialetizada entre a abstração e a prática, tendo na história das contradições das sociedades o motor para se refazer o conhecimento estabelecido e a busca de outras possibilidades. Jara (1994, p. 102) entende que a teorização não é qualquer processo de reflexão. Destaca, como fundamental, a realização ordenada da abstração para se poder chegar à causas internas, estruturais e históricas de uma realidade, apercebendo-se de sua totalidade, através de uma visão crítica e criadora da prática social. Ademais, a atividade teórica, em educação popular, procura proporcionar o exercício a amplos setores populares,345 no sentido de adquirirem a capacidade de pensar por si mesmos. No exercício do dia a dia, podem ser encontrados na metodologia346 da pesquisa-ação os elementos dessa perspectiva de produção de conhecimento, em que este é compreendido como um produto social que, portanto, está em permanente movimento de mudança, na medida em que a realidade concreta é dinâmica. O problema a ser investigado nessa metodologia tem origem na própria comunidade que o define, analisa e resolve. O objetivo último da pesquisa é, através da busca da mudança da realidade, contribuir para a melhoria da situação de vida das pessoas e coletivamente da comunidade. A comunidade é partícipe de todas as etapas da pesquisa, sendo um processo que auxilia na descoberta das forças sociais e das suas limitações quanto à busca de mudanças. Dentro dessa justificativa, o pesquisador se transforma em aprendiz e, ao mesmo tempo, participante do processo, assumindo compromissos não apenas individuais, mas, sobretudo sociais, ao se tornar tanto um observador crítico com um participante ativo do processo. Por outro lado, este processo metodológico de produção de conhecimento – a pesquisa-ação347 busca, de forma incessante, a superação da dualidade existente entre conhecimento e ação, estabelecendo a prática de que é necessário conhecer para atuar socialmente, condicionando o conhecimento a um produto social gerado da práxis humana. O conteúdo e a avaliação Esse produto social, por sua vez, é caracterizado através de um conteúdo que precisa apresentar elementos para a necessária avaliação do processo que se desenvolve. Tal conteúdo é originário de uma realidade marcada pela existência de classes sociais, entendidas como grupos que se definem em decorrência das relações de propriedade com os meios de produção, isto é, proprietários e não-proprietários, além da identificação através dos assemelhados modos de pensar e de agir. As classes sociais se estabelecem à medida que tomam consciência dessa situação de diferenciação – consciência de classe. Hoje, todavia, em decorrência da complexidade social crescente, a condição de classe se apresenta com maior amplitude, exigindo maior abertura conceitual em torno de classe social. Nesse sentido, pode abranger os trabalhadores improdutivos – os que estão inseridos no mercado de trabalho sem gerarem, necessariamente, mais-valia – os subempregados e desocupados compondo, contudo, uma 345
Setores populares. É uma referência ao campesinato, ao proletariado industrial, às classes médias empobrecidas, aos conglomerados marginais urbanos, aos vários protagonistas em movimentos sociais que lutam por demandas específicas, transcendendo as dimensões classistas, tais como, gênero, idade, etnia, ecologia e outros. Ver: HERNANDEZ, Babel & FISCHMANN, Gustavo. Educacion Popular y Reestruturación Económico-Política. In: Educação Popular: Utopia Latinio-Americana. Moacir Gadoti e Carlos Alberto Torres (Org.). São Paulo: Cortez, 1994. 346 Vários autores têm abordado questões de metodologia, destacando-se: Ivandro da Costa Sales, desenvolvendo, hoje, pesquisa na temática – Universidade e movimentos sociais, na Paraíba; Michel Thiollen; Orlando Fals Borda: Paulo Freire; Rosiska Darcy de Oliveira; Miguel Darcy de Oliveira; Carlos Rodrigues Brandão e outros. 347 Nesse campo, se coloca a Pesquisa Participante com muitas coisas em comum à Metodologia da Pesquisa-Ação,como por exemplo, a mesma crítica à pesquisa tradicional ou toda base teórica pautada na mudança.
439 classe social subalterna. A condição de subalternidade desses segmentos sociais insere-se na relação com os meios de produção, não-proprietários desses meios, determinando outras formas de dominação, como a política e ideológica, no conjunto das relações de poder. Com esta perspectiva Cardoso (1995, p. 62) inclui no âmbito das classes subalternas: Todos os segmentos da sociedade que não possuem os meios de produção e estão, portanto, sob o domínio econômico, político e ideológico das classes que representam o capital no conjunto das relações de produção e das relações de poder; assalariados dos setores caracterizados como primário, secundário e terciários (elementos dos setores produtivo e improdutivo); os que exercem atividade manual e os que exercem atividade não-manual e intelectual. Incluem-se, ainda, os segmentos não-incorporados ao mercado de trabalho que são os trabalhadores em potencial, inclusive o exército industrial de reserva, que é um segmento extremamente funcional no capitalismo. A condição de subalternidade alcança dimensões mais amplas. Passa a se caracterizar, não só através das relações de exploração, como também da dominação, da exclusão econômica e da política, resultantes da situação de não-proprietários dos meios de produção. O conteúdo dessa realidade compõe uma educação para esses setores subalternos – uma educação de subalternos – equivalendo à educação de setores populares da sociedade que passa a ter variadas modalidades desse trabalho pedagógico, pois está dirigido também aos moradores de periferias de cidades, aos camponeses e a todas as outras categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto, incluindo e a todas as outras categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto, incluindo a educação indígena, não-seriada. Vê-se, portanto, que é uma realidade caracterizada não pela individualidade, mas pelo coletivo, mesmo que a dimensão do indivíduo tenha destaque e seja de conteúdo necessariamente social, relacionando-se com uma aprendizagem em processo. A definição desses conteúdos nos movimentos populares permite pautar-se por reivindicações e necessidades desses setores, gerando um conteúdo associado ao equilíbrio entre as direções políticas existentes nesses movimentos e o incentivo à criatividade popular, ao tornar possível uma educação capaz de permitir a socialização da linguagem e da cultura popular, transformando-os em comunicação social. A educação popular, através desses conteúdos, faz-se útil ao estudo dos direitos básicos do povo, à negociação em igualdade de condições e, sobretudo, ao exercício para a manutenção das lutas. São conteúdos formulados em processos educativos necessariamente planejados, eliminando toda forma espontânea ou em aguardo a inspirações duvidosas de algum elementosurpresa. Esses conteúdos, por sua vez, determinam-se, não aprioristicamente, mas numa relação de dependência com objetivos submetidos à apreciação coletiva. São provenientes de interesses localizados, mas sem perder a perspectiva mais geral do coletivo ou da classe. São conteúdos básicos, planejados e definidos, contudo, mantendo certa flexibilidade no seu manejo através das técnicas educativas, considerando a existência de um conjunto de conhecimento universal que os setores populares e o indivíduo não podem deixar de conhecer, devido a sua utilidade e importância para os seus próprios objetivos estratégicos políticos. Assim, também, não se pode ficar preso à teorização da prática, submergindo-se em um empirismo vulgar. Faz-se fundamental a reflexão teórica mais ampla na direção de universalidade desse conhecimento. Não se trata, portanto, de mera troca de saberes (científico e popular de resistência), mas de uma aprendizagem em que se processa e se produz conhecimento, numa relação entre os distintos tipos de conhecimentos. Isto caracteriza a total abertura do saber popular em relação aos demais saberes, enquanto se professa e se exerce o diálogo, assimilando também conhecimentos científicos úteis ao processo de conscientização e repassando-se aos demais o saber popular. Para a avaliação dos conteúdos e dos processos em educação popular, recorrer-se à análise da aplicação da concepção metodológica dialética assumida, passando pela origem (realidade) dos problemas em estudos; recorre-se também à maneira como se está
440 desenvolvendo a consciência crítica dos participantes desse processo educativo, bem como ao tempo em que estão se processando as atividades. A avaliação dos conteúdos da educação popular conduz à análise organizativa de todo processo educativo em desenvolvimento. A teoria política Esse processo educativo – um sistema educativo – desenvolve-se com bases em uma teoria política. Em várias experiências em educação popular, contudo, tem-se tentado esconder a dimensão política que a caracteriza, tentando-se veicular essas práticas como despolitizadas, sobretudo aquelas que se voltam às políticas da conservação. Todavia, é exigência da educação popular expressar-se pela sua metodologia, teoria de conhecimento, conteúdo, avaliação e filosofia como uma prática política. Torna-se prática política na medida em que expressa uma ação coletiva, não se esgotando em possíveis relações entre indivíduos ou pessoas, como a relação entre educador e educando. É uma relação entre todos os participantes das ações educativas com o mundo – relações sociais – objetivando a organização do povo. É prática política, enquanto prática educativa em que educador e educando investigam a realidade. Nela, destaca-se os processos econômicos e políticos mais gerais, promovendo, coletivamente, as mudanças de conteúdos dessa sua investigação, conteúdos de consciência, além da conduta dos indivíduos envolvidos nesse processo. Como prática política, busca conhecer a realidade, apresentando-se com objetivo explícito de transformação da realidade, em que os processos de conhecimento em desenvolvimento devem estar sob o controle do povo. O sujeito em educação popular não é simplesmente o sujeito enquanto indivíduo, mas um sujeito coletivo, ou seja, as classes populares. Assim, educação popular, como processo educativo de desenvolvimento social, busca o crescimento da consciência dessas classes. Mas, como se pode avaliar esse fortalecimento ou avanço da consciência de classe? Segundo Jara (1994, p. 97), a consciência de classe não é aferida pelo nível escolar e muito menos pela capacidade das pessoas de memorizarem conceitos revolucionários. Não se afere pela clareza política individual de membros das classes populares. Ela se expressa como uma consciência social, coletiva, manifestada pelos mecanismos organizativos desenvolvidos pelas classes sociais, como expressão concreta e consciente da prática que realizam. Não há consciência de classe que não seja explicitada através de uma prática organizada e de classe. A consciência de classe, ainda segundo o referido pesquisador, pressupõe relações e inter-relações dialéticas de fatores tanto estruturais como superestruturais, sejam objetivos ou subjetivos. Ela não ocorre, por exemplo, apenas no campo pedagógico ou mesmo ideológico, despojada de bases materiais, mas através das relações e implicações dessas bases políticas e materiais. Não há, portanto, consciência de classe deslocada das relações com a realidade, que traz os conflitos sobre as verdades políticas, os desejos, o poder e sobre o próprio pensamento. Daí pode-se destacar a existência de uma filosofia em educação popular, nada utilitarista, mas tendo a ver com aquilo que existe de concreto, consistindo nisso o seu caráter tanto abstrato como ideológico. É a partir dessas relações que se torna expressiva a constituição das relações econômicas que formam a estrutura econômica da sociedade e sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política. Essa superestrutura vai corresponder a formas de consciência social determinada. Apresenta, por outro lado, uma diferenciação marcante entre a transformação material das condições econômicas de produção e as formas jurídicas, políticas, religiosas ou filosóficas. Essas são as formas ideológicas348 em que se expressam os conflitos e onde o homem toma consciência dos mesmos, buscando a sua superação. LIMOEIRO CARDOSO (1978, p. 42) esclarece que “asa formas de consciência social existem no jurídico, no político e nos demais aspectos (religiosos, artísticos, filosóficos) que compõem a superestrutura”. É fundamental, portanto, na ideologia da educação popular, a superação dos mecanismos, também ideológicos da classe dominante, onde se apresentam as justificativas, isto é, a ideologia do como, das necessidades dessa classe dominante, mascarando-as como as 348
Ver: LIMOEIRO CARDOSO, Miriam. Ideologia do desenvolvimento – Brasil: JK-JQ. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
441 necessidades de todos. A ideologia da educação popular se orienta no sentido de desmascarar esse tipo de análise, apresentando a ideologia do porquê, a ideologia das classes subalternas, baseada, sobretudo, no questionamento da dominação e, ao mesmo tempo, responsável pela busca de uma organização da sociedade. Essa produção ideológica das classes sociais, sejam classes populares ou classe dominante, é explicada pela categoria teórica – hegemonia.349 É a partir deste conceito, segundo GRAMSCI (1977), que se tornam possíveis as explicações das relações que se travam entre classes sociais, bem como no interior das classes sociais fundamentais, constituindo-as, tornando-se possível a discussão de aspectos da direção política e cultural que envolve as classes fundamentais presentes na sociedade. Em Gramsci, hegemonia é, portanto, um conceito que não exige o domínio prévio do poder, mas sim a adesão em torno de uma classe, seja por outra classe ou por frações dessa classe. Dessa adesão decorrem dois aspectos básicos. O primeiro é a coesão por oposição, isto é, o processo de adesão no interior de uma classe, através de um processo gerador de uma direção a partir de frações dessa mesma classe, distanciando-a da outra classe fundamental. Esse processo conduz à coesão de classe. É possível que a direção política também se exerça entre classes sociais, quando um projeto de uma fração de uma política também se exerça entre classes sociais, quando um projeto de uma fração de uma classe consegue a adesão não somente de setores afins da mesma classe, como também de frações de outra classe. Através desse processo, um projeto cuja base e origem são particulares, se generaliza ou até se universaliza, funcionando então como um projeto da sociedade como um todo. O segundo aspecto se refere à coesão por domínio, num processo de imposição entre classes distintas. Instaura-se aí, com o recurso à força, a coesão entre classes. O primeiro aspecto depende da “subordinação, ou do exercício negativo do domínio e conduz a uma coesão de classe”, o segundo depende “do exercício positivo do domínio e instaura uma coesão, precária por que entre as classes” (LIMOEIRO CARDOSO, 1978, p. 73). Na concepção gramsciana, a hegemonia se exerce e se expressa de duas maneiras: uma pelo domínio; outra pela direção intelectual e moral. O domínio pressupõe o controle do poder e a utilização da força através da coerção, já através do exercício da direção intelectual e moral pressupõe a adesão por meios ideológicos, constituindo a função marcadamente hegemônica. Hegemonia, assim compreendida, abre a possibilidade de sua construção no campo das classes populares ou subalternas, vinculada ao grupo hegemônico interno ou grupo social básico. Como reforma intelectual e moral, é um processo de formação da vontade coletiva, unificador do proletariado, dos trabalhadores em torno das lutas fundamentais da classe. Um processo de unicidade de fins econômicos e políticos com a unidade intelectual e moral, que é possível através da formação de uma política de aliança. “O proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de classes que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora” (GRAMSCI, 1977, p. 22). Hegemonia, como cultura de uma sociedade de classe, se expressa através de um complexo de experiências, relações e ações em que há limites fixados e interiorizados nos indivíduos e nas classes. Contudo, dispondo de maior amplitude política do que a ideologia, a construção da hegemonia tem capacidade de controlar e possibilitar mudanças. Como reforma intelectual e moral, adquire, ainda, função eminentemente pedagógica. Isto se torna possível na medida em que produz a ideologia das classes subalternas, que se realiza com a afirmação da direção dessas classes e também com a possibilidade de superação da condição de subalternidade. É, ainda, pedagógica ao enfatizar um processo de ensino e uma vida voltados à conquista de outra ordem social. O espaço pedagógico das práticas de educação popular, quer permite vislumbrar possibilidades de outra ordem social, aponta para uma tomada de posição política de resistência expressa pelo confronto com a situação vigente. Resistência, através de variadas formas, às 349
Essa interpretação de hegemonia é desenvolvida por LIMOEIRO CARDOSO, Miriam, em seus dois livros. La construcción de conocimientos: cuoestiones de teoria y método; Ideologia do desenvolvimento-Brasil: JK-JQ.
442 diferenciadas políticas dominantes que desejam a modelação de todos em um mero conjunto de massas humanas, nivelando todos a igualdades que, em si mesmas, só trazem manipulações e equívocos. Uma resistência às tentativas de manipulações psicológicas que, em nome da diversidade, desenvolvem o gosto extremado da individualidade. Resistência às formulações que se apresentam como forma única e acabada, sugerindo um fim da história. Pela resistência se efetiva também o exercício da capacidade de direção política fundamental para a construção da hegemonia dos vários setores das classes subalternas. Assim, também, se caminha para a conquista da cidadania, entendida como a explicitação das possibilidades de acesso do indivíduo à produção, à gestão e ao usufruto dos bens e serviços da sociedade, rompendo com o fenômeno, tão atual, de exclusão social. Trata-se de um fenômeno histórico que tem garantido privilégios aos responsáveis por essa exclusão – os setores dominantes – que se valem de um instrumento poderoso, autoritário e privatizado: o Estado. Uma resistência que possibilite, inclusive, a participação nesse Estado, não no sentido de reprodução da exclusão, mas, segundo Yeno Neto (1993, p. 153), para “gerar projetos de trabalho no interior do Estado que objetivem reforçar e apoiar as organizações populares no que elas têm de autonomia frente ao próprio Estado”. Resistência às formulações de uma ética e de uma moral utilitária que fomentam e enfatizam a individualidade em nome de um benefício pessoal primeiro. a ela contrapõe-se a ética da comunicação, do diálogo, da responsabilidade social, da democratização, da justiça social, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças, pelas escolhas individuais e grupais, elementos que potenciam a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas. Ou, como afirma SCOGUGLIA (1997, p. 203), pela busca de uma outra nacionalidade ou de outras racionalidades. A resistência à massificação e ao nivelamento passa a dar sentido às diferenciadas metodologias de educação popular. Esta, ao se utilizar de uma perspectiva dialética, contribui, decididamente, para o encontro de estratégias e de condições de lutas para as transformações da realidade. Educação popular expressa, ainda, a busca de sua utopia, que é a busca da liberdade. Liberdade no sentido político, cujo exercício se espelha no respeito aos direitos dos outros, mas contendo o germe do rompimento, através da ação política, de regras desumanas. Liberdade no sentido ético, que possibilita o direito de agir das pessoas, sem necessariamente estarem prisioneiras de determinações externas. Liberdade no sentido filosófico, que mostra as condições e limites do exercício dessa própria liberdade, considerando a existência do outro, com a clareza de que o humano não é um ser acabado, posto que histórico. Por fim, liberdade de pensamento, que torna o indivíduo capaz de dizer o que deseja, assumindo também, como decorrência, a responsabilidade desse pensar e desse agir. Sobre liberdade, afirma Freire (1991, p. 50): Penso que a liberdade, como gesto necessário, como impulso fundamental, como expressão de vida, como anseio quando castrada, como ódio quando explosão de busca, nos vem acompanhando ao longo da história. Sem ela, ou melhor, sem luta por ela, não é possível criação, invenção, risco, existência humana. Este é um esforço de ascensão em que o indivíduo se torna, cada vez mais humano, sendo expressão de ações, forçosamente, subversivas. Esta é uma utopia que se caracteriza, não por um idealismo impossível, mas por um sonho cheio de possibilidades de realização. Considerações Educação popular é um sistema educativo aberto, caracterizado por um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionados entre si, ordenados segundo princípios e experiências. Mas esse sistema forma um todo, uma unidade alicerçado por uma filosofia com uma teoria de conhecimento, metodologias da produção desse conhecimento, com conteúdos e técnicas de avaliação, sustentado por uma base política. É, portanto, um processo permanente de teorização sobre a prática que serve ao avanço histórico dos movimentos sociais, particularmente, os movimentos sociais populares. Como sistema
443 aberto, apresenta-se, ainda, com uma característica determinante, no sentido de poder absorver novas formulações ou ratificar, corrigir ou eliminar aquelas já estabelecidas. É uma característica da educação popular advinda da diversidade do campo cultural onde se realizam as práticas educativas desse sistema. Deve estar aberta a novas formas de captação da realidade, contemplando o emotivo, o sensitivo e o físico dos indivíduos envolvidos nesse processo de educação, para além da via intelectual, até então, considerada quase única e, ainda, à ampliação dos sujeitos sociais, ao considerar a complexidade organizativa da sociedade, trazia pelas reformas estruturais que estão se processando como resultado das novas tecnologias, sobretudo, no mundo do trabalho. Enquanto unidade, porém, mantém-se de forma dialética, em comunicação com a sua exterioridade, caracterizando a educação popular com formas múltiploas e variadas, dependendo de todo esse processo relacional. Educação popular com características de enfrentamento a todas as formas de irracionalidade e promotora da emancipação dos setores populares, tornandose assim, necessariamente, humanizadora. Para a continuidade organizativa desse sistema educativo, impõem-se como necessidade o levantamento histórico desse processo singular de educação, a manutenção do debate teórico em torno da temática e, sobretudo, análises que apontem vetores de possibilidades em educação popular, diante de experiências emergentes ou já consolidadas. Referências ALVES, Márcio Moreira. A força do povo-democracia participativa em Lages. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. ARAÚJO, Anísio José da Silva; NEVES, Mary Yale R.; VIEIRA, Sarita Brazão & MEDEIROS, Nilma Maria U. de. Uma experiência em saúde do trabalhador no Hospital Universitário. João Pessoa, 1996 (mimeo). BARROS, Hélène Le Blanch. A experiência de aplicação do método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos em Brasília. In: Paulo Freire e a educação brasileira. Frente Cultural de Brasília, Brasília, 1982. BEISIEGEL, Celso de Rui. Estado e educação popular. São Paulo: Pioneira, 1974. BEISIEGEL, Celso de Rui. Cultura do povo e cultura popular. In: A cultura do povo (orgs.: Edênio Vale e José J. Queiroz. São Paulo: Educ., 1982. BEZERRA, Aula. As atividades em educação popular. I e II partes. Suplementos 17 e 18 de CEI, 1977 e 1978. Rio de Janeiro. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Da educação fundamental ao fundamental na Educação. In: Proposta (Revista a Serviço da Educação de Base), FASE, Suplemento I, Rio de Janeiro, set./1977. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A questão política da educação popular. São Paulo: Brasiliense, 1980. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação alternativa na sociedade autoritária. In: Perspectiva e dilemas da educação popular. Introdução e organização de Vanilda Paiva. Rio de Janeiro: Graal, 1984. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os caminhos cruzados: formas de pensar e realizar a educação na América Latina. In: Educação popular: utopia latino-americana. Moacir Gadotti & Carlos Alberto Torres (Coord.). São Paulo:Cortez e Edusp, 1994.
