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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
PRODUÇÃO ACADÊMICA volume 3
(Livros e Textos em Extensão Universitária) PROF. DR. JOSÉ FRANCISCO DE MELO NETO PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA
JOÃO PESSOA, 2014
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Ficha catalográfica elaborada na Biblioteca Central da UFPB
M528p
Melo Neto, José Francisco de. Produção acadêmica: (Livros e Textos em Extensão Popular) / José Francisco de Melo Neto.-João Pessoa, 2014. v.3 1. Extensão universitária - produção acadêmica. I. Universidade Federal da Paraíba. II. Centro de Educação.
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APRESENTAÇÃO Este trabalho é um rápido inventário da vida do Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto (zé de melo neto, zé neto), com ênfase em sua dimensão acadêmica, nascido em Colônia Leopoldina, Zona da Mata Norte, do Estado de Alagoas, no ano de 1951. É uma coletânea de sua produção intelectual, produto das atividades de professor na Universidade Estadual da Paraíba(UEPB) e na Universidade Federal da Paraíba(UFPB), nos cursos de Graduação e Pósgraduação, em ambas universidades, em especial durante os 15 anos que atuou no Programa de Pós-Graduação em Educação, da UFPB, traduzidos em artigos, ensaios, textos didáticos, livros coletivos e livros individuais, em vários campos do conhecimento - educação, educação popular, economia solidária, política, filosofia e poesia. Foi, ainda, professor de Química no Colégio Estadual da Prata, em Campina Grande e professor de Ciências da Rede Municipal de João Pessoa. Também em Campina Grande, foi professor de Química da Universidade Estadual da Paraíba. Atingiu o ápice da carreira acadêmica, com todos os títulos acadêmicos graduação em química(Univ. Est da Paraíba-UEPB) e em filosofia (Univ. Fed. da Paraíba-UFPB), especialização em química(UEPB/UFPE), mestrado em educação(Univ. de Brasília-UnB), doutorado em educação(Univ. Fed. do Rio de Janeiro-UFRJ) e estágio pós-doutoral em educação(Univ. de São Paulo-USP). Chegou a Professor Titular, em ambas instituições de ensino superior, sempre por concursos. Coordenou o Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal da Paraíba, e o Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR), bem como, da Incubadora de Empreendimentos Solidários (INCUBES), também na UFPB, tendo sido, ainda, Presidente do Conselho Estadual de Educação do Estado da Paraíba. Teve dois casamentos com Maria do Socorro de Melo e Ana Lúcia Ferreira Queiroga e 5(cinco) filhos - Anaína Clara de Melo, Guerreiro Arco de Melo, Suana Guarani de Melo, Lívia Silas de Melo e Lucas Queiroga Melo. Esta coletânea está dividida em 6 volumes: o volume 1 apresenta Livros e Textos, em Educação; o volume 2(1 e 2), Livros e Textos em Educação Popular; o volume 3, Livros e Textos em Extensão Universitária; o volume 4, Livros e Textos em Economia Solidária; o volume 5, Livros e Textos em Política; o volume 6, Livros e Textos em Filosofia, Textos Didáticos, Textos Avulsos e Poesias, acompanhando o Curriculum Lattes. 3
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O desejo maior é que este material permaneça como material de estudos e pesquisas para os estudantes, pesquisadores e pesquisadoras que, eventualmente, possam se interessar por essas temáticas. Assim é que, pouco a pouco, esta prática documental seja início de uma rotina dos profissionais que atuam ou que atuarão, doravante, neste Programa de Pós-Graduação em Educação e na Universidade Federal da Paraíba, isto é, deixarem assegurados no ambiente do mesmo a sua produção intelectual. Que todo o material produzido por seus docentes, pesquisadoras e pesquisadores possam estar à disposição das futuras gerações, de forma fácil, in loco e eletronicamente, assegurando o estudo daquilo que já vem sendo pesquisado, avançando para além dos patamares teóricos em que os temas foram encerrados. E, que seja possível o estudo daquilo que se estar pesquisando e produzindo neste ambiente universitário. João Pessoa, janeiro de 2015. Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto PROFESSOR TITULAR DA UFPB
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SUMÁRIO GERAL (todos os volumes) VOLUME I. LIVROS E TEXTOS EM EDUCAÇÃO. VOLUME II. LIVROS E TEXTOS EM EDUCAÇÃO POPULAR (1 e 2) VOLUME III. LIVROS E TEXTOS EM EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA. VOLUME IV. LIVROS E TEXTOS EM ECONOMIA SOLIDÁRIA. VOLUME V. LIVROS E TEXTOS EM POLÍTICA. VOLUME VI. LIVROS E TEXTOS EM FILOSOFIA, TEXTOS DIDÁTICOS, TEXTOS AVULSOS, POESIAS E CURRICULUM LATTES.
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SUMÁRIO DO VOLUME 3 LIVROS E TEXTOS EM EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA 3.1 - TEXTOS TEXTO 1. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: bases ontológicas.
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TEXTO 2. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO TRABALHO SOCIAL ÚTIL. 18 TEXTO 3. AUTONOMIA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA.
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TEXTO 4. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO. 38 TEXTO 5. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA– em busca de outra hegemonia.
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TEXTO 6. EXTENSÃO RURAL E POPULAR (ética como elemento de cultura política na extensão). 51 TEXTO 7. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E A CONSTRUÇÃO DO CURRÍCULO.
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3.2 - LIVROS COLETÂNEA LIVRO 1 - EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: diálogos populares.
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INDIVIDUAL LIVRO 1. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA É TRABALHO.
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LIVRO 2. EXTENSÃO POPULAR.
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LIVRO 3. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA - uma análise crítica.
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LIVRO 4. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, AUTOGESTÃO E EDUCAÇÃO POPULAR.
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José Francisco de Melo Neto, nascido em Colônia Leopoldina, Estado de Alagoas, em 16 de janeiro de 1951. Seus pais foram Francisco José de Melo e Doralice Bezerra de Melo.
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3. LIVROS E TEXTOS EM EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA 3.1 - TEXTOS TEXTO 1. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: bases ontológicas. A discussão sobre universidade situa-se num quadro de debate político que se constitui a partir de um espaço, no campo teórico, onde vários projetos mantém permanente disputa. Muitos desses projetos apresentados à sociedade, mais das vezes, tornam-se sem efeito naquele momento específico, diante da resistência de diferenciados setores da sociedade. Outros, às vezes, voltam à cena política. Nessa dinâmica de luta entre projetos políticos para a universidade no país, pode-se lembrar o projeto de universidade nos célebres acordos MEC-USAID. Muitas das questões levantadas e propostas insistem em permanecer vivas e outras, inclusive, já estão sendo implementadas com a política atual do Estado. Nesse embate, entre outras questões voltadas ao ensino, à administração universitária e à pesquisa, está a extensão universitária . Este texto, contudo, não abordará o debate em torno da extensão no âmbito dos diferentes projetos (MEC e ANDES, FASUBRA) em luta no seio da sociedade. Aqui, será tratada a questão da extensão universitária do ponto de vista de sua ontologia, ou, as bases de suas diferenciadas percepções.Enfim, uma discussão que busca resposta a questão: o que é extensão universitária? Os primórdios da extensão universitária aparecem com as universidades populares da Europa, no século passado, que tinham como objetivo disseminar os conhecimentos técnicos, segundo vários autores, como ROCHA (1986), FAGUNDES (1986) e BOTOMÉ (1992). É importante observar os comentários de GRAMSCI (1981:17) sobre essas universidades: “ ... estes movimentos eram dignos de interesse e merecem ser estudados: eles tiveram êxito no sentido em que revelaram da parte dos simplórios um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma forma superior de cultura e de uma concepção de mundo. Faltava-lhes, porém, qualquer organicidade, seja de pensamento filosófico, seja de solidez organizativo e de centralização cultural; tinha-se a impressão de que eles se assemelhavam aos primeiros contatos entre mercadores ingleses e negros africanos: trocavam-se berloques por pepitas de ouro”. A crítica se refere aos intelectuais que, mesmo desejosos de “servir ao povo”, à classe dominada, teriam um outro papel, que era o de compreender as formas de vida e as propostas da classe trabalhadora. Esquecidos desse papel, ou mesmo por incompetência, esses intelectuais expressavam, segundo a crítica de Gramsci, uma visão dominadora de seus saberes ao pretender “levá-los” ao povo. Além dessas experiências também desenvolveu-se na Inglaterra uma perspectiva de que a universidade precisava contribuir com um maior conhecimento aos setores populares. Apontavam aspectos que podem ser úteis como elementos básicos para a 8
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formulação daquilo que vai se chamar, posteriormente, extensão. Ora, como seria possível fazer chegar até à população o conhecimento sistemático da universidade? Isso seria possível através da extensão da universidade até aqueles setores sociais. Mas, foi a partir das experiências americanas, sobretudo naquelas localizadas na zona rural, que surgiram duas novas visões diferenciadas daquelas existentes na Europa: uma visão denominada cooperativa ou rural e outra universitária em geral. Essas visões, contudo, estavam “marcadas” por um certo desejo de “ilustrar” as comunidades. A extensão nas universidades americanas caracterizou-se, desde seus primórdios, pela idéia de prestação de serviços. Os movimentos europeus de universidades populares, ou a extensão veiculada por eles, diferenciam-se substancialmente das versões americanas. Estas, em geral, resultaram da iniciativa oficial, enquanto aquelas surgiram de esforços coletivos de grupos autônomos em relação ao Estado. A esse respeito, TAVARES (1996:27), afirma: “Visando, por um lado, preparar técnicos e, por outro lado, dispensar o mínimo de atenção às pressões das camadas populares, ainda que cada vez mais expressivas e mais reivindicativas, a extensão universitária se consolida através de cursos voltados para os ausentes da instituição que, sem formação acadêmica regular, desejam obter maior grau de instrução”. Já na América Latina, a extensão universitária esteve voltada, inicialmente, para os movimentos sociais. Merece destaque o Movimento de Córdoba, de l918. Nesse movimento, os estudantes argentinos enfatizam, pela primeira vez, a relação entre universidade e sociedade. A materialização dessa relação ocorreria através das propostas de extensão universitária que possibilitassem a divulgação da cultura a ser conhecida pelas “classes populares”. Esta foi uma idéia preliminar, que permeou também a organização estudantil no Brasil, a partir de 1938, quando da criação da União Nacional dos Estudantes UNE. Essa idéia foi determinante para a concepção de extensão veiculada pelo movimento estudantil brasileiro. No Brasil, anteriormente ao movimento estudantil organizado pela UNE, houve experiências de vinculação da extensão com as universidades populares, na tentativa de tornar o conhecimento científico e literário acessível a todos. Com essa perspectiva, no início do século, surge a Universidade Popular da Paraíba e a Universidade Popular de São Paulo, sendo esta a mais importante. Mas, sobretudo com a Universidade Popular de São Paulo, a experiência de extensão, a partir da organização universitária, inicia-se pela promoção de “cursos de extensão” veiculadores de conteúdos “positivistas ou de disseminação da cultura da elite” (ROCHA, 1989: 7). Na concepção veiculada pelo Movimento de Córdoba, a extensão universitária surge como “fortalecimiento de la función social de la Universidad. Proyección al pueblo de la cultura universitária y preocupación por los problemas nacionales” (BLONDY, 1978: 8). Nesse caso, a extensão universitária se desenvolve como uma tentativa de participação de segmentos universitários nas lutas sociais, objetivando transformações da sociedade, sendo esta uma preocupação marcante no movimento de reformas de Córdoba, uma combinação, segundo ROCHA (Ibid.: 11), da “ideologia nacional-populista então vigente, com uma luta política de combate ao imperialismo, que se traduzia na necessidade de uma aliança panamericana”. Desses ideais, destacam-se dois tópicos constantes na Carta de Córdoba: a) “a extensão universitária entendida como fortalecimento da função social da universidade. Projeção ao povo da cultura universitária e preocupação pelos problemas nacionais; b) a unidade latino-americana e a luta contra as ditaduras e o imperialismo”(Ibid.: 13). Inspirações essas já contidas no ideário de extensão voltado para a difusão cultural, sobretudo, para a 9
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educação popular - desde o Congresso Universitário, em l908, no México - refletindo-se no movimento de reformas de Córdoba. E são esses ideais que inspiram a plataforma dos estudantes brasileiros. A UNE, que é referência da organização do movimento estudantil no país, assume essas idéias, de acordo com ROCHA (Ibid.: 13) ao “elaborar o Plano de Sugestões para uma Reforma Educacional Brasileira”. O ideário de Córdoba está expresso nas funções sociais reservadas para a universidade, assim delineadas: “ 1) (...) a tranqüilidade e desenvolvimento do saber e dos métodos de ensino e pesquisa através de exercício da liberdade do pensamento, da cátedra, da imprensa, de crítica e de tribuna de acordo com as necessidades e fins sociais; 2) a difusão da cultura pela integração da universidade na vida social popular” (Apud, POERNER, 1979: 328).
A extensão aqui é entendida em termos de difusão da cultura e de integração da universidade com o “povo”. As vias de implementação serão, naturalmente, os cursos de extensão e divulgação de conhecimentos científicos e artísticos. Trata-se de uma concepção que compreende a função da universidade como “doadora” de conhecimento, pretendendo impor uma “sapientia” universitária a ser absorvida pelo povo. A concepção de extensão do movimento estudantil foi sendo divulgada pelas mais diferentes formas em todo o país, através do Teatro da UNE, dos Centros de Debates, Clubes de Estudo, Fóruns, Campanhas para a Criação de Bibliotecas nos Bairros, Agremiações Desportivas das Populações Pobres e, até, Educação Política, com debates públicos, quando a temática era de interesse dos trabalhadores. Em seu Congresso da Bahia (UNE, 1961: 26), ao discutir a Reforma Universitária, a entidade apresenta os traços marcantes da extensão universitária . Esse documento trata de dois aspectos básicos: a análise da realidade brasileira e a análise da universidade no Brasil. No texto, merece destaque o capítulo que trata da Reforma Universitária que, definindo suas diretrizes, passa a assumir um “compromisso com as classes trabalhadoras e com o povo”. Assim, é que se defende a abertura da universidade ao povo, com prestação de serviços e promoção de cursos a serem desenvolvidos pelos estudantes em faculdades. Esses cursos possibilitariam o conhecimento da realidade por eles e, por isso, a universidade - a extensão - os levaria à realidade. A universidade teria um papel de “trincheira de defesa das reivindicações populares, através da atuação política da classe universitária na defesa de reivindicações operárias, participando de gestão junto aos poderes públicos e possibilitando cobertura aos movimentos de massa” (Ibid.: 56). Caberia à universidade, através da extensão, a conscientização das massas populares, despertando-as para seus direitos. Das diretrizes da Declaração da Bahia depreendem-se as características de uma universidade democrática, marcada pela extensão universitária . O Movimento Estudantil, através das mais diferentes formas, encaminhava suas propostas, principalmente pelos Centros Populares de Cultura - os CPCs da UNE - desenvolvendo ações no sentido de “abrir a universidade ao povo” e, por outro lado, de “levar os estudantes à realidade”. Após 64, a ditadura militar assumiu algumas das reivindicações do Movimento Estudantil, dando-lhes a sua peculiar conotação ideológica1. Inclui como disciplina nos currículos da universidade os estudos de problemas brasileiros. A análise política, contudo, era feita segundo o “catecismo” da ditadura militar dominante e não traduzia, na 1
Ideologia. Ver: Limoeiro Cardoso, Miriam. Ideologia do Desenvolvimento – Brasil: JQ – JK. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2a. ed., 1978. Destacar a partir da temática: A ideologia como problema teórico, p. 39.
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prática, o significado dado pelos estudantes, a Declaração da Bahia. No tocante à extensão, a ditadura militar criou vários programas de integração estudante-comunidade como o do Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária - CRUTAC - , considerado por MATTOS (1981: 108) “um recurso realmente capaz de viabilizar a política de extensão universitária ... “ , sendo relevantes o destaque que teve o programa na estrutura da universidade e as condições, inclusive financeiras, de sua realização. Foram criados o Projeto Rondom e a Operação Mauá, esta vinculada mais diretamente à área tecnológica. Criaram-se tais programas como expressão política de contenção das reivindicações estudantis e de combate às mudanças de base, defendidas no governo de João Goulart. Com isso podiam apresentar-se às comunidades rurais como os benfeitores da sociedade organizada que preconizavam. Os estudantes podiam desenvolver atividades profissionais, nesses projetos, ainda que de caráter assistencial, tudo sob rigoroso controle político e ideológico. Observe-se o papel político atribuído à extensão universitária demonstrando como pode também servir ao controle social e político. A universidade pode, dessa maneira, exercer efetivamente uma função social sem estar sob o ponto de vista das classes subalternas. Convém ainda lembrar que, naquele momento, também efetivavam-se duras medidas de repressão sobre a sociedade brasileira e, de forma mais direta, sobre o Movimento Estudantil, vindo desfazer, em conseqüência, o sonho da universidade democrática. Ainda sobre a discussão dessas bases que comporão uma ontologia da extensão ou a idéia de extensão universitária, segundo FRAGOSO FILHO (1984), é algo que vem de fora da universidade. A finalidade principal era, na verdade, o aprimoramento ou desenvolvimento de novas técnicas para a produção, sobretudo nos Estados Unidos. Para ele, a extensão “é um recurso inventado para queimar etapas do desenvolvimento, fazendo parte de um projeto da UNESCO, para os países de Terceiro Mundo. Extensão pode então ser entendida como ação prolongada da universidade junto à comunidade circundante; segundo, como expansão para outra comunidade carente e distante de sua sede, do resultado de sua atividade universitária”(Ibid.: 29). Para ele, esta segunda versão também é conhecida por “campi” avançados. O MEC (BRASIL/MEC, 1985: 31) expressa a importância, bem como a conceituação de extensão universitária, através da Comissão Nacional para a Reformulação da Educação Superior. O relatório final dessa comissão menciona que a extensão universitária vem assumindo formas diversificadas e, conseqüentemente, exige uma melhor definição de sua natureza. A extensão universitária tem adotado as mais variadas formas de atividades como: estágios curriculares, trabalhos de assessorias e consultorias, além de atendimento a setores sociais carentes. Isto posto, a comissão recomendou, na época, estudos sistemáticos para uma maior especificação da “natureza e seu significado para o conhecimento da realidade (Ibid.: 31). Contudo, propõe que as atividades de extensão universitária busquem assegurar a “difusão dos conhecimentos obtidos; a continuidade dos serviços oferecidos à população; a contínua ação recíproca entre a extensão, por um lado e, por outro, o ensino e a pesquisa”(Ibid.: 32). Destaca-se sobre extensão, em relação ao MEC, o relatório do GERES (BRASIL/MEC, 1986: 3), reforçando a Lei no. 5.540/68, em que se estabelece o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, prefigurando esta como elemento associado em igualdade de condições. Mas a formulação sobre a extensão é ausente nesse relatório que, por seu turno, reforça sua compreensão idealizada de universidade, com citação de Karl Jaspers, onde a idéia de universidade vincula-se a de sua independência para “a busca da verdade sem restrições”. Para profissionais da área tecnológica, há uma diferenciação também quanto ao conceito de extensão universitária . Para ALENCAR (1986: 99), a extensão universitária apresenta visibilidade quando se formula através de convênios diretos entre universidade e empresa. Assim, vê a extensão contando com programas dentro de possíveis convênios, 11
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apontando para um espectro amplo de atividades que, no campo da tecnologia elétrica, envolve programa de visitas de alunos e professores a empresas; visita de engenheiros e técnicos das empresas às universidades; programas de estágios e até programas de atualização técnica de professores junto às empresas. Trata-se de uma visão em que, utilizando-se um laboratório, por exemplo, se pode fazer extensão através da prestação de serviço tecnológico. Uma solicitação que é formulada a um laboratório por uma empresa e sua resposta a essa demanda vão se constituir numa via de duplo sentido, caracterizando uma atividade extensionista. Para o autor esta é uma idéia em que se busca a superação da instituição universitária, entendida como tradicional, caminhando-se, assim, na direção de um perfil moderno de universidade. Vislumbra, dessa forma a modernização da universidade através da extensão. A extensão, nessa perspectiva, aparece como “função fim, interligada ao ensino e à pesquisa e voltada para a formação de carreiras tecnológicas, em estreito contato com a sociedade, para serví-la em suas necessidades de progresso e desenvolvimento” (ALMEIDA, 1992: 61). Esses autores atribuem à extensão um papel modernizador único e bastante sonhador, como se o atendimento dessas necessidades só dependesse da extensão. Antes de tudo, deve-se questionar essa modernização perguntando pelo menos a quem ela serviria, mesmo que se realizasse através da extensão. Tem-se também que a proposta de extensão da Universidade de Brasília (UnB: 1989), veiculada pelo Decanato de Extensão, caracteriza a sociedade em um nível incipiente de organização, tendo como conseqüência a falta de consciência pelos seus direitos de cidadania. As solicitações imediatas são as primeiras a serem colocadas, vindo fomentar o assistencialismo e não a autonomia dos setores populares. Nessa situação, a extensão universitária pode direcionar-se para “a autonomia política dos segmentos populares, resgatar sua cidadania e lutar contra o tradicional e nocivo assistencialismo (Ibid.: 58). Durante o XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste (BRASIL/MEC, 1994: 1), a extensão é vista como “um nascedouro e desaguadouro da atividade acadêmica, da qual a pesquisa seria o desenvolvimento das respostas, e o ensino o envolvimento dos estudantes em todas as etapas desse processo ... “ . Isto vai implicar a necessária parceria tão propalada nos dias de hoje. Parcerias que se expressarão tanto na dimensão interna como, também, na dimensão externa da comunidade universitária. Tal perspectiva vai abrir a concepção de extensão como “a porta da qual os clientes e usuários têm de bater, quando necessitados” (SOUSA, 1994: 16). Para o autor, a extensão tem o papel de construir as “passarelas” para o relacionamento da universidade com a sociedade. A universidade exerce, segundo ele, uma liderança na sociedade, pois ela “faz com” e “faz fazer”. “Amealhar parcerias. E, num mutirão de solidariedade, consegue navegar” (Ibid.: 16). Como resultado das deliberações do VIII Encontro Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (BRASIL/MEC, 1994: 3), ter-se-á uma perspectiva de extensão voltada para a cidadania. É a partir do conceito de cidadania que a extensão se externa como um conjunto de direitos civis, políticos e sociais gerando, como conseqüência, deveres do indivíduo para com a sociedade e para com o Estado. Nesse encontro, a universidade é vista como sujeito social, devendo, portanto, inserir-se na sociedade “cumprindo seus objetivos de produtora e difusora de ciência, arte, tecnologia e cultura compreendidas como um campo estratégico vital para a construção da cidadania”. A partir de uma auto-reflexão, a universidade deve possibilitar esse intercâmbio entre si mesma e a sociedade, contribuindo para a construção de uma cultura de cidadania. É diretriz daquele encontro que “as atividades de extensão devem voltar-se prioritariamente para os setores da população que vêm sendo sistematicamente excluídos dos direitos e da compreensão de cidadania”(Ibid.: 3). 12
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Nesse debate, ROCHA (1980) mostra, sinteticamente, as diferentes formulações “equivocadas” sobre extensão, quais sejam: como prestação de serviços, como estágio expressando, as mais das vezes, a agregação da universidade aos programas de governo, opção de captação de recursos, expressão da autonomia do ensino e da pesquisa, como possibilidade de se estudar a realidade e ainda como qualquer atividade que não possa situarse como ensino ou como pesquisa. Analisando aspectos ideológicos do “fazer extensão” , FREIRE (1976) sugere a substituição do conceito de extensão por comunicação, entendendo que este último traduz muito mais essa dimensão da universidade, superando o conteúdo de uma educação “bancária e domesticadora” , a qual a extensão possa conduzir. Para REIS (1994), a extensão universitária, no Brasil, vem apresentando duas linhas de ação, refletindo o próprio conceito. Em uma delas, o autor apresenta a extensão centrada no desenvolvimento de serviços, difusão de cultura e promotores de eventos, daí a denominação de eventista-inorgânica. Na outra linha, denominada de processual-orgânica, está voltada para ações, com caráter de permanência presente ao processo formativo (ensino) do aluno, bem como à produção do conhecimento - pesquisa - da universidade. Nessa linha de ação, estão sendo realizadas, em geral, as atividades de extensão por boa parte das universidades brasileiras, com base no conceito de extensão universitária do I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas, em Brasília. Nele a extensão foi considerada: “Processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e a sociedade. A extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica que encontrará, a sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será associado aquele conhecimento. Este fluxo que estabelece a troca de saberes sistematizado, acadêmico e popular, terá como conseqüência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira regional; a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizada deste processo dialético de teoria/prática, extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social” (BRASIL/MEC, 1987: 1). Extensão vem sendo entendida, do ponto de vista de sua ontologia, de seus fundamentos, como práticas, estando aí, a saída para o interagir da universidade com a sociedade nas diversas regiões do país ou de cada Estado, onde se situa a universidade. A extensão se torna “o elemento catalisador e propulsor dessa empatia, e mais, especificamente, a leitura cultural que essa instituição, pode e deve fazer, da sua identidade e do seu povo” (UFPB/PRAC, 1994: 2). Uma declaração, na verdade, de uma instituição que busca tornar-se “vanguarda” dos movimentos da sociedade, entendendo, também, “ser a extensão o caminho mais curto entre a academia e a sociedade que nos sustenta”(Ibid.: 3). Mas a extensão pode ser vista, ainda, como destinada a toda a comunidade acadêmica - alunos, servidores não docentes e servidores docentes - como “um processo educativo, cultural, científico e tecnológico que articula o ensino e pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade”(UFPB/CONSEPE, 1993: 1). Esse processo pode ser exercido com um duplo caráter: o eventual e o permanente. O caráter eventual da extensão é compreendido como a realização de atividades esporádicas que estão voltadas ao aperfeiçoamento e à atualização de conhecimento. Visa também a implementação de práticas objetivando a produção técnicocientífica, cultural e artística. Essas práticas podem estar voltadas a “serviços educativos, 13
14 assistenciais e comunitários”. O caráter permanente, por sua vez, é aquele conjunto de atividades já elencado, mas que adquiriram formas sistematizadas e de maior duração em relação ao tempo de execução. A extensão universitária passou a se realizar através de diferenciadas formas. Entre elas, pode-se citar: “Cursos de treinamento profissional; estágios ou atividades que se destinem ao treinamento pré-profissional de pessoal discente; prestação de consultoria ou assistência a instituições públicas ou privadas; atendimento direto à comunidade pelos órgãos de administração, ou de ensino e pesquisa; participação em iniciativas de natureza cultural; estudo e pesquisa em termo de aspectos da realidade local ou regional; promoção de atividades artísticas e culturais; publicação de trabalhos de interesse cultural; divulgação de conhecimento e técnicas de trabalho; estímulo à criação literária, artística, científica e tecnológica; articulação com o meio empresarial; interiorização da universidade ( Ibid.: 2)
O processo de organização e de encaminhamento das atividades de extensão apresentam diferenciadas possibilidades. Organizam-se, às vezes, em Comitê de Extensão, com objetivo de manter discussão permanente sobre as práticas na extensão universitária, sobretudo, buscando, através desse grupo, formular políticas para serem desenvolvidas no âmbito das universidades ou em seus distintos “campi” . É freqüente, com a instalação desses comitês, os discursos apresentarem questões conceituais da extensão como: “... A ligação direta com a comunidade, acreditando no crescimento da UFPB, na construção de uma universidade diferente, com pesquisa de ponta, ensino de qualidade, e a extensão na escuta do que está acontecendo na região, na integração da sociedade e que, independentemente de posições políticas, tem-se que trabalhar para a construção dessa universidade que desejamos” (UFPB/PRAC; 1993: 2). A instalação de comitês pode promover grupo de discussão sobre questões de extensão, apresentando formas de encaminhamentos com projetos que estão em desenvolvimento e sendo seguidos, em geral, por coordenações de programas e cursos de extensão, de implementação de projetos e eventos no campo cultural, de assistência e promoção de estudantes ou de elaboração de projetos de organização das comunidades e movimentos sociais, além de coordenação para atendimento de demandas de prefeituras. Pesquisas mais recentes2, contudo, no âmbito da extensão universitária, vêm apresentando outras possibilidades conceituais nessa busca ontológica da extensão. Nesse sentido se destaca a possibilidade de se entender extensão universitária como Trabalho Social. 3 Elementos ontológicos da extensão como podem fixar-se como uma via de mão única, considerando que nessa compreensão está implícita a concepção autoritária do fazer acadêmico, onde a universidade “sabe” e vai levar algum conhecimento àqueles que “nada sabem” - a população ou a classe trabalhadora. A concepção de extensão como via de mão dupla separa o processo educativo da própria educação, o processo cultural da produção da cultura, bem como o processo científico da própria ciência. Em sendo uma articulação, podese questionar a constituição dessa articulação. Será que existe necessidade de algum ente ou de algo para intermediar ou articular o ensino e a pesquisa? Será a extensão algo ideal capaz de viabilizar uma relação transformadora? É a extensão algo concreto e plausível de 2
Ver: MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária: uma abordagem crítica. Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1996. Tese doutoral. 3 Ver: MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária – uma avaliação de trabalho social. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1997.
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determinação ou algo essencialmente idealizado? Enfim, tem sentido o modelo de via de mão dupla? Em uma via de mão dupla, há um momento de tensão nesse passar um ente em uma mão, por outro ente, na outra mão. Que tal imaginar, que esse momento de tensão seja o momento da extensão universitária? Mas este não pode ser tão rápido e não apenas um momento. Sua permanência se apresenta como necessária. Parece que é preciso avançar a partir desses modelos. Talvez, uma mão que segura uma outra mão. Mesmo essa mão que segura uma outra não gera uma permanência, possibilitando, dessa forma, a monotonia e a estabilidade? Extensão será expressão de monotonia? Parece que não pode ser. A compreensão de extensão, como via de mão dupla, destaca um retorno à universidade como se aí estivesse o espaço para a reflexão teórica. Será que apenas na universidade é que está sendo gerada a reflexão teórica? Os participantes das ações de extensão promovem sua reflexão crítica e têm necessidade dela. Não estará sendo gerada uma dicotomia, inclusive espacial, da condição de reflexão teórica, ao transladá-la para o espaço da universidade? Pode-se perguntar: será a universidade o lugar, por excelência, para a reflexão teórica? Não será no próprio “locus” de realização das atividades de extensão? Ainda, na compreensão da extensão, como via de mão dupla, está colocado que a produção do conhecimento é resultante do confronto com a realidade, seja brasileira, regional, ... enfim, confronto com a realidade. Será assim, somente, a geração do conhecimento? Ou até questionar: será apenas dessa forma que se interessa o conhecimento produzido numa ação de extensão? Mesmo ao apresentar a extensão como um trabalho interdisciplinar que favorece a visão do social, contida também no conceito de extensão do Forum de Pró-Reitores, pode-se perguntar se nessa idéia de “interdisciplinaridade” ou “transdisciplinaridade” não está mantida a divisão, na própria expressão “disciplina”, quando do intuito de integrar? A busca por uma ontologia da extensão carece da presença da crítica como ferramenta nas atividades que a constituí, ou como elemento constituinte de seu agir. Traz, dessa forma, a dimensão de superação do “senso comum”, ao expor e explicar, ou mesmo tomar contatos com os elementos da realidade. Elementos esses, presos, naturalmente, de formulações abstratas, sim, mas colocando a realidade, o mundo concreto, como anterioridade nas suas bases analíticas; a compreensão de que nesse movimento de análise da realidade um segundo movimento tem continuidade no campo das abstrações em busca de elementos mais abstratos, permeados, entretanto, pelo concreto inicial e base de análise; e, finalmente, como os recursos expostos dessas abstrações ser possível novo concreto, permeado das abstrações anteriores, ou um novo concreto, um concreto pensado. Nesse percurso, a crítica tem papel determinante, pois além de superação do “senso comum”, também é propositiva. Busca a superação das dimensões do estabelecido e assume seu formulário transformador. Portanto, a extensão vai além de um trabalho simples, como o proposto no conceito do I Forum de PróReitores, em Brasília. Ao compreender a universidade como um aparelho de hegemonia, onde se debatem forças permeadas de contradições, as mais variadas, a extensão universitária pode ser entendida como trabalho social. Isso abre a possibilidade, talvez, de se avançar na formulação conceitual de extensão. Em sendo extensão um trabalho social, pressupõe-se que a ação do mesmo é uma ação, deliberadamente, criadora de um produto. Se constitui a partir da realidade humana e abre a possibilidade de se criar um mundo, também, mais humano. É pelo trabalho social que se vai transformando a natureza e criando cultura. A extensão, tendo como dimensão principal o trabalho social, será produtora de cultura. O trabalho social não se exerce apenas a partir dos participantes da comunidade universitária, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade, que é a participação dos membros da comunidade e de movimentos sociais, dirigentes sindicais, associações, numa relação “biunívoca”, na qual participantes da universidade e participantes desses movimentos confluem. 15
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Extensão, como um trabalho social, é exercido, agora, pela universidade e pela comunidade sobre a realidade objetiva. Um trabalho coparticipado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho com o qual se buscam objetos de pesquisa para a realização da construção do conhecimento novo ou novas reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados são também os constituintes da outra dimensão da universidade, o ensino. Portanto, a extensão é um trabalho que se realiza na realidade objetiva e é exercido por membros da comunidade, universidade servidores e alunos. Um trabalho de busca do objeto para a pesquisa e para o ensino, se constituindo como possibilidade concreta de superação da pesquisa e do ensino realizados, mais das vezes, fora da realidade concreta. Vislumbrando a extensão como trabalho social, essa atividade extensionista gerará um produto desse trabalho. Um produto caracterizado no “bojo” das relações de trabalho que, também, tem suas contradições, mas que, sobretudo, se constituirá como uma mercadoria. Portanto, terá um produto que será de conhecimento teórico ou tecnológico que deve ser, também, gerenciado pelos seus produtores principais - a universidade e a comunidade. A extensão em sendo “... trabalho social sobre a realidade objetiva, gerado de um produto em parceria com a comunidade, a esta comunidade deverá retornar o resultado dessa atividade de extensão” (MELO NETO, 1994: 15). Essa é outra dimensão fundamental caracterizada como a devolução de suas análises da realidade objetiva à própria comunidade. A devolução dos resultados do trabalho social à comunidade caracterizará a própria comunidade como possuidora de novos saberes ou saberes rediscutidos e que serão utilizados pelas lideranças comunitárias em seus movimentos emancipatórios e reivindicatórios. Isso faz crer a extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica fundamental, que é a busca de superação da dicotomia teoria e prática. Estas, também, se constituem como bases ontológicas da extensão. Há, ao que parece, uma possibilidade de construção de hegemonia e desvelamento das ideologias dominantes e uma nova estratégia da função social da universidade ou mesmo uma condição de serviços da extensão a favor da cultura das classes trabalhadoras. Esse pode ser o papel do aparelho de hegemonia - a universidade - que, através da extensão, ontologicamente balisada como trabalho social, possibilitando o direcionamento da pesquisa e o do ensino para um outro projeto social.
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TEXTO 2 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO TRABALHO SOCIAL ÚTIL
Resumo: Este texto é resultado da pesquisa sobre bases ontológicas da extensão, contendo dois outros projetos de pesquisa: o primeiro está voltado à análise de visão de mundo e da sociedade, além da concepção da extensão presentes nos seguintes projetos de extensão – Projeto Escola Zé Peão, o Projeto Qualidade de Vida, Projeto Praia de Campina e Projeto CERESAT (Centro de Referência da Saúde do Trabalhador), vinculados à área da alfabetização de adultos, à tecnologia, aos movimentos sociais e à saúde (todos com mais de cinco anos de andamento e vinculados à UFPB); o segundo expressa a análise dos conceitos de extensão universitária, presentes em atividades de extensão e nos textos institucionais nas décadas de 80 e 90, no âmbito da Universidade Federal da Paraíba. Os resultados mostram as diferenciadas concepções de extensão nessas atividades extensionistas e, sobretudo, apontam para uma perspectiva conceitual bem mais ampla - a extensão como trabalho social útil. A participação em comissão de seleção de projetos de extensão e de escolha de alunos para atuarem nesses projetos tem contribuído para a apreensão de vários conceitos de extensão. Esses conceitos, em sua maioria, fazem parte das acepções dominantes sobre extensão universitária, em geral, aprisionadas pelas práticas assistenciais. Neste trabalho, será apresentado um variado percurso de definições correntes entre aqueles que realizam práticas extensionistas – estudantes, membros de comunidades, professores - como aquelas sistematizadas em textos oficiais e norteadores para a elaboração de projetos em extensão universitária, além da tentativa de apresentar através da pesquisa nesse campo, uma outra possibilidade de se compreender e conceituar a extensão universitária. Uma dessas concepções afirma ser a extensão algo enriquecedor para os objetivos da universidade. Observa-se nesta compreensão que: primeiro, não são colocados os objetivos da universidade e, segundo, não se esclarecem o tipo e nem a forma como ocorre esse enriquecimento, se é monetário, teórico, prático ou outra alternativa. É vista como algo promotora do conhecimento. Uma perspectiva incapaz de responder às questões: que tipo de conhecimento está sendo promovido? Como está sendo produzido? Quem está sendo beneficiado com essa promoção? A extensão é mostrada como expressão do retorno à sociedade daquilo que esta investe na universidade. Embute-se uma compreensão de troca entre a universidade e a sociedade, em que aquela precisa devolver a esta tudo que está sendo investido. Essa visão vislumbra a universidade como devedora da sociedade, fragilizando-a nessa relação ou expressando, talvez, um desejo de instalação, na universidade, da política do toma-lá-dá-cá. Há uma definição que mostra a extensão como um meio que liga o ensino e a pesquisa. Imagina-se que um ente concreto liga os dois outros constituintes: ensino e pesquisa. Contudo, o ensino e a pesquisa também podem constituir esse ente. Mas, será necessário que se saiba o significado do meio presente nessa conceituação. Será o meio um instrumento pelo qual se pode chegar a outras conjecturas sobre extensão? Será um instrumento através do qual se domina a própria extensão, o ensino ou a pesquisa? Será o meio o intermediário para se chegar ao ensino e à pesquisa? Precisa-se desse meio? 19
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Extensão também se apresenta como uma forma de corrigir a ausência da universidade na problemática da sociedade. Terá essa forma um conteúdo? Se houver, a questão que se estabelece é a apresentação desse conteúdo. Afinal, qual é o conteúdo dessa forma? Entretanto, a formulação vai mais além: ela considera a universidade como ausente dos problemas da sociedade. É verdade que ela está ausente de vários problemas, mas é também verdade que se faz presente em outros tantos. No campo das ciências sociais cabe perguntar: por que nos cursos de graduação, em geral, não se estuda “Brasil” ou “América Latina”? Em muitos cursos de medicina não se estudam as doenças tropicais. Essas mesmas indagações podem ser feitas em relação à pesquisa. Contudo, a universidade está presente naquelas temáticas em que os setores dominantes definiram para que sejam submetidas aos projetos de extensão, às atividades de ensino e à pesquisa. Os órgãos financiadores estão, permanentemente, definindo as temáticas para o ensino, pesquisa e extensão. Durante a realização do XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste, a extensão foi considerada “um nascedouro e desaguadouro da atividade acadêmica, da qual a pesquisa seria o desenvolvimento das respostas, e o ensino o envolvimento dos estudantes em todas as etapas desse processo4...”. Ao considerar a extensão como nascedouro e desaguadouro de atividades, esta visão, simplesmente, a elege como a origem e o fim das atividades acadêmicas. Parece muito mais um procedimento idealizado quando se destina esse papel à extensão. Há de se perguntar: A origem da problemática da pesquisa não passa pela realidade circundante do pesquisador? Será obra de mera idéia gerada de sua genialidade ou de circunstancial inspiração? O ensino envolvido pela perspectiva apresentada não poderia ter origem a partir de elementos da realidade? De que forma a extensão propõe-se a ser nascedouro e desaguadouro de toda e qualquer atividade acadêmica? Essa formulação inspira Pró-Reitores a veicularem a compreensão de extensão como a porta na qual os clientes e usuários têm de bater, quando necessitados. Dessa forma, materializa-se a extensão, extraindo-lhe o véu metafísico que a envolvia, tornando-a um ente concreto. Todavia, a presença de uma porta pressupõe a existência de uma separação, sendo esta o divisor entre o dentro e o fora. Pressupõe-se, em decorrência das formulações, até então apresentadas, que a universidade deva estar do lado de dentro e, o algo do lado de fora deve ser a sociedade ou vice-versa. Mais uma vez, se isto é verdade, mantém-se o mesmo viés da visão na qual a universidade constitui-se como uma instituição descolada da sociedade, como se não fosse uma organização sua. Em grande medida, a extensão vai sendo veiculada como prestação de serviços. Ora se torna estágio, quando atrelada a programas de governo; ora se torna uma forma de captar recursos; ora por meio dela, busca-se estudar problemas da realidade. O mais curioso é que a extensão, muitas vezes, é considerada como uma espécie de sobra na universidade, podendo ser tudo aquilo que não se identifique como atividade de ensino ou de pesquisa. Para Rocha (l980), essas expressões são equivocadas para a compreensão da extensão. Para ele, é melhor pensar a extensão por meio da comunicação, considerando essa comunicação na perspectiva freireana, em que a sua sustentação decorre do processo dialógico. Contudo, admitida a existência do diálogo, é preciso, porém, perguntar com quem o diálogo se faz? Será que não permanece, nessa formulação, a divisão entre a sociedade e a universidade, mesmo que ambas possam existir, distanciando-se e se aproximando como resultado desse diálogo? Como se dá esse diálogo comunicativo? Existe uma ação comunicativa habermasiana nessa compreensão, onde a busca principal constitui-se no consenso como mecanismo último da organização da sociedade? Esse diálogo proposto como estratégia para a convivência social suportará a coexistência consensual em uma sociedade de classes? 4
Conceito apresentado no XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste. Natal/RN, l995.
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Pode-se ainda resgatar a formulação de extensão universitária produzida pelo I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas. Nele foram apresentados vários aspectos determinantes para uma compreensão da extensão universitária e que merecem destaque, como por exemplo: a extensão constitui-se como processo educativo, cultural e científico. Parece interessante ter como ponto de partida, a visão de processo para análise e definição do que seja extensão. O Fórum caracterizou esse processo como via de mão dupla. Aí, pode-se questionar o uso da idéia de via, considerando que essa simbologia cai também na dificuldade de compreensão da existência da instituição universitária como integrada à sociedade. Essa via de mão dupla da extensão teria o papel de manter a interligação entre ambas. Esse movimento de vai-e-vem, na formulação do Fórum, viabilizaria a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade, ou seja, no buscar e levar conhecimento. Ora, será que a democratização do conhecimento, mesmo aquele acadêmico, resolve-se pela extensão através da perspectiva de mão dupla? Sabe-se que a questão da democratização do conhecimento envolverá a produção e a posse dos resultados, constituindo-se dessa forma, numa questão muito mais abrangente e complexa. O conceito de extensão não pode assentar-se como via de mão única, considerando a presença autoritária, aí implícita, do fazer acadêmico, onde a universidade sabe e vai levar algum conhecimento àqueles que nada sabem: as comunidades ou a classe trabalhadora. Também, a concepção de extensão como via de mão dupla separa o processo educativo da própria educação, o processo cultural da produção da cultura, bem como o processo científico da própria ciência. Pode-se questionar: Quais os interesses que se manifestam nessa realização? Será a extensão algo ideal, capaz de viabilizar uma relação transformadora, como propõe aquele conceito? Em uma via de mão dupla, há um momento de tensão nesse passar de algo que vem em uma mão, pelo algo que vem em sentido contrário. Será esse o momento da extensão? Mas de que se constitui esse momento? Em geral, as ultrapassagens no mundo físico, seguindo a simbologia das vias apresentadas, são muito rápidas. Extensão será apenas um rápido momento ou buscar-se-á a sua permanência, considerando a idéia de processo? Talvez, visualize-se uma mão que segura outra. Essa simbologia já fora bastante utilizada, na década de 60, sobretudo, nos tempos da Aliança para o Progresso, prestando-se para a ideologia do desenvolvimento da época. Essa simbologia parece conduzir, por conseguinte, à monotonia e à estabilidade e, naquele caso, à dominação. As mãos tinham expressão diferenciada de força. Assim, essas situações não combinam com o conceito de processo, que é dinâmico. Extensão será expressão de monotonia? Esta compreensão de extensão, como via de mão dupla, pode destacar, ainda, um retorno dos conhecimentos para a universidade, como se aí estivesse o único espaço para a reflexão teórica. Não se estará gerando uma dicotomia, inclusive espacial, da condição de reflexão teórica, ao transladá-la para o espaço da universidade? Pode até se perguntar: Será a universidade o lugar, por excelência, para a reflexão teórica? Não seria esse espaço o próprio lócus de realização das atividades de extensão? Na compreensão da extensão como via de mão dupla afirma-se que a produção de conhecimento é resultante do confronto com a realidade, seja brasileira, regional ... Enfim, do confronto com a realidade. Não será uma redução dos diferenciados processos de geração do conhecimento? Contudo, na perspectiva conceitual do Fórum, convém retomar a idéia de que “... extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social” (BRASIL/MEC, l987: 1). Esta é uma formulação que avança no campo teórico, trazendo à categoria trabalho, como uma preocupação conceitual. Mas, o trabalho presente na realização das atividades de extensão pode, perfeitamente, servir para integrar pessoas à sociedade. Portanto, a extensão terá um papel integrador da sociedade, tornando-se esse instrumento. Ao que se apresenta, esse tipo de trabalho não condiz com o tipo de sociedade que interessa aos 21
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setores subalternos da sociedade. Como integrar pessoas em sociedades que permanentemente lhes excluem? Mas, a categoria teórica trabalho pode ser utilizada para se discutir um conceito de extensão voltado a um trabalho distante de qualquer perspectiva de integração social e definido pela busca de outras possibilidades de vida, da construção de outro processo cultural. Extensão pode ir além de um trabalho como o proposto pelo conceito do I Fórum de Pró-Reitores. Esse trabalho tem uma dimensão educativa e precisa ser “qualificado”. É uma qualificação dirigida para a própria universidade, enquanto seja possível observá-la em outra perspectiva. Dessa forma, é que extensão também é entendida como responsável por um “trabalho para fazer com que os alunos assimilem um conhecimento através da inserção na realidade em que estão vivendo e que esses conhecimentos digam alguma coisa para o nosso momento atual” 5. Esta mesma visão concebe a universidade como a responsável por um trabalho que possibilite o exercício da função de “ligar o ensino e a pesquisa com a realidade”. A extensão é vista como tendo a missão de fazer a universidade sair dos seus muros. Elabora problemas existentes a partir da discussão da realidade em que está inserindo-se e vivenciando. Extensão como uma busca não só de explicações teóricas, mas, também, de respostas àquelas necessidades imediatas de setores da sociedade. Nesse sentido, a extensão torna-se “um trabalho; um trabalho que não tem um tempo definido mas está dentro de uma perspectiva de trabalho permanente, trabalho continuado”6. Apresenta-se, dessa maneira, uma possibilidade diferenciadora daquelas, até então apresentadas, enquanto que também qualifica o tipo de trabalho que está sendo desenvolvido nos projetos de extensão em andamento. Essas atividades, para muitos, passam a se constituir como sendo a própria extensão e, marcadamente, identificando-as como um trabalho. “Penso extensão como o trabalho a partir daquilo que a gente faz. Acho que é a partir daquilo que cada grupo faz que, na verdade, vai se constituindo o que a gente chama de extensão-universidade7 ” . Veicula-se, em alguns projetos de extensão, uma perspectiva de extensão gerada a partir das atividades em desenvolvimento e sem estar prisioneira de qualquer formulação idealista. O ponto de partida dessa perspectiva é a realidade concreta ou o concreto real que, submetido à análise da teoria, da abstração, vai vislumbrando outras possibilidades ideológicas da extensão. “Extensão como trabalho que envolva pesquisa e um trabalho que tenha uma finalidade social bastante definida”8. Conforme os dados coletados da pesquisa no âmbito do Projeto CERESAT (Centro de Referência da Saúde do Trabalhador), dentre os aspectos variados de interesse da pesquisa, observe-se a dimensão referente à concepção de extensão que inspira aquele projeto e que alimenta a continuação do debate sobre a questão conceitual.
TABELA 1
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Membro da equipe da PRAC/UFPB. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro da equipe de projeto CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. 7 Membro da equipe do projeto CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. 8 Membro da direção da universidade. Texto da entrevista para esta pesquisa. 6
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PROJETO CERESAT DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO 9 TEMAS
I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
IV - Configuração dos interesses sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidade-sociedade VII – Concepção de extensão universitária
VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X – Pedagogia da extensão universitária
ITENS
A%
B%
C%
D%
Fi
% itens
1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. Absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: ( contradições de classe ) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social ( construção de nova hegemonia ) 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador 9.1 - Agente de interesses do mercado ( capital ) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
07 06 87 04 01 95 22 33 45 00 57 43 02 98 38 00 62 61 06 33 00 09 91 14 28 58 00 100
06 02 92 02 04 94 14 50 36 03 21 76 05 95 65 11 24 29 08 63 02 06 92 64 01 35 00 100
09 02 89 01 03 96 67 00 33 00 10 90 03 97 58 33 09 66 00 34 00 08 92 36 41 23 00 100
09 01 91 03 01 96 00 100 00 07 68 35 06 94 31 56 13 62 01 37 04 09 87 55 14 31 00 100
136 36 1668 43 43 1713 06 16 10 11 155 425 19 423 41 17 16 167 17 16 23 89 1063 85 21 51 00 549
07 02 91 02 02 96 19 50 41 02 26 72 04 96 55 23 22 48 05 47 02 08 92 54 13 33 00 100
Fgi
% tema
1840
26
1799
25
32
01
591
08
442
06
74
02
349
05
1175
17
157
02
549
08
A - Entrevista com coordenadores C - Entrevista com comunitários Fi - Freqüência de indicadores B - Entrevista com executores D - Documentos dos projetos Fgi - Freqüência geral dos indicadores
O tema VII da tabela está voltado à compreensão de extensão, veiculada pelos participantes das atividades nesse projeto. A concepção da extensão universitária foi sintetizada a partir de três visões que, normalmente, se apresentam no debate na universidade. A primeira é a via de mão única que, de forma mais caracterizada, expressa a universidade como uma instituição independente, e que cabe a ela passar para a sociedade os resultados de alguns dos seus trabalhos. Concretizam esta perspectiva a prestação de serviços, a promoção de cursos e eventos, a assistência, a venda de serviços, o treinamento de indivíduos da sociedade, a realização de estágios, cursinhos preparatórios para programas de pós-graduação, enfim. A universidade levando benefícios à sociedade. Uma outra visão é apresentada através da simbologia da mão dupla em que a extensão pode ser compreendida como um processo educativo, cultural e científico. Esta concepção privilegia o aspecto de que a universidade leva conhecimento à comunidade, como também traz conhecimento da sociedade para a instituição. A universidade e a sociedade são aí, concebidas como agindo de mãos dadas, procurando, também, atender às demandas sociais em forma de troca de algo com a sociedade e tendo desta a sua contrapartida. Uma terceira concepção que começa a projetar-se nesses projetos de extensão é a extensão como um trabalho social com uma utilidade definida. Esta concepção estaria sendo demarcada por indicadores que mostram certo tipo de trabalho em desenvolvimento entre universidade e sociedade, não como entes separados, mas em relação permanente entre si e que nem, por isso, identificam-se, pois se diferenciam. O sentido que se 9
Esta tabela mostra a composição interna dos temas com seus itens, a freqüência dos indicadores por item e seus percentuais considerados separadamente nos documentos e nas entrevistas - estas distribuídas em entrevistas com os coordenadores, os executores e os membros da comunidade alcançada pelo projeto. Mostra ainda a freqüência geral dos indicadores de cada tema, bem como o percentual desse tema no conjunto do projeto.
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propõe é de um trabalho social útil como processo educativo, cultural e científico, porém voltado à construção de uma nova hegemonia. O trabalho aqui, aparece configurado com a própria classe subalterna, especialmente dirigido à organização dos seus diferentes setores. De acordo com esse entendimento, a universidade e a comunidade devem ser as possuidoras do produto desse trabalho. Um trabalho que carece da presença da crítica como ferramenta nas atividades que o constituem. Esse conceito traz, em si, a dimensão de superação do senso comum ao expor e explicar os elementos da realidade. Elementos que são gerados a partir de formulações abstratas, sim, mas tendo na realidade, no mundo concreto, a anterioridade de suas bases analíticas. Nesse movimento de análise da realidade, um segundo movimento tem continuidade no campo das abstrações, em busca de elementos mais ainda abstratos, permeados, entretanto, pelo concreto inicial e, finalmente, através dos recursos expostos por essas abstrações, seja possível criar um novo concreto, permeado das abstrações anteriores, enfim, um concreto, agora, cheio de pensamento. Este movimento de produção de conhecimento também expressa outro instrumental teórico de produção de bens culturais e de outro processo cultural. Esse percurso metodológico estabelece-se pela constante crítica dessa produção e do produto gerado, tornando-se também propositivo. Busca a superação das dimensões do estabelecido, considerando, por exemplo, que “as relações de classe não são espontaneamente transparentes ao nível da experiência „imediata‟, da experiência „vivida‟ - aquela experiência que é simplesmente um reflexo sobre a vida cotidiana” (Przeworski, 1989:122). Para o conhecimento dessas relações, torna-se necessário o exame da crítica. Este possibilita ir além da experiência vivida pelas equipes e comunitários, superando esse reflexo primeiro da experiência. A crítica é necessária, pois perscruta essas relações, assumindo seu papel transformador. Os dados revelam que neste projeto, 47% apontam para uma percepção da extensão como trabalho social. Mas, com relação aos executores do projeto, 63% das opções do tema concentram-se no entendimento de extensão muito mais em termos da possibilidade de tornála um trabalho social. Observa-se, contudo, que entre os coordenadores do projeto existe uma sintonia dessa visão de extensão com as percepções da visão transformadora do mundo, presente em um modo de produção determinado e um Estado expresso através de possibilidades de sua ampliação decorrente das contradições de classe. É uma relação universidade e sociedade permeada dos conflitos ideológicos dessas classes. Observa-se, agora, como as preocupações conceituais manifestam-se no Projeto Escola Zé Peão, projeto voltado a alunos adultos e trabalhadores em canteiros de obras em João Pessoa.
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TABELA 2 PROJETO ESCOLA ZÉ PEÃO DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO
TEMAS
I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
IV - Configuração dos interesses sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidade-sociedade VII – Concepção de extensão universitária
VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X - Pedagogia da extensão universitária
ITENS
A%
B%
C%
D%
Fi
% itens
1.1 – Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 – Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 – Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. Absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 – Estado ampliado: ( contradições de classe ) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social ( construção de nova hegemonia ) 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador 9.1 - Agente dos interesses do mercado ( capital ) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 – Agente comprometido com as classes dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
13 01 86 06 01 93 83 17 00 00 37 63 11 89 41 12 47 35 07 58 02 27 71 38 27 35 00 100
09 01 90 06 01 93 20 80 00 01 17 82 01 99 57 25 18 35 04 61 03 09 88 30 00 70 00 100
07 01 92 04 03 93 00 100 00 00 20 80 02 98 74 13 13 84 02 14 01 07 92 17 04 79 00 100
24 01 75 01 01 98 60 40 00 00 49 51 07 93 55 25 20 24 06 80 01 03 96 52 03 45 00 100
183 08 1420 61 37 1586 12 25 00 01 207 508 08 433 79 23 31 92 10 110 08 58 680 48 12 110 00 100
11 01 88 04 02 94 33 67 00 00 29 71 02 98 60 17 23 43 05 52 01 08 91 28 07 65 00 100
A - Entrevista com coordenadores C - Entrevista com comunitários B - Entrevista com executores D - Documentos dos projetos indicadores
Fgi
% tema
1631
26
1684
27
37
01
716
11
441
07
133
02
212
04
746
12
170
03
461
07
Fi - Freqüência de indicadores Fgi - Freqüência geral
dos
Com o trabalho que se desenvolve neste projeto, pouco a pouco, consolida-se uma concepção onde predomina a visão da sociedade como um modo de produção, sendo definido a partir de uma base material. Todos os setores do projeto apresentam proximidade na concepção e quase coincidência no percentual. Uma média dos itens de 94% (2.3) expressa tal aproximação de visão de sociedade e visão de mundo. É uma concepção veiculada após o aprendizado do trabalho educativo de organização num bairro ou num sindicato, com todas as suas possibilidades e limitações. A contradição surge ao se observar a relação da universidade com a sociedade, quando a essa é vista como uma instituição do saber com vida independente. Nesse aspecto, registrase um percentual de 41% (6.1) entre os coordenadores, percentual que cresce entre os executores do programa para 57% (6.2) e é ainda maior entre os trabalhadores, com 74% (6.3). Chega-se a uma média de 60% (6.1) da visão da universidade tida como fechada para a sociedade. Trata-se de uma visão na qual a universidade permanece encastelada em seu próprio mundo e forma indivíduos comprometidos, basicamente com a ideologia das elites, ou seja, uma instituição que vem exercendo o papel de treinadora, recicladora de pessoas, em geral das classes dominantes. Convém destacar sobre concepções de extensão, a terceira possibilidade, ainda em construção, que é a visão de que extensão universitária pode ser entendida como um trabalho social útil e, necessariamente, será um processo educativo, cultural e científico. São expressivos, contudo, os resultados do item 7.3 entre os coordenadores e executores e nos documentos produzidos pelo projeto, com percentuais de 58%, 61% e 80%, respectivamente. Concebe-se como um trabalho realizado junto à comunidade pela universidade ou seus agentes (estudantes e professores), rompendo a dicotomia existente entre os pólos 25
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dessa relação. É uma perspectiva onde o trabalho configura-se numa dimensão de continuidade e de permanência, em processos de realimentação, valorizando a prática e a reflexão sobre essa prática. Esta concepção de extensão torna viável o fazer ensino entre aqueles adultos que se alfabetizam, a pesquisa sobre metodologias e os próprios conteúdos dessas atividades extensionistas. Uma perspectiva que também é seguida, ao se analisar o projeto de extensão no Vale do Rio Mamanguape, na região canavieira da Paraíba. Vejam-se os dados presentes na concepção de extensão daqueles que atuam nesse projeto.
TABELA 3 PROJETO PRAIA DE CAMPINA DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO TEMAS
I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
IV - Configuração dos interesses sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidade-sociedade
VII - Concepção de extensão universitária
VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X - Pedagogia da extensão universitária
ITENS
A%
B%
C%
D%
Fi
% itens
1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. Absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: (contradições de classe) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social (construção de nova hegemonia) 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador 9.1 - Agente dos interesses do mercado (capital) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
15 04 81 02 52 46 -66 34 -39 61 12 88 55 21 24 25 28 47 01 58 41 42 29 29 01 99
15 04 81 01 59 40 -100 -05 32 63 -100 82 09 09 63 24 13 01 63 36 64 04 32 -100
19 09 72 -37 63 75 25 -01 07 92 -100 65 31 04 68 13 19 -29 71 --100 -100
10 10 80 -17 83 50 -50 -20 80 -100 -50 50 95 -05 -11 89 100 ---100
92 33 442 08 455 516 04 05 02 03 47 253 04 181 68 18 13 73 24 25 03 361 360 23 05 18 01 389
16 06 78 01 47 52 36 46 18 01 16 83 02 98 69 18 13 60 19 21 01 50 49 50 10 40 01 99
Fgi
% tema
567
16
979
28
11
01
303
08
185
05
99
03
135
04
724
21
46
02
408
12
A - Entrevista com coordenadores C - Entrevista com comunitários Fi - Freqüência de indicadores B - Entrevista com executores D - Documentos dos projetos Fgi - Freqüência geral dos indicadores.
Destaca-se, aqui, a terceira possibilidade que se manifesta em 47% (7.3) a extensão como um processo educativo, cultural e científico, assumido a partir da posição das classes subalternas, buscando contribuir para a construção de uma outra hegemonia. Nesse sentido, a extensão é um trabalho social útil a serviço das classes subalternas. O processo que se estabelece, por conta dessa concepção, envolve a universidade e a sociedade, propondo uma relação efetiva entre elas a partir da sua clara diferenciação, considerando as suas especificidades. O conhecimento, aí gerado, é produção coletiva e deve estar voltado ao trabalho acadêmico universitário e à organização coletiva das classes dominadas. Trata-se de um trabalho que pretende apropriar-se do saber da universidade e do saber dessas classes, dessas populações ou comunidades, para, num processo de reflexão e reelaboração, possibilitar nova apropriação desse saber. Um trabalho útil que, segundo o depoimento de um dos entrevistados, serve para “organizar o homem do campo e fazer com que ele se valorize com o seu pequeno pedaço de terra”. Mesmo em projetos de extensão voltados à tecnologia, também apresentam a perspectiva da extensão como trabalho social útil.
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TABELA 4
PROJETO QUALIDADE DE VIDA DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO TEMAS
I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
IV - Configuração dos interesses sociais V – Concepção de prática social
VI - Relação universidade-sociedade VII - Concepção de extensão universitária
VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X – Pedagogia da extensão universitária
ITENS
A%
B%
C%
D%
Fi
% itens
1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: (contradições de classe) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social (construção de nova hegemonia) 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador 9.1 - Agente dos interesses de mercado (capital) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
53 10 37 15 48 37 75 00 25 00 69 31 09 91 84 16 00 69 14 17 09 74 17 12 50 38 00 100
58 01 41 05 75 20 00 00 100 00 00 100 10 90 76 12 12 83 17 00 16 72 12 27 09 64 07 93
---------------------------------------------------------
---------------------------------------------------------
107 13 75 19 101 54 03 00 02 00 11 09 02 19 44 08 01 30 06 05 15 91 18 04 05 10 02 43
55 07 38 11 58 31 60 00 40 00 55 45 10 90 83 15 02 73 15 12 12 73 15 21 26 53 05 95
Fgi
% tema
195
28
174
25
05
01
20
03
21 03 53
08
41
06
124
17
19
03
45
06
A - Entrevista com coordenadores C - Entrevista com comunitários Fi - Freqüência de indicadores B - Entrevista com executores D - Documentos dos projetos Fgi - Freqüência geral dos indicadores
Mais uma vez, vale destacar os dados sobre extensão universitária, ao se observar a Tabela 4, referente ao tema VII - Distribuição dos itens do tema VII -, por segmento. A presença da visão de extensão como via de mão única está representada entre coordenadores e executores com percentuais de 69% e 83%, respectivamente. “É justamente aí onde eu vejo essa parte da extensão. Eu vejo como um trabalho da universidade, justamente com a sociedade, com o objetivo de quê? De assessorar essa comunidade, transmitindo conhecimentos que ela não adquiriu. A gente está na universidade, tem esse conhecimento que precisa ser repassado para a sociedade”10. Mas a visão da extensão como uma possibilidade de trabalho social útil aparece, entre os coordenadores, com um percentual de 17%. É um percentual expressivo, considerando o fato de que esse tema revela-se com 6% no conjunto dos temas do projeto, enquanto que este mesmo item projeta um percentual de 12% entre os demais itens. Esse direcionamento conceitual – extensão como trabalho social útil - é manifestado ao nível dos projetos analisados11. Destaque-se que os indicadores, em torno desta perspectiva, apresentaram percentuais elevados nos projetos CERESAT e Escola Zé Peão, particularmente entre os executores, com percentuais de 63% e 61%, respectivamente. Entre os coordenadores do Projeto Praia de Campina, atinge-se o percentual de 47% e entre os 10 11
Estudante e membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa. A pesquisa analisou dez temas, entre eles a concepção de extensão presente nos projetos, buscando os indicadores para a concepção de extensão como via de mão única, via de mão dupla e trabalho social, destacando a visão dos coordenadores, dos executores e de membros da comunidade.
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executores, 13%. No Projeto Qualidade de Vida, essa concepção expressa-se entre os coordenadores com 13%, considerado também um índice representativo. Sendo trabalho social e útil, a efetivação da extensão gera um produto que transforma a natureza, na medida em que cria cultura. É um trabalho imbuído da sua dimensão educativa. O produto desse trabalho, todavia, passa a pertencer tanto às equipes dos projetos de extensão, à universidade, quanto à própria comunidade ou aos grupos comunitários, para aplicação na organização de seus movimentos. Essa dimensão da extensão possibilita a superação da alienação gerada pela não posse do produto do trabalho por parte de seus produtores, no modo de produção capitalista. Todos os produtores devem apropriar-se desse produto do trabalho, que é o saber. Esse trabalho caracteriza-se como um espaço de atuação de todos os que buscam a organização de seus grupos, de sua comunidade ou de sua classe. Um espaço onde existem processos de realimentação dos conhecimentos, que estão sendo produzidos, e outros que são gerados a partir desses últimos. Esse trabalho deve expressar, necessariamente, uma relação íntima entre a teoria e a prática social em desenvolvimento. Nessa perspectiva de extensão, observem-se os resultados do segundo projeto de pesquisa que mostram dados convidativos para manter-se a busca da reconceituação da extensão, a partir de experiências em desenvolvimento no cenário das práticas extensionistas.
TABELA 5 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO TRABALHO SOCIAL ÚTIL12 INDICADORES
DÉCADA DE 80
DÉCADA DE 90
Concepção de extensão como via de mão única.
68,92%
51,93%
Concepção de extensão como via de mão dupla.
11,33%
25,95%
Surgimento da extensão como trabalho social útil.
19,75%
21,97%
Fonte: Dados do relatório de Sílvio Carlos Fernandes da Silva, da pesquisa Extensão Universitária como Trabalho Social, que também analisou a concepção de extensão nas décadas de 80 e 90, aqui destacadas, presentes em atividades extensionistas, na Universidade Federal da Paraíba.
Há um expressivo decréscimo percentual da presença dos indicadores de mão única nas décadas de 80 e 90. Um crescimento da visão de extensão como mão dupla, expressando a aplicação do conceito de extensão, na visão do Fórum, presentes nos projetos dessas décadas, e o aparecimento da perspectiva de reconceituação da extensão como um trabalho social útil, em vários projetos e atividades, com percentuais de 19,75% na década de 80 para 21,97% na década de 90. 12
Pesquisa desenvolvida no período de maio de 1998 a setembro de 2000, pelos alunos/as Sílvio Carlos Fernandes da Silva, Karla Lucena de Souza, Izabel Marinho da Costa e Andréa Tavares A. Magalhães, como bolsistas do PIBIC/CNPQ/UFPB, sendo coordenada pelo Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto. A pesquisa analisou, além de outros aspectos das atividades extensionistas, as concepções de extensão presentes nessas atividades, na Universidade Federal da Paraíba, nas décadas de 80 e 90. Seguiu também o mesmo itinerário metodológico dos projetos já apresentados.
28
29
A partir dos dados apresentados dessas pesquisas uma questão impõe-se: Que dimensões deve ter o trabalho, tornando-o um fundamento filosófico da extensão? Na busca de resposta à questão, convém salientar que o trabalho, como dimensão filosófica e educativa, pertence a instâncias fundamentais na vida da sociedade. É pelo trabalho que o ser humano assegura as condições materiais de sua subsistência. Pela educação, em seu sentido mais amplo, garante-se a preservação dos conhecimentos do passado, que são transmitidos às novas gerações, num processo de acumulação de conhecimentos, essencial à qualidade de vida material e espiritual da humanidade, mantendo a sobrevivência da espécie. O trabalho torna-se, portanto, fator de criatividade do humano. Essa perspectiva natural do trabalho foi apresentada por Marx (1983:149) considerando-o como uma relação do homem com a natureza. Contudo, desde o início, ele apresenta o trabalho como um processo. “Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”.
Mas o homem, diferentemente dos outros animais que se guiam pelo instinto, atua sobre a natureza de forma diferenciada, modificando-a e modificando também a si mesmo. É essa capacidade que o distingue dos demais animais, ao superar a condição de animalidade de sua espécie. A partir das análises realizadas nesses projetos de extensão, o trabalho vem apresentando-se, ainda de forma pouca expressiva, mas que já surgem dados que apontam para esta perspectiva conceitual. No desenvolvimento das atividades extensionistas em que o humano defronta-se com a natureza, também realiza, a partir dela própria, uma síntese do particular com o universal. É o trabalho que possibilita o significado da ação social, suas limitações, suas possibilidades e conseqüências, sem nenhum recurso metafísico. Mesmo sendo um ponto de partida, é sobre essa base natural do trabalho que se elevam as relações sociais da espécie humana. O trabalho torna-se uma relação social já a partir da relação estabelecida com a natureza, indicando nas relações de produção, também expressas nas atividades de extensão, o caráter social, indissociável, que acompanha o processo de trabalho. À medida que a extensão universitária pode ser apresentada como trabalho, exige-se desse trabalho a superação da simples relação primeira do homem com a natureza. O trabalho realiza-se como processo constituído através das relações sociais - trabalho social útil. A atividade orientada nos projetos de extensão analisados passa pela produção do conhecimento como necessidade humana, indispensável ao metabolismo social entre o homem e a natureza. No modo de produção capitalista, os conhecimentos do processo de trabalho, que antes estavam sob o controle de indivíduos como os artesãos, transformaram-se em capital. Fleury (l990: 129) afirma que: “A totalidade do processo, as condições que lhe dão sentido, somente são apreendidas a partir do ponto de vista dos capitalistas, e o conhecimento passa a ser uma propriedade exclusiva deste grupo social, e como tal, uma das suas grandes fontes de poder na sociedade”. A possibilidade de se entender extensão como trabalho social com explícita utilidade opõe-se à visão fragmentada do trabalhador em relação ao processo produtivo, no modo de produção capitalista, determinada pela divisão social do trabalho. O conhecimento da totalidade do processo é transferido para o capital, representado sobretudo, pela classe social dominante: a burguesia. A posse desse conhecimento reforça as estruturas de dominação que 29
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estão inseridas nas relações sociais de produção e também vai garantir, pelo lado do capitalista, a reprodução das relações de produção, considerando que o modo de produção capitalista funda-se na separação entre a propriedade do trabalho e a dos meios de produção. Essa separação também impõe ao trabalhador a manutenção de sua posição na estrutura das relações de produção, considerando que a sua sobrevivência estará garantida enquanto ele estiver fornecendo ao mercado a sua força de trabalho, já que esta é seu único bem disponível. A extensão expressa pela realização do trabalho social útil pode, ainda, efetivar e desenvolver entre seus participantes a necessidade da conquista de cidadania. Uma cidadania cujo significado deve estar bem cristalino na perspectiva de que seja um processo de formação de cidadão crítico, enquanto consciente como sujeito de transformação, e também ativo, superando o idealismo contemplativo e interpretativo da natureza. Um trabalho social útil não se exerce apenas a partir dos membros da comunidade universitária - docentes, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade, que é a participação dos membros da comunidade em seus movimentos sociais ou outras formas de ação política - dirigentes sindicais ou mesmo as associações - numa relação biunívoca para a qual confluem membros da universidade e participantes desses movimentos. Extensão, como trabalho social útil, passa a ser agora exercida pela universidade e por membros de uma comunidade sobre a realidade objetiva. Um trabalho coparticipado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho onde se buscam objetos de pesquisa para a realização da construção do conhecimento novo ou reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados são também os constituintes de outra dimensão da universidade: o ensino. É também um trabalho de busca de objeto para a pesquisa. A extensão configura-se e concretiza-se como trabalho social útil, imbuído da intencionalidade de pôr em mútua correlação o ensino e a pesquisa. Portanto, é social pois não será uma tarefa individual; é útil, considerando que esse trabalho deverá expressar algum interesse e atender a uma necessidade humana. E, sobretudo, é um trabalho que tem na sua origem a intenção de promover o relacionamento ensino e pesquisa. Nisto, e fundamentalmente nisto, diferencia-se das dimensões outras da universidade, tratadas separadamente: o ensino e a pesquisa. Como trabalho social útil, a extensão expressa-se sobre a realidade objetiva e seu produto aos produtores retorna. Isso mostra a extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica, também fundamental, que é a busca de superação da dicotomia entre teoria e prática. Há, então, possibilidade de se direcionarem projetos para a ampliação da hegemonia voltada aos setores subalternos da sociedade, contribuindo para o desvelamento das ideologias dominantes e construindo uma nova estratégia da função social, ou mesmo uma dimensão de serviços de extensão a favor da cultura das classes subalternas. Este é mais um papel possível do aparelho de hegemonia - a universidade - que, através da extensão, pode também direcionar a pesquisa e o ensino para um outro projeto social.
Referências AGEMTE/UFPB/PRAC/COPAC. Projeto de Produção em Condomínio de 220 HA e Policultura-Praia de Campina. João Pessoa, set/1994. (mimeo). BRASIL/MEC. I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas. Brasília, l987.(mimeo). BRASIL/MEC/UFRN. XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste. Documento Final. Natal, l994. 30
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Fleury, Maria de Fátima Pacheco. A Ideologia do Desenvolvimento e as Universidades do Trabalho em Minas Gerais (Tese de Doutoramento). Campinas/SP, Universidade Estadual de Campinas, l990. Limoeiro Cardoso, Miriam. Ideologia do Desenvolvimento - Brasil: JK - JQ. 2a. ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. vol. I. Apresentação de Jacob Gorender; Coordenação e revisão de Paul Singer; tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, l983. (os economistas). Przeworski, Adam. Capitalismo e Social Democracia. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia de Letras, l989. Rocha, Roberto Mauro Gurgel. As oito teses equivocadas sobre a extensão universitária. In: A Universidade e o Desenvolvimento Regional, Fortaleza: Edições UFC, 1980, p. 216/244. __________ Extensão universitária: comunicação ou domestificação? São Paulo: Cortez/Autores Associados. UFCE, l986. Silva, Sílvio Carlos Fernandes. Extensão universitária como trabalho social. Relatório de Pesquisa/PIBIC/IFPB, João Pessoa, 2000. UFPB/PRAC. Relatório de Atividades da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários. João Pessoa, 1992. (mimeo). UFPB/PRAC. Relatório da Coordenação de Programas de Ação Comunitária. João Pessoa, 1993. (mimeo). UFPB/PRAC. Relatório das Atividades Desenvolvidas pela Coordenação de Extensão Cultural - COEX. João Pessoa, 1994. (mimeo). UFPB/PRAC. Anais do II Encontro de Extensão Universitária. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1995. UFPB/PRAC. Relatório das Atividades - 1995. João Pessoa, 1995. (mimeo). UFPB/ NESC/CERESAT. O Que é o Programa de Saúde do Trabalhador? João Pessoa, jan/1995. (mimeo).
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TEXTO 3 AUTONOMIA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
Pois não ditou Creonte que se desse a honra da sepultura a um de nossos dois irmãos enquanto a nega ao outro? Dizem que mandou proporcionarem justos funerais a Etéocles com a intenção de assegurar-lhe no além-túmulo a reverência da legião dos mortos; dizem, também, que proclamou a todos os tebanos a interdição de sepultarem ou sequer chorarem o desventurado Polinices ...
ANTÍGONA, de Sófocles, 441 a.C.
Antígona constatou a unilateralidade da deliberação da pólis grega, expressa na decisão de Creonte. Mas como, se a lei da pólis, portanto para o cidadão, devia ser uma lei justa? Era, exatamente na lei da pólis, onde se podia esperar uma normatização que servisse a todos os cidadãos. Um conjunto de princípios bons, portanto justos, em que o cidadão podia se referenciar e seguir. Estabelecia-se, dessa forma, a exigência de princípios éticos que deveriam ser expressos por ações moralmente aceitas. A tomada dessa decisão unilateral expressava um comportamento nada moral. Verdadeiramente, Antígona buscara liberdade para suas atitudes. Essa tragédia grega expressa, também, o sofrimento do ente humano na sua busca para tornar-se livre, posto que ama a liberdade. Do ponto de vista etimológico, autonomia se compõe de duas palavras: autós, que pode significar por si mesmo, algo que se basta ( uma expressão que pode ser reivindicada por todos os humanos, em diferenciadas condições em que se externem) e nomia. Esta é uma palavra polissêmica. Pode significar lei, regra, modelo a seguir, bem como uma região delimitada (distrito, comarca, prefeitura, território ou mesmo, originalmente, um campo de pastagem). O primeiro significado apresenta-se como uma idealização do conceito. O segundo, por sua vez, sugere menos um modelo autosuficiente e mais um lugar relativo onde se busca o melhor (sempre se opta por aquilo que é melhor). Expressa um movimento de busca, por si mesmo, daquilo que é melhor. Autonomia produz, assim, uma dialetização entre lei, região e o por si mesmo. Com a lei, enquanto capaz de tornar-se uma regra ou um modelo a ser seguido; com a região, como um espaço de busca de algo melhor. Nesse movimento, traz uma marca muito „cara‟, que é o de proceder por si mesmo. É um movimento entre lei, região e o por si mesmo, o qual, enquanto capaz de relacionar essas dimensões, não as torna a mesma coisa; pelo contrário, diferencia-as entre si. Dessa forma, a expressão pode ser entendida como a condição de governar-se por si mesmo e de forma independente. A pensar com Kant, pode assemelhar-se a autodeterminação, independência e liberdade - esta expressa pela capacidade do agir por si mesmo.
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Como liberdade, autonomia pode traduzir um sentido político. Está em Spencer a conhecida formulação de que “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”. Há, de forma explícita, uma delimitação para o exercício da autonomia, expressa pela limitação direta do exercício da liberdade. Uma liberdade de poder exercer os direitos elementares da pessoa humana, como o de expressar o seu pensamento de forma oral ou escrita. Isto, contudo, traz em si mesmo a responsabilidade pela ação ou as conseqüências dos atos. Pode externar um sentido filosófico. Surge, necessariamente, a discussão de sua realização em sentido absoluto, total. É possível a sua efetivação “in totum” ? E os condicionantes sociais, políticos, econômicos, biológicos, psicológicos que a limitam? Ora, Sartre encontra no ser humano a possibilidade de realização da liberdade. Para ele, “o homem é livre - porque somos aquilo que fazemos do que fazem de nós”. O ser do homem e o seu ser livre não apresentam diferenças. São, ao mesmo tempo, seus constituintes e seus constituídos. Pode-se vislumbrar em autonomia um sentido de pensamento. O direito de poder externar o pensamento, num sentido estrito e inalienável da pessoa. Isso mostra a luta da pessoa pela liberdade de expressar o seu pensamento. Sempre se pode lembrar Voltaire: “Não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizê-lo”. É a expressão, possivelmente, mais elevada da clareza e da necessidade da liberdade de pensamento do outro. Assegurar essa liberdade ao outro é a garantia do desejo de liberdade para o ego. Autonomia, como liberdade de, pode ter ainda um sentido ético. Já foi identificada essa busca na tragédia grega. Ética aqui entendida, enquanto expressão do direito que tem a pessoa de agir sem constrangimento de qualquer força externa. Liberdade esta tão reivindicada e defendida por René Descartes. Autonomia, portanto, é uma palavra bastante conhecida. No seio da universidade, BELTRÃO (1997) resgata a autonomia presente já na Idade Média, na bula Parens Scientiarum, após professores e alunos abandonarem Paris, a Atenas da Idade Média, em virtude da morte de estudantes, resultante de conflitos com a polícia parisiense. Para retornarem à cidade-luz, apresentaram as seguintes exigências: a „licentia‟ ou a graduação do estudante, que devia ser outorgada sem interferência externa do poder espiritual ou temporal; o funcionamento interno da Alma Mater (universidade), que seria regido por estatutos e os seus „curricula‟ organizados pelos „magistri‟; “a confirmação do direito de greve e retirada, em caso de abrogação de qualquer uma dessas cláusulas por parte do poder temporal ou espiritual”. A luta por autonomia, no caso para a universidade, tem origem, como se vê, na Idade Média. Na modernidade, ainda se mantém essa busca, tanto em relação ao poder espiritual - a Igreja Católica - como ao poder temporal - as formas diferenciadas do Estado - e, mais acentuadamente, nos tempos atuais, em relação ao Estado. FÁVERO (l997), ao abordar a autonomia universitária, no Brasil, no que concerne aos seus desafios tanto históricos como políticos, mostra que esta remonta à legislação de l911, na Reforma Rivadávia Corrêa: “Essa temática é levantada em resposta a um movimento de contenção do crescimento das inscrições nas faculdades, propiciada pelo ingresso irrestrito dos egressos das escolas secundárias, tanto nas oficiais como nas privadas, bem como nas que foram a elas equiparadas”. Em relação aos dias atuais, a pesquisadora destaca o parágrafo único do artigo 207 da Constituição Federal, que estende a autonomia às instituições de ensino superior, bem como aos institutos de pesquisa. A diferenciação funcional entre estas instituições possibilitará, necessariamente, diferentes graus de autonomia. A autonomia, como vem sendo apresentada na lei em vigor, torna-se um „ente‟ teórico com uma escala esdrúxula de valores, através de graus. 33
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Segundo MACEDO (l996), a autonomia deve ser plena. Para que o seu funcionamento seja possível adequadamente, esta deve ocorrer “na plenitude jurídica, pedagógica, patrimonial e de gestão financeira”. No que tange à autonomia patrimonial e de gestão financeira, é necessária a clareza do destino das verbas voltadas às obrigações assumidas com a sociedade, no tocante à qualidade de ensino e das pesquisas básica e aplicada. Autonomia é uma temática que tem estado presente no palco das discussões nos movimentos sociais, nas reivindicações individuais e coletivas, nas práticas desses movimentos, nas tomadas de decisão de organizações frente às demais organizações e nas relações interpoderes: legislativo, judiciário e executivo1. É, sobretudo, bastante reivindicada, questionada e até nomeada como ponto central no processo organizativo da universidade, particularmente, a universidade no Brasil. Na universidade, é possível verificar-se que o seu compromisso para com a sociedade tem sido exercido através do ensino, da pesquisa, como também da extensão universitária em seus mais diferenciados matizes conceituais. A autonomia se torna, dessa forma, uma necessidade iminente para o desenvolvimento da extensão. Nesse aspecto convém que sejam apresentadas algumas questões necessárias à compreensão da extensão: Como vem se desenvolvendo a extensão na universidade? Para quem está voltada? A resposta a estas questões passa necessariamente por uma visão das variadas compreensões e, sobretudo, das políticas que têm sido veiculadas sobre extensão universitária, no Brasil1. Nesse sentido, conforme observa ROCHA (l989), a extensão, mesmo tendo origem na Inglaterra, vem se tornar mais evidente através da vertente americana que foi, no Brasil, associada à área rural, muito presente nos cursos voltados à agricultura - a extensão rural. A marca dessa compreensão de extensão é a ida da universidade ao homem do campo, levando-lhe conhecimentos técnicos. O aludido autor destaca que a dimensão com o social, hoje bastante presente nas compreensões de extensão, surgiu no país, através do movimento estudantil argentino, em Córdoba. Várias das formulações daquele movimento estão presentes entre os estudantes brasileiros, desde a fundação da União Nacional dos Estudantes - UNE - e se externaram, marcadamente, no Congresso da entidade realizado na Bahia. Naquele Congresso (l961), exercitando a autonomia do movimento estudantil, a UNE estabelece diretrizes, decidindo-se por abrir a universidade ao povo, prestando serviços e promovendo cursos a serem desenvolvidos pelos estudantes em suas faculdades. Esses serviços possibilitariam o conhecimento da realidade aos próprios estudantes e, assim, a universidade - a extensão - os levaria à realidade. O papel da universidade, através da extensão, seria ainda a conscientização das massas populares, despertando-as para seus direitos. Para REIS (l994), a extensão universitária, no Brasil, vem apresentando duas linhas de ação. A primeira está centrada no desenvolvimento de serviços e na difusão de cultura e promoção de eventos, daí a sua denominação de eventista-inorgânica; a segunda, denominada de processual-orgânica, está voltada às ações, com caráter de permanência, presentes no processo formativo (ensino) do aluno, bem como na produção do conhecimento (pesquisa) da universidade. Com base nessas linhas de ação, vêm sendo realizadas, de modo geral, as atividades de extensão por boa parte das universidades brasileiras. Elas se baseiam, hoje, no conceito de extensão universitária formulado no I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas, realizado em Brasília, entendido da seguinte forma: “Processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e a sociedade. A extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica que encontrará, na
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sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica,
__________ 1. O cenário político tem apresentado, nos últimos meses, atores dos poderes judiciário, legislativo e até do executivo, todos requerendo autonomia para poderem tomar suas decisões, sem o constrangimento do outro.
será associada àquele conhecimento. Este fluxo que estabelece a troca de saberes sistematizado, acadêmico e popular, terá como conseqüência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira regional; a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizadora deste processo dialético de teoria/prática, extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social”(Fórum, l987).
A efetivação desse conceito exige a conquista permanente da autonomia, no sentido de que seja possível pôr em prática os procedimentos preconizados. O Movimento Docente, através da ANDES, ainda voltado à compreensão de extensão como prestação de serviço, vai caracterizá-la à parte, em relação à realização de atividades. Estas devem ser concebidas e estruturadas enquanto instrumentos acadêmicos voltados à formação acadêmica, ao desenvolvimento da pesquisa, bem como aos apoios à comunidade. Autonomia não pode tornar-se sinônimo de autonomização, descolando-se de sua fonte alimentadora, que é a sociedade. A universidade é parte da sociedade e não tem sentido apresentar-se com a postura de “torre ebúrnea” , distanciando-se de sua própria origem. A universidade relaciona-se com a sociedade, sendo parte integrante dela e, ao mesmo tempo, diferenciando-se enquanto instituição que tem sua especificidade. Além do mais, não tem sentido a universidade proclamar-se autônoma, com o caráter de autonomização, se as ações da extensão forem voltadas à captação de recursos para complementação de verbas das instituições universitárias. Autonomia não pode ser confundida com soberania. A universidade precisa estar voltada à sociedade, não podendo isolar-se de tudo. Para BUARQUE (l994), a universidade deve ser autônoma, mas não autista, expressando um comportamento isolacionista em relação à sociedade. Por outro lado, parece razoável entender-se que autonomia não é sinônimo de „laissez-faire‟ e com isso a universidade poder fazer o que bem lhe aprouver, inclusive com poderes para proclamar-se autônoma para realizar, incluindo-se o direito de nada fazer. A extensão universitária vem, também, sendo entendida como via de mão única, como via de mão dupla e como expressão de atividades. Com este sentido, está presente na atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBen, em seus artigos 52 e 53. De forma geral, a autonomia universitária tem possibilitado a efetivação de diferenciados conceitos de extensão, como: atividades voltadas para o incentivo de políticas e apoio a cursos aprovados em departamentos; implementação de projetos e eventos no campo cultural do Estado onde a universidade está localizada; extensão com significado de atendimento a problemas estudantis. Outras dimensões do conceito de extensão apontam para a necessidade de atendimento às demandas de prefeituras, visando à integração entre universidade e município. Há, ainda, a compreensão de que extensão deve ocupar-se da elaboração de projetos de organização das comunidades e movimentos sociais, bem como da efetivação e acompanhamento desses projetos. A autonomia pode ser efetivada através da extensão universitária, com base na radicalidade, quando da aplicação do conceito de extensão como trabalho interdisciplinar, contido na concepção do I Fórum de Pró-Reitores de Extensão. Essa radicalidade consistiria na análise da extensão universitária, submetendo-a à crítica e fazendo desta a sua ferramenta no desenvolvimento dessas atividades ou como elemento constituinte de seu próprio agir. 35
36 Traz, desta forma, a dimensão da superação do „senso comum‟ , ao expor e explicar ou mesmo fazer contatos com os elementos da realidade. Tais elementos são gerados a partir de formulações abstratas, mas que colocam a realidade, o mundo concreto, como anterioridade nas suas bases analíticas. Existe a compreensão de que, nesse movimento de análise da realidade, um segundo movimento tem continuidade no campo das abstrações e em busca de elementos mais abstratos, permeados, entretanto, do concreto inicial e base de toda análise. Finalmente, os recursos expostos a partir dessas abstrações tornam possível a construção de um novo concreto, permeado das abstrações anteriores - um concreto pensado. Para a realização de extensão nessa perspectiva, a autonomia tem papel preponderante. A crítica, para além do „senso comum‟, também se transforma em proposição. Busca a superação das dimensões do estabelecido e assume seu ideário transformador. Portanto, a extensão pode ir além de um trabalho simples. Pode partir da idéia de trabalho, consolidada no Fórum, indo mais além se for mantida a busca de cada instituição pela autonomia, podendo realizar extensão, por exemplo, como um trabalho social. Extensão universitária, uma vez assegurada a autonomia da universidade, pode ser entendida como trabalho social. Nessa concepção, MELO NETO (l997) pressupõe que a ação desse trabalho é, deliberadamente, criadora de um produto. Constitui-se a partir da realidade humana, abrindo a possibilidade de se criar um mundo mais humano. É pelo trabalho social que se vai transformando a natureza e criando cultura. Tendo como dimensão principal o trabalho social, a extensão será produtora de cultura. É pelo trabalho que se torna possível conhecer o mundo onde o homem atua. O trabalho social, entretanto, não se exerce apenas a partir dos participantes da comunidade universitária: professores, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade, que é a participação dos membros da comunidade e de movimentos sociais, de dirigentes sindicais, de associações, numa relação “biunívoca” para a qual segmentos da universidade e participantes desses movimentos confluem. Extensão, como um trabalho social, é exercida sobre a realidade objetiva tanto pela universidade como pela comunidade. Um trabalho co-participado que traz consigo as tensões de seus componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho onde se buscam objetos de pesquisa para a construção do conhecimento novo ou novas reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados são também os constituintes da outra dimensão da universidade - o ensino. Portanto, extensão é um trabalho que se realiza na realidade objetiva, sendo exercido por membros da comunidade universitária. É também um trabalho de busca do objeto para a pesquisa, constituindo-se como possibilidade concreta de superação da pesquisa e do ensino realizados, as mais das vezes, fora da realidade concreta. Concebida como um trabalho social, a atividade extensionista gerará um produto desse trabalho. Um produto caracterizado no bojo das relações de trabalho, que tem suas contradições, constituindo-se como uma mercadoria. Portanto, gerará um produto que será o conhecimento teórico ou tecnológico, o qual deve ser gerenciado pelos produtores principais - a universidade e a comunidade. A devolução dos resultados do trabalho social à comunidade irá caracterizá-la como possuidora de novos saberes ou saberes rediscutidos, os quais serão utilizados pelas lideranças comunitárias em seus movimentos emancipatórios e reivindicatórios. Isso faz crer na extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica fundamental, que é a busca de superação da dicotomia entre teoria e prática. Há, ao que parece, uma possibilidade de construção de outras hegemonias e do desvelamento das ideologias dominantes, bem como de uma nova estratégia da função social da universidade, ao lado da cultura dos setores subalternos da sociedade. 36
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A autonomia, possível de ser exercida através da extensão universitária, pode contribuir substancialmente para a avaliação tanto da instituição como dos projetos de extensão, sejam os que estão sendo iniciados, sejam os que estão sendo executados ou os projetos concluídos. Claro que o roteiro de análise das propostas das instituições, organizado pelo Comitê Assessor do PROEXTE (Programa de Extensão) é um importante referencial. A avaliação da relevância acadêmica, da relevância social, da viabilidade do programa institucional, bem como do compromisso institucional para com o projeto ou programa são constituintes fundamentais para a execução de um projeto no campo da extensão universitária. Contudo, o exercício da autonomia, nesse campo, possibilita outros avanços e outras abordagens, podendo surgir novas contribuições ao conjunto de indicadores e critérios utilizados para a avaliação desse tipo de trabalho. Alguns critérios podem ser apresentados, destacando-se como o primeiro a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Nessa direção, já estão sendo sugeridos indicadores (UFPB, 1995), tais como: análise dos conteúdos das disciplinas relativas aos procedimentos metodológicos; clareza metodológica; sistematização e divulgação dos trabalhos realizados em extensão e ainda atualização da problemática. O segundo critério refere-se à necessidade de que o trabalho desenvolvido contenha relevância social. São critérios que vêm sendo utilizados pelo MEC e possibilitam indicadores, tais como as articulações com as demandas da sociedade, atendimento às necessidades da população, bem como “a possibilidade de criação, desenvolvimento e difusão de tecnologias apropriadas” (Ibid.: 3). O terceiro critério pressupõe que o trabalho social realizado nas atividades de extensão busque a democratização da sociedade. A avaliação da extensão aponta para a necessidade de informações sobre verbas para projetos de extensão em relação aos demais projetos desenvolvidos pela universidade. A esse respeito pode-se perguntar: Como está ocorrendo a organização comunitária? Desenvolve-se, entre os participantes, um exercício de autonomia com os processos de organização da comunidade? O quarto critério a ser considerado é se o trabalho de extensão promove a cidadania, no sentido de formar um cidadão com as características da criticidade e da atividade, um cidadão crítico e ativo. Assim, a universidade poderá exercer a sua autonomia. As temáticas envolvendo a cidadania das mulheres, a cidadania dos negros, a igualdade de direitos, a discriminação por orientação sexual, os povos indígenas, saúde, educação, crianças, jovens e a terceira idade, não podem estar ausentes nos conteúdos desse trabalho, marcantemente autônomo. O quinto critério a ser considerado como expressão da autonomia, é que esse trabalho social precisa estar pautado na ética. Debruçando-se sobre projetos de extensão, com propósitos de avaliação, observa-se que esse processo comporta o questionamento da produção do conhecimento, não apenas do ponto de vista epistemológico, mas também sob a ótica do tipo de conhecimento que é produzido, num determinado momento histórico, na sociedade em que se insere e na instituição onde está sendo produzido. Ora, a ciência é um saber entre tantos outros, além do que a universidade não é o seu único “locus” de produção. Mas o conhecimento que está sendo produzido tem uma direção. No caso da universidade, precisa responder a quem está servindo, a quem interessa e como está sendo produzido. O conhecimento buscado nos projetos de extensão, bem como sua efetivação, pode estar na composição de um quadro de indicadores para a avaliação da extensão. A resposta a estas questões diz respeito à ética. Assim, pode-se perguntar: Qual o conhecimento necessário? Para que tipo de sociedade está sendo produzido tal conhecimento? A autonomia é possível e necessária no campo da extensão universitária. Autonomia para tornar possível o exercício da democracia seja na sociedade, seja nas práticas administrativas, no interior da universidade (coordenações, departamentos, conselhos superiores). Autonomia para promover a 37
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democracia e a socialização do conhecimento que se produz, sobretudo, entre aqueles que menos o detêm. Autonomia para tornar possível a criação de condições onde o cidadão desenvolva-se crítica e ativamente. O conhecimento que está sendo produzido na universidade através da pesquisa, da extensão e do ensino, e que, muitas vezes, só promove a exclusão e a desigualdade, não pode ser ético. A autonomia buscada por Antígona, frente à lei da pólis, trouxe à tona o questionamento e a sua necessidade no âmbito da universidade e, em particular, na extensão universitária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELTRÃO, Cláudia. Alma Mater - a autonomia na origem da universidade. Universidade e Sociedade, no. 12. Sindicato ANDES Nacional. São Paulo, l997. BRASIL/MEC. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, l996. BUARQUE, Cristóvam. A aventura da universidade. Paz e Terra, Rio de Janeiro e Editora da UNESP, São Paulo, l994. FÁVERO, Maria de Lourdes Albuquerque. Autonomia universitária: desafios históricopolíticos. Universidade e Sociedade, no. 12. Sindicato ANDES Nacional. São paulo, l997. MACEDO, Arthur Roquete de. Autonomia universitária: por quê, como e para quê.Universi dade e Sociedade, no. 11. Sindicato ANDES Nacional. São Paulo, l996. MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária: uma análise crítica. Faculdade de Educação da niversidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, l997 (tese de dou toramento). I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas. Brasília, l993 (mi meo). REIS, Renato Hilário dos. Extensão universitária: conceituação e práxis. I Fórum de Extensão Universitária do Estado de Santa Catarina, Florianópolis. l994. ROCHA, Roberto Mauro Gurgel. O caminho do conceito da extensão universitária na relação universidade/sociedade. Documento Preliminar. Brasília, l989 (mimeo). SÓFOCLES. A trilogia tebana. Tradução Mário da Gama Kury. 3a.ed. Zahar Editor, Rio de Janeiro, l993. TAVARES MEDEIROS, Maria das Graças. Extensão universitária: novo paradigma de universidade? Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, l996 ( tese de doutoramento). UFPB. Programa de bolsa de extensão - 95/96. Pró-Reitoria para Assuntos Comuninitários UFPB. João Pessoa, l995 (mimeo). UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES - UNE. Declaração da Bahia. Salvador, l961 , (mimeo). 38
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TEXTO 4 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
A visão geral que se tem é que a universidade deve prestar um serviço à sociedade e este se realiza, com maior ênfase, pela extensão universitária. Esta perspectiva pode ser definida como uma via de mão única i. Por outro lado, foi se desenvolvendoii outra compreensão em que se buscava a possibilidade de permutas nas relações entre universidade e sociedade. Assim, estabelece-se que, pela extensão, a universidade troca conhecimento com a comunidade, e a comunidade também esboça a mesma atitude em relação à universidade. Isto caracteriza a condição da extensão como uma via de mão dupla. Observa-se que, em ambas as concepções, e em outras, como a desenvolvida pelo movimento estudantil, há um domínio da prática que parte sempre da universidade. Existe, além disso, uma quase total ausência da preocupação com a produção do conhecimento, perdendo a universidade a singular oportunidade de, através de alunos professores ou outros servidores, estar em contato direto com a realidade concreta onde se desenvolvem atividades extensionistas. Mas, através dessas concepções, praticamente, está descartada possibilidade de produção de um conhecimento novo. Na primeira perspectiva, a via de mão única, instalase um canal com apenas um sentido – da universidade para o povo. Na via de mão dupla, mesmo existindo um duplo sentido – instituição/povo/instituição - , a possível troca, quando ocorre, efetiva-se através de um conhecimento já estabelecido. Tudo isso inspira a pergunta: será possível o exercício de atividades extensionistas que vislumbrem a produção do conhecimento, sobretudo, para os dias de hoje, ante uma „sociedade do conhecimento‟? Pesquisas sobre extensão universitária vêm mostrando a ênfase que se tem dado ao desenvolvimento de atividades na perspectiva da via de mão única e da via de mão dupla, com ênfase na década de 80. Entretanto, surgem outras possibilidades no campo da extensão, encetando nova concepção diferenciada das demais e definindo outros caminhos na relação entre o institucional e a sociedade. Urge que se estabeleçam conceitos de extensão com a sua correspondência prática, procurando, como orienta Pinto (1986), a superação do estudo ocioso, da cultura alienada, enfim, da pesquisa fortuita e sem finalidade imperiosa, tão presente no meio universitário. A busca por um outro conceito de extensão, voltado à perspectiva da produção do conhecimento, para a atual „sociedade do conhecimento‟, não carece de fundamentação do tipo: projetar algo ao povo pela cultura universitária, nem de preocupações abrangentes, sem possíveis encaminhamentos para as questões sociais que estão no entorno universitário. Os desejos de transformações contidos em vários conceitos de extensão expressam, de forma nítida, as marcas do conservadorismo, sugerindo uma retórica da transformação, mas destituída da mesma. Aqueles fundamentos, expressos por esses desejos, reservam para a universidade um papel de transmissora do saber e dos métodos de ensino e pesquisa, mesmo que manifeste preocupação com “as necessidades e fins sociais”. O povo, os trabalhadores, contudo, permanecem silenciosos. Extensão, na perspectiva da produção do conhecimento, não pode contemplar conceitos que expressem apenas uma „relação unívoca‟ e que se desenvolvam em um único sentido - universidade para o povo. Esta visão não permite novas definições ou possibilidades, 39
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ao anular o espaço da contradição, uma vez que os intelectuais da universidade, professores, alunos e servidores, estabeleceram tudo. Paulo Freire (1979: 22), ao interpretar as diferenciadas possibilidades conceituais de extensão, mostra que o termo aparece como “transmissão”; sujeito ativo (de conteúdo); entrega (por aqueles que estão „além do muro‟, „fora do muro‟), sendo comum falar-se em atividades extramuros; messianismo (por parte de quem estende); superioridade (do conteúdo de quem entrega); inferioridade (dos que recebem); mecanismo (na ação de quem estende); invasão cultural (através do conteúdo que é levado, refletindo a visão do mundo daqueles que levam, superpondo à daqueles que passivamente recebem). Sugere, finalmente, extensão como comunicação. Ao se vislumbrar extensão como comunicação, permanece ausente o significado mesmo da extensão. A formulação de um conceito a partir de um outro, como o de comunicação, leva a extensão a permanecer no vazio da indefinição, considerando que o outro também é substantivo e carecendo de fundamentação. A superação desse tipo de conceito exigirá que outros demonstrem a instauração do diálogo como pressuposto de suas realizações, dando prioridade às metodologias que incentivem a participação dos envolvidos nesses processos. Portanto, extensão é expressão de relações processuais, sem contudo, ser essa relação em si mesma. A atividade de extensão terá sentido se interpretada como “a criação e recriação de conhecimentos possibilitadores de transformações sociais, onde a questão central será identificar o que deve ser pesquisado e para quais fins e interesses se buscam novos conhecimentos” (MEC, Plano Nacional de Extensão Universitária, 1999: 5). Destaque-se a necessidade da produção do conhecimento e não, simplesmente, a promoção de uma relação entre saberes acadêmicos e saberes populares. A busca por produção de um conhecimento transpõe a dimensão de troca de saberes. Essa permuta ocorre nas ações extensionistas, mas não se constitui, apenas, de processos relacionais. A definição formulada no Fórum de Pró-Reitores, desde 1987, já aduz a preocupação com a “produção do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade” (ibid.: 5). Fazer extensão pressupõe a ação propriamente dita, pois esta não se enquadra em mera perspectiva contemplativa da realidade. Nesse sentido, é importante ressaltar a conclusão do Fórum: “A intervenção na realidade não visa levar a universidade a substituir funções de responsabilidade do Estado, mas sim produzir saberes, tanto científicos e tecnológicos quanto artísticos e filosóficos, tornando-os acessíveis à população, ou seja a compreensão da natureza pública da universidade se confirma na proporção em que diferentes setores da população brasileira usufruam dos resultados produzidos pela atividade acadêmica, o que não significa ter que, necessariamente, freqüentar seus cursos regulares” (ibid.: 6).
A construção de um conceito de extensão, atualizado para a „sociedade do conhecimento‟, exige que se vá além das possibilidades apontadas, promovendo as relações internas existentes nas instituições promotoras de extensão, como a universidade. Inquieta-se com as questões que a realidade objetiva expõe àqueles que desenvolvem atividades de extensão. É nesse aspecto que é possível encontrar-se uma definição de extensão nas conclusões do Fórum de Pró-Reitores. Com esta condição, a extensão procura atender às multiplicidades de perspectivas em consonância com os seguintes princípios: preferencialmente, a ciência, a arte e a tecnologia podem alicerçar-se nas prioridades da região; a universidade não pode entender-se como detentora de um saber pronto e acabado; a universidade contribuir aos movimentos sociais, visando à construção da cidadania. Nesse aspecto, a extensão pode “ser encarada como um trabalho social, ou seja, ação deliberada 40
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que se constitui a partir da realidade e sobre esta realidade objetiva, produzindo conhecimentos que visam a transformação social” (ibid.: 8). A extensão, como trabalho social com uma utilidade definida, vem manifestando-se em práticas desenvolvidas em universidades. Analisando-se a presença de indicadores, em relatórios e textos produzidos na década de 1980, pode-se observar que 19,75% das possibilidades de se realizar extensão, naquele ambiente pesquisado, voltam-se à perspectiva de um fazer extensão como trabalho social útiliii. Embora não expressem ainda percentuais que mostrem uma tendência, tais possibilidades apontam outros caminhos possíveis ao exercício da extensão universitária – extensão como um trabalho social útil. Sobre esse trabalho, Marx (1982: 202) acrescenta: “É um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana”.
Desse ponto de vista, vislumbra-se a extensão como um trabalho que se volta à produção do conhecimento novo, dando um papel também social a esse produto da atividade extensionista. Entendendo-se a extensão como um trabalho socialiv, observa-se que a sua ação resultante é uma ação deliberada, criando um produto. Esse produto se chama conhecimento para a transformação social. Ora, é o trabalho expresso como outro conhecimento que se presta para a efetivação dessa possibilidade, sendo constituído “a partir da realidade humana, e só com ela é possível criar-se um mundo, também, mais humano. É pelo trabalho que se vai transformando a natureza e criando cultura (Melo Neto, 1996: 19). A extensão, tendo como dimensão principal o trabalho social útil, necessariamente, será criadora de cultura. Para Saviani (1989: 9), “esse mundo humano vai se ampliando progressivamente com o passar dos tempos”. Portanto, pelo trabalho é que se torna possível conhecer um mundo, agora ampliado, onde o humano atua, refazendo-o. Extensão é, assim, um trabalho social útil sobre a realidade, realizando-se como processo dialético de teoria e da prática dos envoltos nesse trabalho, externando um produto que é o conhecimento novo, cuja produção e aplicabilidade possibilitam o exercício do pensamento crítico e do agir coletivo. Ao se pensar a extensão universitária como trabalho social útil, vê-se que este trabalho não se exerce, apenas, a partir dos participantes da comunidade universitária, servidores e alunos. Na sua dialeticidade, exige a dimensão externa à universidade, que é a participação de pessoas da comunidade ou mesmo de outras instituições da sociedade civil, como os movimentos sociais. Está aí presente uma relação „biunívoca‟, para onde os participantes da universidade e os de outras instituições ou da comunidade confluem. Esse trabalho social realiza-se sobre a realidade objetiva. É um trabalho coparticipado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho onde se definem objetos de pesquisa para a realização e construção do conhecimento, para a transformação ou reformulação de verdades estabelecidas. Um trabalho que apresenta questões tanto para a pesquisa como para o ensino, constituindo-se como possibilidade concreta de superação da própria pesquisa e ensino que são realizados, com freqüência, fora da realidade objetiva. Portanto, a produção do conhecimento, a partir da realidade objetiva, faz-se no sentido de que a realidade social é determinada por muitos fatores, não sendo dada como obra natural. Há relações específicas que a definem. Nesse sentido, a realidade social é estabelecida e sua explicação só é possível quando for possível apreender suas determinações. Trata-se, 41
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portanto, de um exercício rigoroso, que parte de abstrações na busca das determinações dessa realidade concreta. O concreto real é uma abstração. Parte de abstrações na busca das definições da realidade concreta, tendo-se todavia a realidade concreta como anterioridade nesse processo de busca de novo conhecimento. O concreto é, em suma, expressão de uma síntese em que, pelo exercício do pensamento (abstração), tenta-se o seu desvelamento. Esse movimento expressa um triplo caminho que vai da realidade (concreta) através da abstração; dessas abstrações, mantendo o concreto, caminha-se para a chegada de um novo concreto, aquele tomado como ponto de partida, estando acrescido das abstrações: o conhecimento novo. O caminho das abstrações conduz para a definição de categorias desse real, buscando aquelas mais simples, porém com possibilidade de maiores explicações para a situação em que se encontram aquela realidade e as situações de determinação. Assim, é que se percorre o caminho da produção de abstrações mais gerais com condições explicativas da situação de vida daquela comunidade. Essas abstrações mais gerais possibilitam a compreensão da situação do momento em que se vive, fecundando maiores e melhores explicações históricas das determinações de cada momento histórico dos objetos de estudo. Assim, manifesta-se a definição daqueles instrumentos teóricos, das categorias teóricas que propiciam, finalmente, a enunciação de que forma montar a análise e por onde começá-la, indo ao encontro de respostas às questões levantadas. É um processo de trabalho que alumia a produção do conhecimento social e útil, capaz de tentar superar a realização do trabalho alienado. Este trabalho social gera um produto que apresenta suas contradições, mas que se constituirá, sobretudo, como uma mercadoria social, na medida em que é, produzida por aqueles que realizam a extensão. Um produto, seja conhecimento teórico ou tecnológico, que precisa ser gerenciado pelos produtores principais: instituições (agentes da universidade) e comunitários. Isto é importante enquanto conduz à socialização desse produto, caracterizando o momento como o da devolução das análises ou demais produtos aos seus produtores. Isto possibilita, hoje, um novo agir sobre a realidade, gerando novos conhecimentos por meio da extensão, na direção das necessárias transformações - a superação de todo e qualquer processo de exclusão promotor de injustiças.
NOTAS 1
Professor do Centro de Educação/UFPB. É coordenador do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular.
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Existe alguma literatura sobre o assunto, destacando-se os comentários sobre as conhecidas universidades populares européias apresentados por Antonio Gramsci, no livro: Concepção dialética da história. Civilização Brasileira, 4a. ed. Rio de Janeiro, 1981.
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Esta concepção vem sendo construída pelo Fórum de Pró-Reitores das Universidades Brasileiras, desde o ano de 1987, quando da reunião realizada naquele ano, em Brasília. Nessa reunião definiu-se a concepção de extensão universitária como uma via de mão dupla. A partir da concepção de que extensão é via de mão única, também desenvolveram-se críticas a essas concepções, sobretudo através do movimento estudantil, principalmente no Congresso da Salvador, em l961, concluindo-se que a universidade deveria voltar-se à sociedade, às reivindicações populares. Ver ainda, POERNER, José Artur. O poder jovem. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1979. Ver também UNE, Declaração da Bahia. Salvador, 1961 (mimeo).
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Ver: MAGALHÃES, Andréa Tavares A. Extensão universitária na perspectiva de trabalho social. (Relatório parcial de pesquisa PIBIC/CNPq/UFPB). João Pessoa, jul/1999.
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Extensão universitária como trabalho social (uma análise da extensão da década de 1980, na Universidade Federal da Paraíba) é uma pesquisa que foi desenvolvida a partir do ano de 1997, com financiamento do CNPq/PIBIC/UFPB, apresentando os seguintes resultados parciais: atividades extensionistas na perspectiva da via da mão única com 68,92% do total das atividades naquela década; na perspectiva da via de mão dupla, com 11,33% e na perspectiva de trabalho social, com 19,75%.
Ver, também, Melo Neto. José Francisco de. Extensão universitária – uma análise crítica. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. Referências BRASIL. Plano nacional de extensão. Ministério da Educação. Brasília. 1999. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Civilização Brasileira, 4a. ed. Rio de Janeiro, 1981. GURGEL, Roberto Mauro. Extensão universitária: comunicação ou domesticação? Cortez: autores associados. Universidade Federal do Ceará. São Paulo, 1986. MAGALHÃES, Andréa Tavares A. Extensão universitária na perspectiva de trabalho social. (Relatório parcial de pesquisa PIBIC/CNPq/UFPB). João Pessoa, jul/1999. MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. Livro primeiro, Volume I, 8a. edição. Tradução de Reginaldo Sant‟Ana, Difel, São Paulo, 1982. MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária: em busca de outra hegemonia. Revista de Extensão. Ano 1, no. 1, junho de 1996. Editora da Universidade Federal da Paraíba, João pessoa, 1996. __________. Extensão universitária – uma análise crítica. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. __________. Dialética – uma introdução. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. PINTO, Álvaro Vieira. A questão da universidade. São Paulo, Cortez,: Autores Associados, 1986. POERNER, Artur José. O poder jovem. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1979. SAVIANI, Dermeval. Sobre a concepção de politecnia. Ministério da Saúde. Fundação Osvaldo Cruz. Rio de Janeiro: 1989. UNE. União Nacional dos Estudantes. Declaração da Bahia. Salvador, 1961 (mimeo). 43
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TEXTO 5. Extensão universitária – em busca de outra hegemonia13
Introdução A partir do século passado, começa a se projetar, também, como “função social” da universidade, uma nova dimensão - a extensão. Expressava-se, a partir daí, um novo papel, iniciado por universidades americanas e universidades populares européias da mesma época. Este papel resumia-se, de certa forma, em admitir um “comprometimento” da universidade para com a sociedade, algo bastante amplo enquanto conceito, porém, expresso mais diretamente, como uma oferta de prestação de serviço. Ao ensino e pesquisa, adicionava-se uma nova “pilastra de sustentação” deste aparelho de hegemonia141 que é a universidade. Novas possibilidades surgem em termos de respostas às “expectativas” da sociedade, agora, não só na dimensão do ensino mas na de “prestação de serviços”. Acresce-se, com isso, a necessidade de uma maior inter-relação sociedade e universidade. Se antes, esta inter-relação era, mais fortemente, externada pela dimensão do ensino, abria-se outra possibilidade através da concretização da produção de conhecimento, em forma de préstimos. Todavia, os pontos de partida dessa produção de conhecimento continuaram no campo do idealismo, e a “realidade” do dia a dia, muito longe de se transformar em objeto de estudo. A universidade continuou propondo ações por si mesma, para serem aplicadas à sociedade, induzindo a pesquisa a continuar como mero desdobramento lógico, no campo das idéias. Contudo, as diferenciações do “tecido social”, composto de várias classes, interesses, perspectivas, ideologias, saberes, parecem sugerir, nessa relação sociedade-universidade, ações sobre a própria universidade. É, talvez, a possibilidade do estudo da “realidade” objetiva, como preocupação do ensino e da pesquisa, via extensão. Este movimento será decorrente de avanços e recuos organizacionais dos diferentes setores da sociedade, em luta pela busca de sua própria hegemonia. Ao se pensar a “função social” da universidade, a extensão pode ser útil como ativadora do próprio aparelho de hegemonia, a universidade, possibilitando sua construção através desses setores. Isto exigirá um outro direcionamento da função extensão com desdobramentos na pesquisa. A perspectiva, assim, será de superação do monismo idealista, da contemplação pura e simples do sujeito na direção do objeto, bem como do monismo do materialismo vulgar, ao alijar a subjetividade existente no objeto quando da ação necessária da interação sujeito e objeto.
Caminhos do conceito
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Este artigo foi divulgado em Revista de Extensão, da Universidade Federal da Paraíba, no. 1, da Pró-Reitoria de Ação Comunitária. 14 Ver, na teoria de Antônio Gramsci, o conceito de Aparelho de Hegemonia, também detalhado no livro Gramsci e o Estado de Christinne Buci-Glucksmann, sobretudo no 2o. capítulo.
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Há uma compreensão, de que os fundamentos da extensão universitária brasileira estão nas conhecidas universidades populares da Europa, do século passado, que tinham como objetivo, disseminar os conhecimentos técnicos entre o povo. É importante aqui observar os comentários de Gramsci (1981;17): “... estes movimentos eram dignos de interesse e merecem ser estudados; eles tiveram êxito no sentido em que revelaram da parte dos simplórios um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma forma superior da cultura e de uma concepção de mundo. Faltava-lhes porém qualquer organicidade, seja de pensamento filosófico, seja de solidez organizativa e de centralização cultural; tinha-se a impressão de que eles se assemelhavam aos primeiros contatos entre mercadores ingleses e os negros africanos: trocavam-se berloques por pepitas de ouro”. Parece que a crítica se refere aos intelectuais, que mesmo desejosos de “servir ao povo”, à classe dominada, tinham um outro papel que era de compreender as formas de vida e propostas da classe trabalhadora. Esquecidos deste papel ou mesmo por incompetência, esses intelectuais expressavam, na crítica de Gramsci, uma visão dominadora do seu saber, ao se proporem levar seu conhecimento ao povo. Além dessas experiências européias, vêm dos Estados Unidos, desde 1860, duas percepções de extensão que para Gurgel (1986: 32), se expressam em extensão cooperativa ou rural e extensão universitária em geral. Vê-se ainda, segundo ele, que estas visões marcam “um desejo de aproximação com as populações na intenção de ilustrá-las. A extensão americana caracterizou-se, desde seus primórdios, pela idéia de prestação de serviços”. Esta concepção diferencia-se daquela das universidades populares, por resultarem de esforços saídos da iniciativa oficial, isto é, do Estado. Na relação da extensão com os movimentos sociais, destaca-se na América Latina, o movimento de Córdoba de 1918. Os estudantes argentinos, pela primeira vez, enfatizam a relação universidade-sociedade cuja materialização deveria operar-se através das propostas de extensão universitária promovendo a difusão da cultura. Esta é uma idéia preliminar que vai permear a organização estudantil no Brasil desde 1938, quando da criação da União Nacional dos Estudantes - UNE. Mediante a extensão, se projeta uma relação universidade-sociedade, marcada pelas contradições do próprio papel da universidade, ao constituir-se como instrumento de preparação das elites governantes, assim já expresso nos objetivos da criação da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, vindo a constituir-se, posteriormente, na USP. A universidade brasileira, mesmo assim, traz em seus objetivos a extensão, buscando articular a relação docente-discente-população, mas limitada sobretudo à oferta de cursos, palestras ou seminários. Nessa perspectiva será pertinente destacar, do movimento argentino, o tópico sobre extensão constante da Carta de Córdoba: 1) extención universitária. Fortalecimento de la función social de la universidad. Proyección al pueblo de la cultura universitária y preocupación por los problemas nacionales; 2) unidad latino americana, lucha contra las ditaduras y el imperialismo. Estas reivindicações estudantis entre outras sugerem que a reforma de Córdoba movimenta-se num campo teórico muito vasto. A reforma de Córdoba que se caracterizou como um movimento político-estudantil, colocou a necessidade de vincular a universidade ao povo e à vida da nação, através da extensão. Tudo isso, num momento político em que a Argentina vivia um clima de anti-imperialismo, projetando-se a necessidade de que, através de segmentos universitários, participasse a universidade das transformações sociais. 45
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Para Gurgel (1989:13), os ideais de Córdoba chegam ao Brasil pelos idos de 1930. Inspiram a plataforma de luta dos estudantes brasileiros. Com a criação da UNE em 1938, se elabora também “O Plano de Sugestões para uma Reforma Educacional Brasileira”. Este plano contem o ideário de Córdoba, expresso nas funções da universidade assim delineadas : “promover e estimular a transmissão e desenvolvimento do saber e dos métodos de ensino e pesquisa através de exercício das liberdades de pensamento, da cátedra, da imprensa, de crítica e de tribuna de acordo com as necessidades e fins sociais; e a difusão da cultura pela integração da universidade na via social popular.” ( In Poerner: 1979: 328 ). A extensão é vista em termos de difusão da cultura e de integração da universidade com a população. As vias serão, naturalmente, os cursos de extensão com a finalidade de divulgação de conhecimentos científicos e artísticos. Uma concepção de extensão que denuncia a função da universidade como “doadora” de conhecimentos, manifestando sua “arrogância” ao julgar-se “proprietária” exclusiva do mesmo e “pretensiosa” ao querer impor, autoritariamente, uma “sapientia universitaria”. Mesmo presentes as preocupações para com o povo, verifica-se, no Plano de Sugestões, o caráter assistencial, refletindo também as dificuldades financeiras dos estudantes na época. O mais expressivo documento gerado pelos estudantes que mereceu, inclusive, apoio de intelectuais, em 1961, foi a Declaração da Bahia. Este documento trata de dois aspectos básicos: a análise da realidade brasileira e a da Universidade no Brasil. Destaca-se do texto o capítulo da Reforma Universitária que assim define nas diretrizes: “compromisso com as classes trabalhadoras e com o povo”, enfatizando: a) “ luta pela reforma e democratização do ensino...; b) abrir a universidade para o povo, através da criação, nas faculdades, de cursos de alfabetização de adultos, e cursos para líderes sindicais nas Faculdades de Direito; c) colocar a universidade a serviço das classes desvalidas...; d) fazer da universidade uma trincheira de defesa das reivindicações populares, através da atuação política da classe universitária na defesa de reivindicações operárias, participando de gestão junto aos poderes públicos e possibilidade de cobertura aos movimentos de massa.”(UNE. 1961: 56). É possível depreender das diretrizes da Declaração da Bahia, as características de uma universidade democrática, com caráter nitidamente extensionista. Houve, inclusive, exercício prático dessas propostas como as do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. São marcantes os traços das diretrizes quanto à necessidade de “abrir a universidade ao povo” e a de “levar os estudantes à realidade”. Aparece, também, a discutível colocação de a universidade estar a serviço de órgãos governamentais, bem como, “gestora” na defesa das reivindicações operárias. O movimento militar de 64, convenientemente, acaba assumindo algumas das reivindicações do movimento estudantil inclusive a de estudos de problemas brasileiros. Estes estudos, contudo, se tornam disciplina nos currículos da universidade. A análise desses problemas era feita, entretanto, segundo o “catecismo” do poder hegemônico. Não traduzia, na prática, o significado dado pelos estudantes naquela Declaração. Do ponto de vista da extensão, os militares criaram vários programas de integração estudante-comunidade como o CRUTAC - Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária, Projeto Rondon e a Operação Mauá, através dos quais os estudantes podiam desenvolver atividades profissionais. Além do caráter assistencial, tudo se passava sob rigoroso controle político e ideológico. O sonho da universidade democrática, naquele momento, estava desfeito. 46
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Mesmo na Declaração da Bahia, o caráter da extensão está marcado pela autoridade do saber universitário e pelo seu paternalismo em relação às comunidades, tanto da cidade como do campo. Até mesmo a participação de servidores não docentes, em processos eleitorais internos à universidade, estava descartada nesse documento, contemplando apenas docentes e alunos. A Ditadura Militar absorve várias formulações do movimento estudantil dando a sua feição ideológica. A partir da Reforma de 1968, institucionalizam a extensão, firmando-se a idéia de prestação de serviço , “algo próprio e permanente na vida universitária”. A extensão é agora uma função, oficialmente, definida. Tem um caráter funcionalista, descartando-se um possível conceito processual. A relação, agora, da universidade com a sociedade e com o povo, se dá pela oferta de cursos - os cursos de extensão. O papel da extensão, entretanto, não tem sido apenas o de contribuir para institucionalizar-se e se referendar como função oficial. As experiências de início da década de 60 da Universidade de Pernambuco, através do Prof. Paulo Freire, as tentativas de extensão com caráter processual da Universidade de Brasília (UNB,1986) e a Universidade Popular do Pará - UNIPO, funcionando desde 1987, e projetos de extensão como da Universidade de Ijuí - RS, da Universidade Federal da Paraíba, entre tantos em andamento em várias universidades. Muitos profissionais atuam, às vezes de forma isolada, e esses projetos merecem resgate para busca de nova conceituação e formulação da extensão, ou seja, extensão a serviço da hegemonia da classe trabalhadora. Surge então o questionamento: de que características deve se constituir a extensão universitária para servir a este fim?
Outros caminhos A extensão universitária, comprometida com a hegemonia da classe trabalhadora, tem várias implicações. Uma delas é a necessidade de uma formulação teórico-conceitual da extensão, bem como, uma formulação que abra caminhos na construção da hegemonia de classe. Não pode ser, todavia, mais um conceito entre os já vistos, mesmo porque, tem como base empírica as tantas experiências alternativas existentes. Nem se pode esquecer que a extensão está inserida entre as funções da universidade e esta, fortemente, marcada pela presença dominante da classe burguesa. Uma universidade não planejada para as atividades transformadoras, mas para a manutenção. Não se pode ignorar sua marca retrógrada e reacionária. Para Vieira Pinto (1986:27), a universidade não foi concebida nem é dirigida em função do trabalho social útil, mas do estudo ocioso, da cultura alienada, da pesquisa fortuita e sem finalidade imperiosa. Um conceito de extensão precisa contribuir para superação de uma produção acadêmica inútil, da cultura alienada e da pesquisa e ensino fortuitos. Não pode constituir-se em bases como a projeção ao povo da cultura universitária e nem por preocupações abrangentes para com as questões sociais, como as contidas na Carta de Córdoba. Até aí está presente na extensão a dimensão de hegemonia burguesa que é a da dominação. O que parece transformador na referida carta não deixa de ser essencialmente conservador ou sugere uma transformação sem transformação, admite o papel dessa função como transmissora do saber e dos métodos de ensino e pesquisa, mesmo que apareça a preocupação com “as necessidades e fins sociais”. Daí se depreende que seriam necessidades e fins sociais no entender da universidade. O povo, os trabalhadores, não falam. É um conceito de extensão que contempla uma “relação unívoca”, enquanto só acontece em um sentido, da universidade para o povo. Uma visão em que não há espaço para 47
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novas definições, pois a universidade já definiu não haver contradições, uma vez que os “intelectuais” da universidade, professores e sobretudo os alunos, já resolveram tudo. A extensão precisa ir além dessa possibilidade, ao destacar a relação universidadetrabalho, via extensão, em que a realidade objetiva algo à universidade e vice-versa. É a construção de um conceito que torna imperiosa a unidade teoria e ação, sem a qual inexiste hegemonia na ótica dos trabalhadores. Hegemonia que acontece com a necessária consciência teórica e cultural da ação. É a superação analítica do imediato empírico ou fim à simplicidade da redução das idéias a anotações de sensações imediatas do real (Cardoso, 1978). A hegemonia que se persegue na construção de um conceito de extensão passa a ter dimensões não apenas de ordem política. Hegemonia só pode ser entendida como possibilitando também direção, moral, cultural e ideológica. Mesmo na Carta da Bahia, a compreensão expressa do conceito de extensão está eivada de contradições, até mesmo quanto à função social da universidade. Quanto a esta última parece até paradoxal, pois como será possível estar a “serviço das classes desvalidas”, como “trincheira de defesa das reivindicações populares” e ao mesmo tempo “participando nas gestões dos poderes públicos”? Impossível de se realizar, considerando os conflitos no exercício de ambos os papéis. A universidade assume um papel conciliador nos conflitos entre Estado e reivindicações populares. Já para o conceito de extensão, atribuí-lhe um papel paternalista e autoritário ao caracterizá-la como “trincheira” das reivindicações populares. Reserva, ainda, um papel messiânico à classe universitária quando a classifica como “defensora das reivindicações operárias”. Assim, se coloca a incapacidade organizativa dos trabalhadores, ao mesmo tempo suprime o papel histórico da classe trabalhadora que é a construção de sua própria história. Retira-se dos operários, trabalhadores, a construção de sua direção política própria, organização da cultural, moral e ideológica. Anula da classe trabalhadora, tanto do campo como da cidade, a potencialidade de análise de sua situação concreta e de buscar suas especificidades históricas. São muitas as possibilidades de interpretação do termo “extensão”. Paulo Freire (1979:22 ), em seus estudos sobre extensão, chega a mostrar a amplidão conceitual do termo que normalmente aparece como “transmissão”; sujeito ativo (de conteúdo); entrega (por aqueles que estão “além do muro”, “fora do muro”). Daí que se fala em atividades extra muros; messianismo (por parte de quem estende); superioridade (do conteúdo de quem entrega); inferioridade (dos que recebem); mecanismo (na ação de quem estende ); invasão cultural ( através do conteúdo levado, que reflete a visão do mundo daqueles que levam, que se superpõe, à daqueles que passivamente recebem). Este educador propõe extensão como comunicação. A formulação do novo conceito de extensão, para hegemonia da classe trabalhadora, deve visualizar as relações de forças no próprio interior da universidade, ligando as diferentes vontades humanas internas à universidade. Nos aspectos externos, não pode a extensão ser compreendida como na Carta da Bahia, no sentido de ser a “doadora” da política dos trabalhadores. Pela extensão, pode-se desenvolver a pesquisa e com o conhecimento nada superficial do mundo concreto, contribuir para as direções políticas dos movimentos sociais. Já o ensino pode ser feito, a partir da realidade objetiva, na sala de aula que deverá também tornar-se objeto de pesquisa. Estudar a realidade objetiva é atitude revolucionária. Revolucionária enquanto constrói conhecimento. Segundo Marx, de nada valeria a ciência, se o fenômeno se identificasse com o seu modo de aparecer. Um conceito de extensão que se desenvolva a partir da relação universidademovimentos sociais compreendendo os “estratos” da população. Estratos internos e externos à universidade na geração de compromissos mútuos. Construindo um saber que não aparece no imediato e permeado de dimensão educativa da necessidade de elaboração crítica constante. Este ato de conhecer vai além da intuição passiva e torna-se intervenção subjetiva no objeto. 48
49 Este processo é também de construção de hegemonia de classe. “A hegemonia se torna possível, precisamente, a partir da existência de uma condição objetiva e do seu conhecimento, e ao mesmo tempo, da iniciativa subjetiva” (Gruppi, 1978:42). A extensão também não pode ficar limitada ao papel institucional de “prestadora de serviço”. A busca da hegemonia pela extensão é a criação de uma nova cultura para a classe trabalhadora. É a socialização de conhecimentos presentes mas reservados à uma minoria intelectual. E a extensão se expande, com possibilidade de reinterpretação de verdades já postas, além das aspirações de novas descobertas. Os movimentos sociais, a classe trabalhadora podendo ser geradores de objetos de pesquisa prescindem, todavia, do retorno desse conhecimento novo gerado ou das novas verdades surgidas de dentro de outras possíveis verdades já existentes. Será uma extensão que contenha um apelo pedagógico no sentido de um aprendizado dual - a universidade aprende enquanto ensina e é ensinada enquanto aprende com as classes sociais, com o estudo da realidade objetiva. Diante dessas considerações, será então possível tentar-se uma formulação conceitual de extensão, numa perspectiva de hegemonia das “classes subalternas”. O primeiro aspecto que pode constituir uma nova formulação conceitual de extensão é situá-lo como um trabalho. Em sendo extensão um trabalho, pressupõe-se que a sua ação resultante seja uma ação deliberada, criando um produto. Este produto se chama transformação. Ora, é o trabalho expresso como outro conhecimento que se presta à transformação. É constituído, a partir da realidade humana, e só com ela é possível criar-se um mundo, também, mais humano. É pelo trabalho que se vai transformando a natureza e criando cultura. A extensão, tendo como dimensão principal o trabalho, será criadora de cultura. Para Saviani (1989:9) “esse mundo humano vai se ampliando progressivamente com o passar dos tempos”. É pelo trabalho que se torna possível conhecer esse mundo ampliado onde o homem atua. Este trabalho não se exerce, apenas, a partir dos participantes da comunidade universitária, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade que é a participação dos membros da comunidade e dos movimentos sociais, dirigentes sindicais, associações, numa relação “biunívoca” , em que participantes da universidade e participantes desses movimentos confluem. Extensão, vista como um trabalho exercido pela universidade e pela comunidade, certamente, implicará algo sobre o qual se realiza esse trabalho. Este trabalho realiza-se sobre a realidade objetiva. Um trabalho coparticipado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho onde se busca objetos de pesquisa para realização e construção do conhecimento novo ou de novas reformulações das verdades existentes. Estes objetos pesquisados são também os constituintes da outra dimensão da universidade que é o ensino. Portanto, a extensão é um trabalho social que se realiza na realidade objetiva e exercido por membros da comunidade, universidade (servidores e alunos). Um trabalho de busca do objeto para a pesquisa e para o ensino, se constituindo como possibilidade concreta de superação da pesquisa e ensino que são realizados fora da realidade objetiva. Vislumbrando a extensão como trabalho social, esta atividade extensionista gerará um produto deste trabalho. Um produto caracterizado no “bojo” das relações de trabalho, que também apresentam suas contradições, mas que se constituirá sobretudo, como uma mercadoria social. Portanto, obterá um produto, que será de conhecimento teórico ou tecnológico, que deve ser gerenciado pelos seus produtores principais: universidade e comunidade. E ainda, ao mesmo tempo que a extensão é visualizada como trabalho sobre a realidade objetiva, gerado em parceria com a comunidade, deverá devolver a esta comunidade 49
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o resultado de suas atividades. Esta é outra dimensão fundamental da extensão caracterizada como a fase da devolução de suas análises da realidade objetiva à própria comunidade. A devolução desses resultados do trabalho à comunidade caracterizará a mesma como possuidora desses novos saberes ou saberes rediscutidos, e, que serão utilizados pelas lideranças comunitárias em seus movimentos emancipatórios e reivindicatórios. Isto faz crer a extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica fundamental que é a elaboração da teoria e da prática. Há, ao que parece, uma possibilidade de construção de hegemonia e desvelamento das ideologias dominantes e uma nova estratégia de função social ou mesmo, uma condição do serviço da extensão, a favor da cultura das classes trabalhadoras. Este pode ser o papel do aparelho de hegemonia - universidade - que através da extensão direcionará a pesquisa e o ensino para um novo projeto social. É uma luta para tornar o proletariado, os trabalhadores, como classe dirigente e uma sociedade renovada.
Algumas questões continuam. O aparelho universitário está hoje por demais criticado no que tange à qualidade de suas técnicas, de suas pesquisas, de sua ciência, de seu ensino. Pode-se observar diferentes atores colocando propostas para sua sobrevivência. São propostas as mais variadas. Todas estão, entretanto, direcionadas à avalanche capitalista do neoliberalismo. Tudo está sendo colocado em nome da modernidade. A universidade, segundo aquelas propostas, precisa se modernizar. Esta modernidade diz respeito a que ela se torne acessível à empresa privada ou aberta ao capital, ou mesmo, que as poucas universidades públicas se tornem pagas. A visão da extensão, superficialmente exposta aqui, vem também de encontro às propostas neoliberais e busca comprometer setores da universidade, pois, o exercitar desta visão de extensão tem uma intencionalidade. Naturalmente, as contradições surgirão. As relações entre diferentes setores são causadoras de questionamentos sobre a própria universidade. Há questões a serem resolvidas, mesmo conceitualmente, da própria proposta como a necessidade da mais ampla análise empírica que vislumbre a sua aplicabilidade. Há questões nos inter-relacionamentos de setores universitários e comunidade. Estas serão “tensões dialéticas” permanentes. Todavia, já se vive sob essas “tensões”. E a extensão, vista como um trabalho social, na visão colocada, parece possibilitar um direcionamento do pensar e fazer acadêmicos comprometidos com alguma renovação, partindo de setores não burgueses. É preciso que haja alternativas para a universidade e para a sociedade. “A cultura é um privilégio. A escola é um privilégio. E nós não queremos que seja assim. Todos os jovens deveriam ser iguais perante a cultura” (In Glucksmann, 1980:491).
Referências BERNHEIM, Carlos Tunnermann. El Nuevo Concepto Extension Universitária. Mexico, Universidade Autônoma do México: 1978. CARDOSO, Míriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento. JK- JQ. Rio de Janeiro. Paz e Terra: 1978. 2a edição. FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro. Paz e Terra; 1979. 4a edição. GRAMSCI, Antônio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira: 1981. 4a edição. GRUPPI, Luciano. Conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro. Ed. Graal: 1978. 50
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GLUCKSMANN, Christinne Buci. Gramsci e o Estado - por uma teoria materialista da filosofia. Rio de Janeiro. Paz e Terra: 1980. GURGEL, Roberto Mauro. Extensão Universitária: comunicação ou domesticação? São Paulo. Cortez: Autores Associados. Universidade Federal do Ceará: 1986. __________ Extensão universitária na relação universitários/sociedade. Documento Preliminar. Brasília, Julho: 1989. mimeo. PINTO, Álvaro Vieira. A questão da universidade. São Paulo. Cortez: Autores Associados: 1986. POERNER, Artur José. O Poder Jovem. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira: 1979. SAVIANI, Dermeval. Sobre a Concepção de Politecnia. Ministério da Saúde. Fundação Osvaldo Cruz. Rio de Janeiro: 1989. UnB. Extensão: do assistencialismo ao compromisso. Relatório do Decanato de Extentensão. l986. 52 pg. UNE. Declaração da Bahia. Salvador. l961(mimeo.).
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TEXTO 6. EXTENSÃO RURAL E POPULAR
(ética como elemento de cultura política na extensão15)
Este texto tem a pretensão de promover um diálogo com aqueles que atuam no campo da extensão e, em particular, na extensão rural, considerando que o extensionista rural está expressivamente imerso na realidade do campo. É uma síntese didática, para que todos possam, de forma simples, entender e explicar uma questão presente no dia-a-dia das ações em extensão: a ética nas relações dos trabalhos extensionistas. Entretanto, a discussão sobre a ética como elemento da cultura política passa, necessariamente, pela discussão das políticas dominantes num determinado momento histórico. Para os dias de hoje, esta exigência envolve a caracterização do liberalismo e o reflexo de suas ações políticas no campo ético. Nesse sentido, pode ser apresentado como um estilo de fazer política, sendo parte de uma tradição que tem se mantido em pauta desde a segunda metade do século XVII, consolidando-se no século XVIII. É uma visão capitalista de mundo, na medida em que adquire nuances com o percurso histórico. Expressando uma formulação teórica hegemônica na atualidade, absorve certa plasticidade conceitual em torno de um núcleo determinante que sustenta e garante suas próprias evoluções, adquirindo a atual denominação de neoliberalismo. Liberalismo é, portanto, uma filosofia, no sentido gramsciano do termo. Define um pensamento que engloba um arco de características de toda uma época e que, por si mesmo, “é capaz de ser um princípio de organização de toda uma civilização”. Nesse aspecto, expressa uma concepção de economia, de política, de história e de ética. É uma síntese do racionalismo ao definir a razão e não a fé como meio de conhecimento e, necessariamente, guia de conduta. Tem sua fonte no naturalismo ao conceber o homem inscrito no „estado de natureza‟ e não na ordem divina. Alimenta-se ainda do individualismo na medida em que formula severas críticas ao „modus vivendi‟ da Idade Média e sua organização social. Traduziu-se numa síntese cultural de tamanha força que foi responsável, mesmo que de forma diferenciada, pela revolução inglesa de 1640, pelo movimento de independência norte-americana de 1776 e pela revolução francesa de 1789, tidas como as revoluções burguesas, no sentido de que abriram as condições de florescimento do capitalismo. O núcleo desse ideário se constitui na defesa intransigente da propriedade privada, do mercado e da acumulação de capital. Apresentadas as bases do liberalismo, convém destacar que, durante o seu percurso histórico, tem adquirido diferenciações de abordagem. Mesmo nos dias de hoje, essas diferentes abordagens estão presentes nas formulações dos ingleses, dos norte-americanos, dos alemães e, mais presentemente, dos japoneses. O neoliberalismo - já que se pode acrescer o „neo‟ - é expressão de uma ala tida como de direita no campo liberal. Suas teses passaram a ter mais sustentação com a vitória, após a segunda guerra, das chamadas democracias liberais, sobretudo, a norte-americana. Recentemente, com a crise do leste europeu, essas democracias mantêm a organização da produção do capital e conservam intactos os direitos de propriedade 15
Texto produzido para o II Congresso dos Trabalhadores em Extensão Rural (II CONSINTER), promovido pelo Sindicato dos Trabalhadores em Extensão Rural da Paraíba, em Campina Grande, Pb. 2000.