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EDUCAÇÃO POPULAR - sistema de teorias intercomunicantes350 A educação popular pode ser examinada como uma possibilidade educativa veiculada e incentivada tanto pelo Estado como por setores da sociedade civil – sindicatos, partidos políticos, organizações não-governamentais, igrejas e outras instituições. Tem despertado maior interesse como ferramenta de luta, a partir do início do século passado, na organização de setores das classes trabalhadoras. Manifestou-se no seio das práticas políticas dos anarquistas, sobretudo nas duas primeiras décadas, ou mesmo na perspectiva educacional do governo, desde a década de 30, estando presente na legislação ou em projetos da política governamental351, voltados à educação do povo, compreendida como educação popular. Em época mais recente, adquiriu novas dimensões quando a educação popular passou a ser compreendida, também, como aquela propalada em campanhas do tipo Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e, de certa forma, do Movimento de Educação de Base (MEB). Isto ocorreu com maior ênfase durante as quatro últimas décadas, quando passou a absorver as mais diferenciadas experiências educativas nas Américas, na África e outros continentes, com metodologias, linguagens, visões políticas, técnicas didáticas, mecanismos avaliativos próprios e presentes nos distintos movimentos sociais revolucionários do século passado. Nessa perspectiva, assumiu-se como sendo a forma da educação possível aos setores sociais como indígenas, camponeses, trabalhadores, trabalhadores sem terra, moradores de periferias das cidades e outros setores marginalizados das políticas públicas. Contudo, somente a partir da década de 50, com ênfase, no início da década de 60, tem início a demarcação desse campo da educação com as experiências de Paulo Freire352, de modo especial, no âmbito da alfabetização. No entanto, análises, tentativas e definições de políticas em educação direcionadas a esse campo da educação continuam. A partir do ambiente de analfabetismo regional, Paulo Freire passou a delimitar a aplicação de sua perspectiva educacional, definindo essa situação como de comunidade ou consciência “intransitiva”, quando os interesses das pessoas estão definidos pelas exigências elementares biológicas de sobrevivência. Por meio da ação educativa, eleva-se esse patamar de consciência para um nível de “transitividade”, onde o humano e também o seu mundo adquirem esferas para além das dimensões biológicas vitais, alçando-se o compromisso para com a sua existência. Esse patamar da “consciência transitiva”, considerado por Freire (1963) de “ingênua” em um primeiro estágio, é caracterizado pela visão das coisas de forma nebulosa e 350
Capítulo do livro: Educação Popular – enunciados teóricos (Vol 2). Agostinho da Silva Rosas & José Francisco de Melo Neto (organizadores). Editora da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa: 2008. 351 Ver: Kulesza, Wojciech Andrzej. Para a história da educação popular no Brasil republicano. João Pessoa, 2003. 352
A primeira, dentre as muitas experiências, aconteceu no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco, coordenado pelo Prof. Paulo Freire. Registrem-se ainda as ações educativas do Movimento de Cultura Popular (MCP) e da União Estadual dos Estudantes de Pernambuco, do Diretório Central dos Estudantes da Universidade do Recife e o Centro Popular de Cultura (CPC), criado em 1961, no Rio de Janeiro, ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE). Estas ações estenderam-se por vários Estados, destacando-se os projetos implantados na cidade de Angicos e Natal, no Rio Grande do Norte, com a Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”. Na Paraíba, destacaram-se as campanhas: 1) alfabetização-educação de adultos pelo rádio (SIREPA – Sistema Rádio-Educativo da Paraíba); 2) aplicação em larga escala do Método Paulo Freire e do movimento de cultura popular adjacente (CEPLAR – Campanha de Educação Popular); 3) Cruzada ABC – Cruzada da Ação Básica Cristã, pós-abril de 1964, liderada por missionários protestantes e técnicos norte-americanos. Suas experiências chegaram a Osasco (SP) e Brasília. Posteriormente, elaborou-se o Plano Nacional de Alfabetização (PNA-MEC), o Projeto Nordeste e Projeto Sul (Sergipe e Rio de Janeiro) financiados pelo MEC. Ver: Scocuglia, Afonso Celso (1997).
448 não como fruto da investigação, pela fragilidade dos argumentos, pela desconfiança de tudo que é novo, pela falta de incentivo ao debate ou por suas explicações mágicas. A partir daí, eleva-se para o exercício da crítica estabelecido pelo diálogo, fomentando a socialização dos bens culturais. Em sendo diálogo, é comunicação e, jamais, superposição de „comunicados‟ daqueles que se sentem possuidores desses bens. Isto implica “ter na própria realidade o elemento mediador. O homem comum e o intelectual, permeados pela realidade de ambos e „simpatizados‟ em torno dos objetos, fazem assim a intercomunicação, que é a própria democratização da cultura” (ibid.: 22). Então, há de se perguntar353: um processo educativo que percorre os patamares de consciência do nível da ingenuidade à crítica, por meio da comunicação, inserida no „seio‟ da cultura e promovendo a sua democratização, não se constitui como um sistema aberto de educação com teorias que se comunicam? É um possível sistema que não comporta a investigação por meio de cálculos lógicos, estando desprovido de interpretação. Não se está propondo o exame de um discurso que expresse símbolos primitivos determinadores de combinações simbólicas, construindo regras geradoras de novas regras de inferência que contenham expressões definidoras para outras novas regras. E, muito menos, que o seu percurso de chegada, por meio de formulações axiomáticas, seja a expressão da verdade última. Entende-se como um itinerário que pode expressar-se pelo modo de como se construiu aquele campo de conhecimento, o campo educativo popular, a forma peculiar de seu pensamento, com raciocínios que seguem um trajeto caracterizado por momentos intermediários dessa construção. Trata-se de um conjunto que expresse uma totalidade, estando traduzido nesse discurso. Essa totalidade precisa estar assentada em elementos unitários formados de conhecimentos múltiplos que organizam uma idéia central. A partir do concreto, os experimentos em educação popular e, portanto, o ambiente mais complexo de análise que se desenvolve e que se mantém, reunido como unidade mesma, constituem essa totalidade pelas suas determinações e diferenciações. O resultado é um conjunto expresso por inter-relações diversas, circunstanciadas em um certo tempo e movimento. E isto define a constituição de um sistema com teorias que, necessariamente, será mantido em aberto, comunicativo e em condições para comportar novas composições unitárias. Um sistema que encerra em si teorias traduzidas por proposições ou conjunto de proposições, envolvendo as suas relações e implicações. Essas teorias serão utilizadas na explicação desse fenômeno educativo, em que se tornem possíveis as suas verdades, bem como as bases de sua natureza. A partir dessas teorias, tornar-se-á possível a definição de hipóteses que poderão ser úteis nas explicações das realidades definidas. Com isso, estarão expondo os seus métodos, considerando a diferenciação dessas tentativas que conduzem o fenômeno educativo-popular. Todavia, um ambiente de educação não comporta teorias que se apresentem, tão-somente, assinaladas por generalização empírica ou por simples especulação. Em educação popular, são admissíveis teorias que possam se apresentar como expressão de síntese de um conjunto de proposições especulativas, desde que combinadas com proposições geradas das experiências. Com essa possibilidade, admite-se haver a sua formulação, a partir de vários ensaios históricos e outros em desenvolvimento, como um fenômeno educativo que, pelo trabalho humano, assegurem a produção e a apropriação dos bens culturais. De forma mais ampla, esse sistema tem como objetivo explorar e incentivar as potencialidades humanas educativas quanto 353
A pesquisa desenvolvida teve como amostra cinco grupos de profissionais no campo da educação popular, num total de noventa e seis participantes: a) na Experiência de Autogestão que vem sendo desenvolvida na Usina Catende-PE (2002 a 2004); b)durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com a participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro (2003); c) com profissionais (alunos/as) de 3 turmas em duas disciplinas Teoria em Educação Popular e História e Filosofia da Educação Popular, no Programa de Pós-Graduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura) (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB (2003 e 2004), coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos.
449 à produção e apropriação desses bens, na expectativa de mudanças. Experiências e formulações teóricas vêm abalizando seu significado como um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios alicerçados em vivências. Esses princípios, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Porém, mesmo resultando em uma unidade, esta se mantém em aberto, na medida em que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, educação e o popular. Dessa forma, a educação popular manifesta-se por meio do insistente desejo de criação de conhecimentos que busquem fazer história. Nessa construção da história, o ser humano expõe-se a novos temas e provoca o surgimento de novos valores, sugerindo outras formulações, dando origem a novas atitudes e mudando o seu comportamento. É um trabalho humano que se dá em e pela prática do indivíduo. Assim, à medida que humaniza a natureza, também naturaliza a sua dimensão de ser humano354. Expressa, ainda, a sua verdade, no sentido de que o indivíduo deve sair de si mesmo e modelar a própria realidade expressa pelas suas atividades. Nesse movimento, o humano elabora, sistematiza e reelabora o conhecimento, cuja cientificidade se demonstra na sua própria prática coletiva. Constrói-se, dessa maneira, uma metodologia coletiva capaz de tornar-se hábil em atitudes de orientação, sistematização e explanação de idéias. Com ela, preparam-se técnicas de reuniões, exercitando a crítica e a organização geral de entes humanos em suas classes. Através dessa teoria, exteriorizam-se conteúdos gerais que se originam no mundo concreto, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico. Esse modelo vem sendo aplicado, com sucesso, nas ações educativas com moradores de periferias de cidades, operários, camponeses e outras categorias de pequenos produtores rurais, incluindo a educação indígena, não seriada. É um ato pedagógico em contínuo movimento, cuja dimensão qualitativa reclama a forma como se desenvolve a “consciência crítica” de seus participantes e o tempo em que as atividades são conduzidas. A avaliação de seus conteúdos, finalmente, conduz à análise organizativa do conjunto educativo em desenvolvimento. Esse fenômeno educativo cultiva valores éticos promotores de atitudes democráticas, direcionadas para a igualdade e a liberdade. Tais valores efetivam-se como prática para a liberdade, “como gesto necessário, como impulso fundamental, como expressão de vida, como anseio quando castrada, como ódio quando explosão de busca, que nos vem acompanhando ao longo da história. Sem ela, ou melhor, sem luta por ela, não é possível criação, invenção, risco, existência humana” (Freire, 1991: 50). É uma luta coletiva ansiosa por democracia que, para Calado (2003), exigirá atitudes coletivas com dimensões de curto, médio e longos prazos, envolvendo os variados segmentos explorados da população. Caso esses setores estejam ausentes, tal conquista não ocorrerá. Essa luta resultará em um esforço de ascese em que o indivíduo se torna cada vez mais humano, quando inicia a sua descoberta consciente do mundo. As suas atividades conduzem para uma idéia central – a liberdade. Inicia-se na alfabetização, passa pelos círculos de cultura355, pela educação básica e média, chegando, de forma presumível, à universidade popular e a outros ambientes do conhecimento. Trata-se de um percurso de exercícios forçosamente subversivos, fundamentado na liberdade como expressão da utopia que está prenhe de possibilidades de realização. Esse é o percurso revelado por um sistema educativo. As bases da educação popular tornaram-se mais sólidas com Freire. Os seus programas de alfabetização de adultos originaram-se nas análises e nas críticas às situações existentes, em particular, ao analfabetismo, tentando a superação desse quadro com ações culturais para a liberdade356. O próprio termo “surgiu do reconhecimento da existência da diferença e da 354
Ver: Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência. – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Com destaque ao capítulo que aborda a teoria da cultura. 355 Ambiente formado por um círculo de pessoas em que, pelo diálogo (educação popular), promovem-se a codificação e a decodificação de seus mundos e suas vidas. 356
Ver os livros de Paulo Freire: Educação como prática da liberdade; Ação cultural para a liberdade e outros escritos; Conscientização; Teoria e prática da libertação; Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire e Pedagogia do oprimido.
450 oposição entre culturas do povo e cultura da elite” (Brennand, 2003: 61). A sua ação cultural libertadora gestou programas voltados aos setores que estão à margem da sociedade - os oprimidos. Buscou a superação existencial da situação de „dominado‟ daqueles que estão despossuídos dos produtos culturais, a partir da capacidade de leitura. Alimentou-se um desejo de caminhada em que se supera a condição de análise da mera experiência, mesmo que seja tida como ponto de partida. Transgrediu-se, pelo pensar crítico, a visão sensível geradora de um saber apenas existencial ou opinativo, fecundada de uma ação prisioneira da magia. Esse percurso inicia-se por outro sistema que é o de sinalizações, tratado como um sistema universal que descortina a condição de uma comunicação escrita. A questão que se impõe é: Como proceder a essa montagem de sinalizações? “Somente um método dialogal, ativo, participante poderia realmente fazê-lo. Somente pelo diálogo que, nascendo numa matriz crítica, gera criticidade e que implica uma relação de como conseguir esses objetivos” (Freire, 1963: 14). Estabelece-se prontamente o caminho da construção de um sistema educativo popular. O método em construção traz consigo uma teoria de conhecimento que tem como ponto de partida o mundo concreto por meio do levantamento do universo vocabular do grupo em condição de se alfabetizar. Nesse ambiente, desabrocham os seus anseios, suas crenças, suas frustrações e a estética de sua linguagem. Passa-se, em seguida, para um segundo momento de seleção nesse universo vocabular, quando o grupo consegue identificar as palavras que se apresentam mais ricas em fonemas e „pluralidade de engajamento‟ no ambiente onde vive local, regional e nacional. Avança-se, nos momentos seguintes, para o debate, a partir das situações que vão sendo geradas. Possibilita-se, com isto, a elaboração das „fichas-roteiro‟ e dos vídeos auxiliares dos coordenadores na organização da aprendizagem. A partir desse material, avança-se para a definição dos fonemas que irão compor outras palavras, continuando com os círculos de cultura. De acordo com Paulo Freire, esse método anuncia a definição da primeira etapa do percurso educativo, que é a fase da alfabetização infantil. A segunda etapa é a alfabetização de adultos, que abre à educação básica. Essa etapa contribui para a oferta do ensino médio e a organização da universidade popular, conduzindo às etapas finais da criação de um Instituto de Ciências do Homem. Culminará com a concretização de um Centro de Estudos Internacionais. É um método que se funde com a teoria do conhecimento e com a organização estruturante de um possível esboço de currículo, permeado por análises lógicas, semióticas, lingüísticas e filosóficas. Incorpora uma teoria da comunicação, edificando-se a partir de duas categorias fundantes: a comunicação e a cultura. E filosofia da educação “é, entre outras coisas, o estudo deste processo de transferência ou transmissão de cultura, e a teoria e prática da comunicação, que a torna possível” (Maciel, 1963: 29). Pela comunicação, opera-se o sistema, enquanto a cultura torna-se o meio para sua realização, adquirindo maior radicalidade com a necessária socialização dos bens culturais. Assegura-se, assim, a pedagogia dialógica. Isto possibilita que o humano, à proporção que promove a democratização desses bens, realimenta-se com tal produto que lhe é próprio, pois é o seu produtor, passando o sistema a funcionar como um todo que se intercomunica. Por meio desse método dialogal, o humano passa a atuar conscientemente, educa-se e é educado com os demais. Ao se transformar e se comunicar, também transforma e comunica a todos. Ações intercomunicantes mantêm-se estabelecidas em experiências atuais, como a da Usina Catende357, externadas em planos de educação para a aprendizagem de outros valores
357
Desde o ano de 1993, os trabalhadores da Usina Catende, no município de Catende, em Pernambuco, uma das várias usinas que faliram na região açucareira nordestina, vêm mantendo a sua sobrevivência e a da usina sob o controle deles próprios, num longo exercício educativo para a autogestão, administrando, economicamente, em dimensões de uma economia solidária. É uma experiência em andamento denominada de Projeto Catende/Harmonia. No seu Plano de Educação foram montados dois cursos técnicos, que foram realizados simultaneamente, sendo um curso em Técnicas de Gerenciamento em Produção Agrícola, para trinta participantes, e o outro em Técnicas de Produção na Agroindústria Açucareira, para outros trinta participantes, e ambos sob a orientação pedagógica da educação popular e da economia solidária.
451 éticos nas relações humanas. “O presente momento deste projeto exige organização da atividade de formação para os trabalhadores compreenderem a sua ação no interior do processo produtivo da empresa... Este plano está articulado com outras atividades complementares, tais como pesquisa sobre satisfação no trabalho e reuniões, às quintas-feiras, nos engenhos” (Lima, 2001: 1). O projeto é um convite aos trabalhadores demonstrando que, além do domínio dos códigos de linguagem pela comunicação, é urgente a compreensão dos mecanismos de produção. Para além disso, avança-se nos objetivos desse plano de educação no ambiente da indústria, resumido como “a capacitação dos trabalhadores na perspectiva da empresa autogestionária” (ibid.: 2). E isto significa ter por base a dimensão concreta da realidade, pois a sua execução passará pela quebra da visão de que o trabalhador não apresenta condições de gerir um empreendimento produtivo com suas próprias mãos. “Portanto, a formação, como processo permanente de produção da história e visão de mundo de cada um, cumpre, em nossa compreensão, o papel fundamental de ser cimento que agrega diversos fragmentos existentes na consciência dos indivíduos, possibilitando a compreensão do projeto histórico dos trabalhadores” (ibid.: 2). O plano teve início com as discussões dos valores da economia solidária e da autogestão. Em seguida, passou pelas dimensões técnicas específicas para ambos os cursos, como as do plantio da cana, a escolha da agropecuária alternativa para a região e técnicas utilizadas para a produção do açúcar, no interior da usina. Chegou-se, por fim, ao exercício para a aprendizagem dos cálculos de custos das técnicas utilizadas, lastreadas pela educação popular. Abre-se um campo muito vasto para se discutir a lógica e a teoria do conhecimento que essas ações educativas e populares vêm demonstrando. O que se pode ver neste experimento? Uma expressiva série lógico-gnoseológica aparece. O objeto de ação é a realidade que se mostra com sentidos, expresso por sensações, percepções, juízos, verbalização e conhecimento objetivo. Surge uma dimensão que Maciel (1963) apresenta como as três operações do pensamento: a apreensão (operação mental que forma a idéia, expressa pela verbalização da palavra); o juízo (ato de afirmar as suas apreensões); o raciocínio (composição dos juízos entre si, por meio dos conectivos básicos geradores das demais conjunções). Através desse percurso, viabiliza-se a procura da melhoria sustentável das condições de vida dessa população de baixa renda e moradores dos engenhos de propriedade da usina. Isso ocorre por meio da mobilização, do acompanhamento e de suas iniciativas empreendedoras, inclusive de gestão, das articulações políticas dos atores locais, do trabalho sócio-educativo com as famílias da região, dos planos de negócios e projetos de empreendimentos, alimentando a visibilidade do aprender humano358. O projeto identifica-se com a abertura da sociedade à aprendizagem coletiva. Nela, segundo Gonçalves (2000: 37), “direcionam-se as novas formas de trabalho e de serviços, articulando-as ao aprender permanente e à flexibilidade adaptativa de seus sujeitos”. O método concebido na alfabetização freirena é aqui usado na mesma base maiêuticosocrática. O diálogo é usado como força motriz da linguagem que se instala e vai se apresentando como caminho, sempre aberto, para uma seqüência de argumentação ou novas definições de gestão para uma autogestão. O procedimento metodológico é sempre dicotômico(dialético) ou de divisão em duas partes; em seguida, uma das partes é tomada para nova definição, que novamente será dividida, dando continuidade ao procedimento. Este método duplo conduz, de início, a uma técnica de argumentação que procura desmontar os conhecimentos prévios de cada participante, bem como os possíveis vícios existentes de pensamento e tidos como verdadeiros e definitivos. O segundo momento é o da maiêutica em que todos se preparam, por meio de perguntas, trazendo as suas verdades. Os exercícios de anamnese (retornos à história da usina e às vezes do/a participante) criam as condições subjetivas desse trânsito do „eu‟ para a própria interioridade. Esse conhecimento é resultante do movimento de perguntas e respostas. Não é um conhecimento gerado de uma simples opinião, daquilo que se pensa ter certeza. Há, portanto,
358
Vários momentos nos círculos de cultura são coordenados pelo grupo de mulheres, sob a orientação do Centro de Mulheres, da cidade do Cabo/PE.
452 toda uma argumentação que o solidifica. Essa construção é o método utilizado nesse caminho educativo, que não se esgota com o ato de colecionar informações categóricas ou definitivas. O debate sobre a autogestão em Catende apresenta-se, em geral, de forma bastante abstrata, considerando que tentativas dessa natureza não são comuns na região. Para os trabalhadores, o diálogo que se trava na construção da autogestão não é algo para grupos fechados; é uma postura de reflexão desenvolvida nos indivíduos participantes sobre o seu mundo, no qual aprendem como criá-lo e recriá-lo. É um convívio entre sujeitos cognoscitivos, para além de simples sinais de linguagem, na medida em que envolve eventos sociais de relacionamentos entre os atores do processo. Para nós, não existe democracia sem apropriação coletiva dos meios de produção. A autogestão é um processo de aprendizado, principalmente em áreas de agroindústria em que predomina alto índice de analfabetismo e baixa institucionalidade de organização empreendedora dos trabalhadores. Portanto, autogestão trata-se de nova cultura do trabalho e administrativa se articulando numa estrutura funcional do negócio, em que os resultados finais são coletivamente apropriados (Usina Catende, 2002: 1)359.