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e acumulação do capital. O neoliberalismo é, assim, a atualização das teses liberais conservadoras para os dias atuais. O mercado, que já era enunciado central da formulação liberal, com o neoliberalismo, transforma-se em nova deusa. Exacerba esse conceito, gerando uma leitura economicista do mundo que se pretende única e verdadeira. Atualmente, pela ótica política, cada vez mais, observa-se um deslocamento dessa concepção doutrinária para a direita, em nível internacional. As experiências do leste europeu movem-se para possíveis governos de políticas nada „claras‟, porém sob hegemonia liberal. Os governos social-democratas deslocam-se mais à direita em relação às suas políticas sociais, mesmo aqueles que buscam uma terceira via. A América Latina, por sua vez, se torna o laboratório de implantação de medidas liberais. Um exemplo singular são as privatizações em curso no Brasil. O neoliberalismo vem se fortalecendo, inicialmente, pela descaracterização da política keynesiana (a economia da oferta concebida por Keynes), o distributivismo do Estado de Bem- Estar Social (com a denúncia da crise fiscal), o gigantismo estatal acusado de burocrático, ineficiente e, sobretudo, os „excessos‟ de democracia que abrem um exagero de demandas (reivindicações ou mesmo apropriações por setores sociais) sobre o Estado. Por outro lado, torna-se propositivo em torno de alguns temas como a privatização, a desregulamentação de normas, a diminuição dos impostos e dos encargos sociais, a internacionalização da economia, bem como a autonomização dos governos frente ao controle democrático, constituindo-se também como a expressão concreta de seu ideário geral. O neoliberalismo vai se encastelando nas mentalidades e se pretendendo como dogma, fora do qual não há “salvação”. Para o economista Nilson Araújo de Souza, em seu livro O Colapso do Neoliberalismo, cinco são as bases da concepção neoliberal: a globalização da economia, a revolução científico-técnica, a falência do Estado, a necessidade de eficiência do Estado e o fim da História. Para o autor, esta concepção ideológica se constrói não a partir da realidade mesma, mas de alguns de seus fragmentos. “É muito mais expressão do desejo, da subjetividade, dos que a formularam do que da realidade”. A globalização preconizada não passa de uma crescente integração dos circuitos financeiros em dimensão internacional. Isto, para os neoliberais, é globalização. O que há é uma explícita tentativa de redivisão do mundo e um reforço das “fronteiras econômicas das áreas sob comando dos monopólios das grandes potências”. A respeito da revolução científico-técnica, o que se apresenta de concreto é ora a estagnação, ora a dança da “economia mundial e o estrito monopólio dos poucos avanços tecnológicos existentes”. Com relação ao papel do Estado, assiste-se, na verdade, a uma deslavada pilhagem dos bens públicos pelos grupos monopolistas e pelas elites dominantes. Em relação ao mercado, ao contrário de sua alegada onipotência, o que está acontecendo é sua inteira subjugação à ação dos monopólios. Sobre o fim da História, o neoliberalismo afirma que o capitalismo venceu e fora dele não há alternativa. Mas o que se vê é a sua necessária superação frente ao elevado grau de exclusão dos bens materiais de uma maioria cada dia crescente (Melo Neto, 2000: 14). Os dogmas neoliberais, de forma midiática e insistente, pretendem-se, politicamente, ser as únicas e últimas opções de vida para a humanidade. Assim, buscam suspender o pensamento crítico e, com isso, eliminar estudos de possibilidades de condições de alternativas. Suas políticas são tentativas de encobrir a realidade, invertendo o papel das coisas, promovendo, cada dia mais, o aumento da exclusão social. Mas, em sendo uma filosofia, contempla também uma perspectiva ética que passa a ser veiculada. É de se perguntar, então: Que ética? Será aquela que dá sustentação aos princípios políticos dessa corrente dominante do pensamento? Na verdade, essa ética está voltada para aspectos que conduzem a um fazer cotidiano fundamentado no individualismo e 53
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no lucro (a busca da propriedade), sobretudo. Estes aspectos, talvez em si mesmos, já são tidos como inofensivos devido à sua aceitação, praticamente, generalizada. Diante dessa realidade, que ética está sendo veiculada em boa parte das práticas extensionistas? Que ética se torna necessária para as ações educativas em extensão rural, quando voltadas para aquela maioria de pequenos produtores? Que ética é capaz de conduzir as perspectivas das maiorias da sociedade, em particular aquelas que trabalham no campo? A resposta a estas questões remete, inicialmente, à discussão sobre o conceito de extensão. Este bem que carece da presença da crítica como ferramenta nas atividades educativas que a constituem e que traçam os caminhos para as suas ações. A extensão pode trazer, assim, a necessária superação do “senso comum”, quando se propõe expor e explicar os elementos da realidade. São elementos que estão presos a abstrações. Contudo, são originários da realidade, do mundo concreto, tendo-o como anterioridade nas suas bases analíticas. Um segundo movimento se estabelece seguindo um percurso no campo das abstrações, em busca de elementos mais abstratos, mesmo que permeados do concreto inicial, que é a base da análise. Num terceiro movimento, finalmente, com os recursos expostos e produtos dessas abstrações, é possível chegar-se a um concreto cheio das abstrações anteriores, ou a um novo concreto, um concreto permeado de pensamentos. Assim pensando, não se sustentarão as perspectivas de extensão como mera “mão santa que vai salvar aquele que recebe a ação extensionista”, expressando a visão da extensão como „via de mão única‟. Também não reforça a perspectiva de extensão como „via de mão dupla‟, no estilo do antigo arquétipo das mãos da „aliança para o progresso‟, implantado na década de 60. Mas, que tipo de perspectiva extensionista e que princípios éticos podem ser sugeridos para poder acompanhar as ações na extensão? A extensão, hoje, alimenta-se da crítica para o exercício de ações educativas populares, constituintes da extensão popular. Nesse sentido, tem papel determinante, pois, além de superação do “senso comum”, também é propositiva. A extensão, assim, assume um ideário transformador. Passa a se constituir em uma dimensão que vai além do trabalho simples. Assumindo a dimensão da crítica, envolvendo os setores populares e desenvolvendo atividades coletivas, a extensão na área rural adquire a dimensão do popular e pode ser caracterizada como trabalho social útil. Isto possibilita um avanço para além de vários receituários sobre extensão, superando, por exemplo, as perspectivas anteriores. Extensão como trabalho social é criadora de produtos culturais. Tem origem na realidade humana e abre a possibilidade de se criar um mundo, também, mais humano. É o trabalho social que transforma a natureza, criando cultura. Assumindo a dimensão do popular, a extensão transpõe os muros institucionais superando o seu exercício apenas a partir dos participantes de determinadas organizações sociais, sobretudo estatais. Adquire, como trabalho social, a dimensão de exterioridade abrangendo ações educativas em movimentos sociais e outros instrumentos organizativos da sociedade civil ou mesmo a partir do Estado. Como trabalho social útil, direcionado aos setores populares, a extensão popular realiza-se no conjunto das tensões de seus participantes em ação e da realidade objetiva. Impulsiona, inclusive, a busca por conhecimentos novos. “Um trabalho com o qual se buscam objetos de pesquisa para a realização da construção do conhecimento novo ou novas reformulações das verdades existentes” (Melo Neto, 1997: 30). Nessa perspectiva, a extensão contém uma metodologia de trabalho social que desenvolve uma visualização maior das contradições do modo de produção dominante, mesmo que os trabalhadores tenham pouca escolaridade e baixa qualificação, elementos promotores de exclusão, sobretudo nesses setores populares. Para Prestes (1998: 5), podem-se vislumbrar novas frentes de produção econômica, talvez, voltadas ao mercado informal. “São estas novas formas culturais, emergidas nos setores populares e voltadas a um tipo de 54
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produção setorizado que oferecem possibilidades de construção de iniciativas econômicas alternativas e inovadoras dos excluídos”. A efetivação de ações educativas pautadas também por princípios éticos, com preocupações voltadas às maiorias sociais, será conduzida no sentido de garantir que alternativas sejam possíveis, inibindo modelos de produção que só mantêm ou fortalecem os mecanismos de exclusão. É preciso ações educativas na realização da extensão que, pautadas no respeito às individualidades do outro, possam garantir o desenvolvimento das narrações históricas das experiências dos participantes. Segundo Vasconcelos (1998: 16), essas narrações, ao lado do envolvimento com a história, expressa uma forma de teorização que, “ao contrário da maioria das formulações mais acadêmicas, conseguem preservar os aspectos de subjetividade, de irracionalidade e de coincidência que existem na vida social”. São, portanto, ações educativas em extensão popular capazes de apresentar sua opção pelo trabalho social útil voltado à organização dos setores populares da sociedade, no sentido, inclusive, de sua autovalorização. Segundo Sales (1998: 8), os trabalhadores “ainda se entregam muito a salvadores da pátria. Acreditam mais em leis feitas pelos adversários do que em suas próprias lutas, quando teriam melhor resultado se batalhassem para ser governo e não para ter governo”. Na busca da modernidade, as ações educativas presentes na extensão com a dimensão do popular voltam-se para uma ética dos fins e dos meios, resgatando-se a ética na política. Nesse sentido é que se pode desenvolver o trabalho social voltado ao exercício da democratização de todos os setores da vida social, com a promoção da participação popular e de todos os envolvidos em extensão, incentivando, inclusive, a educação aos direitos emergentes das pessoas. Pode-se desenvolver um conjunto de princípios éticos, norteadores de práticas extensionistas, que vislumbre os seguintes aspectos: a compartilhação dos conhecimentos e das atividades culturais; a promoção da busca incessante de outra racionalidade econômica internacional; a comunicação entre indivíduos, o diálogo, a responsabilidade social, direitos iguais a todos, respeito às diferenças e às escolhas individuais ou grupais, novos elementos que potenciem a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas. São, portanto, princípios éticos que podem ajudar na construção de uma outra cultura política através da extensão, também nas áreas rurais.
Referências MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária: uma avaliação de trabalho social. Série Extensão, Doc. 18. Editora Universitária/UFPB, João Pessoa, 1997. __________. Velhos e novos liberais. Conceitos Revista da Adufjp/PB. João Pessoa, 2000. MELO NETO, José Francisco de & SCOCUGLIA, Afonso Celso C (Orgs). Educação popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB. 1999. PRESTES, Emília Maria da Trindade. Educação popular, trabalho, políticas públicas e problemas regionais. João Pessoa, 1998. (10 p. mimeo). SALES, Ivandro da Costa. Educação popular: uma perspectiva, um modo de atuar. In: Melo Neto, José Francisco de & Scocuglia, Afonso Celso C (Orgs). Educação popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB. 1999. SOUSA, Nilson Araújo. O colapso do neoliberalismo. São Paulo: Global, 1995. VASCONCELOS, Eymard Mourão. Educação popular em tempos de democracia e pós-modernidade: uma visão a partir do setor saúde. In: Educação popular: outros caminhos. Melo Neto, José Francisco de & Scocuglia, Afonso Celso C. (Orgs). João Pessoa: Editora Universitária/UFPB. 1999.
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TEXTO 7 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E A CONSTRUÇÃO DO CURRÍCULO
A organização do currículo nas escolas, independentemente do nível das mesmas, recomenda várias tentativas de busca de elementos que possam contribuir para a sua composição. Os elementos de ensino já fazem parte desse processo. O conhecimento gerado pelas pesquisas é, também, constituinte de currículo. Então, é de se perguntar: será possível alguma relação dessa construção curricular com a extensão universitária? A perspectiva deste trabalho é positiva tentando mostrar essa existência, ao propor uma visão de extensão e de currículo, nos marcos da categoria teórica trabalho. Os estudantes argentinos e mexicanos, na segunda década do século passado, viram ligação direta da universidade e da sociedade por meio da extensão universitária, uma dimensão da universidade. Essa ligação externar-se-ia pela divulgação da cultura às classes populares, com destaques para os problemas nacionais, para a inserção de segmentos universitários nas lutas sociais, objetivando as mudanças necessárias. A extensão universitária fora apresentada como um elemento adicional às lutas pela unidade latino-americana e a serviço de ações políticas que fossem contrárias a todo tipo de ditaduras, bem como, ao imperialismo norte-americano. Com esta mesma perspectiva, os estudantes brasileiros assimilaram as mesmas idéias como importante para a difusão da cultura e da integração da universidade ao povo, com a ênfase para a sua sapientia. No início da década de 60 do século passado, a União Nacional do Estudantes (UNE)16 declara, durante o Congresso de Salvador, a importância de serem firmados compromissos da universidade com as classes trabalhadoras; a necessidade de que a universidade abra-se ao povo, e a promoção de um conhecimento que esteja pautado pela realidade e pela conscientização das massas populares. A extensão universitária, na Inglaterra e nos Estados Unidos, esteve associada ao ideário da disseminação de conhecimentos técnicos, à prestação de serviços para os ausentes da instituição universitária, com a conseqüente cobrança desse tipo de trabalho, ou ainda, ao desenvolvimento de novas técnicas para a produção, notadamente, para a área rural. Crescem, hoje, as perspectivas de atendimento ao campo tecnológico em geral, com os programas de „disque universidade‟. Um serviço que se presta ao atendimento imediato aos problemas técnicos que possam desafiar as empresas, solicitando a contribuição das universidades para possíveis soluções por meio de seus quadros docentes. O Fórum de pró-reitores de extensão das universidades públicas brasileiras, nas últimas duas décadas, passou a entendê-la como o nascedouro e o desaguadouro da atividade acadêmica. Como nascedouro, abre-se uma perspectiva de como serão absorvidos os problemas da realidade para a composição dessas atividades acadêmicas. Como desaguadouro, pode-se pensar a quem serão dirigidas? Parece que se pode completar com a visão oficial naquelas décadas, em que essas atividades seriam traduzidas em diferentes modos, isto é: as assessorias e consultorias, o atendimento a setores sociais carentes e como estágios curriculares.
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A União Nacional dos Estudantes (UNE) promove este Congresso em Salvador, contando com a importante colaboração intelectual do filósofo Álvaro Vieira Pinto.
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Há outras formas de se ver as relações da extensão com o currículo? É possível, a começar pela maneira freireana de representá-la como comunicação. Aspectos existem, todos proveitosos para a composição de um currículo. Pensa Freire que, pela comunicação, a atividade extensionista estará contribuindo para a superação da dimensão bancária domesticadora da educação. A comunicação cobrará aquilo que vai ser comunicado, bem como, a quem se destina tais objetos de comunicação. Essa maneira de representação conduzirá ao encontro de elementos que, necessariamente, são construtos para a organização curricular nos diversos níveis educacionais, sejam formal ou popular. Esta possibilidade conduz a extensão para expressar o próprio processo educativo, cultural, científico e tecnológico. Adquirirá a dimensão articuladora do ensino e da pesquisa, procurando indissociar e viabilizar possíveis ações transformadoras da universidade e sociedade. Tornarse-á o elemento que cataliza e proporciona certa empatia para uma leitura cultural da universidade, das atividades desenvolvidas na construção da identidade de si mesma, como instituição, e a do próprio povo. Extensão vem sendo efetivada por meio de cursos de treinamento profissional, estágios ou atividades que se destinem ao treinamento pré-profissional de pessoal discente. Concretiza-se pela prestação de consultoria ou assistência às instituições públicas ou privadas. Há o atendimento direto à comunidade por meio de seus órgãos administrativos de ensino, pesquisa e de serviços. Viabiliza e sugere iniciativas de natureza cultural. Contribui, ao deslocar o eixo da discussão para a realidade estabelecida, com novos estudos e pesquisas. Enfim, pode dar estímulo à publicação de trabalhos científicos e de interesse cultural, animando a criação literária, artística, científica e tecnológica. Proporciona, inclusive, em seu papel de ser pública, a articulação com o meio empresarial e, sobretudo, com o próprio Estado, no fortalecimento do público. Tudo isto se consolida em processos educativos. Todos, também, constituem-se em componentes intrínsecos da organização de um currículo, viabilizando a ação transformadora educativa que passa a ser não mais uma mera abstração. Modela-se em práticas, alicerçadas por metodologias que trazem consigo procedimentos incentivadores à participação dos envolvidos nesse processo, definindo-se pela aprendizagem dessa participação e direcionadas às maiorias „silenciosas‟. Exercita todos os ouvidos aos reclamos e às energias potencializadoras de implementação de decisões, buscando outros modos de pensar e agir dessas maiorias. A construção de um currículo contém a oportunidade de uma práxis elaboradora de um conhecimento acadêmico, permeado das contribuições dos docentes, dos discentes e, também, das possibilidades de troca de saberes sistematizados, acadêmicos ou populares. Este processo dialético de teoria e prática conflui para uma outra visão de mundo em que a extensão pode ser vista, efetivamente, como um trabalho social que tem uma expressa utilidade e com uma explícita intencionalidade. Configura-se e concretiza-se como um trabalho social útil, imbuído de uma intencionalidade de por em mútua correlação o ensino e a pesquisa. É social, pois não comporta o mero trabalho individual e sim, o coletivo; é útil, considerando que esse trabalho deverá expressar algum interesse no atendimento a uma necessidade humana. É permeado de variadas dimensões curriculares, inclusive, quando apresenta a intenção de promover o relacionamento entre o ensino e a pesquisa. Por meio desse diálogo, portanto, pode cumprir o seu papel acadêmico, contribuindo, efetivamente, para a produção do conhecimento, dimensão importante na construção do currículo. A extensão, situada como um trabalho, faz ver que o humano, diferentemente dos outros animais que se guiam pelo instinto, atua sobre a natureza de forma diferenciada, modificando-a e modificando também a si mesmo. É essa capacidade que o distingue dos demais animais, ao superar a condição de animalidade de sua espécie. Ao defrontar-se com a natureza, ele realiza, a partir dela própria, uma síntese do particular com o universal. É o trabalho que traduz o significado da ação social, suas limitações, suas possibilidades e 57
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conseqüências, sem nenhum recurso metafísico. Mesmo sendo um ponto de partida, é sobre essa base natural que se elevam as relações sociais da espécie humana. O trabalho toma dimensão social já a partir da relação estabelecida com a natureza. Em Marx, observa-se que esse estabelecimento de relações sociais na produção indica o caráter social, indissociável, que acompanha o processo de trabalho. Com isto, supera a compreensão do mesmo como simples referência primeira humana com a natureza, passando a se realizar como processo constituído através das relações sociais - trabalho social. A possibilidade de se entender extensão como trabalho social opõe-se à visão fragmentada do trabalhador no processo produtivo, no modo de produção capitalista, determinada pela divisão social do trabalho. O conhecimento da totalidade do processo é transferido para o capital, representado, sobretudo, pela classe social dominante: a burguesia. A posse desse conhecimento reforça as estruturas de dominação que estão inseridas nas relações sociais de produção. Vai garantir, além disso, pelo lado do capitalista, a reprodução das relações de produção, considerando que esse modo de produção se funda na separação entre a propriedade do trabalho e a dos meios de produção. Esta separação impõe ao trabalhador a manutenção de sua posição na estrutura das relações de produção, tendo em vista que a sua sobrevivência estará garantida enquanto ele estiver fornecendo ao mercado a sua força de trabalho, já que esta é seu único bem disponível. Um trabalho social não se exerce apenas a partir dos membros da comunidade universitária: servidores (docentes) e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade, que é a participação dos membros da comunidade em movimentos organizativos, sejam dirigentes sindicais ou mesmo de associações... Numa dimensão „biunívoca‟ para a qual confluem membros da universidade e participantes desses movimentos. Extensão, como trabalho social, passa a ser agora exercida pela universidade e pela comunidade sobre a realidade objetiva. Um trabalho co-participado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da realidade mesma. Nesta, buscam-se objetos de pesquisa para a realização da construção do conhecimento novo ou reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados serão os constituintes de outra dimensão da universidade: o ensino. É um trabalho que se realiza na realidade objetiva, sendo exercido por membros da comunidade e membros da universidade. Por meio dele, buscam-se objetos para a pesquisa e, também, para o ensino em um movimento dialético de construção de um currículo. Como trabalho social, a atividade extensionista expressa-se sobre a realidade objetiva. Essa ação é responsável pela geração de um produto resultante da parceria com a comunidade e que a ela deverá retornar. Esta é outra dimensão fundamental caracterizada como devolução de suas análises da realidade à própria comunidade ou a seus movimentos sociais organizados, expressando, também, os caminhos que conduzem à organização curricular. A devolução dos resultados do trabalho social à comunidade caracteriza a universidade como possuidora de novos saberes ou saberes rediscutidos, os quais serão utilizados pelas lideranças em seus movimentos emancipatórios e reivindicatórios. Isso faz acreditar na extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica, também fundamental, que é a busca de superação da dicotomia entre teoria e prática. Como expressão dessa posse de conhecimentos, mostra-se possível atuar na dimensão política da construção curricular, direcionando-se as ações políticas aí resultantes em possibilidades de ampliação da hegemonia dos setores subalternos da sociedade. Um trabalho social é útil ao desvelamento das ideologias dominantes e a serviço da organização dos trabalhadores. Vai construindo-se, assim, uma nova estratégia da função social extensionista, a favor da cultura das classes subalternas. O trabalho desenvolvido passa a identificar-se com o trabalho na construção do currículo. Sendo a escola, um aparelho de hegemonia, o trabalho conduzido pela ação extensionista e aquele gasto pelo processo de organização do currículo podem ser um mesmo 58
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trabalho, diferenciado do ponto de vista técnico, viabilizando, em ambos os casos, a direção para um outro projeto de sociedade. A extensão universitária e a organização curricular como um trabalho17 não podem realizar-se, adquirindo um papel alienante, possibilidade existente inclusive ao se assumir esta dimensão. Como escapar da alienação nesse tipo de fazer acadêmico, se o trabalho alienado é possível? Como o trabalho adquire essa dimensão? Nessa busca, o seu entendimento defronta-se com os conceitos utilizados pela economia clássica, tais como: a propriedade privada, os salários, os lucros e arrendamento, a competição, o conceito de valor de trabalho, a separação do trabalho, capital e terra, como também a divisão do trabalho. É sobre a base empírica da economia clássica que se pode orientar para uma crítica. Existe, portanto, uma constatação feita pelo próprio Marx de que na perspectiva da economia clássica e, sobretudo, no capitalismo, o trabalhador afunda até ao patamar da mercadoria. Uma mercadoria das mais deploráveis, pois a sua miséria aumenta com o poder e o volume de produção. Há uma constante desvalorização do mundo humano na razão direta do aumento do valor do mundo das coisas. Destaca que a competição estabelecida no capitalismo gera o acúmulo de capital em poucas mãos, restaurando o monopólio. Aqui, aparece um traço fundamental distanciador das concepções anteriores de trabalho(economia clássica), cuja preocupação estava voltada à dimensão da produção de mera mercadoria, ou como atividade externa ao homem e geradora de riqueza. Toma corpo o mundo humano ou a dimensão humana do trabalho. Esta surge como um elemento novo, com uma dimensão filosófica fundante dessa categoria e da perspectiva de se vislumbrar a extensão num campo teórico e de realizações sem a alienação. A organização de um currículo, dimensionada nos marcos do trabalho, passa pelas mesmas dimensões desse campo teórico. O entendimento como trabalho social e útil conduz à sua compreensão provida da dimensão humana e da sua essência. O trabalho, portanto, além de criar bens, produz a si mesmo e ao trabalhador como mercadoria. Como um trabalho, tanto o da ação extensionista como o da organização do currículo, só terá significado se estiver voltado para o resgate da dimensão humana do mesmo. É o trabalho como atividade racional humana na produção tanto de bens materiais como de bens espirituais. Assim, inicia-se a formulação do conceito de trabalho alienado e, conseqüentemente, de alienação. O objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, passa a não mais pertencer ao produtor. Passa a se lhe opor como um ser alienado, tornando-se uma força independente do próprio produtor. O trabalho humano é incorporado pela coisa física e modificado também nela, sendo esse produto a sua objetificação. Nesse exercício de se realizar, dá-se, simultaneamente, a objetificação. A execução do fazer extensão e currículo – um trabalho - pode aparecer como uma perversão do trabalhador, daqueles envolvidos nas atividades de extensão e do currículo. A objetificação do trabalho, dessa maneira, converte-se em perda e servidão em relação ao objeto – a própria alienação. É um mecanismo em que o trabalhador não só perde o objeto, resultado de seu trabalho, como também coisas que lhe são essenciais, como seu próprio trabalho e, até mesmo, sua vida. Tudo isso é decorrente do fato de o trabalhador relacionar-se, agora, com o produto que lhe é alienado. Isto remonta ao fazer extensão e à organização de um currículo como atividade geradora de um produto, podendo ser o conhecimento, mas que exige o envolvimento dos que atuam nessa produção, personagens da universidade e da comunidade e, ainda, a posse do produto por todos os seus produtores.
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Esta discussão teórica sobre o trabalho não é uma novidade para a filosofia nem para a teoria econômica. Não é criação do século XIX, posto que foi apresentada em séculos anteriores. É a partir da concepção de trabalho contida nas obras dos economistas políticos, considerados clássicos, como Ricardo e Smith, bem como nas formulações idealistas dos filósofos alemães, destacando Hegel, que Marx começa a desenvolver sua crítica sobre a formulação teórica desses pensadores e de uma forma mais ampla, sobre o conceito de trabalho.
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Nesse relacionamento entre produtor e objeto alienado, o trabalhador ou o profissional da universidade (estudante ou servidor) não pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensorial. E este é o material onde ocorre a concretização do trabalho, onde o produtor atua e por meio de tal ação produzem-se as coisas. O trabalhador converte-se em escravo do seu objeto. Essa alienação vai expressar-se através da seguinte compreensão: quanto mais ele produzir, menos terá para consumir; quanto mais ele produzir, mais perderá seu valor. A análise desenvolve-se sobre o trabalho, mas agora como fruto intrínseco entre trabalhador e produção. Assim, a alienação passa a ser vista, ao externar-se frente ao resultado da objetificação e, também, frente ao processo de produção, dentro da própria atividade produtiva, ocorrendo no próprio ato da produtividade. Essa alienação não é uma simples abstração, uma vez que se caracteriza de várias maneiras. Em sendo parte da natureza do produtor, com a objetificação, o trabalho externa-se ao seu produtor. Passa a apresentar-se não como um sentimento de bem-estar, mas de sofrimento, revelando-se não um ato voluntário, mas uma ação imposta e forçada e, no ambiente da escola, tem-se a reação por parte dos estudantes na aquisição de conhecimentos que também lhes são alienantes. Ao invés de se constituir em algo gerador de satisfação de uma necessidade, mostra-se apenas meio para satisfazer outras necessidades, sobretudo, porque pertence a outros e não mais ao trabalhador. Tudo isto dimensionará o trabalho alienado com as seguintes características: a primeira destaca o relacionamento do trabalhador com o seu produto, expressando-se como objeto que lhe é estranho e que o domina; a segunda diz respeito à relação do trabalho como ato de produção dentro do próprio trabalho, caracterizando-se como uma auto-alienação. A partir daí, introduz-se uma terceira característica, gerada das anteriores, que é a não percepção de que o humano é um ente de espécie vivente, atual, universal e livre. A dimensão de universalidade do humano precisará estar presente no trabalho extensionista e curricular, considerando a sua base física. Nessa base, a espécie humana vive da natureza inorgânica, a qual torna o homem mais universal que um outro animal. Há, portanto, todo um movimento teórico de demonstração dessa universalidade, expresso na prática como um objeto material e, também, como um instrumento de sua atividade vital. Assim, pode afirmar-se que a vida tanto física como mental do homem e a natureza são interdependentes. Significa dizer que a natureza é interdependente em si mesma e o homem é apenas parte dela. Além disso, como qualquer outra espécie na natureza, o homem é um produto dessa natureza, sendo também por ela limitado. Mas, ao homem, é possível superar os limites impostos e, assim, subordinar ao seu poder a própria natureza. Ao homem, está reservada a capacidade de mudança desse conjunto denominado de corpo inorgânico. É isto, inclusive, que o distingue como espécie das demais espécies de animais. A vida produtiva é, portanto, a vida da espécie. Observa-se que é no tipo de atividade vital em que reside o caráter de uma espécie, o seu caráter como espécie. Nesse sentido, o caráter da espécie dos seres humanos evidencia-se pela atividade livre e consciente. O animal, como se sabe, não distingue a si mesmo de sua atividade vital. Ele é sua própria atividade. Pela extensão ou pelo ordenamento curricular, isto não pode ocorrer, simplesmente. Essa atividade humana poderá ser considerada como uma atividade vital, isto é, um objeto tanto de sua vontade como de sua consciência. Uma atividade que exige que seja consciente, distinguindo o trabalho da extensão e do currículo das tantas outras atividades vitais de animais ou mesmo de humanos, constituindo-o como um ente-espécie. Uma atividade que precisa ser do indivíduo e cultivar a liberdade. Em não sendo entendida como uma atividade livre, esse fazer extensionista ou currícular inverte a relação, pois se manifesta como trabalho alienado. Este só terá sentido unicamente como um meio para a sua existência. O homem é um ente-espécie, exatamente por seu trabalho exercido sobre o mundo objetivo. Essa 60
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produção é, em conseqüência, a sua vida ativa como espécie e, graças a ela, a natureza apresenta-se como trabalho e realidade do ser humano. Assim, pode-se definir o objetivo do trabalho em extensão e na construção do currículo como um trabalho que aproxima o produto do trabalho humano de si mesmo, na busca incessante de superação da alienação estabelecida. A ser mantida essa separação, o humano pode passar a existir não mais como ser humano, podendo, portanto, não ter mais emprego ou salário e, assim, morrer à míngua. Um trabalho social não pode conduzir a uma negação do homem. Na visão de trabalho social e útil, tanto a extensão ou o arranjo curricular são um ato educativo e escolar, estritamente promotor da positividade do humano. O trabalho, assim, revela-se também fundante para a extensão e para o currículo, pois se constitui como o resgate da dimensão humana do próprio trabalho com a superação daquilo que está gerando essa negação. Isso se torna possível com a superação da propriedade privada, possibilitando-se que o processo de trabalho passe a produzir não só objetos materiais como o próprio homem, a si mesmo e aos outros homens. É uma existência que tem o homem como sujeito, assentando-se como ponto de partida e resultado desse movimento. Havendo a produção do conhecimento pelo trabalho extensionista e a conseqüente posse do mesmo pelos participantes, resgata-se a sua dimensão social. A extensão estabelecese como um trabalho social, determinando-se como expressão de caráter social, porém como caráter universal de todo esse movimento, em que a sociedade, ao mesmo tempo que produz o humano, também é produzida por ele. Esse movimento altera a existência natural do homem a sua própria existência humana. A natureza, por sua vez, também se prova humana para ele. A sociedade, como conseqüência, é expressão do produto da união entre a natureza e o homem, realizando um naturalismo no próprio homem e um humanismo na própria natureza. Assim, a extensão só terá um papel importante no âmbito da instituição universitária e como uma possibilidade teórica, caso venha a se constituir como um trabalho em condição de contribuir para a humanização do próprio homem. Mas, estas são atividades contidas em todo o processo de rearranjo curricular, expressão de elementos de conhecimento, transformando o homem não mais em mercadoria, mas em humano mesmo. Todavia, que tipo de trabalho metodológico poderá ser utilizado na produção desse conhecimento, vindo contribuir para que as ações técnicas colaborem para superar a alienação? Como ponto de partida, há de se convir que as possíveis metodologias que vão nessa direção não carecem de fundamentação do tipo: projetar algo ao povo pela cultura universitária, nem de preocupações abrangentes, sem possíveis encaminhamentos para as questões sociais que estão no entorno da universidade ou escola. Aqueles fundamentos, expressos por esses desejos, reservam-nas um papel de transmissora do saber e dos métodos de ensino e pesquisa, mesmo que manifestem preocupação com as necessidades e fins sociais. O povo, os trabalhadores, contudo, permanecem silenciosos. Extensão e o currículo, na perspectiva da produção do conhecimento, não podem contemplar conceitos que se desenvolvam em um único sentido - universidade para o povo ou escola para o aluno/comunidade. Esta visão não permite novas definições ou possibilidades, ao anular o espaço da contradição, uma vez que os intelectuais da universidade, professores, alunos e servidores, estabeleceram tudo. A atividade de extensão ou curricular terá significado quando interpretada como produto da criação e recriação de conhecimentos que caminhem na direção das mudanças. A tarefa passa a ser a identificação daquilo que deve ser pesquisado e as suas finalidades. Destaque-se a necessidade da produção do conhecimento e não, simplesmente, a promoção de uma relação entre saberes acadêmicos e saberes populares. A busca por produção de um conhecimento transpõe a dimensão de troca de saberes. Este trabalho instala os saberes 61
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científicos, tecnológicos, artísticos e filosóficos acessíveis à população e, com a clareza que não será necessário todos freqüentarem os cursos universitários, de extensão ou participar até a última instância definidora do currículo. Desse ponto de vista, vislumbram-se a extensão e o currículo, expressão de um trabalho que se volta à produção do conhecimento novo, dando um papel social a esse produto. Observa-se, ainda, que a sua ação resultante é uma ação deliberada, geradora desse produto chamado conhecimento para a transformação social. Ora, é o trabalho expresso como outro conhecimento que se presta para a efetivação dessa possibilidade, sendo constituído a partir da realidade humana, e só com ela é possível criar-se um mundo, também, mais humano. É pelo trabalho que se vai transformando a natureza e criando cultura e inventando outro conhecimento do mundo, agora ampliado, onde o humano atua, refazendo-o. A produção do conhecimento, a partir da realidade objetiva, faz-se no sentido de que a realidade social é determinada por muitos fatores, não sendo dada como obra natural. Há relações específicas que a definem. Nesse sentido, a realidade social é estabelecida e sua explicação só é possível quando for possível apreender suas determinações. Trata-se de um exercício teórico rigoroso, que parte de abstrações na busca das determinações dessa realidade concreta. O concreto real é uma abstração. Parte-se de abstrações na busca das definições daquela realidade, tendo-se, todavia, a mesma como anterioridade nesse processo de procura de novo conhecimento. O concreto é, em suma, expressão de uma síntese em que, pelo exercício do pensamento (abstração), tenta-se o seu desvelamento. Esse movimento expressa um triplo caminho que vai da realidade (concreta) através da abstração; daí, mantendo o concreto, caminha-se para a chegada de um novo concreto, aquele tomado como ponto de partida, estando acrescido de novas abstrações: o conhecimento novo. O caminho das abstrações conduz para a definição de categorias desse real, buscando aquelas mais simples, porém com possibilidade de maiores explicações para a situação em que se encontram aquela realidade e as situações de determinação. Assim, é que se percorre o caminho da produção de abstrações mais gerais com condições explicativas da situação de vida daquela comunidade. São essas mais gerais que possibilitam a compreensão da situação do momento em que se vive, fecundando maiores e melhores explicações históricas das determinações de cada momento histórico dos objetos de estudo. Assim, manifesta-se a definição daqueles instrumentos teóricos, das categorias teóricas que propiciam, finalmente, a enunciação de que modo montar a análise e por onde começá-la, indo ao encontro de respostas às questões levantadas. É um processo de trabalho que alumia a produção do conhecimento social e útil, capaz de tentar superar a realização do trabalho alienado, seja intelectual ou técnico. Este trabalho social gera um produto que apresenta suas contradições, mas que se constituirá, sobretudo, como uma mercadoria social, na medida em que é produzida por aqueles que realizam a extensão ou participam da definição de um currículo. É um produto, seja conhecimento teórico ou tecnológico, que precisa ser gerenciado pelos produtores principais: instituições (agentes da universidade) e comunitários. Isto é importante enquanto conduz à socialização desse produto, caracterizando o momento como o da devolução das análises ou demais produtos aos seus produtores. Como se vê, a expectativa conceitual pelo trabalho adquire uma certa plasticidade. Por ele, estão sendo relacionadas as dimensões constitutivas das ações extensionistas e das práticas curriculares e, ao mesmo tempo, diferenciando-se de cada uma delas. São determinantes, nesses processos da extensão universitária e a organização curricular, a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, se afirmam como uma exigência social. 62
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É marcante o papel do educador nesses tipos de fazeres, a partir desse marco conceitual. Em especial, do ponto de vista da universidade, destaca-se a compreensão de Ivan Targino Moreira18 que vê na extensão, com esta característica, um papel de realce. Para ele, não é no sentido de que seja mais importante do que o ensino ou a pesquisa. É uma posição de destaque dentro da concepção mesma da universidade. O trabalho da universidade e de montagem do currículo não será apenas ensinar o aluno a assimilar conhecimentos ou fazer com que os seus professores produzam grandes pesquisas. A tarefa é fazer com que os alunos assimilem um conhecimento pela inserção na realidade vivida e que esses conhecimentos digam alguma coisa para este momento. Do ponto de vista utópico, a extensão como um trabalho social, útil e com determinada intencionalidade pode conduzir-se como um exercício experiencial, sendo capaz de gerar produtos úteis ao ensino, à pesquisa e à sociedade. Esta é a dimensão utópica da indissociabilidade, possibilitando a socialização do produto do trabalho realizado, tentando superar por meio das técnicas e metodologias a sua separação entre manual e intelectual. É importante haver relevância social, sendo definida por um tipo de conhecimento gerado que esteja voltado ao atendimento dos interesses e necessidades das maiorias, de forma crítica. Isto é possível quando as ações extensionistas estão legitimadas pela comunidade ou mesmo se este trabalho vem abalizado por índices de desenvolvimento da comunidade. É necessário o exercício intransigente da liberdade e, em especial, da igualdade, enquanto um trabalho de extensão ou curricular que proporcione um exercício de ensino e aprendizagem voltado à valorização do humano, expresso pela capacidade de cada um agir por si mesmo, sem qualquer tipo de constrangimento e respeitando o outro. Isto é possível à medida que, no processo, considerem-se a temporalidade e a historicidade dos fatos e que as ações promovam a superação da exploração. Na tomada das decisões, é necessário o respeito às diferenças de opiniões e que as relações entre os agentes envolvidos incentivem a capacidade de cada um tomar a sua própria decisão, sem qualquer constrangimento. Um trabalho que promova a solidariedade, o exercício coletivo e a cooperação fraterna. Essas atividades podem, ainda, mostrar-se como um exercício de participação daqueles que estão envolvidos nas mesmas, contribuindo para a formação do cidadão crítico e ativo. Motivarão todos à participação efetiva nas tomadas de decisão e nas ações recorrentes desses procedimentos. Assim, promoverão a autonomia de cada um, envolvendo-os em processos de capacitação e negociação, superando o idealismo contemplativo e interpretativo da natureza. Isto possibilita, hoje, um novo agir sobre a realidade, gerando novos conhecimentos e possibilidades políticas por meio da extensão e pelo exercício de construção de currículos, na direção das necessárias transformações - a superação de todo e qualquer processo de exclusão promotor de injustiças.
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Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia, da Universidade Federal da Paraíba, tendo sido Pró reitor de Extensão e Ação Comunitária.
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3.2 LIVROS
COLETÂNEA
EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA - diálogos populares -
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Coleção Extensão Popular organizador: José Francisco de Melo Neto Títulos publicados: Extensão universitária - uma análise crítica José Francisco de Melo Neto Extensão universitária - diálogos populares José Francisco de Melo Neto (org.) Títulos a publicar: Extensão universitária, educação popular e autogestão José Francisco de Melo Neto Extensão popular José Francisco de Melo Neto (org.)
Grupo de pesquisa em extensão popular - EXTELAR Apoio: Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários - PRAC/UFPB
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPB)
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José Francisco de Melo Neto (organizador)
EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA - diálogos populares -
João Pessoa Editora Universitária 2002
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA reitor JÁDER NUNES DE OLIVEIRA vice-reitor THOMPSON FERNANDES MARIZ
EDITORA UNIVERSITÁRIA diretor JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES vice-diretor JOSÉ LUIZ DA SILVA divisão de produção JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO divisão de editoração ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR secretário MARINÉSIO CÂNDIDO DA SILVA
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Extensão universitária - diálogos populares -/ José Francisco de Melo Neto, (organizador). - João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2002. 208p. 1. Ensino superior - trabalho de extensão - educação popular. 2. UFPB - trabalhos de extensão. I. Melo Neto, José Francisco de
UFPB/BC Direitos desta edição reservados à: UFPB/EDITORA UNIVERSITÁRIA Caixa Postal 5081 - Cidade Universitária -João Pessoa - Paraíba – Brasil www.editora.ufpb.br
CDU 378
CEP 58.051-970
Impresso no Brasil Printed in Brazil Foi feito o depósito legal
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Em memĂłria de Lenilda Soares Cunha que faleceu prematuramente. A extensĂŁo perde.
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SUMÁRIO
Prefácio ............................................................................................. Extensão universitária: bases ontológicas José Francisco de Melo Neto ............................................................ Extensão universitária brasileira: as tensões das propostas acadêmicas Lenilda Soares Cunha ....................................................................... Educação de jovens e adultos e extensão universitária: primos pobres? Aproximações para um estudo sobre a educação de jovens e adultos na universidade Timothy Denis Ireland....................................................................... Fisioterapia na comunidade: a possibilidade de mudanças na formação acadêmica a partir de um projeto de extensão Kátia Suely Q. S. Ribeiro .................................................................. Extensão como eixo de articulação de ensino e a pesquisa em educação de jovens e adultos: o combate ao analfabetismo em Alagoas Tânia Maria de Melo Moura ............................................................. Educação popular e extensão universitária: diálogos entre saberes sobre educação popular Maria Helena Serrano de França Lins ............................................. Extensão universitária: possibilidades de diálogo entre o saber acadêmico e o saber popular Joselita Ferreira de Lima.................................................................. Extensão universitária e saber popular Roberto Mauro Gurgel Rocha...........................................................
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Prefácio A extensão universitária, como canal para o relacionamento entre universidades e a sociedade, tem sido objeto de muitos artigos, monografias, dissertações de mestrado ou teses de doutorado. Alguns dos estudos realizados abordam a questão procurando enfatizar a relação com o saber popular, o que garante uma abordagem rica e que configura a possibilidade de um diálogo com a grande maioria da população brasileira – os pobres, os miseráveis, os excluídos, enfim. Cada estudo realizado tem um sabor de novidade, na medida em que, além de atualizar o tema, possibilita o anúncio de novas formulações em relação ao extensionismo universitário. Neste sentido, já podemos reputar um mérito à Universidade Federal da Paraíba - UFPB, que, através do seu Programa de Pós-Graduação em Educação, alimenta um Grupo de Pesquisa em Extensão Popular vinculado à linha de investigação sobre: Educação, Estado e Políticas Públicas. A Extensão, adjetivada como popular, dá um sentido especial ao trabalho, levando-se em conta que a UFPB situa-se no Nordeste, a região mais pobre do Brasil, certamente a mais mal tratada pelas políticas governamentais oficiais que aqui chegam com um caráter assistencialista e residual. O Grupo de Pesquisa em Extensão Popular, segundo a sua Carta de Propósitos visa: O estímulo ao desenvolvimento de projetos que fomentem a interação entre iniciativas de extensão popular; A análise crítica de experiências e formulações teóricas, no campo da extensão, possibilitando a interdisciplinaridade e o enriquecimento da formação acadêmica dos participantes do grupo; A produção teórico-acadêmica voltada à extensão popular, resultante de pesquisas e de estudos desenvolvidos pelo grupo; A perspectiva de que o produto da realização de projetos de extensão é fundamento ontológico do ensino e da pesquisa na universidade; A discussão e o fomento da extensão na UFPB, no sentido de seu interrelacionamento com o ensino e a pesquisa; A manutenção do debate sobre o papel social da universidade; O incentivo a autonomia de projetos voltados a ações educativas promotoras da cidadania crítica e ativa. Para o Grupo de Pesquisa em Extensão Popular: “a pesquisa é compreendida como a investigação a respeito daquilo que está se apresentando de forma interrogativa, convidando qualquer um para desenvolver a reflexão crítica sobre a questão surgente. É um trabalho do pensamento e, necessariamente, da linguagem, no sentido de descortinar aquilo que estava encoberto. É, ainda, uma visão de totalidade dessas realidades enquanto que se encaminha para sínteses. Estas, contudo, continuam abertas a novas interrogações, na perspectiva de mudanças, desenvolvendo um sistemático enfrentamento a barbarização social e política de um povo. O desenvolvimento da pesquisa, assim compreendido, pode ser realizado por um grupo de pessoas – um grupo de pesquisa – aglutinado em torno de interrogações comuns, expressando o „espanto‟ diante das mesmas, buscando possíveis contribuições de seus desvelamentos”.
As interrogações e o espanto são componentes essenciais para a compreensão do mundo atual, onde a investigação não pode se contentar com a realização de estudos feitos de 70
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forma descontextualizada, sem a possibilidade de encaminhamentos práticos ou do suscitar de novos estudos. O Grupo de Pesquisa em Extensão Popular leva esta questão a sério e em sua atuação busca proceder uma articulação permanente entre teoria e prática, entre o ato de pesquisar e a aplicação dos resultados da investigação. A população é vista como sujeito e não como objeto, o que implica no uso de metodologias participativas e na valorização do saber popular, em seu devido lugar com a riqueza da experiência do cotidiano. Como toda boa experiência, o Grupo de Pesquisa em Extensão Popular tem seu espírito animador na figura do Professor José Francisco de Melo Neto (Zé Neto), um educador competente que faz da docência e do contato com o povo oportunidades de um aprendizado constante. A contribuição de Zé Neto para a discussão sobre extensão é mostrado em outro artigo intitulado “Extensão universitária como trabalho social útil” que bem apresenta a sua peculiar forma de pensar a extensão. Há no texto uma análise histórica, uma apreciação conceitual e uma avaliação das práticas de ação e extensão, presentes nos Projetos: Zé Peão, Qualidade de Vida, Praia de Campina e Centro de Referência da Saúde do Trabalhador (CERESAT). José Francisco de Melo Neto contribuiu, ainda, nesta coletânea com um trabalho sobre „Extensão universitária: bases ontológicas‟, apresentando o que é extensão. Os demais estudos que fazem parte desta Coletânea ampliam o raio de discussão sobre a extensão popular e da extensão universitária, estando assim discriminados: Extensão universitária brasileira: as tensões das propostas acadêmicas, de Lenilda Soares Cunha; Educação de jovens e extensão universitária: primos pobres? (Aproximações para um estudo sobre a educação de jovens e adultos na universidade), de Timothy Denis Ireland; Extensão como eixo de articulação entre o ensino e a pesquisa. (O combate ao analfabetismo em Alagoas), de Tânia Maria de Melo Moura; Extensão universitária: possibilidades de diálogo entre o saber acadêmico e o saber popular, de Joselita Ferreira de Lima; Educação popular e extensão universitária: diálogos entre saberes sobre educação popular, de Maria Helena Serrano de França Lins; A fisioterapia na comunidade: a possibilidade de mudanças na formação acadêmica a partir de um projeto de extensão universitária, de Katia Suely Q. S. Ribeiro. São trabalhos significativos que muito vão contribuir para a reflexão teórica e a prática da extensão universitária brasileira.
Roberto Mauro Gurgel Rocha
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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: bases ontológicas José Francisco de Melo Neto A discussão sobre universidade situa-se num quadro de debate político que se constitui a partir de um espaço, no campo teórico, onde vários projetos mantém permanente disputa. Muitos desses projetos apresentados à sociedade, mais das vezes, tornam-se sem efeito naquele momento específico, diante da resistência de diferenciados setores da sociedade. Outros, às vezes, voltam à cena política. Nessa dinâmica de luta entre projetos políticos para a universidade no país, pode-se lembrar o projeto de universidade nos célebres acordos MECUSAID. Muitas das questões levantadas e propostas insistem em permanecer vivas e outras, inclusive, já estão sendo implementadas com a política atual do Estado. Nesse embate, entre outras questões voltadas ao ensino, à administração universitária e à pesquisa, está a extensão universitária . Este texto, contudo, não abordará o debate em torno da extensão no âmbito dos diferentes projetos (MEC e ANDES, FASUBRA) em luta no seio da sociedade. Aqui, será tratada a questão da extensão universitária do ponto de vista de sua ontologia, ou, as bases de suas diferenciadas percepções. Enfim, uma discussão que busca resposta a questão: o que é extensão universitária? Os primórdios da extensão universitária aparecem com as universidades populares da Europa, no século passado, que tinham como objetivo disseminar os conhecimentos técnicos, segundo vários autores, como Rocha (1986), Fagundes (1986) e Botomé (1992). É importante observar os comentários de Gramsci (1981: 17) sobre essas universidades: “Estes movimentos eram dignos de interesse e merecem ser estudados: eles tiveram êxito no sentido em que revelaram da parte dos simplórios um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma forma superior de cultura e de uma concepção de mundo. Faltava-lhes, porém, qualquer organicidade, seja de pensamento filosófico, seja de solidez organizativo e de centralização cultural; tinha-se a impressão de que eles se assemelhavam aos primeiros contatos entre mercadores ingleses e negros africanos: trocavam-se berloques por pepitas de ouro”.
A crítica se refere aos intelectuais que, mesmo desejosos de “servir ao povo”, à classe dominada, teriam um outro papel, que era o de compreender as formas de vida e as propostas da classe trabalhadora. Esquecidos desse papel, ou mesmo por incompetência, esses intelectuais expressavam, segundo a crítica de Gramsci, uma visão dominadora de seus saberes ao pretender “levá-los” ao povo. Além dessas experiências também desenvolveu-se na Inglaterra uma perspectiva de que a universidade precisava contribuir com um maior conhecimento aos setores populares. Apontavam aspectos que podem ser úteis como elementos básicos para a formulação daquilo que vai se chamar, posteriormente, extensão. Ora, como seria possível fazer chegar até à população o conhecimento sistemático da universidade? Isso seria possível através da extensão da universidade até aqueles setores sociais. Mas, foi a partir das experiências americanas, sobretudo naquelas localizadas na zona rural, que surgiram duas novas visões diferenciadas daquelas existentes na Europa: uma visão denominada cooperativa ou rural e outra universitária em geral. Essas visões, contudo, estavam “marcadas” por um certo desejo de “ilustrar” as comunidades. A extensão nas 72
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universidades americanas caracterizou-se, desde seus primórdios, pela idéia de prestação de serviços. Os movimentos europeus de universidades populares, ou a extensão veiculada por eles, diferenciam-se substancialmente das versões americanas. Estas, em geral, resultaram da iniciativa oficial, enquanto aquelas surgiram de esforços coletivos de grupos autônomos em relação ao Estado. A esse respeito, Tavares (1996: 27), afirma: “Visando, por um lado, preparar técnicos e, por outro lado, dispensar o mínimo de atenção às pressões das camadas populares, ainda que cada vez mais expressivas e mais reivindicativas, a extensão universitária se consolida através de cursos voltados para os ausentes da instituição que, sem formação acadêmica regular, desejam obter maior grau de instrução”.
Já na América Latina, a extensão universitária esteve voltada, inicialmente, para os movimentos sociais. Merece destaque o Movimento de Córdoba, de l918. Nesse movimento, os estudantes argentinos enfatizam, pela primeira vez, a relação entre universidade e sociedade. A materialização dessa relação ocorreria através das propostas de extensão universitária que possibilitassem a divulgação da cultura a ser conhecida pelas “classes populares”. Esta foi uma idéia preliminar, que permeou também a organização estudantil no Brasil, a partir de 1938, quando da criação da União Nacional dos Estudantes - UNE. Essa idéia foi determinante para a concepção de extensão veiculada pelo movimento estudantil brasileiro. No Brasil, anteriormente ao movimento estudantil organizado pela UNE, houve experiências de vinculação da extensão com as universidades populares, na tentativa de tornar o conhecimento científico e literário acessível a todos. Com essa perspectiva, no início do século, surge a Universidade Popular da Paraíba e a Universidade Popular de São Paulo, sendo esta a mais importante. Mas, sobretudo com a Universidade Popular de São Paulo, a experiência de extensão, a partir da organização universitária, inicia-se pela promoção de “cursos de extensão” veiculadores de conteúdos “positivistas ou de disseminação da cultura da elite” (Rocha, 1989: 7). Na concepção veiculada pelo Movimento de Córdoba, a extensão universitária surge como “fortalecimiento de la función social de la Universidad. Proyección al pueblo de la cultura universitária y preocupación por los problemas nacionales” (Blondy, 1978: 8). Nesse caso, a extensão universitária se desenvolve como uma tentativa de participação de segmentos universitários nas lutas sociais, objetivando transformações da sociedade, sendo esta uma preocupação marcante no movimento de reformas de Córdoba, uma combinação, segundo Rocha (ibid.: 11), da “ideologia nacional-populista então vigente, com uma luta política de combate ao imperialismo, que se traduzia na necessidade de uma aliança panamericana”. Desses ideais, destacam-se dois tópicos constantes na Carta de Córdoba: a) “a extensão universitária entendida como fortalecimento da função social da universidade. Projeção ao povo da cultura universitária e preocupação pelos problemas nacionais; b) a unidade latino-americana e a luta contra as ditaduras e o imperialismo” (ibid.: 13). Inspirações essas já contidas no ideário de extensão voltado para a difusão cultural, sobretudo, para a educação popular - desde o Congresso Universitário, em l908, no México - refletindose no movimento de reformas de Córdoba. E são esses ideais que inspiram a plataforma dos estudantes brasileiros. A UNE, que é referência da organização do movimento estudantil no país, assume essas idéias, de acordo com Rocha (ibid.: 13) ao “elaborar o Plano de Sugestões para uma Reforma Educacional Brasileira”. O ideário de Córdoba está expresso nas funções sociais reservadas para a universidade, assim delineadas: 73
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“ 1) (...) a tranqüilidade e desenvolvimento do saber e dos métodos de ensino e pesquisa através de exercício da liberdade do pensamento, da cátedra, da imprensa, de crítica e de tribuna de acordo com as necessidades e fins sociais; 2) a difusão da cultura pela integração da universidade na vida social popular” (Apud, Poerner, 1979: 328).
A extensão aqui é entendida em termos de difusão da cultura e de integração da universidade com o “povo”. As vias de implementação serão, naturalmente, os cursos de extensão e divulgação de conhecimentos científicos e artísticos. Trata-se de uma concepção que compreende a função da universidade como “doadora” de conhecimento, pretendendo impor uma “sapientia” universitária a ser absorvida pelo povo. A concepção de extensão do movimento estudantil foi sendo divulgada pelas mais diferentes formas em todo o país, através do Teatro da UNE, dos Centros de Debates, Clubes de Estudo, Fóruns, Campanhas para a Criação de Bibliotecas nos Bairros, Agremiações Desportivas das Populações Pobres e, até, Educação Política, com debates públicos, quando a temática era de interesse dos trabalhadores. Em seu Congresso da Bahia (UNE, 1961: 26), ao discutir a Reforma Universitária, a entidade apresenta os traços marcantes da extensão universitária . Esse documento trata de dois aspectos básicos: a análise da realidade brasileira e a análise da universidade no Brasil. No texto, merece destaque o capítulo que trata da Reforma Universitária que, definindo suas diretrizes, passa a assumir um “compromisso com as classes trabalhadoras e com o povo”. Assim, é que se defende a abertura da universidade ao povo, com prestação de serviços e promoção de cursos a serem desenvolvidos pelos estudantes em faculdades. Esses cursos possibilitariam o conhecimento da realidade por eles e, por isso, a universidade - a extensão os levaria à realidade. A universidade teria um papel de “trincheira de defesa das reivindicações populares, através da atuação política da classe universitária na defesa de reivindicações operárias, participando de gestão junto aos poderes públicos e possibilitando cobertura aos movimentos de massa” (ibid.: 56). Caberia à universidade, através da extensão, a conscientização das massas populares, despertando-as para seus direitos. Das diretrizes da Declaração da Bahia depreendem-se as características de uma universidade democrática, marcada pela extensão universitária. O Movimento Estudantil, através das mais diferentes formas, encaminhava suas propostas, principalmente pelos Centros Populares de Cultura - os CPCs da UNE - desenvolvendo ações no sentido de “abrir a universidade ao povo” e, por outro lado, de “levar os estudantes à realidade”. Após 64, a ditadura militar assumiu algumas das reivindicações do Movimento Estudantil, dando-lhes a sua peculiar conotação ideológica1. Inclui como disciplina nos currículos da universidade os estudos de problemas brasileiros. A análise política, contudo, era feita segundo o “catecismo” da ditadura militar dominante e não traduzia, na prática, o significado dado pelos estudantes, a Declaração da Bahia. No tocante à extensão, a ditadura militar criou vários programas de integração estudante-comunidade como o do Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária - CRUTAC - , considerado por Mattos (1981: 108) “um recurso realmente capaz de viabilizar a política de extensão universitária ... “ , sendo relevantes o destaque que teve o programa na estrutura da universidade e as condições, inclusive financeiras, de sua realização. Foram criados o Projeto Rondon e a Operação Mauá, esta vinculada mais diretamente à área tecnológica. Criaram-se tais programas como expressão política de contenção das reivindicações estudantis e de combate às mudanças de base, defendidas no governo de João Goulart. Com isso podiam 1
Ideologia. Ver: Limoeiro Cardoso, Miriam. Ideologia do Desenvolvimento – Brasil: JQ – JK. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2a. ed., 1978. Destacar a partir da temática: A ideologia como problema teórico, p. 39.
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apresentar-se às comunidades rurais como os benfeitores da sociedade organizada que preconizavam. Os estudantes podiam desenvolver atividades profissionais, nesses projetos, ainda que de caráter assistencial, tudo sob rigoroso controle político e ideológico. Observe-se o papel político atribuído à extensão universitária demonstrando como pode também servir ao controle social e político. A universidade pode, dessa maneira, exercer efetivamente uma função social sem estar sob o ponto de vista das classes subalternas. Convém ainda lembrar que, naquele momento, também efetivavam-se duras medidas de repressão sobre a sociedade brasileira e, de forma mais direta, sobre o Movimento Estudantil, vindo desfazer, em conseqüência, o sonho da universidade democrática. Ainda sobre a discussão dessas bases que comporão uma ontologia da extensão ou a idéia de extensão universitária, segundo Fragoso Filho (1984), é algo que vem de fora da universidade. A finalidade principal era, na verdade, o aprimoramento ou desenvolvimento de novas técnicas para a produção, sobretudo nos Estados Unidos. Para ele, a extensão “é um recurso inventado para queimar etapas do desenvolvimento, fazendo parte de um projeto da UNESCO, para os países de Terceiro Mundo. Extensão pode então ser entendida como ação prolongada da universidade junto à comunidade circundante; segundo, como expansão para outra comunidade carente e distante de sua sede, do resultado de sua atividade universitária” (ibid.: 29). Para ele, esta segunda versão também é conhecida por “campi” avançados. O MEC (BRASIL/MEC, 1985: 31) expressa a importância, bem como a conceituação de extensão universitária, através da Comissão Nacional para a Reformulação da Educação Superior. O relatório final dessa comissão menciona que a extensão universitária vem assumindo formas diversificadas e, conseqüentemente, exige uma melhor definição de sua natureza. A extensão universitária tem adotado as mais variadas formas de atividades como: estágios curriculares, trabalhos de assessorias e consultorias, além de atendimento a setores sociais carentes. Isto posto, a comissão recomendou, na época, estudos sistemáticos para uma maior especificação da “natureza e seu significado para o conhecimento da realidade (ibid.: 31). Contudo, propõe que as atividades de extensão universitária busquem assegurar a “difusão dos conhecimentos obtidos; a continuidade dos serviços oferecidos à população; a contínua ação recíproca entre a extensão, por um lado e, por outro, o ensino e a pesquisa” (ibid.: 32). Destaca-se sobre extensão, em relação ao MEC, o relatório do GERES (BRASIL/MEC, 1986: 3), reforçando a Lei no. 5.540/68, em que se estabelece o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, prefigurando esta como elemento associado em igualdade de condições. Mas a formulação sobre a extensão é ausente nesse relatório que, por seu turno, reforça sua compreensão idealizada de universidade, com citação de Karl Jaspers, onde a idéia de universidade vincula-se a de sua independência para “a busca da verdade sem restrições”. Para profissionais da área tecnológica, há uma diferenciação também quanto ao conceito de extensão universitária. Para Alencar (1986: 99); “a extensão universitária apresenta visibilidade quando se formula através de convênios diretos entre universidade e empresa” . Assim, vê a extensão contando com programas dentro de possíveis convênios, apontando para um espectro amplo de atividades que, no campo da tecnologia elétrica, envolve programa de visitas de alunos e professores a empresas; visita de engenheiros e técnicos das empresas às universidades; programas de estágios e até programas de atualização técnica de professores junto às empresas. Trata-se de uma visão em que, utilizando-se um laboratório, por exemplo, se pode fazer extensão através da prestação de serviço tecnológico. Uma solicitação que é formulada a um laboratório por uma empresa e sua resposta a essa demanda vão se constituir numa via de duplo sentido, caracterizando uma atividade extensionista. 75
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Para o autor esta é uma idéia em que se busca a superação da instituição universitária, entendida como tradicional, caminhando-se, assim, na direção de um perfil moderno de universidade. Vislumbra, dessa forma a modernização da universidade através da extensão. A extensão, nessa perspectiva, aparece como “função fim, interligada ao ensino e à pesquisa e voltada para a formação de carreiras tecnológicas, em estreito contato com a sociedade, para servi-la em suas necessidades de progresso e desenvolvimento” (Almeida, 1992: 61). Esses autores atribuem à extensão um papel modernizador único e bastante sonhador, como se o atendimento dessas necessidades só dependesse da extensão. Antes de tudo, deve-se questionar essa modernização perguntando pelo menos a quem ela serviria, mesmo que se realizasse através da extensão. Tem-se também que a proposta de extensão da Universidade de Brasília (UnB: 1989), veiculada pelo Decanato de Extensão, caracteriza a sociedade em um nível incipiente de organização, tendo como conseqüência a falta de consciência pelos seus direitos de cidadania. As solicitações imediatas são as primeiras a serem colocadas, vindo fomentar o assistencialismo e não a autonomia dos setores populares. Nessa situação, a extensão universitária pode direcionar-se para “a autonomia política dos segmentos populares, resgatar sua cidadania e lutar contra o tradicional e nocivo assistencialismo” (ibid.: 58). Durante o XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste (BRASIL/MEC, 1994: 1), a extensão é vista como “um nascedouro e desaguadouro da atividade acadêmica, da qual a pesquisa seria o desenvolvimento das respostas, e o ensino o envolvimento dos estudantes em todas as etapas desse processo ...”. Isto vai implicar a necessária parceria tão propalada nos dias de hoje. Parcerias que se expressarão tanto na dimensão interna como, também, na dimensão externa da comunidade universitária. Tal perspectiva vai abrir a concepção de extensão como “a porta da qual os clientes e usuários têm de bater, quando necessitados” (Sousa, 1994: 16). Para o autor, a extensão tem o papel de construir as “passarelas” para o relacionamento da universidade com a sociedade. A universidade exerce, segundo ele, uma liderança na sociedade, pois ela “faz com” e “faz fazer”. “Amealhar parcerias. E, num mutirão de solidariedade, consegue navegar” (ibid.: 16). Como resultado das deliberações do VIII Encontro Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (BRASIL/MEC, 1994: 3), ter-se-á uma perspectiva de extensão voltada para a cidadania. É a partir do conceito de cidadania que a extensão se externa como um conjunto de direitos civis, políticos e sociais gerando, como conseqüência, deveres do indivíduo para com a sociedade e para com o Estado. Nesse encontro, a universidade é vista como sujeito social, devendo, portanto, inserir-se na sociedade “cumprindo seus objetivos de produtora e difusora de ciência, arte, tecnologia e cultura compreendidas como um campo estratégico vital para a construção da cidadania”. A partir de uma auto-reflexão, a universidade deve possibilitar esse intercâmbio entre si mesma e a sociedade, contribuindo para a construção de uma cultura de cidadania. É diretriz daquele encontro que “as atividades de extensão devem voltar-se prioritariamente para os setores da população que vêm sendo sistematicamente excluídos dos direitos e da compreensão de cidadania” (ibid.: 3). Nesse debate, Rocha (1980) mostra, sinteticamente, as diferentes formulações “equivocadas” sobre extensão, quais sejam: como prestação de serviços, como estágio expressando, as mais das vezes, a agregação da universidade aos programas de governo, opção de captação de recursos, expressão da autonomia do ensino e da pesquisa, como possibilidade de se estudar a realidade e ainda como qualquer atividade que não possa situarse como ensino ou como pesquisa. Analisando aspectos ideológicos do “fazer extensão”, Freire (1976) sugere a substituição do conceito de extensão por comunicação, entendendo que este último traduz muito mais essa dimensão da universidade, superando o conteúdo de uma educação “bancária e domesticadora”, a qual a extensão possa conduzir. 76
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Para Reis (1994), a extensão universitária, no Brasil, vem apresentando duas linhas de ação, refletindo o próprio conceito. Em uma delas, o autor apresenta a extensão centrada no desenvolvimento de serviços, difusão de cultura e promotores de eventos, daí a denominação de eventista-inorgânica. Na outra linha, denominada de processual-orgânica, está voltada para ações, com caráter de permanência presente ao processo formativo (ensino) do aluno, bem como à produção do conhecimento - pesquisa - da universidade. Nessa linha de ação, estão sendo realizadas, em geral, as atividades de extensão por boa parte das universidades brasileiras, com base no conceito de extensão universitária do I Fórum Nacional de PróReitores de Extensão de Universidades Públicas, em Brasília. Nele a extensão foi considerada: “Processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e a sociedade. A extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica que encontrará, a sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será associado aquele conhecimento. Este fluxo que estabelece a troca de saberes sistematizado, acadêmico e popular, terá como conseqüência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira regional; a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizada deste processo dialético de teoria/prática, extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social” (BRASIL/MEC, 1987: 1).
Extensão vem sendo entendida, do ponto de vista de sua ontologia, de seus fundamentos, como práticas, estando aí, a saída para o interagir da universidade com a sociedade nas diversas regiões do país ou de cada Estado, onde se situa a universidade. A extensão se torna “o elemento catalisador e propulsor dessa empatia, e mais, especificamente, a leitura cultural que essa instituição, pode e deve fazer, da sua identidade e do seu povo” (UFPB/PRAC, 1994: 2). Uma declaração, na verdade, de uma instituição que busca tornar-se “vanguarda” dos movimentos da sociedade, entendendo, também, “ser a extensão o caminho mais curto entre a academia e a sociedade que nos sustenta” (ibid.: 3). Mas a extensão pode ser vista, ainda, como destinada a toda a comunidade acadêmica - alunos, servidores não docentes e servidores docentes - como “um processo educativo, cultural, científico e tecnológico que articula o ensino e pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade” (UFPB/CONSEPE, 1993: 1). Esse processo pode ser exercido com um duplo caráter: o eventual e o permanente. O caráter eventual da extensão é compreendido como a realização de atividades esporádicas que estão voltadas ao aperfeiçoamento e à atualização de conhecimento. Visa também a implementação de práticas objetivando a produção técnico-científica, cultural e artística. Essas práticas podem estar voltadas a “serviços educativos, assistenciais e comunitários”. O caráter permanente, por sua vez, é aquele conjunto de atividades já elencado, mas que adquiriram formas sistematizadas e de maior duração em relação ao tempo de execução. A extensão universitária passou a se realizar através de diferenciadas formas. Entre elas, pode-se citar: “Cursos de treinamento profissional; estágios ou atividades que se destinem ao treinamento pré-profissional de pessoal discente; prestação de consultoria ou assistência a instituições públicas ou privadas; atendimento direto à comunidade pelos órgãos de administração, ou de ensino e pesquisa; participação em iniciativas de natureza cultural; estudo e pesquisa em termo de aspectos da realidade local ou regional; promoção de atividades artísticas e culturais; publicação de trabalhos de interesse cultural; divulgação de conhecimento e
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técnicas de trabalho; estímulo à criação literária, artística, científica e tecnológica; articulação com o meio empresarial; interiorização da universidade (ibid.: 2).
O processo de organização e de encaminhamento das atividades de extensão apresentam possibilidades diferenciadas. Organizam-se, às vezes, em Comitê de Extensão, com objetivo de manter discussão permanente sobre as práticas na extensão universitária, sobretudo, buscando, através desse grupo, formular políticas para serem desenvolvidas no âmbito das universidades ou em seus distintos “campi”. É freqüente, com a instalação desses comitês, os discursos apresentarem questões conceituais da extensão como: “... A ligação direta com a comunidade, acreditando no crescimento da UFPB, na construção de uma universidade diferente, com pesquisa de ponta, ensino de qualidade, e a extensão na escuta do que está acontecendo na região, na integração da sociedade e que, independentemente de posições políticas, tem-se que trabalhar para a construção dessa universidade que desejamos” (UFPB/PRAC; 1993: 2).
A instalação de comitês pode promover grupo de discussão sobre questões de extensão, apresentando formas de encaminhamentos com projetos que estão em desenvolvimento e sendo seguidos, em geral, por coordenações de programas e cursos de extensão, de implementação de projetos e eventos no campo cultural, de assistência e promoção de estudantes ou de elaboração de projetos de organização das comunidades e movimentos sociais, além de coordenação para atendimento de demandas de prefeituras. Pesquisas mais recentes2, contudo, no âmbito da extensão universitária, vêm apresentando outras possibilidades conceituais nessa busca ontológica da extensão. Nesse sentido se destaca a possibilidade de se entender extensão universitária como Trabalho Social 3. Elementos ontológicos da extensão como podem fixar-se como uma via de mão única, considerando que nessa compreensão está implícita a concepção autoritária do fazer acadêmico, onde a universidade “sabe” e vai levar algum conhecimento àqueles que “nada sabem” - a população ou a classe trabalhadora. A concepção de extensão como via de mão dupla separa o processo educativo da própria educação, o processo cultural da produção da cultura, bem como o processo científico da própria ciência. Em sendo uma articulação, podese questionar a constituição dessa articulação. Será que existe necessidade de algum ente ou de algo para intermediar ou articular o ensino e a pesquisa? Será a extensão algo ideal capaz de viabilizar uma relação transformadora? É a extensão algo concreto e plausível de determinação ou algo essencialmente idealizado? Enfim, tem sentido o modelo de via de mão dupla? Em uma via de mão dupla, há um momento de tensão nesse passar um ente em uma mão, por outro ente, na outra mão. Que tal imaginar, que esse momento de tensão seja o momento da extensão universitária? Mas este não pode ser tão rápido e não apenas um momento. Sua permanência se apresenta como necessária. Parece que é preciso avançar a partir desses modelos. Talvez, uma mão que segura uma outra mão. Mesmo essa mão que segura uma outra não gera uma permanência, possibilitando, dessa forma, a monotonia e a estabilidade? Extensão será expressão de monotonia? Parece que não pode ser. A compreensão de extensão, como via de mão dupla, destaca um retorno à universidade como se aí estivesse o espaço para a reflexão teórica. Será que apenas na universidade é que está sendo gerada a reflexão teórica? Os participantes das ações de extensão promovem sua reflexão crítica e têm necessidade dela. Não estará sendo gerada uma dicotomia, inclusive espacial, da 2
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Ver: MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária: uma análise crítica.. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. Ver: MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária – uma avaliação de trabalho social. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1997.
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condição de reflexão teórica, ao transladá-la para o espaço da universidade? Pode-se perguntar: será a universidade o lugar, por excelência, para a reflexão teórica? Não será no próprio “locus” de realização das atividades de extensão? Ainda, na compreensão da extensão, como via de mão dupla, está colocado que a produção do conhecimento é resultante do confronto com a realidade, seja brasileira, regional, ... enfim, confronto com a realidade. Será assim, somente, a geração do conhecimento? Ou até questionar: será apenas dessa forma que se interessa o conhecimento produzido numa ação de extensão? Mesmo ao apresentar a extensão como um trabalho interdisciplinar que favorece a visão do social, contida também no conceito de extensão do Fórum de Pró-Reitores, pode-se perguntar se nessa idéia de “interdisciplinaridade” ou “transdisciplinaridade” não está mantida a divisão, na própria expressão “disciplina”, quando do intuito de integrar? A busca por uma ontologia da extensão carece da presença da crítica como ferramenta nas atividades que a constituí, ou como elemento constituinte de seu agir. Traz, dessa forma, a dimensão de superação do “senso comum”, ao expor e explicar, ou mesmo tomar contatos com os elementos da realidade. Elementos esses, presos, naturalmente, de formulações abstratas, sim, mas colocando a realidade, o mundo concreto, como anterioridade nas suas bases analíticas; a compreensão de que nesse movimento de análise da realidade um segundo movimento tem continuidade no campo das abstrações em busca de elementos mais abstratos, permeados, entretanto, pelo concreto inicial e base de análise; e, finalmente, como os recursos expostos dessas abstrações ser possível novo concreto, permeado das abstrações anteriores, ou um novo concreto, um concreto pensado. Nesse percurso, a crítica tem papel determinante, pois além de superação do “senso comum”, também é propositiva. Busca a superação das dimensões do estabelecido e assume seu formulário transformador. Portanto, a extensão vai além de um trabalho simples, como o proposto no conceito do I Fórum de Pró-Reitores, em Brasília. Ao compreender a universidade como um aparelho de hegemonia, onde se debatem forças permeadas de contradições, as mais variadas, a extensão universitária pode ser entendida como trabalho social. Isso abre a possibilidade, talvez, de se avançar na formulação conceitual de extensão. Em sendo extensão um trabalho social, pressupõe-se que a ação do mesmo é uma ação, deliberadamente, criadora de um produto. Se constitui a partir da realidade humana e abre a possibilidade de se criar um mundo, também, mais humano. É pelo trabalho social que se vai transformando a natureza e criando cultura. A extensão, tendo como dimensão principal o trabalho social, será produtora de cultura. O trabalho social não se exerce apenas a partir dos participantes da comunidade universitária, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade, que é a participação dos membros da comunidade e de movimentos sociais, dirigentes sindicais, associações, numa relação “biunívoca”, na qual participantes da universidade e participantes desses movimentos confluem. Extensão, como um trabalho social, é exercido, agora, pela universidade e pela comunidade sobre a realidade objetiva. Um trabalho coparticipado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho com o qual se buscam objetos de pesquisa para a realização da construção do conhecimento novo ou novas reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados são também os constituintes da outra dimensão da universidade, o ensino. Portanto, a extensão é um trabalho que se realiza na realidade objetiva e é exercido por membros da comunidade, universidade servidores e alunos. Um trabalho de busca do objeto para a pesquisa e para o ensino, se constituindo como possibilidade concreta de superação da pesquisa e do ensino realizados, mais das vezes, fora da realidade concreta. Vislumbrando a extensão como trabalho social, essa atividade extensionista gerará um produto desse trabalho. Um produto caracterizado no “bojo” das relações de trabalho que, 79
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também, tem suas contradições, mas que, sobretudo, se constituirá como uma mercadoria. Portanto, terá um produto que será de conhecimento teórico ou tecnológico que deve ser, também, gerenciado pelos seus produtores principais - a universidade e a comunidade. A extensão em sendo “... trabalho social sobre a realidade objetiva, gerado de um produto em parceria com a comunidade, a esta comunidade deverá retornar o resultado dessa atividade de extensão” (Melo Neto, 1994: 15). Essa é outra dimensão fundamental caracterizada como a devolução de suas análises da realidade objetiva à própria comunidade. A devolução dos resultados do trabalho social à comunidade caracterizará a própria comunidade como possuidora de novos saberes ou saberes rediscutidos e que serão utilizados pelas lideranças comunitárias em seus movimentos emancipatórios e reivindicatórios. Isso faz crer a extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica fundamental, que é a busca de superação da dicotomia teoria e prática. Estas, também, se constituem como bases ontológicas da extensão. Há, ao que parece, uma possibilidade de construção de hegemonia e desvelamento das ideologias dominantes e uma nova estratégia da função social da universidade ou mesmo uma condição de serviços da extensão a favor da cultura das classes trabalhadoras. Esse pode ser o papel do aparelho de hegemonia - a universidade - que, através da extensão, ontologicamente balizada como trabalho social, possibilitando o direcionamento da pesquisa e o do ensino para um outro projeto social.
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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: as tensões das propostas acadêmicas Lenilda Soares Cunha1
O presente artigo resgata as ações e políticas da extensão universitária no Brasil e problematiza a sua inserção – através da universidade, dos intelectuais e da ciência – nas questões/demandas sociais mais amplas. Trago como base empírica, a história e constituição do campo extensionista no Brasil para depois então, avançarmos na discussão das verdades da academia e seu discurso competente. Parto então, de duas afirmações: 1) O “governo” da extensão nas universidades públicas se deu nas imediações funcionais ao Estado, se constituiu entre turbulências e golpes, escrevendo uma trajetória que se deslocou da promessa de “transformação social” para o “tratamento” da exclusão. 2) As verdades científicas, submetidas ao campo das práticas sociais, geram hierarquias e diferenciações garantindo, ao mesmo tempo, o “direito de comando” e a superioridade do “detentor” da verdade, o que fortalece a “competência” científico-social da universidade. Para analisar tais práticas extensionistas das universidades públicas brasileiras me vali de minha própria experiência profissional na Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Fluminense, da efetiva participação nas reuniões do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras - especialmente na década de 90 - da “memória” da universidade no Brasil descrita em livros, artigos, textos, debates, cursos e programas de diferentes Faculdades de Educação. Teci, a partir desses caminhos, a rede de relações que deram corpo à extensão como uma função universitária. Procurei manter a mobilidade dos fluxos/demandas que a constituíram fazendo de sua história não um mosaico bem definido por fatos, datas e causalidades, mas, um caleidoscópio que muda de perspectiva e desenho na medida em que nos movemos em sua mesma trajetória. Esta opção metodológica me levou a deixar os trajetos sincronizados historicamente e partir cartografando segmentos. História, método e discurso passaram a compor, então, a problemática, ampliando-a e inscrevendo-se naquele campo de análise – a extensão universitária. Algumas noções foucaultianas me foram fundamentais à análise proposta, como o dispositivo do “saber-poder”2, a “governamentalidade”3 e o “regime de verdade”4.
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Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. É Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Imaginário (GEPI/UFF), membro da Comissão Permanente de Avaliação Institucional da UFF(CPAIUFF) e professora da Faculdade de Pedagogia da Fundação Educacional da Serra dos Órgãos, em Teresópolis, Rio de Janeiro. Conceito fundamental quando se analisam as relações de poder numa sociedade. Em “Vigiar e Punir” (1996: 30) Foucault afirma: não existe “relação de poder sem a constituição de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder”. Com a noção de „governamentalidade” Foucault (1993: 292/293) apresenta a importância dos mecanismos ao mesmo tempo interiro e exterior aos aparelhos de Estado que os permite sobreviver e se tornam questão política fundamental na definição do que lhe compete ou não, do que é público, do que é privado. Regimes de verdade são as normas e regras pelas quais os indivíduos definem o bem e o mal, o bom e o mau, o razoável e o irrazoável... Definem a “normalização” da sociedade.
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83 Elegi então dois analisadores5, foram eles: os acontecimentos de 1968 quando o movimento estudantil expressou o momento de convulsão do poder que resultou numa absorção de demandas, institucionalizando a extensão como função correlata – ou indissociada – ao ensino e à pesquisa e, imprimindo-lhe o sentido do “social”. Os acontecimentos do ano de 1987 quando, com os movimentos no sentido de fortalecimento e ampliação das franquias democráticas no Brasil, a extensão universitária retoma o fôlego perdido e reinicia sua proposta de reinserção dos sujeitos, das organizações e dos estabelecimentos universitários no destino social do país. Propostas estas protagonizadas, neste estudo, pelas políticas capitaneadas pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. Ambos os acontecimentos trouxeram a expressão da extensão como importante vínculo da universidade com as questões sociais e emergiram de lutas em nome da democracia e da participação. À extensão foi delegada uma competência democratizadora. “Humanizar” o conhecimento e “ter qualidade política” foi o desafio da extensão na convivência com as diferentes demandas do mundo contemporâneo. Fazê-lo requereria desacomodações e mudança de ethos acadêmico que, conforme se afirmava, iria reforçar o horizonte utópico da sociedade. Um novo conceito foi elaborado para a extensão, na primeira reunião do Fórum de Pró-Reitores, em Brasília, sob o comando do então Reitor Cristóvam Buarque, em 1987. Este conceito se firmaria como meta e instrumento das lutas desencadeadas nacionalmente por aquele Fórum nos anos 90, que contava com a representação de todas as universidades federais e algumas estaduais, onde seu caráter público seria o definidor do caráter democrático e progressista que deveria levar a marca da extensão nas universidades públicas brasileiras. Assim foi conceituada a extensão universitária: “Extensão é o processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade. A extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportunidade da elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será acrescido àquele conhecimento. Este fluxo, que estabelece a troca de saberes sistematizados – acadêmico e popular, terá como conseqüência: a produção do conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional; e a democratização do conhecimento e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizadora desse processo dialético de teoria/prática, a extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a ação integrada do social ”.
Constata-se que a extensão retoma para si uma proposta ambiciosa - e podemos afirmar feliz e necessária - no sentido da redemocratização do país e da centralidade do saber nas sociedades ocidentais, herdeiras que somos de uma base conceitual, onde a razão e a ciência se aproximam das verdades e soluções aos males da civilização6.
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Falas, fatos e atos que se insurgem no campo de intervenção e produzem o desmanche daquilo que até então aparecia como natural. Para aprofundar esse aspecto indico a leitura de Bauman, Z. Modernidade e Ambivalência, RJ: Jorge Zahar Editor, 1999.
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84 Mas quais seriam nossas “ferramentas”7 nesse intuito? Como as relações de “saberpoder” poderiam se estabelecer em campos de coerência protagonizadores de mudanças de rotas rumo à transformação social tão cantada e decantada?
O labirinto extensionista: um espectro do social A história da extensão no Brasil traz a marca – e o desconforto – de composições diversas e, por vezes díspares. Recolher alguns fragmentos dos discursos extensionistas que narram ações/reações da universidade pública brasileira foi a forma que utilizei para detectar os movimentos que tentaram imprimir uma direção, um reordenamento de fluxos, que tinham por meta a democratização do conhecimento, via extensão. Neles estão manifestas as ordens, apropriações e exclusões que os diferentes percursos políticos permitem, desvelando discursos instituidores de hierarquias, cooperadores de políticas maiores, etc. Alguns deles denotam a importância dada à universidade na construção de projetos nacionais, outros se aliam aos discursos governamentais, às políticas de Estado, disciplinam e se integram aos projetos desenvolvimentistas e militaristas, outros ainda reagem a este Estado, incorporam bandeiras dos estudantes, etc. o que nos leva a afirmar que a extensão cresceu e decresceu nas contingências, demonstrando-se um poderoso campo de relações de poder que tem o “termômetro” as tendências políticas dominantes de cada época. Nos anos 30, a recém-inaugurada Universidade do Brasil, hoje a Universidade Federal do Rio de Janeiro, seria o protótipo para a constituição das demais universidades brasileiras. Naquele tempo a extensão teria uma função bastante definida: “dilatar os benefícios da atmosfera universitária” com a propagação de idéias e princípios que “salvaguardem os altos interesses nacionais” (Estatuto das Universidades Brasileiras Art.42). Extensão, portanto, reprodutora e colaboradora do Estado na manutenção da ordem e dos interesses nacionais, definidos pelo governo Vargas. Àquela época, a proposta feita à universidade e à ciência trazia, num ritual de circunstâncias, a proximidade da universidade ao Estado. A ciência e a universidade “modernas” apostavam na possibilidade da autonomia científica na determinação de sentidos, numa ação coerente entre a lógica de seus propósitos e a construção de um mundo melhor. O golpe instituindo o Estado Novo, em 1937, chama à educação o seu papel de “longe de ser neutra (...) seguir uma tábua de valores” e “(...) reger-se pelo sistema de diretrizes morais, políticos e econômicos, que forma a base ideológica do Estado”, estando portanto “sob a guarda, controle ou defesa de Estado”, nas palavras do então Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema (1933/1945)8. Sabe-se, no entanto, que as propostas extensionistas daquela época se restringiram a um “pequeno e seleto grupo de pessoas que por ela tinham passado ou a ela pertenciam” (Fávero, 1980: 53), ou ainda nas palavras de Washington Pires, Ministro da Educação (1932) “(...) os cursos de extensão universitária...foram freqüentados por escolhida assistência, em que se contavam individualidades do maior conceito – médicos, advogados, jornalistas, engenheiros, magistrados...” (apud Fávero, op. cit. p. 53). Nos anos vindouros, a extensão não se incorporou, como proposta, aos propósitos nacionais universitários e às luta pela elaboração das diretrizes e bases da educação nacional 7
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Entrevista entre Deleuze e Foucault com o título “Os Intelectuais e o Poder” no livro “Microfísica do Poder” (Foucault, 1993): “Caixas de ferramentas” idéia que nos permite retirar o que me é útil em determinados momentos, o que funciona, aquilo que me serve como instrumento de luta”. Vide: Cunha, L.S. A Extensão na Universidade Federal Fluminense: amplitude, gêneses e compromissos. Dissertação de Mestrado. Niterói, UFF, 1990.
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que ressaltaram na universidade, seu aspecto de formação profissional, em detrimento da pesquisa e da extensão. Depois de 15 anos de discussão, a LDB/61 caracterizou a extensão como “cursos abertos à comunidade” ficando sua oferta a juízo do respectivo estabelecimento (Lei 4024/61, Art. 69 “c”), o que evidencia a pouca importância dada às parcerias entre Estado, universidade e sociedade, como base da construção das políticas extensionistas daquela época. Num processo de integração do Brasil no capitalismo “avançado” - proposta políticoeconômica da época de 1960/70 no país - redefiniam-se áreas de atuação do Estado e das organizações da sociedade, sob a tutela norte americana9. O que seria melhor para as universidades brasileiras responderiam a USAID e os “experts” norte-americanos. Porém, este era um momento de insatisfação. Uma insatisfação marcada pela impossibilidade de levar adiante os pactos populistas de governo, pelo enrijecimento das propostas político-econômicas autoritariamente definidas para o Brasil, momento em que um forte movimento clamou pelo chamamento de todos à participação política, representado pelo movimento estudantil, de caráter mundial. Foi então, que tais movimentos passaram a desafiar a universidade e seus quadros, tornando público o descompasso das propostas que a ela se dirigiam. Por parte do Estado, a universidade era instada ao alinhamento à política econômica internacionalizada e, pelos movimentos, ela era mobilizada a participar dos programas de “conscientização popular” em favor do direito de cidadania da grande maioria da população. A universidade foi então, questionada, desacomodada e forçada a estabelecer estratégias e adesões que tramariam seu destino10. A adesão de professores e das propostas institucional da universidade àquelas demandas refez as relações com o Estado. Foram questionados os padrões nacionais e internacionais de desenvolvimento do capitalismo, os poderes instituídos, os saberes circulantes... Nesse período de grande mobilização e efervescência na discussão e propostas de diferenciação da relação universidade/sociedade e, portanto, novas relações com o Estado, o golpe militar deu ao país um ultimato favorável à expansão monopolista do capital estrangeiro, colocando um “torniquete” de tortura e silêncio àquelas propostas divergentes. A luta dos estudantes com o lema “conscientizar para libertar” – que definiriam as ações de extensão universitária, conforme documentos deixados pelas reuniões do Diretório Central dos Estudantes (“Declaração da Bahia” e Carta do Paraná”, ambas de 1961) - foi transposta para a campanha nacional do “integrar para não entregar”, do Brasil do “Ame-o ou Deixe-o”. A estratégia foi, como marca a memória daqueles que viveram ou tiveram acesso às informações da época, a desmobilização, a repressão explícita e violenta. À extensão “apaziguada” restou tarefas de cunho patriótico, numa estratégia racional-pragmática capitaneada pela Doutrina de Segurança e Desenvolvimento Nacional. As universidades deveriam então, proporcionar aos alunos, oportunidades de participação em programas de “melhoria das condições de vida da comunidade” e no “processo geral de um desenvolvimento” capitaneado por políticas centralizadas no Planalto e defensoras da internacionalização econômica do país... assim definia a Lei da Reforma Universitária de 68. A extensão passou a ser caracterizada por atividades rondonistas – o Projeto Rondon foi uma proposta da Escola Superior de Guerra para realização de atividades assistenciais no interior do país e áreas de fronteiras – e pelas atividades dos CRUTAC‟s - Centro Rural 9
Maiores informações vide: Cunha, L. A. A Universidade reformanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. O Nordeste assistiu à maior mobilização realizada no sentido da educação de adultos já realizada no Brasil. Paulo Freire, em Recife, criou o Serviço de Extensão Cultural e desenvolveu seu método de educação de adultos.
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86 Universitário de Treinamento e Ação Comunitária – um programa de treinamento rural universitário e de prestação de serviços, ambos sob o mesmo molde assistencialista apregoado à época. Essas experiências foram classificadas por Rudolph Atcon – principal consultor americano nas propostas de reformulação do ensino universitário no Brasil e outros países do Cone Sul como “corpo da paz universitária” e estimuladas/fomentadas sua expansão em todo território nacional, como marca da “apática” – se considerarmos a proposta emancipatória colocada pelos estudantes - extensão dos anos 60/70. Porém, no final dos anos 70, novos movimentos irrompem a calmaria imposta e o repúdio ao governo militar cresce. Um “novo sindicalismo” (Sader, 1988) agencia conflitos trabalhistas, organiza matrizes discursivas, interpelando as “mentalidades” formadas pelos discursos dominantes. Os movimentos sociais irromperam e trouxeram novas táticas de lutas, novas linguagens e ações. A greve passa a ser o instrumento de enfrentamento direto com o Estado autoritário. Em 1978 a primeira greve nacional dos professores universitários e a nascente ANDES – Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior – retomam o vigor da discussão a respeito da democratização e autonomia da universidade brasileira. As atividades de extensão instituídas nas décadas de 70/80 foram questionadas seriamente. Integrada à institucionalidade estatal, cresceu instalando a troca de favores penetra diferentes microespaços, demarcando o território público em favor dos espaços privados dos interesses em jogo11. Em 1987 a extensão “social” parece retomar o fôlego perdido no pós 68. A “transformação social” retorna como discurso da garantia dos direitos sociais e a universidade se insere como uma das protagonizadoras potenciais à esta transformação requerida e necessária. O Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas se apresenta como um agenciador das matrizes discursivas e das práticas universitárias do “estar-a-favor-de” uma maioria. Mais uma vez a extensão se colocou como um vetor importante de redefinição das propostas para a universidade pública. A ela caberia a mediação entre as propostas que se distinguiam: algumas trazidas pela comunidade acadêmica, e que se propunham ao resgate do compromisso e democratização de sua estrutura e rotina, e outra do Estado financiador, que a queria parceira a um determinado momento de reestruturação político-econômica. Como num “minueto” as propostas estatais e as propostas político-acadêmicas se reverenciavam. Enquanto daqui se conceituava a extensão como forma de manter uma coerência e homogeneização das propostas voltadas a uma “transformação social”, naquele espaço das decisões estatais se elaborava uma “Nova Política para a Educação Superior Brasileira”(1985) com diretrizes políticas no MEC. Enquanto lá, a extensão se propunha a um projeto de emancipação e transformação social e era alçada ao ícone das mudanças sociais requeridas que, a partir do ensino e da pesquisa, iriam instrumentalizar o processo “dialético teoria/prática” numa “ação integrada do social”, aqui a extensão desaparecia como denominação daquelas ações universitárias passando a ser referida como “prestação de serviço” (1985: 31/33). A extensão, apesar do discurso e das ações que mobilizavam seus gerentes universitários, assumia um caráter de política de ajuste e de complemento às propostas do Estado. Atuava como um amálgama entre as novas políticas de desenvolvimento, ampliando formas de financiamento no próprio Ministério, através também de convênios com empresas públicas e privadas, estreitavam-se os laços com o mercado profissional para subsidiar a
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Os “campi” avançados eram distribuídos às universidades do sudeste e sul, as normas eram as das “operações” militares, e o “compadrio” era determinante nessas distribuições. Vide Cunha, Lenilda (Op.Cit) e Cunha, Luiz Antônio (Op.Cit).
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política industrial e tecnológica, nelas constituindo assessorias privadas com seus recursos humanos, físicos e materiais. De acordo com o MEC, em novo seu programa para a educação superior brasileira, a extensão deveria incentivar o “caráter interdisciplinar dos programas e projetos de prestação de serviços à comunidade” de forma a especificar “sua natureza e significado para o conhecimento da realidade” (1985: 31) e, no movimento dos Pró-Reitores que se expandia, intensificavam-se as reuniões nacionais e regionais, que propunham sua participação junto ao CRUB (1988 - II Encontro Nacional do Fórum), a participação no orçamento do MEC (idem), onde deveria ser criado um órgão de “caráter representativo, responsável pela extensão”, a criação de um sistema de bolsas de extensão, dentre outros. Essa euforia mereceu, no período do governo Itamar Franco, uma atenção e parcerias especiais. Em 1994 foi criada a Divisão de Graduação e Extensão (DIEG/MEC) na Secretaria de Ensino Superior, com assessoria de comissão instituída pelo Fórum e ampliação de sua presença nas discussões internas ao MEC, no interesse da extensão nacional. Mas, essa década em que se estreitaram as relações entre a administração da extensão nas universidades públicas e o Ministério da Educação foi época também, da implementação veloz do neoliberalismo no país, inaugurado na era Collor. O Estado “mínimo” deveria ser implementado e as premissas de uma “modernização competente” e competitiva começavam a se expandir, redimensionando espaços da política pública e parcerias (dentre elas as ações políticas da extensão). Em 1990, o então Senador da República, nosso atual Presidente Fernando Henrique Cardoso, afirmava sua convicção com relação às políticas de Estado no trato com a universidade:“Diga-se de passagem que, com realismo e moderação, não vejo como a União possa ou deva ser a gestora de universidades. Essas, ou se ligam às comunidades, aos Estados e Municípios, ou viram presas fáceis dos sistemas únicos que uniformizam os salários, é verdade, mas ossificam o ensino” (grifos meus - As Perspectivas do Brasil e o novo governo: Fórum Nacional, 1990: 46). Nas reuniões do Fórum ecos de uma nova política hegemônica prenunciam mudanças comportamentais e avaliadoras da função extensionista. Refazem-se as utopias e a dimensão da extensão que se propunha redentora (vide sua conceituação e sua permanência enquanto meta) são questionadas e redimensionadas. Em 1990, reunidos em Santa Catarina, com o tema “As perspectivas da extensão nos anos 90”, as “certezas” da transformação e da extensão como função potencializadora de uma mudança social necessária, já se faziam sentir. Reproduzo, a seguir, três falas que dimensionam a problemática: “Assistimos o fim dos ideais de redenção da universidade por meio da extensão universitária hipertrofiada. A extensão universitária começa a encontrar medidas: retoma-se cada vez mais a idéia de uma extensão realimentadora do processo de ensino e pesquisa, uma extensão minimalista e enxuta. Este ideal é fortalecido pela convicção de que o enfrentamento da dívida social pela universidade é apenas mediato, e que esta tarefa cabe aos governos, mediante o uso dos mecanismos adequados, que por certo não estão ao alcance imediato da universidade” (Prof. Ronai Pires da Rocha – Universidade Federal de Santa Maria). “Nesse momento de crise, nesse momento de descrédito, cujas fontes nós não conseguimos identificar, mas que estão aí presentes no dia a dia, é preciso que a universidade demonstre de uma forma cabal, de uma forma clara, o que ela produz, o que ela faz, o que ela traz de benefício para a sociedade” (Prof. Bruno Rodolfo Schlemper Júnior – Universidade Federal de Santa Catarina). “...os Reitores hoje estão fazendo uma apologia da extensão, porque eles querem mostrar e debater o que a universidade está fazendo...A extensão como processo não está internalizado,
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88 porque a universidade brasileira não tem um projeto político” (Prof.ª Regina Celi Miranda Luna – Universidade Federal do Maranhão).
Se em 1987, a intenção dos movimentos de pró-reitores, que cresceu como espaço partilhado e democrático de construção de políticas para a área, tinha, como em 1968, o discurso da “transformação social” como força mobilizadora, nos anos 90 essa certeza se minimizava, apesar dos esforços e algumas vitórias. A “transformação social” como possibilidade, vontade, saber e poder passou a demandar estratégias de sobrevivência e uma prática “robinhoodiana” de transferência de percentuais das atividades extensionistas “rentáveis” deveriam assegurar as propostas da extensão “social”. É nesse fulcro de acontecimentos, que se encontra o caráter denunciativo das formas instituídas do lidar com o “social”. A extensão, como política social interativa Estado/universidade - afirmação pautada nas interfaces propostas e efetivadas na década de 90 - recolhe e organiza questionamentos, hierarquias e rotinas, o público e o privado, a participação, a democracia, a avaliação e o controle, numa engrenagem limitada pelas políticas macros de redução de investimento em gastos sociais, seja com a universidade pública seja com as políticas públicas e sociais em geral. A “exclusão social”, contra-face das possibilidades da construção de cidadania, descola-se do campo dos direitos sociais e se apresenta como proponente e formadora de propostas políticas voltadas ao trato de carências sociais, fruto de políticas discriminatórias e de cerceamento político, econômico, cultural e social. Neste mesmo constructo político, enfatizo, está a relação Estado/Universidades Públicas, onde a extensão como política/proposta social, para se manter, precisa de um orçamento, cuja prioridade não lhe é conferida. Ela, então, negocia para sobreviver e compor um orçamento12. Porém, como vimos, Estado e Universidade tinham propostas diferentes para a extensão. Daquele “nascente” Estado “democrático” apenas algumas demandas foram selecionadas, organizadas e abrigadas nos “pacotões” governamentais. A demanda da “transformação social” como instituinte de um novo regime de “saberpoder” que inicialmente tomou força e desalojou a racionalidade científica, mobilizando seus sujeitos e as formas instituídas de lidar com as demandas, sofre readaptações funcionais. A tendência foi tratá-las como gestão privada das “coisas” do mundo, reorganizando-as em favor das possibilidades e prioridades, em sua maior parte, de ordem política. Esse caminho trouxe à questão social um tratamento essencialmente caracterizado por intervenções sobre os efeitos de uma disfunção social ou por uma atuação “técnica” referendando as ações de uma neo-filantropia acadêmica, também, neoliberal. A questão social absorvida conceitual e politicamente pela extensão universitária no Brasil, ao trazer opressores e oprimidos àquela discussão, permitiu um entrelaçamento paradoxal da diversidade cultural, social e econômica como homogeneidade. Uma homogeneidade caracterizada pela falta e pela carência que fazem das desigualdades sociais o fato a ser trabalhado e para o qual se estruturam propostas. Anulam-se as análises de suas causas em favor de tratá-las como fato em si e per se, autonomizando as situações limites. 12
Em 1994, a Profº Eunice Durahn, então na Secretaria de Ensino Superior do MEC, encaminha ao Fórum negativa de financiamento da extensão, sob a alegação que caberia a esta função a constituição de orçamento por convênio, com fontes extra universitárias. Em 1990, no Encontro Nacional de Universidades, realizado pela PUC/MG em colaboração com a UNICEF, esta sua visão foi reafirmada. Afirmava ela: “Esperar que através do governo se possa instituir um programa de bolsas de extensão é inviável e injusto. Temos um enorme número de alunos brasileiros para quem o ensino não é gratuito. Fazer com que os alunos, na escola pública, além de receberem o ensino gratuito, ainda recebam bolsas para fazer alguma coisa que deve fazer parte de sua obrigação, é algo que desvia recurso que seria melhor utilizado para ampliar o acesso” (Relatório do Encontro, p.61).
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Remedia-se aqui e acolá e espera-se por dias melhores. Este modus facienti permitiu à academia como “turista”13 a visita à diferentes culturas e espaços sociais e como tal, a “possibilidade de estabelecer relações epidérmicas... sem comprometimento futuro e nenhuma incursão de obrigações de longo tempo” (Bauman, 1998: 115). A extensão dos anos 90 é a expressão das tensões por que passamos, onde o a priori passou a ser sua sobrevivência funcional, institucional e política. O mapeamento das carências provocadas pelo desenvolvimento capitalista e a proposição de ações “saneadoras” e institucionais de combate ou reposição das perdas, pode instalar práticas que redefinem organizações e, no contrário ao discurso que as sustenta, se adaptam aos movimentos hegemônicos da forma capitalista que se quer combater. Robert Castel (1998) ao desenvolver a história da experiência contemporânea da pobreza e exclusão, apresenta-a como uma nova questão social que não se refere apenas àqueles que se localizam às margens da sociedade. A questão social, afirma, atinge o “núcleo da sociedade salarial, o centro das relações salariais e sociais, a natureza de seus laços e vínculos”. Reduzir a questão social à questão da exclusão desvia a análise de seu processo e constituição, ocasionando a diluição retórica de sua especificidade, qualificando negativamente a “falta”, localizando e fixando seus espaços, naturalizando os “excluídos” como “objeto” da ação política, “objeto” a ser governado, reforçando discriminações, fortalecendo a “governamentalidade” neoliberal do Estado contemporâneo. Assim, as políticas de inserção social, dentre elas a extensão universitária social podem, apesar da aparência de resistência, fortalecer a forma neoliberal de vida, numa sociedade açodada pelas propostas de globalização que aumentam os abismos entre dominantes e dominados. Amenizam derrotas, ajudam a passar o mau momento da crise, esperam por novas legalidades que legitimem os processos de precarização. Desde o final dos anos 60, anos da legalização da extensão como função universitária, houve uma grande retração de investimentos na área social. A crise do Estado Social – experiência primeiro mundista que se fez real em nosso imaginário de futuro como universo de nossas possibilidades – refez direções no sentido do equilíbrio. Essa nova razão fez do Estado “mínimo”, máximo, assegurando-lhe um lugar privilegiado nas “regras” e no “jogo” de um mercado global. A nova racionalidade organizou espaços abertos e a “governamentalização” do Estado ocorreu, orientando condutas, excluindo/impedindo que uma grande parte da população tenha acesso aos benefícios sociais rarefeitos, numa vigorosa dinâmica global/local com efeitos extremamente diferenciadores. Na universidade, as propostas extensionistas se expandiram a partir da diversidade de parcerias feitas, da multiplicidade dos objetivos e demandas que instituíram práticas assistenciais e concorrenciais que equilibram as estratégias governamentais e a relação público-privado que as sustentam. É um novo mapa de dominação e de controle que se desenha, onde o tratamento da exclusão se torna um elemento pacificador que investe na manutenção dos processos hegemônicos de um determinado projeto social ou de Nação. O deslocamento da “transformação” para a “exclusão” nas políticas extensionistas denota para além da destruição de uma utopia (socialista? Comunista?) um arremedo de tendências que fazem da pobreza/exclusão um contorno conceitual que se limita à falta de perspectivas e à ausência de prospectivas. Dissociam-se direitos e deveres, numa “destruição criativa”, que demole mas constrói ao mesmo tempo, “corrige mas mutila” (Bauman, 1998: 28) e, através de políticas compensatórias, expiam e localizam aqueles que não devem passar os limites que lhes são 13
Bauman designa “turistas” os globalmente móveis, nômades e seduzidos pelos prazeres de uma vida que acumula sensações. Por seu oposto há os vagabundos, aqueles eu presos aos limites de suas localidades, são funcionais depósitos de “entulho para as imundícies dos turistas”.
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reservados. A exclusão está incluída na dinâmica do processo de produção capitalista de nossos dias.
O intelectual e as propostas progressistas: de expert a espectador e espectado. A interpretação do intelectual, em suas relações com as questões sociais, esbarra em equívocos e promessas que interseccionam saberes e poderes, constituindo-o por ou como portador de “super-poderes”. É preciso, analiticamente, localizar o intelectual e seus discursos – tidos como “verdadeiros” e “melhores” porque mais “reais” - termo este já, em si repleto de significações: reais porque concretos? Ou reais porque trazem os ícones das superioridades, das realezas? A universidade legitimada como produtora e promotora de um saber novo é a mesma que, ao institucionalizar este saber, o assume como coisa privada, passando a atuar com posturas que oscilam do fechamento/auto-defesa à posição de comando14. Os discursos das ciências e dos cientistas trazem consigo uma “certeza” definidora de hierarquias, de assujeitamento de saberes não-dominantes, quando ao instituir-se como autoridade destituem, em conseqüência, falas outras, disciplinando de modos de vida, hierarquizando os viventes. A relação entre intelectual, ciência e progresso social, que teve na universidade e no saber acadêmico a possibilidade da realização da crítica global do sistema, e que elegeu o intelectual o sujeito “iluminado”, forneceu os códigos legitimadores das grandes narrativas de progresso e desenvolvimento humano. O “novo” saber, “carimbado” pela ciência, garantia de “passaporte” pelo mundo da intelectualidade e dos experts, ratifica a diferenciação e traduz-se numa legitimação das posições hierárquicas. Pergunta Foucault (1993: 122), neste sentido: “[...] que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem „é uma ciência‟? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou saber vocês querem „menorizar‟ quando dizem: „Eu formulo este discurso, enuncio um discurso científico e sou um cientista‟ ?”. Como os efeitos de poder da universidade não se restringem aos limites institucionais universitários, podemos afirmar que as ações extensionistas atuam intensificando a destruição de fronteiras institucionais e do próprio conhecimento e, ao mesmo tempo, fortalece o saber acadêmico como aquele sobre o qual repousam as verdades mundanas, as perspectivas de progresso e redenção: “...a grande imagem histórica de maturação da ciência ainda alimenta muitas análises históricas” , admite Foucault (1993: 3). Ratifica ainda Chauí (apud, Coimbra, 2000: 7). A ciência “[...] tornou-se poderoso elemento de intimidação sócio-política através da noção de competência. Poderíamos resumir a noção de competência no seguinte refrão: não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer lugar e sob qualquer circunstância. O discurso e a prática científica, enquanto competentes, possuem regras precisas de exclusão e de inclusão...”.
A condição para o prestígio e a eficácia do “discurso competente” depende da “afirmação tácita e da aceitação tácita da incompetência dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos” (Chauí, 1990: 11). O uso prático e instrumental do conhecimento acadêmico protege a sua cientificidade como forma de assegurar-lhe a hierarquia. O “discurso competente” adverte ainda Chauí (1990), se fortalece quando o discurso político-científico se estabelece como estratégia de poder e subsume a ciência como coisa 14
Vide, Chauí, Marilena: Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 5 ed. São Paulo: Cortez, 1990.
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privada em favor da dominação do mundo contemporâneo. Constitui-se, por isso mesmo, no elemento do nosso léxico que, como referencial de pensamento, atua como mecanismo de produção da “incompetência social” e com ela gera assistencialismos, doações, favores e exclusões. O aparente desinteresse da ciência traveste, então, a instauração de uma nova legitimidade - a científica. Esta, ao não se realizar sem luta ou resistência no interior da própria rede de poder, se apresenta por pontos móveis e transitórios de resistência e com isso, institui comportamentos, organizando discursos e delimitando conhecimentos. E o romantismo da extensão parece exigir da universidade a reflexão de sua competência, de seus limites, de suas propostas. O “obrismo” extensionista pode torná-la presa das corporações, dos interesses dos grupos, dos partidos políticos, etc. Entre a possibilidade de um elitismo, de um romantismo, de um obrismo, as discussões da política extensionista começaram a derivar para o imperativo ético de sua função. As questões de que práticas estão sendo fortalecidas/produzidas passam a ser pontos fundamentais. Assume o Prof. Renato Hilário da UnB: “Se fazemos uma opção de que queremos que os excluídos não só tenham acesso ao conhecimento, mas a uma cidadania plena, econômica, política, social e cultural... é fundamental que se organize e comece a trabalhar teoria e prática em função desse tipo de compromisso. Com o mesmo rigor que os intelectuais orgânicos comprometidos com a classe dominante o fazem”.
Ao se propor como função mediadora e prática de aproximar saberes diversos – uns tidos como acadêmicos e outros como popular – as ações de extensão, apropriadas de igual modo pelo capital - assumidas, consumidas e divulgadas pela universidade e pela mídia entram em relações que produzem trajetórias e prospecções que desalinham os mapas projetados ou as utopias. Os intelectuais como sujeito do saber e possuidor de um poder advindo desse saber, ao enfrentar as questões sociais e os imediatismos das propostas que a extensão universitária pode/deve assumir em suas propostas políticas, vêem questionados e questionam seu estatuto de sujeito de mudanças na interpelação da realidade trabalhada. A relação universidade/sociedade, ou ainda ensino, pesquisa e extensão, demonstra-se uma relação não-simétrica. Ela se estabelece nas relações de “saber-poder” que produz “verdades” e induz “regimes”. Esse regime não é simplesmente ideológico ou superestrutural. Ele é, conforme venho discorrendo, condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. Portanto, a extensão que se propõe à intervenção no campo social, é atravessada por ações e lutas, onde a ordem política e o conhecimento verdadeiro podem se constituir em perfeita harmonia com o projeto da “certeza”, onde revigora as formas capitalistas de vida. Formas estas que se incluem nas modulações de um novo poder global de controle de vida das pessoas e da vida social. A história da extensão universitária no Brasil, como uma das faces do compromisso social universitário, se constituiu por um compósito de rupturas que desfez, de forma contundente, a centralidade do sujeito na construção de uma trajetória histórica, em favor das relações de poder que os define. A certeza das ações e da sua racionalização como fonte de um futuro melhor, fez da proposta da transformação social instrumentalizada na ciência elaborada, pesquisada e progressista, um remake quixotesco contemporâneo, atuando como “remédio” para os males capitalistas15. 15
Observo, enfatizando, que as lutas, agentes, discursos e propostas de extensão feitas pelo Fórum, foi considerada por Botomé (1996), num estudo sobre a “pesquisa alienada, o ensino alienante e a extensão como
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Associa-se a esta realidade a multiplicação dos efeitos de poder que hoje tece uma nova trama com ações e valores antes inconciliáveis, tão a gosto da neo-filantropia acadêmica ou da transformação da universidade num “supermercado disciplinar”. Ambos configuram a destruição da ética pública que construiu saberes, fundou as ciências humanas e buscou a “vida feliz” como legado das Luzes. Nessa perspectiva, àquele intelectual – sujeito instrumentalizado no saber – foi reservado um papel importante nas lutas sociais e dele esperado uma postura, até certo ponto, diretiva na solução de problemas da humanidade. O ano de 1968 e suas propostas foram emblemáticos nessa convicção. Os movimentos dos anos 60 reivindicavam novas formas de poder e a possibilidade de experimentar as aventuras e as incertezas dos inventos. A mudança era o motor das lutas e suas ações buscavam a parceria com novas e/ou tradicionais instituições. Esse momento historicamente importante fez emergir, em meio às múltiplas contestações, a participação institucionalizada e direta da universidade no campo social como parceira do “teatro da revolução” (Hall, 1999: 44). O ano de 68 e subseqüentes, cuja produção é demasiadamente grande, revela a singularidade que aquele período, histórica e filosoficamente, representou como um momento especial de rupturas. Expandiam-se e diversificavam-se os movimentos sociais que canalizavam suas propostas para vetores sociais diferenciados. O movimento estudantil apelou à universidade e aguardou por uma resposta teórica, prática e política da intelectualidade. Responsáveis ou responsabilizados por uma certa trajetória histórico-política voltada à mudança social – forte vertente da institucionalização da extensão – os intelectuais se tornaram alvo de questionamentos, ponto de convergência de ações, propostas e esperanças. Foucault (1993: 13) nos auxilia na leitura do espaço desse “intelectual” quando o localiza em suas especificidades, portanto, em meio às relações de poder que o constitui. Diz ele: “[...] o intelectual não é, portanto, o „portador de valores universais‟; ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções do dispositivo de verdade em nossas sociedades. Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade: a especificidade de sua posição de classe (...); a especificidade de sua condição de trabalho, ligadas a sua condição de intelectual(...); finalmente, a especificidade da verdade nas sociedades contemporâneas. É então que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e funcionamento de nossa sociedade...”.
O vigoroso capitalismo avançado ameaça as instituições, atua sobre os sujeitos e sobre a ciência, questiona sua potencialidade como instrumento de luta, requerendo mobilidades no lugar das cristalizações realizadas em nome das razões científicas. Inquire, deslegitimando ou fragilizando as verdades científicas (Lyotard, 1986). As construções de verdades, que se dão além e aquém da pedagogia universitária, localiza o intelectual acadêmico no mundo social em função das posições que ocupa e de suas relações estruturais. Esta afirmação nos leva a, analiticamente, procurar as formas de subjetivação e de agenciamentos16 que produziram aquele percurso transformador, que aglutinava ciência/cientista e universidade em propostas de cunho social, como na extensão. um equívoco”, a “trincheira de revolucionários” dos anos 90, que pretendiam com as propostas extensionistas a redenção, a liberdade da universidade e o progresso social. 16 O agenciamento é o ponto no qual a profusão das ações possível se encontra para formar um novo, determinado e sempre temporário, coletivo. Comporta componentes heterogêneos, tanto de “ordem biológica,
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Esta análise incide, portanto, numa explosão das certezas que, por séculos, asseguraram o lugar e o espaço dos estabelecimentos educacionais, a educação formal, dos especialismos e das políticas de desenvolvimento e progresso social. O movimento estudantil dos anos 60 foi o redemoinho histórico que questionou a articulação da sociedade, suas grandes orientações, seus propósitos e seu modo de ser. Trouxe a questão da universidade combativa e da extensão compromissada com os dilemas sociais. Nas universidades foram então fomentadas ações, que tinham na academia e no valor científico de suas verdades, a sua hierarquia nas relações de poder. Expressavam práticas de resistência e desenvolviam projetos de ruptura, constituindo-se em novas formas de agenciamento social que abriam espaços para a elaboração de experiências que inovavam a rotina acadêmica e interpelava por novos saberes. O movimento estudantil, então, caracterizou-se pela contestação do “status vigente, do conservadorismo universitário e da burocracia partidária” (Benevides, 1994: 101) e colocou em xeque toda uma trajetória da universidade. Transformou as demandas em políticas e trouxe os percalços próprios ao labirinto em que as ações extensionistas se colocaram. O vanguardismo das propostas feitas à extensão exigia uma universidade combativa e desacomodada. A vivência dos docentes e alunos dos posteriores períodos tristes da história brasileira – a ditadura militar - inquietavam a comunidade acadêmica e a sociedade em geral, propiciando agenciamentos favoráveis tanto às práticas do conformismo como às práticas de resistência. Na universidade cresciam ações que, embora compusessem uma cultura instituída onde a academia e o valor científico de suas verdades gozavam de hierarquias, expressavam práticas de resistência e desenvolviam projetos de ruptura, constituindo-se em novas formas de agenciamento social que abriam espaços para a elaboração de experiências que inovavam a rotina acadêmica e interpelava por novos saberes. Muitas contribuições teórico-metodológicas utilizadas para o enfrentamento aos desafios postos à educação pelos movimentos sociais, no sentido de resistência às propostas de direção da educação na época, vieram de Gramsci, teórico marxista dos anos 30. Ele influenciou grandemente as matrizes discursivas da esquerda e, segundo Sader (1988: 114), instrumentalizou a análise com estratégias combativas ao status quo dominante construindo “uma nova ligação com o povo” como alternativa ao “vanguardismo derrotado” dos anos 60. Cito, para exemplificar, a fala do então Presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão, Prof. Alex Fiúza, da UFPA, em 1990, em busca dessa “nova ligação”: “Gramsci escreveu nos Cadernos do Cárcere que todos os homens são intelectuais, mas nem todos têm a função social do intelectual. A divisão social do trabalho se encarrega de discriminar trabalhadores materiais e „trabalhadores‟ intelectuais. A impossibilidade de ruptura com tal fenômeno estrutural da organização milenar das sociedades do mundo civilizado coloca em evidência algumas questões fundamentais. No nosso caso, aquela que é básica pode resumir-se em: que tipo de organicidade (no sentido gramsciano) temos em relação ao conjunto da sociedade com respeito à produção de nosso saber?” (Relatório de 1990: 78).
As teses de Gramsci, em Os Intelectuais e a Organização da Cultura, sobre o partido como “intelectual coletivo” e sobre a autoridade do intelectual proposto pela categoria do “intelectual orgânico” – que ligado aos movimentos sociais se encarregaria de “articular a como social, maquínica, gnosiológica, imaginária”(Guattari e Rolnik, 1999: 317) que se conectam com diferentes instâncias. Estes agenciamentos não correspondem a uma entidade social predeterminada, pois produzem sentido que não são centrados nem em agentes individuais, nem em agentes grupais. Eles sempre enunciam ou produzem algo (sujeito, objeto, saberes).
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94 orientação e a direção necessária” - abriam pistas para uma nova prática política atuante do intelectual e das propostas educacionais no movimento de contra-hegemonia dos processos políticos dominantes. Esta centralidade do intelectual, com base nessa matriz conceitual, foi uma instituição forte na construção das propostas políticas da extensão17. Essa crença, tomada por princípio, fortaleceu uma certa arrogância do cientificismo e da academia na procura de uma objetividade no trato social. Fomentou um certo “positivismo revolucionário” que perfilou um percurso ideal e que se tornou proposta político-institucional. Esta postura conceitual e política trouxe também, a necessidade de um ativismo que extrapolou o âmbito da denúncia e gerou o engajamento do homem da ciência. Os anos 80/90 assistiram, então, a uma grande mobilização em favor da implantação de uma política de extensão nacional que deveria absorver o “social”, mas manter a especificidade da universidade, qual seja: a produção e reprodução de conhecimentos. Mas como? Seria possível uma assepsia tão grande? Seria o “social” apenas um “laboratório” para o pensamento? As relações estabelecidas pela extensão universitária colocaram em prova a capacidade da teoria “recipientes claros e bem talhados” em receber os “conteúdos limosos e lamacentos da experiência” (Bauman, 1998: 77). O “anjo” caiu na “lama”, nos afirmaria Benjamin. E, nelas, novas e outras relações de poder se estabeleceram. As “certezas” teóricas como ferramentas de mudanças, de organização de futuro, podem se constituir em verdadeiros “torniquetes discursos”, adverte Mac Laren (1993: 10) e produzir práticas que, em nome da mudança, organizam espaços sociais e os controlam. A relação entre teoria/prática e política constrói ações objetivas de direcionamento. O sujeito acadêmico como “sujeito” de mudança, como um intelectual crítico e reformador, sustentado por um certo “esclarecimento” científico, ao agendar diferentes propostas demandadas em nome de uma política social mais eqüitativa, se coloca como um importante ponto de inflexão e negociação entre diferentes agentes, atores e poderes. Na política de extensão “social” ou “socializadora”, os intelectuais, professores, administradores ou mesmo alunos universitários, se situam num espaço constituído por tramas múltiplas onde se combinam fórmulas políticas que trazem nos processos de subjetivação, as modelizações da cultura capitalista e com ela a mais-valia do saber acadêmico. Lyotard (1986) revolve tais utopias carreadas pela universidade moderna e demonstra que, as contestações feitas às verdades científicas - sua veracidade no campo prático e social provocaram a “deslegitimação da ciência” e produziram o enfraquecimento das “razões” responsáveis pela hierarquia das verdades científicas. Esta “crise da verdade” como então denomina, está imersa no impacto das transformações tecnológicas sobre o saber. O metadiscurso da ciência como atividade nobre e desinteressada, preocupada, sobretudo com o desenvolvimento moral e espiritual, perde terreno. “Ciência” se apresenta como uma “modalidade de conhecimento” sem a pretensão de “síntese do significante, do significado e da própria significação”. Mesclam-se, na ciência e no intelectual, afirmações empíricas provadas e posturas ideais sobre um futuro produzido pelo trabalho intelectual. Evidencia-se a produção de conhecimento dentro de situações nas quais as relações econômicas, sociais, políticas e pessoais se realizam. Desfaz-se a possibilidade de uma epistemologia buscar as supremas exaltações da verdade e nela os grandes significados de competência imparcial. 17
Esta noção trago do movimento de análise institucional francesa, onde “instituição” é a forma histórica produzida e reproduzida pelas práticas sociais que, em seu processo de hegemonização, produz um esquecimento da própria gênese, redundando em naturalização (cf. Benevides, 1994: 101). O movimento dessas formas históricas ou se cristalizam para homogeneizar, constituindo-se no “instituído” ou se põem em movimento, podendo constituir-se ou não em mudanças, o “instituinte”.
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95 O “intelectual” foi figura de proa no discurso da extensão. A ele foram imputadas ações de grande peso social. O chamamento da universidade para sua expansão por novos campos da vida social, de saberes parceiros, trouxe a importância da ciência social emancipatória. Do intelectual era esperada a atuação participante/transformadora dos/nos problemas sociais. Na extensão temos a História de uma trajetória que não se expressou pela homogeneidade das propostas, mas por uma processualidade permanente que mudou fluxos e surpreendeu expectativas, no sentido em que as micromudanças ocorridas pelas práticas cotidianas esbarravam em outras que fortaleciam alguns sentidos em detrimento de outros e que passam a se constituir em práticas que, de fato, sustentam uma trajetória possível: Não foi à toa que a extensão “social e transformadora” foi cedendo espaço a propostas outras que viam na vinculação com o mercado e com as formas do viver capitalista um potencial de redefinir trajetórias. A força inicial e instituinte, em muitos momentos, de uma extensão universitária “social”, foi perdendo seu caráter “revolucionário” para, nos anos 90, ir se acomodando aos lugares das estabilidades, das regularidades e da conservação de uma nova ordem hegemônica posta pelos processos globalizadores. Não existe, portanto, um lugar para a perspectiva que pretenda enxergar além. Não existem discursos falsos ou verdadeiros sobre a realidade. Todos os discursos constroem realidades, instauram verdades, instituem-se em “regimes de verdade” e tem efeitos de verdade (Silva, 1993: 127). A “aura” do intelectual perde, esta perspectiva, seu relume. Enfrentar as situações sociais exige mais do que sapiência e reforço em teorias e pré-conceitos. Exige uma certa “modéstia” teórica. Mais do que certezas, a errância que percorre as linhas nômades de atuação e questiona o que significa estar imbuído da necessidade de que sua contestação encaminhe novas e melhores formas de convivência social. Deslocados a universidade, a ciência e os intelectuais do centro da sociedade intelectocêntrica – que confere um poder especial ao saber e à razão acadêmicas –podemos afirmar, que vivemos um tempo em que a construção de certezas se faz em concomitância com os fatores cotidianos mutantes e mutáveis, velozes e fulgazes. Um tempo em que as fronteiras se esvaem e que a “perícia hermenêutica” da ciência perambula pela “necessidade de se permanecer fiel à experiência confusa, retorcida, contorcida de seus contemporâneos, mais do que à vocação de corrigi-la” (Bauman, 1998: 108), a aura do intelectual, como sacerdote ascético lhe escapa. Nessas fronteiras móveis dos direitos e do medo estrutura-se o campo político e social determinado pela indistinção entre o público e o privado, pela vontade e arbítrio como marca de governo das instituições públicas. A alquimia sonhada pelos universalismos que conduziriam a uma maior igualdade e justiça social, levaram a “razão” e o “bom senso” à fórmulas ambivalentes: o pensamento “esclarecido” que permitiria ao homem livrar-se do medo resultante da ignorância e da superstição, levou à apropriação privada de saberes e razões, que auxiliaram na construção de uma sociedade onde “medo ambiente” (Bauman, 1998) estrutura e dá forma à constituição de direitos.
Concluindo... Entre “neutralidades” científicas e “parcerias” em nome do público, da universalização dos direitos de cidadania, de totalidades e antagonismos, encruzilhadas e diversidades, caminhou a extensão, caminhamos seus agentes, nos encontramos em labirintos abissais. 95
96 Falar em nome de todos – o “intelectual universal” de Foucault (1993) – e/ou assumir, a partir das leituras de Gramsci, um papel de direcionamento em favor de uma outra hegemonia, trouxe para o intelectual do ano 2000 a angústia moderna e o sofrimento do sujeito modernamente produzido, que buscava a totalidade em seus atos. As práticas (progressistas?) ao se distanciarem de nossos “modelos” para o futuro (transformado?) e as identificações com as propostas (revolucionárias?), com a história, com os agentes e com os discursos de uma “esquerda” acadêmico-política, demonstravam seus limites interpelativos. Por muitas vezes, como historiamos, as ações feitas em nome de uma justiça social refizeram hierarquias e calaram as vozes destoantes. Reiterava-se, com práticas “neutras” e/ou “objetivas”, o emudecer dos sons e vozes das quais se desejava ser “portavozes”. As leituras/interpretações se encaminharam para a defesa do “intelectual específico” (Foucault) ou do “intelectual implicado” (análise institucional francesa) como um novo olhar capaz de refazer as propostas do sujeito acadêmico nas encruzilhadas e complexidades dos poderes-saberes percorridos pelos sujeitos acadêmicos. A pulsão é pela “modéstia” delimitada por nossas ações e possibilidades no coletivo, agenciada pelos dispositivos sociais, construídos sem marcações. O afã solidário de uma certa política universitária social se dá conta de sua complexidade para além das possibilidades das construções teóricas. A globalização capitalista ocidental apresenta como seu principal insumo a intolerância e a falta de solidariedade. As políticas de inserção pouco minimizam o agravamento do quadro social (Castel) e nossas ações, num campo repleto de atravessamentos, produzem/reproduzem, em grande parte, processos hegemônicos, deixando, porém, espaços para processos de singularização, espaços que permitem afirmar algo de novo e criativo. A homogeneização e categorização do “refugo” do capitalismo global como “exclusão” neutraliza paradoxos e tensões, ao mesmo tempo em que espacializa e esquadrinha, localizando e imobilizando grande parte da população preterida dos seus direitos, assim como, dificulta os processos de pensamento e análise de realidades. No capitalismo globalizante, os excluídos – os pobres, os miseráveis, os desempregados, os sub-empregados, etc. – se tornam culpados e responsáveis por seu fracasso e pelo fracasso dos projetos sociais e de desenvolvimento. As questões postas e assumidas pelos intelectuais preocupados com a questão social requerem uma revisão de rota. Esses “cartógrafos” devem buscar e acompanhar movimentos de transformação das “paisagens”, estar atentos às pulsões do instituinte e do instituído que hoje, mais do que nunca, reforçam os processos hegemônicos do novo capitalismo liberal, com a hipertrofia do mercado e a produção de subjetividades neoliberais. Aponto então, neste artigo, para a importância da ação humana pontual e prospectiva, que tem a capacidade de romper com processos hegemônicos de construção de vida, onde a intensidade de suas forças na construção de outros espaços, rompam com o bailado bonito e lúgubre de uma nova “morte do cisne”, sobrepondo-se a ela com o vivaz ritmo e fluxo da vida, das diferenças e do cotidiano.
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EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: PRIMOS POBRES? Aproximações para um estudo sobre a educação de jovens e adultos na universidade18 Timothy D. Ireland19 Introdução Nesta reflexão preliminar sobre a relação entre universidade e educação de jovens e adultos, pretendo partir de um olhar mais histórico sobre a natureza complexa desta relação, numa perspectiva internacional. O argumento básico que apresento é de que a porta pela qual a EJA entrou na universidade - a extensão - representa o componente menos prestigiado da consagrada tríade: ensino, pesquisa e extensão. Esta mesma carência de prestígio se transfere para o estudo da EJA como campo acadêmico, reforçando a sua fragilidade em comparação com outras áreas consideradas mais „nobres‟ da prática educativa. Sob esse aspecto, não é mera coincidência que os sujeitos principais das duas atividades sejam jovens e adultos advindos das camadas populares da sociedade.
Contextualizando o debate histórico Nos cenários nacional e internacional, existe uma certa homogeneidade com relação aos principais e tradicionais promotores de práticas de educação de jovens e adultos. Historicamente as Igrejas (especialmente as Igrejas Protestantes pela importância que a leitura da Bíblia assumiu na formação religiosa), os partidos políticos (especialmente os partidos progressistas ou da esquerda), os sindicatos, as entidades da sociedade civil organizada, movimentos sociais e as universidades têm assumido um papel de destaque na oferta de EJA por motivos os mais diversos. A aproximação e interação entre a educação de adultos e as universidades têm sido provocadas por vários interesses e forças, manifestados de distintas formas ao longo da história recente.
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Texto apresentado no 13o. Congresso de Leitura do Brasil – COLE e V Encontro de Jovens e Adultos Trabalhadores, na Universidade Estadual de Campinas, em junho de 2001. 19 Professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Educação – Educação Popular, Comunicação e Cultura, da Universidade Federal da Paraíba; coordenador da linha de pesquisa em Educação de Jovens e Adultos.
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Importância da perspectiva internacional para a compreensão da EJA Embora as universidades e os movimentos da EJA tenham histórias próprias e bastante antigas, os primeiros registros de uma interação mais aproximada entre a universidade e EJA remontam ao exemplo da extensão universitária no Reino Unido. Em 1867, James Stuart, um jovem professor do Colégio Trinity, da Universidade de Cambridge, foi convidado, pelo Conselho para a Promoção de Educação Superior para Mulheres do Norte da Inglaterra (The North of England Council for Promoting the Higher Education of Women), a proferir quatro conjuntos de palestras nas cidades de Leeds, Liverpool, Sheffield e Manchester. O objetivo do Conselho era criar novas oportunidades de acesso à educação para mulheres e, especialmente, para aquelas que queriam ser governantas ou professoras (Peers, 1972: 52). Assim, nasceu o movimento que se tornou inicialmente conhecido na Grã-Bretanha como “extensão universitária” e posteriormente como “estudos extramurais” (extra-mural studies). Esta segunda denominação expressa de uma forma precisa como se entendia a noção da extensão, conforme veremos20. É significativo notar que, embora a demanda original tenha sido direcionada para um curso sobre a teoria e métodos de educação, Stuart decidiu discorrer sobre a História da Astronomia. A demanda para educação estava sendo atendida, mas a universidade se reservou o direito de decidir o que seria ensinado. Como, então, explicar esta nova dinâmica entre universidade e sociedade e o interesse da universidade em responder a demandas surgidas de fora dos seus sagrados e geralmente impenetráveis muros? Em primeiro lugar, havia uma demanda para educação universitária, mas poucas universidades – isto no século XIX. Naquela época, havia somente quatro universidades na Inglaterra: Oxford, Cambridge, London e Durham. Mais especificamente a demanda era proveniente: a) Da classe média e, em particular, de mulheres da classe média, que não tinham acesso ao ensino superior naquela época. Um aspecto importante do trabalho inicial de extensão era a atenção prestada às necessidades da mulher. No período, ainda era considerado impróprio, por exemplo, que o professor se engajasse em discussão com as estudantes. b) De trabalhadores - muitos dos quais ganharam o direito de votar em 186721 e não tiveram acesso nem à educação secundária22. Em 1867-68, o mesmo Stuart ministrou um curso para ferroviários, na cidade de Crewe – um dos primeiros exemplos de um curso promovido exclusivamente para trabalhadores. c) De professores primários sedentos por uma formação universitária e continuada que não existia na época (e sem o „incentivo‟ de qualquer prazo estabelecido por uma LDB da época). Assim nasceu a extensão universitária. Uma análise sumária das principais características dos cursos oferecidos à população adulta (não pertencente à universidade) nos permite compreender melhor como se concebia a função da extensão. Em primeiro lugar, os cursos repetiam essencialmente a mesma estrutura do ensino universitário: eram compostos de uma série de palestras (variando entre 6 e 12) e baseados nos conteúdos oferecidos nos programas universitários (entre os mais requisitados temas destacavam-se: história e economia política, literatura, arte ou arquitetura, ciência natural e filosofia). A estrutura dos 20
Kelly (1970) afirma que a expressão “extensão universitária”, quando foi introduzida na década de 1840, significava essencialmente estender o ensino universitário a um número maior de estudantes. 21 A lei de 1867 estendeu o voto a um número expressivo de homens trabalhadores. Mas foi somente em 1918 que todos os homens acima de 21 anos e todas as mulheres acima de 30 anos conquistaram o direito de votar. 22 Data de 1870 a lei (The Elementary Education Act) que universalizou a educação elementar na Inglaterra e estabeleceu a base para o sistema nacional de ensino.