Isto expressa as funções psicológicas da abstração e da generalização que Maciel (1963) detecta em Freire, na perspectiva de Pavlov. É um sistema de sinalizações em que, no primeiro momento, há ênfase nas percepções do mundo real e concreto; no segundo momento, pela linguagem, o humano transcende para a criação, em todas as esferas da vida, sendo esta inesgotável. Após esses anos de ações de ensino e aprendizagem para outro estilo de vida, os trabalhadores da usina exibem mudanças quanto ao uso da terra, mesmo que permaneça a cana de açúcar como produto principal. “Mudanças das relações empresa e sociedade, da liberdade de organização e expressão, da moradia, da educação, e que despertam para a questão: o que significa (a usina) numa região dominada secularmente pelo latifúndio, exploração do trabalho, analfabetismo, mandonismo e violência?” (Usina Catende, 2002: 2). Trata-se de uma questão para ser respondida por quem assume a relação homem e mundo, num ambiente com as dimensões culturais apresentadas, expressando, de forma visível, o avanço para a consciência crítica, possibilitada pela comunicação por meio do diálogo. São categorias ou postulados presentes em Freire e que aparecem nesse projeto, incentivando ações que definem pressupostos teóricos formuladores de um sistema intercomunicante. Nos círculos de cultura360, são discutidas as providências com vista à obtenção de alevinos para os barreiros dos trabalhadores ou a criação de outros animais e implementos agrícolas. Neles, os trabalhadores debatem suas formas de atuação junto à administração central da usina, como a eleição para os vários conselhos existentes, a autogestão, a safra e preços do açúcar, a defesa do projeto Catende/Harmonia e suas dificuldades, a sua participação na Articulação da Mata Sul361, além do mecanismo de falência e a discussão permanente sobre economia solidária e autogestão362. Também nos círculos, os trabalhadores decidem o conteúdo dos cursos promovidos no âmbito da usina, as técnicas de produção para a 359
Os textos produzidos na própria Usina Catende, aqui apresentados como mimeografados, estão disponíveis no ambiente de reuniões do Projeto Catende/Harmonia.
360
Compõem a Usina Catende quarenta e oito engenhos (povoados rurais), onde funcionam vinte e três círculos de cultura. Em todos, estão instaladas associações de moradores, espaços de discussão e reflexão daqueles moradores.
361
A Articulação das Entidades na Mata Sul de Pernambuco é um espaço de reflexão em que associações urbanas e rurais, organizações não-governamentais, movimento sindical de trabalhadores rurais e centros de mulheres (várias cidades) se articulam em torno de uma agenda comum para o desenvolvimento sustentável da Zona da Mata.
362
Ver: Cartilhas da Série Catende/Harmonia, volumes 1 e 2. (Material didático dos círculos de cultura).
453 agroindústria, onde são tratadas questões referentes à economia e à produção, além de todo o circuito da extração do açúcar – do plantio da cana à venda do açúcar no mercado internacional. “A socialização de conhecimentos adquiridos pela vivência, dialogando com os conceitos técnicos, favorece uma nova compreensão da realidade vivida pela produção familiar” (Usina Catende, 2004: 4). Trata-se do estudo de todos esses sinais que tem na linguagem o principal veículo de conhecimento e, na comunicação, o canal da cultura. Linguagem cuja dimensão pragmática verificada nesses aspectos da educação popular é destacada por Maciel (1963). Ele salienta quatro diferenciados níveis da pragmática, dando ênfase ao nível da pragmática existencial social, na semiótica das interpretações das palavras tratadas, e ao nível da pragmática existencial-transitiva, onde os participantes do „círculo de cultura‟ captam a dimensão política e social da palavra. Nesse momento, a cana não é mais uma simples planta, transformando-se em produto de vida, com as interfaces das dimensões de mercado e as conseqüências sociais para a região. Esses sinais compõem os currículos naquele campo de vivências educativas, tornando possível a sua interpretação devido à riqueza de seus fonemas. Merecem destaque os diversos engajamentos dos trabalhadores nesses ambientes, com suas dimensões sociais e políticas. Esses sinais também foram detectados por Melo Neto (1999), num exercício de ação cultural, na Zona da Mata Norte de Alagoas. O estudo foi desenvolvido com membros de sindicato, professores da escola normal, grupo do Mobral, do esporte, clube de jovens, grupo de zabumba e da festa dos guerreiros e artesanato, além de grupos de arte363. Produziu-se um conhecimento que, segundo Fleuri (2002: 211), “significa fundamentalmente construir teórico-praticamente relações humanas”. Expõe-se, com freqüência, a presença do humano no seu meio ambiente, por meio de sinais semióticos ou da linguagem escrita, em autênticos exercícios de codificação, realizados através de debates, de cartilhas, de fichas e vídeos. Os momentos de decifrar esses símbolos reconciliam as dimensões antropológicas e sociológicas do estudo364 e, portanto, desse sistema de educação. É a única empresa que incentiva o trabalhador para plantar a cana e moer na própria empresa, além de outras culturas. As outras empresas só precisam do nosso trabalho... Isso é de fundamental importância e é a grande diferença para as outras empresas. A gente acredita que os apoios das entidades como a CUT, a Federação e Confederação, os sindicatos e todos que abracem esse projeto muito ajudam (Amaro Juvino)365.
No entanto, vários são os projetos de instituições de apoio ao Projeto Catende/Harmonia e que, muitas vezes, pulverizam ações, conduzindo para a criação de uma equipe de educação da própria usina como forma de melhor incorporar as atividades educativas. 363
Ver: Melo Neto, José Francisco de e Kulesza, Wojciech Andrzey. Ação cultural no meio rural. In: Resistência popular – possibilidades, ontem e hoje. João Pessoa: Editora da UFPB, 2003.
364
As entrevistas completas, das quais são apresentados trechos, estão no Relatório desta Pesquisa denominado: Usina Catende – entre a doçura e a harmonia. Melo Neto, José Francisco de. Catende, 2003.
365
Trabalhador rural em engenhos da Usina Catente. Entrevista para esta pesquisa.
454
Então, a ADS (Agência de Desenvolvimento Sustentável) que a gente desenvolveu com a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e tem, inclusive, a ANTEAG (Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária). Estão desenvolvendo coisas muito parecidas. A gente tenta ver uma forma de como somar forças... Isto pressupõe, necessariamente, ter um trabalho educativo para que eles possam trabalhar de forma crítica todo processo (Isabel Cristina, professora da Catende/Harmonia).
Há necessidade de melhoria nos serviços prestados por grupos que contribuem para as ações de desenvolvimento local e da região. Além disso, é preciso criar novos mecanismos, fazendo com que os trabalhadores participem mais diretamente das negociações e decisões do Projeto Catende/Harmonia. Deve-se estabelecer um percurso de negociações que seja assumido e que garanta igual participação dos trabalhadores do campo e da empresa, tendo como pauta a implantação de política, buscando conferir as mesmas oportunidades a todos, de igualdade, de solidariedade e de proteção ao meio ambiente. São elementos de uma teoria política que se sustentam com o exercício da capacidade de gerenciar o empreendimento. A proposta do desenvolvimento local é nova para a região, e as relações sociais insistem em permanecer num tempo passado. Se ela (usina) fechasse e dividisse as terras para os trabalhadores seria bom – uma reforma agrária. Os donos que colocaram o pessoal para fora disseram, na época, para a gente receber o que nos era devido em terra e dinheiro. Os sindicalistas não aceitaram, com o interesse de tomar conta da empresa. Disseram que a empresa é do trabalhador, o lucro da empresa vai ser dividido pelos trabalhadores e isso nunca aconteceu nem vai acontecer. Eu acho que uma empresa dessas não vai para frente (José Milton)366.
As discussões continuam centradas nas questões econômicas, no mercado internacional do açúcar e no próprio desenvolvimento do projeto e da região, tendo-se a percepção de que as ações educativas não superam o debate sobre desenvolvimento. A esse respeito, alerta Ireland (2001: 176): “O crescimento econômico não é um substituto adequado para educação, ciência, cultura e comunicação entre povos e nações”. Todavia, os possíveis fatores de sucesso do Projeto Catende/Harmonia passam pela sua capacidade de produção, pelas relações que estejam ao seu favor entre a empresa e o Estado, bem como pela promoção da democracia interna no campo e na fábrica. Passam ainda por essa ação educativa, a partir da empresa, estendendo-se para a região e para o país, trilhando um caminho seguro em que a usina produza cultura, inclusive o açúcar. É preciso observar que, do ponto de vista jurídico, não houve o encerramento da falência. Os usineiros não assistem a tudo isto como expectadores. Acrescente-se, ainda, que uma empresa falida não pode fazer financiamento, investimento em pecuária, nem desenvolver pequenas fábricas. Isto só se viabiliza nas atuais condições, a partir de algum aporte de recursos da cooperação internacional. Precisamos transformar pessoas em dirigentes para o futuro. Além do problema econômico, há problemas de se planejar estrategicamente a ação dos bons quadros e dos atores existentes em torno do projeto. Todos aqueles dirigentes da Catende são importantíssimos, mas é possível 366
Entrevista para esta pesquisa. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Cidade de Palmares – PE. Palmares é um dos cinco municípios abrangidos pelo Projeto Catende/Harmonia, onde a usina tem suas terras.
455 aproveitar, ainda mais, o potencial deles num todo. As pessoas também têm muito potencial e é necessário ajudá-las nisso” (Risadalvo José, assessor do Projeto Catende/Harmonia)367. As críticas são feitas também por parte dos operários, quando apontam a necessidade de que o pessoal da indústria precisa partir para outras alternativas. Para o trabalhador do campo, há o „projeto cana de morador‟ com a posse pelo próprio agricultor da cana plantada e colhida. Nessas críticas, pedem que sejam examinados projetos para os operários da indústria, em seus variados setores. Nós temos uma carpintaria que está, praticamente, parada; temos uma cerâmica que poderia gerar renda; temos um hospital – a Policlínica Gouveia de Barros - que está, praticamente, parado, além da fundição. Então, nós da indústria temos que criar algum tipo de perspectiva, algum tipo de alternativa para a gente garantir a nossa sobrevivência e não ficar na dependência da Harmonia/Catende e do pessoal do campo (Francisco José e Edvaldo Ramos, operários da Usina). Cursos são promovidos para fortalecer metodologias de uma pedagogia participada, com a finalidade de “preparar trabalhadores residentes em áreas da usina, as zonas de produção agrícola, para atuar, técnica e solidariamente, no gerenciamento de produção da cana de açúcar e culturas alternativas para o desenvolvimento auto-sustentável” e “preparar trabalhadores para atuarem, técnica e solidariamente, em agroindústrias, no processo de produção do açúcar” (Melo Neto, 2003: 215), com conteúdos específicos, com um peculiar sistema de avaliação dos/as participantes e coordenadores/as dos cursos. Os canais variados e polissêmicos da linguagem cruzam-se. As pinturas, o auditivo, por meio do verbal, os áudios e gráficos estão presentes. Além da associação de fonemas e de palavras, associam-se palavras com as imagens, palavras com novas palavras, imagens com as palavras e imagens com novas imagens do mundo daqueles trabalhadores. Tal compreensão de linguagem pode explicar “o fato de que o indivíduo, ao usar a língua, não apenas exterioriza o pensamento ou transmite informações, mas também realiza ações com a própria linguagem e atua sobre os interlocutores” (Aquino, 2000: 53). Estes são campos de estudo para serem explorados pela teoria da comunicação e pela teoria da cultura, presentes nos exercícios da educação popular, efetivamente, com dimensões intercomunicantes. Resultados semelhantes foram catalogados em pesquisas que procuravam delinear ontologicamente a educação popular, junto a cursos de instituições368 que preparam profissionais para exercerem atividades nesse campo educativo. Durante a realização desses cursos, pesquisas foram desenvolvidas na busca de maior embasamento teórico para sua aplicação e a linguagem utilizada, tendo como fundamento o mundo experiencial dos participantes, definido como ponto de partida – o concreto. A presença do cotidiano entre os participantes desses cursos e suas reflexões foram se transformando em sínteses. A categoria teórica movimento acompanhou as reflexões e a produção coletiva durante o curso e a pesquisa, em um exercício geral de intersubjetividades. Foram coletados, com essa metodologia, os elementos que os educadores/as indicavam como os constituintes da educação popular, expressos abaixo:
367 368
Entrevista para esta pesquisa.
Dados de pesquisas realizadas no período de 2002 a 2004, nos cursos do Centro de Ação Comunitária (CEDAC), de preparação de profissionais em projetos que envolvem educação popular, na cidade do Rio de Janeiro, e com alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura), da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, em três turmas nas disciplinas de História e Filosofia da Educação Popular e de Teoria em Educação Popular. Todos os participantes são profissionais que atuam no campo da educação popular.
456
Quadro 1: Constituintes da educação popular com grau de pertinência369 igual ou superior a 80% dos respondentes.
CONSTITUINTES
RESPONDENTES(%)
Compromisso político Práxis Autonomia Crítica Cultura Diálogo Processo Pedagogia própria Transformação Realidade Empoderamento
100 94 88 88 88 88 88 88 81 81 81
Fonte: Pesquisa no CEDAC – Centro de Ação Comunitária, Rio de Janeiro, 2003. Esses dados reforçam a visão de educação popular expressa como um fenômeno cultural. Esse fenômeno passa a cultivar um tipo especial de ensino e aprendizagem, com teorias explícitas de conhecimento e de comunicação. Contém uma pedagogia própria, com conteúdos e procedimentos de avaliação, e uma base política libertadora efetivada por constituintes como a promoção de empoderamento das pessoas, a transformação e o compromisso político. A mesma pesquisa, realizada no ambiente universitário com alunos que atuam nessa área educacional, apresentou os resultados constantes no quadro que segue: Quadro 2: Constituintes da educação popular com grau de pertinência370 igual ou superior a 80% dos respondentes.
CONSTITUINTES Cultura Construção do sujeito Compromisso político Crítica Diálogo Democracia Liberdade Autonomia
RESPONDENTES (%) 95 90 90 88 88 85 85 85
369
Aquele elemento teórico que mais identifica a educação popular. Destaca-se ainda um conjunto de outros elementos de pertinência inferior ao índice definido: metodologia própria, organização/sistema, coletivo, experiência, incentivo aos saberes, cooperação, trabalho, identidade/autoria, emancipação, liberdade, ideologia, subjetividade, ação, construção, produção, identidade, gênero e reflexão.
370
Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina Teoria em Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Curso de Doutorado em Educação da UFPB, em João Pessoa - turma de 2003. Outras categorias teóricas que foram levantados com menor pertinência: produção de conhecimento(metodologia própria), prática, ideologia, autenticidade, experiência, transitoriedade e apropriação do produto da educação popular.
457 Identidade Práxis Incentivo aos saberes Trabalho Popular
85 80 80 80 80
Fonte: Pesquisa entre participantes de projetos em educação popular, João Pessoa, 2003.
Essas categorias teóricas, identificadas para a composição de um conceito em educação popular, parecem ir, pouco a pouco, consubstanciando a possibilidade de que as mesmas formem uma visão da educação popular permeada de princípios éticos. Vão, além disso, constituindo uma filosofia com elementos evidentes de uma teoria de conhecimento. Esses elementos convidam para uma metodologia ou uma pedagogia especial, acompanhada de conteúdos com forte inspiração política para a liberdade, assumida pelas dimensões da práxis, da autonomia e da crítica. Além disso, aproximam-se no mesmo ambiente de pesquisa, considerando outra amostra371, apresentada a seguir.
Quadro 3: Constituintes da educação popular com grau de pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes.
CONSTITUINTES
RESPONDENTES (%)
Autonomia Compromisso político Incentivo ao conhecimento Construção do sujeito Cultura Diálogo Práxis Trabalho Autenticidade/identidade Crítica Liberdade Saberes
90 90 90 85 85 85 85 85 80 80 80 80
Fonte: Pesquisa entre participantes de projetos em educação popular, João Pessoa, 2003. Esses elementos teóricos compõem material de discussão pelos participantes em seus ambientes de ensino e aprendizagem. Há, ainda, um exercício cujo objetivo é eliminar aspectos incongruentes do conceito, estabelecendo-se finalmente a educação popular como um conceito possível de orientar práticas educativo-populares.
371
Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina História e Filosofia da Educação Popular, no mesmo Programa de Pós-Graduação - turma de 2003. Outros elementos também foram revelados abaixo do percentual de pertinência definido: democracia, experiência, ideologia, identidade, prática, popular, produção do conhecimento, resgate do sujeito, transitoriedade e apropriação do produto da educação popular.
458 Os dados de outro grupo pesquisado372 apresentam os seguintes elementos constitutivos: ação transformadora, aprendizagem (sentir, pensar e agir), compromisso político, construção do sujeito, crítica, cultura, democracia, diálogo, emancipação, liberdade, práxis, produção e apropriação do conhecimento (metodologia própria), realidade e saberes. Esses elementos indicam a existência de uma teoria de conhecimento que realiza uma pedagogia pautada na crítica, no compromisso político popular e na ética do diálogo. Essa pedagogia volta-se à construção do sujeito, ao empoderamento dos indivíduos envolvidos nessas ações comunicantes, definindo, portanto, um conteúdo e procedimentos de avaliação orientados no próprio processo. Ao reforçarem o compromisso político, a emancipação, a igualdade, a liberdade, a justiça e a felicidade, demarcam políticas que visam à emancipação da pessoa humana. Essas diversas ações educativas seguem os passos indiciários de Freire que, com base em sua pedagogia, passam também a nortear o exercício educativo presente na Usina Catende, nessas várias práticas pesquisas e em outros tantos lugares. Parece, assim, razoável compreender a educação popular como um fenômeno de produção pelo trabalho e de apropriação dos produtos culturais da humanidade. Como um fenômeno da cultura, a educação popular tem nesta as dimensões de bens de consumo e bens de produção. Apresenta a divisão do trabalho e expõe a existência humana, em razão de ser o humano o criador da cultura, alimentando uma teoria da cultura. Com a dimensão ética do diálogo, a educação popular forja um sistema aberto de ensino e aprendizagem, cuja filosofia convida outros valores éticos para expressar o seu fazer. Além disso, aponta para uma teoria do conhecimento referenciada na realidade e em um procedimento da razão, em forma de intersubjetividade, expressando a intersecção do mundo objetivo das coisas, do mundo social das normas e do mundo subjetivo dos afetos – a linguagem - cobrando uma teoria da comunicação. Pressupõe uma linguagem expressa por normas vigentes geradas de manifestações que possam ser justificadas, pois do contrário não serão legítimas nem terão valor dialógico intersubjetivo. É, enfim, um fenômeno educativo pautado por uma pedagogia (metodologia) incentivadora da participação e do empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais. Esse fenômeno é lastreado em uma teoria política direcionada aos anseios humanos de liberdade, de justiça, de igualdade e felicidade, além de estimuladora das transformações sociais necessárias. São dimensões teóricas, práticas e de valores para a vida que promovem a educação popular a patamares com possibilidades para além da ênfase na alfabetização de adultos. É uma filosofia com posturas éticas que sugerem outro estilo de se viver em qualquer ambiente do cotidiano, podendo ser iniciado na educação do lar, na educação infantil, na alfabetização e nos níveis do ensino básico e médio, consolidando-se na educação superior e espraiando-se por todos os níveis de ensino, também, de pós-graduação. Com essa demarcação, parece razoável a interpretação da educação popular como um sistema aberto de teorias intercomunicantes.
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Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina Teoria em Educação Popular, no mesmo Programa de Pós-Graduação, turma de 2004.
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PAULO FREIRE DIALOGANTE373 Nas últimas quatro décadas, o humanista Paulo Freire tratou de temáticas, na sua vasta ação pedagógica, que expressam um caminho delineado por pensadores como Buber, Hegel e Marx, indo para além de uma abordagem ativa no campo da pedagogia. Ao se referir à alfabetização no plano da linguagem e da política, apresenta um profícuo debate de aspectos marcantes na experiência educacional. O pensamento de Freire emerge de sua própria experiência educativa. A sua percepção inscreve-se a partir de processos de alfabetização, transparecendo, em toda a obra, a compreensão dialética de uma teoria de educação. Ao retomar a relação originária dialética e diálogo, entende a educação como experiência da libertação humana. Sua teoria e prática pedagógicas estão, inteiramente, seivadas pelo diálogo, possibilitando o seu desenvolvimento crítico entre educador e educando. O pensamento dialético na pedagogia freireana exige uma fundamentação também dialética. Isto é, precisa se apresentar na reflexão filosófica de sua relação com a prática e de seu enraizamento, indo para além de formulações proposicionais para a educação, ao demarcar esse fenômeno de `poderamento´ cultural das pessoas como fenômeno de libertação humana. O pensamento de Freire se inscreve entre aqueles distanciados da radicalidade existente com a separação da teoria e da prática, caracterizando a ciência como um fruto da produção de conhecimento, voltado apenas ao referencial teórico, resultante de critérios de comprobabilidade e consistência lógica (Círculo de Viena). Sem desprezar a lógica, sua prática educativa enfatiza a prática humana e os seus mecanismos de decisão. Reconhece as técnicas e a sua importância (razão instrumental). A dimensão técnica está presente, também, no método de alfabetização. Considera, entretanto, a importância do entendimento, da busca democrática (tentativa de consensos), permeada pelas dimensões subjetivas dos procedimentos de decisão para a produção de um conhecimento com validade, agindo sob a égide da Razão, na busca da emancipação humana. Inserido numa tradição que empreende a superação da separação teoria e prática, a pedagogia de Freire atrela-se a uma compreensão de mundo que apreende a teoria e a prática como uma unidade, sob o primado da prática, existencialmente definida por um processo histórico e dialético. Estabelece a dimensão de práxis, como processo social global da afirmação humana da vida, tanto na natureza como na história. A teoria se torna reflexo da realidade material, mas é parte desta realidade. É tanto determinada pela prática como determinante para a práxis humana, em consonância com as leis da realidade. A prática se define como referencial para a verdade teórica, enquanto que a teoria se torna instrumento útil de orientação da práxis. Todavia, na sua pedagogia, a compreensão filosófica fundamental é de que a teoria e a prática são mediatizadas por meio e no plano do homem, manifestando-se como o objeto mesmo da educação. O conceito de homem não o coloca como algo que se faz por si mesmo. Ele está sendo sempre não um ser, mas um vir a ser, permeado de suas intersubjetividades. A teoria adquire contornos de uma crítica à práxis social. Nos conflitos e ações sociais da realidade está sempre presente e, então, se apercebe de que essa atividade prática, contida de si mesma, não se coloca como atividade de reprodução teórica simplesmente ou uma crítica teórica. Ela adquire a tarefa de transformação da práxis social que só se realiza na prática, mostrando toda a dialeticidade existente na práxis social. A práxis social, como momento de processos educativos, passa a se constituir como o fundamento do desenvolvimento histórico da sociedade, e é aí que se entranha o diálogo. Nesse sentido, é que Schmied-Kowarzik (1983: 44) vê em Freire, a influência de Marx em sua concepção de educação como: prática que serve à produção e reprodução; isto é, à formação dos indivíduos enquanto portadores da práxis social. A educação é uma função parcial integrante da produção e reprodução da vida social, que 373
Capítulo da Coleção Paulo Rosas: Aprimorando-se com Paulo Freire em dialogicidade. Vol V. Recife, Pe; Editora Bagaço, 2006.