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cursos incluía palestras, leituras, um currículo anotado, preparação de trabalhos escritos, classes de discussão e, para os interessados, exames escritos finais e certificação. Os cursos eram todos pagos (um curso típico custava o equivalente ao salário de uma semana de um trabalhador), fato que inviabilizou a participação de um grande número de trabalhadores (Kelly, 1970: 216-229). Além disso, outros fatores contribuíram para impedir uma participação maior de trabalhadores, entre os quais uma escolarização básica insuficiente e a falta de tempo necessário para as leituras e trabalhos que faziam parte do programa. Na Grã-Bretanha, portanto, a EJA entrou na universidade pela porta que foi denominada de extensão universitária (1873); era uma porta, aparentemente, de mão única – de dentro para fora. Não se cogitava a possibilidade de aprender com o mundo externo e “nãoiluminado”. Subseqüentemente, a criação de departamentos de extensão deu lugar, em várias universidades, à criação de departamentos de educação de adultos. Os departamentos de extensão foram pioneiros nos campos de treinamento para assistentes sociais. Além disso, contribuíram para a formação de magistrados, policiais, carcereiros, atuando também no campo de treinamento sindical e educação nas relações industriais. Os departamentos de educação de adultos se dedicavam ao estudo do fenômeno da educação de adultos como disciplina e campo acadêmico e à formação de educadores de adultos. Assim começou a luta junto à academia para fazer desta área um campo reconhecido, sério e, sobretudo, respeitável de estudo. É interessante notar que o famoso estudo de Norbert Elias, intitulado Os Estabelecidos e os Outsiders, foi baseado em três anos de pesquisa de campo, realizada numa pequena comunidade inglesa, no final dos anos 50. Nessa época, Elias trabalhava na Universidade de Leicester e atuava num programa de educação de adultos. Talvez seja possível aplicar os conceitos básicos elaborados por Elias - denominados de estabelecidos e outsiders - para analisar e entender as relações de poder no povoado de „Winston Parva‟, às relações de poder implícitas entre os segmentos universidade e comunidade e, dentro da instituição „universidade‟, entre as clássicas atividades de pesquisa e ensino e as desenvolvidas com ou sobre os outsiders ou excluídos. Seria muito pretencioso conceituar a extensão como a „consciência social‟ da universidade, que indica de alguma forma o grau de interação entre uma universidade e a comunidade em que está inserida? Em outros países, com fortes tradições no campo da EJA, essa modalidade de ensino também entrou na universidade pela porta da extensão. A Universidade de Alberta, no Canadá, por exemplo, iniciou atividades de extensão em 1908 e a Universidade de St. Francis Xavier, também no Canadá, deu início, em 1923, ao seu engajamento através do famoso Movimento Antigonish, desenvolvido em Nova Scotia, New Brunswick e Prince Edward Island. Tratava-se de um tipo de extensão universitária bastante diferente dos primeiros exemplos praticados na Inglaterra e mais assemelhada à nossa experiência no Brasil. Consistia de um trabalho de desenvolvimento de comunidades envolvendo pescadores e suas famílias. Para tanto, promoviam-se reuniões de massa e grupos de estudo informal em que se debatiam os problemas da comunidade e se discutia a importância e possibilidade de auto-ajuda e a idéia de aprender através de ação econômica em sociedades de crédito e cooperativas. Começou com agricultores e pescadores e se estendeu aos mineiros de carvão e aos siderúrgicos (Peers, 1972: 267). Nos EUA, a Universidade de Wisconsin se engajou na promoção de EJA, via extensão, a partir de 1906, com a oferta de classes presenciais, cursos através de correspondência, conferências, bibliotecas e, posteriormente, através de programas de rádio e televisão. Para não criar uma enganosa impressão de que o envolvimento da universidade no campo da EJA através de extensão era consenso, faz-se necessário lembrar que muitas universidades européias se negaram a aceitar qualquer responsabilidade com o público externo. Viam a si mesmas principalmente como centros de estudo, com uma função 100
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secundária de transmitir o conhecimento gerado dentro da universidade para aquelas pessoas avançadas intelectualmente para entendê-lo. Ainda em 1956, o Professor Wilpert, da Universidade de Colônia/Alemanha, afirmou categoricamente: “Olhando esta questão (da responsabilidade com a comunidade) de dentro da universidade, eu negaria qualquer responsabilidade. A única função da universidade é de dar o melhor de si na pesquisa e de ensinar o que os seus membros descobrem através da pesquisa” (Titmus, 1981: 40). Na mesma reunião de 1956, o Reitor da Universidade de Strasburgo/França, M. Babin, declarou: “O ensino superior na França não pode ser diretamente responsabilizado pela educação de adultos (…). Incluir uma tal tarefa entre os deveres de um professor universitário seria como rebaixá-lo a homem comum, que não serviria nem beneficiaria ninguém” (Titmus, 1981: 40). Tais atitudes frente à EJA não se distanciam muito da essência do comentário do nosso ex-ministro de Educação, Prof. José Goldenberg, quando afirmou: “O adulto analfabeto já encontrou o seu lugar na sociedade. Pode não ser um bom lugar, mas é o seu lugar. Vai ser pedreiro, vigia de prédio, lixeiro, ou seguir outras profissões que não exigem alfabetização. Alfabetizar o adulto não vai mudar muito a sua posição dentro da sociedade. E pode até perturbar” (Beisiegel, 1997: 240). A EJA como extensão universitária no Brasil Dirigindo a atenção para a nossa realidade, em primeiro lugar, faz-se necessário lembrar que um dos teóricos mais influentes, tanto no Brasil como internacionalmente, e que relacionou EJA com extensão universitária, foi o professor Paulo Freire, quando liderou a equipe do Serviço de Extensão Cultural da então Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco) no final da década de 50. Atualmente, um número significativo de universidades brasileiras continua desenvolvendo atividades de EJA sob a bandeira da extensão universitária. Entretanto, as pessoas envolvidas em tais atividades nem sempre reconhecem o que fazem, e as atividades em si não são reconhecidas como atividades de EJA. É claro que as atividades mais diretamente ligadas à escolaridade de pessoas jovens e adultas, como as desenvolvidas pelo Programa de Alfabetização Solidária (PAS) e pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), e mais recentemente pelo Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA), são rotuladas como sendo EJA, enquanto outras atividades voltadas para o desenvolvimento de comunidades, para treinamento e qualificação profissional/artesanal, para atividades artísticas, culturais, recreativas e esportivas, não são facilmente reconhecidas como EJA. Em que pese o fato de ter o conceito de educação de adultos se ampliado consideravelmente desde as primeiras experiências de extensão universitária na Inglaterra – vista, naquela época, como a transmissão de conteúdos programáticos de uma forma sistematizada para uma clientela adulta – atualmente a EJA recebe o seguinte conceito: “(…) todo processo de aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas consideradas „adultas‟ pela sociedade desenvolvem suas habilidades, enriquecem seu conhecimento e aperfeiçoam suas qualificações técnicas e profissionais, direcionando-as para a satisfação de suas necessidades e as da sua sociedade. A educação de adultos inclui a educação formal, a educação não-formal e o espectro da aprendizagem informal e incidental disponível numa sociedade multicultural, onde os estudos baseados na teoria e na prática devem ser reconhecidos” (Declaração de Hamburgo sobre Aprendizagem de Adultos, parágrafo 3).
Existe ainda uma dificuldade para quebrar o modelo escolar da EJA, de modo a estabelecer, na teoria e na prática, a articulação concreta e vital entre educação e vida – educação como processo de humanização, nas palavras de Freire (1987: 30). O conceito da 101
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educação permanente, da educação continuada, da educação ao longo da vida tem sido aceito, em parte, na teoria, mas está muito longe de qualquer expressão prática. Embora reconheçamos as pressões sociais para „resolver‟ a dívida educacional – mais de 15 milhões de adultos analfabetos, no Brasil, dos quais quase a metade na região Nordeste – é preciso frisar que há outras questões de igual importância: toda a área de qualificação e requalificação profissional e treinamento, a relação entre EJA e terceira idade23, EJA e os meios de comunicação de massa, EJA e meio ambiente, apenas para citar estes exemplos. No contexto das universidades brasileiras, apesar dos esforços do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (FONAPRACE) para colocar em debate a responsabilidade social da universidade com relação à comunidade externa e criar canais para atender as demandas e necessidades dessa comunidade, a extensão universitária permanece o eixo menos prestigiado da tríade ensino, pesquisa e extensão. Esta carência de prestígio e respeitabilidade se transfere ao campo da EJA, quando esta tenta se firmar como campo acadêmico de estudo. A preocupação elitista da grande maioria das universidades aponta no sentido de que a EJA seja percebida como questão marginal, precisamente porque os sujeitos da EJA são os que, nos aspectos econômico e social, possuem menos valor. São poucas as universidades que se dedicam à EJA, seja através do ensino, da formação de professores ou da pesquisa. Em muitas universidades britânicas, a velha e rica tradição de extensão tem sido substituída por „empreendedorismo‟ como atividade muito mais lucrativa e academicamente mais aceitável na época pós-Thatcher. A mesma carência de prestígio e de respeitabilidade por parte da academia também se reflete na dificuldade e resistência em entender e explorar o conceito da EJA na sua amplitude. É necessário entender que a „educação de adultos‟ significa „educação dos adultos‟ e não somente daquele segmento da população, excluído do processo de escolarização. Embora reclamemos que a EJA em geral carece de recursos, é preciso ressaltar que uma parte da EJA – aquela que interessa à produção - possui bastante prestígio e recebe investimentos volumosos (Gelpi, 2000: 318). A dimensão escolar da EJA ainda constitui a parte mais visível do iceberg, tanto em termos de práticas como em termos de pesquisas. Porém, as práticas extensionistas das universidades freqüentemente revelam uma diversidade e riquezas submersas que dão sustentação a um conceito de educação como processo permanente, sem idade certa para começar nem para concluir. Assim, seria possível postular a existência de uma tensão não somente entre a pesquisa e o ensino universitários e as práticas de EJA desenvolvidas, implícita ou explicitamente, como atividades de extensão, mas também entre estas mesmas atividades e as preocupações principais dos grupos e núcleos que tomam o fenômeno de EJA como o seu objeto de estudo na academia.
Articulação nacional no mundo universitário Esta mesma tônica postulada entre as áreas acadêmicas da EJA e suas práticas extensionistas se repete no quadro das relações inter-universitárias neste campo de estudo. Há um número crescente de grupos, núcleos, áreas e linhas de pesquisa enfocando as distintas dimensões do campo de EJA: formação de educadores, metodologias, material didático, pesquisa, intervenção direta etc. Todavia, ainda existe uma ausência de mecanismos de articulação mais sistematizada e estruturada entre as universidades envolvidas nessa área 24. 23
A meta 19 do capítulo sobre educação de jovens e adultos (III.5), no PNE, visa a “estimular as universidades e organizações não-governamentais a oferecer cursos dirigidos à terceira idade”. 24 Listamos, aqui, as universidades conhecidas por nós que possuem grupos estabelecidos desenvolvendo atividades no campo da EJA: UFPB, UFMG, UNEB, UFF, UERJ, UFPE, UNICAMP, UNESP (Marília), UFRGS, UNIJUI, PUC-SP.
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Entre os mecanismos existentes, apontamos, como exemplos, os Encontros de Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores realizados dentro do contexto do Congresso de Leitura do Brasil (COLE) – neste ano de 2001 foi realizado o 5o Encontro -; os três Encontros Nacionais de EJA (ENEJAs), realizados no Rio de Janeiro em 1999, em Campina Grande/PB em 2000 e em São Paulo em 2001; as atividades do Grupo de Trabalho de Educação de Pessoas Jovens e Adultas (GT 18) da ANPEd (o GT foi criado em 1998); algumas publicações que tentam identificar os grupos, levantar e analisar a produção neste campo, como o Dossiê de EJA, apresentado na Revista da UFMG, Educação em Revista25; as pesquisas sobre o estado da arte em EJA26 e o recente envolvimento de algumas universidades nos Fóruns Estaduais de EJA já existentes em doze estados27. Porém, o grau de desconhecimento sobre o que é produzido neste campo e de desarticulação entre as fontes desta produção é preocupante. O FONAPRACE, entre os vários fóruns universitários nacionais, tem se revelado como um dos mais ativos. Porém, este mecanismo é pouco explorado como meio de articulação entre os grupos universitários de EJA. No contexto internacional, já existem vários exemplos de organizações e associações fundadas para articular as universidades e indivíduos envolvidos no campo da EJA. Na Inglaterra, a Conferência Permanente sobre o Ensino e Pesquisa Universitários na Educação de Adultos – SCUTREA (The Standing Conference on University Teaching and Research in the Education of Adults) foi fundada em 1970, cem anos depois das primeiras experiências de extensão universitária, objetivando constituir um fórum para todas as pessoas que se ocupam da pesquisa em educação de adultos e com o desenvolvimento de educação de adultos como um corpo de conhecimento28. Existem organizações congêneres no Canadá, Austrália e vários países da Europa: a Conferência de Pesquisa em Educação de Adultos (AERC), a Associação Australiana de Educação Comunitária e de Adultos (AAACE), a Associação Canadense para o Estudo da Educação de Adultos (CASAE) e a Sociedade Européia para Pesquisa na Educação de Adultos (ESREA)29. Na América Latina, o Conselho de Educação de Adultos da América Latina (CEAAL) se dedica a um trabalho de articulação de grupos ativos no campo da EJA e da educação popular, mas sem voltar-se especificamente para grupos universitários. Historicamente a EJA, no Brasil, tem sido caracterizada pela sua riqueza e criatividade, ao lado de um forte grau de descontinuidade e desarticulação. As práticas citadas acima oferecem exemplos de como tem sido enfrentada esta fragmentação em outros países. Cabe-nos, então, criar os mecanismos que possam fortalecer não somente as nossas práticas de investigação e ensino, mas também uma interação efetiva e coerente com as práticas de extensão que se caracterizam como EJA.
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FAE/UFMG Educação em Revista, no. 32 “Dossiê Educação de Jovens e Adultos”, Belo Horizonte:UFMG, dezembro de 2000. 26 Haddad, Sérgio. Ensino Supletivo no Brasil: o estado da arte. Brasília: INEP, REDUC, 1987 e a continuação da mesma pesquisa cobrindo o período de 1986 a 1998 - Haddad, Sérgio (Coord.) O estado da arte das pesquisas em educação de jovens e adultos no Brasil: a produção discente da pós-graduação em educação no período 1986-1998. São Paulo: Ação Educativa, 2000. 27 Há articulações intersetoriais constituídas nos Estados da Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Tocantins, Mato Grosso, Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul e mais duas em formação na Bahia e Goiás. O Fórum do Rio de Janeiro é o mais antigo, tendo sido criado em 1996. 28 SCUTREA ‟97 Crossing borders breaking boundaries: research in the education of adults. Leeds: SCUTREA, 1997. 29 Adult Education Research Conference, Australian Association of Adult and Community Education, Canadian Association for the Study of Adult Education e European Society for Research in the Education of Adults, respectivamente.
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Perspectivas Nos planos internacional e nacional, há ampla evidência da contribuição da universidade no fortalecimento da EJA, seja através de práticas de extensão, seja das funções mais tradicionais da universidade, que é de formar educadores e pesquisadores bem como de produzir conhecimento. Porém, dentro da universidade, existe aparentemente uma certa dificuldade de sincronia e comunicação entre os serviços de extensão e os estudiosos de EJA, geralmente lotados nos departamentos de educação. Percebemos que há uma tendência entre os estudiosos de enfocar a dimensão escolar da EJA, enquanto a extensão se preocupa com os desdobramentos da EJA em termos de cultura geral. O diálogo entre os dois segmentos se torna essencial para que se possa manter a riqueza e amplitude do conceito de EJA como formação humana, de modo que a construção e a apreensão da cultura e do conhecimento sejam elementos constituintes (Arroyo, 2001: 17). A EJA não pode prescindir da pesquisa nem de uma extensão que atenda aos anseios da comunidade externa, mas também deve preocupar-se em sistematizar e analisar as atividades desenvolvidas30. A vitalidade e relevância da EJA como campo de estudo acadêmico dependem de sua capacidade de estabelecer uma estreita interação com os outros segmentos promotores da EJA, sejam eles instâncias governamentais ou não-governamentais. No contexto nacional, os fóruns estaduais de EJA se destacam como espaço privilegiado para esta interação. Porém, não se pode prescindir daquela função tradicional de pesquisa que objetiva entender não somente a realidade atual, como também investigar as tendências que despontam no cenário nacional e internacional. Nas universidades brasileiras, a EJA ainda está na adolescência. A passagem para a fase adulta dependerá de um compromisso inabalável com os sujeitos deste processo, com a busca de investimentos e com a produção de conhecimentos que estabeleçam a centralidade do ser humano no processo de desenvolvimento. Terá como princípio fundamental a tarefa de contribuir para uma compreensão totalizante do jovem e adulto “como ser humano, com direito a se formar como ser pleno, social, cultural, cognitivo, ético, estético, de memória...” (Arroyo, op. cit.: 15).
Referências Armstrong, Paul, Miller, Nod e Zukas, Miriam (ed.) Crossing borders breaking boundaries: research in the education of adults. Proceedings of the 27th Annual SCUTREA Conference, Leeds: SCUTREA, 1997. Arroyo, Miguel. “A educação de jovens e adultos em tempos de exclusão”. In: Alfabetização e Cidadania, No. 11 – Práticas educativas e a construção do currículo, São Paulo: RAAAB, 2001. Beisiegel, Celso de R. “A política de educação de jovens e adultos analfabetos no Brasil.” In: Oliveira, Dalila A. (org.) Gestão democrática da educação. Petrópolis: Vozes, 1997. BRASIL. Diagnóstico da situação educacional de jovens e adultos. Brasília: MEC/ INEP, 2000. Elias, Norbert e Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 30
No PNE, as instituições de educação superior são incentivadas “a oferecerem cursos de extensão para prover as necessidades de educação continuada de adultos, tenham ou não formação de nível superior” (PNE, III Modalidades de Ensino, 5. Educação de Jovens e Adultos, 5.3 Objetivos e Metas, 18).
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105 Gelpi, Ettore e Ireland, Timothy D. “Reflexões de um „clérigo errante‟: uma entrevista com Ettore Gelpi”. In Temas em Educação-PPGE. João Pessoa, No. 7/8 – 1998-1999 (publicado em 2000). Haddad, Sérgio & Pierro, Maria Clara Di, et al. Resultados preliminares de um balanço da produção científica brasileira em educação de jovens e adultos na última década. São Paulo: s/n, (mimeo). Harris, W.J.A. Comparative adult education: practice, purpose and theory. London: Longman, 1980. Kelly, Thomas. A history of adult education in Great Britain. Liverpool: Liverpool University Press, 1970. Marchezan, Nelson. Plano Nacional de Educação. Brasília: Câmara dos Deputados, 2000. Melo Neto, José F. Extensão universitária: uma análise crítica. João Pessoa: PPGE Edições/Editora Universitária-UFPB, 2001. Peers, Robert. Adult education: a comparative study. London: Routledge & Kegan Paul, 1972. Titmus, Colin. Strategies for adult education. Milton Keynes: The Open University Press, 1981. UFMG. Educação em Revista. Dossiê Educação de Jovens e Adultos, no. 32, Belo Horizonte: UFMG, Dezembro de 2000.
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FISIOTERAPIA NA COMUNIDADE: a possibilidade de mudanças na formação acadêmica a partir de um projeto de extensão universitária
Kátia Suely Q. S. Ribeiro1 A formação acadêmica dos profissionais de saúde tem sido marcada pela ênfase à prática curativa desenvolvida em ambientes hospitalares, preparando os futuros profissionais para atuar, principalmente, na rede privada de serviços de saúde. O curso de Fisioterapia não é exceção. As condições de surgimento e evolução da profissão influenciaram sobremaneira a formação acadêmica em direção a uma atuação muito voltada para o tratamento de seqüelas realizado em serviços de atenção secundária e terciária2. A Fisioterapia é uma profissão relativamente nova. Tendo surgido após o advento do capitalismo, teve sua gênese influenciada pelas necessidades deste sistema. Dois fatores foram determinantes no surgimento da profissão. Um deles foi o crescente número de acidentes de trabalho após a Revolução Industrial, decorrentes das precárias condições de trabalho, pois o trabalhador, visto apenas como um instrumento de se obter mais valia, era explorado além do limite de suas forças, com jornadas prolongadas e em ambientes totalmente insalubres. Nesse contexto, a necessidade de reabilitar esses trabalhadores é impulsionada, por um lado, pela escassez de mão-de-obra que comprometia a produção, por outro lado, pela pressão dos trabalhadores por uma assistência aos acidentados no trabalho. A partir daí, são realizados estudos relacionados à área de reabilitação e, no início do século XX, no processo de especialização da Medicina, surge, então, a Medicina Física e Reabilitação como especialidade do trabalho médico, que posteriormente originou a Fisioterapia. Outro evento que também teve grande peso no surgimento dessa profissão foi a necessidade de reabilitar as pessoas com seqüelas das guerras, para que elas também pudessem ser reinseridas no mercado de trabalho. Isso ocorria porque a grande mortalidade durante a guerra levou a uma queda na força de trabalho ativa, ao mesmo tempo em que o capitalismo em crescimento solicitava grandes contingentes de trabalhadores. Por essas razões, e também procurando inibir os movimentos que pressionavam por uma solução para as pessoas com seqüelas de guerra, é que muitos esforços foram envidados no sentido de disponibilizar serviços de reabilitação para esses trabalhadores. No Brasil, o processo não foi muito diferente, embora um pouco mais tardio. Após as duas guerras, vão surgindo alguns serviços de fisioterapia, implantados em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na década de 1950, o nosso país possuía um dos maiores índices de acidentes de trabalho na América do Sul. Isso gerou uma pressão tanto dos trabalhadores quanto de organizações internacionais, que acabou mobilizando esforços para expansão dos serviços de reabilitação de modo a atender aos trabalhadores considerados incapacitados. O elevado número de crianças com seqüelas de poliomielite também influenciou nesse processo de expansão dos serviços de reabilitação, surgindo instituições para atendimento específico das mesmas como a Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD) e as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) (Rebelatto & Botomé, 1999 - Figueroa, 1996). Em 1956, tem início o primeiro Curso de Fisioterapia de nível superior no Brasil, com duração de dois anos, destinado a formar fisioterapeutas para atuarem na reabilitação 1 2
Professora do curso de Fisioterapia da UFPB. Mestre em Educação. Os níveis de atenção à saúde são classificados de acordo com o grau de complexidade. Os serviços de atenção primária ou básica correspondem às Unidades Básicas de Saúde, enquanto os níveis de atenção secundária e terciária incluem serviços de maior complexidade, tais como centros de referência e hospitais.
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(Figueroa, 1996: 48-50). Em 1969, a Fisioterapia foi regulamentada no Brasil como profissão de nível superior. Percebemos, assim, que tanto as circunstâncias que motivaram o surgimento da Fisioterapia quanto o contexto histórico em que ela surgiu favoreceram a formação de um profissional de característica eminentemente reabilitadora, voltado para questões individuais de saúde, na realidade mais direcionado às doenças e suas seqüelas, atuando primordialmente em serviços concentrados em centros de reabilitação. Foi com essa lógica que se estruturaram os cursos de Fisioterapia no Brasil. Baseados no modelo biomédico, que tem como princípios o mecanicismo, o biologicismo, o individualismo, a tecnificação do ato profissional e a ênfase na atuação curativa, a organização curricular de Fisioterapia vem concentrando a abordagem no estudo das doenças reabilitáveis e das técnicas utilizadas para esse fim, com as práticas sendo desenvolvidas em hospitais e clínicas especializadas. Em geral, os cursos restringem a discussão de prevenção de doenças e a atuação em serviços de atenção primária à saúde à disciplina de Fisioterapia Preventiva, sendo esta, na maioria dos currículos, oferecida aos estudantes do final do curso. Essa estrutura não favorece ao acadêmico de Fisioterapia uma aproximação com a saúde coletiva, distanciando-o da realidade social da população pobre, do conhecimento concreto acerca do adoecimento desses sujeitos e das estratégias que eles adotam para enfrentarem seus problemas. Em decorrência dessa formação, existe um certo despreparo do fisioterapeuta para atuar em serviços de atenção básica, cuja simplificação tecnológica exige maior criatividade para execução do tratamento, fazendo-se necessária uma adaptação dos procedimentos à realidade social onde o trabalho é desenvolvido. No entanto, a dificuldade do profissional não se resume a este aspecto. A prioridade que é dada, na organização curricular, à abordagem direcionada para uma quantidade específica de problemas, com predomínio para o estudo das doenças que deixam seqüelas reabilitáveis, exclui da discussão uma grande margem de problemas de saúde comuns à população, ocasionando ao profissional dificuldade de se inserir nas ações mais voltadas para a manutenção da saúde. Essa dificuldade também se faz presente na abordagem de questões mais gerais de saúde, com as quais os demais profissionais da equipe de saúde estão acostumados a lidar, mas que não dizem respeito diretamente à prática de reabilitação. Um exemplo bem ilustrativo dessa questão é a disciplina de Parasitologia que não é obrigatória para o estudante de Fisioterapia e cujo conhecimento é fundamental na prática profissional, principalmente na atenção básica, face às condições sanitárias da população. Em vista deste quadro, destaca-se a importância da participação dos acadêmicos de Fisioterapia em experiências que lhes permitam vivenciar a atuação na atenção primária à saúde com uma intervenção que também vise à promoção e manutenção da saúde3.
O projeto fisioterapia na comunidade: uma experiência na atenção primária à saúde Desde agosto de 1993 vem sendo desenvolvido no curso de Fisioterapia da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, um projeto de extensão universitária denominado Fisioterapia na Comunidade, que vem buscando proporcionar aos acadêmicos deste curso uma experiência de atuação na atenção primária à saúde que, além de realizar ações de 3
Em uma apresentação clássica dos níveis de prevenção de doenças, tem-se a seguinte divisão: a promoção da saúde, que se dá no sentido de promover condições que possam assegurar a saúde da população através de medidas de ordem geral; a manutenção da saúde, através do desenvolvimento de ações que visem manter as condições de saúde existentes e evitar o adoecimento; e a recuperação da saúde, que se procede quando já existe uma doença instalada, visando evitar o surgimento de seqüelas ou tratá-las quando as mesmas já estão instaladas. A reabilitação enquadra-se neste último nível.
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reabilitação e manutenção da saúde, procura desenvolver uma atuação comprometida com as classes populares. O Projeto Fisioterapia na Comunidade é desenvolvido em um trabalho conjunto com outros projetos de extensão da UFPB. Um deles é denominado Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família, e, baseando-se na idéia de saúde da família, propõe a participação dos estudantes, assumindo a responsabilidade de fazer o acompanhamento à saúde das famílias, tendo como referencial a Educação Popular. Participam deste Projeto estudantes dos cursos de Medicina, Enfermagem, Nutrição e Farmácia. O outro projeto é vinculado ao curso de Odontologia e é intitulado, Odontologia: Atenção Primária à Saúde na Comunidade Maria de Nazaré – componente de saúde bucal. As atividades destes Projetos são desenvolvidas na comunidade Maria de Nazaré, porém, nós do Projeto Fisioterapia na Comunidade também realizamos atividades junto às Equipes de Saúde da Família do Grotão. O Grotão é um bairro que está localizado a 15 km do centro de João Pessoa, e cuja área inclui o bairro em si e três favelas adjacentes, que são denominadas de Favela do Arame, Favela do Meio e Favela Bananeiras. Estão instalados nesse bairro duas Unidades de Saúde da Família, que foram implantadas em janeiro de 2000, e um Centro de Saúde. Nele residem cerca de duas mil famílias, com uma população estimada em torno de sete mil e oitocentas pessoas4. A comunidade Maria de Nazaré fica vizinha ao Grotão e é uma favela que surgiu em 1987, pela ocupação de uma área que seria destinada à construção de uma praça, uma creche e uma escola, para atender à população que habita os conjuntos residenciais dos Funcionários II, Funcionários III e Grotão. Segundo dados da Fundação de Ação Comunitária, ela possuía em 1997 quatrocentos e setenta e nove domicílios, totalizando dois mil trezentos e noventa habitantes (Luna, 1999). Ao longo dos quatro anos em que atuamos nessas comunidades integrados com estudantes e professores de outros cursos da área de saúde, o Projeto Fisioterapia na Comunidade passou por mudanças e foi se tornando conhecido entre os estudantes deste curso, com um número crescente de interessados em participar dele. No momento atual, contamos com a participação de vinte e um estudantes de Fisioterapia, realizando atividades na comunidade Maria de Nazaré e Unidades de Saúde da Família (USF) no Grotão. As atividades na comunidade consistem em acompanhamento à saúde das famílias, atendimento fisioterapêutico domiciliar, atividades educativas coletivas e escola de posturas. Nas USF realizamos atendimento fisioterapêutico domiciliar e participamos, embora não de forma sistemática, dos grupos de gestantes e hipertensos, além de atividades de orientação postural nas escolas e em eventos de rua organizados pelas equipes de saúde da família. São realizadas, também, reuniões em que se discute a fundamentação teórica e questões relativas à organização das atividades. A participação dos estudantes de Fisioterapia no Projeto consistia, inicialmente, de atividades de reabilitação e integração nas ações educativas coletivas desenvolvidas pelo grupo como um todo. Nessa fase, era exigido que o estudante tivesse cursado algumas disciplinas do ciclo profissionalizante para ser admitido no Projeto. No decorrer do trabalho com os outros Projetos, foi proposto que os estudantes de Fisioterapia se engajassem no trabalho de acompanhamento às famílias, além de participarem do atendimento fisioterapêutico. Existiu, no princípio, uma resistência dos alunos para se integrarem nesta atividade, porém, esta nova fase do trabalho representou um marco na experiência deles. Habituados durante o curso a desenvolver atividades de reabilitação, precisavam nessa tarefa, redirecionar seu olhar da seqüela a ser reabilitada, para as condições de vida que
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Dados fornecidos pela Equipe de Saúde da Família do Grotão em junho de 2001.
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comprometiam a saúde. Deveriam, também, mudar a perspectiva de atuação da intervenção visando a reabilitação para a orientação quanto aos cuidados com a saúde. A dificuldade demonstrada pelos estudantes que já cursavam os períodos mais avançados em se situar nessa lógica de atuação e intervir em situações em que não haviam seqüelas a serem reabilitadas, mostrou-nos a importância de que o acadêmico pudesse experimentar uma atuação visando a promoção e manutenção da saúde antes de direcionar sua intervenção para a reabilitação. Foi a partir dessa percepção que mudamos os critérios de admissão no Projeto, permitindo a participação de estudantes a partir do 3º período do curso. A aproximação com o Projeto Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família, foi fundamental nas mudanças que ocorreram no Projeto Fisioterapia na Comunidade, pois possibilitou um alargamento na nossa compreensão da atuação do profissional de saúde na atenção básica, como também representou um encontro com o instrumental teórico da Educação Popular, que se tornou um elemento norteador da nossa ação, suprindo uma deficiência que tínhamos até então. No decorrer desse processo, alguns questionamentos foram surgindo com relação à influência da experiência neste Projeto para a formação acadêmica do estudante de Fisioterapia. Na condição de aluna do Mestrado de Educação da UFPB, desenvolvi uma pesquisa que permitiu analisar, com base em entrevistas com estudantes participantes do trabalho e moradores da comunidade e anotações em um diário de campo, que mudanças essa experiência pode proporcionar para a formação acadêmica em Fisioterapia e que repercussão poderá ter na vida profissional desses sujeitos. Nesse sentido é que nos propomos discutir as seguintes questões: o que representa para acadêmicos de Fisioterapia a experiência em um projeto de extensão desenvolvido em nível primário de atenção à saúde que se orienta pelo instrumental teórico da Educação Popular? Que tipo de influência essa experiência pode exercer na vida profissional desses sujeitos? Será abordado inicialmente até que ponto a oportunidade de participar de um trabalho na atenção básica pode contribuir no sentido de superar as dificuldades presentes à prática do fisioterapeuta na atenção primária à saúde.
A possibilidade de aprender a cuidar da saúde antes de tratar de seqüelas Quando iniciam a participação nas atividades de educação em saúde e de acompanhamento às famílias, propostas no Projeto, os estudantes mostram-se inseguros quanto ao trabalho a ser realizado, uma vez que o curso não oferece elementos que facilitem essa abordagem, fazendo-os sentir que falta experiência e embasamento teórico suficientes para norteá-los no desenrolar das atividades. O fato de que a disciplina de Fisioterapia Preventiva, que permite experimentar essa atuação, seja alocada no final do curso, não favorece uma sensibilização para este tipo de trabalho e encontra o estudante, após aproximadamente quatro anos de experiência em reabilitação, com uma mentalidade fortemente reabilitadora. Os primeiros estudantes do Projeto Fisioterapia na Comunidade a participarem das visitas cursavam períodos mais avançados do curso e demonstraram dificuldades em se integrar nesta atividade, acabando por se dedicarem exclusivamente à reabilitação através do atendimento domiciliar e na Unidade de Saúde. Acompanhando duas estudantes que tentaram desenvolver o trabalho com as famílias nessa fase, percebi que elas ficavam muito presas à verificação da pressão arterial e questionamento quanto à presença de sintomas. Tentei alargar um pouco a abordagem, mas também senti dificuldade. Não havia muito entusiasmo delas ao 109
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chegarem nas casas, parecia uma obrigação, uma coisa vazia. De minha parte também havia ainda muita insegurança de como proceder. Estávamos todos tentando construir um modelo de assistência com o qual não tínhamos qualquer familiaridade e nem sabíamos bem como fazer. A lógica biologicista era muito forte em nós. Em outra ocasião acompanhei estudantes que ingressaram no Projeto em fases iniciais do curso nas visitas às famílias. Senti uma diferença muito grande na abordagem e no relacionamento com a família. Era evidente o vínculo que elas tinham com aquelas pessoas e a segurança e tranqüilidade com que conduziam as visitas. Uma das estudantes conversou com a mãe sobre o remédio da escabiose das crianças, sobre o emprego que o marido dela havia conseguido e sobre a possibilidade de se mudarem para Campina Grande. Conferiu o cartão de vacinação das crianças e brincou um pouco com elas. Se, a princípio, os estudantes de Fisioterapia ficavam receosos e inseguros quanto ao seu papel nas visitas, com o tempo, foram aprendendo essa nova forma de atuação. Isso tem representado um aprendizado importante no sentido de alargar a perspectiva de atuação do profissional. Destacou-se, desse modo, a importância da experiência de acompanhamento às famílias para os estudantes de fases mais iniciais do curso. Percebemos que essa experiência permite-lhes uma atuação que parte do geral para o específico, experimentar a ação de cuidar da saúde das pessoas antes de cuidar de seqüelas, e ainda, vivenciar o cuidado e formar vínculos com as famílias, como está sendo proposto atualmente nas propostas de humanização do atendimento em saúde. As palavras de Cecília, uma das estudantes que participou do trabalho, expressam a falta de preparação na formação acadêmica de Fisioterapia para uma atuação mais alargada: “Na Fisioterapia uma coisa que eu acho que deveria mudar, a gente deveria primeiro aprender a prevenir, aprender a lidar com essas pessoas, ter essa experiência que a gente teve no Grotão, no começo do curso. (...) É mais difícil aprender a prevenir depois que aprendeu a reabilitar (...) a experiência é pouca, e sem experiência não há segurança nem preparação (Cecília)5. A participação desta estudante no Projeto se deu quando ela já cursava disciplinas profissionalizantes e, portanto, direcionadas à reabilitação. Nas suas palavras revelam-se o sentimento de insegurança que a falta de experiência acarreta e a necessidade de que essa vivência seja proporcionada mais precocemente, como forma de possibilitar uma atuação que transcenda estes limites. Quando o estudante já foi iniciado na ação reabilitadora, parece ocorrer um estreitamento na concepção de atuação que direciona seu olhar e sua abordagem especificamente para esta prática com exclusão de outras possibilidades de cuidados com a saúde. Daí a necessidade de que o acadêmico possa vivenciar uma atuação que aborde cuidados mais gerais com a saúde, antes de aprender procedimentos de reabilitação. Isso foi bem ilustrado pelas palavras de um dos participantes do trabalho afirmando que o aluno de início do curso, ao participar do acompanhamento às famílias, está resguardado pela desinformação, ou seja, não sendo possuidor de conhecimentos relativos ao tratamento de seqüelas, eles conseguem ter uma atuação voltada para os cuidados com a saúde das pessoas. Revelou-se, desse modo, a importância de se experimentar formas de ser profissional de saúde antes de aprender ações específicas do fisioterapeuta, a fim de que se possa alargar a perspectiva de atuação em direção à proteção e manutenção da saúde além da reabilitação.
A vivência no trabalho de acompanhamento às famílias, antecedendo à atuação na reabilitação, tem demonstrado influenciar também a prática reabilitadora, pois o alargamento na compreensão sobre o processo saúde-doença e sobre a intervenção terapêutica que essa vivência proporciona, tende a permanecer mesmo quando o estudante parte para exercitar o 5
Foi atribuído um nome fictício aos entrevistados.
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papel mais específico de sua profissão. Os estudantes que tiveram esta experiência conseguem conciliar o atendimento de reabilitação com as orientações mais gerais. Liliana foi uma das alunas que expôs esta perspectiva: “Você une as duas coisas. Você não vai na casa do paciente fazer só atendimento, você faz atendimento e visita, quando vai fazer o atendimento. Você se acostuma. Você não consegue ir lá e só perguntar como é que está a perna...Você pergunta como é que está tudo. Você vê o paciente como um todo” (Liliana).
Percebe-se que, mesmo estando atuando na reabilitação, o estudante não deixa de se envolver em questões mais gerais de saúde que surgem no contato com membros da família. Essa forma de atuar indica um olhar mais alargado sobre a pessoa em tratamento e quanto às possibilidades de intervenção profissional.
A inserção na realidade social alargando a compreensão sobre o ser humano e a saúde A inserção em uma realidade social tão diferente da que é habitual aos participantes do Projeto, causa-lhes estranhamento e surpresa. Uma das estudantes, Branca, indagada se sentia medo no trabalho por ser desenvolvido em uma favela, destaca que a dificuldade que tem é com relação à convivência com pessoas com estilos de vida e valores tão diferentes dos seus: “Não, medo não. Agora traz, assim, a questão de você não estar acostumada. Às vezes você chega numa família, numa casa, e você vê que a casa é suja, que a criança não é bem cuidada. Está entendendo? Que eles não têm o que comer. Isso choca a pessoa, porque você está acostumado a sair da sua casa visitar fulano, visitar sicrano, tudo organizadinho. Você chega lá, a estrutura da família totalmente diferente, é uma mãe com três filhos, cada um com um pai diferente, um mora com o avô, o outro mora com não sei quem. E você vê que não tem um ambiente que favoreça a pessoa ter aquela tranqüilidade, aquela paz, é uma coisa muito tumultuada. Acho que isso é que faz você sentir a diferença”.
É difícil, após tantos anos inseridos numa classe social com seus valores e costumes, nos acostumarmos com os estilos de vida das pessoas de uma classe onde há tantas dificuldades. Se inicialmente há esse estranhamento, ao longo da convivência, essa impressão é atenuada, embora ainda existam situações em que encontramos dificuldades de entender e aceitar certas atitudes, principalmente quando estão envolvidas pessoas que dependem do cuidado alheio como é o caso de crianças ou pessoas dependentes fisicamente. Outro sentimento que brota nos participantes do trabalho é a admiração pelo fato de que muitas pessoas das classes populares conseguem ser alegres e se divertir a despeito de suas condições de vida. Ao mesmo tempo em que estranham seus valores e os costumes, se surpreendem com a capacidade que elas têm de conviver com seus problemas e ainda encontrarem alegria em viver naquelas condições. Uma estudante expressa sua admiração com uma senhora de 54 anos que mora na comunidade, que sempre se mostra cheia de vida e muito alegre, dizendo: “Me marcou porque ela é muito alegre. Tenho inveja porque os obstáculos que ela tem na vida não tornam ela muito amargurada, como a minha avó, tenho medo de ficar assim. Gostaria de ter uma velhice assim, tão cheia de vida” (Pitanga). Estas descobertas, resultantes da convivência com os sujeitos das classes trabalhadoras, vão provocando mudanças na compreensão sobre o fenômeno de adoecimento humano em todos
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os estudantes que participam do trabalho. No entanto, essa mudança é mais acentuada nos que atuam no acompanhamento às famílias. A possibilidade de atuar visando o cuidado com a saúde antes de se dedicar à reabilitação, convivendo com os sujeitos das classes populares, envolvendo-se com seus problemas e alegrias, conhecendo seu cotidiano e a realidade social em que estão inseridos, proporciona aos estudantes uma compreensão mais alargada do processo saúde-doença e das possibilidades de intervenção que se apresentam a um profissional de saúde. Nesse aprendizado, eles vão percebendo que outros fatores, além dos biológicos, interferem nos problemas de saúde da população. Nessa nova visão sobre o fenômeno de adoecimento humano, alguns estudantes enfatizam os fatores de ordem psicológica como uma das causas de adoecimento, outros priorizam os de ordem sócioeconômica, mas em geral, todos conseguem transpor a lógica restrita aos aspectos biológicos que ainda é tão enfatizada no meio acadêmico. Nas palavras de Ana se revela esse aprendizado: acho que o que eu tenho de ensinamento desse trabalho é você aprender a conhecer a realidade das pessoas, a ver as pessoas como um todo, não como uma doença, mas como uma pessoa, inserida numa sociedade, numa realidade de condição social, de cultura”.
Esse alargamento na visão é importante não apenas no sentido de se compreender melhor as causas de adoecimento desses sujeitos, mas também, porque leva a uma compreensão diferenciada do papel do profissional de saúde e da relação que ele estabelece com a população. O confronto com a realidade social das camadas populares e os problemas que estas pessoas enfrentam, repercutindo no seu estado de saúde, evidencia ao estudante os condicionantes sócio-econômicos do processo saúde-doença e expõe a fragilidade do modelo de assistência aprendido no meio universitário. Isto pode resultar em um afastamento do estudante em relação a esse tipo de trabalho, pois causa muita frustração saber que o conhecimento adquirido a duras penas na academia não é suficiente para entender e atender aos problemas de saúde coletiva, além de gerar angústia pela sensação de impotência frente à proporção dos problemas. O caso de Carla exemplifica bem essa angústia. Ela iniciou sua participação no Projeto bastante empolgada, afirmando que se sentia muito atraída por trabalhos comunitários e parecia ter muita afinidade com este tipo de atividade. Sua permanência no trabalho, porém, foi bem reduzida. Ficou claro na entrevista que um dos principais motivos deste afastamento foi não ter conseguido um espaço para trabalhar a angústia que sentiu com as dificuldades surgidas neste trabalho. Ela destaca a necessidade de que existam mais momentos em que se possam discutir os problemas que se apresentam: “Eu achava que devia ter mais esse tipo de encontro, assim, com a terapeuta pra gente discutir... (...) Tipo de oficina, como teve aqui, pra gente discutir mesmo. Porque, às vezes, fica muito problema e a gente não tem condição de ir à reunião, e a gente fica querendo... até pra desabafar mesmo. Porque a gente acaba ficando com um fardo em cima das costas, querendo ajudar todo mundo e sem conseguir”.
O exemplo de Carla evidencia a necessidade de um espaço onde os sentimentos que brotam, no contato com as pessoas da comunidade, possam ser trabalhados, pois, se eles proporcionam um apego ao trabalho, também causam angústias que podem afugentar ou ainda causar um distanciamento do estudante em relação às pessoas com quem lida no Projeto. Outros estudantes, contudo, conseguem lidar de forma diferente com essas dificuldades, avaliando, sob outra perspectiva, que as intervenções do profissional de saúde, embora necessárias, são insuficientes para dar conta do problema. Compreender que existem muitas limitações nesse trabalho, mas aprender a valorizar as pequenas conquistas em termos de mudança ao invés de desanimar com as dificuldades, é um avanço. Isso é mais difícil, se levarmos em consideração que, para profissionais que aprendem que o seu papel é de curar ou 112
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reabilitar, é comum o sentimento de frustração por não obterem grandes resultados com sua intervenção. Muitos estudantes, porém, aprendem a valorizar alguns resultados do trabalho embora sejam numa perspectiva muito micro uma vez que as mudanças em nível macro são tão mais difíceis. As palavras de Mariana expõem essa possibilidade: “Para mim, o que me estimulou muito foi que eu estava batendo pra uma moradora fazer o exame de fezes e comprar a vela do filtro e ela nunca fazia. Há umas duas semanas atrás eu cheguei lá e ela estava morta de felicidade, dizendo que tinha feito o exame e tinha comprado a vela do filtro. Ah meu Deus do céu, parece uma coisa. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. De tanto chegar lá e ficar pedindo, consegui. E agora eu estou pedindo também pra que ela tenha mais higiene com os filhos dela, essas coisas. E eu estou vendo que toda semana eu chegava lá e sempre um menino estava gripado, com alguma feridinha, alguma coisa. Agora não”.
Perceber que, apesar da dimensão dos problemas, existem coisas que nos parecem pequenas, mas que são importantes na vida das pessoas, é compreender que os “problemas são muito profundos para serem „curados‟, mas não para serem cuidados” (Vasconcelos, 1999: 150). Desponta, nesta perspectiva, o entendimento de que também são necessárias ações que busquem transformar essa realidade, cabendo ao profissional um papel como ator neste processo de mudança. Sob esse prisma delineia-se a atuação do trabalhador de saúde enquanto aliado das classes populares, perspectiva ainda restrita a minoria dos profissionais de saúde e quase inexistente entre os fisioterapeutas. Outro aprendizado que essa experiência proporciona é no que diz respeito à relação com os clientes. A forma como os assuntos são abordados nos cursos da área de saúde, fragmentando o ser humano em partes a serem estudadas, com a atenção voltada para as doenças que acometem essas partes, desloca o olhar dos estudantes do ser humano para um segmento doente. Comumente as pessoas, nos serviços de saúde, têm seus nomes de batismo trocados pelo nome de alguma doença. Na Fisioterapia, é usual entre profissionais e estudantes se ouvirem os seguintes comentários: “vou atender um AVC”; “Eu tenho um joelho para você atender”, “você já viu aquela síndrome?”, “Aquele PC (criança com seqüela de Paralisia Cerebral) é grave”. Nessa transformação do ser humano doente numa doença, a sua dimensão humana é negada, e ele passa a ser visto como um quadro clínico. Percebemos nesse trabalho que a convivência com a comunidade permite uma visão do ser humano inserido no seu contexto social e cultural, superando essa visão fragmentada que enxerga apenas uma parte de corpo doente. Visitando as pessoas sistematicamente, participando de seu cotidiano, envolvendo-se com seus problemas e compartilhando suas alegrias, os participantes deste trabalho conseguem reorientar o olhar e resgatar a condição humana do ser que costumamos denominar de paciente. Eles passam a percebê-lo como pessoa que tem seus problemas, e que esses problemas também interferem no seu estado de saúde, vindo a se dar conta, também, das mudanças que a doença acarreta na sua vida. Quando adoecemos, não é um segmento do nosso corpo que está enfermo, é a nossa totalidade existencial que sofre, é a vida que adoece em suas várias dimensões, em relação a nós mesmos, em relação com a sociedade e em relação com o sentido global da vida (Boff, 1999: 143). Essa compreensão favorece o estabelecimento de relações mais humanizadas, superando o distanciamento característico entre os profissionais de saúde e seus clientes, havendo um espaço fecundo para a formação de vínculos entre os estudantes e as pessoas sob seus cuidados. Esses vínculos fazem com que a intervenção tenha um sentido muito maior, pois à habilidade técnica aliam-se a preocupação com o bem-estar do outro, a atenção para com os seus sentimentos e o desejo de dar o melhor de si. É como disse Esaú, um dos estudantes que participou do trabalho: “a questão profissional é a questão mais racional da 113
114 coisa, aí o vínculo com a família torna a gente a fazer a coisa com mais amor e mais vontade”, ou seja, o envolvimento afetivo faz com que o profissional trabalhe com mais empenho, com mais entusiasmo, o que falta em muitos profissionais que, distanciados do sentimento, atuam como que robotizados. O estabelecimento de vínculos traz para o aprendizado a dimensão de sensibilidade, que foi sufocada pelo domínio da razão, mostrando que é possível integrar à progressão do conhecimento uma dimensão sensível, ao que Mafesoli (1998: 71) chama de uma “postura entusiasmante”. E é entusiasmo que se percebe na fala dos estudantes quando se referem ao aprendizado decorrente da experiência com as famílias. Parece que nesse espaço é possível assumir o envolvimento com as pessoas, ao contrário do que acontece nas relações de atendimento nos serviços de saúde. Aprende-se, tradicionalmente, que o profissional de saúde precisa superar sua sensibilidade para ter mais discernimento e agir com a razão. Mas o sensível não é apenas um momento que se deva superar, é preciso considerá-lo como um elemento central no ato de conhecimento (ibid.: 189). A integração da sensibilidade à racionalidade permite um conhecimento mais amplo e modifica a intervenção profissional. Esse resgate da sensibilidade não significa um descontrole emocional do profissional, não é a ênfase ao sentimentalismo, como muitos dos que defendem a ação puramente racional alegam, pois o sentimentalismo é um produto da subjetividade mal integrada (Boff, 1999: 118). O que se propõe é um equilíbrio entre razão e sensibilidade, é um enternecimento, que surge quando o “sujeito se descentra de si mesmo, sai na direção do outro, sente o outro como outro, participa de sua existência, deixa-se tocar pela sua história de vida” (ibid.: 119). A oportunidade de conhecer de perto a realidade de vida das pessoas, também orienta a atuação do profissional para uma intervenção mais contextualizada, mais adequada àquela realidade. A inserção na realidade social faz com que se busque intervir a partir dessa realidade. “Lá no Grotão a gente tem a oportunidade, e é o que devia ser feito por todo profissional de saúde, você conhecer a realidade do paciente porque a partir daí você vai saber que tratamento prescrever, o que é que está causando aquela doença no paciente, que tipo de ambiente ele vive, se o tratamento que você fizer vai ter efetividade ou não. Se eu mando, por exemplo, uma pessoa tomar água filtrada se na casa dele não tem filtro, como é que eu vou fazer um tratamento em cima disso? Então, eu acho que enriquece, você está dentro da realidade, conhecer a vida e a dinâmica do paciente, para a partir daí você aplicar seus conhecimentos” (Ana).
Nos serviços de fisioterapia, quando fazemos orientações para que a pessoa siga alguns cuidados domiciliares, muitas vezes indicamos procedimentos que elas não conseguem realizar, pelo fato de não conhecermos a realidade em que ela vive. Conhecendo a realidade das pessoas, torna-se possível adaptar a orientação de acordo com a possibilidade de ser realizada, e o contato restrito ao atendimento no serviço de saúde não possibilita essa adequação. Costumeiramente orientamos as pessoas que estão sentindo dores musculares a fazerem compressas de gelo. Nesse trabalho, encontramos muitas casas que não têm geladeira, mostrando-nos a necessidade de buscar outras alternativas de tratamento, o que é bem difícil, considerando-se ser o gelo o recurso terapêutico mais acessível se comparado com os demais recursos tecnológicos. Outro aspecto importante nesse aprendizado é que conhecer a dimensão real dos problemas de pessoas das classes populares causa espanto e faz você analisar até que ponto é possível manter a higiene ou outras formas de cuidado, costumeiramente orientadas pelos profissionais de saúde, numa situação em que se somam a falta de recursos materiais e a situação de crises familiares, inviabilizando um cuidado mais adequado. 114
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Esse entendimento, que só é possível quando nos aproximamos do cotidiano dos membros das classes populares, ajuda a irmos aos poucos compreendendo melhor os comportamentos que julgamos e condenamos, quando baseados na nossa experiência de vida. Embora o julgamento moral seja habitual nas relações humanas, na relação entre os profissionais de saúde e a clientela popular, ele tende a ser precipitado, bloqueando a iniciativa de esclarecimento (Vasconcelos, 1999: 108). Nesse caminhar é possível construirmos uma concepção diferente das pessoas das camadas populares sob nossos cuidados. No lugar de “pacientes” e “carentes”, enxergamos agentes importantes no processo terapêutico, sujeitos de uma realidade social repleta de necessidades materiais, mas que enfrentam seus problemas e, não apenas têm capacidade de buscar mudanças nessa realidade, mas também encontram formas de ter prazer em viver. É o que se expressa na fala de Esaú: Aí a gente começa a pensar direitinho, pô, a quantidade de problemas que esse pessoal tem, não é brincadeira não, que a gente não tem, a maioria não tem, é muito grande. E eles vivem, brincam e têm uma vida normal, às vezes mais normal que a da gente, pelo menos aparenta ser. E milhões de problemas. Foi uma coisa que me chocou muito”.
A escassez de recursos estimulando a criatividade e a adaptação do tratamento O atendimento fisioterapêutico é realizado neste trabalho em condições materiais bastante precárias. Os únicos recursos de que dispomos são o gelo, o calor sob a forma de compressas quentes e as nossas mãos. Mesmo estes recursos muitas vezes não estão acessíveis por conta das condições financeiras das pessoas em atendimento. Restam-nos sempre as mãos, que são, na verdade, o recurso mais importante do fisioterapeuta em qualquer circunstância. O espaço físico disponível para o atendimento domiciliar costuma ser bem exíguo, dificultando a movimentação do estudante e restringindo a realização dos procedimentos terapêuticos. Essa situação gera uma certa frustração por sabermos que não estamos disponibilizando às pessoas em tratamento os recursos convencionalmente utilizados, e um desânimo pela certeza de que poderia ser feito um trabalho melhor caso dispuséssemos dos recursos necessários. A falta de recursos foi, portanto, uma das principais dificuldades relatadas pelos estudantes nas entrevistas, mas foi também apontada por muitos deles como um aprendizado, uma vez que, permite-lhes exercitar a criatividade e resgatar a valorização de procedimentos que vêm sendo “esquecidos”, pelo uso quase exclusivo da tecnologia em alguns serviços de fisioterapia. É importante ressaltar que não há qualquer pretensão de fazer aqui uma apologia ao empobrecimento dos serviços de fisioterapia na rede pública, mas sim, de analisarmos a possibilidade de um aprendizado que torne possível a atuação na rede básica de saúde e a revalorização do principal recurso da Fisioterapia que é a cinesioterapia6. As condições em que o tratamento fisioterapêutico é feito, exigem do estudante muita criatividade no sentido de adequá-lo a essa situação e às necessidades do cliente, tornando-o eficaz. Embora isso represente um desafio, os estudantes que colocam essa dificuldade como aprendizado parecem conseguir enfrentá-lo bem, ressaltando o uso da criatividade como forma de driblar esta adversidade. As palavras de Cinira mostram esse entendimento:
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A cinesioterapia compreende a terapia por exercícios e é o recurso terapêutico mais fundamental para o fisioterapeuta.
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116 “É também a questão da criatividade. Isso significa dizer que se eu disser assim, não faço porque não tem material, não, mas tem a questão da criatividade. Se você não for criativa vai ficar só naquilo. Tem essa dificuldade, mas não é tanta dificuldade, não é?” (Cinira).
É interessante que eles vão percebendo resultados no tratamento das pessoas sob seus cuidados, e mostram-se surpresos com o fato de conseguir esses resultados mesmo em condições materiais tão precárias, pois, acostumados com ambientes e recursos mais sofisticados, supunham não ser possível conseguir melhoras naquelas condições. Nos últimos anos, houve um grande avanço tecnológico na área de equipamentos para Fisioterapia. Essa variedade de recursos tecnológicos tem contribuído bastante com o tratamento fisioterapêutico no sentido de alguns efeitos, tais como a analgesia, a estimulação e o relaxamento muscular. Esses recursos, que surgiram como um coadjuvante no tratamento, têm sido encarados por muitos profissionais como um substituto às técnicas mais tradicionais como os exercícios. Disso resulta uma mecanização do atendimento e um menor contato do fisioterapeuta com o paciente. Por esse caminho, também, a Fisioterapia assegura seu espaço no mercado da saúde, aí entendido como “capacidade de consumo de tecnologia por meio da assistência médica” (Smeke & Oliveira, 2001: 121). Percebe-se nas observações dos estudantes que isso também acarreta uma limitação de conhecimentos do profissional que fica excessivamente dependente desses recursos tecnológicos para trabalhar. A oportunidade de desenvolver um trabalho em ambientes que não dispõem desses recursos acaba por estimular o uso de procedimentos mais simplificados, mas que também são eficazes, e em muitos casos, até mais adequados, pela possibilidade de serem utilizados pela família dando continuidade ao tratamento. É nesse sentido que se destaca a cinesioterapia, cuja eficácia é inquestionável e quem vem sendo amplamente substituída pelos equipamentos em alguns serviços. A falta de aparelhos tem servido de desculpa para o não funcionamento de alguns serviços do setor público. Existem fisioterapeutas que, formados para trabalhar essencialmente com aparelhos, são contratados para a rede básica e não desenvolvem o trabalho alegando a falta dos recursos tecnológicos. Isso reflete a inexperiência destes profissionais nos serviços de atenção primária à saúde, mas também pode ser reflexo da falta de compromisso com as pessoas das classes populares, que historicamente enfrentam dificuldades de acesso aos serviços de saúde.
Reformulando noções de educação em saúde a partir da vivência no projeto: estabelecendo relações mais ricas a partir do diálogo Ao deslocar o campo de exercício da prática profissional da universidade para a comunidade, o acadêmico pretende adquirir uma experiência extra-muros que lhe proporcione uma vivência diferente daquela experimentada rotineiramente na universidade. O trabalho comunitário representa uma experiência diferenciada devido às condições de vida de seus moradores, resultando em um aprendizado que pode facilitar ao futuro profissional a atuação na atenção primária à saúde. Além do interesse em adquirir experiência no trabalho com comunidade, os estudantes levam consigo a intenção de mudar as condições de saúde daquelas pessoas, através das ações educativas. A concepção de educação em saúde, que o estudante aprende na universidade e traz para o Projeto assemelha-se, em geral, a que tradicionalmente tem sido praticada nos serviços
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117 e campanhas de saúde, refletindo a relação bancária7 vivenciada na universidade e se apresenta sob a forma de palestras e aulas, onde conteúdos científicos são depositados. Esta concepção é pautada na idéia de fazer as pessoas trocarem hábitos e comportamentos prejudiciais por outros considerados mais saudáveis, desconsiderando a realidade social onde estão inseridos os educandos, e, muitas vezes, indicando condutas totalmente inadequadas ou irrealizáveis, em vista da condição sócio-econômica e cultural das pessoas. No decorrer da experiência, eles aprendem que os problemas são bem maiores do que os seus ensinamentos são capazes de dar conta e que as pessoas que eles pensavam ser tão ignorantes também têm muito a lhes ensinar, como afirma Cecília: “E você chega com aquela técnica, achando que você sabe muita coisa, vai passar muita coisa, na realidade você aprende muito mais com eles, assim, coisas simples”.
Os estudantes vão descobrindo o saber que existe nos sujeitos das classes populares e aprendendo com eles, chegando a se surpreender com a dimensão desse aprendizado. Nesta proposta de trabalho norteada pelos princípios da Educação Popular, o diálogo se destaca enquanto elemento educativo, proporcionando aos participantes um aprendizado mútuo, onde o conhecimento pode ser compartilhado. O aprendizado que resulta do diálogo com as pessoas das camadas pobres não se limita ao conhecimento dos tratamentos caseiros e sua validade, como se costuma pensar. A forma como essas pessoas percebem seus problemas e lidam com eles também é um aprendizado importante, pois há nelas uma sabedoria proporcionada pela convivência cotidiana com a pobreza e tudo que ela carrega de escassez e de risco. Aprende-se também com a solidariedade e as estratégias e formas de organização que esses sujeitos constroem para enfrentar seus problemas. Sob essa ótica, também se torna possível uma modificação na compreensão que os participantes do trabalho têm sobre a educação em saúde. A perspectiva de educação em saúde, em que nos propomos trabalhar no Projeto Fisioterapia na Comunidade, parte do entendimento de que a questão da saúde tem suas raízes mais profundas nos problemas sociais, e que a educação em saúde pressupõe um compromisso com os excluídos das políticas sociais e um envolvimento na busca por melhores condições de vida para essas pessoas. A Educação Popular e Saúde tem sido posta como base para a atuação neste trabalho, entendendo que ela não visa adequar as pessoas a normas de higiene, mas participar do esforço junto aos sujeitos subalternos para a organização do trabalho político, a fim de abrir caminho para a conquista da liberdade e de seus direitos. (Brandão, apud Vasconcelos, 1998: 71). Nesse sentido, a Educação Popular e seus princípios têm sido discutidos entre os participantes do grupo. No entanto, existem problemas com relação a essa fundamentação teórica, que se percebe ser insuficiente para nortear a conduta dos participantes. Muitas vezes surgiram questionamentos se realmente estávamos conseguindo fazer uma abordagem de Educação Popular. Do ponto de vista do instrumental teórico, havia problemas, pois não conseguimos desenvolver uma rotina de discussão sistemática de textos em função de tantos outros assuntos a serem tratados nas reuniões. Mas, por outro lado, apesar da insuficiência de fundamentação teórica, alguns princípios desta proposta educativa se evidenciam na nossa prática. Mesmo sem nomear esses princípios, percebemos que eles são cultivados entre os participantes do Projeto, como a tentativa de estabelecer uma relação dialógica, o respeito ao
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Analisando as concepções de educação, Paulo Freire as classifica em bancária, na qual o educador deposita o saber, e os educandos são meros receptores, estando ela a serviço da ideologia dominante; e a educação problematizadora, que é baseada no diálogo e está a serviço da libertação (1978).
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outro, a diversidade cultural, de modo que se esboça no grupo uma mentalidade de educador popular. Em algumas situações ainda existem dificuldades em estabelecer um diálogo verdadeiro, pois, não é fácil nos libertarmos do modelo autoritário que predomina nas relações entre os profissionais de saúde e os clientes. Ainda existe uma tendência em alguns participantes de prescrever condutas, pois é isso que ele aprende a fazer na formação universitária. As palavras de Esaú exemplificam bem essa questão: “Um dos maiores inimigos desse trabalho que a gente faz, que não depende da gente é justamente a ignorância do povo, que às vezes a gente fala, a gente diz e eles não captam. Eles têm a dificuldade muito grande, não é de entender o que a gente fala, e sim de fazer da forma como a gente diz”.
Para se libertar dessa tendência à prescrição é preciso acreditar na capacidade que as pessoas têm de elaborar conhecimentos sem a interferência do profissional, mas, também é necessário tentar compreender suas atitudes e as razões do não seguimento das condutas prescritas, a partir da lógica desses sujeitos. A atitude de não adotar as orientações recebidas pelos estudantes, muitas vezes se deve às dificuldades presentes na vida dessas pessoas. Um exemplo disso é a colocação de uma moradora da comunidade, de que segue as orientações na medida de suas possibilidades e de acordo com as necessidades. Ela foi questionada se seguia as orientações que as estudantes lhe davam e respondeu: “Às vezes. (risos) No momento que é necessário. Porque geralmente a gente não tem equipamento suficiente para ferver água. Filtro eu não tenho. Aí, só quando é necessário mesmo. Aí, a gente tira um tempinho para fazer isso” (Alda).
Ela mostra que seguir as orientações não depende só da vontade, mas requer recursos que geralmente não estão disponíveis e também demanda tempo. Quando surgem situações em que realmente se impõe a necessidade de seguir a orientação, ela faz um esforço e procura pô-la em prática. Mesmo conhecendo as dificuldades que essas pessoas enfrentam no seu cotidiano, Esaú ainda espera que suas prescrições sejam seguidas. Revela-se na colocação dele, a insuficiência de uma reflexão teórica mais sistemática, a fim de que estas questões pudessem ser discutidas e reorientadas. Também foge à percepção de alguns participantes a dimensão de educação em saúde como espaço de despertar de uma consciência crítica. Falta, muitas vezes, a compreensão de que também é nosso papel contribuir com os sujeitos das classes subalternas, através da participação na organização política e no sentido de desvendar o lado oculto das relações sociais com os olhos deles, revelando-lhes aquilo que eles enxergam, mas não vêem, completando com eles, a produção do conhecimento crítico que nasce da revelação do subalterno como sujeito (Valla, 2000: 24). No processo de aprendizado de uma concepção diferenciada de educação em saúde existem avanços e estagnações. Fazer educação em saúde numa perspectiva popular é um processo de reformulação de conceitos e de reorientação de prática, e como tal, surgem, em alguns momentos, incoerências que são próprias desse aprendizado, de fazer e pensar de modo tão diferente do que estamos acostumados. Essas incoerências se acentuam ou se reduzem nos participantes do grupo, na medida em que eles conseguem superar o preconceito em relação aos sujeitos subalternos. A superação da lógica de educação em saúde impositiva e descontextualizada não acontece subitamente. É uma mudança que vai se processando e que ainda carrega elementos da concepção antiga. Em determinadas situações, fica claro que, ao lado dos avanços, ainda existem emperramentos na superação desses limites. 118
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Houve uma ocasião em que fizemos uma atividade de orientação postural para as crianças sob a forma de um teatrinho numa rua da comunidade. Percebi na apresentação uma maior desenvoltura dos estudantes, mas ainda havia uma certa dificuldade de contextualizar a abordagem, ou seja, de trazer as informações para o cotidiano das pessoas envolvidas. Um exemplo disso foi o fato de não considerarem o trabalho pesado que muitas crianças daquela classe social precisam fazer. Na mesma rua em que fizemos o teatrinho, havia crianças pequenas carregando um carrinho de mão cheio de areia para uma construção. Levando-se em conta o tempo em que estes alunos estavam no Projeto e a percepção diferenciada que eles têm de educação em saúde, pode-se analisar a dificuldade que é para o profissional de saúde, que não tem esse tipo de experiência, fazer uma ação educativa que possa estar voltada para a realidade das pessoas. Ressalta-se, mais uma vez, a importância da inserção do profissional na realidade da população para que, entre outras coisas, ele possa desenvolver uma ação educativa que atenda às necessidades e interesses da comunidade e que seja passível de ser posta em prática. Embora esses emperramentos ainda existam, devemos considerar que já foram dados muitos passos apontando na direção de uma educação em saúde que caminha com os sujeitos no processo de construção do conhecimento.
Qual poderá ser, então, a repercussão desta experiência sobre a vida profissional dos participantes? Está posto na atualidade que, a fim de assegurar o direito à saúde a todos os cidadãos brasileiros, é necessário que, além das transformações nas condições de vida, ocorra também uma mudança radical no modelo de assistência à saúde, assumindo-se de fato, uma concepção mais ampla de saúde, que tenha a promoção da saúde como linha mestra. Além dos problemas relativos à organização do sistema de saúde, destaca-se a também como dificuldade para a mudança de modelo assistencial, a inadequação da formação dos profissionais de saúde para atender as necessidades que essa mudança propõe. Formados com base no paradigma da ciência moderna, costumam perceber a realidade e o ser humano de forma fragmentada, intervindo sobre eles sob a ótica da especialidade, numa visão curativa e tendo-os como objeto com os quais devem ser mantidos um distanciamento e uma imparcialidade “científicos”. As mudanças propostas apontam na direção de uma humanização do atendimento, da integralidade do ser humano, da promoção da saúde, de uma visão complexa da realidade e da interlocução com outros saberes, inclusive, e principalmente, o saber popular. O fato de que essas propostas de mudança estejam anunciadas nas diretrizes de programas assistenciais, não assegura que elas ocorram, a menos que sejam debatidas e vivenciadas entre os profissionais e acadêmicos, na tentativa de construção de um modelo mais integral. Pensar a realidade e a prática assistencial a partir dessa perspectiva exige uma desconstrução da lógica positivista que se fez presente em toda a formação profissional, pois, “a complexidade dos problemas nos desarticula, fazendo necessário um reordenamento intelectual que nos permita repensar a complexidade” (Schnitman, 1994). A Rede UNIDA8 discute a importância de mudança na formação profissional como parte do processo de transformação do modelo assistencial, propondo um trabalho articulado entre universidades, serviços de saúde e organizações comunitárias como uma das principais estratégias de mudança (Feuerwerker, 2000: 14) 8
A Rede UNIDA foi criada a partir da associação entre os projetos UNI, que são financiados pela Fundação Kellogg e objetivam “uma nova iniciativa na formação dos profissionais de saúde”, e a Rede de Integração Docente Assistencial (IDA). (Feuerwerker et al, 2000, 13-19).
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Para a Fisioterapia, cuja atuação na atenção primária ainda está em processo de construção, a mudança na formação acadêmica é extremamente necessária considerando-se as dificuldades encontradas pelo profissional que não experimentou esta atuação. Para tanto, a inserção do acadêmico em experiências que possibilitem a vivência neste nível de atenção é fundamental, pois oferece um embasamento para esta atuação que pode resultar em um profissional mais preparado para atuar na atenção básica, contribuindo no sentido da construção um modelo de assistência mais adequado às necessidades e a realidade da população. Menezes (2001) coloca que “é extremamente desalentador verificar a ainda pequena – senão nula – presença do fisioterapeuta na área de Saúde Pública”, e acrescenta que faltam tradição e compromisso político desses profissionais com as questões sociais. Essa falta de envolvimento dos fisioterapeutas com as questões de saúde pública reflete a ausência de discussão destas questões nos espaços acadêmicos. A experiência no Projeto de Extensão Fisioterapia na Comunidade, nos fez perceber que este tipo de vivência favorece ao desenvolvimento de uma maior sensibilidade no que diz respeito às questões de saúde das coletividades, podendo influenciar a prática destes futuros profissionais. Percebemos que esta experiência também influencia o movimento estudantil e é por ele influenciado. Geralmente, os estudantes que se interessam por trabalhos comunitários são os que se envolvem com o movimento estudantil. Com os estudantes de Fisioterapia isso não acontecia no início do Projeto. Em 1999 éramos o único curso do Projeto que não tinha estudantes ligados ao Centro Acadêmico (CA). Eu me perguntava, naquela época, o que acontecia com o CA de Fisioterapia, cujos representantes não se interessavam por este trabalho, e me questionava se o problema era que o envolvimento político deles não era suficiente para que se voltassem para as questões sociais relativas à saúde, ou se eles não tinham conhecimento do Projeto e sua ótica. Aos poucos, essa situação foi se modificando, alguns estudantes que participavam do trabalho foram se vinculando ao Centro Acadêmico e, na atualidade, a maioria dos membros do CA é participante do projeto, e são, em geral, os alunos mais atuantes nesse trabalho de extensão. A participação nesse Projeto parece ter atuado como ponto de partida para um envolvimento político mais efetivo dos estudantes, fortalecendo, assim, o movimento estudantil. Ficou bem claro que a participação de estudantes no Projeto, em fases mais iniciais do curso, encontrava-os mais sensibilizados para esse trabalho. É um terreno mais fértil para se semear o interesse pela saúde coletiva, e mais provável que seja desenvolvida uma atuação que não seja tão direcionada à reabilitação. Em alguns momentos surgiram dúvidas quanto à validade da participação dos estudantes no acompanhamento às famílias, uma vez que esse não é o papel específico do fisioterapeuta. Percebemos, no entanto, que esse não o papel do fisioterapeuta que atua como membro de uma equipe multiprofissional de saúde, pois nessa situação existem profissionais diversos com seus papéis mais ou menos específicos, cabendo ao fisioterapeuta desempenhar sua função especializada. Para a formação dos estudantes, contudo, a experiência de acompanhamento à saúde da família é de fundamental importância enquanto elemento envolvido na formação profissional, no sentido de alargar sua compreensão sobre o processo saúde-doença e as possibilidades de atuação. Vale ressaltar que há uma especificidade na atuação do fisioterapeuta que ele não pode perder de vista, tanto no que diz respeito às ações de proteção e manutenção da saúde quanto de reabilitação. No entanto, isso não o impede de alargar seu olhar sobre o processo saúde-doença, e intervir quando necessário em relação aos cuidados mais gerais de saúde, mesmo não sendo ações específicas da sua área de atuação. Para que isso seja possível, é necessário que este profissional tenha um conhecimento que o 120
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permita ir além da sua especificidade, o que não vem sendo possibilitado pela formação acadêmica atual. Considerando ser um profissional de saúde que tem a formação excessivamente voltada para a reabilitação, é muito enriquecedora a oportunidade de acompanhar as condições de vida e de saúde das pessoas, inseridos na sua realidade, antes de tratar de seqüelas. Essa vivência permite-lhes um alargamento na visão de profissional de saúde. Não basta, porém, que essa vivência represente apenas um deslocamento do espaço de atuação dos serviços de atenção secundária e terciária para a rede básica, mas que ocorra também uma mudança na ótica de atuação, facilitando a intervenção no sentido do desenvolvimento de ações que visem à promoção e manutenção da saúde. Outro aspecto que se revelou de suma importância no aprendizado desta experiência de extensão universitária, foi a mudança na relação entre os participantes e as pessoas sob seus cuidados, indicando uma contribuição no sentido da formação de profissionais que não percam de vista a condição humana, tanto a sua quanto a do outro com quem se relaciona. Dos vínculos que se formam nesse trabalho, emerge um cuidado que deixa de ser apenas direcionado à doença que acomete as pessoas e passa a ser um cuidado com o ser na sua integralidade. É evidente que existem, entre os participantes do trabalho, níveis diversos de envolvimento e de sensibilidade para com os sujeitos das classes populares, de modo que a repercussão dessa experiência sobre a vida profissional depende, também, do grau de compromisso e envolvimento que toca a cada ator desse processo. Nesse sentido é que a dimensão do cuidado também sofre variações, mas pode se ampliar na direção de uma preocupação com as condições de vida desses sujeitos, através de uma atuação onde exista um compromisso com o fortalecimento das pessoas na busca de suas conquistas sociais, revelando “a força política da dimensão-cuidado” (Boff, 1999: 141). Essa força indica um cuidado no sentido de nos tornarmos aliados dos sujeitos das classes populares na construção de um projeto diferente de sociedade. Sob esse aspecto, a aproximação dos participantes do Projeto com a Associação Comunitária Maria de Nazaré, buscando, a partir das ações de saúde desenvolvidas na comunidade, contribuir com o fortalecimento da luta de seus membros, tem sido muito importante para o despertar dessa dimensão política do cuidado. A participação de estudantes em projetos de extensão que permitam essa vivência, a exemplo do Projeto Fisioterapia na Comunidade, pode ser um ponto de partida para uma mudança na formação do fisioterapeuta. Entretanto, essas experiências pontuais não oportunizam uma reflexão e uma participação que envolva a todos os docentes e discentes, de modo que dificilmente essa idéia apropriada apenas por parte dos envolvidos na formação acadêmica poderá resultar em uma transformação global. Contudo, mesmo sendo uma ação localizada, seus efeitos podem se irradiar, impulsionando mudanças necessárias à construção de uma atuação profissional em Fisioterapia mais alargada.
Referências Boff, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. Feuerwerker, Laura Camargo Macruz. A construção de sujeitos no processo de mudança da formação dos profissionais de saúde. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 22, p. 18-24, dezembro 2000. Figueiroa, Regina Maria de. Aspectos da evolução histórica da fisioterapia no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação, 1996. Luna, Marcelina Gonzaga de. Hegemonia e contra-hegemonia no desenvolvimento da Favela Maria de Nazaré. João Pessoa, dissertação de Mestrado em Educação – UFPB, 1999. 121
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Mafesoli, Michel. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis: Vozes, 1998. Menezes, Ruy Gallart de. Fisioterapia social, uma excepcionalidade acadêmica? O COFFITO, n. 10, março 2001. Rebelatto, José Rubens & Botomé, Sílvio Paulo. Fisioterapia no Brasil: fundamentos para uma ação preventiva e perspectivas profissionais. 2ª edição. São Paulo: Manole, 1999. Schnitman, Dora Fried. Ciencia, cultura y subjetividad. Encontro Interdisciplinario Internacional: Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Buenos Aires, 1997. Smeke, Elizabeth de Leone Monteiro & Oliveira, Nayara Lúcia Soares. Educação em Saúde e Concepções de Sujeito. In: Vasconcelos, Eymard Mourão. A Saúde nas palavras e nos gestos – reflexões da Rede de Educação Popular e Saúde. São Paulo: HUCITEC, 2001. Valla, Victor Vicent. Saúde e educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. Vasconcelos, Eymard Mourão. Educação popular e a atenção à saúde da família. São Paulo: HUCITEC, 1999. __________. Educação popular em tempos de democracia e pós-modernidade. In: Costa, Marisa Vorraber (org.). Educação popular hoje. São Paulo: Loyola, 1998.
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A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO EIXO DE ARTICULAÇÃO DE ENSINO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: o combate ao analfabetismo em Alagoas Tania Maria de Melo Moura 1 Nadja Naira Aguiar Ribeiro2
Introdução Nos últimos 10 anos, o NEPEAL3 vem se constituindo como um espaço aglutinador de projetos e programas que se voltam para a área de alfabetização, procurando envolver cada vez mais, estudantes e professores que têm o desejo de refletir sobre as questões relacionadas a essa prática educativa e social. Especialmente no Estado de Alagoas que apresenta índices alarmantes de analfabetismo, tomar a questão da alfabetização como objeto de estudo tem possibilitado que muitas ações sejam efetivadas neste campo, quer elas se voltem para a educação infantil quer para a Educação de Jovens e Adultos. Estas ações, por sua vez, têm nos levado a pensar que a extensão coloca-se como a pedra angular do ensino e da pesquisa, uma vez que ela se constitui como o ponto de partida e de chegada, tornando evidente a cadeia indissociável que se instaura entre os três elementos, quando nos defrontamos com uma realidade que desafia o nosso saber e, até mesmo, as nossas “verdades”. Vale também salientar que o trabalhado partilhado entre professores e alunos para desenvolver as atividades específicas de cada Projeto e Programa, através do NEPEAL, tem dado um sentido novo à nossa prática pedagógica. Ou seja, as referidas atividades têm trazido, inclusive, a oportunidade de repensarmos um novo paradigma de ensinar e aprender. Com efeito, o professor tem mudado da posição de mero transmissor de conteúdos e o aluno, por sua vez, também tem se deslocado da posição de mero ouvinte, passando a assumir uma postura contemplativa diante do objeto de conhecimento. Assim, passa-se a valorizar a discussão e o olhar curioso dos alunos para desvelarem os dados da realidade social.
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Em equipe com Abdizia Maria Alves Barros, Ana Maria Bastos Costa, Marinaide Lima Queiroz, Nadja Naira Aguiar Ribeiro, Sandra Lúcia dos Santos Lira, professoras do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas e atuantes no Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Alfabetização (NEPEAL). Professoras do Centro de Educação, da Universidade Federal de Alagoas e Coordenadoras do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Alfabetização – NEPEAL O Núcleo foi criado como um órgão suplementar ligado diretamente ao Gabinete do Reitor da UFAL, com o objetivo de captar recursos, assessorar técnico-pedagogicamente as ações e desenvolver estudos, pesquisas e as atividades de extensão a serem realizadas pela Universidade, na área da alfabetização de crianças, jovens e adultos. Até 1995, ficou instalado em dependências da Usina Ciência, no prédio onde funcionava o Curso de Odontologia. A partir do final desse mesmo ano, foi transferido para a estrutura física do Centro de Educação. A partir de então, mesmo passando a ter uma vinculação funcional direta com a vida acadêmica e administrativa do Centro, continua vinculado legalmente ao Gabinete do Reitor. Atualmente, encontra-se em discussão o novo Regimento da Universidade; dentre as mudanças introduzidas, incluiu-se: a incorporação oficial do Núcleo pelo Centro de Educação - CEDU.
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124 Os “nós” que tecem as ações de extensão, ensino e pesquisa: um novo capítulo na história do Centro de Educação da UFAL Tudo começou quando, na segunda metade dos anos 80, um pequeno grupo de professores do Centro de Educação, preocupado com os alarmantes índices de analfabetismo existentes no Estado, resolveu mobilizar-se no sentido de encontrar medidas de intervenção que pudessem minimizar essa face da exclusão social das classes populares - o analfabetismo. Esse elevado índice de jovens e adultos não alfabetizados é o resultado dos problemas estruturais do Estado, historicamente incluído entre as comunidades mais pobres do mundo, só comparável com os países mais miseráveis da África4. Ao analisar o Estado de Alagoas no conjunto dos Estados do Brasil, os órgãos federais, responsáveis pela coleta e tratamento dos dados estatísticos, o têm identificado como detentor dos piores indicadores de desenvolvimento humano, a saber: apresentação da maior taxa de analfabetismo entre a população a cima de 14 anos; piores percentuais em relação à mortalidade infantil e ao desemprego; piores condições de moradia, saneamento, entre outros. Esses e outros resultados, classificam-no como o segundo Estado mais atrasado do país. Apesar de reconhecer que a educação por si só não tem como transformar essa estrutura política e econômica, a comunidade acadêmica do Centro de Educação, na década de 80, implementou um conjunto de ações na área da educação popular. Estas ações procuraram dar respostas efetivas às demandas dos segmentos que estavam interessados na busca de encaminhamentos para os problemas mais emergentes da população, excluída não apenas da diversidade de bens produzidos mas, também, da educação escolarizada. Foram iniciadas com a decisão do Colegiado do Curso de Pedagogia de incluir ao novo currículo, a partir de 1985, a Habilitação em Educação de Adultos com o objetivo de preparar docentes para atuarem na área. Esta decisão levou alguns professores do CEDU a participar de cursos de atualização e pós-graduação na área. Além disso, outras ações foram efetivadas: o engajamento de alguns professores e alunos no programa de extensão universitária, da Pró-Reitoria de Extensão, desenvolvida no bairro circunvizinho do Tabuleiro dos Martins. Este programa possibilitou a capacitação dos alunos do curso de Pedagogia para atuarem como orientadores de atividades, o que permitiriam o processo de alfabetização de 52 pessoas da Favela Federal, localizada no referido bairro. Estas atividades incluíram: a produção de textos de leitura relacionados ao cotidiano de vida e de trabalho da população; o levantamento da situação de moradia, de saúde e de educação da favela; instalação de energia elétrica na favela; aquisição de terreno e construção da sede da Associação dos Moradores e do espaço para o funcionamento da classe de alfabetização. A década de 90 foi, particularmente, promissora. As ações desenvolvidas nos anos anteriores foram ampliadas e outras atividades passaram a ser desencadeadas, abrindo novos horizontes e perspectivas para a área. No início dessa década, os Professores do CEDU participaram do curso de Educação Popular, promovido pelo Núcleo Temático Mulher e Cidadania. A partir daí, deu-se início à estruturação de um grupo formado por educadores das Secretarias Estadual e Municipal de Educação, do MEB e de Pastorais da Igreja, interessados em influenciar nas diretrizes políticas de alfabetização do Estado. Esta mobilização de educadores trouxe como resultado, então, a proposta de criação de um núcleo de 4
Em pesquisa recente, Lira (1997) mostra que a crise econômica, de emprego e renda, que se agrava a partir de 1990, afeta todos os pilares da economia alagoana. No setor agrícola, instalou-se uma grande crise estrutural que, para sua solução, se fez necessária uma reestruturação de toda sua base produtiva que corresponde a uma verdadeira reorganização da economia agrícola estadual. 124
125 alfabetização, que veio constituir-se posteriormente, setembro de 1991, no NEPEAL – Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Alfabetização5, instituído como um órgão suplementar ligado, diretamente, ao gabinete do Reitor 6. As ações de extensão, aliadas à participação de professores e alunos nos cursos de atualização e pós-graduação, provocaram a oferta, pelo Centro de Educação, da Habilitação em EJA, no inicio de 1991, através das disciplinas: Evolução Histórica da Educação de Adultos; Metodologia da Educação de Adultos e Alfabetização de Adultos. A primeira turma foi formada por alunos regularmente matriculados no Curso de Pedagogia e por alunos especiais, ex-alunos do curso de Pedagogia, educadores da Secretaria de Educação do Estado, que atuavam na Diretoria de Educação Especializada, responsável pela oferta de educação integrada aos jovens e adultos do Estado. À proporção que esse primeiro grupo passou a realizar estudos teóricos no campo dos fundamentos sócio-políticos da educação popular – educação de adultos –, foi possibilitando uma relação teoria-prática, através de um trabalho desenvolvido junto às entidades e instituições governamentais e não governamentais que desenvolviam ações na área. Esta integração, por sua vez, gerou uma demanda por parte da comunidade que passou a solicitar do Centro de Educação um trabalho cada vez mais sistematizado de assessoramento e capacitação para os educadores, que atuavam ou pretendiam atuar, com jovens e adultos, viabilizando, assim, ações efetivas para minimizar o problema do analfabetismo entre jovens e adulto no Estado. Considerando as demandas que se apresentavam, o grupo elaborou um Projeto de Assessoramento e Capacitação de Educadores de Jovens e Adultos, financiado com recursos do FNDE, que permitiu a realização de ações que acabaram estabelecendo uma articulação orgânica entre a comunidade acadêmica da UFAL e a comunidade alagoana. Em virtude dessa ampliação das ações de ensino e extensão, o NEPEAL foi incorporado, no ano de 1995, à estrutura física do CEDU, passando a desenvolver diversos projetos e programas que foram sendo implementados por um grupo de educadores e alunos envolvidos, especialmente, com a área de alfabetização de jovens e adultos. Sendo assim, passou a oferecer cursos de capacitação para coordenadores da área de Educação de Jovens e Adultos, a dar apoio à realização de eventos na área, a manter parcerias com secretarias de educação municipais e entidades não-governamentais, possibilitando a orientação na elaboração de projetos e propostas pedagógicas para a área. Particularmente, com a Secretaria da Educação do Município de Maceió – SEMED, instituiu-se uma parceria mais efetiva através da qual foi possível prestar uma assessoria permanente, que permitiu, inclusive, ações do tipo: colaboração na elaboração da proposta pedagógica para o Curso de Educação Básica de Jovens e Adultos; capacitação em serviço dos alfabetizadores; acompanhamento sistemático à prática pedagógica e o envolvimento em todos os eventos direcionados para os educadores de EJA.
O NEPEAL tecendo as suas redes de extensão: projetos e programas A experiência acumulada, ao longo desses anos, na área de alfabetização, fez com que, no final de 1996, a coordenação do Núcleo fosse convocada pelo Reitor para assumir a
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O lançamento oficial do NEPEAL aconteceu num Seminário, tendo como conferencista principal o Professor Paulo Freire, desenvolvendo o tema: “Alfabetização e Cidadania”.
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Até o ano de 1993, o núcleo teve como uma de suas ações prioritárias a assessoria e fomentação a projetos na área da Alfabetização Infantil. Posteriormente, as ações do núcleo voltaram-se mais, especificamente, à assessoria e capacitação na área da Educação de Jovens e Adultos.
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implantação de classes de Alfabetização de Jovens e Adultos do Programa Alfabetização Solidária - PAS - no município de Traipú – região do baixo São Francisco. Inicialmente, a coordenação do Núcleo resistiu à idéia de aceitar esta parceria com o Programa. Naquele momento, a coordenação do NEPEAL avaliava e argumentava que o Programa parecia ser mais uma ação emergencial, a exemplo de outras campanhas de alfabetização de jovens e adultos, com fins políticos/eleitoreiros, no lugar de uma política comprometida com a solução dos problemas da área. Avaliava-se, também, que os objetivos estabelecidos pelo Programa, no que tange ao processo de alfabetização, não teriam como ser alcançados num período de apenas cinco meses. Isto parecia revelar, inclusive, que as nossas “suspeitas” sobre o Programa não eram tão infundadas. Afinal, o fluxo de alfabetizandos atendidos pelo Programa traria uma contribuição bastante relevante para as “estatísticas” do Governo. Apesar dessas ponderações trazidas pelo Núcleo, a administração da UFAL abalizou sua posição argumentando que aquela era mais uma oportunidade ao qual se apresentava para a Universidade colaborar com a sociedade alagoana. O Núcleo, enquanto coordenador das atividades, teria autonomia pedagógica para intervir com uma prática de qualidade e com ações que levassem à redução do índice de analfabetismo no Estado. Diante desses argumentos da administração superior e das inquietações de um grupo de professores e a ausência de uma política pública de âmbito estadual para a EJA, tomou-se a decisão de assumir as ações, atribuídas pelo Programa, no município de Traipú. Para dar início às atividades, conforme prevê as diretrizes metodológicas do Programa, realizou-se, então, através do NEPEAL, a capacitação da coordenadora e dos 12 alfabetizadores – 10 titulares e 2 suplentes – que, a partir de fevereiro de 1997, passariam a desenvolver a prática da alfabetização com 250 alunos da zona urbana e da zona rural do município. No segundo semestre de 1997, o Programa solicitou a assessoria pedagógica da UFAL em dois novos municípios e uma usina (Cacimbinhas e Cajueiro e a Usina Coruripe). De acordo com as orientações metodológicas do PAS, as salas implantadas nos municípios assim como na Usina, foram sendo acompanhados, ao longo de seis meses, por um grupo de três professores e dois estagiários-bolsistas selecionados pelo NEPEAL. No segundo semestre de 1998, foram incluídos mais cinco municípios alagoanos ao Programa (Maribondo, Minador do Negrão, Paulo Jacinto, Quebrangulo e Tanque D‟Arca). Para que a UFAL pudesse atender a esse novo contingente, foi ampliado o grupo de professores e estagiários (6 bolsistas). Ao iniciar o ano de 1999, a UFAL já prestava acompanhamento pedagógico a 13 municípios (Cacimbinhas, Cajueiro, Maribondo, Minador do Negrão, Quebrangulo, Traipú, Chã Preta, Coruripe, São José da Lage, União dos Palmares, Paripueira, Pariconha e Viçosa) contando com a supervisão de dez professores do Centro de Educação, do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes e de professores voluntários, não vinculados a UFAL. O trabalho de coordenação, acompanhamento e avaliação das ações alfabetizadoras desenvolvidas nos municípios, inicia-se com a seleção e a capacitação dos futuros “alfabetizadores” e coordenadores nos municípios atendidos pelo PAS. Para realizar a capacitação inicial (120 horas de aulas), a coordenação do NEPEAL, visando uma articulação significativa entre um grupo de pessoas interessadas pela área de Educação de Jovens e Adultos, e até mesmo visando à ampliação do grupo de professores, convocou docentes de diversos Centros (e diferentes áreas) da UFAL: CEDU, CHLA, CCEN, CECA, assim como da Secretaria Municipal de Educação de Maceió – SEMED e também alunos do curso de Pedagogia, que já tinham a prática de alfabetizadores nas escolas da SEMED. 126
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A partir do 1º semestre de 2001, a avaliação cumulativa das capacitações possibilitou que os sujeitos envolvidos sugerissem uma modificação radical na sua organização. A capacitação passou a ser coordenada pelos próprios professores responsáveis por cada município (denominados de coordenadores setoriais), com o apoio dos coordenadores/monitores locais, como também dos próprios alfabetizadores que já possuem experiência como professor e até de professores convidados, quando se faz necessário. Após a seleção e capacitação inicial, realiza-se o acompanhamento técnico-pedagógico que inclui, além das visitas precursoras aos municípios, para avaliar a situação de funcionamento das classes, as visitas mensais para avaliar as condições de funcionamento, observar a prática pedagógica dos professores, avaliar e planejar essa prática, aprofundando conhecimentos e socializando experiências. Nessa oportunidade, aproveita-se para fazer contatos com o Prefeito e Secretário de Educação do município no sentido de avaliar as condições de funcionamento e as dificuldades que estão sendo encontradas pela coordenação e pelos alfabetizadores para desenvolver o trabalho pedagógico, procurando viabilizar as soluções junto às autoridades locais. As atividades realizadas nessas visitas são registradas em relatórios, cujo modelo é enviado pela Coordenação Nacional do PAS. Este relatório é encaminhado mensalmente a Brasília, obedecendo ao cronograma previamente estipulado pela Executiva Nacional do Programa. Todas as ações relativas ao desempenho pedagógico dos alfabetizandos são acompanhadas através de instrumentos, cujos dados coletados são quantificados em relatórios iniciais e finais e, em seguida, enviados à Coordenação do Programa, em Brasília. Estes registros são transformados em banco de dados que ficam disponíveis no NEPEAL para pesquisas nesta área. Após quatro anos, coordenando as atividades do Programa e desenvolvendo investigação de campo, alguns dados têm mostrado que o desenvolvimento das ações de alfabetização nos municípios apresenta algumas modificações na vida dos coordenado res, professores e alunos e na dinâmica do próprio município. Pode-se citar a preocupação que os prefeitos passaram a ter com a conservação das escolas onde funcionam classes de alfabetização; implantação ou ampliação da institucionalização da continuidade da Educação de Jovens e Adultos; interesse dos professores em voltar a estudar; aprovação dos ex-alfabetizadores em concursos públicos; interesse dos alunos egressos em continuar estudando. Quando não encontram escolas para dar continuidade aos seus estudos, eles voltam para as classes do Programa, contanto que não fiquem sem estudar, entre outras evidências. Por outro lado, o trabalho de assessoramento/acompanhamento tem permitido à equipe uma verdadeira aprendizagem, um avanço do ponto de vista teórico-metodológico. Hoje, pode-se tirar lições da experiência desenvolvida: na melhoria do ensino da graduação; na observação do desempenho dos alunos-estagiários; na utilização de subsídios da prática desenvolvida na aplicação de outros projetos em desenvolvimento pelo NEPEAL. Paralelo à investigação, com o objetivo de avaliar os impactos do programa nos municípios, as atividades do Programa vêm gerando pesquisas de alunos para trabalho de conclusão do curso de pedagogia, monografias de cursos de especialização, pesquisa de mestrado, pesquisa de doutorado e projeto de pesquisa de professores do CEDU. Mesmo mantendo a posição contrária à criação, ao desenvolvimento e à ampliação de programas e campanhas, criticando e condenando esses tipos de ações e denunciando as faltas de políticas públicas para área, outros programas foram surgindo e sendo encampados pelo Núcleo.
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128 A coordenação do PROJERAL – PRONERA Em 1998, o Núcleo assumiu a coordenação do Projeto de Educação e Capacitação de Jovens e Adultos nas Áreas da Reforma Agrária em Alagoas – PROJERAL – que integra o PRONERA - Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. O referido Programa teve origem a partir de uma demanda do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra em Alagoas, quando da viabilização de assentamentos desses trabalhadores rurais, reivindicou e conseguiu o financiamento de alfabetização dos jovens e adultos entre as ações de apoio aos novos núcleos de produção. No Estado de Alagoas, este programa vem sendo desenvolvido através de uma parceria entre o INCRA – órgão financiador; a UFAL – responsável pela ação pedagógica; e o MST – responsável pela mobilização dos trabalhadores rurais analfabetos. O projeto tinha em sua origem as seguintes metas: alfabetizar 1000 jovens e adultos trabalhadores residentes em assentamentos da reforma agrária, em Alagoas; capacitar 50 monitores-alfabetizadores, 5 coordenadores pedagógicos e 5 alunos-estagiários da UFAL, para assumirem as atividades de alfabetização e realizarem o acompanhamento pedagógico nos assentamentos do projeto; complementar a escolarização, em nível fundamental, dos 50 monitores-alfabetizadores participantes do projeto. A definição dos assentamentos e do número de salas, em cada local, é feita pelo MST, com a participação do INCRA. Os monitores foram selecionados pela UFAL, com o acompanhamento do MST, através de avaliações escritas que visaram verificar o domínio de conhecimento da Língua Portuguesa formal, da matemática e da visão dos candidatos sobre questões sociais. Os coordenadores locais foram escolhidos pelo MST, entre seus militantes. Os estagiários foram selecionados pela UFAL, entre os alunos dos cursos de Licenciatura, através de avaliações escritas, entrevistas e análise do currículo. A execução do Projeto teve inicio em agosto de 1998 com a seleção de pessoal, seguindose da realização da 1ª etapa da capacitação e da instalação da primeira classe de alfabetização. O curso de alfabetização possui uma carga horária de 400 horas. A primeira turma de alfabetização concluiu em 1999. A segunda turma, que deveria iniciar no segundo semestre de 1999 e concluir em 2000, não funcionou porque os recursos não foram liberados. Os alfabetizadores foram selecionados, receberam a capacitação inicial, mas os alunos não tiveram aulas. Somente em 2001, os recursos foram liberados e os assentados voltaram a estudar. A sistemática de implantação das classes, de acompanhamento e de funcionamento da prática pedagógica foi elaborada a partir do modelo adotado para o PAS, com as devidas adaptações de forma a atender aos princípios e exigências da coordenação nacional: selecionam-se os alfabetizadores; realiza-se a capacitação inicial sob a coordenação de professores, da UFAL e convidados, das diferentes áreas do conhecimento; implantam-se as classes e faz-se o acompanhamento sistemático mensal Com a avaliação das ações do PROJERAL - PRONERA, verifica-se que apesar dos impasses, este projeto abriu um espaço muito rico para a Universidade e para os trabalhadores. Pela primeira vez, em localidades isoladas da zona rural, uma possibilidade de escolarização surgiu, ainda que precária, pondo luzes sobre uma realidade que Alagoas não pode mais deixar de considerar. Pela primeira vez, também, trabalhadores rurais, improvisados de monitores/alfabetizadores, ocupando os espaços das salas de aulas da Universidade, em seu processo de capacitação, circulam no Campus causando impactos para ambas as partes. Pela primeira vez, estudantes universitários freqüentam assentamentos de trabalhadores rurais, convivendo com sua realidade e confrontando o saber da Academia com as necessidades da população. Também, pela primeira vez, projetos de pesquisa debruçam-se sobre a questão da política de escolarização de jovens e adultos, com um olhar científico que 128
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não se pretende neutro, mas comprometido com esse segmento, buscando alternativas de intervenção. O PROJERAL – PRONERA, tem-se constituído, portanto, num espaço de articulação do ensino com a pesquisa e com a extensão. Essa dinâmica envolvente tem gerado trabalhos de dissertação de mestrado, monografias de especialização e trabalhos de conclusão de cursos de graduação.
Ampliando as articulações: O Projeto Xingó Em 1999, o Centro de Educação, através do Núcleo, foi convocado para participar do Programa Xingó. O referido Programa foi criado no ano de 1998, através da parceria entre a SUDENE, a CHESF, o CNPq, as Universidades Federais dos Estados da Bahia, Pernambuco e Rural de Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Universidade Estadual da Bahia, o Centro de Educação Tecnológica de Alagoas e as prefeituras dos municípios da área de abrangência do Xingo, nos Estados de Alagoas, Bahia, Pernambuco e Sergipe. Constituiu-se por áreas temáticas, dentre elas, a Educação, tendo como premissa básica a implantação de um núcleo de desenvolvimento científico e tecnológico para dar suporte ao desenvolvimento integrado e auto-sustentável ao semi-árido nordestino, conferindo à educação ênfase prioritária por considerá-la elemento estruturador do desenvolvimento. Nessa perspectiva, os habitantes da região foram tomados como protagonistas do processo de construção de uma nova forma de vida, criando/recriando possibilidades para o desenvolvimento sustentável da sociedade local e do país como um todo. Em 1998, a equipe coordenadora da Área Temática Educação realizou o estudo diagnóstico “Aspectos da realidade sócio-educacional da área de abrangência do Programa Xingó”, como forma de obter dados mais fidedignos para uma maior compreensão da realidade de campo e subsidiar com consistência o planejamento, a execução e a avaliação de projetos e estudos relacionados aos temas/categorias estudados. Este diagnóstico foi realizado nos municípios de Delmiro Gouveia, Piranhas e Olho D‟água do Casado (Al), Paulo Afonso e Glória (Ba), Canindé do São Francisco e Poço Redondo (Se) Jatobá e Petrolândia (Pe). Envolveu uma população estimada em 260 mil habitantes e um universo de, aproximadamente, 1.500 professores. Os resultados obtidos evidenciaram, dentre outras questões inerentes à rede pública municipal: altas taxas de evasão e repetência; precárias condições de trabalho nas escolas (ingresso sem concurso público, salários abaixo do piso profissional, inexistência de plano de cargos e carreira, necessidade de qualificação de professores, entre outros); problemas de infra-estrutura física e administrativa, e baixo nível de participação dos integrantes da escola e da comunidade, na definição de uma política educacional para os municípios pesquisados. Apontaram, também, para a necessidade da Educação de Jovens e Adultos “destacando a necessidade de criação e ampliação da oferta de vagas destinadas à Educação de Jovens e Adultos, assegurando a continuidade de sua escolarização/profissionalização, permitindo a sua inserção na escola/sociedade enquanto cidadão trabalhador” (Estudo Diagnóstico “Aspectos da realidade sócio-educacional da área de abrangência do Programa Xingó). A partir desses resultados, a coordenação da Área Temática elaborou o Projeto “Formação Continuada do Educador”, voltado para a formação de 1.500 educadores, dentre os quais 60 especialistas, que compõem a equipe pedagógica do referido Programa, dos nove municípios envolvidos. Em atenção especial à solicitação da SUDENE, foi elaborado em articulação com o Programa de Combate à Seca, o Projeto “Educação de Jovens e Adultos da Área Emergencial 129
130 da Seca nos municípios de abrangência do Programa Xingó”. O referido Projeto teve como objetivo: desencadear o processo de escolarização e qualificação profissional de jovens e adultos trabalhadores (cadastrados nas frentes de emergência), sem discriminação de idade. Seu desenvolvimento segue uma proposta teórico-metodológica produzida pelo grupo de professores das sete Universidades e do Centro de Educação Tecnológica. Adota uma sistemática de planejamento, acompanhamento e avaliação que envolve desde a seleção dos alfabetizadores/coordenadores; a conseqüente capacitação inicial; o acompanhamento mensal, assumindo as características de formação continuada, culminando com a avaliação final dos alfabetizandos e o encaminhamento para os cursos de qualificação. Considerando o número de municípios nos quatro Estados envolvidos no Programa, coube ao CEDU, através de uma professora e duas estagiárias que fazem parte da equipe do NEPEAL, a coordenação do Programa cuja responsabilidade é fazer o acompanhamento das 20 classes localizadas no município de Delmiro Gouveia. A participação do NEPEAL no Programa Xingó tem possibilitado uma larga e vasta aprendizagem tanto aos professores quanto às estagiárias do Curso de Pedagogia, que estão engajadas nas atividades. Essa aprendizagem se dá, especialmente, por conta da articulação e das trocas entre os diversos parceiros, permitindo, da convivência multicultural, a socialização do saber e, por conseqüência, o desenvolvimento de um trabalho pedagógico integrado e interdisciplinar. A atual política educacional que visa favorecer a “autonomia” dos municípios nas questões educacionais, depara-se com a falta de pessoal especializado, do ponto de vista teórico-prático, para lidar com a nova situação - a elaboração, implantação de programas e projetos. O trabalho de assessoria e os cursos de capacitação ministrados pelo NEPEAL, nos municípios do Estado, têm sido avaliados pelos sujeitos envolvidos na educação dos municípios com um referencial político-pedagógico. Para a equipe do NEPEAL, por outro lado, esse trabalho, ao tempo em que consegue aglutinar professores das diferentes áreas do saber, de dentro e de fora da Universidade, funciona como fonte de estudos, de pesquisas e como instrumento de realimentação dos cursos de graduação.
A feitura do marco teórico: as contribuições do NEPEAL A dinâmica de coordenação dos programas e a assessoria à área vêm permitindo a colaboração de grupos interdisciplinares e interinstitucionais, passando a contar com uma equipe de professores dos diferentes departamentos do CEDU, com a colaboração de professores dos diferentes centros da universidade, da Secretaria de Educação do Município de Maceió, ex-alunos/ex-estagiários-bolsistas do Curso de Pedagogia e de alunos-estagiários de diferentes cursos de licenciatura. Esta equipe, além de planejar e desenvolver o processo de capacitação inicial de professores, Educação de Jovens e Adultos e aceleração de aprendizagem, assume a formação continuada desses profissionais, através de uma sistemática de acompanhamento e avaliação permanente. Embora, adotando os modelos de acompanhamento e avaliação advindos das Coordenações Nacionais, a equipe sentiu a necessidade de manter sua posição teórica frente às ações dos referidos Programas. Para tanto, elaborou-se uma fundamentação teóricometodológica baseada nos estudos de Freire (1969, 1982, 1983, 1996), Pinto (1987), Haddad (1992), Ribeiro (1992, 1998), Paiva (1983), Ireland 1989, 1990), Beisiegel (1974, 1997), Moura (1995, 1996, 1998, 1999) e outros pesquisadores do campo da psicologia, psicolinguística e sociolinguística como Vygotsky (1988, 1991, 1993, 1996), Luria (1988), Ferreiro (1983, 1986,1993) Soares (2000), Barbosa (1994), entre outros. A partir dessa fundamentação foi definida uma sistemática de implantação, acompanhamento e avaliação 130
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das classes de alfabetização, expondo de forma clara as concepções dos sujeitos com quem se trabalha, o papel do alfabetizador, a concepção de educação e de alfabetização de jovens e adultos. Desta forma, as ações planejadas e desenvolvidas estão voltadas para a integração entre o ensino e a pesquisa, objetivando o fortalecimento da formação dos educadores e a conseqüente melhoria da qualidade da educação no Estado. Ao fazer a opção política por trabalhar com ações voltadas para pessoas jovens e adultas das classes populares, entende-se que em um processo educativo de “alfabetização de qualidade”, quer seja para crianças ou para adultos, devem ser considerados os seus fundamentos teórico-metodológicos. Para isso, necessita de investigações sobre os sujeitos do processo: os adultos analfabetos, sua gênese enquanto sujeito cultural, suas capacidades de aprendizagem e desenvolvimento; os alfabetizadores, suas formações, capacidades e limites, suas concepções e formas de trabalhar e interagir com os alunos. Destaquem-se, as práticas como um todo, as concepções e princípios que as norteiam, isto é: seus processos de planejamento e avaliação, como vêm se dando, como melhorá-los e qualificá-los. Além disso, precisam ser consideradas, fundamentalmente, as bases político e ideológicas que as sustentam (Giroux, 1990). Nos primeiros anos de trabalho, a sistemática adotada, tanto no que diz respeito à assessoria, seleção e formação dos professores e ao trabalho de acompanhamento da prática pedagógica, tinha como referencial de análise teórico-prático as idéias e proposições de Paulo Freire. Segundo o autor, a alfabetização de jovens e adultos deve ter como princípio fundamental o diálogo e como objetivo principal a leitura do mundo como instrumento de organização, conscientização e intervenção na realidade. Após alguns anos de experiência, percebeu-se a necessidade de incluir as contribuições de novos referenciais teóricos que pudessem conferir a essas práticas, através dos seus sujeitos, um delineamento maior, de forma que, mesmo sem perder de vista o caráter político da Educação de Jovens e Adultos, fosse possível priorizar a natureza pedagógica, epistemológica, cultural e lingüistica da educação fundamental e da alfabetização das pessoas jovens e adultas. Essa reflexão, fruto das observações/avaliações realizadas através da formação permanente dos professores e do acompanhamento de suas práticas, foi sendo endossada por inúmeros estudos realizados nessa década, sobre os resultados obtidos, em relação às práticas de alfabetização, tais como: Hara (1992), Mello et all (1995), Moura (1998) entre outros. Os realizadores desses estudos mostraram que essas práticas de alfabetização, baseadas nas orientações de Paulo Freire, não conseguiam apresentar resultados satisfatórios do ponto de vista do conhecimento das habilidades de leitura, escrita e matemática necessárias à apropriação de outros conhecimentos das diferentes áreas de conhecimento. Assim, é que mesmo correndo o risco de se ter uma proposta acusada de eclética, procurou-se embasamento teórico em proposições de Freire, elementos dos estudos de Ferreiro e subsídios da teoria de Vygotsky, buscando, em cada um deles, elementos contributivos à reflexão dos professores e conseqüente definição e planejamento dos processos metodológicos e avaliativos de suas práticas (Moura, 1998, 1999). Dessa forma, a proposta e a prática pedagógica para a alfabetização de jovens e adultos, assumidas pelo Núcleo, partem do estudo da sociedade e da natureza de forma interdisciplinar e integrada. Tomam-se os sujeitos alfabetizadores e alfabetizandos como eixo central da prática pedagógica. Os conteúdos trabalhados no processo de formação continuada e no processo ensino-aprendizagem partem da gênese histórica dos sujeitos, analisando-se, criticamente, o contexto sócio-cultural em que estão inseridos e refletindo sobre as possibilidades de superação dos problemas e contradições. Nessa perspectiva, defende-se uma concepção de homem como idealizaram e propuseram Freire (várias obras) e Vygotsky (várias obras): um sujeito histórico-cultural, 131
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portador de inteligência constitutiva da própria natureza biológica, mas dependente das mediações culturais para atingir níveis de inteligência superiores ou culturais. Sabe-se que estes sujeitos, por terem sido alijados do sistema educacional e de outros bens sociais, possuem maiores dificuldades para enfrentar determinadas situações que exigem resoluções de problemas abstratos, fruto da aprendizagem de conhecimento sistematizado. Contudo, não se pode deixar de considerar, junto com Vygotsky, que esses sujeitos têm uma “plasticidade intelectual” que os permitem, através da educação sistematizada ou de outras formas de mediação superar essas dificuldades e elevar-se a níveis culturais de inteligência. Nessa perspectiva, assume-se a concepção de alfabetização como uma dimensão da prática pedagógica que é parte de um universo maior: a Educação de Jovens e Adultos inserida numa prática social mais ampla. Entende-se a alfabetização como uma categoria histórica cujas dimensões atendem a diferentes demandas de uma grande fatia da população: os jovens e adultos em idade produtiva – empregados e desempregados – responsáveis pelo processo de produção dos bens e serviços mas que eles mesmos não têm acesso. É, portanto, uma modalidade de educação concebida como todo processo educativo cujo objetivo deve ser a transmissão/apreensão, apropriação, produção e socialização dos saberes: conhecimentos e habilidades necessários à intervenção crítica na sociedade, tanto no que se refere a instrumentalização exigida para a sua inserção nos processos produtivos, como ao engajamento nas instâncias organizativas e de lutas, pela construção da cidadania e pelas mudanças gerais na sociedade. Suas dimensões devem atender a diferentes demandas de um dado contexto social, não podendo ser concebidas, tão somente, como uma educação compensatória para aqueles que ultrapassaram a idade “própria” à escolarização e, muito menos, um processo de alfabetização funcional – de ensinar a ler, escrever e contar. Essas dimensões devem ser concebidas e desenvolvidas como um corpo teórico-metodológico fundamentado em bases científicas. Pela interdisciplinaridade e pela relação teoria-prática, tornam possíveis aos jovens e adultos se perceberem como produtores de conhecimentos, como articuladores de um novo tipo de saberes que deve emanar de suas práticas culturais, sociais, econômicas e políticas. Essas dimensões possibilitam, assim, que estes agentes se vejam com um novo modo de pensar e agir, a partir de uma tomada de consciência de sua perspectiva de classe (Moura, 1999). Essa amplitude, no entanto, deve permitir olhar a alfabetização em suas especificidades numa perspectiva, apresentada por Ferreiro (várias obras) e Vygotsky (várias obras), como um processo de ensino-aprendizagem, tomando como objetivo primeiro a apropriação de um dos sistemas de representação da realidade, isto é: a linguagem escrita, que instrumentaliza os sujeitos para o desenvolvimento de outros conhecimentos (Moura, 1998, 1999). Dessa forma, entende-se que é pela alfabetização que o sujeito adquire a base para a apropriação das diferentes áreas do conhecimento geradas na história da humanidade. A alfabetização abre as portas para o mundo letrado que os homens produziram através das suas relações sócio-culturais. Pela leitura e escrita, o sujeito estará apto a ser autor da sua história. Certamente, esse processo está respaldado numa visão política de mundo e conduzido de uma forma que o sujeito tenha consciência do seu processo de aprendizado, sabendo o quê e o porquê de estar aprendendo e, sobretudo, entendendo esse sistema como um “instrumento psicológico” (Vygotsky) e “técnico”, que além de possibilitar sua transformação, deverá possibilitar, também, a sua intervenção como cidadão crítico, numa perspectiva de mudanças no seu meio social. Pelo seu caráter de processo, envolve uma teia intrincada de relações, onde estão presentes as influências de uma série de ciências e as relações de sujeitos com concepções várias, fruto das mais diferenciadas culturas e das mais distintas influências políticoideológicas. Deve ter como ponto de partida os diferentes interesses e motivos, e como ponto 132
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prioritário de chegada, a apropriação do sistema de linguagem escrita. A alfabetização tem como célula básica a apropriação do sistema de linguagem escrita, constituindo-se num sistema extremamente complexo, que “(...) tem milhares de anos de cultura por trás de si (...)” (Luria, 1988: 143), resultado de um longo processo de evolução da humanidade que vem sendo construído, paulatinamente, à medida que as condições econômicas, políticas e culturais foram exigindo inovações nas formas de comunicação e de memória. A escrita, portanto, é uma construção sócio-cultural, cuja evolução “(...) não se dá em linha reta, não é movida pela inevitabilidade, mas pela História (...)” (Barbosa, 1994: 37), adquirindo durante essa longa evolução formas logográfica, silabográfica e alfabetográfica. Além disso, o seu domínio está sempre associado ao desenvolvimento político-cultural e econômico de um povo. Nesse sentido, defende-se a alfabetização como um processo que se dá num contexto sócio-cultural. A sua instituição mais importante é a escola que envolve um sujeito cultural, constituído a partir de inúmeras experiências, mesmo que com uma série de limitações comportamentais; um objeto epistemológico que conhecido em suas funções sociais, não foi apropriado enquanto significado e, portanto, não pode ser utilizado existencialmente e; situações mediadoras, cuja liderança pertence a outro sujeito também cultural, proprietário de concepções resultantes de experiências sócio-culturais e que necessita do auxilio de instrumentos interventivos auxiliadores no processo de mediação. Mesmo que se queira ampliar a sua área de atuação e dar-lhes diferentes dimensões, ela tem uma demarcação pedagógica e lingüística muito clara. É esta dimensão que é entendida e solicitada pelos sujeitos que buscam a escola, sendo entendida pela maioria dos alfabetizadores. Entendida dessa forma, a prática alfabetizadora, ao tempo em que atenderá as necessidades imediatas dos sujeitos, deverá possibilitar os seus “letramentos”, na perspectiva proposta por Soares (2000) em que os sujeitos passam a interagir com o mundo escrito, entendendo o mundo e fazendo uso social desse conhecimento. A forma como se concebe o homem, a sociedade e a alfabetização, leva a defesa de um trabalho pedagógico rico e diversificado, garantido por professores competentes, comprometidos e em permanente e constante formação. Mas, a realidade na qual se atua, como na do país, de uma maneira geral, os professores que se propõem ou se impõem alfabetizar, não têm a qualificação específica para tal. São, em sua maioria professores improvisados. Vão contra o princípio de Ferreiro e Vygotsky de que alfabetizar é um ato de conhecimento e, portanto, uma tarefa complexa e demorada, exigindo uma competência e compromisso de profissionais preparados para tal. Pela precária formação que recebem, os próprios alfabetizadores não têm o hábito de ler e escrever e, conseqüentemente, não incentivam os alunos para desenvolverem esses hábitos. Acrescente-se a tudo isso a falta de condições materiais por parte das escolas que são necessárias ao desenvolvimento de uma prática de leitura e escrita, a falta de tempo e de condições financeiras do professor, para se dedicar aos estudos e às pesquisas, em relação à aprendizagem dos alunos e da introdução de novas metodologias. Mesmo as dificuldades enfrentadas face as deficiências e fragilidades teóricas dos alfabetizadores, além da ausência de uma política de formação de educadores e alfabetizadores de jovens e adultos que possibilitem uma formação básica de qualidade, não têm inviabilizado, paralisado ou imobilizado o trabalho. Entendendo-se os sujeitos que fazem opção por alfabetizar jovens e adultos a partir do olhar cultural de Freire e Vygotsky, acreditase nas suas possibilidades cognitivas, na “plasticidade intelectual” (Vygostky), nas suas experiências e capacidades resultantes da cultura em que vivem e se aposta no seu processo de formação pela e na prática. Nessa perspectiva, a equipe do Núcleo define um plano de capacitação inicial e continuada que procura oferecer os instrumentais básicos necessários à prática alfabetizadora. 133
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A sistemática de formação abrange as capacitações periódicas com o objetivo de aprofundar e atualizar saberes e a capacitação em serviço que envolve o acompanhamento da prática, a troca de experiências, a avaliação, planejamento, replanejamento e socialização de conhecimentos. Através do processo formativo, os alfabetizadores não somente se apropriam de instrumentais teórico-práticos, mas, principalmente, internalizam novas concepções de mundo, de sociedade, de sujeito e de educação/alfabetização. A partir das mudanças de concepções, eles passam a ter outro entendimento sobre os alunos com quem trabalham e sobre eles mesmos. Tem sido comum ouvir dos “alfabetizadores”, ao longo do trabalho de acompanhamento de suas práticas, depoimentos do tipo: “a partir das capacitações eu passei a dirigir outro olhar para os alfabetizandos, eu passei a ter mais respeito por eles e até aprender com eles...”, e do tipo, “(...) hoje eu entendo a realidade dos alunos, eu compreendo melhor também a minha realidade, eu entendo a necessidade da escolarização e o papel que nos temos na sociedade...”. Através do processo formativo, os “alfabetizadores” assumem o verdadeiro papel de mediador entre os alunos, os conhecimentos que precisam adquirir - “desenvolvimento proximal” - os conhecimentos que já possuem – “desenvolvimento real” (Vygotsky). Para desenvolver essa mediação, ele é orientado para nortear-se pelo princípio fundamental do “diálogo” (Freire), utilizando as mais diferenciadas técnicas e recursos pedagógicos, principalmente as que permitem aos alunos trocarem e socializarem suas experiências, e sempre fazendo uso dos mais variados “instrumentos” e “signos”. Assim, o processo ensinoaprendizagem assume as características de “bom ensino” (Vygotsky), permitindo que os alunos atinjam suas áreas de “desenvolvimento proximal”. Nessa dinâmica, os “alfabetizadores” além de mediarem o processo de aprendizagem dos alunos, mediam também os seus próprios processos de aprendizagem. Esse comportamento pode ser exemplificado a partir do número de ex-alfabetizadores que buscaram a continuidade de seus estudos e que se engajaram em novas práticas docentes de alfabetização e pós-alfabetização. Alguns, inclusive, passaram a assumir, em seus municípios, funções de coordenação pedagógica, desencadeando novos processos formativos de outros professores. Portanto, o processo formativo e a prática pedagógica dos “alfabetizadores e coordenadores” é acompanhado e avaliado permanentemente através de diferentes momentos concomitantes e específicos, lançando-se mão de diferentes técnicas e instrumentos de avaliação. A avaliação concebida como um processo pedagógico contínuo e sistemático tem inicio com a seleção dos “alfabetizadores”; prossegue durante a capacitação inicial; desloca-se para as salas de aula quando inicia e se desenvolve o processo ensino-aprendizagem; caminha paralela durante a formação continuada, envolvendo “ensinantes” e “aprendentes” (Fernández, 2001); fecha um ciclo a cada conclusão de semestre, oferecendo elementos de análise para o reinicio da nova prática pedagógica. A avaliação da prática pedagógica inicia-se pela avaliação diagnóstica dos alfabetizadores ao iniciarem o processo formativo. O diagnóstico envolve suas histórias de vida, suas experiências, conhecimentos, habilidades e atitudes que trazem para a prática. Os resultados são sistematizados através de perfis que norteiam a formação. Essa experiência avaliativa é transferida a posteriori para as classes com os alfabetizandos. Dessa forma, os “alfabetizadores” iniciam suas práticas docentes com uma avaliação diagnostica sobre a situação de vida dos alunos e os conhecimentos e experiências que trazem para a sala de aula. Os resultados dessa avaliação permitem que os alfabetizadores tenham um perfil de cada aluno e do grupo com que vai trabalhar. Possibilita, também, aos alfabetizadores estabelecerem uma comparação entre o que os alunos sabiam antes de iniciar o processo e o 134
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que eles conseguiram durante a trajetória. Com isso, eles fazem ver aos alunos os caminhos que percorreram em direção a aprendizagem. A avaliação diagnóstica, referente aos conhecimentos da linguagem escrita e da matemática, é possibilitada a partir das contribuições dos estudos da Psicogênese da Língua Escrita de Emilia Ferreiro sobre os diferentes níveis de aprendizagem por que passam crianças, jovens e adultos durante o seu processo de aquisição da leitura, da escrita e da matemática. Essa avaliação é realizada a partir da construção de escritas espontâneas desenvolvidas pelos alunos, a partir de suas leituras orais e a partir de exercícios envolvendo escrita e leitura de números. Os resultados apresentados pelos alunos dão aos alfabetizadores uma posição dos alunos em torno dos quatro níveis de leitura e escrita que eles deverão apresentar: escrita pré-silábica, escrita silábica, escrita silábico-alfabética e escrita alfabética. A partir desses resultados, os alfabetizadores podem planejar com mais segurança e consistência os procedimentos de ensino-aprendizagem. Portanto, a avaliação diagnóstica é uma constante na prática pedagógica. Envolve todos os sujeitos e desencadeia o processo avaliativo permanente e sistemático. Os resultados obtidos com o processo têm se constituído no termômetro do nível de crescimento, compromisso, curiosidade e criatividade de “ensinantes” e “aprendentes”, revelando as formas como planejam e desenvolvem suas práticas e os caminhos que devem continuar norteando os processos formativos. Ao longo dessa experiência, tem-se percebido que o rigor, a seriedade, a curiosidade epistemológica e o compromisso político-pedagógico com que as ações são assumidas, têm permitido bons resultados entre os 1.544 coordenadores e professores de quase 50 municípios, que de 1992 até final de 2.000, trocaram experiências com 284 professores e estagiários envolvidos no Núcleo. Esses “ensinantes” e “aprendentes” por sua vez trocaram experiências e socializaram informações diretamente (muitos continuam atuando) com cerca de 16 mil pessoas jovens e adultas distribuídas nos mais diferenciados espaços rural e urbano do Estado. Isto significa, portanto, uma prática de extensão que ultrapassa os limites e as fronteiras pedagógicas para intervir em diferentes culturas que, com certeza, estará possibilitando novas construções históricas. Esse caminhar também tem tecido suas teias no campo da educação não formal, não escolarizada e na esfera dos movimentos sociais de caráter popular. As articulações mantidas têm fortalecido a integração com as entidades e instituições que atuam na área. Durante a primeira metade da década de 90, alguns educadores do CEDU aliaram-se a educadores de diferentes organizações não governamentais e movimentos populares instituindo o Coletivo dos Alfabetizadores Populares de Alagoas – COALFA. Esse Coletivo tornou-se realidade, no final do ano de 1992, quando da realização do I Encontro dos Alfabetizadores Populares do Estado de Alagoas – I ENAPAL (18 a 20.12.1992). Ao longo da década, o Coletivo manteve uma articulação permanente em torno da promoção de diferentes eventos, culminando sempre com o encontro estadual. Essas ações garantiram espaços de atualização e luta pela oferta e a qualidade das ações voltadas para a área. A semente do Coletivo, no entanto, pôde germinar através da instalação do Fórum Estadual de Educação de Jovens e Adultos, em agosto de 2001. Essas atividades de extensão têm funcionado sempre como estimuladoras para a expansão do ensino. Ao tempo em que as atividades de ensino têm se comportado como uma resposta às necessidades provocadas pelo trabalho de extensão, passando a ser encarado como o “bom ensino” (Vygotsky). O “bom ensino” caracteriza-se como resultante da prática pedagógica institucional cujo objetivo fundamental é possibilitar aos sujeitos a socialização do saber, historicamente, acumulado pela humanidade. Saber veiculado por educadores competentes e comprometidos pela mediação entre os conhecimentos científicos e os conhecimentos e experiências do 135
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cotidiano dos sujeitos-aprendizes. Saberes oriundos de investigações teórico-práticas e realimentadores de novas pesquisas. O desenvolvimento do ensino fundado na relação indissociável entre teoria-prática, permeado pelo princípio da dialogicidade, tem feito com que, desde o inicio dos anos 90, a procura pelas disciplinas de Educação de Jovens e Adultos tenha aumentado, significativamente. A cada ano, três turmas da Educação de Jovens e Adultos são ofertadas, atendendo a uma média de 130 (cento e trinta) alunos de diferentes cursos da UFAL e de exalunos A demanda dos egressos da graduação levou o CEDU a incluir, em 2001, na oferta da pós-graduação, o Curso de Especialização em Formação de Professores para o 1o. segmento do Ensino Fundamental (48 professores), possibilitando duas vagas para projetos de pesquisa em jovens e adultos, na área de formação de professores, no recente Mestrado em Educação Brasileira, e se engajasse no Programa dos Parâmetros Curriculares em Ação de jovens e adultos, patrocinado pelo MEC. A extensão e o ensino: da passagem de um olhar “molhado de curiosidade do senso comum”, ao olhar ”carregado de curiosidade epistemológica” As primeiras ações de ensino e extensão foram desencadeando a necessidade de desenvolver investigações que pudessem oferecer respostas a algumas questões teóricas surgidas durante o desenvolvimento das atividades. O engajamento na prática de educação de adultos e de alfabetização mostrou que a área estava exigindo uma investigação sistemática, propiciando uma explicação científica para as experiências em desenvolvimento e construindo novas formas de trabalho. Enfim, o relacionamento da teoria-prática de forma mais consistente e fundamentada, cientificamente. Tentando responder às curiosidades epistemológicas, em 1993, foi elaborado o projeto de pesquisa na modalidade de iniciação científica: “Dimensões metodológicas que norteavam as atividades desenvolvidas com adultos no bairro do Tabuleiro dos Martins” (MOURA, 1994). Para realização da investigação, conseguiu-se a aprovação de duas bolsas do CNPq/ PIBIC/UFAL. Durante a coleta de dados, foi realizado um mapeamento e caracterização dos “espaços” – sujeitos e atores – que estavam possibilitando o desenvolvimento de experiências na área da Educação de Jovens e Adultos, caracterizando-se os pressupostos teóricometodológicos que os fundamentava. Os resultados da investigação provocaram a necessidade de serem realizados estudos no campo especifico da alfabetização de jovens e adultos. Nesse sentido, foi elaborado e aprovado – também pelo CNPq/ PIBIC/UFAL – um outro projeto de iniciação científica intitulado: “Alfabetização de jovens e adultos: relação entre propostas pedagógicas e práticas desenvolvidas pelas entidades não governamentais”. A investigação de campo – na modalidade da técnica do estudo de caso – permitiu o estudo comparativo de duas experiências desenvolvidas pelo Movimento de Educação de Base e o Moinho Motrisa – através do SESI (Moura, 1995). A análise dos dados mostrou os fossos e dicotomias existentes entre as teorias anunciadas nas propostas pedagógicas e as práticas desenvolvidas, ao tempo em que instigou a curiosidade em torno da avaliação das práticas pedagógicas desenvolvidas no campo governamental. Elaborou-se outro projeto com o objetivo de investigar a prática alfabetizadora desenvolvida nas escolas municipais no sentido de compará-las com os resultados obtidos na realidade anteriormente avaliada e analisar as mudanças ocorridas em decorrência das novas orientações desenvolvidas pela Secretaria de Educação Municipal a partir do inicio de 1993. Nesse sentido, em agosto de 1995, um outro projeto de iniciação científica foi elaborado e 136
137 aprovado pelo CNPq/PIBIC/UFAL: “Alfabetização de jovens e adultos no Município de Maceió – proposta e prática pedagógica: uma tentativa de compreensão/intervenção”. Após quatro anos da suspensão das pesquisas de iniciação científica, a partir de 1999, a coordenação do Programa Alfabetização Solidária – PAS – realizada pelo Núcleo, nos municípios alagoanos, foi mostrando evidências de resultados que precisavam ser investigadas cientificamente. Nesse sentido, foi elaborado e aprovado pelo PIBIC-CNPq o projeto “Avaliação do programa alfabetização solidária em Alagoas: impactos e conseqüências sociais, políticas e educacionais nos municípios alagoanos”. A referida pesquisa encontra-se no final do segundo ano de investigação, apontando uma série de elementos que têm desencadeado e deverá desencadear novos estudos e propostas no campo do ensino e das atividades de extensão. Os resultados das investigações de campo, ao tempo em que vão sendo socializados entre a comunidade acadêmica e os educadores envolvidos na área, inclusive através da exposição nos diferentes eventos realizados, vão servindo como referenciais no apoio ao ensino e a extensão e mobilizando novos alunos a participarem das ações. Avalia-se que os conhecimentos e dados empíricos acumulados com as pesquisas e as experiências vivenciadas, através das atividades de extensão, vêm fortalecendo e sedimentando, cada vez mais, as atividades de ensino.
Os poucos que se fazem muitos na tessitura das redes: um olhar prospectivo No balanço das atividades realizadas ao longo de uma década tem-se a impressão de que ao falar sobre a importância do ensino, da pesquisa e da extensão no cotidiano da universidade, parece ser um lugar-comum ou até mesmo uma fala de retórica para enaltecer o papel do professor universitário. Contudo, considerando o quadro atual da maioria das universidades (grande número de professores substitutos; falta de verba para otimização das pesquisas e falta de recursos para um trabalho de qualidade), esse não parece ser um percurso tranqüilo. Ora, seja por conta da falta de pessoal qualificado para atuar de forma significativa nessas três dimensões ou pelo excesso de carga horária, que recai sobre as atividades de ensino, esta é uma empreitada que acaba sendo assumida por poucos. Perante este desafio, uma pequena equipe de professores do Centro de Educação, ligados à área de alfabetização de jovens e adultos, utilizou a estratégia de somar esforços para dar conta da demanda de interesses que se fez cada vez mais crescente nesta área. Vale salientar que as atividades de extensão que foram sendo desenvolvidas, ao longo da década de 80 e início da década de 90, tiveram um efeito-cascata sobre as atividades de ensino e da pesquisa, a saber um número expressivo de alunos interessados em discutir, de modo mais aprofundado, as questões relativas à Educação de Jovens e Adultos. Ao tempo em que os alunos da disciplina de EJA foram sendo instigados a questionar e refletir criticamente sobre a realidade social, foi sendo desencadeado a curiosidade e a inquietação a respeito dos seguintes questionamentos: a) Em relação aos sujeitos-aprendizes: quem são estes jovens e adultos que desejam um lugar na sala de aula? Por que estes jovens e adultos foram impedidos de freqüentá-la em idade própria? Qual a concepção de jovens? Qual a concepção de adultos? Apesar desses jovens e adultos estarem em igualdade numa situação de exclusão, eles possuem as mesmas características? b) Em relação aos professores: quem é este professor que vem trabalhando com jovens e adultos, sem uma formação específica? Qual a metodologia que deve ser trabalhada para alfabetizar jovens e adultos, considerando que os estudos e as pesquisas têm se voltado apenas para a educação infantil? É possível desenvolver 137
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um trabalho de qualidade, no que se refere à alfabetização, com a participação de alfabetizadores leigos? c) Em relação aos poderes públicos: qual o interesse político de se implantar programas e projetos na área de EJA, se a maioria desses adultos são considerados improdutivos frente às exigências do mercado? O que significa, particularmente, para o Estado de Alagoas ser recordista em analfabetismo, dentro deste contexto histórico-econômico de um mundo globalizado? Em relação aos professores e pesquisadores das universidades: o que significa para eles assumirem com tanta seriedade a coordenação desses programas, quando se tem clareza que eles não produzem os resultados desejados e, principalmente, quando se vem lutando historicamente para a implantação de políticas públicas para a área? Mais do que dar conta de todas estas questões, do ponto de vista acadêmico, houve a necessidade de atender a uma realidade fora dos “muros” da academia que desafia todos a uma ação efetiva por parte da universidade. Para tanto, o ensino, a pesquisa e a extensão foram sendo entrelaçadas para cumprir a tarefa de investigar e analisar esta realidade que acabou por exigir a atenção não só dos professores, como também, dos próprios alunos que já se encontravam envolvidos na interpretação dos dados e no esforço de apontar um caminho novo para o trabalho pedagógico realizado na Educação de Jovens e Adultos. Com efeito, a extensão, enquanto ponto de partida e de chegada, deixou de ser concebida como simples prestação de serviço. A partir desta compreensão e do próprio movimento que foi sendo estabelecido, a extensão se constituiu, especialmente na EJA, no eixo articulador das atividades que são desenvolvidas pelo Núcleo, oferecendo os elementos necessários à realimentação do ensino e da pesquisa, no CEDU e fora dele. O ensino, por sua vez, passou a privilegiar a indagação e a dúvida científica, procurando criar desafios que levassem o aluno a refletir e a ter cada vez mais uma independência intelectual. Até porque, o objetivo principal da prática pedagógica é o de possibilitar aos alunos a socialização do saber historicamente acumulado pela humanidade. Afinal: “As conquistas históricas da humanidade que se comunicam de geração em geração não só implicam conteúdos, conhecimentos da realidade temporal ou cultural, mas também supõem formas, estratégias, modelos de conhecimento, de investigação, de relação que o indivíduo capta, compreende, assimila e pratica” (Sacristán, 2000: 41).
Daí porque Vygotsky enfatiza o bom ensino. De acordo com os seus pressupostos teóricos, o professor é aquele que, ao assumir de fato a sua função pedagógica, com competência e compromisso, pode possibilitar essa mediação entre os conhecimentos científicos e os conhecimentos e experiências do cotidiano dos sujeitos – aprendizes. Isto significa dizer, então, que a atividade de ensino, que envolve a pesquisa e a extensão, assume procedimentos metodológicos que privilegia as perguntas no lugar das respostas. Partindo desta perspectiva, a maior preocupação dos professores envolvidos com a disciplina de EJA, do Centro de Educação, foi a de romper com uma concepção de ensino que sempre impõe aos alunos uma atitude contemplativa da sociedade. Ao contrário de um ensino reprodutivo, a intenção pedagógica dos docentes de EJA é „instrumentalizar‟ os aprendizes com os conceitos teóricos necessários para que os próprios alunos possam fazer uma leitura da realidade, valorizando a atividade de ensino como uma oportunidade significativa de interação entre o professor e o aluno. Ou seja, o momento coletivo da sala de aula assume de fato a sua função pedagógica. Baseado nestas reflexões, pode-se pontuar duas questões importantes que passaram a compor o cenário das disciplinas de EJA. Primeiro, à medida que o ensino e a extensão 138
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trouxeram um novo paradigma para o processo ensino-aprendizagem, os projetos de pesquisa tornaram-se cada vez mais necessários para buscar respostas a algumas questões teóricas que foram surgindo na área da Educação de Jovens e Adultos. Segundo, o engajamento na prática de educação de adultos e alfabetização e o modo como as atividades foram sendo conduzidas revelam que a área estava exigindo uma investigação sistemática que propiciasse uma explicação científica para as experiências em desenvolvimento e a construção de novas formas de trabalho. Nesse sentido, o ato de educar, do ponto de vista acadêmico, está intrinsecamente vinculado à realização da pesquisa. Afinal, não se pode esquecer que a produção de um conhecimento tem início com as indagações que deslocam o fenômeno da sua “naturalidade”, levando-o para um lugar de estranhamento que provoca inúmeras interrogações, a exemplo daquelas que foram feitas anteriormente. Sendo assim, é através do princípio da indissociabilidade entre essas três atividades, no cotidiano da Universidade, que se pode identificar as questões problematizadoras, procurando formas de atuação para resolvê-las. Somente através dessa unidade do ensino, da pesquisa e da extensão é que o conhecimento pode ser partilhado e a realidade apreendida e não simplesmente reproduzida. Mas, se por um lado, está reconhecida a importância dessa unicidade, não se pode perder de vista que a atividade de extensão é o lugar de tensão entre o ensino e a pesquisa. A tensão aqui definida como articulação, ou melhor, como uma atividade acadêmica que possibilita e mantém uma relação orgânica entre universidade e a sociedade. É através da atividade de extensão que se efetiva o processo dialético de teoria/prática, isto é, onde se provoca a práxis do conhecimento. Desse modo, pode-se dizer então que a atividade de extensão: “(...) é, fundamentalmente, o ponto de partida e o ponto de chegada da produção do conhecimento sistematizado que a universidade deve fazer. É preciso compreender que a dúvida, a problematização, fundamental à pesquisa, só nasce da prática social. São os desafios históricos que fazem o homem produzir ciência. Ora, sem contato e capacidade de leitura da realidade social, não é possível dar direção à pesquisa. Por outro lado, o resultado da pesquisa só chega à sociedade como elemento de solução de seus problemas através de profissionais instrumentalizados para fazê-lo” (Cunha , s/d: 05).
Foi partindo desta compreensão que assumimos, através do NEPEAL, os diversos programas e projetos vinculados à Educação de Jovens e Adultos que foram possibilitando, ao longo da sua execução, uma investigação científica. Os resultados dessas investigações, por sua vez, à medida que foram sendo socializadas junto à comunidade acadêmica e aos educadores envolvidos com a área de Educação de Jovens e Adultos, foram servindo como referenciais para a discussão e reflexão nas aulas de graduação e da pós-graduação, em EJA, mobilizando novos alunos para participarem das atividades de extensão desenvolvidas em EJA.
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EDUCAÇÃO POPULAR E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: diálogo entre saberes sobre educação popular Maria Helena Serrano de França Lins1 "O erro do intelectual consiste em crer que ele pode saber sem compreender, e, sobretudo, sem sentir e se apaixonar" (Antonio Gramsci).
Um pouco de História Nossas razões A idéia de fazermos o trabalho de conclusão de curso sobre as concepções de Educação Popular (EP) teve início na disciplina Educação Popular, ministrada pelo professor Eymard Mourão Vasconcelos, no Curso de Especialização Educação em Movimentos Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba. Como alunas deste curso, já havíamos produzido um primeiro trabalho baseado nas concepções sobre Educação Popular das alunas e dos alunos provenientes dos diversos Movimentos Sociais. Daí surgiu o interesse de compreender melhor estas concepções. Esta primeira aproximação com a diversidade de concepções nos mostrou a necessidade de fazermos um estudo mais detalhado sobre estas, e, é o que pretendemos com a produção deste trabalho monográfico. A inserção de um público proveniente dos movimentos sociais populares no programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB denota a importância de uma relação retroalimentadora entre universidade e comunidade, demonstrando assim, a necessidade da produção de conhecimento que venha contribuir com a práxis desses movimentos e com o repensar acadêmico. Por outro lado, a efetivação do papel social da universidade se inscreve nos objetivos do curso: a) capacitação de profissionais que atuam nos diversos tipos de movimentos sociais e assessoria de equipes de elaboração de políticas públicas; b) qualificação de profissionais, de um modo geral, para uma melhor inserção e atuação no mercado de trabalho, no campo de assessoria a movimentos sociais e as políticas públicas; c) promoção da pesquisa em políticas públicas, políticas governamentais e em movimentos sociais na Paraíba2. Tema polêmico e empolgante, o debate sobre a Educação Popular está sendo alimentado por alguns docentes e discentes que participam da UFPB. A evidência disso são os vários eventos ligados ao tema realizados no Campus I: IV Seminário Internacional Universidade e Educação Popular (1994), Encontros mensais Universidade e Movimentos Sociais - Uma Realimentação (1997-1999), Seminários anuais Educação e Movimentos Sociais (1996-1999), entre outros; somadas as recentes publicações de textos a exemplo do livro Educação Popular: Outros caminhos (1999); bem como, as diversas outras atividades desenvolvidas pela Pró-Reitoria de Ação Comunitária-PRAC, através de suas Coordenações e Núcleos, pelo Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares - SEAMPO/CCHLA, 1
Servidora da Universidade Federal da Paraíba, atuando no campo da extensão universitária, junto ao SEAMPO/CCHLA/UFPB. 2 Conforme regulamento do curso de Especialização Educação em Movimentos Sociais.