461 é determinada por meio da tarefa natural, e ao mesmo tempo cunhada socialmente, da regeneração dos sujeitos humanos, sem os quais não existiria nenhuma práxis social. Em Freire, mantém-se um otimismo na Razão por meio da ação educativa. Contudo, a práxis social em educação, corre o risco de degeneração, no sentido da não realização de uma práxis ética mas de uma práxis manipuladora. Na busca de superação dessa armadilha, define princípios orientadores que irão se constituir em elementos éticos e ontológicos da construção de seu pensamento pedagógico e realização da experiência educacional. Ele apresenta como mérito, em todo o desenvolvimento dessa construção teóricopratica, segundo Brennand (1999: 134), “a dimensão crítica e criativa aliada à perspectiva epistemológica no processo global de conhecimento e sua relação concreta com experiência cultural e existencial dos educandos”. Mostra, por sua vez, aquilo de fundamental para a definição do pensamento freireano que são as categorias de cultura, homem e mundo, opressão e silêncio, consciência crítica, escola como espaço público e diálogo. Na busca de sentido às categorias, pode-se ver que a definição das mesmas só é possível por intermédio de um método que possibilite a explicação da manifestação existencial do homem desde sua origem, sua formação histórica, tendo como pano de fundo as necessidades vivenciadas nas relações com a natureza que o circunda. Por este método, cultura é: uma criação do homem, resultante da complexidade crescente das operações de que esse animal se mostra capaz no trato com a natureza material, e da luta a que se vê obrigado para manter-se em vida (Pinto: 1979: 121-122). Com esta perspectiva, a visão que se tem é a de que o homem é construtor de sua própria existência, diferentemente dos demais animais por mais complexos que estejam do ponto de vista orgânico. Estes não produzem a sua existência. Limitam-se ao uso e conservação daquilo que lhes são assegurados pela própria natureza. Conservam os seus instrumentos, seus abrigos e suas atitudes de defesa que marcam a sua vivência na natureza. Todavia, esta situação alterou-se nos humanos. Acresceu a sua capacidade de dar respostas à realidade, em dimensão quantitativa e qualitativa. Em função do crescimento de sua capacidade ideativa, foi possível inovar as operações que exerce sobre a natureza, diferenciando-se de atitudes outras presentes no passado da espécie. Estes atos foram se acumulando em comunidade e constituindo, também, uma consciência comunitária. Pela hereditariedade social e pela seleção desses atos positivos, desenvolvidos dessa relação com a natureza, estes são conservados e repassados às futuras gerações. A criação da cultura e a criação humana se constituem como indissociáveis, não tendo data de seu começo, condicionando-se reciprocamente. Cultura é um processo de acumulação das experiências do próprio homem. Ele seleciona aquelas que lhe são favoráveis. Suas imagens e lembranças, advindas das realidades sensíveis, são convertidas em idéias. Assim, avança para as generalizações, expressando um processo de diferenciação do mundo material enquanto que adquire contornos no pensamento humano. Em Freire, a cultura assume uma noção teórica central que é a sua indissociabilidade do processo de produção, com sua particularidade histórica. Produção esta que assume dois sentidos. O primeiro onde o homem produz a si mesmo, com sua ação exercida sobre a natureza, voltada à perpetuação da espécie. Ao evoluir, adquire progressivamente a capacidade ideativa. O segundo é o de produção dos meios de sustentação da vida para si e sua prole. Com esta visão de cultura pode-se compreender a dimensão da relação homem e mundo em todo o seu processo de educação. Neste movimento dialético presente na história da cultura, o homem descobre a dimensão do tempo, adquirindo temporalidade ao tomar discernimento do tempo e pela consciência, a sua historicidade. As demais espécies da natureza não apresentam historicidade, diante dessa não compreensão conscienciosa. O homem transcende, discerne e dialoga (pela comunicação e participação) compondo o quadro de sua existência. Em Freire (1983a: 41), só o ser humano liberta-se de um tempo unidimensional, considerando que:
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O homem existe – existere – no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se. O homem e o mundo estão impregnados de um sentido conseqüente. Sua presença no mundo não se dá de forma passiva. Não se reduz apenas a uma das dimensões da vida, seja a natural ou a cultural. A sua ingerência não é de expectador. Acontece em ambas as dimensões. Volta-se à realidade na busca de se realizar pela transformação, tanto de si mesmo como da natureza. Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura (ibid.: 41). Está externada a compreensão ampla de um mundo que é resultante de um estar no mundo, ao estabelecer relações entre a subjetividade individual e a realidade objetiva, sempre permitindo a condição do indivíduo de viver com a pluralidade, enquanto que transcende sua subjetividade. São estas condições que tornam real o diálogo. Freire (1993) constata a existência de uma relação desigual estabelecida pela não realização do diálogo intersubjetivo na sociedade. Mostra como a opressão faz surgir uma outra dimensão cultural que é a transformação do homem em um ser que não atua no mundo, transformando-o em objeto nesse mesmo mundo, desenvolvendo a cultura do silêncio. A força da opressão enfatiza o processo de dominação e se efetiva pela negação da existência do outro que é o dominado e extraindo-lhe o direito à sua própria palavra. Esta negação é a concretização da não existência do outro, a ausência de um outro ser. Com a negação da história ao outro, também lhe é sugado o seu ser mais, provocando a existência de um ser menos, levando-o à alienação de si mesmo. Sem história, o ser humano se transforma em algo não produtor de cultura, desumanizante e passivo diante do mundo. Resta-lhe a superação dessa situação pela sua herança cultural, visando aprofundamento da compreensão do mundo. O homem, de posse de sua herança cultural e pela experiência adquirida por meio da linguagem, se torna capaz de criar e recriar seus novos contextos. Pode responder aos desafios que lhe são apresentados, dominando a sua história e recriando a sua cultura, elaborando a sua própria identidade. Mas, a chegada ao mundo e o movimento de se apoderar desse mundo, no sentido da cultura, não será possível por meio de qualquer mecanismo que não pela consciência crítica. Freire insiste na necessidade de que ao processo da „domesticação‟, desenvolvido pela ausência do diálogo, seja contraposto o processo de „conscientização‟ que significa a aquisição de uma postura crítica, diante dos problemas do mundo. Este processo só se torna possível com a imersão no mundo daqueles que estão fora do processo da produção da cultura. É necessária ajuda para aqueles inserirem-se no processo, de forma crítica. Um processo que não pode se realizar pela força, pelo engodo, pelo medo ou mesmo pela coerção. Em Freire (1982a: 53), este processo só se realiza: Por uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção. É manifestado em vários níveis de consciência: o da consciência ingênua ou intransitiva que expressa um grau mais elementar de desenvolvimento de consciência, uma perspectiva sem a dimensão histórica do mundo. Uma consciência mágica que se mostra por meio da visão mística do mundo e, mais das vezes, sem força de superação desse poder mágico contido nas coisas. A consciência transitiva traduz-se pela superação das dimensões de interesses
463 meramente vegetativos, fugindo daquilo que pode ser novo e, sobretudo, da débil argumentação sobre as coisas. Um nível importante, pois nesse patamar de consciência, o homem inicia o seu percurso de transgressão daquilo que o mantém impermeável às mudanças. O seu existir já se transforma em um existir dinâmico, implicando num diálogo permanente do humano com o outro humano e com o mundo. E ainda, a consciência crítica que possibilita a chegada a uma educação dialógica e ativa, voltada para a responsabilidade social e política. Caracteriza-se pela profundidade na interpretação dos problemas. Este nível de consciência se destaca, segundo Freire, (ibid.: 61) por substituir explicações mágicas por princípios causais e: Por procurar testar os „achados‟ e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência de responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo (grifo nosso) e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre as argüições. Pelo pensar crítico, resultante da consciência crítica, supera-se aquele pensar ingênuo e nada promotor da ação do homem na natureza, pondo fim a todo tipo de mistificação do conhecimento e das explicações de mundo. Consciência crítica que só constrói, pelo processo da conscientização educativa, relações intersubjetivas, possibilitando a aproximação entre dois ou mais indivíduos. Uma ação educativa que não se tem receio dos riscos do mundo dos outros, porém, incentiva um consenso construtor da ação subjetiva, por meio do diálogo. O diálogo torna-se a concretização do próprio exercício para a liberdade. A ação educativa inicia-se com o „método‟ de alfabetização, avançando para o „círculo de cultura‟ e se apresenta como momento de criação e recriação de mundos pelos falantes e ouvintes presentes. Há coordenadores e orientadores dos processos educativos, tanto na alfabetização como no círculo de cultura, sem haver professores, pois a dinâmica do grupo procura reduzir ao mínimo a sua intervenção, à medida que avança para a intersubjetividade, por meio do diálogo. Pelo diálogo, todos iniciam sua entrada no mundo comum a todos. Adquire uma característica peculiar que é admitir que cada um constrói seu próprio caminho e com isso, abre-se às divergências no próprio ato de se comunicar, de dialogar. A tradição dos processos educativos tem sido o monólogo dos sujeitos. A construção da consciência crítica promove não a negação do homem, resultante de processo monológico mas busca a imediatez intersubjetiva das consciências, revigorada pelas condições do diálogo. Os dialogantes avançam para admiração do mesmo mundo. Podem afastar-se desse mundo ou coincidem com o mesmo. Apresentam-se no mundo da vida ou se opõem ao mesmo. O diálogo vai se estabelecendo e se constituindo não como produto histórico. Ele é a própria historicização do mundo, expressão da intersubjetividade, ao conscientizar o dialogante como autor de sua própria história. Há neste processo o ato da fala e esta instaura o mundo do homem, pois ela não é só expressão significante do mundo ou expressão de pensamento, mas é a práxis humana. Práxis que se realiza pela comunicação, sendo esta, essencialmente, o próprio diálogo. Um diálogo que externa palavra de pensamento e ação sobre o mundo. Ação intersubjetiva de busca de autenticidade, de validação assegurada pelo outro e pelo reconhecimento do outro como o reconhecimento de si no outro, colaborando na construção de um mundo comum. Portanto, o reconhecimento da situação de inconsciência pela situação dialógica é o assumir a sua própria palavra, a construção de um mundo novo. A pedagogia de Freire, ao assumir a construção do mundo novo pelo indivíduo – o oprimido -, define-se pela dimensão política que atravessa toda a fundamentação social e psicosocial de sua ação educativa. A educação e a pedagogia de Freire mantêm busca permanente pela consciência crítica, sem deixar de priorizar o ato de conhecimento que se efetua via diálogo. Um diálogo entendido como ação entre iguais e entre diferentes, em que se admitem relações dialógicas mesmo quando as relações de poder são assimétricas. Quando isto ocorre,
464 o diálogo (grifo nosso) é um bom ponto de partida e um bom ponto de chegada para recuperar a igualdade. Nas relações face a face – e as relações entre educador e educando o são – a recuperação da democratização reside em poder estabelecer uma ação comunicacional que vise construir a identidade do oprimido e posicioná-lo na luta pela libertação (Russo et al. 1999: 120). Ora, sem identidade, não há condição de libertação por parte do oprimido. Sua identidade é componente do mundo da vida, sua exterioridade, a razão do outro, tendo aí o início do caminho para a liberdade. Liberdade que se constituirá como elemento utópico, pois se afirma num pensamento que virá sem um receituário definido e sem a inexorabilidade histórica. Na radicalidade de seu diálogo, Freire torna a política um substantivo e a pedagogia um adjetivo. Mesmo a sua concepção primeira de mudança interna no homem, por meio de um caminho conscientizador psico-pedagógico, é superada. Isto se constitui numa virada importante em toda a perspectiva emancipadora para a sociedade. Pedagogia dialógica Na busca de superação de práticas educativas conservadoras, Freire (1983) desenvolverá uma rigorosa crítica, caracterizando-as, inicialmente, como educação bancária. Neste tipo de educação, o educador é o que educa, é o que sabe, que pensa, que diz as palavras, que disciplina, que escolhe a melhor opção, que atua e define conteúdos programáticos; o educador é, enfim, o sujeito do processo. Por outro lado, há o ouvinte que só escuta, que não sabe, sendo o objeto do pensamento do outro. O educando é o disciplinado, que escuta de forma dócil, que sofre a ação, que é adaptado aos desígnios daquele que se diz educador. Os educandos são meros objetos para o processo educacional. Estes participantes, educados segundo esta visão, fora da práxis, não podem se transformar em seres humanos. O desafio que se apresenta, portanto, é a superação dessa lógica estabelecida nas práticas educacionais e culturais domesticadoras. O trabalho filosófico-educativo de Freire se direciona para a substituição desse tipo de experiência educativa por uma ação cultural humanizadora entre educadores e educandos, entre falantes e ouvintes. A educação não pode transformar-se em uma silenciosa aceitação da opressão. Terá como base para manter a sua crítica às pedagogias estabelecidas a promoção da denúncia dessa pedagogia fomentadora da opressão e que aprofunda a contradição entre opressores e oprimidos, defendendo a sua superação. Para realizar tal tarefa, Freire inicia demonstrando a necessidade de que uma outra ação pedagógica deve ser iniciada a partir da realidade em que o educando se insere e pela conscientização chegar à sua própria situação de oprimido. Com isto, é preciso uma pedagogia que contribua ao educando o desenvolvimento de seu próprio processo de libertação. Uma base ontológica de sua pedagogia tem como esteio a idéia de que ninguém se educa que não de forma coletiva. Em Freire (ibid.: 58) ninguém se liberta que não através de uma ação cultural coletiva. Assim, é que a ação política junto aos oprimidos é „ação cultural‟ para a liberdade e por isto mesmo, ação com eles. Esta ação libertadora, contudo, reconhece a situação de dominação existente e proclama a necessidade de superação dessa situação de opressão. Esta, porém, não é doação que uma liderança, por mais bem intencionada que seja, lhes faça. Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de „coisas‟. Por isso, se não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho, também não é libertação de uns feita por outros. A pedagogia de Freire terá como concepção a perspectiva ontológica de que a educação do homem é algo que só vem pela dimensão social e coletiva, tomando como referência o mundo em que todos estejam inseridos, o mundo de suas vidas. Fala da necessidade da mediatização do mundo nesse processo de educação expressando, dessa forma, uma concepção
465 de pedagogia que seja problematizadora do mundo e da situação em que o homem se encontra um estado de opressão. Formulará uma visão de homem traduzido em sua incompletude, na sua inconclusão. O movimento do homem, na perspectiva de se tornar um ser mais. Originariamente, a construção de ser mais tem como caminho a ação dialógica, aberta à comunicação e à solidariedade de educadores e educandos. Precisa estar orientada ao reconhecimento da realidade e à formação da consciência crítica. Ora, “somente o diálogo, que implica num pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo” (ibid.: 98). Sem o diálogo, torna-se impossível a comunicação entre falantes e ouvintes e a educação promotora do ser humano transformador. Para Freire (ibid.: 78): Não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo (grifo nosso). Pelo diálogo, o educando pode se preparar para a captação e intervenção em seu mundo, superando a situação de mero espectador, acomodado às prescrições de outros ou mesmo, julgando-as como suas. O cotidiano está a mostrar a existência de homens simples esmagados, diminuídos, reduzidos à coisa, submetidos por forças sociais poderosas e estabelecidas que criam mitos que os dirigem. São mitos que para Freire (1983a: 45) “voltam-se contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade”. O trabalho educativo crítico, de formação educacional dialógica, problematizador e libertador, conduzido em contraponto a essa situação de vida, não pode degenerar para suas possíveis contradições e se tornar um mero humanismo raivoso, exaltado. Este percurso educativo precisa instaurar uma ética contra a deslealdade, as injustiças, o desamor e a violência. Uma educação ética definida pela necessária indignação diante de tudo isto. Este trabalho educativo ajuda para a descoberta de necessidades e contradições do mundo da vida dos dialogantes, as suas preocupações, esperanças, dúvidas e carências concretas. Este processo não é assegurado pelo diálogo, apenas, nas descobertas dessas situações em que vivem os educandos. Ele instaura um movimento em que os sujeitos, desde o início, são os próprios envolvidos. Para Freire (1983: 82): “A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham”. Entendem, inclusive, que até mesmo a sua forma de atuação, seja esta ou aquela, é função em grande parte, de como os educandos estão se apercebendo no mundo. Permeando todo o processo de ação cultural para a liberdade, o diálogo torna-se a essência da educação. O diálogo funda a ação pedagógica de Freire. Passa a estar presente no decorrer de sua experiência, desde a organização dos conteúdos da ação educativa e, em qualquer ambiente, em que esteja ocorrendo ou em possibilidade de existir. O diálogo se faz presente na metodologia de desenvolvimento dos „temas geradores‟, no momento inicial da investigação e no decorrer de todo processo que conduz à ação cultural para a liberdade. Para Freire (1983: 92): A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. Mas, o estabelecimento da dialogicidade como fundamento em sua pedagogia cobra um diálogo verdadeiro para que haja a promoção de valores éticos no processo educativo. Com isto, admite que a sua existência dar-se-á quando firmada a condição de, também, pensar de forma verdadeira. Para ele (ibid.: 97): “Finalmente, não há o diálogo (grifo nosso) verdadeiro se não há
466 nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade”. Cultura, poder e diálogo A pedagogia freireana, a partir de suas primeiras formulações, conduzidas pelo exercício da crítica, está relacionada à cultura e ao poder, sobretudo, do poder de realizar a cultura. Está voltada à realidade onde se insere a ação educativa. Com essa exigência, a alfabetização e conscientização se constituem como dois momentos importantes deste processo educativo. Ambos têm implicações marcantes tanto no âmbito social como político, refletindo um movimento pedagógico exercido, desde a chegada ao poder, de possuir cultura e exercício de poder realizar os sonhos e a utopia. Freire eleva o nível de informações do patamar da alfabetização para o do círculo de cultura com a mesma metodologia de construção da própria cultura e consciência dessa construção – um exercício para a liberdade. Com este exercício de aprendizagem em desenvolvimento no círculo de cultura, baseado no diálogo, os educandos se revelam em primeiro plano, desde o início das atividades. A orientação do educador rege-se para o despertar da consciência do educando, para que ele possa se aperceber e compreender a realidade que o cerca, o mundo em que vive. Giles (1983: 104), compreende, em Freire, que: Educar é firmar-se na prática da liberdade – liberdade que nunca é um dom, mas uma conquista constante. Afasta-se, portanto, como objetivo do processo educativo, a aprendizagem de conceitos ou de técnicas abstratas, irrelevantes para o homem concreto no seu trabalho, na sua luta pela conquista da liberdade. Liberdade para superar pela crítica todo tipo de permanência de irracionalidade que está presente no nível da consciência ingênua. Esta torna falsa a possibilidade do diálogo e o homem fica vencido e dominado, sem saber, mesmo que esteja crente de ser livre. Na verdade, Freire (1983a: 63) mostra que esse indivíduo: Teme a liberdade, mesmo que fale dela. Seu gosto agora é o das fórmulas gerais, das prescrições, que ele segue como se fossem opções suas. É um conduzido. Não se conduz a si mesmo. Perde a direção do amor. Prejudica seu poder criador. É objeto e não sujeito. E para superar a massificação há de fazer, mais uma vez, uma reflexão. E dessa vez, sobre sua própria condição de „massificação‟. Este é um risco concreto, isto é, o movimento de conscientização para a liberdade evoluir para uma política massificadora, tornando-se um processo educativo que não avança às mudanças. Um processo permanente, portanto, de se refazer a pedagogia e as metodologias utilizadas na própria pedagogia crítica. Se isto já preocupou Freire no início de suas formulações educativas, a questão permanece. Cultura e poder acompanharam sempre sua pedagogia, em especial a preocupação com a manutenção da atividade dialógica como procedimento nas metodologias educacionais que punha em prática. Alerta para a necessidade de uma análise atualizada sobre o atual estágio do capitalismo e o papel destinado ao conhecimento, por meio da pedagogia como dispositivo sutil dos sentidos, das linguagens, das imagens e dos valores. Anuncia a existência de uma nova realidade. Nesse sentido, chama a atenção para que a pedagogia opere em todos os espaços da cultura; construa uma nova base teórica e política, reconstruindo a crítica e buscando novas proposições de metas, através do diálogo. Para Mejía (1999: 61), a riqueza de Freire é que: Ele vê a pedagogia como uma prática educativa e política que tem seu espaço e seu tempo na esfera da cultura e, portanto, no mundo das
467 escolas. Ou seja, não nega a escola, mas a constrói como um espaço no qual a exclusão adquire características e processos culturais específicos. É assim que, em sua proposta pedagógica, continua mantendo no diálogo cultural essa busca de acordos permanentes. É possível, desta maneira, a existência de uma visão de pensador interdisciplinar em Freire. Sempre pelo diálogo, avança no sentido de produção cultural e coletiva com as equipes que atua. A pedagogia do oprimido, vivenciada em sua longa experiência, é cortada por dimensões interdisciplinares. Todo o diálogo que permeia a sua obra expressa a interdisciplinaridade em torno do binômio oprimir e libertar, envolto nos processos de um outro binômio que é cultura e poder, constituinte de sua proposta epistemológica. Ação dialógica O fazer educação de Freire, mesmo quando assumira postos de executivo em gestões de educação, é banhado com dimensões de interdisciplinaridade. Nos postos administrativos sempre revelou as suas atividades de educador. Trazia consigo, como primeira preocupação, a organização de equipes para o desenvolvimento do trabalho. Aquilo que defendia no exercício teórico punha em prática quando em papéis de direção em postos de educação. Iniciava com o convite aos que os cercava para o exercício de um novo tipo de planejamento, acompanhado de equipes multidisciplinares de físicos, matemáticos, cientistas políticos, sociólogos, lingüistas e literatos, filósofos, arte-educadores, juristas, especialistas em sexualidade, além de outros. As formulações de seus planejamentos envolviam o conhecimento da realidade onde estava inserido juntamente com estes profissionais e estabelecia o diálogo como pressuposto administrativo. Avança nas definições das metas a serem cumpridas ao estabelecer os mecanismos de avaliação. Para ele (1995: 38), “a intenção é possibilitar um diálogo entre grupos populares e educadores, entre grupos populares, educadores da rede e os cientistas que nos assessoram”. Através de depoimentos de suas equipes, sabe-se que sempre procurava esclarecer o sentido político e pedagógico do trabalho, com a compreensão de que a escola é um espaço público. A vida diária nessas escolas faz ver um mundo de relações afetivas, políticas, pedagógicas e, assim, constituindo-se como ambiente, por excelência, para a reflexão e práticas educativas. Para ele, os estudos de gabinetes dos postos de administração só são úteis se tiverem a finalidade de execução daquelas metas anteriormente definidas através do entendimento e do diálogo. Também, sempre acompanhou a clareza de que a implementação de políticas promotoras do diálogo – democráticas -, não seriam efetivadas a partir de gabinetes mas da escola mesma. Existe, em Freire, toda uma perspectiva de construção e posse do produto dessas relações de construção, que de forma terminante, recusa qualquer tipo de pacote para ser executado. Em sua experiência, conduz para a aprendizagem de si mesmo como de toda a equipe. A necessidade dessa transdisciplinaridade é o caminho para a chegada à objetividade. A sua reflexão, partindo do mundo do concreto, se dirige para a totalidade do real e esta é transdisciplinar. A realidade impõe a subjetividade e não de maneira inversa quando esta se propõe inventar o transdisciplinar. É a realidade que exige do sujeito ou da consciência a necessidade de ser vista por diferenciadas óticas, caso seja este o desejo para o seu entendimento. Esse conhecimento da realidade seria impossível se não fosse tentado e buscado com equipes transdisciplinares, com a presença dos setores populares. Não seria possível esta elaboração a partir de gabinetes ou mesmo de uma biblioteca em que fossem elaboradas prescrições a serem seguidas. Mantém-se, em toda a trajetória freireana, a exigência da manutenção do diálogo e o seu exercício com os setores populares. Freire (1983a: 102) lembra que: Experimentáramos métodos, técnicas, processos de comunicação. Superamos procedimentos. Nunca, porém, abandonamos a convicção que
468 sempre tivemos, de que só nas bases populares e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas. As suas técnicas com os grupos populares foram trazidas para dentro dos gabinetes como a elaboração de programação de debates, as entrevistas com membros dos grupos da administração, a listagem de problemas que seriam os definidores do trabalho de toda sua equipe. Após certo de tempo de aplicação das definições tomadas, sempre de forma dialogal, voltava-se aos processos de avaliação e replanejamento. Tal qual nos círculos de cultura que não havia um professor mas um coordenador de debates, também na administração, não havia um executivo exercendo papel na burocracia estatal mas um participante do grupo, com a responsabilidade e autoridade para implementar as políticas. Dos debates com as equipes, havia sempre algo novo surgindo. Buscava, cada vez mais, implementar a ação política mais geral, sempre atento à construção de uma escola que seja pública, que seja popular pois, necessariamente, exige-se que seja democrática. Saul (1999: 26) destaca, a partir de sua convivência educativo-administrativa com Freire, a sua expectativa em relação aos novos projetos que apareceriam na administração374, revelando que: toda a sua criação ousada, todavia, era cercada por uma moldura democrática onde o diálogo sempre foi a pedra fundamental. Paulo Freire queria ouvir, ouvir sempre, ouvir muito a posição da equipe sobre as propostas. Ouvia ponderações, recriava suas propostas, estimulava e dava espaço a novas proposições; externava preocupações, colocava parâmetros. Tanto nas atividades com os processos de alfabetização, nos círculos de cultura e na vida administrativa, a pergunta que sempre aparece é como proporcionar, por meio do instrumento estatal, a possibilidade de ser possível a superação de atitudes de ingenuidade e de magia que a vida apresenta. A resposta sempre pareceu estar num método que promova a ação, sendo dialógico e crítico. A promoção de mudanças em procedimentos e conteúdos programáticos da educação adviriam desta postura metodológica. Na experiência freireana, o diálogo veio sempre se impondo como indispensável nesse caminho. O diálogo permeia a organização e execução do método em todas as suas fases, como mostra Freire (1983a: 112), desde o levantamento do universo vocabular dos grupos, em que se fixam os vocábulos com maior expressão existencial e, conseqüentemente, de maior conteúdo emocional, destacando os falares típicos do povo. Entrevistas realizadas em grupos populares ou de administração que “revelam anseios, frustrações, descrenças, esperanças também, ímpeto de participação, como igualmente certos momentos altamente estéticos da linguagem do povo”. A escolha das palavras contidas no universo vocabular pesquisado é definida pela sua riqueza fonêmica e pela dificuldade fonética da palavra que contribua para uma gradação de dificuldades na aprendizagem. Dá-se importância ao teor pragmático da palavra, definida por sua pluralidade quanto ao engajamento numa dada realidade política, social, cultural. O diálogo traspassa a fase da criação de situações existenciais do grupo com quem se vai trabalhar. São as situações-problemas, os desafios lançados ao grupo e o espaço de decodificação dessas situações, ajudado pelo coordenador, que tem a clareza de não transformar o processo de educação em outro processo – a domesticação. Um elemento de ajuda é a elaboração das fichas-roteiro que comporão o quadro de discussão que segue. O diálogo prossegue pela discussão do papel do sujeito na produção e organização da cultura. De situações localizadas, avança-se em análise para as dimensões regionais e nacionais, abrindo espaço, agora, para a alfabetização ou mesmo para a definição de políticas públicas comprometidas por este diálogo. E, finalmente, a elaboração de fichas com a decomposição de suas famílias fonêmicas com os respectivos vocábulos geradores, em que se inicia a parte da escrita no sentido técnico do processo. 374
Relato de Ana Maria Saul quando trabalhou com Paulo Freire, na Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, tendo como prefeita Luiza Erundina, na época, do Partido dos Trabalhadores.
469 Também, na sala de aula, Freire seguia o mesmo itinerário filosófico e pedagógico marcante em toda a sua experiência. Sempre propunha como início de aula, a apresentação de interesses de cada aluno, as suas preocupações de pesquisa, enfim os sonhos de cada um. Um momento de encontro com o mundo daquela realidade da sala de aula, estabelecendo o diálogo como caminho desse aprendizado coletivo. Não importa se os objetivos estão nítidos e rigorosamente definidos. O importante mesmo são os atos de fala de cada participante. Desses interesses, definem-se a seguir as diferenciadas temáticas a serem abordadas. Buscam-se as correlações que, eventualmente, aqueles temas exibem por meio de eixos que se interligam. O aprofundamento dos projetos vem com o aprofundamento das temáticas sugeridas. O percurso da aprendizagem não pára neste momento. Avança para que cada participante assuma a escrita de textos referentes às aulas como material de posterior utilização. E muitos temas estão sempre recorrentes nessas salas e, também, na obra de Freire que para ele são sempre formas de realizar novas visões das mesmas temáticas. Em suas obras, estão sempre voltando à discussão o respeito ao educando, o ponto de partida como a realidade do aluno, a defesa da autoridade do professor, a politicidade da educação e, sobretudo, o diálogo como fundamento em sua obra. Portanto, um caminho, visto por Freire (1983: 45), como necessidade educativa para a realização da “ontológica e histórica vocação dos homens – a do ser mais”. A dificuldade maior que sempre vai aparecendo e tentando a sua superação é a não cultura do diálogo que está estabelecida entre os participantes. O desafio é a superação da atitude antidialógica, a necessária supervisão, também dialogal, na perspectiva de não sucumbir aos perigos do não diálogo. Assim, parece ser a construção de uma democracia por práticas que despontam para a liberdade. Em Freire (1983), no desejo do agir pedagógico, há uma exigência política na própria caracterização do diálogo. Não é qualquer tipo de diálogo que pode ser útil à ação dialógica problematizadora. O eu dialógico freireano tem clareza de que a sua constituição está no tu, o outro. Mas sabe, também, que “esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu” (ibid.: 196). Entende-se, de forma politicamente explícita, que o diálogo de sua ação pedagógica é promotor da colaboração entre o eu e o tu, alimentando a possibilidade de que eu e tu se tornem sujeitos de seus próprios mundos. Há um diálogo que pelo ato da fala se torna comunicação, efetivando-se como instrumento de colaboração. Em Freire: “O diálogo, que é sempre comunicação, funda a colaboração”. Mas para realizar a colaboração, a percepção de que ninguém se liberta sozinho, orienta para que o diálogo possa promover a união, na perspectiva da liberdade. O diálogo assume a dimensão, agora, de que só será se servir para unir para a libertação. Uma dimensão também necessária, considerando que segundo ele (ibid.: 203): A própria situação concreta de opressão, ao dualizar o eu do oprimido, ao fazê-lo ambíguo, emocionalmente instável, temeroso da liberdade, facilita a ação divisória do dominador nas mesmas proporções em que dificulta a ação unificadora indispensável à prática libertadora. União que só terá sentido libertador se inserida na dimensão da ação cultural para a liberdade. Através dessa ação cultural, torna-se possível o desvelamento aos oprimidos de sua situação objetiva em que estão submetidos, seja de forma visível ou não. Mas, o diálogo, na ação cultural, enquanto promove a união entre os oprimidos, não é expressão de um ajuntamento de indivíduos, mas está dirigido à organização das massas populares. Para ele (ibid.: 207), a organização é promotora da unidade dessas massas populares, lembrando sempre de que a libertação está diretamente voltada à sua unidade. Aliás, ela só será expressão de sua natureza mesma se tiver como objetivo a prática para a liberdade. Finalmente, o diálogo só se impõe como determinante, na ação dialógica freireana, ao expressar uma ação cultural. Contudo, esta ação cultural, como síntese cultural, poderá revelar uma ação sistematizada e deliberada sobre uma estrutura social, tanto no sentido da conservação como no da transformação. Pela ação cultural, busca, tão somente, a superação das contradições
470 antagônicas resultantes da libertação dos homens. “É um modo de ação cultural, como ação histórica, que se apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante. Nesse sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de ser também revolução cultural” (ibid.: 214). Ação educativa, na perspectiva de Rodrigues (2001: 30), cujo fazer popular se referenda a medida que as pessoas não sejam súditas ou subalternas de autoridade qualquer “porque toda autoridade legítima e democrática é que é súdita e subalterna do povo”. A pedagogia de Freire e seu exercício pela ação cultural só se estabelecem no contexto de um ambiente dialógico - condição fundante. Assim, de forma sintética, é que a prática e a teoria educativa de Paulo Freire estão associadas a um exercício filosófico e político permanente, embasadas pela crítica (dimensões positiva e negativa), alicerçada nas coisas concretas do mundo. Pela crítica, em sua dimensão negativa, a pedagogia torna-se útil na luta contra pré-conceitos, pré-juízos e valores fomentadores de alienação e coerção. Em sua dimensão positiva, a crítica estabelece o seu pensar sobre o agir pedagógico e dá a conhecer um Freire que arrasta a marca de um pensador e pedagogo moderno, otimista com a Razão, apostando nela própria como fundamental na luta permanente de busca de liberdade. Sua ação pedagógica configura-se como um sistemático processo de questionamento de um terreno perdido para a dominação, realizado por um tipo de razão geradora de oprimidos e opressores. Busca o estabelecimento de uma outra dimensão racional, no âmbito da esfera da cultura, cuja tarefa principal é a conquista da liberdade pelo oprimido, tendo no diálogo uma ferramenta para esta conquista. Ele não nega a importância e a necessidade da técnica para a solução de necessidades humanas. Contudo, pelo diálogo, no exercício de uma pedagogia voltada à liberdade, define-se por uma outra necessidade que é a superação de novos valores para um mundo da vida das pessoas, elaborados por situações dialógicas. Revela a capacidade crítica de sua pedagogia ao exercê-la nas mais diferenciadas instâncias da vida, seja em movimentos sociais, em ambientes de administração pública e mesmo em sala de aula. Há um itinerário definido que vai desde as análises de programas em educação de adultos, até suas radicais críticas que apontam para a solução, somente possível, por meio de uma „ação cultural libertadora‟. Esta ação se configura como um efetivo programa para a organização dos marginalizados, oprimidos ou dominados para a sua própria libertação. A promoção dialógica dessa ação cultural que liberta, abre-se para as mais diferenciadas perspectivas filosóficas, gnoseológicas ou mesmo epistemológicas de seu pensar pedagógico, destacando a disposição para a construção de um mundo que contemple a ação coletiva. Neste mundo, homens e mulheres sempre estão em condição de inconclusão, tendo, contudo, consciência desta situação (Freire, 1997). Em Freire não há espaço para o eu que não seja acompanhado do tu, sempre um eu e um tu em condições de diálogo. A teoria e a prática pedagógicas da ação cultural voltam-se, essencialmente, para a questão da democracia. Esta é uma luta que é mantida na perspectiva de que ajude a contribuir na eliminação de processos de opressão, daqueles que vivem à margem dos produtos culturais da sociedade. O diálogo presente no agir libertador freireano só pode ser entendido se historicamente situado. Não há qualquer tipo de ideologia asséptica em sua obra, e sim uma explícita opção de libertação do oprimido. Tanto na Pedagogia do Oprimido como na Educação como Prática da Liberdade, o diálogo é apresentado como possibilidade de sua realização entre diferenciadas culturas, marcadas, hoje, pela diversidade cultural. Há a perspectiva da não expressão de qualquer produto acabado, marcado pelo destino. Para ele, ninguém vive sem história e a educação é um fenômeno responsável por esse processo em que homens e mulheres se fazem gente e constroem o mundo. Uma construção que conduz ao incentivo de produções conflituosas nas relações entre educando e educador. É preciso assegurar a democracia e, nesse sentido, assegurar algo de maior importância para cada geração que é o incentivo à sua capacidade de negar o legado deixado pela geração anterior, assegurando a produção desse novo mundo. O trabalho cultural libertador não pode ser deixado como tarefa a ser realizada após processos radicais de mudanças. Este trabalho acompanha e é parte desses processos,
471 eliminando a possibilidade de burocratização das direções dos oprimidos. Esta é mais uma forma de se evitar o empreendimento coletivo da libertação, dificultando o trabalho dialético e dialógico de homens e mulheres como um movimento de autolibertação. Portanto, a prática pedagógica de Freire contém uma teoria da educação que vislumbra uma permanente e ilimitada experiência dialógica, voltada à tarefa histórica, de que os oprimidos possam não só se libertarem como também libertarem os seus opressores. Essencialmente, um Paulo Freire dialogante.
Referências BRENNAND, Edna Gusmão de Góes. Éducation et globalisation: un dialogue entre Paulo Freire et Jürgen Habermas. Paris: Phathéon-Sorbonne, 1999 (Thèse de Doctorat). FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14a. Ed., Rio de Janeiro, 1983a. __________. Pedagogia do oprimido. 13a. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. __________. Educação na cidade. 2a. Ed. São Paulo: Cortez, 1995. __________. Pedagogia da autonomia. 6a. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. MEJÍA, Marco Raul. Paulo Freire na mudança de século: um chamamento para reconstruir a práxis impugnadora. In: Paulo Freire – ética, utopia e educação. Danilo R. Streck (org) 3a. Ed. Petrópolis: Vozes, 1999. PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado, 2 vols., São Paulo: Edusp, 1974. RODRIGUES, Luiz Dias. Como se conceitua educação popular. In: Educação popular – outros caminhos. José Francisco de Melo Neto e Afonso Celso Scocuglia (orgs.). 2a. Ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. RUSSO, Hugo A; SGRÓ, Margarita et Díaz, Andréa. Aprender a dizer sua palavra: do outro da razão à razão dos outros. Contribuições da ação educacional dialógica para a razão comunicacional. In: Paulo Freire – ética, utopia e educação. Danilo R. Streck (org.) Petrópolis, RJ. Vozes, 1999. SAUL, Ana Maria. Paulo Freire: vida e obra de um educador. In: Paulo Freire: ética, utopia e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. SCHMIED-KOWARZIK, Wolfdietich. Pedagogia dialética – de Aristóteles a Paulo Freire. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
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EDUCAÇÃO POPULAR E „EXPERIÊNCIA‟ 375 A educação popular é um movimento prático e teórico em educação, presente em processos de organização das classes trabalhadoras, que apresenta profunda crítica à educação dominante e que, segundo Paulo Freire (1958), tem promovido o „silêncio‟ dessas maiorias, defendendo outro fazer educativo - educação popular -, definindo-se por uma educação com o homem, e não sobre o homem, ou, simplesmente, para ele. Uma educação promotora de mudanças e criadora de outras e novas disposições mentais no humano, enquanto coloca-o na sua contextura sócio-cultural, em condição compreensiva de seu mundo mesmo. Uma educação que pode ser apresentada, hoje376, como um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais humanos, pelo trabalho, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, contendo uma teoria de conhecimento referenciada na realidade e pautada pela „experiência‟ dos que estão nesse processo; com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas individual e coletivamente; com conteúdos próprios e técnicas de avaliação contínua; permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientado por anseios humanos de liberdade, justiça e igualdade. A „experiência‟ tem status elevado nos estudos e nas análises sobre o exercício da educação popular, mormente na discussão filosófica sobre os tipos de conhecimento daí gerados e, em particular, na validação desses conhecimentos. Às vezes, aparece como sinônima de prática, dominando o imaginário dos profissionais que atuam nessa educação, comprometida com a organização dos trabalhadores, tornando-se o suporte da verdade para o conhecimento gerado de seu fazer pedagógico. E é essa possibilidade educativa que sugere a seguinte questão: o que se entende por „experiência‟ em educação popular? O esforço de resposta à questão conduz a uma reflexão de como o termo „experiência‟ tem sido apresentado pelos vários pensadores no campo da filosofia, em particular, com pensadores modernos; com pensadores que atuam na educação popular e, finalmente, tenta-se uma nova síntese conceitual de „experiência‟ que se preste à continuidade da reflexão teórica e à animação das práticas desse peculiar modo de se fazer educação. „Experiência‟ na tradição filosófica A palavra „experiência‟ tem se apresentado com um sentido geral e outro técnico. No sentido geral, é um conhecimento espontâneo que vai se acumulando no indivíduo no decorrer de sua vida. Daí se falar que alguém tem „experiência‟. Ou, em relação à teoria do conhecimento, que tem no empirismo radical a sua aceitação mais explícita, ao assumir que todo o conhecimento tem origem na mesma. Para a corrente do racionalismo, contudo, a „experiência‟ nada pode ensinar, pois é ela mesma que precisa ser explicada, estando sempre acobertada e cheia de teoria. Já em seu sentido técnico, adquire o significado de ação que observa e experimenta, podendo controlar determinada afirmação ou a elaboração de uma hipótese sobre o algo a ser conhecido. No momento em que possibilita o controle de ações e seus resultados, conduzindo ao conhecimento de um fenômeno qualquer na natureza, apresenta-se com o sentido de experimento, inclusive laboratorial. Mas, pode expressar o sentido de forma de ser, um modo de fazer ou mesmo uma maneira de viver, sendo um procedimento para o conhecimento de algo. Isto faz com que se torne possível o conhecimento desse algo, antes de juízos elaborados a respeito do mesmo que está sendo apreendido. Pode ser entendida, também, como a apropriação do sensível da realidade que se coloca externa ao sujeito. É, ainda, expressão de um ensinamento que se 375
Artigo divulgado na revista de Educação Popular, Contexto e Educação. Editora Unisinos/Universidade de Ijuí/Aelac, Ijuí, 1986. Vol 85, ano jan/jun 2011. 376 Aproximação conceitual em desenvolvimento na Disciplina Tópicos em Educação Popular, no Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de Pesquisa em Educação Popular.