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pela Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho - UNITRABALHONúcleo Local, pelo Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva - NESC e pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador - CERESAT, além da produção acadêmica de monografias e dissertações. No cenário nacional é possível elencar as experiências de EP desenvolvidas por Paulo Freire, a Universidade Livre na USP, o Movimento de Educação de Base (MEB), as Comunidades Eclesiais de Base (CEB's), os Movimentos de Cultura Popular (MCP), os Centros Populares de Cultura, o Centro de Educação Popular e Investigação Social (CEPIS) e várias ONG's, entre outros. No campo teórico, destacam-se pesquisadores como Vanilda Paiva, Carlos Rodrigues Brandão, Pedro Pontual, Pedro Benjamim Garcia, Beatriz Costa, Aída Bezerra, João Bosco Pinto, João Francisco de Sousa, Carlos Alberto Torres, Alder Júlio Calado, Ivandro da Costa Sales, Genaro Ieno Neto, José Francisco de Melo Neto, Eymard Mourão Vasconcelos. No âmbito internacional não poderíamos deixar de mencionar a contribuição de Oscar Hara Holliday (Costa Rica), Ettore Gelpi (Espanha), Diego Palma (Chile), Judith Marcshall (Canadá), Marco Raul Mejia (Colômbia), e Rosa Maria Torres (México). A turma inicialmente estava composta por quarenta alunos, entre graduados e nãograduados; todos indicados por organizações de base urbanas ou rurais (movimentos sociais e sindicatos) e organizações de apoio (ONG's, pastorais, organizações governamentais). Dentre os alunos da Especialização, cinco desistiram do curso por motivos diversos, de ordem pessoal ou profissional3. Desistiram, ainda, oito alunos especiais que participavam através do Programa de Extensão4. No final do curso, este contava com vinte e cinco discentes 5. Baseando-nos nas suas experiências de militância, vimos que procedem dos seguintes grupos: os que atuam nos movimentos sociais populares e no movimento popular sindical; os que atuam na área de educação básica/alfabetização; os que atuam nas pastorais; os que desenvolvem atividades de extensão vinculadas à UFPB e os alunos que atuam nas ONG's. Decidimos trabalhar com dois destes: o grupo formado pelas alunas e alunos provenientes de ONG's e o outro proveniente de atividades de extensão. Tal escolha se justifica pelo fato de as co-autoras desta monografia fazerem parte da realidade desses grupos, como atoras sociais numa prática de Educação Popular. Outro aspecto que influenciou na escolha foi o fato desses serem os grupos mais numerosos, possibilitando uma melhor caracterização como grupo de referência. As normas que regulamentam esta Especialização estabelecem que a monografia de conclusão do curso deverá ser produzida individualmente: por essa razão, foram elaboradas duas monografias sobre o objeto de estudo ora apresentado, que foi construído em co-autoria As concepções de EP das alunas e alunos do referido curso de especialização - , que seguiram os mesmos procedimentos teórico-metodológicos. Assim sendo, uma das monografias recortou este objeto e focou o olhar sobre as concepções de Educação Popular de alunas e alunos provenientes de ONG's e a outra, sobre as concepções de Educação Popular de alunas e alunos provenientes de Atividades de Extensão da UFPB. Na presente monografia, nosso objetivo foi o de conhecer as concepções de Educação Popular das alunas e dos alunos provenientes de práticas em ONG's e em atividades de extensão universitária da primeira turma do referido curso de Especialização. Procuramos 3
Lize, Marivete, Alcivanira, Antonio Radical e Socorro Estrela. Luciene, Mário, Débora, Jorge, Rossana, Edna, Josiane, Penha.. 5 Aninha, Branca, Ceci, Da Paz, Edlânea, Falcão, Graça, Helena, Ivanilda Gentle, Ivanilda, Joselita, Laura, Leidaci, Lena, Luciana, Marcondes, Mendes, Rai, Sávia, Sandra Raquel, Simone, Socorro Tânia, Vanalba, Verinha. 4
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estabelecer um diálogo entre as concepções destes e as das autoras e dos autores tomados como referência neste trabalho. Vislumbramos, como um desdobramento, estimular para que esses "representantes" de ONG's e da Extensão se tornem o elo desencadeador e multiplicador da discussão que se trava neste diálogo. Para consecução desta pesquisa utilizamos uma metodologia baseada na Educação Popular que é definida por Ivandro da Costa Sales como uma perspectiva, um modo de atuar, que integra o sentir/pensar/agir das atoras e dos atores envolvidos no processo educativo. Ou seja, "Educação Popular mais como uma perspectiva e uma proposta a ser vivenciada onde a vida for nos colocando do que como um tipo de atividade..." (1995: 118). E ainda como "...um modo orgânico e participativo de atuar na perspectiva de realização de todos os direitos do povo, ou seja, dos excluídos e dos que vivem e viverão do trabalho, bem como dos seus parceiros, aliados e amigos na sociedade" (SALES, 1999: 116). A fala delas e deles – uma primeira aproximação... Foi realizada uma rodada inicial para levantamento oral, na turma, das concepção de Educação Popular das alunas e alunos a partir da questão: O que se entende por educação popular? A primeira sistematização de tais concepções foi realizada por uma equipe de três destas alunas (da qual fizemos parte) posteriormente socializada na turma, no final da disciplina. Nessa ocasião, retomamos a questão inicial, desta feita solicitando-a por escrito.
Durante a disciplina EP, resgatamos e explicitamos como foi realizada a rodada inicial de levantamento acerca das Concepções de Educação Popular entre as alunas e alunos da Especialização Educação em Movimentos Sociais. Nessa ocasião, o coordenador da disciplina deu início à discussão a partir de uma questão que colocou em sala de aula: O que se entende por educação popular? Provocação esta que lembrou a Pedagogia da Pergunta, apresentada por Paulo Freire e Antonio Faundez (1985), trazendo inquietação e causando um certo reboliço nas pessoas presentes na aula. Tomando em consideração a metodologia de desconstrução das palavras e conceitos verbalizados, levou-nos a fazer algumas indagações iniciais: · Sobre o sentido das palavras, fugindo dos conhecidos jargões que trazem conceitos muito amplos, que querem dizer tudo e geralmente não dizem nada; · Sobre a insegurança gerada a partir da construção - desconstrução de uma teoria gerada das práticas de educação popular, nas quais estamos inseridos. Tentamos iniciar um diálogo entre os variados entendimentos sobre Educação Popular, manifestados pelo corpo discente e docente que deram vida à disciplina. A turma A primeira sistematização das concepções sobre educação popular foi realizada por uma equipe de três alunas da qual fizemos parte, valendo-nos da observação participante, que segundo Jarry Richardson se constitui em "um instrumento de captação de dados mas, também, instrumento de modificação social" (RICHARDSON, 1999: 262). Esta sistematização foi socializada com a turma numa rodada de discussões ao final da disciplina; na ocasião, foi apontado pelo professor da disciplina que a ênfase da sistematização recaiu numa tentativa de harmonização das concepções, revelando-se, desta forma, uma lacuna em relação às diferenças contidas nas concepções verbalizadas. Nessa oportunidade então, a equipe de sistematização solicitou, uma explicitação das concepções de Educação Popular por escrito, o que foi prontamente aceito e feito pelos presentes.
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Varias concepções foram expressas de forma oral e escrita pelos participantes; umas se complementavam, outras tinham similaridades e ainda, algumas se contrapunham em alguns aspectos. "É um pensar, propor e ver o mundo na perspectiva de classe é um processo de descondicionamento de pensar e agir no mundo, transformando as pessoas e os espaços onde elas vivem (...)." "É o conhecimento/descobrimento dos seus próprios direitos e de sua condição de classe". "A maneira ou o modo de trabalhar com as classes populares, isto nos aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, tendo em vista a sua luta para a sobrevivência e cidadania".
Identificamos concepções que estavam implícitas ou mesmo explícitas a idéia de classe social. "É a minha prática e a prática de todos aqui. Equilibrando o conhecimento empírico e o conhecimento científico para produzir um conhecimento novo (...)". "Troca do conhecimento empírico com o científico numa construção metodológica na perspectiva de emancipação, desenvolvendo a consciência crítica". " (...) É um processo de troca de valores que se dá além do nível do conhecimento".
Outras concepções valorizavam o conhecimento, no sentido da troca e do equilíbrio entre o conhecimento empírico6 e o científico7 para produzir um conhecimento novo, objetivando a germinação da emancipação. "É no sentido do resgate do ser humano, resgatar a cidadania, resgatando direitos e deveres". "Socialização do conhecimento para se adquirir conscientização e com isso resgatar a cidadania nas relações entre as pessoas(...)". "É um processo educativo que gera a consciência dos direitos e da participação".
Ainda nesta direção, se destaca a concepção de Educação Popular que resgata o conceito de cidadania e da busca de direitos, numa relação de criticidade com a realidade, vista também de forma mais ampla, abrangendo as relações interpessoais. "Parte da realidade de onde se está, atuando comprometida com o fazer e o saber popular". "(...) É uma ação humana voltada para a subjetividade com o olhar dos trabalhadores". "As dimensões do saber enquanto conhecimento, afetividade e prática". "Algo que me tocou profundamente na formulação dos conceitos sobre a Educação Popular foi a perspectiva defendida pelo Ivandro Sales, quando afirma as dimensões do sentir/pensar/agir. Isto me seduz, porque me faz ver as inúmeras possibilidades de participação, aprendizagem, criatividade e subjetividade, que envolvem o saber e a troca dessa experiência cognitiva".
Traduzida enquanto saber, a Educação Popular vai além do conhecimento, pois o saber envolve outras dimensões, como a dimensão afetiva, tendo como elemento principal a 6
Conhecimento empírico - é o modo comum, corrente e espontâneo de conhecer, que se adquire no trato direto com as coisas e os seres humanos (LAKATOS, 1986: 19). 7 Conhecimento científico - visa explicar "por que" e "como" os fenômenos ocorrem, na tentativa de evidenciar os fatos que estão correlacionados, numa visão mais globalizante do que a relacionada com o simples fato (Idem: 18).
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subjetividade, que possibilita o resgate do indivíduo enquanto sujeito socialmente participativo. "Não é qualquer metodologia, tem objetivo e um jeito de se fazer. É uma concepção do mundo e da vida, sai do isolamento para ampliar os horizontes e a própria vida". "Se utiliza de uma metodologia diferente da educação formal, que possa discutir criticamente como se trabalhar". "É uma educação em principio que se contrapõe ao modelo tradicional na tentativa de libertar o homem, numa perspectiva de justiça preocupada com a transformação".
E por último, a dimensão prática da EP, que é o jeito de ser e de fazer nas relações do cotidiano8 sob a perspectiva transformadora do indivíduo, do Estado e da sociedade; ou seja, indica uma concepção de classe, uma postura diante da sociedade, um modo de ver o mundo e viver a vida. Como nos faz pensar Eder Sader: uma concepção de classe no sentido da articulação entre dois momentos indissolúveis, as condições de valorização do seu saber e colocando-os em diálogo/confronto com o saber acadêmico. A tentativa, de confrontar as concepções de E.P., não se constitui uma ação reflexiva para obscurecer o embate entre as diferenças, e sim uma tentativa de provocar um diálogo entre elas. Desta forma, caminha-se para a construção de uma transformação social que busca a solidariedade, o respeito às diferenças, a melhoria da qualidade de vida humana, conservando a vitalidade e a diversidade do planeta Terra, integrando seu desenvolvimento e sua conservação.
Concepções de educação popular das educadoras e educadores de extensão - uma segunda aproximação Extensão universitária: entre o real e o ideal O surgimento de experiências de extensão universitária teve seu início no século XIX, nas universidades americanas e nas universidades populares européias, nas quais o papel correspondente a esta atividade consistia, eminentemente, na oferta de prestação de serviços, justificando na época a função social da universidade. Ainda marcada pela idéia de prestação de serviços, havia nos Estados Unidos duas compreensões de extensão: a universitária em geral, e a cooperativa ou rural. Ambas almejavam uma aproximação com a população, e daí advêm os fundamentos da extensão universitária brasileira. Nessa tentativa de aproximação da universidade com a população, inseriu-se o Movimento de Córdoba, Argentina (1918), conforme explicita José Francisco de Melo Neto: "Apesar do caráter assistencialista, trazia a necessidade de vincular a universidade ao povo e à vida da nação através da extensão" (Melo Neto, 1996: 12). No decorrer do século XX, a idéia da prestação de serviços ainda permeou a extensão nas universidades brasileiras, referendada pelo texto da Reforma Universitária de 1968, que 8
Cotidiano - A vida cotidiana é a vida do homem inteiro, ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se em funcionamento todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias (Heller, 1992: 17).
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institucionalizou essa atividade como função oficialmente definida, e através da oferta de cursos de extensão pretendeu instituir a relação da universidade com a sociedade, tentando disseminar os conhecimentos técnicos entre o povo. A UNE parece ter comungado desse ideário, pois a proposta de extensão explicitada na ocasião de sua criação em 1938, em seu plano de sugestões, e mais especificamente na Declaração da Bahia (1961), expressava algumas funções para a Universidade, onde uma delas era a difusão da cultura pela integração da Universidade na via social popular, com a preocupação de transformação da sociedade. O papel da extensão, entretanto, não tem sido apenas o de contribuir para institucionalizar-se e referendar-se como função oficial. Registros de experiências por profissionais que atuam (muitas vezes de forma isolada) a serviço da hegemonia da classe trabalhadora, proporcionam uma reconceituação e uma reformulação da extensão, denotando dessa forma, uma concepção que se opõe ao caráter funcionalista que prevalecia nos seus primórdios. Nessa perspectiva, José Francisco de Melo Neto comenta: "...uma extensão que contenha um aprendizado pedagógico no sentido de um aprendizado dual - a universidade aprende enquanto ensina e é ensinada enquanto aprende com as classes sociais, com o estudo da realidade objetiva" (Melo Neto, 1996: 18). No final do século XX, nuances de uma concepção de extensão voltada para um novo projeto social começam a despontar, com vistas a contribuir na construção da hegemonia da classe trabalhadora. Exemplo disto pode ser encontrado nos objetivos da extensão universitária, declarado pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão Universitária das Universidades Brasileiras, (1987: 2): Articular o ensino e a pesquisa com as demandas da sociedade, com interesses e necessidades da sociedade organizada, em todos os níveis (sindicatos, órgãos públicos, empresas, categorias profissionais, organizações populares e outros organismos); Estabelecer mecanismos de integração entre o saber acadêmico e o saber popular, visando uma produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade, com permanente interação entre teoria e prática; Incentivar a prática acadêmica que contribua para o desenvolvimento da consciência social e política, formando profissionais-cidadãos; Participar criticamente das propostas que visem o desenvolvimento regional, econômico, social e cultural; Contribuir para reformulações nas concepções e práticas curriculares; Favorecer a reformulação do conceito de "sala de aula", que deixa de ser o lugar privilegiado para o ato de aprender, adquirindo uma estrutura ágil e dinâmica, caracterizada pela interação recíproca de professores, alunos e sociedade, ocorrendo em qualquer espaço e momento, dentro e fora dos muros da Universidade. Mesmo diante desses objetivos, não podemos perder de vista o caráter heterogêneo da extensão, no sentido em que, na prática, muitas vezes a extensão limita-se, a oferta de cursos, palestras ou seminários. Segundo Melo Neto (1999: 31), "na universidade, as tentativas de alguns segmentos voltados a atividades em Educação Popular foram conduzidas pela extensão universitária, compreendida como realização de cursos, solução de problemas sociais ou mesmo divulgação ou propaganda de idéias e princípios salvadores dos altos interesses nacionais" . Para que a extensão efetivamente seja ampliada para além da informação (cursos de extensão, palestras etc.), se faz necessário que a Universidade responda às demandas externas na área do desenvolvimento social e tecnológico (pesquisa de produtos e processos, prestação de serviços) e na melhoria do bem-estar social (projetos de desenvolvimento social em 147
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comunidades, propostas culturais, assessorias e apoio a movimentos populares e sindicais, etc.). Nessa direção atua, entre outros, o Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares-SEAMPO/UFPB, conforme explicita Ieno Neto, 1992: 45): "No SEAMPO, a extensão é proposta como um conjunto de práticas orgânicas de professores, alunos e funcionários da universidade com setores do movimento popular e sindical, em busca da criação de espaços para produção de conhecimento, a partir dos vários pontos de vista presentes nos projetos comuns de trabalho”. Aliada a essa questão, temos uma outra, a da extensão como prática acadêmica interligada às atividades de ensino e pesquisa, que em seu conjunto podem assegurar o compromisso social da Universidade. Convém chamar a atenção para as especificações desta prática acadêmica, lembrando que as ações da Universidade não podem substituir as responsabilidades governamentais. Nesse sentido, o caráter de atividade-fim é lembrado por Souto (1997: 8): "A extensão universitária (...) é uma atividade-fim do fazer acadêmico, que deve ser exercido de modo sistemático, com o envolvimento político e o compromisso ético de todo o corpo da UFPB". Com relação às expectativas de resposta da sociedade, surgem novas possibilidades, não só na dimensão do ensino, mas na de prestação de serviços. É através da extensão como preocupação do ensino e da pesquisa, que se dá a possibilidade do estudo da realidade objetiva, na relação da universidade com a sociedade. Vislumbrando o tripé ensino/pesquisa/extensão como sendo indissociáveis, é fundamental que o estabelecimento de laços relacionais entre esses níveis seja uma constante na vida acadêmica, o que na prática não se tem observado, ficando cada uma dessas dimensões na Universidade isoladas uma das outras. O fortalecimento da relação ensino/pesquisa/extensão, ao promover o intercâmbio entre a universidade e a sociedade, poderá proporcionar transformações nos sujeitos e na ação pedagógica, capaz de contribuir para a transformação social, num exercício democrático de socialização do saber, viabilizando também uma aproximação teoria e prática. É o que afirma Abath (1997: 7-8): "A importância da extensão se dá em torno da idéia de que a democracia enquanto processo político, tem, na Universidade e através dela, a estratégica aglutinação de todas as outras questões nacionais. (...) A extensão em sua indissociabilidade com o ensino e a pesquisa, deve ser o caminho para repensar nossa visão de conhecimento e saber, superando o racionalismo instrumental e compreendendo o saber como realidade ampla e integrada de vida". A Extensão, no âmbito da Universidade Federal da Paraíba, encontra-se explicitada no artigo 1º, da Resolução 09/93, do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE), que disciplina as atividades de extensão de acordo com o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras: "A extensão é constituída, na UFPB, como um processo educativo, cultural, científico e tecnológico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a Universidade e a sociedade." Atualmente, podemos explicitar o pensamento e a ação da extensão na UFPB através das falas de alguns de seus representantes no reitorado, que anseiam por uma extensão que articule o diálogo entre o saber técnico e o saber popular na construção de um saber renovado. Sobre extensão, Pontes (1996: 7) faz a seguinte afirmação: "A extensão de fato e de direito deve ser entendida e praticada como uma atividade-fim do fazer acadêmico. É a face mais exposta da universidade, deve ser incorporada em definitivo a rotina dos professores, pesquisadores, estudantes e técnicos da instituição. É a extensão que revela e desvela a Universidade para a sociedade". 148
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Ainda nessa direção Nunes (1997: 07) se pronuncia: A extensão é a parte mais visível do que hoje identificam como Universidade Cidadã. É a presença da instituição Universidade no cotidiano das pessoas". A partir de 1992, pode-se dizer, que vem se firmando um marco referencial na história da extensão na UFPB, haja visto não só a quantidade substancial de projetos desenvolvidos nas mais diversas áreas, mas principalmente a qualidade dimensionada nas perspectivas de suas ações, contribuindo assim, para que a Universidade desempenhe o seu real papel junto à sociedade, fato esse confirmado por Targino (1996: 7): "As ações de extensão da UFPB, são testemunhas dos esforços empreendidos por professores, alunos e servidores técnicosadministrativos, num sentido de se edificar uma universidade cientificamente competente e socialmente comprometida". Recentemente (14 de dezembro de 2000), foi lançado em Brasília o primeiro Plano Nacional de Extensão (1999/2001), resultante de 12 anos de trabalho do Fórum de PróReitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, cujo teor ressalta que: “a nova concepção de extensão corrige distorções e fortalece o professor da área de extensão, ao eliminar a distinção que a atividade sofria em relação à docência em graduação e pósgraduação”. Considerando as especificidades da Extensão na Universidade, e especificamente na UFPB, e ainda, enxergando a universidade como fazendo parte da sociedade e não à parte, podemos inferir que essa prática pedagógica tem ocorrido como possibilidade de troca de saberes entre Universidade e comunidade. Entretanto, essa prática ainda carece de atingir um raio maior, enquanto atividade-fim, bem como de ampliar e fortalecer as práticas que se situam na direção da construção de uma universidade politicamente engajada, dialeticamente orgânica na busca da hegemonia da classe trabalhadora.
Educação popular: atoras e atores da extensão universitária Retomamos à questão "o que se entende por educação popular?", utilizando como instrumento metodológico a entrevista coletiva (seguindo um roteiro de questões norteadoras), facilitada através de uma oficina de pesquisa com produção de maquete em argila. A metodologia desencadeada desde o primeiro momento da investigação explicita-se enquanto pesquisa qualitativa, que induz a pensá-la como forma de aprofundar o caráter social e as dificuldades de construção do conhecimento como algo inacabado e provido de uma intencionalidade comprometida com as transformações sociais. Essa construção vem se aproximando da pesquisa participante definida por Gajardo (1986: 44) como "o termo usado com mais freqüência, na atualidade, para fazer referência às experiências que procuram conhecer, transformando; Brandão (1985: 80) acrescenta que é um processo de interação entre um modo de produção autônoma e um modo de produção heterônoma". Observa-se uma aproximação com a pesquisa ação, definida por Thiollent (1998: 14) como “um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo”. Quanto à relação pesquisador/pesquisado, tentamos nos aproximar do que Brandão (1985: 140) chama de investigação militante - que “coloca a inserção como uma técnica de aproximação da realidade, é uma forma de focalizar o compromisso, reconhecendo todas as suas conseqüências”. 149
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Retomamos à concepção de EP agora utilizando como instrumento metodológico a entrevista coletiva, que seguiu um roteiro de questões norteadoras9. A escolha desse tipo de entrevista se deu pelo caráter participativo, característico de uma prática de Educação Popular a que nos propomos e ainda por possibilitar o diálogo e a troca de saberes almejados. Essa entrevista foi facilitada através da oficina de pesquisa com maquete em argila10, sua utilização propiciou um contato com a terra estimulando a criatividade, facilitando a expressão da subjetividade, a reconstrução dos acontecimentos e o surgimento de novos conhecimentos. Essa metodologia foi ensaiada com alunos da disciplina Psicologia da Educação V, que nos revelou na prática a sua potencialidade enquanto instrumento de pesquisa. "Educação Popular é aquela que utiliza-se dos meios disponíveis de uma comunidade. Ela não se prende só aos livros, a sala de aula convencional, mas é aquela que percebe as necessidades do aluno dentro da realidade dele, faz alguma coisa que possa ajudá-lo, tornálo pessoa mais consciente de sua realidade para que tenha mais elementos para construir e saber o que querem realmente para a sua vida" (aluna do curso de História/UFPB). "Nós procuramos retratar uma comunidade popular deveras organizada e dentro está inserida a educação.(...) Em todos os campos de atividades nós aprendemos sobre educação popular e é nessa educação que aprendemos muita coisa no dia-a-dia" (aluno do curso de História/UFPB).
A nossa atenção nessa pesquisa voltou-se para o resgate dos diferentes posicionamentos das educadoras e dos educadores populares com atuação efetiva em atividades de extensão universitária matriculados no I Curso de Especialização Educação em Movimentos Sociais. No decorrer do processo de construção da maquete em argila, instigamos o grupo a conversar sobre Educação Popular. Imediatamente, brotou um debate entre os entrevistados, proporcionando reflexões e apontando uma riqueza de informações trazidas do cotidiano dos Movimentos Sociais Populares. As entrevistas coletivas foram feitas em forma de oficina e foram realizadas simultaneamente, com os dois grupos específicos, cujos dados resultaram em duas monografias. Gonzales (1987: 3) pensa a oficina "como tempo-espaço para a vivência, a reflexão, a conceitualização: como síntese do pensar, sentir e atuar. Como o lugar para a participação, o aprendizado e a sistematização do conhecimento". As verbalizações foram gravadas em fita cassete e transcritas pelas pesquisadoras a fim de facilitar o exercício de aproximação, conhecimento e troca (análise preliminar) dos dados levantados. Filmamos e fotografamos a oficina, registrando assim, esse momento ímpar de construção coletiva. Os depoimentos foram empolgantes nas questões relacionadas à prática da Extensão, apresentando pontos em comum e divergentes com relação à perspectiva e ao modo de atuar na Educação Popular. Foram apontados dois pólos para a extensão exercida pela Universidade: a que se efetiva considerando os princípios de Educação Popular; e a extensão que se distancia desses princípios. No que se refere à concepção de Educação Popular das atoras e atores da pesquisa, foi possível observar uma linha de convergência na perspectiva e no modo de atuar das educadoras e educadores entrevistados. Baseadas na perspectiva do sentir/pensar/querer/agir, elegemos falas que ilustram as concepções de Educação Popular na dimensão da perspectiva e do modo de atuar.
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Veja-se formulário em anexo. Oficina de Pesquisa com maquete em argila - descrita e utilizada por Guimarães (1998).
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As falas que nos apontam uma perspectiva de educação popular "A Educação Popular mesmo sendo um conceito mais global, não é acabada, está em construção. Eu também percebo que é um conceito não definido, Educação Popular desde a sua origem ainda não está construída enquanto metodologia. É uma metodologia ainda em construção" (Educadora Popular). "Isso é um pouco do conceito de Educação Popular que está em construção, que é um conceito muito amplo que vai se transformando, que vai mudando de acordo com essa realidade da sociedade, representada aqui na maquete. A Universidade penetra na sociedade mais não consegue muita coisa, as mudanças, as transformações são muito devagar, porque a Educação Popular que é pensada na Universidade, quando chega na sociedade se dilui" (Educador Popular). "Essa pirâmide na maquete é como eu vejo algumas vezes a prática da Educação Popular na Universidade, mas também é praticada como um círculo. Como círculo ela é harmônica. está vendo as cores azul e lilás? Para mim significam harmonia. Esse círculo é a proposta de Educação Popular. É a proposta que a gente quer que a Universidade comece. Essa coisa democrática, que ela não ache que é a única produtora do saber e se abra para que esse saber seja renovado por tudo o que está acontecendo na sociedade, conseguindo articular pesquisa/ensino/extensão na ação" (Educadora Popular). "É preciso que as demandas surjam e que o povo se organize para superar determinados problemas; isso, o povo está construindo nas suas lutas, visualizando algumas parcerias, algumas unidades, mas a diversidade é enorme. Essa peteca que construímos na maquete é a Educação Popular que a gente sonha.Ela pode ser definida como uma utopia" (Educadora Popular). "A Universidade serve aos interesses da sociedade por conta da prática de alguns grupos. Em outras palavras, não há unidade, uma direção, uma articulação para que a extensão na Universidade seja orientada no sentido de trabalhar com as necessidades da população. O que está faltando na sociedade para que a coisa caminhe, para que as condições de vida melhorem, é que a sociedade civil se organize. E faça como diz Ivandro Sales: Que a sociedade governe o Estado (grifo nosso) (Educadora Popular).
As falas elencadas convergem para uma perspectiva dinâmica e em construção, que está implícita no jeito, no modo de fazer Educação Popular, apontando seu caráter não acabado. Estas falas apontam também para um modo de atuar democrático e harmônico com a participação da Universidade e do povo numa via de mão dupla, em que ambos possam contribuir para efetivação de um diálogo na diversidade, levando em consideração a troca entre os saberes. Ainda se supõe que é pela via da Educação Popular que se conseguirá articular, efetivamente, o ensino, a pesquisa e a extensão. "Há um tipo de comunicação nesse tipo de projeto de Educação Popular, mas não há uma comunicação entre si. A comunicação que existe é uma divulgação, mas não é uma comunicação para se fazer uma luta comum. Para se assumir uma bandeira de luta só. A Universidade deveria ter um projeto comum de Educação Popular" (Educador Popular). "Na Universidade é difícil, é cada um com sua bandeira. Tem muita gente trabalhando realmente, mas não tem a referência do trabalho do outro, por não se agrupar. A falta de comunicação é um entrave dentro da instituição" (Educadora Popular).
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Esses são posicionamentos que vêem a comunicação com destaque para o fortalecimento de uma linha de atuação da Extensão na Universidade, na perspectiva da Educação Popular, possibilitando a quebra do isolamento dos vários projetos e a construção de um ponto de confluência, visualizando assim uma proposição norteadora para os diversos trabalhos. "Nós vivemos numa sociedade onde a gente quando nasce, que diz assim: é pobre... ou está numa família pobre, numa classe pobre. É violado o seu direito de gente. Eu acho que essas coisas só vão entrar num processo de mudanças... quando o movimento organizado da sociedade invadir a Universidade, de modo que possa transformar os tipos de avaliações. Não só para invadir a Universidade mas, invadir toda a existência, todo o processo educacional, desde a escola fundamental à Universidade. Essa é minha utopia!" (Educador Popular).
Essa fala traz a perspectiva da transformação com participação, apontando para um projeto concreto a ser viabilizado pela sociedade organizada. Buscando o momento da germinação, apostando na possibilidade da classe popular tornar-se "mais sabida e mais forte" para tomar a direção e dar um novo rumo, priorizando os interesses da maioria. "Eu queria fazer um útero com um feto, mas eu não sei desenhar. Aí eu fiz um ovo. Então no meio dessa diversidade, dessas diferenças, as pessoas não se sentem representadas, a sociedade não se sente representada na Universidade. Agora eu sinto a Universidade se abrindo, bem devagarinho está contribuindo para que as coisas mudem. O que eu sinto é que a vida está querendo nascer, explodir, está querendo rebentar, então este ovo está quebrando as casquinhas e vai anunciar alguma coisa muito interessante. E a Educação Popular na Universidade é um dos instrumentos que vai contribuir muito para isso. Para esta vida que está querendo romper a casca do ovo" (Educadora Popular). "A gente vê na história da privatização da Universidade, que prioridade está se dando a um dinheiro que é público? Não tem servido ao povo. A gente paga impostos, se cria uma universidade e a extensão é colocada como apêndice. É um dinheiro público que só serve aos interesses dos EUA, que manipula o capitalismo mundial. Essa dominação é representada pelo dólar quebrado que construí na maquete, representa a história da bolsa de valores, esse dinheiro virtual, essa coisa que se investe mais na acumulação de dinheiro do que na produção, na formação de pessoas. Só que a gente quer destruir o dólar. Existe um movimento nesse sentido. Eu acredito que esse dólar, essa coisa virtual não está tão sólida, está se fragmentando" (Educadora Popular).
A ênfase dessa perspectiva recai sobre uma ação transformadora e renovadora que apesar de lenta, apresenta algo de novo, inovador, vai do real ao utópico numa ciranda de motivações que planta a esperança para continuar na luta; isso se apresenta de uma forma metamorfósica, transformando o ovo em vida. O discurso situa na conjuntura mundial a política de distribuição do dinheiro público advindo dos impostos pagos cotidianamente pela população, salientando que a mesma não tem o devido retorno na melhoria da qualidade de vida, especificamente nesse caso, com relação à Educação, no que se refere à prática de extensão. E explicita a existência de um possível movimento de confronto a essa política, com força suficiente para fragmentar o dólar, ou seja, quebrar a hegemonia capitalista vigente. Essa percepção vem mesclada de uma ingenuidade, como diria Freire (1987: 76): "Afirmar que a prática educativa é o instrumento para a transformação revolucionária da sociedade me parece ingênuo. Evidentemente, o que não se pode negar é que a prática revolucionária transformadora da sociedade é em si mesma. pedagógica, em si mesma educativa".
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As falas que nos apontam um modo de atuar na educação popular: "Dependendo da militância das pessoas que estão envolvidas, seja funcionário, seja professor, de acordo com a integração ou com a relação que eles fazem com o movimento, então os projetos de extensão têm o seu caráter de Educação Popular ou não. Eu acho, como sempre achei, o discurso muito longe da prática, do real, desde a postura individual, até a postura coletiva. Porque a questão da Educação Popular envolve coisas muito amplas" (Educador Popular). "Uma coisa que eu percebo como positiva é que os estudantes que estão na graduação começam a interagir com uma futura profissão, começando a perceber os problemas, e têm assim, condições de fazer uma intervenção como profissional. (...) Eu acho que a gente tem que construir um status como cidadão, seja no espaço da universidade ou da sociedade. Por outro lado, a gente precisa ir devagar porque o ato pedagógico é um ato lento e é preciso ter paciência para ele acontecer" (Educadora Popular).
Nessas falas se vislumbra a questão da formação do profissional, fazendo uma relação retroalimentadora entre teoria e prática. E ainda, se reporta ao respeito e à paciência histórica do ato educativo, que pode acontecer em qualquer espaço, em todo canto e lugar, dependendo, principalmente, do compromisso político dos envolvidos no processo, individual e coletivamente. Lembrando o que nos diz Ivandro Sales: "um trabalho de Educação Popular é possível em qualquer espaço desde que se tenha sabedoria para tomar em consideração os limites e possibilidades de cada espaço". Os posicionamentos poderiam apontar para uma atuação na direção do "intelectual orgânico gramsciano" mas, ainda colocam-se distantes enquanto possibilidade. Organicidade que toma em consideração o aprofundar, as inquietações, problemas, desejos, sonhos, querer, direitos. Ou seja, é a apuração, organização, aprofundamento, do que "já está" nas pessoas e nos grupos. "O trabalho de Educação Popular que eu faço na comunidade é de amor, dedicação e renúncia. Há quem não acredite, mas a gente usa o carro da gente, coloca o combustível do nosso bolso para se deslocar para a comunidade. É difícil, a gente começa com muita garra, mas é uma escala difícil para chegar lá e tentar realmente fazer alguma coisa, reunir com o pessoal e a gente sentir que está rendendo, está tendo alguma semente" (Educadora Popular). "Que a Universidade considere as relações de poder que acontece no nível das micro relações. Houve um tempo em que a Educação Popular valorizou muito a cognição, o racional. Essa nova perspectiva de Educação Popular considera o afeto, o coração. Não ficando no pólo só afeto, nem só razão, mas que integre coração, homem/mulher e que integre esse afeto na construção da Educação Popular. Eu fico pensando que a Universidade tem investido muito na história da razão, da inteligência. E nem sempre a inteligência traz coisas boas, também traz coisas ruins, exemplo disso é a bomba atômica. Se pode dizer que a pessoa que construiu essa bomba, tem amor no coração, tem afeto, é uma pessoa sensível?" (Educadora Popular).
Esses depoimentos trazem a tona alguns elementos da subjetividade, como fé e renúncia que parecem provenientes de uma prática ligada a uma conduta religiosa, de doação com um compromisso político pessoal. Resgata ainda, elementos como emoção, coração, afeto, ampliando para as relações de gênero. Ficam evidenciadas as relações de poder que estão explícitas e implícitas em qualquer espaço, em graus diferenciados. Não sendo diferente em relação à Educação Popular. Denuncia o investimento da Universidade nas questões da cognição, razão e inteligência, acrescentando exemplos de que isso nem sempre traz bons 153
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resultados, colocando a dimensão negativa do conhecimento, reivindicando da parte dos que fazem a Universidade uma valorização da dimensão subjetiva. "A história da salada de frutas na maquete, é para representar a Educação Popular como uma salada, que tem várias concepções, não tem uma única. Não tem uma única forma de fazer. Dando aqui o sentido de uma salada" (Educador Popular). "Educação Popular para mim, não é só o modo de fazer, é o jeito. Mas é principalmente a perspectiva, aonde é que a gente quer chegar com ela. Para mim, tem que ter uma perspectiva de transformação. Sem esquecer que a Educação Popular já está no fazer" (Educadora Popular).
A concepção de Educação Popular é definida pela metodologia, quem dá o tom da ação educativa é a diferença no jeito de fazer, que constitui-se em uma diversidade de fazeres. Os depoimentos apresentam uma perspectiva de Educação Popular que visa transformações, não só no jeito de fazer, mas principalmente, que produza mudanças significativas na sociedade com e a partir da ação pedagógica. É a Educação Popular como instrumento de luta da classe popular, que toma em consideração os saberes, a cultura dos diferentes segmentos de trabalhadores.
Um diálogo entre autoras e autores – uma terceira aproximação... Instigadas pela discussão ocorrida em sala de aula e pelas leituras realizadas sobre Educação Popular, sentimos a necessidade de pensar os conceitos Educação (substantivo) e Popular (adjetivo) separadamente, sem perder a liberdade de pensar a Educação Popular como algo que ultrapassa os limites dessa junção. Nesse intuito, expressamos nossa concepção de educação, de acordo com Sales (1999: 112): "Educação não é, portanto, o processo de produção, transmissão e reprodução de conhecimento. É a produção ou reprodução de modos de sentir/pensar/agir". Podemos complementá-la com a perspectiva de Brandão, (1981: 10), para quem a educação é, "entre outras uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade". Já Melo Neto (1999: 54) enfatiza o aspecto histórico da educação: "um processo de formação do humano no seu tempo, enquanto se faz ser humano, consistindo em um fato histórico". E o que seria popular? No senso comum, o popular, ganha uma conotação pejorativa de pouca qualidade. Segundo Rodrigues (1999: 16): "Popular passa a significar, então, o produto a que a massa pode ter acesso, de qualidade inferior, padronizada e uniformizada por quem jamais deles irá utilizar-se. Telefones populares são orelhões, transportes populares coletivos desconfortáveis, casas populares minúsculas e precárias moradias de conjuntos habitacionais". Neste sentido evoca-se o aspecto negativo do adjetivo popular; entretanto, chamamos a atenção para o significado do termo popular segundo os lexicógrafos, que quer dizer, "próprio do povo", ou seja, quando o povo se torna autor. Para uma melhor compreensão, é interessante adentrarmos um pouco no que seria povo na divisão social. Para os romanos, povo seria a instância jurídico-política legisladora, soberana e legitimadora dos governos, e a plebe seria os indivíduos desprovidos de cidadania, multidão anônima que observa o poder e reivindica direitos.
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Portanto, plebe era designativo de vulgo, canalha, ralé, massa, povinho, enquanto povo, distinguido positivamente da nobreza e da pobreza, é constituído pela parte mais útil e respeitável da nação. "Há, pois, o povo como generalidade política e o povo como particularidade social, os „pobres‟”. Chauí (1987: 17) Povo para Sales (1999: 116) “são os excluídos e todos aqueles que vivem e viverão do trabalho bem como dos seus parceiros, aliados e amigos na sociedade”. Para Chauí (1987: 22), o que contribuiria para superar a ambigüidade entre povo e popular (plebe, explorada e excluída), é o conceito gramsciano de hegemonia. "Numa palavra, é uma práxis e um processo, pois se altera todas as vezes que as condições históricas se transformam, alteração indispensável para que a dominação seja mantida". Uma breve retrospectiva da expressão cultura popular, poderá situar o adjetivo popular acrescentado ao substantivo educação. Cultura vem do verbo latino colere, ação de cuidar das plantas, dos animais, da terra, da agricultura, e ainda das crianças, de sua educação, e dos deuses. A partir do século XVIII, o termo cultura vincula-se ao termo civilização, oscilando entre uma posição negativa e positiva. Para Rousseau, esses são dois termos opostos, pois civilização seria artifício, cultivo da exterioridade, contrariamente, cultura seria bondade natural, interioridade espiritual. Em sentido amplo, cultura é o campo simbólico e material das atividades humanas. Em sentido restrito e articulada ä divisão social do trabalho, tende a identificar-se com a posse de conhecimentos, habilidades e gostos específicos com privilégios de classe, portanto consolidando a distinção entre cultos e incultos, de onde surge a diferença entre cultura letrada-erudita e cultura popular. Lembrando o que nos diz Ieno Neto (1998) como a cultura dominante, a popular também não é pura, no sentido em que numa relação dialética o saber popular interage, se confronta e se contamina mutuamente com o saber acadêmico/científico. Tentaremos refletir e descobrir pistas no sentido de nos aproximar do que seja Educação Popular. Podemos entender que educação popular seria a produção de saber pela própria classe popular, isto é, a utilização de métodos poucos comuns à educação oficial, particularmente no seio da classe trabalhadora, seja através do sindicato, ou de grupos comprometidos na luta social, ou abrindo espaços dentro de programas educacionais estatais para uma prática articulada com os movimentos sociais. Rodrigues (1999: 21) considera que "o que distinguiria, então, a educação popular das outras variedades de educação seria a sua proposta e práxis direcionadas para efetiva transformação do homem, da sociedade e do Estado". Para Costa (1982), a Educação Popular pode ser: "o poder de fazer valer e desenvolver suas próprias formas de pensar, aprender, expressar, e explicar a vida social". Nesse sentido, é a forma de educar na qual a experiência de vida tem um valor relevante para a afirmação de um saber já existente e criação de novos saberes numa perspectiva transformadora. Calado (1999: 137) diz que a educação popular se apresenta "como uma perspectiva, uma metodologia, uma ferramenta de apreensão/compreensão, interpretação, intervenção propositiva, de produção e reinvenção de novas relações sociais e humanas". A educação parte a princípio como um movimento de renovação e depois de revolução do saber, entendido como o modo de sentir/pensar/agir, cujo objetivo principal é contribuir na modificação da realidade social, exercitando criticamente nossos padrões de convivência produzidos pelas lutas sociais concretas. 155
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A respeito da prática educativa, entendemo-la como uma pedagogia que ajuda a modificar a realidade social, através da compreensão da sociedade capitalista e suas contradições inerentes à relação capital e trabalho, podendo, tornar transparente as formas de exploração do trabalho e criar condições para explicitação dos interesses da classe trabalhadora de forma coletiva. Nesse sentido, a educação popular não é desvinculada da questão política, confirmando assim o que Brandão (1994: 48) pondera: "É a possibilidade da educação ser não apenas comprometida e militante, ou ser não apenas participante e liberadora, mas ser, ela própria, uma mobilizada antecipação da libertação". Este é o exercício constante de uma relação de educação e mudança social, fortalecendo e buscando caminhos para uma prática educativa permanente e não fragmentada. Assim, seja no interior de instituições estatais (como a Universidade), seja nos movimentos sociais populares, o mais importante é como se dá a prática educativa. Levando em conta as relações entre o educador e o educando, entre o saber instituído (o já dado) e o saber instituinte (a crítica, o exercício da criatividade, o inusitado), fazendo com que esta metodologia em si expresse o conteúdo libertário de suas propostas políticas. Assim sendo as idéias de Freire (1987: 74) quando afirma que "a Educação Popular se delineia com um esforço no sentido da mobilização e da organização das classes populares com vistas à criação de um poder popular. Todavia, isto não significa que afirmemos que a educação é um instrumento para transformação radical da sociedade". A questão do poder11 é, conhecida já nas sociedades primitivas, uma discussão bastante complexa e não nos parece apenas uma questão superestrutural e restrita ao mundo capitalista, como se superando o capitalismo, supera-se assim essa questão que muitas vezes é vista apenas como vinculada à economia e à desigualdade social. As relações de poder se instituem, muitas vezes, fora do Estado. Como diz Foucault (1993: X), o exercício do poder se estabelece no nível macro e micro das práticas sociais, "o poder tem uma existência própria e formas específicas ao nível mais elementar". Ao considerarmos as relações de poder na ação pedagógica, não podemos prescindir dos desafios que isso nos apresenta, visto que o poder polarizado entre educador e educando, parece não construir relações democráticas. A questão não se limita apenas à tomada de poder ou mesmo à resistência a este, seja de forma passiva ou ativa; a questão se amplia para além da diluição do poder, nos propondo uma ação de reinvenção da sociedade.
Algumas considerações "Educação Popular é a produção de uma cultura ou de um modo de sentir/pensar/agir mais coerente. É a formação de bons lutadores" (Sales, 1999: 119).
A partir do resgate dos posicionamentos das educadoras e dos educadores com atuação em atividades de extensão, observamos pontos comuns e divergentes com relação às concepções de Educação Popular. Evidenciamos concepções que concebem a Educação Popular enfatizando sua perspectiva e outras concepções que enfatizam o modo de atuar e apontam contradições, desafios e convergências no saber e no fazer. Na atual conjuntura que contempla a onda de privatizações, recursos se escasseiam, sendo priorizadas as atividades que se convertem em lucro direto e imediato para a instituição universitária, que não é tão “pública”, que vem cobrando taxas pela prestação de alguns serviços e mensalidades para curso de extensão e de Pós-graduação, denotando, portanto, a 11
Para Foucault, o poder é uma prática social constituída historicamente: coisa enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte (1993).
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política governamental que vem se consolidando em consonância com os princípios neoliberais globalizados. Nas atividades extensionistas, como em outras práticas, muitas vezes circulam relações autoritárias e assistencialistas, marcadas pela ação da Igreja na formação das pessoas, em contraposição aos objetivos almejados de democracia, participação, solidariedade, ética, superação dos preconceitos de raça e de gênero, dentre outros. Havendo, portanto, práticas de extensão que se aproximam e outras que se distanciam dos princípios da Educação Popular. A extensão, numa perspectiva da Educação Popular, não é neutra, está perpassada por todas as fissuras e vícios das relações do modo de produção capitalista. Entretanto, está permeada pelo "vírus" de relações democráticas, participativas, vivas, da produção de uma cultura mais coerente e comprometida com a formação de bons lutadores. A Educação popular é vista como processo em construção, requerendo das educadoras e dos educadores paciência histórica no ato educativo, atento ao jeito de fazer que pode acontecer em todo canto e lugar, considerando a diversidade de fazeres no aprofundamento das inquietações, desejos, sonhos, desafios, querer e direitos. Ou seja, o exercício da organicidade que se configura na articulação entre a elaboração subjetiva e as condições de existência das atoras e dos atores do processo educativo. Pensar a extensão considerando os saberes populares e acadêmicos no modo de sentir/pensar/agir, coloca a possibilidade de diálogo e de vinculação da universidade (ensino/pesquisa/extensão) com a sociedade da qual faz parte. Neste sentido, é imprescindível consolidar a extensão como um canal de comunicação e aproximação com as organizações de base e de apoio da sociedade organizada (movimentos sociais populares e sindicais), bem como ampliar e fortalecer esses canais dentro da própria universidade, na medida em que nela existem grupos de pessoas que atuam nessa direção. Desse percurso ficaram lições, que nos mostraram limites na ação da extensão e conseqüentemente, na nossa atuação enquanto profissionais vinculados à instituição universidade. Também elucidamos potencialidades na atuação enquanto relação e aproximação com os movimentos sociais populares e enquanto sujeitos de uma ação educativa na perspectiva da Educação Popular. Foi desafiante ser pesquisadoras e pesquisadas ao mesmo tempo, no sentido em que estamos inseridas no universo da pesquisa e, em algum momento tivemos que nos distanciar desse universo para olhá-lo de forma menos "apaixonada" e podermos adentrar nas várias dimensões da ação. Ao nosso ver, a escolha metodológica da pesquisa foi condizente com a prática de Educação Popular que nos propomos. Ao mesmo tempo foi gratificante, no sentido que possibilitou alcançar o objetivo proposto, propiciou o debate, o aflorar da criatividade, a vivência do lúdico, considerando o sentir/pensar/agir das educadoras e dos educadores. Além de proporcionar encontros de troca e solidariedade entre o grupo, resultantes de um querer coletivo, em momentos de incertezas do grupo quanto à produção do trabalho final da Especialização. A entrevista coletiva facilitada pela oficina com argila funcionou para o grupo como lugar de manufatura e de "mentefatura". O diálogo e a colaboração mútua resultaram numa confluência de pensamento e ação. Em síntese, a oficina se converteu num momento de participação, de comunicação e produção de objetos, que representaram não só o imaginário das concepções construídas e expressadas, mas também as habilidades artísticas contidas nas modelagens plásticas, que estimulavam a reconstrução dos acontecimentos e o surgimento de um novo conhecimento proveniente dessa síntese dialética. Embora não tenhamos nos aprofundado na questão das relações sociais de gênero, não pudemos deixar de registrar que desde a composição da turma de Especialização, até a composição do grupo pesquisado, a participação majoritária das mulheres (mais de 80%) fica 157
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mais do que evidenciada. O que nos leva a fazer algumas indagações: Por que são as mulheres que mais procuram a capacitação? Essa capacitação vislumbra a possibilidade ou o desejo de assumir as direções dos movimentos sociais e dos sindicatos? Será que vêem a capacitação como forma de ascensão nos movimentos e nos sindicatos? Ou ainda como forma de se tornarem mais "sabidas" e mais fortes para o enfrentamento cotidiano, inclusive dos estereótipos de gênero? O esforço desse estudo configurou-se na tentativa da elucidação e sistematização de concepções sobre E.P., presentes nas falas e nas práticas das educadoras e educadores entrevistados. E por outro lado, pretendemos que a proposta de devolução do trabalho desencadeie novos estudos, como por exemplo um estudo comparativo acerca das concepções de Educação Popular existentes nas práticas de educadoras e educadores de ONG's e de atividades de Extensão.
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ANEXOS Planejamento do pré-teste Data: 23/11/99 Dia: 3ª feira Horário: 13:00 as 15: 45 horas Local: Sala de aula nº 407 – CCHLA/UFPB População: 25 alunos dos cursos de História, Biologia, Serviço Social e Matemática da UFPB Disciplina: Psicologia da Educação V Professora: Flávia Maia Guimarães Pesquisadoras: Helena Lins e Leidaci Candeia Material para construção da maquete 03 pranchas de isopor; 06 bolas de argila; 03 caixas de palito de dente; 03 caixas de palito de picolé; 03 colas; 01 pacote de canudos coloridos; 01 rolo de cordão; 03 folhas de papel de seda cores variadas; 01 caixa de lápis hidrocor. Pedra, areia, folhas secas e verdes, galhos... 01 gravador, 02 fitas cassetes
Entrevista coletiva Planejamento: Grupo I – Alunas e alunos da Especialização Provenientes de atividades de extensão vinculados a UFPB (Helena Lins ) Grupo II – Alunas e alunos da Especialização Provenientes de ONG‟s (Leidaci Candeia) Data: 02/12/99 Dia: 5ª feira Local: SEAMPO (Entrevista com o pessoal das ONG‟s) e UNITRABALHO (Entrevista com o pessoal de Extensão) Horário: 17: 30 as 19: 30 horas Público: Alunas e alunos da especialização em E.M.S. Pesquisadoras facilitadoras: Helena Lins e Leidaci Candeia Técnica: Construção de maquete em argila sobre as concepções de Educação Popular
Material para construção da maquete: 02 pranchas de isopor; 05 bolas de argila; 03 caixas de palito de dente; 03 caixas de palito de picolé; 03 colas; 01 pacote de canudos coloridos; 01 rolo de cordão; 03 folhas de papel de seda cores variadas; 01 caixa de lápis hidrocor. Pedra, areia, folhas secas e verdes, galhos... 01 gravador, 02 fitas cassetes, 01 fita de vídeo VHS, 01 filmadora, 01 máquina fotográfica 161
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Grupo I – Alunos da Especialização Educação em Movimentos Sociais, representantes de atividades de Extensão vinculados à UFPB 01 – Ivanilda Matias Gentle – COPAC/PRAC 02 – Antonio Mendes da Silva – SEAMPO/CCHLA 03 – Joselita Ferreira de Lima – SEAMPO/CCHLA 04 – Vanalba Barbosa da Silva – SEAMPO/CCHLA 05 – Maria Helena Serrano de França Lins – SEAMPO/CCHLA (Pesquisadora Participante)
Roteiro das questões norteadoras 01 – Representar sua compreensão de Educação Popular, ou seja o que é Educação Popular? 02 – O que você conhece, viu ou viveu em Educação Popular? 03 – O que é Educação? 04 – O que é Popular? 05 – Fazemos Educação Popular? 06 – O que na minha prática, reconheço/representa, ou ainda o que caracteriza na ação uma perspectiva da E.P.?
Desenvolvimento da oficina Primeira parte: Desencadear o processo de discussão a partir da apresentação do roteiro com as questões norteadoras; Construção da maquete em argila, tomando como base as questões norteadoras; Segunda parte: Verbalização, explicitação da representação da concepção de E.P.; Reflexão coletiva com gravação em fitas cassetes; Filmagens e fotografias do processo de construção da maquete e da reflexão coletiva.
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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: possibilidades de diálogo entre o saber acadêmico e o saber popular
Joselita Ferreira de Lima1 Subjetividade na formação dos educadores populares Vivemos no contexto de um novo cenário mundial e nacional, onde as tradicionais formas de efetivação da educação popular não causam o mesmo impacto das décadas anteriores. As categorias de análises adotadas pelos intelectuais de esquerda não dão conta de uma realidade dinâmica e dialética como a atual, como assinala Comblim: “estamos diante de uma situação nova na qual os modelos anteriores já não se aplicam” (Comblim, 1996: 17). Precisamos atualizar nossas matrizes discursivas para que possam nos auxiliar na construção de um novo vocabulário e uma nova gramática que materialize, traduza o momento que estamos vivendo, enquanto educadores populares, como seres humanos que desejam viver numa sociedade onde o lucro não seja sua força motriz, mas o bem estar da maioria. Os movimentos de Cultura e Educação Popular emergiram no governo Kubistschek (1956-1960), objetivando a conscientização da realidade social, discutindo suas contradições para transformá-la (Jezine, 1997: 125). Os círculos de cultura, criados pelo referido movimento no final dos anos 60, foi o espaço onde nasceu o método de Alfabetização de Paulo Freire. O respeito ao saber popular e a construção de um saber coletivo, onde educando e educador participassem conjuntamente na compreensão da realidade, pedagogia realizada nestes círculos de cultura, serviram como referência e inspiração na elaboração do método Paulo Freire. A leitura crítica da realidade realizada nos círculos de cultura independia da alfabetização dos educandos, fato que levou Paulo Freire a refletir sobre a possibilidade de uma experiência de alfabetização onde pudesse “engajar criticamente os alfabetizandos na montagem de seus sinais gráficos enquanto sujeitos dessa montagem” (Gadotti, 1989: 34). Nesta perspectiva, Paulo Freire torna-se o primeiro teórico a sistematizar uma teoria da educação popular, a ser referência no mundo para os educadores que comungam dos objetivos da ação política-pedagógica explícita em sua obra: “experimentar uma prática educativa em que, a partir da realidade, e dos interesses daqueles com quem se trabalha, se busca um processo de conhecimento e instrumentação que aumente seu poder de intervir na realidade” (Gadotti, 1989: 60). Dentro desta lógica, Paulo Freire resgata no processo de alfabetização “a educação que invade a vida”; partindo do particular para o geral., desvelando a realidade, suas determinações, a partir do significado atribuído a determinada palavra, como fruto da vivência cotidiana, objetivando o engajamento político do educando numa ação transformadora da realidade circundante. No período da ditadura militar, os militantes de esquerda, utilizavam a Educação Popular como instrumento de conscientização política das classes subalternas; acreditando que o conhecimento das causas da opressão teria como conseqüência a 1
Mestranda em Educação na Universidade Federal da Paraíba.
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transformação social, mais precisamente, a derrocada do capitalismo e a instauração do socialismo. Essa idéia perdurou até a década de 80. No final da década de 80 ocorreu a queda do socialismo nos países do leste europeu, o fortalecimento do capitalismo, fruto da tecnologia de ponta, da globalização econômica, da ideologia neoliberal, da idéia disseminada de que não há alternativa econômica fora do capitalismo. É a era da decadência dos Estados nacionais, da desintegração das classes trabalhadoras, com a diminuição dos postos de trabalho, resultante, entre outras coisas, da especulação financeira; da vitória da direita nos processos eleitorais da América Latina. Todos esses fatores obrigaram os educadores populares a reavaliarem suas práticas educativas, a reverem suas posturas metodológicas. Até então nossas práticas de educação popular tinham como objetivo a construção do socialismo, e este, seria implantado pela classe trabalhadora através da tomada do poder estatal das mãos da burguesia pelo Partido dos Trabalhadores via processo eleitoral, conseqüência da conscientização política das camadas populares. Fazendo uma leitura crítica dos fatos, percebemos então, que a prática de nossa “conscientização política‟‟ nos processos de educação popular não mobilizou as classes populares para uma transformação social, estas não assumiram o projeto político da esquerda, a direita continua ganhando as eleições. Talvez porque nossa prática de educação popular tenha sido totalitarista e manipuladora; ela de fato, como ressalta Comblim com referência à postura dos intelectuais de esquerda na transformação da consciência das classes operárias, buscava na verdade “impor às classes populares, os sentimentos e os desejos dos militantes com relação à transformação social” (Comblim, 1996: 147). Diferente dos princípios pedagógicos sistematizados por Freire, para quem umas das virtudes fundamentais do educador é “escutar as urgências e opções do educando” (Gadotti, 1989: 67). Tivemos que assumir conscientemente que o socialismo real, nos países onde foi implantado, não foi fruto do desejo da maioria, mas da imposição de um grupo de “iluminados” que acreditavam saber o que era melhor para a população sob seu domínio. Todos esses fatos tiveram como repercussão uma maior cautela por boa parte dos educadores populares nos trabalhos de estimulação à ação reivindicativa que desenvolvem junto às comunidades, respeitando seus valores, cultura, necessidades, interesses. Tais percepções foram sendo explicitadas nos processos de formação dos educadores populares até tornarem-se um certo consenso. Num curso de formação de educadores populares do Nordeste, promovido pela EQUIP(Escola Quilombo dos Palmares), que objetiva a formação de dirigentes e educadores, realizado em João Pessoa, no ano de 1991, pude verificar a importância da subjetividade nos processos de formação dos educadores populares O Curso contou com a participação de vinte e dois educadores populares dos movimentos de saúde, moradia, mulheres, professores, sem teto, deficientes, indígena, e de entidades de assessoria aos movimentos populares. Durante a primeira etapa do curso, os participantes de vários estados do Nordeste dividiram-se em três equipes de trabalho para a realização de um exercício metodológico do trabalho de formação, que seria a elaboração de um projeto de intervenção, no espaço de dois anos, no processo de ocupação de terra nos terrenos públicos que originaram a favela Gauchinha I, tendo como objetivo dar continuidade ao processo de luta dos moradores, marcado pela desmobilização no ano de 1990. Na realização de tal empreendimento, tínhamos como subsídio uma pesquisa sobre o processo de ocupação da favela em 1978, analisando a conjuntura nacional, regional, local e a presença dos agentes externos que 164
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influenciaram no processo. A segunda etapa do trabalho seria a apresentação dos projetos, onde cada grupo analisaria o trabalho do outro, levantando dúvidas, concordâncias e discordâncias, considerando os objetivos a curto e longo prazo, a metodologia, a forma de inserção na favela, para que tais análises pudessem auxiliar na construção de recomendações metodológicas nos trabalhos de educação popular junto aos movimentos populares. No processo de avaliação dos projetos, foram analisadas nossas práticas educativas, nossas posturas pedagógicas. Percebemos que os projetos refletiam nossa crença de que a simples transformação do sistema econômico e político garantiria por si só, a realização de todas as nossas expectativas com relação ao que seria uma sociedade justa e igualitária, onde o bem-estar humano fosse a referência. Tivemos que desconstruir essa imagem. Percebemos nossos erros e equívocos metodológicos, constatamos a presença de novos aspectos que deveriam ser considerados na realização da educação popular, como a subjetividade, a fantasia e os sonhos das classes populares. Avaliamos tudo a nível cognitivo, apenas compreendendo que nossas metodologias precisariam ser reformuladas. Sofremos com a desconstrução de nossas posturas pedagógicas. Foi um processo doloroso, sofremos de forma isolada e individual. Na busca de uma melhor compreensão sobre como redimensionar as práticas de educação popular, evitamos tocar na emoção que movem tais práticas, como se o nosso desejo, nossa paixão não fizessem parte do processo de conhecimento. Isso me fez lembrar um trecho do discurso de uma oradora numa turma universitária, referindo-se aos estudantes, ela fala do aprendizado do “jogo da intelectualização como uma maneira confortável de evitar a vida...” (Rogers, 1978: 250). Talvez ainda estivéssemos sob a idéia de que, as questões da subjetividade fossem valores burgueses, que deveriam ser esquecidos em função de uma luta maior, a tomada do poder político, idéia tão disseminada entre os militantes de esquerda.. Uma oficina do corpo, realizada para aliviar o cansaço do curso, mostrou outra faceta: fez emergir as emoções que mobilizavam a atuação nas práticas educativas de educação popular. Na emergência dessas emoções, partilhamos nossa frustração e nossa dor frente a uma sociedade que não corresponde às nossas expectativas, ao nosso desejo de vida digna. Percebemos que a vivência coletiva de nossas dores e esperanças, compartilhadas na construção do conhecimento, fortalece-nos e serve como energia revigoradora. Tornamo-nos solidários na dor e no amor, cúmplices da mesma busca. “Até que você me revele as esperanças que movem suas mãos, não posso amá-lo. Talvez você odeie aquilo que amo! Como podemos caminhar juntos se os nossos corações estão ligados a valores diferentes? (Alves, 1987: 167). As falas dos cursistas na avaliação sobre o significado do curso em termos de aprendizagens mostrou que “o afetivo é determinante na construção do conhecimento” (Gadotti, 1989): sonhar é possível, o melhor sonho é junto; o individual não se sobrepõe ao coletivo nem vice-versa; ter clareza do que é e porque queremos; trabalhar mais o relacionamento e o aspecto pessoal dos militantes; trabalhar as sensações; solidariedade entre os militantes, trabalhar a disputa pelo poder; buscar elementos na subjetividade para o projeto do futuro; socializar as angústias, tristezas e alegrias; 165
166 investir no corpo como espaço de formação; As práticas de formação para educadores populares, embora já incorpore às recomendações metodológicas um certo consenso da importância de considerar a influência das paixões, dos sentimentos, dos afetos sobre o agir e o pensar das pessoas, considerando a educação com “a produção ou reprodução de modos de sentir/pensar/agir.”, ainda não assumiram como consenso o fato de que os educadores populares também são pessoas, cujo agir e pensar são influenciados por estes mesmos fatores, não somos seres alienígenas desprovidos de subjetividade.
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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E SABER POPULAR Roberto Mauro Gurgel Rocha78 “ Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética de meu mover-me no mundo. Se sou puro produto de determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço ao mover-me no mundo e se careço de responsabilidade, não posso falar em ética” (Freire, 1998: 21).
Uma reflexão inicial O livro escrito por Oto Maduro, intitulado “Mapas para a festa: reflexões latino-americanas sobre a crise e conhecimento”, representa, certamente, um dos mais interessantes textos para quem deseja analisar o conhecimento a partir de sua dimensão popular. É representativo de uma contribuição da América Latina, onde historicamente, social e culturalmente, econômica e politicamente estamos situados, sendo por esta razão uma construção fecunda no sentido da compreensão de nossa gente. Maduro, nos fala da necessidade da comemoração, da festa, mostrando que “na América Latina, para um número cada vez maior de pessoas: a vida, e, a festa se tornam cada vez mais difíceis...mas, por isso mesmo mais urgentes...” “Os tempos difíceis duros e cheios de sofrimento quando rareiam as ocasiões para festejar – talvez sejam aqueles em que nós, seres humanos, sentimos mais clara, aguda e fortemente a necessidade de conhecer a realidade que nos rodeia procurar compreender o que está acontecendo, para ver se é possível fazer alguma coisa que nos traga de volta a tranqüilidade e nos dê razões para uma festa!” (Maduro, 1994: 12). Para o autor, “a vida humana – é entre outras coisas – uma busca constante de motivos para festa”, uma festa onde os obstáculos dolorosos estão entre os principais estímulos do esforço humano para pensar, conhecer, compreender e transformar a realidade circundante. Segundo ele, poderíamos imaginar o conhecimento humano como uma tentativa de elaborar/esboçar “mapas para a festa”. E o que seriam nesta dimensão cartográfica, tão bem trabalhada também por Boaventura Cunha, os “mapas para a festa”. Maduro especifica que estes representam “uma espécie de roteiros para tentar achar caminhos que nos levem de volta à vida feliz, a uma vida que mereça e facilite ser freqüentemente festejada com alegria, prazer e gosto” (ibid.: 13). O conhecimento, segundo o autor, seria precisamente o esforço para “classificar, entender e explicar como é por que a realidade é, como é, e funciona como funciona”. Para que possamos chegar à concepção de Saber, Maduro, nos mostra que 78
Professor aposentado da Universidade Federal do Maranhão. Secretário Executivo da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – Seção Maranhão.
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“em latim saber se diz scire, advindo daí “a palavra scientia” que ainda no século XIX significava as coisas sabidas” os saberes (ibid.: 53). Aprofundando sua reflexão referente a conhecimento, Maduro explicita que “nossa experiência tem um decisivo impacto sobre nosso conhecimento da realidade”. “ Nossa vida, nossa experiência – pessoal ou coletiva – influi vigorosamente sobre nosso conhecimento, sobre aquilo que conhecemos e a maneira como conhecemos. Nossa experiência tem também repercussões – e talvez isto seja mais importante ainda – naquilo que ignoramos e na maneira como nos arranjamos para não conhecer algumas coisas e para negar ou justificar este desconhecimento”...”a vida, a experiência tanto individual como coletiva, muda o nosso modo de ver a realidade, nossa idéia do que é ou não é conhecimento, do que é ou não é verdade” (ibid.: 27-28).
Nossa experiência reflete largamente o que vivenciamos no passado e o que estamos vivenciando no presente. Certamente, precisamos ter uma forte dose de “utopia”, que amplie os nossos horizontes para pensar no futuro e nos dê forças para enfrentar as dificuldades do momento atual com sonhos de uma sociedade mais justa.
Alguns questionamentos a partir do pensar de Oto Maduro Quando recebemos o convite do Prof. José Neto para redigir um texto sobre “Extensão universitária e saber popular”, muito nos animamos, sobretudo pela oportunidade de refletir sobre uma temática que acreditamos seja de essencial importância para as universidades públicas brasileiras ou mesmo para as instituições de educação superior de um modo geral. Cremos, que, a reflexão somente poder-se-á dar em uma dimensão mais ampliada, levando em conta a relação “universidade e saber popular”, considerando a gravidade dos problemas enfrentados pela sociedade brasileira hoje. Nos perguntamos, até onde existe uma relação concreta e respeitosa entre universidade e povo? Até onde a instituição do pensar científico, vem interagindo efetivamente com o saber popular? Que valores vem sendo trabalhados na extensão universitária hoje? Até onde a extensão universitária não contínua a ser um ato de levar o saber dos que se julgam superiores àqueles que se julga não saberem, conforme nos alertava Paulo Freire? Como a ação extensionista vem sendo desenvolvida presentemente, que resultados vem apresentando , que mudanças concretas vem provocando a nível da universidade e da sociedade?... E muitas e muitas outras questões foram permeando o meu imaginário. Para um amparo teórico e refletido sobre saber popular e vida, nada melhor do que levar em conta o pensar de Oto Maduro. Daí o sentido da reflexão teórica inicial, que nos dá uma base para pensar, que não se limita às estreitas possibilidades de muitos que pensam políticas públicas restritas, excludentes, limitadas a um Projeto Neo-liberal, cada vez mais discriminador elitista. Maduro nos fala dos segmentos populares na condição de gente, de sujeitos sociais capazes de participar da construção de um mundo novo, mais humano, onde conforme Leonardo Boff, predomina o saber cuidar da nossa casa maior-a terra; o saber cuidar das crianças, dos velhos, dos mais pobres, dos desempregados, dos miseráveis. Um mundo novo onde todos tenham o direito de ser felizes. Maduro enfatiza, ainda, que nosso conhecimento sobre a realidade é influenciado por nossa vivência do passado e pela nossa vivência atual. 168
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No sentido de resgate de nossas concepções, procuraremos proceder uma rápida regressão histórica, onde colocamos nossa caminhada extensionista, o que nos permite uma compreensão de nossa visão sobre a extensão e uma justificativa de nossas inquietudes no presente. Cremos que assim contribuiremos para o resgate de nossa práxis extensionista, mostrando fatos fundamentais para compreensão do perfil do extensionismo brasileiro no presente.