473 adquiriu com a prática, com a vida profissional, podendo até se dizer de uma „experiência‟ de vida. Ou, num sentido de afirmação de juízos sobre alguma coisa, quando se exercita a sua verificação sensível, confirmando-se ou não o juízo sobre esse algo. E mais: pode ser o entendimento de „algo do interior‟ de um alguém, portanto subjetivo, quando se tem uma dor, um sofrimento, uma „experiência‟ mística ou religiosa. Como se vê, com essa tradição, „experiência‟ ora se apresenta como confirmação empírica, em geral por meio de dados sensíveis, ora como fato de se viver algo anterior a toda reflexão, anunciando um caráter „externo‟ ou „interno‟ de si mesma. Um movimento teórico que pode ter origem ainda em Platão, em sua diferenciação de mundos, o das ideias e o do sensível, sempre atencioso a uma „prática‟, mesmo que intelectual, abrindo profunda distinção entre „experiência‟ e razão, dando ênfase sempre ao poder de conhecimento pelas ideias. Todavia, em Aristóteles (1973), representa algo mais estrutural no conhecimento, surgindo da multiplicidade das lembranças e da sua permanência pelas impressões, sendo estas o tecido da „experiência‟, contribuindo para as formulações gerais, universais. Para ele, „experiência‟ é apoderação, apropriação do singular, possibilitando a ciência, passando a apontar os elementos de cada ciência particular e anotando os seus fenômenos, seus dados e demonstrações. Assim, é tratada como mera repetição de certas situações memoráveis, e longe de haver uma compreensão de que se preste para verificação de possíveis verdades humanas. Ciência, em Aristóteles, só é considerada do universal – uma apreensão sensível da realidade e a averiguação de juízos daí gerados também pela dimensão do sensível. Nessa caminhada conceitual pela história da filosofia, aparece uma compreensão de „experiência‟ como cânone de validação do conhecimento. Tal formulação é fortemente assegurada pelos empiristas que, contudo, a afasta da visão „sensacionista‟ de mundo. Esta privilegia o conhecimento sensível sem torná-lo guia e nem controlador de um conhecimento geral. Do seu significado, pela teoria da indução, depreendem-se duas visões da „experiência‟: uma primeira teoria como intuição e outra como método. Na formulação da teoria da intuição, a atitude de visão é expressão de seu modelo e, por esta perspectiva, o que se tem é um objeto “presente em pessoa e na sua individualidade”. Esse caminho possibilitou a que Hume (1973) pudesse operar a intuição, expressando-a como aquela do momento, nada significando fora de si. Isto abre a crítica de que, se assim o for, fica impossibilitado o caminho para a ciência. Por outro lado, a perspectiva da „experiência‟ como método vai tê-la em condição de submeter à prova o conhecimento e, além disso, ser capaz de fazer as devidas correções quando houver erros. Assume a condição de ser repetida, deixando de ser uma atividade pessoal, subjetiva ou, meramente, mental. Modernamente, para Bacon (1973), que não se rendera ao sensacionismo, a „experiência‟ se presta como norteadora do conhecimento humano. Mas não se trata de alguma coisa espontânea qualquer. Para realizar tal papel, necessita ser guiada e interpretada pelo intelecto, acendendo a vela para que o caminho se torne visível. Essas formulações vão permanecer no pensamento de empiristas como Locke e Hume (1973). Para este, a razão não apresenta qualquer capacidade para inferir sobre existência real e de coisas de fato. Em Locke (1997), é da „experiência‟ que se originam os materiais da razão e do conhecimento humano. O conhecimento se funda nela e mais, o conhecimento é originado dela. Há, portanto, uma dupla visão: uma exterior (a sensação) e outra interior (reflexão). Assim, estabeleceu-se a visão de „experiência‟ como totalidade do mundo humano quando considera essas duas dimensões e reforça a sua teoria metódica, ao instituí-la como conjunto de sistema de averiguação do conhecimento desse mundo. Enfim, para os empiristas, a „experiência‟ assegura a condição e o limite ao conhecimento. Para „racionalistas‟, como Spinoza (1973), se não desconfiam totalmente da „experiência‟, consideram-na como um acesso confuso à realidade ou mesmo „mutilado‟. Por ela, tem-se apenas acesso a proposições contingentes, pois o conhecimento mesmo (verdades eternas) só se atinge pela razão. Já na teoria do conhecimento, das mais marcantes, a de Kant (1973), a „experiência‟ é entendida como o ponto de partida para o conhecimento. Isto não assegura, contudo, a sua validade, nem se quer, que todo ele origina-se dela. Para ele, o conhecimento só se torna realizável no campo da „experiência possível‟. Cabe à razão o exame dessa possibilidade, vista
474 sempre como aparência. Será desse exame apriorístico que haverá condição de se formularem os juízos universais e necessários sobre a realidade (aparência). Contudo, para os idealistas, às vezes dizendo-se ancorar em Kant, com destaque para Fichte e Hegel (1973), viam-na, de forma única, a coisa como o que está determinado e independente da liberdade do sujeito, e a inteligência como a quem cabe a tarefa de conhecer. Para eles, o saber não é „experiência‟, mas um saber de seus fundamentos ou um saber do saber. Isto só se compreende em Hegel, pela “experiência da consciência”. É „um movimento dialético‟ que vai guiando a consciência para si mesma, deixando clara a si mesma como algo independente, sendo a maneira de como o Ser se apresenta à consciência e daí, constituído por ela. O ser definido na consciência. Não é, portanto, uma „experiência‟ interior (subjetiva) e outra exterior (objetiva), mas uma „experiência‟ absoluta. Estes idealistas punham-na limites, separando-a em dupla dimensão: aquilo voltado diretamente à coisa, determinado sem a intervenção da liberdade do pensar e aquilo que dirige o pensamento, a inteligência. Como se vê, variados têm sido os seus entendimentos. No século XIX, passou a ser compreendida como “experiência do imediato”; como apreensão direta dos dados naturais realizada pelos sentidos; como a „experiência‟ geral de vida, talvez, constituindo uma „filosofia da realidade‟, sem a presença da metafísica e distanciando-se da visão idealista alemã. No século XX, adquire várias conformações tipológicas traduzidas por experiência sensível, natural, científica, religiosa, mística, artística, fenomenológica, metafísica e outras, à procura de algo que fosse anterior a elas e, talvez, uma „experiência filosófica‟ que expressasse diferenciação em relação as demais. Com Bergson (1973), a noção de intuição filosófica traz essa mesma ideia. Assim como ele, Husserl admite uma primária „experiência‟ do mundo, uma “experiência fenomenológica”, ampliando-se, dessa forma, os seus horizontes de compreensão. Nesta mesma esteira de definições e finalidades, empiristas como Carnap e Popper (1975), do Ciclo de Viena, envolveram-se no debate da verificabilidade da „experiência‟ e suas exigências de experimentação. Posteriormente, em seus escritos, chegaram a conclusões da impossibilidade, tão necessária para empiristas, que é a verificação de um enunciado qualquer. Passaram a admitir que um enunciado poderia ser aceito sem a necessária condição de se por à prova. Já Williams James (1973) apresentou a sua visão, tentando sua ampliação e assegurando sempre uma especial atenção a mesma, pois esta mantém o filósofo em atenção constante à realidade. Ora, para James, o homem culto estava sempre a seguir uma metafísica, algo provocador para Bachelard (1996) que, ao invés de uma metafísica, defenderá a existência de duas outras dominantes: racionalismo e realismo. Irá combater a ambos e apresentar a primeira „experiência‟ como um „obstáculo‟ ao conhecimento, pois ela se configura permeada de imagens. Para ele, esta „experiência‟ primeira é “pitoresca, concreta, natural, fácil”. A sua descrição encanta a pessoa. Mas, parece que a sua compreensão se confunde com a mesma ideia de observação. Vai acusar a observação também como um obstáculo e mais, ridiculariza com as primeiras generalizações que são causadas daí. Para ele, há um duplo obstáculo a ser enfrentado pelo novo espírito científico, tanto nesse momento da primeira observação como de suas generalizações recorrentes. Esse espírito deverá ir de encontro ao que se há no interior das pessoas (racionalismo) e, também, no exterior (empirismo). Para ele, só é possível o conhecimento da natureza pela resistência a ela mesma. Portanto, a „experiência primeira‟ de Bachelard precisa estar submetida à crítica. Por sua vez, é Williams James que vai influenciar Dewey (1974), com a noção de „experiência aberta‟, tornando-a o centro de suas discussões, fazendo distinguir uma „velha filosofia‟ de uma „nova filosofia‟. Em Dewey, a „experiência‟ está presente na vida, de forma permanente, considerando a interação da criatura viva com o seu meio e as condições que a rodeiam. Está implícita no próprio processo da vida. Aspectos do eu e do mundo estão sempre em conexões e em conflitos. Essa maneira de interatividade irá qualificá-la com emoções e ideias, surgindo a “intenção consciente”. Todavia, a mais radical crítica às formulações anteriores vem de Feyerabend (1997) em relação aos métodos de criação de hipóteses ou teorias. Contra até mesmo a lógica formal, entendeu que as buscas do conhecimento por meio de teorias e generalizações possuem todas a
475 mesma importância. Declaradamente, afirma que “admite-se tudo”, e compreende a ciência como um “empreendimento essencialmente anárquico”. Mas, no século XX, uma das perspectivas teóricas que mais influenciará pensadores da educação no País é a pragmatista de Dewey, em que o fenômeno educativo acontece como a reconstrução da „experiência‟, sempre à luz da „experiência‟ atual, operando-se em situação de vida real. É isto que vai inspirar o pensamento de Anísio Teixeira (1978), ao pensar uma filosofia da educação, descrevendo a vivência educativa de seu tempo como educação tradicional e pretendendo uma escola „nova‟, disparando uma firme crítica àquela e desenvolvendo elementos de mudanças que constituem essa escola „nova‟ ou uma escola „progressiva‟. Uma visão filosófica que influenciará não só práticas educativas escolares, como outros conceitos filosóficos, a exemplo de trabalho (Palhano, 2006). Para pragmatistas, a educação pode ser vista como uma série de fenômenos que foram sendo criados a partir da inteligência humana, com destaques para as relações desses fenômenos e possibilitando as suas reproduções. As „experiências‟ puderam ser conhecidas, pois, até então, eram apenas tidas e sentidas. Agora, passa a ter um estatuto não de qualquer coisa externa adicionada à natureza, mas a própria natureza. Adquire dimensão de fase de organização mental. Pode ser refeita ou reconstruída com a finalidade de obtenção de seus próprios fins de natureza. E mais, resultados tanto de pensamentos como da „experiência‟ irão se concretizar como instrumentos, modelos e conhecimentos. Anísio Teixeira a conduz para a educação como uma necessidade do ato educativo, transformando-a no centro das atividades pedagógicas. Assim, é possível verificar-se, a seguir, a „experiência‟ no debate na educação popular, através de seus pensadores e atores. „Experiência‟ na educação popular377 Um dos pensadores mais influentes na educação popular é Paulo Freire. De suas práticas e análises, a partir da década de 1960, construiu-se a mais radical crítica à educação dominante, caracterizando-a como uma educação dos opressores. Estabeleceu os termos oprimido e opressor, a partir de duas de suas principais obras, Pedagogia do Oprimido e Educação Como Prática da Liberdade. Nestes livros, Freire (1996 e 1987) apresentou a sua compreensão de „experiência‟ a partir, inicialmente, da visão de inexperiência, numa perspectiva política. Em suas exposições de uma educação que promova a prática para a liberdade, apresentou como início a existência de uma „inexperiência democrática‟ na sociedade brasileira. Conduziu o seu exercício educativo para a superação do „modus vivendi‟ autoritário dominante, implementado pela educação burguesa. Segundo ele, o País tem uma longa „experiência‟ negativa – uma antidemocracia. Aí, „experiência‟ aparece com significado de tradição. Mas, adquire sentido de elemento responsável e „gerador de cultura‟, pois arrasta consigo ritos, vocábulos e a própria „experiência‟ particular do grupo. Manifesta-se, então, um novo aspecto conceitual e para além da visão prisioneira unicamente do indivíduo. Para o seu modelo de educação – educação popular -, exigirá a construção de uma „experiência‟ de grupo, além de instalar a da instituição com a „experiência de escola‟. Freire também firma o significado de „prática‟, com o sentido de „experiência‟, por meio da prática do „círculo de cultura‟ ou as „práticas educativas‟. Nele, podem ser encontradas referências de „experiência‟ a indivíduo, mas sempre com um forte reforço a do grupo. Assim é que poderão os „oprimidos‟, em sua caminhada, chegarem à superação da opressão, eliminando o „cordão umbilical‟ que tem caráter mágico e mítico em seus mundos. Nesta perspectiva, adotou mais um novo significado ao assumir a dimensão eminentemente pautada pela história e, portanto, uma „experiência histórica‟. Diversas são, todavia, as visões desse pensador e ator da educação popular. Estas têm norteado pensamentos e ações daqueles que se orientam, em suas práticas educativas, pelos valores da educação popular. Brutscher (2005), por exemplo, ao analisar a epistemologia de Freire, vislumbra uma grandeza em seu pensamento relacional que não se apresenta como 377
Tomaram-se como referência as primeiras práticas educativas de Paulo Freire, em princípios dos anos de 1960.
476 submissão ou sobreposição, em seu discurso pedagógico. Dessa forma, tudo que está no mundo se entende sempre em processo, portanto, provisório e limitado, requerendo constantemente o diálogo e cobrando a presença, nas suas perspectivas de „experiência‟. Para Beisiegel (1992), Freire acreditava que estaria, com suas „experiências‟, entendidas como práticas educativas, garantindo uma orientação conscientizadora pela educação ao seu trabalho na educação. As suas práticas na educação ofereciam aos trabalhadores a possibilidade de se autogovernar. Também Gadotti (2004), que assume a luta por uma educação como prática da liberdade, vê a educação em processo e entende que em alguns momentos na escola, até haja participação e divisão das palavras, divisão das responsabilidades e do poder. Isto aparece como prática ou „experiência‟, nos moldes freireanos, expressão de uma „autogestão escolar‟. Todavia, as condições de classe, as „experiências‟, isto é, as práticas desses trabalhadores e trabalhadoras, as suas condições desiguais, para Brandão (1999), a educação dominante, e mesmo os recursos religiosos, não conseguem esconder. Com esta compreensão, próximo ao sinônimo de prática, Wanderley (1994) apresenta a „experiência‟ da educação popular pautada por três orientações, sendo a primeira recuperadora, onde se busca a recuperação dos “marginalizados” e a sua integração à sociedade; uma segunda, nacional-populista, agregando práticas políticas populistas, e uma terceira, com orientação de libertação, em que a „experiência‟ educativa assume um papel ideológico e mobilizador, enquanto os seus agentes estimulam a potencialidade do povo para a sua autovalorização. Assim, assume declaradamente um papel político e ideológico. Contudo, se os processos de educação popular assimilam uma base política transformadora, baseada em valores éticos como a solidariedade, o respeito ao outro, buscando sempre a justiça, Souza (2004) vai propor uma educação popular acompanhada de uma „pedagogia da revolução‟. Para isto, se faz necessária a construção e reorganização de uma cultura também popular, pautada em metodologias, conteúdos e processos avaliativos apropriados às transformações da sociedade. Uma proposta pedagógico-cultural que visa o reforço dos meios de ação das classes trabalhadoras e que se propõe à ampliação de seu próprio saber de classe, enquanto seu conhecimento, a serviço do próprio poder de agir. Uma perspectiva de educação popular que conta com a „experiência‟ da classe mesma, contemplando uma visão histórica como algo acumulativo e que alavanca a sua organização cultural. Para ele, é a especificidade dessa cultura popular que, pela „experiência‟, as novas relações sociais simbolicamente serão elaboradas, reproduzidas e reelaboradas. A educação popular como um fenômeno cultural referenciado no trabalho e na dinamização das ações das classes trabalhadoras assume uma filosofia voltada às mudanças, buscando superar a mera contemplação e interpretação do mundo e buscando, como sugere Marx (1974), a sua transformação. Exigirá, dessa forma, uma filosofia da ação (Melo Neto, 2004, 2004a), em cujo arcabouço teórico contém uma teoria do conhecimento que se torna fundamental à educação popular. Um conhecimento promovido pela reflexão sobre as suas práticas e, necessariamente, pelo seu intercâmbio, orientando as ações. Em Jara (1994), a „experiência‟ educativa é a prática política educativa também. Um conhecimento sempre referenciado na „experiência‟ de grupo e disponível ao uso por parte de outros grupos que se orientam por essas mesmas possibilidades educativas. Pensadores como Gajardo, Grossi e Pérez (1994) também assumem o entendimento de „experiência‟ muito próximo do sentido de prática. Mas, em todos, se faz necessária a reflexão sobre essas práticas, constituindo uma perspectiva de aprendizagem e de ensino das classes trabalhadoras que podem ser acumuladas e que precisam ser repassadas a outros grupos. Com Gajardo, há necessidade da permanente crítica sobre os processos educativos populares, em especial ao papel da conscientização e suas condições de possibilidades. Em Grossi, a pesquisa precisa estar a serviço da organização das pessoas. Por sua vez, Pérez enfatizará um desenvolvimento da sociedade, decidindo-se por uma educação comunitária, onde serão ressignificados os conteúdos do ensino e os processos de aprendizagem. Outros pensadores como Mejía (1992), Picon, Guevara, Casillas e o Coletivo Colombiano (2005) desenvolvem as suas práticas educativas populares voltadas à necessidade da manutenção do enfoque metodológico educativo na perspectiva emancipatória. Conforme Picon (2005), sem tal pressuposto ter-se-á uma profunda descaracterização da própria educação
477 popular, pois aquilo que a põe em evidência é mesmo a sua concepção e intenção transformadoras. Essas práticas ajudam a definição de um patamar ético social, determinante para a atual educação popular. A „experiência‟ em educação popular para o Coletivo Colombiano (2005) reafirma a posição de resistência civil e a refundação do político com destaques para a multiculturalidade desses grupos, constituindo os cenários da educação popular. Essa educação imprescinde de uma pedagogia que arraste consigo a dimensão dialogal, que para o Coletivo concretiza-se na troca dos saberes da „experiência‟ do povo, um diálogo cultural. Este diálogo passa a não somente reconhecer aqueles saberes como ainda torná-los constitutivos dessa ação pedagógica, saberes de minorias, saberes hegemônicos, saberes populares, estando tudo submetido à crítica, possibilitando a troca e a contribuição desses diversos tipos de conhecimento. Em Cassillas, as práticas em educação popular contribuem à construção do sujeito social, possibilitando, por meio de sua autonomia, a formulação de projetos alternativos de sociedade. Para ele, essas práticas („experiência‟) educadoras necessitam estar posicionadas ao lado dos oprimidos, dos excluídos e vinculada às suas expressões de organização e da „transformação radical da sociedade‟. Destaca que as „experiências‟ de governos voltadas ao desenvolvimento local e à autogovernabilidade norteiam as práticas educativas populares, diante do desejo de uniformização social da globalização. Guevara, por sua vez, reivindica uma educação popular cujas práticas insistam no poder dos setores populares e no paradigma da emancipação humana. Um trabalho de base talhado pelo exercício do dever com prazer, acompanhado da criatividade estética e ética. Essas distintas visões de pensadores da tradição filosófica moderna, de pensadores e atores da educação popular e os seus atuais direcionamentos educativos, abrem a possibilidade de uma visão síntese de „experiência‟ que parece conter indicadores de especificidade, à medida que seja elemento de uma educação que se preste às lutas do oprimido para sua liberdade e mantenha os horizontes de atendimento às suas necessidades. Uma síntese Empiristas e Kant elegem a „experiência‟ como ponto de partida para o conhecimento, mesmo que para este, ele seja apenas da aparência. Todavia, a existência no tempo só se torna consciente pela „experiência'. Para os empiristas, o conhecimento está na própria „experiência‟ e é dado pelos elementos materiais. Com Hegel, pode-se ver na „experiência‟ dois componentes que estão intrinsecamente ligados: a coisa mesma e a inteligência. Na educação popular, pode-se vislumbrar a „experiência‟ como uma síntese metódica, manifestando-se dialeticamente em três momentos. O primeiro reúne as dimensões objetivadas de empiristas, as dimensões externas captadas pelos sentidos, e a inteligência (dimensões internas, subjetivas ou de idéias) como um algo só, no sujeito, e sem condição de divisibilidade. Afinal, o material só o é na percepção do sujeito. Os aspectos psicológicos só o são no sujeito. Portanto, dimensões externas e dimensões psicológicas expressas como síntese em um ser mesmo. Contudo, esta visão se distanciará profundamente da perspectiva empirista de que o conhecimento já está no dado. Assume-se a posição crítica de Bachelard quando alerta sobre as dificuldades de se entender algo em suas inteiras dimensões, fugindo das primeiras impressões geradas por esses objetos materiais. Não se alinha à compreensão de „experiência‟ como um experimento de laboratório, contudo. Não há possibilidade de ser repicável e, afastando-se da visão simples e objetiva de que a „experiência‟ é mera coisa física. Por sua vez, não compactua com a formulação idealista de que só há “experiência da consciência”. Se por um lado, empiristas contribuem à educação popular para que o conhecimento se estabeleça pela realidade concreta mesma, não se pode descartar a intervenção intelectiva do humano nesse objeto concreto. Já a perspectiva de uma „experiência‟ apenas de bases na consciência não contribui à necessidade da ação para mudanças, um reclamo e um horizonte da educação popular. “Experiência‟ que começa com ambos os movimentos – objetivo e subjetivo – expressando um todo, juntas as dimensões
478 interna e externa num sujeito. Caracteristicamente, uma síntese que tem início no indivíduo e que não finda em si mesmo. O horizonte da mudança na educação popular faz a sua „experiência‟ transcender elementos empiristas e idealistas, vislumbrando o algo mesmo, o concreto, como ente que precisa ser submetido à inteligência. Um algo material que só terá sentido à medida que se vão descortinando as suas determinações, e estas não se dão diante das condições de natureza, isto é, não estão dadas pela própria natureza. Somam-se elementos da intuição e elementos da subjetividade de cada participante do processo educativo (Silva, 2008). Um primeiro momento cheio de potencialidades de cada indivíduo, essencialmente singular. O segundo momento inicia-se com a organização do grupo em „círculos de cultura‟ freireanos, um momento de análise daquilo tudo sentido, mostrado, até o momento, o concreto percebido pelos indivíduos presentes. Um processo de análises das determinações daqueles aspectos primeiros que será buscado em nível das abstrações de cada sujeito, quando do conhecimento de seus aspectos históricos. As análises passam para a dimensão do coletivo, pois há relações específicas naqueles concretos postos que carecem de explicação e respondem a certas causalidades. Sem esse conhecimento, o mundo seria fenômenos completos em si mesmos, sem a necessidade da intelecção humana. Na educação popular, a visão de „experiência‟ inicia a sua constituição, naquele primeiro momento, e avança pelo esforço inicial muito para além de descrições das coisas mesmas, indo ao encontro de suas explicações (Melo Neto, 2002). Um momento que começa na individualidade do participante do grupo que se educa em bases à educação popular e que adquire dimensões de coletividade no próprio grupo. Abandona-se a dimensão da individualidade, passando-se a assumir a condição da coletividade. Com a força das abstrações dos participantes, o concreto vem à tona, mas carecendo de explicações, mantendo-se a anterioridade do mesmo no debate e afastando-se da perspectiva idealista e subjetiva da „experiência‟. Conhecer esse concreto é conhecer as suas determinações, assim como em Cardoso (1990), que só se atinge o concreto quando se compreende o real pelas determinações que o fazem ser como é. Um conhecimento que irá se apresentar como resultado de um elaborado processo de pensamento coletivo. Um momento em que as observações e sentimentos mais simples se externam para serem submetidos a uma maior elaboração abstrata do grupo. Um exercício de pensamento que está permeado de expectativas políticas e pedagógicas, mostrando que o caminho da „experiência‟ em educação popular não será mera contemplação das coisas da vida, das coisas do mundo. Um ambiente por inteiro dominado por pensamentos e intuições, expressões variadas de sentidos de sujeitos individuais que se tornam sujeitos coletivos. É nesse momento que se constroem os elementos teóricos para que se possa conhecer aquele concreto inicial e as suas relações com o real. Um conjunto de definições que são coletivas. Não cabe mais a ideia de uma „experiência‟ individual, pois, agora, tudo acontece em grupo, em „círculos de cultura‟ e, como revela Calado (2000), onde se dão as partilhas de saberes e de conhecimentos, “atiçando as centelhas da utopia”. Desse concreto é que se desenvolvem análises na diversidade das formas de trabalho do cotidiano, numa sociedade que a cada dia se torna mais complexa. Entretanto, é daí mesmo que, definido o trabalho como o elemento para a aquisição dos entes culturais da sociedade, será esta a categoria simples que poderá ser útil às análises, pois se ela apresenta condições de maior compreensão deste ambiente mais complexo, pode explicar outros de menor complexidade. Com isto, a „experiência‟ passa a constituir-se das dimensões do saber daqueles participantes, que para Sales (2001) é um modo de atuar coerente, tranquilo e profundo. Um aprendizado essencialmente coletivo, como mostra Lins e Oliveira (2008), na educação popular em movimentos sociais, com especial destaque às possibilidades multidimensionais dessa construção de saberes. É momento de desenvolvimento teórico que não depende apenas das capacidades individuais ou mesmo das disponibilidades teóricas do grupo. Desenvolvimento teórico e aprendizado que estão permeados pelo exercício da crítica e da autocrítica, e que derivam das condições reais em que estão submetidos os participantes desse processo educativo. Um momento em que aprendem com a história de cada um, em que afetos e ideias se cruzam, como lembram Lima e Rosas (2001). Exercícios de aprendizagem que ocorrem em qualquer campo de conhecimento, tanto em „círculos de cultura‟ em ciências humanas, na tecnologia, nas ciências da saúde e da
479 natureza e outros. Rossi (2003) mostra, por exemplo, como pôde aplicar e desenvolver tal aprendizagem no campo da música, bem como suas possibilidades de mudanças. Ou mesmo, no „resgate dos saberes e dos fazeres do povo‟, realizado por Borba (2006) com a sua vasta „experiência‟ na área rural. Podem ser vistos em outros círculos que se voltam para a produção como meio de sobrevivência de setores mais empobrecidos da sociedade, no campo da economia solidária, em que se destacam processos denominados de „incubação‟378 onde são determinados, de forma coletiva, instrumentos teóricos e práticos para a produção, evidenciados por Costa, Oliveira e Melo Neto (2006). Um momento de análise teórica, para melhor compreensão do real presente, que reclama o estabelecimento do plano dessa análise e a definição da ordem das categorias assumidas, passando a montá-la e definindo o seu começo. Um olhar sobre a realidade que existe independente de se pensar ou não sobre ela. E a sua independência a localiza fora do espírito, caracterizado por atividades apenas teóricas. Todas as categorias teóricas criadas, todavia, tem como pressuposto a anterioridade da realidade sobre a consciência. E segue pela definição da melhor organização dessas categorias para que se possa chegar ao conhecimento mais abrangente e mais profundo dessa realidade, assumindo, finalmente, aquela categoria que expressar as relações mais determinantes. Estes são momentos coletivos, onde a sua efetivação só é possível por meio da ética do diálogo. Na promoção desse diálogo, cada participante ou falante precisa ter garantias de sua comunicação, além de possibilidades de reforço a valores outros éticos, como a solidariedade e igualdade. Como lembra Habermas (1997), urge a definição das pretensões do falante/participante, nestes momentos de diálogos, ou momentos de atos de falas, ou sejam: a necessidade de que o outro esteja entendendo o discurso de cada um – a inteligibilidade; as afirmações, explicações ... precisam expressar a verdade; além da veracidade e da retidão de todos que estejam em ato/círculo educativo popular. Momento de efetiva comunicação em que todos possam abrir os seus discursos e manter as suas intervenções e réplicas, perguntas e respostas; onde todos estejam em condição de problematizar o concreto, a situação em análise; em que expressem suas atitudes, sentimentos e desejos; e com todos podendo definir regras, de permitir e de proibir, enfim, de “dar razão e exigí-la”. A partir daí, abre-se a condição da ação propriamente coletiva, passando a compor o terceiro momento da „experiência‟ em educação popular. O terceiro momento, quando a „experiência‟ em educação popular se completa, inicia-se a partir da definição das ações, do fazer, das operações humanas que serão realizadas após todo o processo de reflexão, identificado no segundo momento e iniciado no indivíduo como produto de síntese, desde o primeiro momento. Ações que são livres e responsáveis, próprias dos humanos, dos grupos em processo de educação popular, qualificadas após a análise de suas determinações. Podem estar direcionadas à produção de novos conhecimentos e implicações epistemológicas, como alude Fleury (2002), ou à produção de bens de consumo, para a superação de situação de pobreza. Para destruir ou continuar novas ações em desenvolvimento, para criar ou iniciar novos processos de organização política desses setores dialogantes. Ações voltadas à apropriação, na sua maior radicalidade, dos bens culturais produzidos pela humanidade. Cultura, que na visão de Pinto (1979) é um bem de produção, um meio de operar sobre a natureza, produzida pelos humanos, mas, também, transforma-se em bem de consumo quando se torna necessária a sua veiculação às gerações mais jovens. Nesse processo, o humano pode alienar-se desses bens culturais, como a própria linguagem expressa nos caracteres de uma língua, que deixando de ser concreta, transforma-se em um mero ente abstrato. A partir desses grupos, as suas ações se dispõem à superação da alienação de que a natureza deva ser utilizada apenas em benefícios de poucos, de benefícios para si mesmo ou somente ao seu particular
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Processo educativo e formativo de um grupo empreendedor na economia solidária, em que se aprende a viver e trabalhar juntos e, sobretudo, discutir o próprio grupo e a aplicação de seus produtos gerados pelo trabalho coletivo. Em grupo, estudam-se o mercado, o ensino e a aprendizagem, os serviços ou produtos a serem realizados, os valores éticos da economia solidária, o gerenciamento e sua avaliação. Tudo isto de forma autogestionária.
480 grupo. Assim, suas ações reaparecem como instrumentos políticos para todo o seu grupo, para a sua classe. Com essa pedagogia freireana, humanista e libertadora, essas práticas ou „experiências‟ instauram o “aprendizado da pronúncia do mundo”, sendo este verdadeiro. Essas são ações pedagógicas que ocorrem com os oprimidos, em que estes desvelam o mundo da opressão, comprometendo-se com a sua transformação, inicialmente; e, em segunda dimensão, ao ser transformada essa situação, tal pedagogia deixa de ser apenas do oprimido, passando a ser dos humanos, em permanente “processo de libertação”. Ações que são práticas educativas e em condições de serem vivenciadas nas áreas de conhecimento mais diversas, como destaca Vasconcelos (2006), ao estender a educação popular às suas „experiências‟ de atenção à saúde da família; ser ações teóricas, ao se inserir no esforço de se transformar em um ser criativo nas práticas de educação popular (Rosas, 2008), ou buscando destaques às ações, pelos caminhos da apropriação desses bens culturais (Baptista, 2008). Ações, em suas dimensões políticas, lembradas por Silva (2008a), ao identificar em suas „experiências‟ em movimentos sociais a relação profícua da educação popular e a práxis desses movimentos, traduzidas em ação educativa e pedagógica. Ou, ainda, ações assumidamente de esforço para que a educação popular, efetivamente, mantenha-se como um campo educativo político para a emancipação humana, como enfatiza Feitoza (2008), em que a conquista da classe trabalhadora nas suas lutas pelo reino da liberdade atendam também as suas mais profundas necessidades. Assim, configura-se o sentido de „experiência‟ em educação popular, expressando essa síntese, estabelecida por esses três momentos, um movimento permeado de contradições, da relação do ser com o mundo, relações pedagógicas, políticas, filosóficas e, estritamente, ações históricas. Considerações A „experiência‟ continua tendo a sua importância determinante para o avanço do pensamento filosófico a respeito do fenômeno da educação e, de forma singular, da educação popular. Caberá a sua necessária reflexão que se manifesta pela produção e 7apropriação dos entes culturais pelos humanos, pelo trabalho humano. Um fenômeno traduzido por um sistema que se mantém sempre aberto ao se refazer diante das coisas do mundo. Educação popular como um trabalho filosófico de produção de conhecimento referenciado pela realidade, tendo na „experiência‟ seu permanente momento de vigor teórico e de ação prática. Com metodologias e pedagogias apropriadas e estimulando a participação e o empoderamento das pessoas, individual e coletivamente. Uma educação que arraste consigo conteúdos próprios, bem como técnicas adequadas de avaliação, de forma continuada, sem se apresentar com caráter finalista, sem fórmulas únicas e acabadas. „Experiência‟ que se anima, de forma provocativa, pelas possibilidades de suas realizações políticas com o seu horizonte de mudanças. Sempre permeada de desafios e do esforço de uma educação que, mesmo diversa, mantenha a sua unidade, superando a fragmentação nos dias de hoje, contribuindo para um novo bloco social alimentador do poder dos setores alijados dos bens culturais gerados pela humanidade. „Experiências‟ que fomentem o pensar sobre o local, sobre o regional e em conexão com o global, quando das análises da sociedade. „Experiências‟ que se prestem a estimular novas políticas para as transformações sociais, intrínseca a uma ética orientada por anseios humanos de liberdade, justiça e igualdade, sem esquecer, jamais, da felicidade.
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EDUCAÇÃO POPULAR E UNIVERSAIS - dimensões ontosemânticas.
RESUMO. Este texto é produto da pesquisa Educação Popular e Constituintes. Uma discussão que remete à questão de haver ou não elementos de universalidade nesse fenômeno educativo. É uma análise lógico-semântica de busca de possíveis universais, resultante da coleta de constituintes em diversas experiências de grupos, de atores em Educação Popular, e de parte da produção acadêmica na América Latina. A pesquisa expõe a existência de constituintes, possíveis universais, que asseguram, talvez, uma ontologia para a Educação Popular, devido a presença destes em todas as experiências analisadas e de outros constituintes que, tão somente, aparecem em algumas delas. Expressam nomina, nomes, vocábulos, mas sem cair na austeridade nominalista de uma linguagem totalmente controlada, contribuindo para uma compreensão sistemática e aberta de Educação Popular. Palavras-chave: educação popular, universais, particulares. Introdução Educação, para muitos, apresentou-se com significado meramente simbólico. Resiste, contudo, a qualquer tentativa de compreensão que a transforme em fórmula abstrata ou mesmo vazia. É fenômeno intrínseco às relações humanas e sociais ou, mais precisamente, um fenômeno de apropriação da cultura. Esta entendida como expressão da criação humana, fruto das complexas operações que o animal humano vem desenvolvendo historicamente no trato com a natureza material e suas lutas para sobrevivência própria. Nessas operações, ele descobriu a sua capacidade de aprender, estabelecendo esse momento como o fato pedagógico, isto é, a condição de aprendizagem e de ensino que traz consigo e que continua em desenvolvimento, com maior velocidade do que em qualquer outra espécie animal. Educação torna-se um fenômeno humano especial: caracteriza-se pela condição de aprendizagem e de ensino, respectivamente, enquanto ensina e enquanto promove a aprendizagem. A educação realiza-se de forma reflexiva ou sistemática comumente em escolas, bem como de forma espontânea em outros quaisquer ambientes. É essa dimensão de ensino e aprendizagem recorrente do trabalho humano, este entendido enquanto intervenção na natureza para mudanças, que se põe em discussão neste artigo. Uma educação que não ocorre necessariamente em escolas formais, Educação Popular. No esforço de delineamento desse processo educativo, questões são desafiantes como: Haverá na Educação Popular constituintes universais, podendo-se discutir uma ontologia própria? Como recorrência: Haverá constituintes, nesse jeito próprio de se fazer educação, orientados pelo trabalho, que podem ser denominados de particulares? Esta pesquisa foi realizada a partir de experiências de educadores/as em busca de constituintes para a Educação Popular379 e em livros da produção teórica380 deste campo de 379
A pesquisa dos constituintes em Educação Popular, ainda em desenvolvimento, tem como amostra cinco grupos de profissionais no campo da Educação Popular, num total de noventa e seis participantes: a) um grupo de 6(seis) professores de alfabetização, da Experiência de Autogestão, que vem sendo desenvolvida na Usina Catende-PE, iniciada em 1994 e, ainda, em curso pela Cooperativa Harmonia (anos 2003 a 2005); b) um grupo de 30 (trinta) educadores populares oriundos de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, do Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária) na cidade do Rio de Janeiro (ano de 2003); c) três grupos num total de 72(setenta e duas pessoas) profissionais (alunos/as) de três turmas, nas disciplinas de Teoria em Educação Popular, História e Filosofia da Educação Popular e Tópicos Especiais em Educação Popular, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa-PB (anos de 2003, 2004 e 2012).
484 estudos. Em um primeiro movimento teórico, utilizou-se da análise lógico-semântica, possibilitando resultados que serão apresentados como constituintes universais para a Educação Popular e fornecendo pistas para sua ontologia, enunciando uma possibilidade semântica essencialmente nominalista. Todavia, não se assume a visão austera desse movimento filosófico por uma linguagem totalmente controlada, pautando-se pelo diálogo do humano com a natureza e consigo mesmo, expressando no conjunto um amplo movimento ontosemântico. Se para Marcuse (1978) a questão do estatuto dos universais é central para o pensamento filosófico, para a Educação Popular é uma questão que merece ser cuidada quanto às dimensões de universalidade possível no seu fazer educativo, na sua práxis.
Os universais Tratar a questão dos universais, hoje, é provocar essa discussão, não suficientemente resolvida, presentes nas formulações platônicas ou um realismo platônico, em que os universais apresentam uma existência real. Existência separada, anterior e independente das coisas sensíveis, entidades ante rem. Ao lado desta discussão, postulam-se formulações aristotélicas ou um realismo moderado, em que os universais têm uma existência real, com uma essência comum, porém compartilhada e presente apenas nas coisas sensíveis. Os universais existem não anteriormente às coisas sensíveis; têm existência apenas nelas mesmas, ou seja, somente nas coisas, e não anteriormente ou independente delas, entidades in re. Outras formulações, por sua vez, rejeitam completamente a existência de qualquer entidade universal extramental, seja anterior às coisas ou mesmo enquanto realidade nas coisas. Tal perspectiva afirma que, na realidade extramental, o que há são apenas indivíduos singulares. As entidades universais adquirem significado dos nomes (nominum significatio). Os nomes termos que firmam um sinal linguístico mental. Sinais estes que podem ser dotados de capacidade predicativa de muitas coisas381. É a perspectiva nominalista para a busca de universais, uma possível ontologia.
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Também compõe a pesquisa parte da produção teórica da América Latina, contida no livro Educação Popular: utopia latino-americana (Moacir Gadotti e Carlos A. Torres - Orgs), em que aparece um conjunto expressivo de pensadores em Educação Popular; e, em especial, parte da produção brasileira na área, a partir do Nordeste, orientando-se pelos seguintes livros: Educação como prática para a liberdade (Paulo Freire); Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire); Pedagogia da esperança (Paulo Freire); Pedagogia da autonomia (Paulo Freire); Educação do campo e a formação sociológica política do educador (Ismael Xavier de Araújo e Severino Bezerra da Silva); Educação Popular e movimentos sociais (Edineide Jezine, Maria do socorro Xavier e Orlandil de Lima Moreira); Educação Popular – enunciados teóricos (José Francisco de Melo Neto); Paulo Freire: sua visão de homem, de mundo e de sociedade (Alder Júlio Calado); E a Educação Popular: quê? Uma pedagogia para fundamentar a educação, inclusive escolar, necessária ao povo brasileiro (João Francisco de Souza); Relatos e vivências de Educação Popular (Wilton Wilney Nascimento Padilha); Educação Popular: enunciados teóricos II (Agostinho da Silva Rosas e José Francisco de Melo Neto - Orgs). No total, houve a indicação de 61 constituintes para a Educação Popular, ocorrendo 9.817 registros desses constituintes. Foram escolhidos para esta discussão aqueles que obtiveram a indicação acima de 80% no conjunto desses livros e dos 5(cinco) grupos acima referenciados. Constituintes mais representativos: Liberdade, Diálogo, Cultura, Crítica, Praxis, Trabalho, Compromisso político e Autonomia. Seguem os demais constituintes em ordem alfabética: alfabetização, amorosidade, autogestão, autonomia, campo/rural, cidadania, classe social, coletivo, comunicação, consciência, construção de conhecimento, construção de saberes, conscientização, cooperação, criatividade, democracia, dialética, desenvolvimento humano, emancipação, empoderamento, esperança, experiência, existência, ética, felicidade, gênero, humano, humanidade, igualdade, ideologia, identidade, justiça, luta, metodologia própria, movimento, mudança, multicultural, mundo, necessidade, oprimido, opressor, participação, pensamento, popular, povo, política, prática, produção, racionalidade, realidade, ressocialização, teoria e prática, transitoriedade e subjetividade, FERREIRA, Anderson D`Arc. Problema dos Universais.In: Jornada de Filosofia Medieval. Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina Grande, 2012.
485 Resta, por sua vez, a visão conceptualista, traduzida como sendo uma posição híbrida que mescla elementos tanto do realismo quanto do nominalismo. Nesta visão, os universais existem enquanto conceitos universais nas mentes. São apenas ideias abstratas, possuindo, assim, esse objectum. Nem são entidades reais e tampouco meros nomes, são conceitos gerais. Todas essas formulações, contudo, guardam similaridades teóricas e se externam não como campos definitivos. Esse debate ressurge, sobretudo, na Idade Média. Chega ao século XX e aos dias atuais. Universal derivado do adjetivo “universus, universa, universum”, surgindo, assim, o termo. Como se vê, podem ser apresentados como “noções genéricas” ou mesmo “ideias” e “entidades abstratas”. Os seus contrapontos têm sido os particulares, expressando entidades concretas. Adquiriu diferenciados significados, em níveis distintos, como o de símbolo linguístico, o de entidades mentais e, portanto, subjetivas, o de significados objetivos, o de realidades fenomênicas, e de realidades transcendentais. Tem-se assegurada a compreensão de universais como palavras orais ou escritas, ora como coisas empíricas ou físicas, como conceitos mentais individuais, ou mesmo como ideias superiores e distintas no mundo. Tais posturas filosóficas podem estar presentes nas diferenciadas visões de Educação Popular. Se há uma visão de que Educação Popular é educação supletiva para “pobres”, para os “coitadinhos”, dentro de uma perspectiva salvacionista de pessoas que estão fora do caudal de grupo dominante, então, podem-se ter universais em Educação Popular definidos antes mesmo desse fenômeno educativo, idealizado, portanto, ante rem. Podem-se, ainda, comportar possibilidades muito próximas, em que os universais sejam postos como entidades que estão nessas coisas, in re; ou mesmo, como universais adquirindo significados apenas nos nomes, posições essencialmente nominalistas. Um traço peculiar do debate sobre os universais é a sua forma de “existência”. Esta pesquisa é um esforço de apresentar esses “algos de existência” e caracterizá-los como tal. É uma questão ontológica que tem seu deslocamento para o campo da Educação Popular e que tenta apresentar constituintes que poderão assegurar que tal tipo de educação é Educação Popular, sem os quais haveria um outro tipo de educação. O realismo platônico, ao caracterizar os universais, irá assegurar a sua existência como condição para o entendimento de qualquer coisa particular. É como se esses particulares expressassem coisas que estão fundamentadas nos universais, mesmo que não sejam reais como expressão corpórea de algum ente. Dessa forma, os universais estão antes das coisas e existem como expressões de ideias. Contribui para com esse ideário platônico, fundamentalmente, a discussão de Parmênides382 sobre o ser das coisas. “Necessário é o dizer e pensar que (o) ente é; pois é ser, e nada não é. ...”. Para ele, só se pode pensar e dizer aquilo que é, pois “o mesmo é pensar e ser”. Ausente está a condição de predicação negativa ou positiva, pois não se coloca o problema da verdade. Mesmo assim, aparecem as condições para verdade, estabelecendo-se uma ontologia. Mas, na Educação Popular, estão firmando-se constituintes que podem definir uma situação do ser de si mesma – aquilo que assegura forma à Educação Popular ou a definição de seu ser. Firma-se a dimensão semântica quanto a origem desses constituintes, não sendo preciso algo anterior e nem mesmo algo nas coisas mesmas, mas sim do pensar e do dizer (linguagem). Nas experiências em Educação Popular aqui analisadas, pouco a pouco, vem-se mostrando o aparecimento de elementos que constituem esse fenômeno educativo, fundando-se a sua base ontológica que, mesmo sendo ideias, não são formadas antes do ato educativo, muito menos têm se comportado como entidades contidas nos atos educativos, mas sem que possam ser tidas como estando na coisa mesma, já que originam-se dos dados da própria experiência educativa. Estão surgindo entidades universais sim, que apontam para significados apenas nos nomes mesmos. São termos firmados por sinais linguísticos mentais com diferenciadas predicações quando de seus surgimentos nesses processos educativos (experiências). Mas, que experiências estão-se falando e como as mesmas têm assinalado esses constituintes?
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Parmênides. Fragmentos. Sobre a natureza. Coleção Os Pensadores. Os Pré-Socráticos. 1ª Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1973. (Frag.6,1-2).
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Experiências em Educação Popular Estão sendo várias as experiências educativas no campo da Educação Popular. Destacam-se, hoje, atividades educativas que acontecem no campo institucional, fora desse campo, na escola pública, em escolas de organizações sociais, em movimentos sociais populares e, em todas elas, „experiência‟ aparece como uma síntese metódica que se manifesta de forma dialética e em três momentos. O primeiro reúne as dimensões objetivadas pela ´experiência`, as dimensões externas captadas pelos sentidos, e a inteligência (dimensões internas, subjetivas ou de ideias) como um algo só, no sujeito, e sem condição de divisibilidade. São dimensões externas e dimensões psicológicas traduzidas pela síntese em um ser mesmo. O horizonte de mudanças em Educação Popular faz a sua „experiência‟ transcender elementos empiristas e idealistas, vislumbrando-se o algo mesmo, o concreto, como ente que precisa ser submetido à inteligência. Um algo material que só terá sentido à medida que se vão descortinando as suas determinações, e estas não se dão diante das condições de natureza, isto é, não estão dadas pela própria natureza. Somam-se elementos da intuição e elementos da subjetividade de cada participante do processo educativo (Silva, 2008). Um primeiro momento cheio de potencialidades de cada indivíduo, essencialmente singular. A organização do grupo em „círculos de cultura‟ freireanos marcará um segundo momento, sendo este de análise daquilo tudo de sentido, mostrado, ou o concreto percebido pelos atores presentes daquele momento educativo. É um momento definido pelas análises das determinações daqueles aspectos primeiros, buscadas em nível das abstrações de cada sujeito, contemplando-se o conhecimento de seus aspectos históricos. Essas análises ocorrem na dimensão do coletivo. Naqueles concretos postos, estão presentes relações específicas que carecem de explicação e respondem a certas causalidades. Este é um momento que tem início na individualidade do participante do grupo, mas que adquire dimensões de coletividade no próprio grupo. Com a força das abstrações dos participantes, o concreto vem à tona só após as explicações de causalidades, mantendo-se a anterioridade do real no debate e afastando-se da perspectiva idealista e subjetiva da „experiência‟. A partir do real, passa-se ao conhecimento do concreto, que nada mais é do que conhecer as suas determinações, assim como em Cardoso (1990), assegurando-se que se chega ao concreto quando se compreende o real pelas determinações que o fazem ser como é. Um conhecimento que não pode surgir apenas de um só pensamento, mas que é produto da elaboração nesse processo coletivo de pensar. Um momento em que as observações e sentimentos mais simples se externam para serem submetidos a uma maior elaboração abstrata do grupo. Assim, há a possibilidade de se ter conhecimento dessa construção de elementos teóricos, passando-se de um real inicial pouco conhecido para a chegada a um concreto, permeado de novas formulações de conhecimento e se mantendo a reflexão coletiva como meio dessa realização. Não cabe mais a ideia de uma „experiência‟ individual, pois, agora, tudo acontece em grupo, em „círculos de cultura‟ e, como revela Calado (2000), onde se dão as partilhas de saberes e de conhecimentos, “atiçando as centelhas da utopia”. A „experiência‟ passa a ser produto das dimensões do saber daqueles participantes; para Sales (2001), trata-se de um modo de atuar coerente, tranquilo e profundo. Um aprendizado essencialmente coletivo, na Educação Popular, em movimentos sociais, com especial destaque às possibilidades multidimensionais dessa construção de saberes; é momento de desenvolvimento teórico que não depende apenas das capacidades individuais ou mesmo das disponibilidades teóricas do grupo; um momento em que se aprende com a história de cada um, em que afetos e ideias se cruzam, como lembram Lima e Rosas (2001). Exercícios de aprendizagem que ocorrem em qualquer campo de conhecimento, tanto em „círculos de cultura‟ em ciências humanas, na tecnologia, nas ciências da saúde e da natureza, e em quaisquer outros campos. São momentos coletivos promotores de um forte exercício dialógico, no qual se reforçam valores éticos, como a igualdade das pessoas, abrindo condições para ações propriamente coletivas que definirão o terceiro momento da „experiência‟ em Educação Popular.
487 Este é o momento em que a „experiência‟ se completa, iniciando-se as definições de ações, de fazeres, das operações humanas que foram sendo identificadas desde o primeiro momento. Ações que são livres e responsáveis, próprias dos humanos, dos grupos em processo de Educação Popular, qualificadas após a análise de suas determinações. A partir desses grupos, as suas ações se dispõem à superação da alienação de que a natureza deva ser utilizada apenas em benefícios de poucos, para si mesmo ou, no máximo, ao seu particular grupo. Assim, suas ações reaparecem como instrumentos políticos para todo o seu grupo, para a sua classe. E é esta a pedagogia freireana, humanista e libertadora em que as experiências educativas instauram o “aprendizado da pronúncia do mundo”, sendo este verdadeiro. Ações pedagógicas que estão ocorrendo com os oprimidos, desvelando-se o mundo da opressão, comprometendo-se com a sua transformação, inicialmente; e, em segunda dimensão, ao ser transformada essa situação, tal pedagogia deixa de ser apenas do oprimido, passando a ser dos humanos, em permanente “processo de libertação”, na visão de Freire (1996). Desse modo, configura-se a ´experiência` em Educação Popular, produto de uma síntese em três momentos, permeada de contradições, da relação do ser com o mundo, relações pedagógicas, políticas, filosóficas e, estritamente, ações históricas. Os dados que seguem são produtos de experiências em Educação Popular, em vários momentos de ações educativas de educadores populares, podendo-se examinar os quadros resultantes da coleta empírica, na busca de se caracterizar aquilo que é, que forma ou que fornece conteúdo a esse processo educativo, resultantes desse fazer experiencial de educadores/as. Uma busca por constituintes que estão presentes nesses momentos de se pensar, agir e pensar novamente, momentos de educação popular.
Quadro 1- Constituintes383 da Educação Popular com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes: Constituintes compromisso político Cultura Transformação Práxis Diálogo Realidade Autonomia Processo Empoderamento Crítica Pedagogia própria Fonte: pesquisa no CEDAC – Centro de Ação Comunitária, Rio de Janeiro, 2003. Para esse grupo de educadores, a Educação Popular exige um compromisso político explícito, promotor de uma práxis que promova autonomia. Práxis como expressão do pensar aquilo que realiza, traduzindo-se por uma simbiose teórica e prática. Uma práxis que conduza para a autonomia de grupos, de coletivo, e não somente promotora do individualismo. Isto só será possível pelo exercício da crítica que busca os aspectos positivos e negativos contidos em quaisquer análises de entes da natureza e definidora de ações. Sempre perpassada pelo princípio ético do diálogo, promovendo-se o empoderamento das pessoas e dos grupos para transformação. Um processo que exige uma pedagogia própria, expressando uma filosofia própria e abertamente transformadora de uma realidade que se põe como ponto de partida em sua teoria de produzir conhecimento. Estes são constituintes que podem servir como base inicial para a formulação de uma Educação Popular e, portanto, apontar para dimensões de universalidade que estão no próprio processo educativo, aproximando-se de uma ontologia que não é produto de meras ideias. Agora, observe-se o quadro 2 seguinte e note-se como se revelou a presença dos constituintes de nova „experiência‟ de outro grupo de educadores.
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O elemento teórico que mais identifica a Educação Popular.
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Quadro 2 - constituintes da Educação Popular com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes: Constituintes Cultura Diálogo Identidade Construção do sujeito Democracia Práxis Compromisso político Liberdade Incentivo a saberes Crítica Autonomia Trabalho Fonte: pesquisa entre participantes de projetos em Educação Popular. João Pessoa, 2003. Este grupo de educadores destaca que, para uma ontologia em Educação Popular, carecerá de constituintes que promovam a cultura. Uma visão que em cujas ações estão aproximando-se do quadro anterior. Uma situação em que atores se educam enquanto sujeitos, comprometidos politicamente, promotores de liberdade e da democracia. Liberdade não como promessa de uma conquista individual, presente em todo o pensamento liberal, mas como liberdade de todos e de todas, incentivadora de saberes, estes, também coletivos. Aparece, ainda, o constituinte trabalho que, juntamente com os demais, caracterizarão aquilo que é a Educação Popular. Trabalho como produto da relação humana com a natureza, sempre com vistas a mudá-la para um melhor ambiente de coletividade. Ao se compararem grupos de atores em Educação Popular, como mostra o quadro seguinte, pode-se revelar a aproximação dos novos indicadores com os dos demais grupos já conhecidos. Quadro 3 - constituintes da Educação Popular com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes: Constituintes Autonomia Cultura Identidade compromisso político Diálogo Crítica incentivo ao conhecimento Práxis Liberdade construção do sujeito Trabalho Saberes Fonte: pesquisa entre participantes de projetos em Educação Popular. João Pessoa, 2004. Neste grupo, repetem-se vários constituintes, apontando-se para uma formulação conceitual de Educação Popular, muito próxima à anterior, com a forte presença da categoria trabalho, em particular. Verifica-se que a prática da Educação Popular tem no trabalho um dos seus constituintes e princípio educativo. Assim, se passa a disponibilizar um marco teórico, pelo trabalho, para o debate ontológico dessa educação. São originários não de ideias anteriores ao processo educativo, mas presentes nas experiências desses educadores. A Educação Popular, como um fenômeno humano de ensino e aprendizagem, realiza-se pela apropriação dos bens culturais produzidos pela humanidade. Todos esses bens gerados ao humano devem retornar para sua realização enquanto sujeito produtor de sua vivência e de sua história. Como produto de sua história, se estabelece simultaneamente a sua identidade. No quadro 4, verificam-se novos elementos surgentes que abalizarão e darão sustentação à uma perspectiva de constituintes de universalidade para Educação Popular. Quadro 4 - constituintes da Educação Popular com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes: Constituintes Cultura Crítica Oprimido Emancipação Trabalho Mundo Humano Realidade Movimento Consciência Práxis Liberdade Fonte: pesquisa realizada nos livros anteriormente citados.
489 Mais uma vez, aproxima-se daqueles constituintes já apresentados. Este conjunto continua a contribuir para a definição de uma ontologia para Educação Popular, em que pese a sua abertura para cada nova realidade que se descortine. Um descortinar como produto de expressão de suas consciências, sempre visualizando um mundo em permanente movimento. Assume-se, ainda, um posicionamento político ao lado do oprimido, das classes trabalhadoras, pautado pela ênfase na cultura e no trabalho como fundamento da Educação Popular. Assim, pode-se tentar alguma comparação entre esses grupos de educadores, buscandose a maior aproximação entre todos eles. Isto pode ser observado no quadro que segue, quando os novos constituintes traduzem aquilo que está presente em todos os demais grupos, a partir das experiências, formando-se um conjunto que poderá se manifestar como aqueles elementos mais presentes nessas práxis. O quadro que segue expõe aqueles constituintes da Educação Popular mais presentes nas experiências desses grupos pesquisados, conformados em suas aspirações, formulações teóricas de livros produzidos sobre Educação Popular e nas experiências. Quadro 5 – Constituintes comuns da Educação Popular, com pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes, em todos os grupos e livros pesquisados: Síntese de Constituintes Cultura Crítica Práxis Trabalho
Liberdade Diálogo Compromisso político -------
Revela-se que esses constituintes são os que mais ocorrem nessas diversas experiências, a partir de pensamentos e práticas educativas. A cultura é componente na formulação conceitual mais abrangente. Acompanha essas experiências aquilo que mais está expressando as práxis educativas. São comuns nesses processos educativos os constituintes: a cultura, a crítica, a práxis, o trabalho, a liberdade, o diálogo e o compromisso político. Dois outros constituintes, contudo, apareceram com expressiva relevância quantitativa em todos os grupos. Eles estão traduzidos em todo o interior dos demais constituintes: a emancipação e a igualdade. Isto se deve em virtude de ser impossível tratar a produção da cultura, expressa nos marcos do trabalho, definidor dos entes culturais, fora da emancipação e da igualdade entre as pessoas. A promoção da crítica, necessariamente, só será feita se voltada à liberdade que não sendo só do indivíduo, mas coletiva, sugerindo a emancipação e a igualdade. Uma práxis terá significado se para a emancipação e para a liberdade, traduzida pela igualdade humana. Enfim, a ética do diálogo que promova a convivência democrática e em busca de melhores campos para se viver, traduzidos pela autonomia, só ocorrerá por meio de um compromisso político que contribua à igualdade das pessoas. Se acrescem também, como elementos intrínsecos a todos os demais presentes no quadro, os constituintes emancipação e igualdade, inseridos nas práticas educativas pela exigência de realização de todos os demais. Estes constituintes podem adquirir dimensões de universalidade. Isto sugere a questão: “Se eles são reais, como podem ser pensados: como espécie ou como gênero para esse tipo de educação?”. Sugere-se que esses estão em condições de possibilidades de serem universais, como mostram os quadros, surgindo em todos os grupos desses profissionais. Não estão como produtos já formados e concebidos com tal na mente desses educadores e, muito menos, nas coisas - como se afirmar que um tal ente é uma cadeira, pois todos dirão que é uma cadeira, sem ser preciso que todos tenham uma compreensão do caráter convencional da mesma. É como diz Abbagnano (2000), sugerindo que não é possível, todavia, se afirmar que um homem, segundo qualquer consideração ou qualquer ser, seja considerado um asno. Possivelmente, nem todo educador em Educação Popular desses grupos ou de tantas outras experiências em andamento, ou que já ocorreram, tenha a compreensão teórica e revolucionária de cada um desses constituintes. Mas, como se torna evidente a repetição dessas expectativas pedagógicas e políticas, parece razoável se admitir que esses constituintes se repetem e se afirmam na definição de uma ontologia em Educação Popular.
490 Não se põe a discussão se essas dimensões (constituintes) são corpóreas ou incorpóreas. Esses universais não se encontram nessas, de forma a fazer parte concreta da mesma, quando se realizam com os mais diversos grupos humanos, mas estão aí presentes. Não existem nem mesmo no intelecto e, apenas nos nomes, com os sentidos que lhes são assegurados nas atitudes educativas ou em suas imagens. Em Educação Popular, esses universais não se conduzem pela perspectiva do realismo platônico, não estando antes das coisas. Também, não são e nem estão em entidades reais, segundo a visão do aristotelismo ou realismo moderado. Esses universais distanciam-se, portanto, de uma compreensão que os aprisionam ao mundo das ideias e nem estão reduzidas às coisas mesmas. Afastando-se dessa dualidade, esses constituintes universais da Educação Popular são, tão somente, nomes, vozes, vocábulos que passam a ter sentidos nesse campo educacional, caracterizando-se, paulatinamente, como um processo que só é quando acompanhado às práticas educativas dessas palavras que lhes formam, distanciando-se esse processo de qualquer outra prática educativa. Em Educação Popular, o seu exercício só ocorre se esses nomes, esses vocábulos, essas buscas estiverem presentes. Esta noção de universal contribui para a compreensão de que os nomes (constituintes) postos nos quadros, enfaticamente no quadro 5, acrescidos de emancipação e igualdade, expressam somente vozes. Por sua vez, depositam nas experiências localizadas desses educadores a dimensão de real, pois reais são os entes particulares. Os tantos outros constituintes presentes em variadas experiências vivem como singulares em Educação Popular Ainda, conduz à compreensão da impossibilidade de que um tal ente de qualidade dessa educação não pode estar separado da coisa da qual se diz que “tem”, tal qualidade. A Educação Popular, agora, não pode estar separada dos entes - cultura, crítica, práxis, trabalho, liberdade, diálogo, emancipação, igualdade e compromisso político. Estas qualidades, propriedades da Educação Popular, ou constituintes, são nomes de universais, portanto. Em sendo nomes, se expressam, em última instância, por coisa, um algo físico; esses nomes adquirem, culturalmente, significação, não podendo ter origem essa significação nas coisas. Essas coisas não comportam o seu próprio significado, originando-se, assim, por uma “convenção”. Esses nomes não se encontram fora da experiência que se realiza, mas estão nelas próprias, a depender do lócus de sua realização, assegurando-se como universais. Mesmo não sendo coisas reais, tornam-se cheias de significações, pois signos, estando nos lugares das coisas designadas, para cada grupo e para cada individualidade. São signos que asseguram significados nessas experiências, na ´experiência´ de Educação Popular, buscando um ideário de ciência e de linguagem científica. Educação popular Assim, é que se pode pensar a Educação Popular como não só um fenômeno humano de aprendizagem, mas também, de ensino, permeada pela dimensão central do trabalho, nesse relacionamento com o mundo que se preste para a vida das pessoas, promovendo mudanças para que isso ocorra. Um sistema de teorias intercomunicantes, assegurado por uma filosofia de mundo, tendo na teoria de produção do conhecimento um ponto de partida, que é a realidade, entrecruza-se com teorias tanto do trabalho como da cultura, quando apresenta a divisão do trabalho, quando se expõe como produtora da existência humana, em razão de que humano é o criador da cultura (Pinto, 1979). A práxis pedagógica cobra ação educativa crítica, sendo capaz de vislumbrar e buscar a aniquilação de todo o processo de alienação, quando procura superar as amarras da opressão, definindo-se como uma prática para a liberdade (Freire, 1996). Acompanha, portanto, uma pedagogia que lhe é própria e assumidamente política, já que todo ato educativo se exercita como um ato político, explicitando-se esse seu compromisso com os setores das classes trabalhadoras da sociedade. Isto tudo, todavia, só se efetua politicamente nos braços éticos de valores, como o diálogo, quando se cobra como um sistema aberto de ensino e aprendizagem, convidando-se sempre para reforço de novos valores éticos como a justiça, a liberdade, a emancipação humana, a emancipação das pessoas, e, necessariamente, a sua igualdade.
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Considerações Retomando as dimensões de universalidade da Educação Popular, cabe a compreensão que se distancia das posições do realismo platônico e do realismo moderado aristotélico, ao estabelecer um processo dinâmico e, portanto, dialético, em que elementos dessa perspectiva educacional podem apresentar momentos de relação entre universais e particulares, e seus momentos de diferenciação. Aproxima-se de uma ontologia, na visão semântica nominalista. Os constituintes dessa ontologia são as bases desse processo didático-pedagógico da Educação Popular, passando a contemplar elementos teóricos com postura de independência para com os indivíduos, estabelecendo-se como entidades de nomes, de significados, de signos. Dessa maneira, podem se apresentar como universais para todas as experiências da Educação Popular. Além disso, elementos outros há que se postam como de especificidade de cada experiência de Educação Popular: os particulares, em cada tempo e espaço desse exercício. Tanto esses particulares, bem como os universais, jamais se sugerindo fora de um contexto determinado de tempo e de espaço ou experiência. Mas, nessa busca e convite ao debate de compromissos ontológicos, pode-se concluir com Quine (1975) que, de seu ponto de vista lógico, orienta que a ontologia a ser adotada ainda permanece aberta, sugerindo a tolerância e o espírito experimental. Isto também tem validade para a Educação Popular.
CONSIDERAÇÕES. Ao apresentar à baila temáticas muito candentes para a educação popular, este livro os faz, de forma breve e compreensível, tirando-os de campos meramente semânticos e enigmáticos para a maioria da população e mesmo para aqueles que trabalham e realizam processos educativos, no campo desse jeito peculiar de fazer educação. O desejo foi traduzir discussões de temáticas com maior peso de complexidade e pendentes em educação popular, porém com um especial cuidado de fazê-las inteligível para aqueles que fazem a educação popular. São discussões, contudo, que não se furta ao diálogo filosófico exigente para estas temáticas. Mas, elas estão postas de forma compreensível para que seja possível a manutenção desse diálogo necessário. Discutir o popular em educação popular, as dimensões originárias e possíveis definições conceituais dessa educação, o diálogo, a experiência, além da possibilidade de haver dimensões que caracterizem essa educação de forma universal são desejos, apenas, para aproximação daqueles que estão envolvidos em um tipo de fazer educação, nos mais variados movimentos sociais ou experiências particulares que juntos lutam pela emancipação humana. Esta discussão só se prestará se estiver com tal objetivo.
Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 2000. 1014 p. CALADO, Alder Júlio Calado. Pelas veredas libertárias da utopia: ensaios de um aprendiz. João Pessoa: Editora Idéia, 2000. CARDOSO, Miriam Limoeiro. Para uma leitura do método de Karl Marx. Anotações sobre a “Introdução de 1857”, Cadernos do ICHF – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Universidade Federal Fluminense, nº 30, set/1990. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 22ª.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1996.
492 LIMA, Maria Nayde dos Santos; Rosas, Argentina (orgs). Paulo Freire – quando as idéias e os afetos se cruzam. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2001. MARCUSE, Herbert. A Ideologia da sociedade industrial. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. PARMÊNIDES. Fragmentos. Sobre a natureza. Trad. José Cavalcante de Souza. Coleção os Pensadores. Os Pré-Socráticos. 1ª. Ed. Vol.I, Abril Cultura, São Paulo, 1973. PINTO, Álvaro Vieira. Teoria da Cultura. In: Ciência e Existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. QUINE, W.V.De um ponto de vista lógico (sobre o que Há). Trad. Luis Henrique dos Santos. Coleção Os Pensadores. 1ª Ed. Vol. LII, Abril Cultural, São Paulo, 1975. SALES, Ivandro da Costa. Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar. In: Educação Popular: outros caminhos. José Francisco de Melo Neto e Afonso Scocuglia (orgs.). João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2001. SILVA, Nelsânia Batista da. Subjetividade em Educação Popular. In: Educação Popular: enunciados teóricos v. 2. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2008.
OBS: O LIVRO 4 - UNIVERSIDADE POPULAR E PESQUISA (ficou como anexo da mesma temática, devido o número de páginas. É um volume II.1)