Uma caminhada propiciada pelo extensionismo universitário Nosso compromisso com a extensão universitária é datado de nossa própria chegada a universidade na condição de estudante, carregado de sonhos, de expectativas em relação a uma educação superior que, segundo esperávamos, teria algo diferente dos demais níveis de ensino pelos quais tínhamos passado... Nossas expectativas foram um tanto frustadas e com a decepção chegamos a pensar em abandonar nosso curso superior. Contudo, na universidade, nos meados dos anos 60, conhecemos algumas pessoas – professores, universitários, elementos representativos da sociedade cívil – tentando aprender e apreender do mundo, aquilo que não tínhamos encontrado nos currículos e programas da instituição da educação superior. Em nossa busca, na direção de uma educação diferente, que nos levasse à compreensão do mundo, nos identificamos com os militantes da Juventude Universitária Católica – JUC, um dos grupos mais aguerridos de então, que procedeu nossa iniciação na universidade da vida, no conhecimento do social. A JUC, levou-nos ao movimento estudantil e nos permitiu conhecer lideranças ainda hoje lembradas como é caso de Herbert de Sousa – o Betinho e Frei Tito, e outras ainda vivos como é o caso de Luis Eduardo Wanderley, Aldo Arantes, etc. Como militante de JUC, tenho de lembrar dentre outros dos companheiros militantes Raimundo Holanda Farias, José Maurício Pereira, Pedro Jorge Ferreira Lima, com os quais participamos da experiência da Equipe Piloto Jucista do Curso de Agronomia da Universidade Federal do Ceará. Fazíamos um trabalho de assistência a plantios feitos por agricultores do cinturão verde da cidade de Fortaleza e orientávamos crianças órfãs em plantios de hortaliças na área de um orfanato. Esta experiência mesmo sem o rótulo de extensão, já era indubitavelmente uma formulação extensionista. Através dela aprendemos que o erro também faz parte do processo de aprendizagem, conforme salientam as pedagogias atuais, que contestam o paradigma das certezas. No orfanato, procurando vivenciar uma prática profissional, orientamos uma plantação de pimentões com metodologias participativas, sendo surpreendidos na época da frutificação e colheita com bonitas beringelas, na medida em que, mesmo como alunos universitários, não soubemos distinguir as sementes que nos foram oferecidas...Ainda que envergonhados, tivemos a coragem de voltar, e dialogando com as crianças e o orientador da horta, mostrar que temos vulnerabilidades e estamos em constante processo de aprendizagem. Depois de formados tivemos chance de fazer um Curso sobre Desenvolvimento Rural, em Israel, que nos permitiu ao retornar um convite da Universidade Federal do Maranhão, para, a partir de 1970, coordenar o Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária – CRUTAC-Ma. Nesta experiência institucional tivemos um aprendizado bastante rico, exercido de forma competente, mesmo que com algumas limitações. 169
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O CRUTAC-Ma, desenvolvia um treinamento interdisciplinar, através de um estágio com duração de 2 a 4 meses, vivenciado em média por 50 universitários. Os estudantes eram apoiados por docentes que passaram a residir no interior, no município de Pedreiras, ou por profissionais lá residentes que foram contratados como docentes para o cumprimento da supervisão do estágio. Vale salientar que havia um caráter de obrigatoriedade para alguns cursos e que muitos universitários reagiram à participação. Porém, ao término do estágio, em lágrimas, muitos deles desejavam prorrogar o período... O assessoramento pedagógico através do padre Roberto Etave, um padre operário francês, um rogeriano nato, fazia de nossos jovens, pessoas mais sensíveis, que, na convivência com a comunidade aprendiam a ser mais gente. O nosso primeiro grande aprendizado no CRUTAC-Ma, deu-se, quando chegamos a Pedreiras durante a realização do Treinamento básico, levando um Plano de Ação julgado perfeito em sua preparação, nos departamentos acadêmicos e cursos. Tivemos a rejeição dos grupos comunitários, que declararam não ver sentido em nossas proposições. Em lugar dos nossos projetos departamentalizados, a comunidade, cobrou e conosco construiu projetos interdisciplinares, onde se destacavam: o Projeto Saúde Comunitária, o Projeto de Apoio aos Sindicatos, o Projeto Educação Popular, o Projeto de Apoio as Comunidades Rurais. Aprendemos a agir interdisciplinarmente com a população. Vale destacar que nos momentos em que os alunos saiam da área a comunidade garantiria a continuidade das ações, fazendo a ponte entre os universitários que partiam e os que chegavam. Tivemos um treinamento em Serviço, bem mais rico certamente. Vivíamos ainda em plena ditadura e com o povo aprendemos a montar nossas estratégias de sobrevivência. Paulo Freire era um nome proscrito e proibido, para os que fizeram acontecer o Golpe de 1964. Como estratégia aplicávamos o método Paulo Freire, sem enunciar o nome deste grande educador. Fazíamos um trabalho usando técnicas de áudio-visual, através de um Centro habilmente conduzido pela Professora Maria Teresa Poggi, vinda da Itália com larga experiência. Tínhamos na Equipe de Supervisão, pessoas sensíveis como a Prof.ª Rosa Mochel – importante liderança comunista, o professor Jackson Lago – hoje Prefeito de São Luis. Dentre os estudantes, muitos são presentemente, figuras de liderança no cenário estadual. O CRUTAC-Ma estendeu-se depois à região de Codó, onde ainda hoje, apesar de já extinto a muito tempo, é a figura emblemática através da qual a comunidade lembra a universidade. Graças ao CRUTAC-Ma, travamos contatos com o conceito de extensão universitária, em encontros promovidos pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras – CRUB, por meio do Projeto CR 11-PT-5. Foi igualmente por intermédio CRUTAC-Ma, que tive chance de conhecer o Prof. Onofre Lopes, então Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e criador da experiência original do CRUTAC, que posteriormente se estendeu a 22 estados brasileiros. Onofre Lopes, foi certamente uma das mais importantes figuras na prática do extensionismo universitário brasileiro, sendo depois coordenador da Comissão Nacional Incentivadora dos CRUTAC‟s - CINCRUTAC no Ministério da Educação – MEC. E foi o Dr. Onofre, que em sucessivas visitas ao Maranhão, conhecendo a competência da equipe maranhense, nos levou a participar de sua Assessoria no MEC propiciando nossa presença na 1ª Comissão de Integração MEC-MINTER, visando a interação de ações entre os CRUTAC‟s e os Campi Avançados – Projeto Rondon. Posteriormente, fomos guindados à condição de Coordenador Nacional de Extensão Universitária do 170
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Departamento de Assuntos Universitários, do Ministério de Educação, onde juntamente com Ana Rita Suassuna, Dalva Pereira e Inês Maria Carvalho Silva tivemos a oportunidade de trabalhar em universidades de todo o país. Lançamos o 1º Plano Esquemático de Extensão Universitária e tivemos um forte movimento de criação de Coordenações ou Pro-Reitorias de Extensão. Promovemos seminários e cursos, bem como criamos equipes de supervisão, acompanhamento e avaliação, o que deu à extensão universitária uma maior organicidade. Fizemos alianças com outras instituições governamentais e organizações do movimento social o que ampliou mais ainda o nosso espaço de trabalho. Dentre os frutos teóricos surgidos na época, valem salientar as discussões sobre: a questão do relacionamento extensão/estágios, funcionando estes como campo para o exercício de práticas curriculares; o exercício da extensão como momento de aplicação do conhecimento no processo ensino/aprendizagem; a indissociabilidade ensino/pesquisa/extensão, na relação entre teoria e prática; o salientar da extensão universitária processual, funcionando como algo próprio e permanente na instituição de educação superior; a dimensão da extensão universitária como ato pedagógico, que tem de existir mesmo na prestação de serviços... Foi também neste momento que retomamos o contato com Paulo Freire, especialmente, através da discussão e tentativas de aplicação de suas reflexões, em nossa ação na CODAE. Freire nos alertava para os perigos que o conceito de extensão representava, na medida em que estender significa não somente o levar do conhecimento dos que pensam saber, aos que pensam que nada sabem. Os intelectuais, os universitários, muitas vezes, sem o perceber, vêem a população com que trabalham, na condição de objeto e lamentavelmente perdem a oportunidade de enriquecer-se com o saber do outro, um saber diferente, mas, indiscutivelmente rico e portador da experiência do cotidiano. Em sua concepção de educação libertadora, em lugar de uma educação domesticadora, Paulo Freire mostrava a necessidade de uma relação dialógica entre sujeitos, sujeitos que pensam e trocam saberes, o que indicava um caminho mais coerente para a extensão. Extensão, segundo ele tinha uma relação significativa com transmissão, entrega, doação, messianismo, invasão cultural, manipulação, superioridade - de quem entrega o conteúdo, inferioridade dos que recebem e funcionam como recipiente do conteúdo. Como educador, destacava que, aqueles que participam da ação com comunidades na condição de agentes sociais tem de ter a tarefa de comunicação e não de extensão. Comunicação, como ação e reflexão entre semelhantes, portadores, contudo, de formas de saber diferenciado... A contribuição de Freire, serviu-nos para repensar as nossas formas de atuação e a partir de então, na medida em que não podíamos nos expressar através de suas propostas, incorporamos ao conceito de extensão universitária, a sua concepção de comunicação, passando a falar de uma extensão dialógica, de um processo de ida e volta entre universidade e sociedade, entre outros aspectos. Muito nos enriqueceu a contribuição da técnica chilena Maria Molina, contratada nos inícios dos anos 70 pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, bem como nos orientaram os escritos do Professor Newton Gonçalves, que, ocupando a Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Ceará, deram um encaminhamento às concepções de Freire. Sem falar em seu nome uma só vez, ambos aprofundaram alguns pontos fundamentais de sua obra... Vale lembrar sempre o alerta de Paulo Freire quando nos indicava que: “ educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a sede do saber, até a sede da ignorância para salvar, com este saber os que habitam nesta”. 171
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E mostrando o risco de fazer do extensionismo uma pura domesticação Freire enfatizava: “ Ao contrário, educar e educar-se na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isso sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais” (Freire, 1975: 25).
E completava : “... o conhecimento não se estende do que se julga sabedor até aqueles que se julga não saberem; o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformações e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações” (ibid.: 36).
Veja-se quanta grandiosidade havia nesta forma de pensar. Podemos assegurar que o espírito de Paulo Freire, foi o divisor de águas no sentido de uma construção mais crítica e substânciosa em relação às concepções dos que vivenciaram ou vivenciam o extensionismo universitário. Lamentavelmente, muitos somente se apropriam do seu conhecimento através de seus pressupostos teóricos, que são usados em amplos discursos que não casam com suas práticas cotidianas. Outros nem sequer sabem o que foi a contribuição de Freire. E perdemos a oportunidade de um extensionismo mais autêntico, mais vivo e funcionando realmente como um processo dialógico de troca ou conforto de saberes. Os anos 70 foram anos de organização institucional da extensão e de muitas discussões através de seminários, cursos, congressos, que criaram uma unidade de ação entre as instituições de educação superior. Mesmo que, na maioria das vezes tendo-se propostas oriundas do Ministério de Educação e vindas de cima para baixo, criou-se um clima de deu à extensão universitária uma visibilidade no plano das instituições da educação superior. Os anos 80 foram tempos de reconstrução democrática da sociedade brasileira, tendo-se a oportunidade de observar uma maior participação dos atores sociais na construção de nossas políticas. No caso da extensão universitária verificou-se uma profunda diferenciação dos programas e projetos, que passaram a ter uma elaboração mais de base e de baixo para cima. O Ministério da Educação assumiu gradativamente uma posição de apoio, o que continuou a ser a tônica dos anos 90. A partir de então a extensão incorporou o conceito de universidade cidadã, dando-se um passo significativo com a constituição do Fórum de Pro-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, surgido durante o encontro realizado em Brasília, nos dias 04 e 05 de novembro de 1987. Dentre as ações do Fórum vale lembrar a elaboração do Programa de Fomento à Extensão Universitária, uma programação que procurou garantir recursos financeiros às universidades melhor estruturadas, mediante análise de projetos por um Comitê Assessor do qual participamos com outros companheiros, dentre os quais o Professor Renato Hilário da Universidade de Brasília, que muito contribuiu para a prática e teorização do extensionismo universitário. Os Pro-Reitores passavam a estruturar-se de uma forma regionalizada, apesar de articulação nacional. Além dos Seminários Nacionais, foram sistematizados seminários regionais, criou-se os “Cadernos de Extensão Universitária”, ampliaram-se as parcerias da extensão. Para uma análise da trajetória do Fórum é interessante ver a coletânea organizada por Maria das Dores Pimentel Nogueira. 172
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Com a criação do Fórum passou-se a adotar um conceito de extensão universitária ainda hoje vigente e que garante uma unidade de ação às experiências nacionais. Segundo este conceito: “A extensão universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e a sociedade”. E na maior explicitação do conceito se estabelece que : “ A extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica que encontrará na sociedade, a oportunidade da elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão aprendizado que, submetido à reflexão teórica será acrescido àquele conhecimento. Este fluxo, que estabelece troca de saberes sistematizado-acadêmico e popular, terá como conseqüência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional; e a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizadora deste processo dialético de teoria e prática, a extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integrada do social ”.
Conforme se pode verificar o discurso dos extensionistas, passa a abrir espaço mais definido em relação ao saber popular, o que motivou nos anos 90 a uma incursão das universidades no sentido de apoio a projetos de iniciativa do movimento social. Além disso, criaram-se núcleos de trabalho, grupos de estudo e pesquisa, que, propiciando a articulação com a extensão ou melhor dizendo por via desta, ampliaram as possibilidades de uma ação parceira entre universidade e sociedade. Vale salientar dentre os grupos de estudo, o trabalho feito sob a coordenação do Professor Michel Thiollent, reunindo as Universidades Federais de São Carlos e do Rio de Janeiro, a UNIRIO e o trabalho do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular da Universitária Federal da Paraíba. Como se pode verificar a trajetória da extensão universitária no Brasil, tem muito a ser refletido e revisto. Tivemos a chance de participar desta trajetória e poder dizer que estivemos ali na condição de ator social, nas suas diferentes fases. Isto nos dá a condição de fazer algumas considerações sobre a relação extensão universitária/saber popular, sem uma preocupação finalística e mais como provocação para um debate que precisa ser continuamente alimentado.
Extensão universitária e saber popular As apreciações feitas no presente artigo nos levaram a alguns questionamentos sobre o relacionamento entre a Universidade e Sociedade, levando em conta que os saberes populares e os saberes sistematizados, embora diferentes entre si, se formam e reformam e “quem é formado forma-se e forma ao ser formado (Freire, 1998: 25) “O aprender precedeu o ensinar ou, em outras palavras ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender”(ibid.: 26). A troca de saberes é um aprender dialógico onde os dois lados que integram reaprender suas formas de ler o mundo e de agir sobre este. Neste reaprender conjunto é bom que se leve em conta alguns indicativos feitos por Edgar Morin em relação aos sete saberes essenciais do futuro, os quais devem levar a educação do futuro a “tratar em toda sociedade e em toda cultura, sem exclusividade nem rejeição segundo modelos e regras próprias a cada sociedade e a cada 173
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cultural”(Morin, 2000: 13). Para Morin, a educação necessária ao futuro deve fornecer um conhecimento pertinente e global que nos ensina a compreender nossa condição humana e nossa identidade terrena. A educação deve igualmente ter por base uma ética do gênero humano que privilegia as identidades, sem deixar de lado o coletivo. Deve fomentar o ensino da compreensão, à prática da convivência em lugar da concorrência, o preparo para o enfrentar das incertezas na medida em que “ é preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arquipélagos de certeza ”(ibid.: 16). O esperado não se cumpre, e ao inesperado um deus abre caminho”(ibidem). E, finalmente, Morin nos adverte para o fato de que: “É necessário introduzir e desenvolver na educação o estudo das características cerebrais, mentais, culturais dos conhecimentos humanos, de seus processos e modalidades, das disposições tanto psíquicas quanto culturais que o conduzem ao erro ou à ilusão” (ibid.: 14).
Os alertas de Morin, nos mostram que muito temos a reconstruir e a reencantar em nossa educação. Nossas escolas onde as universidades estão incluídas, muito tem a alcançar na direção dos “Sete saberes necessários à educação do futuro”...Nossas instituições de ensino superior ainda conta com um significativo quadro de profissionais portadores de um tipo de saber parcial especialista com linguagem difícil de ser assimilado pelo povo; são positivistas muitas vezes (mesmo que rotulando-se de dialéticos). As nossas universidades ainda fomentam a consciência em seus vestibulares, em avaliações onde ainda se usam as provas, em lugar de trabalhos que sirvam realmente como instrumentos de avaliações de aprendizagem. Os nossos critérios de avaliação muito diferem dos critérios do saber popular, mais misoneista e inorgânico que o saber acadêmico, mas o primeiro tem mais conteúdo de gente. Lembramo-nos, de um agricultor com quem vivenciamos uma experiência no interior do Maranhão, que julgando os profissionais que por lá passavam, destacava que os conhecia em função de seu brilho nos olhos. Os de muito brilho eram reconhecidos como aliados; os de médiopassageiros; os de pouco brilho vinham para dar um recado e ir logo embora e a população os aceitava, porque, “quem está no chão do chão não passa” e ela precisava de aliados para melhor compreender sua realidade e seus espaços de luta. A parceria universidade/movimentos sociais tem se pautada em fatos ou realidades concretas, sem o superestimar ou subestimar o valor dos níveis de saber que se encontram, se confrontam ou dialogam. E muito existe a ser trilhado na direção do aprender. A universidade, é, certamente o espaço privilegiado do saber pensar e Pedro Demo, nos orienta que : “ Saber pensar não é algo avesso a títulos acadêmicos, mas não se correlaciona diretamente com eles. É outra coisa. É saber reconhecer rapidamente as relevâncias do cenário e tirar conclusões úteis, ver longe para além das aparências perceber a greta das coisas, inferir texto inteiro de simples palavra, porque, a bem entendedora, uma palavra basta” (Demo, 2000: 17).
O autor nos alerta contudo, que, muitas vezes nas instituições educacionais em vez de aprender, “por vezes desaprendemos, mormente quando somos submetidos a processos institucionais reprodutivos”(ibid.: 17). Saber pensar é o centro da cidadania, a gestação de autonomia e “autonomia é conquista árdua nunca terminada” (ibid.: 19). Especificamente em relação à extensão universitária, não podemos deixar de registrar avanços, onde podemos salientar entre outros aspectos a ação do Fórum de Pro-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras; a criação do Fórum de 174
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Pro-Reitores das Universidades Comunitárias Brasileiras(as quais mesmo classificadas como privadas pela LDB, em muitos casos desenvolvem uma ação social de grande peso - considere-se, por exemplo, o caso da Universidade de Ijuí); a constituição de Núcleos e Grupos de Estudo; os estudos realizados: os trabalho sociais desenvolvidos através de cursos, programas, estudos, etc. Apesar de uma preocupação com um caráter proporcional da extensão, ainda vemos acontecer em grande escala o assistecionalismo, as práticas ocasionais ou de fim de semana, com o deslocamento de estudantes sem a orientação de seus professores. O mesmo Pedro Demo, em artigo bastante crítico publicado em coletânea organizada pela Prof.º Maria Ozanira da Silva e Silva sobre o título: “A comunidade solidária: o não-enfrentamento da pobreza no Brasil”, nos alertava para o fato de que: “ A assistência mal posta pode ter efeito deseducatico típico, porque educa para a submissão, à medida que, em vez de reforçar o desafio da emancipação, solapa a competência política de se fazer sujeito capaz de história própria. Em vez de suportar o projeto da autonomia, pode mergulhar o pobre em dependência irreversível, confirmado nele a idéia perversa de que a opressão somente pode ser superada pelo próprio opressor” (ibid.: 45).
A extensão universitária deve ter o cuidado de não agregar a universidade a programas de instituições governamentais ou não governamentais, que não tratem das questões básicas de nossa gente através de práticas que visam a sua promoção preferencialmente ou que dêem à assistência, um caráter residual “pois é com resíduos que se trata a população também considerada resíduo” (Demo: 2001,47). Temos de ser bastante cuidadosos e cautelosos em nossas parcerias e alianças, as quais, muitas vezes nos acenando com apoios financeiros ou proposta de valiosos apoios técnicos, nos levam a assumir propostas de caminhar na direção contrária aos interesses do povo, à sua emancipação. A reflexão nos leva a repensar a questão da prestação de serviços por via da extensão universitária, privilegiando basicamente a questão da captação de recursos financeiros. Muitas vezes, agregamos as universidades a instituições, programas ou projetos que pouco ou quase nada tem a ver com a educação superior. Não podemos esquecer que a universidades, como instituições do campo da educação, tem como tal um compromisso educativo, onde a própria prestação de serviços deve ter um caráter de aprendizado. Por outro lado, a Universidade não pode esquecer a sua condição de instituição de educação superior. Educação Superior que se mede pela qualidade de seu ensino, de sua pesquisa, de sua extensão e de atendimento a outras demandas sociais. Superioridade que se mede em função de um pensar crítico, tão necessário nos tempos presentes. Precisamos denunciar as injustiças e anunciar os rumos de uma sociedade mais justa. Não podemos ser parceiros do “Partido da Insensibilidade”, que se comove com as situações das novelas da Globo, com as informações virtuosas passadas à distância, mas, não se comove com a situação das famílias de rua que moram debaixo das pontes; com a situação da prostituição infantil; com o desemprego; com a fome; com a violência que é marco da sociedade atual no país. Para finalizar, gostaríamos de reproduzir a opinião de Paulo Freire, em artigo escrito pouco antes de sua morte, onde expressa sua indignação, a qual apesar do caráter de angústia e revolta não deixa de ser carregada de esperança. Diz-nos Freire: “ Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torna-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho,
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inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda ... Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher, não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros...” (Freire, 2000: 17).
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Referências A Construção do Conceito de Extensão Universitária na América Latina. In: Construção conceitual da extensão universitária na América Latina”. UNB/Fórum Nacional de Pro-Reitores das Universidades Públicas Brasileiras e Unión LatinoAmericana de Extensión: Brasília, 2001. Demo, Pedro. Saber pensar. São Paulo: Cortez, 2000. Extensão universitária: momento de aplicação do conhecimento. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. (Mimeo). Freire, Paulo. Extensão ou comunicação? 2ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. __________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 8ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. ___________. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. Gonçalves, Newton. A extensão como uma das funções básicas de universidades. In: Coletânea de Documentos sobre Extensão Universitária. Brasília. DDD/MEC, 1976; Maduro, Oto. Mapas para a festa: reflexões latino-americanas sobre a crise do conhecimento. Petrópoles: Vozes, 1994. Molina, Maria Valenzuela. Extensión universitaria. S/1. CRUB, 1968, 67 p, Mimeo Morin, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Brasília: Cortez Editora/UNESCO, 2000. Nogueira, Maria das Dores Pimentel. Extensão universitária: diretrizes conceituais e políticas. Pro-Reitoria de Extensão/Fórum de Pro-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras: Belo Horizonte, 2000. Rocha, Roberto Mauro Gurgel. Extensão universitária: comunicação ou domesticação? São Paulo: Cortez Editora/Editora Autores Associados/Edição UFC, 1986. Santos, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na PósModernidade. 6ª edição, São Paulo: Cortez Editora, 1999. Silva e Silva, Maria Ozanira da (coord) O comunidade solidária: o não enfrentamento da pobreza no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2001
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INDIVIDUAL LIVRO 1.
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EDITORA UNIVERSITÁRIA diretor JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES vice-diretor JOSÉ LUIZ DA SILVA divisão de produção ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS divisão de editoração MARTHA MARIA BARRETO DE OLIVEIRA M528 e
Melo Neto, José Francisco de. Extensão universitária é trabalho/ José Francisco de Melo Neto. João Pessoa: Editora Universitária /UFPB, 2004. 81p. – (Coleção Extensão Popular) ISBN nº 85-237-0515-3 1. Extensão universitária. 2. Extensão – Trabalho. I. Título
UFP B/BC
CDU: 378
Direitos desta edição reservados à: UFPB/EDITORA UNIVERSITÁRIA. Caixa Postal 5081 - Cidade Universitária -João Pessoa – Paraíba-Brasil. CEP 58.051-970. www.editora-ufpb.com.br Impresso no Brasil. Printed in Brazil. Foi feito depósito legal.
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COLEÇÃO EXTENSÃO POPULAR Organizador: José Francisco de Melo Neto
Títulos publicados: Extensão universitária - uma análise crítica José Francisco de Melo Neto Extensão universitária – diálogos populares José Francisco de Melo Neto (org.) Música e mudança – uma experiência em educação popular Hector Jorge Rossi Extensão universitária, autogestão e educação popular José Francisco de Melo Neto Extensão universitária é trabalho José Francisco de Melo Neto Educação popular – enunciados teóricos José Francisco de Melo Neto Títulos a publicar: .Diálogo em educação .Extensão popular (coletânea) -----------------------------------------------------------------------------------GRUPO DE PESQUISA EM EXTENSÃO POPULAR – EXTELAR -------------------------------------------------------------------------------------------Apoios: .USINA CATENDE/PE - Companhia Agrícola Harmonia. .ANTEAG – Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária/SP.
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SUMÁRIO
- Apresentação ......................................................................... - Olhares para a extensão ........................................................ - A extensão não alienante ...................................................... - A divisão do trabalho.... ........................................................ - O processo do trabalho.......................................................... - A intencionalidade da extensão ............................................ - Considerações ....................................................................... - Referências ............................................................................
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Apresentação
Este ensaio é um convite à inserção do leitor no debate que vem sendo desenvolvido no âmbito acadêmico e em encontros de extensão, em particular da extensão universitária, a respeito de seus aspectos ontológicos. Uma discussão que se arrasta há bastante tempo, em especial pelo Fórum de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, despertando aspectos teóricos para a construção de um conceito para a extensão, e por que não dizer, para uma visão de universidade no Brasil. O texto conduz o leitor a inserir-se na discussão da extensão universitária visualizada no campo teórico da categoria trabalho, mas fielmente, como trabalho social útil com uma explícita intencionalidade acadêmica, diferenciando-se das demais dimensões da universidade no Brasil – pesquisa e ensino. Assim, torna-se possível a visão de um trabalho extensionista que não promova a alienação das pessoas, destacando o processo desse trabalho em vários cenários de práticas de extensão, além de seu papel (intencionalidade) de alimentar a inter-relação do ensino e da pesquisa, em favor da cultura das classes subalternas da sociedade, na construção de um outro projeto social.
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Olhares para a extensão Os desafios postos com o novo momento histórico79 por que passa o país desafiam também as instituições de ensino superior para uma maior interatividade com as camadas sociais que, efetivamente, não estão presentes nos ambientes onde se realiza esse tipo de ensino. Também não se fazem representar em outros níveis da educação formal, considerando os altos índices que indicam a fome80, o analfabetismo e as desistências das escolas públicas. Estas questões consubstanciam um desafio para o Estado e suas instituições, alimentando a possibilidade de sua superação por meio de políticas que eliminem tal processo de exclusão social. Não basta, contudo, o sentimento da necessidade de superação de tais situações. Urge analisar as possibilidades da contribuição das várias instituições da sociedade, em particular, a instituição de ensino, pesquisa e extensão – a universidade. Por outro lado, é importante, do ponto de vista teórico, a busca de instrumentos que possam contribuir nessa perspectiva, considerando que várias práticas políticas foram desenvolvidas, às vezes, com preocupações nessa mesma direção, não atingindo os seus objetivos proclamados. Isto conduz a uma reflexão mais rigorosa sobre a extensão, dimensão da universidade que tem expressado maiores possibilidades de ter a realidade presente em seus objetos de estudos. Nesse contexto, é preciso retomar a questão: que bases conceituais servirão de vetor para a extensão universitária, podendo contribuir para possíveis encaminhamentos condizentes com a busca de soluções aos desafios presentes e que possibilitem o envolvimento das demais dimensões da universidade - o ensino e a pesquisa? Várias têm sido as concepções da extensão universitária. São conceitos que foram estabelecendo-se a partir de discursos gerais oriundos do interior de si mesma, presentes no discurso de professores e de órgãos públicos que atuam no campo da extensão. Esses conceitos, em sua maioria, fazem parte das acepções dominantes sobre a extensão universitária, em geral, originários de práticas assistenciais. Uma dessas concepções81 afirma ser a extensão algo enriquecedor para os objetivos da universidade. Observa-se nesta compreensão que não são colocados os objetivos da universidade. Além disso, não se esclarecem o tipo e a forma como ocorre esse enriquecimento: se é monetário, teórico, prático ou outra alternativa. Extensão também é vista como atividade promotora do conhecimento. Mas esta é uma perspectiva incapaz de responder às seguintes questões: que tipo de conhecimento está sendo promovido? Como está sendo produzido? Quem está sendo beneficiado com essa promoção? A extensão é mostrada como expressão do retorno à sociedade daquilo que esta investe na universidade. Embute-se uma compreensão de troca entre a universidade e a sociedade, em que aquela precisa devolver a esta tudo que está sendo investido. Essa 79
Este texto é produto de pesquisas em vários momentos, no campo da extensão universitária, a partir de práticas extensionistas em projetos da Universidade Federal da Paraíba. Em 2002/3, acresce-se outra pesquisa na Usina Catende, na região da mata sul de Pernambuco, sobre a temática: extensão universitária, autogestão e educação popular.
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A propósito, ver o primeiro discurso do Presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (eleições presidenciais de 2002), estabelecendo, como prioridade de seu governo, a eliminação da fome no país, com a definição do Projeto Fome Zero.
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As concepções que seguem nesses três parágrafos foram coletadas de projetos de extensão universitária, encaminhados para financiamento, na Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários (PRAC/UFPB), durante a realização da pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000), coordenada pelo prof. Dr. José Francisco de Melo Neto.
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visão vislumbra a universidade como devedora da sociedade, fragilizando-a nessa relação ou expressando, talvez, um desejo de instalação, na universidade, da política do toma-lá-dá-cá. Há ainda uma definição que mostra a extensão como um meio que liga o ensino e a pesquisa. Imagina-se que um ente concreto liga os dois outros constituintes: ensino e pesquisa. Contudo, o ensino e a pesquisa podem constituir esse ente. Mas, será necessário que se saiba o significado do meio presente nessa conceituação. Será o meio um instrumento pelo qual se pode chegar a outras conjecturas sobre extensão? Será um instrumento através do qual se domina a própria extensão, o ensino ou a pesquisa? Será o meio o intermediário para se chegar ao ensino e à pesquisa? Precisa-se desse meio? Extensão tem se apresentado como uma forma de corrigir a ausência da universidade nas problemáticas da sociedade. A extensão, aqui, externa-se como forma. Terá essa forma um conteúdo? Afinal, qual é o conteúdo dessa forma? Entretanto, a formulação vai mais além: ela considera a universidade como ausente dos problemas da sociedade. É verdade que ela está ausente de vários problemas, mas é verdade que se faz presente em outros tantos. No campo das ciências sociais, cabe perguntar: por que nos cursos de graduação, em geral, não se estuda Brasil ou América Latina? Por que em muitos cursos de medicina não se enfatizam doenças tropicais? Essas mesmas indagações podem ser feitas em relação à pesquisa. Contudo, a universidade está presente naquelas temáticas definidas pelos setores dominantes para que sejam submetidas aos projetos de extensão, às atividades de ensino e à pesquisa. Os órgãos financiadores estão, permanentemente, definindo essas temáticas. Durante a realização do XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste (1995), em Natal, a extensão foi considerada “um nascedouro e desaguadouro da atividade acadêmica, da qual a pesquisa seria o desenvolvimento das respostas, e o ensino o envolvimento dos estudantes em todas as etapas desse processo...”. Ao considerar a extensão como nascedouro e desaguadouro de atividades, esta visão, simplesmente, a elege como a origem e o fim das atividades acadêmicas. Parece muito mais um procedimento idealizado quando se destina esse papel à extensão. Há de se perguntar: a origem da problemática da pesquisa não passa pela realidade circundante do pesquisador? Será obra de mera idéia gerada de sua genialidade ou de circunstancial inspiração? O ensino envolvido pela perspectiva apresentada não poderia ter origem a partir de elementos da realidade? De que forma a extensão propõe-se ser nascedouro e desaguadouro de toda e qualquer atividade acadêmica? Essa formulação inspira pró-reitores a veicularem a compreensão de extensão como a porta na qual os clientes e usuários têm de bater, quando necessitados. Dessa forma, materializa-se a extensão, extraindo-lhe o véu metafísico que a envolvia, tornando-a um ente concreto. Todavia, a presença de uma porta pressupõe a existência de uma separação, sendo esta o divisor entre o dentro e o fora. Pressupõe-se, em decorrência desta formulação, que a universidade deva estar do lado de dentro, enquanto o algo do lado de fora deve ser a sociedade ou vice-versa. Mais uma vez, assim compreendido, mantém-se o mesmo viés da visão na qual a universidade constitui-se como uma instituição isolada da sociedade, como se não fosse uma organização da própria sociedade, em constantes conflitos ideológicos. Em grande medida, a extensão vai sendo veiculada como prestação de serviços. Ora se torna estágio, quando atrelada a programas de governo; ora se torna uma forma de captar recursos; ora, por meio dela, busca-se estudar problemas da realidade. O mais curioso é que a extensão, muitas vezes, é considerada como uma espécie de sobra na universidade, podendo ser tudo aquilo que não se identifique como atividade de ensino ou de pesquisa. No entendimento de Rocha (l980), essas expressões são equivocadas 185
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para a compreensão da extensão. Para ele, é melhor pensar a extensão por meio da comunicação, considerando essa comunicação na perspectiva freireana, em que a sua sustentação decorre do processo dialógico. Contudo, admitida a existência do diálogo, é preciso perguntar: com quem o diálogo se faz? Será que não permanece, nessa formulação, a divisão entre a sociedade e a universidade, mesmo que ambas possam existir, distanciando-se e aproximando-se como resultado desse diálogo? Como se dá esse diálogo comunicativo? Existe uma ação comunicativa habermasiana nessa compreensão, onde a busca principal constitui-se no consenso como mecanismo último da organização da sociedade? Esse diálogo proposto como estratégia para a convivência social suportará a coexistência consensual em uma sociedade de classes e tão profundamente dividida? Pode-se ainda resgatar a formulação de extensão universitária produzida pelo I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas. Nele foram apresentados vários aspectos determinantes para uma compreensão da extensão universitária e que merecem destaque, como, por exemplo: a extensão constitui-se como processo educativo, cultural e científico. Parece interessante ter, como ponto de partida, a visão de processo para análise e definição do que seja extensão. O Fórum caracterizou esse processo como via de mão dupla. Aí, pode-se questionar o uso da idéia de via, considerando que essa simbologia cai na dificuldade de compreensão de que a universidade é parte da sociedade. Essa via de mão dupla da extensão teria o papel de manter a interligação entre ambas. Esse movimento de vai-e-vem, na formulação do Fórum, viabilizaria a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade, ou seja, no buscar e levar conhecimento. Ora, será que a democratização do conhecimento, mesmo aquele acadêmico, resolve-se pela extensão através da perspectiva de mão dupla? Sabe-se que a questão da democratização do conhecimento envolverá a produção e a posse dos resultados, constituindo-se, dessa forma, numa questão muito mais abrangente e complexa. O conceito de extensão não pode assentar-se como via de mão única, considerando a presença autoritária, aí implícita, do fazer acadêmico, onde a universidade sabe e vai levar algum conhecimento àqueles que nada sabem: as comunidades ou a classe trabalhadora. “A universidade pode passar a sua experiência para as pessoas que estão diretamente fazendo com que as suas experiências funcionem, aqui na região” (Ronaldo R. Silva, agricultor participante do Projeto Cana de Morador, nos engenhos da Usina Catende/PE)82. Destaque-se que, diante do mundo da vida que levam as pessoas, muitos dirigentes de comunidades, de entidades ou de movimentos sociais passam a reforçar a percepção da universidade como alimentadora de práticas que expressam o doar da universidade para a comunidade. A universidade nesta visão não sofre qualquer tipo de aprendizagem na relação que se estabelece, conforme expressa este depoimento: “Eu acho que a universidade pode contribuir demais aqui dentro (Projeto Harmonia-Catende), porque aqui a gente não tem muito conhecimento. A cultura daqui é plantar cana que vem dos nossos ancestrais. E aí a questão de outro tipo de cultura, quando se tem a universidade engajada num projeto desse, eu acho que só tem a contribuir, porque ela pesquisa” (Maria Antonieta, assessora para projetos de educação e produção da Usina CatendePE)83. 82
Entrevista para esta pesquisa.
83
Entrevista para esta pesquisa.
186
187
Enquanto solicita a ajuda por não ter conhecimento para sair de seus próprios problemas, contraditoriamente, a entrevistada demonstra que tem conhecimento ao dizer aquilo que sabe que é a cultura da cana. O trabalhador, ao ser perguntado sobre a possibilidade de contribuição da universidade ao mundo dele, vislumbra uma certa força mágica da instituição, dando-lhe um poder capaz de conscientizar as pessoas: “Eu acho que é tentando conscientizar, orientar, passar para os trabalhadores, para os empregados de Catende” (Elenildo
Ferreira, Presidente da Associação de Moradores do Engenho Riachão – Catende/PE)84.
Campos da Usina Catende (PE) Mas há aqueles que vêem outras possibilidades mais atinentes ao papel da universidade no cenário da produção do conhecimento: “Acho que é de suma importância essa usina conviver bem com as universidades. Acho que está com a universidade a questão-base para o desenvolvimento que é a tecnologia” (Mário Borba, Síndico da Usina Catende)85. Ou, como destaca Arnaldo Liberato (Assessor-técnico da diretoria da Usina Catende): “Somos uma área muito rica para a pesquisa. A questão do meio ambiente, as questões agrícolas, as questões sociais mostrando que precisamos muito das universidades com sua capacidade científica, sua capacidade de pesquisa, sua capacidade de orientação. Nós temos uma carência muito grande nesse sentido e não temos pernas para bancar pesquisas. Entendemos que este é um papel da universidade. Na universidade, buscamos parcerias, porque têm muitas pessoas sérias, muitos técnicos competentes que gostam e apostam em coisas assim (o projeto Catende/Harmonia). Estamos apostando nisso”86 .
84
Entrevista para esta pesquisa.
85
Entrevista para esta pesquisa.
86
Entrevista para esta pesquisa.
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A concepção de extensão como via de mão dupla separa o processo educativo da própria educação, o processo cultural da produção da cultura, bem como o processo científico da própria ciência. Pode-se questionar: quais os interesses que se manifestam nessa realização? Será a extensão algo ideal, capaz de viabilizar uma relação transformadora, como propõe aquele conceito? Em uma via de mão dupla, há um momento de tensão nesse passar de algo que vem em uma mão, para algo que vem em sentido contrário. Será esse o momento da extensão? Mas de que se constitui esse momento? Em geral, as ultrapassagens no mundo físico, seguindo a simbologia das vias apresentadas, são muito rápidas. Extensão será apenas um certo momento ou buscar-seá uma maior permanência, considerando a idéia de processo? Talvez, visualize-se uma mão que segura outra. Essa simbologia já foi bastante utilizada, na década de 60, sobretudo, nos tempos da Aliança para o Progresso87, prestando-se para a ideologia do desenvolvimento da época. Essa simbologia parece conduzir, por conseguinte, à monotonia e à estabilidade e, naquele caso, à dominação. As mãos tinham expressão de força diferenciada. Assim, essas situações não combinam com o conceito de processo, que é dinâmico. Extensão será expressão de monotonia? Esta compreensão de extensão, como via de mão dupla, pode destacar, ainda, um retorno dos conhecimentos para a universidade, como se aí estivesse o único espaço para a reflexão teórica. Não se estará gerando uma dicotomia, inclusive espacial, da condição de reflexão teórica, ao transladá-la para o espaço da universidade? Pode até se perguntar: será a universidade o lugar, por excelência, para a reflexão teórica? Não seria esse espaço o próprio lócus de realização das atividades de extensão? Ainda na compreensão da extensão como via de mão dupla, afirma-se que a produção de conhecimento é resultante do confronto com a realidade, seja brasileira, regional ... enfim, do confronto com a realidade. Não será uma redução dos diferenciados processos de geração do conhecimento? Extensão, na perspectiva da produção do conhecimento, não pode contemplar conceitos que expressem apenas uma „relação unívoca‟, que se desenvolve em um sentido universidade para o povo. Esta visão não permite novas definições ou possibilidades, ao anular o espaço da contradição, uma vez que os intelectuais da universidade (professores, alunos e servidores) já definiram tudo. Paulo Freire (1979: 22), ao interpretar as diferenciadas possibilidades conceituais de extensão, mostra que o termo aparece como transmissão; sujeito ativo (de conteúdo); entrega (por aqueles que estão além do muro, fora do muro). Daí falar-se em atividades extramuros; messianismo (por parte de quem estende); superioridade (do conteúdo de quem entrega); inferioridade (dos que recebem); mecanismo (na ação de quem estende); invasão cultural (através do conteúdo levado, que reflete a visão do mundo daqueles que levam, que se superpõem, à daqueles que passivamente recebem). Sugere, finalmente, extensão como comunicação. Ao se vislumbrar extensão como comunicação, permanece ausente o significado mesmo da extensão. A formulação de um conceito a partir de um outro, como o de comunicação, leva a extensão a permanecer no vazio da indefinição, tornando-se o outro substantivo. A superação desse tipo de conceito exigirá que outros demonstrem a instauração do diálogo como pressuposto de suas realizações, dando prioridade às metodologias que incentivem a participação dos envolvidos nesses processos. Extensão também é expressão de relações processuais, contudo não é essa relação em si mesma.
87
Projeto ligado ao governo norte-americano para eliminar a fome do continente, implementando a sua ideologia de progresso, consistindo em distribuição de alimentos ao povo pobre.
188
189
A atividade de extensão tem sentido se interpretada como “a criação e recriação de conhecimentos possibilitadores de transformações sociais, onde a questão central será identificar o que deve ser pesquisado e para quais fins e interesses se buscam novos conhecimentos” (BRASIL/MEC, Plano Nacional de Extensão Universitária, 1999: 5). Destaque-se a necessidade da produção do conhecimento e não simplesmente a promoção de uma relação entre saberes acadêmicos e saberes populares. A busca por produção de um conhecimento transpõe a dimensão meramente de troca de saberes. Essa dimensão ocorre nas ações extensionistas, mas não se constitui, meramente, de processos relacionais. A definição formulada no I Fórum de Pró-Reitores (Brasil/MEC: 1987) já vislumbrava a preocupação com a “produção do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade” (ibid.: 5). Fazer extensão pressupõe a ação propriamente dita, pois esta não se enquadra em mera perspectiva contemplativa da realidade. Nesse sentido, é importante ressaltar a conclusão do Fórum: “A intervenção na realidade não visa levar a universidade a substituir funções de responsabilidade do Estado, mas sim produzir saberes, tanto científicos e tecnológicos quanto artísticos e filosóficos, tornando-os acessíveis à população, ou seja, a compreensão da natureza pública da universidade se confirma na proporção em que diferentes setores da população brasileira usufruam dos resultados produzidos pela atividade acadêmica, o que não significa ter que, necessariamente, freqüentar seus cursos regulares” (ibid.: 6).
A construção de um conceito atualizado para as necessidades que estão apresentadas, no atual momento histórico, exige que se vá além das possibilidades apontadas, buscando as relações internas existentes e suas práticas nas instituições promotoras de extensão, como a universidade. Volta-se, ainda, às questões que a realidade objetiva mais expõe àqueles que desenvolvem atividades de extensão. É nessa perspectiva que se torna possível encontrar uma definição de extensão, nas conclusões do citado Fórum de Pró-Reitores. Nessa condição, a extensão busca atender as multiplicidades de perspectivas em consonância com os seguintes princípios: a ciência, a arte e a tecnologia devem alicerçar-se nas prioridades da região; a universidade não pode entender-se como detentora de um saber pronto e acabado; a universidade deve participar de todos os movimentos sociais, visando à construção da cidadania. Nesse aspecto, a extensão pode “ser encarada como um trabalho social, ou seja, ação deliberada que se constitui a partir da realidade e sobre esta realidade objetiva, produzindo conhecimentos que visam à transformação social” (ibid.: 8). Contudo, na perspectiva conceitual do Fórum, convém retomar a idéia de que “... extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social” (BRASIL/MEC, l987: 1). Estas são formulações que avançam no campo teórico, trazendo, pela categoria trabalho, uma preocupação conceitual à extensão. Mas o trabalho presente na realização das atividades de extensão pode servir para integrar pessoas à sociedade. Todavia, esta sociedade é a responsável pela exclusão, gerando os sem-comida, os sem-escola, os sem-moradia ... e de uma maioria sem quaisquer traços de cidadania. Portanto, a extensão adquire um papel integrador da sociedade, tornandose este instrumento. Ao que se apresenta, essa visão teórica de trabalho não condiz com o tipo de sociedade que interessa aos setores subalternos da sociedade, que podem buscar a superação desse estado de coisas. Como integrar pessoas em sociedades que lhes excluem? Mas a categoria teórica trabalho pode ser utilizada para se discutir um conceito de extensão voltado a um trabalho diferenciador de qualquer perspectiva de 189
190
integração social e definido pela busca de outras possibilidades de vida, da construção de outro processo cultural. Extensão pode ir além de um trabalho como o proposto pelo Fórum. Esse trabalho tem uma dimensão educativa e precisa, conseqüentemente, ser qualificado. É uma qualificação para a própria universidade, enquanto seja possível observá-la em outra perspectiva. Dessa forma, extensão é entendida como responsável por um “trabalho para fazer com que os alunos assimilem um conhecimento através da inserção na realidade em que estão vivendo e que esses conhecimentos digam alguma coisa para o momento atual” 88. Esta mesma visão concebe a universidade como a responsável por um trabalho que possibilite o exercício da função de “ligar o ensino e a pesquisa com a realidade”, contribuindo, inclusive, com a reflexão das práticas acadêmicas de docentes e estudantes. Isto vem sendo mostrado por muitos que nem estão em universidades. “Muitas vezes, os professores que só se formavam numa faculdade para o seu exercício da profissão, nos possibilita ter a oportunidade de estar convivendo um pouco na prática desses profissionais da universidade. Isto tem ajudado bastante na compreensão e tem ajudado até a discuti-la”(Marivaldo Silva Andrade, presidente da Companhia Agrícola Catende/Harmonia-PE).89
A extensão ainda pode ser vista como tendo a missão de fazer a universidade sair dos seus muros. Elabora problemas existentes a partir da discussão da realidade em que está inserindo-se ou vivenciando. Extensão como uma busca não só de explicações teóricas, mas de respostas àquelas necessidades imediatas de setores da sociedade. A realidade apresenta desafios para todos os projetos sociais alternativos em andamento que podem ver a universidade com o papel de contribuir de diferenciadas formas. Nesse aspecto, convém transcrever o seguinte depoimento sobre o projeto Catende/Harmonia: “Este projeto vai ser sustentado se tivermos pelo menos três pessoas em cada Engenho com condição de dirigir negócios locais, articulando uma rede que é a Companhia Agrícola Harmonia. Há pessoas voltadas à área do meio ambiente, na área de organização dos trabalhadores, pessoas na área de dirigir as cooperativas e dirigir esses processos que vão acontecendo nesses engenhos. Se a gente não tiver pessoas ou recursos humanos que possam orientar esse trabalho, que possam conduzir e dar direção a esse processo, garantindo a democracia e a participação dos donos dos negócios que são os sócios, o processo não anda” (Risadalvo José da Silva (o São), ex-assessor da Companhia Agrícola Catende/Harmonia) 90.
Nesse sentido, a extensão torna-se “um trabalho; um trabalho que não tem um tempo definido mas está dentro de uma perspectiva de trabalho permanente, trabalho continuado”91. Apresenta-se, dessa maneira, uma possibilidade diferenciadora daquelas visões, até então apresentadas, enquanto qualifica o tipo de trabalho que está sendo desenvolvido nos projetos de extensão em andamento. Essas atividades, para muitos, passam a se constituir como sendo a própria extensão e, marcadamente, identificando-as 88
Membro da equipe da PRAC/UFPB. Texto de entrevista para a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000).
89
Entrevista para esta pesquisa.
90
Entrevista para esta pesquisa.
91
Membro da equipe de projeto do Centro de Referência da Saúde do Trabalhador – CERESAT/UFPB. Texto da entrevista para a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000).
190
191
como um trabalho: “Penso extensão como o trabalho a partir daquilo que a gente faz. Acho que é a partir daquilo que cada grupo faz que, na verdade, vai se constituindo o que a gente chama de extensão-universidade”92. Veicula-se, em alguns projetos de extensão, uma perspectiva gerada a partir das atividades em desenvolvimento e sem estar prisioneira de qualquer formulação idealista. O ponto de partida dessa perspectiva é a realidade concreta ou o concreto real que, submetido à análise da teoria, da abstração, vai vislumbrando outras possibilidades ideológicas da extensão. “Extensão como trabalho que envolva pesquisa e um trabalho que tenha uma finalidade social bastante definida” 93. Conforme os dados coletados no âmbito do Projeto CERESAT (Centro de Referência da Saúde do Trabalhador), dentre os aspectos variados de interesse da pesquisa, observa-se a dimensão referente à concepção de extensão que inspira aquele projeto e que alimenta a continuação do debate sobre a questão conceitual (Tabela 1, a seguir). 94
92
Membro da equipe do projeto CERESAT. Texto da entrevista para a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000).
93
Membro da direção da universidade. Texto da entrevista para a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000).
94
Esta tabela mostra a composição interna dos temas com seus itens, a freqüência dos indicadores por item e seus percentuais considerados separadamente nos documentos e nas entrevistas - estas distribuídas em entrevistas com os coordenadores, os executores e os membros da comunidade alcançada pelo projeto. Mostra ainda a freqüência geral dos indicadores de cada tema, bem como o percentual desse tema no conjunto do projeto. Dados coletados na pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000).
191
192
TABELA 1 PROJETO CERESAT - DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO
Temas
I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
IV - Configuração dos interesses sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidadesociedade
VII – Concepção de extensão universitária
VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X – Pedagogia da extensão universitária
Itens
A %
B % C%
D %
Fi
% itens
Fgi
% tema
1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a sociedade 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. Absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: ( contradições de classe ) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes Dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 – Instituição como aparelho de conflito Ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social ( construção de nova hegemonia ) 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso Transformador 9.1 - gente de interesses do mercado ( capital ) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes Dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
07 06
06 02
09 02
09 01
136 36
07 02
1840
26
87 04 01 95 22
92 02 04 94 14
89 01 03 96 67
91 03 01 96 00
1668 43 43 1713 06
91 02 02 96 19
1799
25
33
50
00
100
16
50
32
01
45 00 57 43 02 98
36 03 21 76 05 95
33 00 10 90 03 97
00 07 68 35 06 94
10 11 155 425 19 423
41 02 26 72 04 96
591
08
442
06
38
65
58
31
41
55
00 62
11 24
33 09
56 13
17 16
23 22
74
02
61 06 33
29 08 63
66 00 34
62 01 37
167 17 16
48 05 47
349
05
00
02
00
04
23
02
09
06
08
09
89
08
1175
17
91
92
92
87
1063
92
14 28 58
64 01 35
36 41 23
55 14 31
85 21 51
54 13 33
157
02
00 100
00 100
00 100
00 100
00 549
00 100
549
08
A - Entrevista com coordenadores C - Entrevista com comunitários Fi - Freqüência de indicadores B - Entrevista com executores D - Documentos dos projetos Fgi - Freqüência geral dos indicadores
O tema VII da tabela está voltado à compreensão de extensão, veiculada pelos participantes das atividades nesse projeto. A concepção da extensão universitária foi sintetizada a partir de três visões que, normalmente, se apresentam no debate dentro da universidade. A primeira é a via de mão única que, de forma mais caracterizada, expressa a universidade como uma instituição independente, a quem cabe passar para a sociedade os resultados de alguns dos seus trabalhos. Concretizam esta perspectiva a prestação de serviços, a promoção de cursos e eventos, a assistência, a venda de serviços, o treinamento de indivíduos da sociedade, a realização de estágios, cursinhos preparatórios para programas de pós-graduação, entre outras atividades. É em síntese, a universidade levando benefícios à sociedade. A segunda visão é apresentada através da simbologia da mão dupla em que a extensão pode ser compreendida como um processo educativo, cultural e científico. Esta concepção privilegia o aspecto de que a universidade leva conhecimento à comunidade, como traz conhecimento da sociedade para a instituição. A universidade e a sociedade são, assim, concebidas como agindo de mãos dadas, procurando, também, atender às demandas sociais em forma de troca de algo com a sociedade e tendo desta a sua contrapartida. 192
193
A terceira concepção que começa a projetar-se nesses projetos de extensão é a extensão como um trabalho social com uma utilidade definida. Esta concepção estaria sendo demarcada por indicadores que mostram certo tipo de trabalho em desenvolvimento entre universidade e sociedade, não como entes separados, mas em relação permanente entre si e que, nem por isso, deixam de se diferenciar. O sentido que se propõe é de um trabalho social útil como processo educativo, cultural e científico, porém voltado à construção de uma nova hegemonia. O trabalho aqui, aparece configurado com a própria classe subalterna, especialmente dirigido à organização dos seus diferentes setores. De acordo com esse entendimento, a universidade e a comunidade devem ser as possuidoras do produto desse trabalho. Um trabalho que carece da presença da crítica como ferramenta nas atividades que o constituem. Esse conceito traz, em si, a dimensão de superação do senso comum ao expor e explicar os elementos da realidade. Elementos que são gerados a partir de formulações abstratas, mas tendo na realidade, no mundo concreto, a anterioridade de suas bases analíticas. Nesse movimento de análise da realidade, um segundo movimento tem continuidade no campo das abstrações, em busca de elementos ainda mais abstratos, permeados, entretanto, pelo concreto inicial. Finalmente, através dos recursos expostos por essas abstrações, busca-se criar um novo concreto, permeado das abstrações anteriores, enfim, um concreto, agora, cheio de pensamento. Este movimento de produção de conhecimento expressa outro instrumental teórico de produção de bens culturais e de outro processo cultural. Esse percurso metodológico estabelece-se pela constante crítica dessa produção e do produto gerado, tornando-se também propositivo. Busca a superação das dimensões do estabelecido, considerando, por exemplo, que “as relações de classe não são espontaneamente transparentes ao nível da experiência „imediata‟, da experiência „vivida‟ - aquela experiência que é simplesmente um reflexo sobre a vida cotidiana” (Przeworski, 1989:122). Para o conhecimento dessas relações, torna-se necessário o exame da crítica. Este possibilita ir além da experiência vivida pelas equipes e comunitários, superando o reflexo primeiro da experiência. A crítica é necessária, pois perscruta essas relações, assumindo seu papel transformador. Os dados revelam que, neste projeto, 47% das opções apontam para uma percepção da extensão como trabalho social. Mas, com relação aos executores do projeto, 63% das opções do tema concentram-se no entendimento de extensão muito mais em termos da possibilidade de torná-la um trabalho social. Observa-se, contudo, que, entre os coordenadores existe uma sintonia dessa visão de extensão com as percepções da visão transformadora do mundo, presente em um modo de produção determinado e um Estado expresso através de possibilidades de sua ampliação decorrente das contradições de classe. É uma relação entre universidade e sociedade permeada dos conflitos ideológicos dessas classes. A Tabela 2, a seguir, apresenta as preocupações conceituais referentes ao Projeto Escola Zé Peão95.
95
Este projeto volta-se a alunos adultos e trabalhadores em canteiros de obras, em unidades do Sindicato de Trabalhadores na Construção Civil, em João Pessoa (PB). Faz parte dos projetos do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Educação da UFPB. Projeto analisado durante a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2002).
193
194
TABELA 2 PROJETO ESCOLA ZÉ PEÃO - DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO Temas
ITENS
I - Concepção de mundo
1.1 – Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão Integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 – Visão transformadora
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
IV - Configuração dos interesses Sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidadesociedade VII – Concepção de extensão universitária
VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X – Pedagogia da extensão Universitária
A % 13 01
B%
C% D %
Fi
09 01
07 01
24 01
183 08
% itens 11 01
86
90
92
75
1420
88
2.1 - Conjunto de instituições Independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 – Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. Absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 – Estado ampliado: (contradições de classe ) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada
06
06
04
01
61
04
01 93 83
01 93 20
03 93 00
01 98 60
37 1586 12
02 94 33
17
80
100
40
25
67
00 00 37 63
00 01 17 82
00 00 20 80
00 00 49 51
00 01 207 508
00 00 29 71
5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes Dominadas
11 89
01 99
02 98
07 93
08 433
02 98
6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito Ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social ( construção de nova hegemonia )
41 12
57 25
74 13
55 25
79 23
60 17
47
18
13
20
31
23
35 07 58
35 04 61
84 02 14
24 06 80
92 10 110
43 05 52
8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso Transformador 9.1 - Agente dos interesses do mercado (capital) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 – Agente comprometido com as classes Dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
02
03
01
01
08
01
27
09
07
03
58
08
71
88
92
96
680
91
38 27 35
30 00 70
17 04 79
52 03 45
48 12 110
28 07 65
00 100
00 100
00 100
00 100
00 100
00 100
A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores
C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos
Fgi
% tema
1631
26
1684
27
37
01
716
11
441
07
133
02
212
04
746
12
170
03
461
07
Fi - Freqüência de indicadores Fgi - Freqüência geral dos indicadores
A ação extensionista que se desenvolve neste projeto, pouco a pouco, consolida uma concepção onde predomina a visão da sociedade como um modo de produção, definido a partir de uma base material. Todos os setores do projeto apresentam proximidade na concepção e quase coincidência no percentual. Uma média de 94% (item 2.3) expressa tal aproximação de visão de sociedade e visão de mundo. É uma concepção veiculada após o aprendizado do trabalho 194
195
educativo de organização num bairro ou num sindicato, com todas as suas possibilidades e limitações. A contradição surge ao se observar a relação da universidade com a sociedade, quando aquela é vista como uma instituição do saber com vida independente. Nesse aspecto, registra-se um índice de 41% (6.1) entre os coordenadores, percentual que cresce entre os executores do programa para 57% (6.2) e é ainda maior entre os trabalhadores, com 74% (6.3). Chega-se a uma média de 60% (6.1) da visão da universidade tida como fechada para a sociedade. Trata-se de uma visão na qual a universidade permanece encastelada em seu próprio mundo e forma indivíduos comprometidos, basicamente, com a ideologia das elites, ou seja, uma instituição que vem exercendo o papel de treinadora, recicladora de pessoas, em geral das classes dominantes. Convém destacar, sobre concepções de extensão, a terceira possibilidade como uma visão de que a extensão universitária pode ser entendida como um trabalho social útil e, necessariamente, como um processo educativo, cultural e científico. São expressivos, contudo, os resultados do item 7.3 entre os coordenadores, executores e nos documentos produzidos pelo projeto, com percentuais de 58%, 61% e 80%, respectivamente. Concebe-se como um trabalho realizado junto à comunidade pela universidade ou seus agentes (estudantes e professores), rompendo a dicotomia existente entre os pólos dessa relação. É uma perspectiva onde o trabalho configura-se numa dimensão de continuidade e de permanência, em processos de realimentação, valorizando a prática e a reflexão sobre essa prática. Esta concepção de extensão torna viável a atividade de ensino entre aqueles adultos que se alfabetizam, a pesquisa sobre metodologias e os próprios conteúdos dessas atividades extensionistas. Uma perspectiva que também é seguida, ao se analisar o projeto de extensão Praia de Campina96 (Tabela 3).
96
Projeto que se realiza no Vale do Rio Mamanguape, na região canavieira da Paraíba, analisado durante a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000).
195
196
TABELA 3 PROJETO PRAIA DE CAMPINA - DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO Temas
I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
IV - Configuração dos interesses Sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidadesociedade
VII - Concepção de extensão universitária
VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional
X - Pedagogia da extensão Universitária
A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores
ITENS
D%
Fi
15 04
B % 15 04
C%
1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a sociedade. 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. Absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: (contradições de classe) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes Dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito Ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social (construção de nova hegemonia) 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso Transformador 9.1 - Agente dos interesses do mercado (capital) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes Dominadas
19 09
10 10
92 33
% itens 16 06
81 02 52 46 --
81 01 59 40 --
72 -37 63 75
80 -17 83 50
442 08 455 516 04
78 01 47 52 36
66
100 --
25 --
--
05
46
02 03 47 253 04 181
18 01 16 83 02 98
0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos
A%
34 -39 61 12 88
05 32 63 -100
01 07 92 -100
50 -20 80 -100
55
82
65
--
68
69
21 24
09 09
31 04
50 50
18 13
18 13
25 28 47
63 24 13
68 13 19
95 -05
73 24 25
60 19 21
01
01
--
--
03
01
58
63
29
11
361
50
41
36
71
89
360
49
42
64
--
100
23
50
29
04
--
--
05
10
29
32
100
--
18
40
01 99
-100
-100
-100
01 389
01 99
Fgi
% tema
567
16
979
28
11
01
303
08
185
05
99
03
135
04
724
21
46
02
408
12
Fi - Freqüência de indicadores Fgi - Freqüência geral dos indicadores
Destaca-se, aqui, a terceira possibilidade que se manifesta em 47% (7.3), que é a extensão como um processo educativo, cultural e científico, assumido a partir da posição das classes subalternas, buscando contribuir para a construção de uma outra hegemonia. Nesse sentido, a extensão é um trabalho social útil a serviço das classes subalternas. O processo que se estabelece, por conta dessa concepção, envolve a universidade e a sociedade, propondo uma relação efetiva entre elas a partir da sua clara diferenciação, considerando as suas especificidades. O conhecimento aí gerado é resultado da produção coletiva e deve estar voltado ao trabalho acadêmico universitário e à organização coletiva das classes dominadas. Trata-se de um trabalho que pretende apropriar-se do saber da universidade e do saber dessas classes, dessas populações ou comunidades, para, num processo de reflexão e reelaboração, possibilitar nova apropriação desse saber. Um trabalho útil que, segundo o depoimento de um dos entrevistados, serve para “organizar o homem do campo e fazer com que ele se valorize com o seu pequeno pedaço de terra”. Mesmo em projetos de extensão voltados à tecnologia, também se apresenta a perspectiva da extensão como trabalho social útil. No Projeto Qualidade de Vida, analisado nesta pesquisa97, a presença da visão de extensão como via de mão única está 97
Projeto em desenvolvimento na Universidade Federal de Campina Grande (PB) que busca o tratamento do lixo, acompanhado de um processo de educação dos moradores de um bairro da cidade e a geração de renda.
196
197
representada entre coordenadores e executores com percentuais de 69% e 83%, respectivamente. “É justamente aí onde eu vejo essa parte da extensão. Eu vejo como um trabalho da universidade, juntamente com a sociedade, com o objetivo de quê? De assessorar essa comunidade, transmitindo conhecimentos que ela não adquiriu. A gente está na universidade, tem esse conhecimento que precisa ser repassado para a sociedade”98.
Mas a visão da extensão como uma possibilidade de trabalho social útil aparece, entre os coordenadores, com um percentual de 17%. É um percentual expressivo, considerando-se o fato de que esse tema revela-se com 6% no conjunto dos temas do projeto, enquanto que este mesmo item projeta um percentual de 12% entre os demais itens. Esse direcionamento conceitual – extensão como trabalho social útil - é manifestado nos projetos analisados99. Convém destacar que os indicadores, em torno desta perspectiva, apresentaram percentuais elevados nos projetos CERESAT e Escola Zé Peão, particularmente entre os executores, com percentuais de 63% e 61%, respectivamente. Entre os coordenadores do Projeto Praia de Campina, atinge-se o percentual de 47% e 13% entre os executores. No Projeto Qualidade de Vida, essa concepção expressa-se entre os coordenadores com 13%, considerado, ainda um índice representativo.
Canaviais do vale do Mamanguape (PB) Sendo trabalho social e útil, a efetivação da extensão gera um produto que transforma a natureza, na medida em que cria cultura. É um trabalho imbuído da sua dimensão educativa. O produto desse trabalho, todavia, passa a pertencer tanto às equipes dos projetos de extensão, na universidade, quanto à própria comunidade ou aos 98
Estudante e membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para a pesquisa: Extensão Universitária – uma análise crítica.(2000).
99
A pesquisa Extensão universitária: uma análise crítica analisou dez temas, entre eles, a concepção de extensão presente nos projetos, buscando os indicadores para a concepção de extensão como via de mão única, via de mão dupla e trabalho social, destacando a visão dos coordenadores, dos executores e de membros da comunidade.
197
198
grupos comunitários, para aplicação na organização de seus movimentos. Esta tem sido uma busca constante de apropriação do produto gerado nas atividades de extensão. Essa dimensão da extensão possibilita a superação da alienação gerada pela não posse do produto do trabalho por parte de seus produtores, no modo de produção capitalista. Todos os produtores devem apropriar-se desse produto do trabalho, que é o saber. Esse trabalho caracteriza-se como um espaço de atuação de todos os que buscam a organização de seus grupos, de sua comunidade ou de sua classe. Deve ser um espaço onde existem processos de realimentação dos conhecimentos, que estão sendo produzidos, e outros que são gerados a partir desses últimos. Esse trabalho deve expressar uma relação íntima entre a teoria e a prática social em desenvolvimento. Nessa perspectiva de extensão, a Tabela 4 a seguir apresenta resultados 100 que mostram dados convidativos para manter-se a possibilidade de conceituação da extensão, a partir das experiências em desenvolvimento em vários cenários de práticas extensionistas.
TABELA 4 CONCEPÇÕES DE EXTENSAO UNIVERSITÁRIA INDICADORES
DÉCADA DE 80
DÉCADA DE 90
Concepção de extensão como via de mão única
68,92%
51,93%
Concepção de extensão como via de mão dupla
11,33%
25,95%
19,75%
21,97%
Surgimento da extensão como trabalho social útil
Fonte: Dados do relatório de Sílvio Carlos Fernandes da Silva, da pesquisa Extensão Universitária como Trabalho Social, que analisou a concepção de extensão nas décadas de 80 e 90, presente em atividades extensionistas, na Universidade Federal da Paraíba.
Há um expressivo decréscimo percentual da presença dos indicadores de mão única nas décadas de 80 e 90. Em contrapartida, há um crescimento da visão de extensão como mão dupla, expressando a aplicação do conceito de extensão, na visão do Fórum, presentes nos projetos dessas décadas, e o aparecimento da perspectiva de reconceituação da extensão como um trabalho social útil, em vários projetos e atividades, com percentuais de 19,75% na década de 80 para 21,97% na década de 90. Contudo, é importante a perspectiva da extensão na ótica do trabalho, mas, ainda, não encerra a discussão. A partir dos dados apresentados dessas pesquisas, uma 100
Pesquisa desenvolvida no período de maio de 1998 a setembro de 2000 (Extensão universitária como trabalho social), pelo aluno Sílvio Carlos Fernandes da Silva e pelas alunas Karla Lucena de Souza, Izabel Marinho da Costa e Andréa Tavares A. Magalhães, como bolsistas do PIBIC/CNPQ/UFPB, sob a coordenação do Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto. A pesquisa analisou, além de outros aspectos das atividades extensionistas, as concepções de extensão presentes nessas atividades, na Universidade Federal da Paraíba, nas décadas de 80 e 90. Seguiu também o mesmo itinerário metodológico da pesquisa nos projetos já apresentados.
198
199
questão impõe-se: que dimensões pode ter esse trabalho101, como uma categoria filosófica fundante para a extensão? Esta pesquisa remete à discussão dessa temática central, muito discutida e complexa, que tem apresentado possibilidades concretas, no sentido de contribuir para outras e, talvez, melhores análises sobre a realidade desse mundo atual, além de outros possíveis redirecionamentos práticos. É um mundo que aponta a necessidade da discussão, nos dias de hoje, sobre o papel da universidade, em particular, da extensão universitária.
A extensão não alienante A extensão como um trabalho102 não pode realizar-se, adquirindo um papel alienante, possibilidade existente inclusive se assumir essa dimensão. Como escapar da alienação nesse tipo de fazer acadêmico, se o trabalho alienado é possível? Como o trabalho adquire essa dimensão? Nessa busca, Marx (1979: 89) inicia seu estudo sobre essa categoria teórica, aceitando os conceitos utilizados pela economia clássica, tais como: a propriedade privada, os salários, os lucros e arrendamento, a competição, o conceito de valor de trabalho, a separação do trabalho, capital e terra, como também a divisão do trabalho. É sobre essa base empírica que constrói a sua crítica, constatando que o trabalhador, na perspectiva da economia clássica e, sobretudo, nas bases do modo de produção estabelecido, o capitalismo, “afunda até um nível de mercadoria, e uma mercadoria das mais deploráveis; que a miséria do trabalhador aumenta com o poder e o volume de sua produção”. Destaca ainda que a competição estabelecida no capitalismo gera o acúmulo de capital em poucas mãos restaurando, dessa forma, o monopólio. Enfim, essa dualidade existente entre capitalista e proprietário de terra, em relação ao trabalhador agrícola e operário, precisa desaparecer. Um fato econômico relevante é que o trabalhador está ficando mais pobre. Sua pobreza relaciona-se com a sua produção. “O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento do valor do mundo das coisas” (ibid.: 90). Aqui, aparece um traço fundamental distanciador das concepções anteriores de trabalho, cuja preocupação (economia clássica) estava voltada à dimensão da produção de mera mercadoria, ou como atividade externa ao homem e gerador de riqueza. Toma corpo o mundo humano ou a dimensão humana do trabalho, que surge como um elemento novo, com uma dimensão filosófica fundamental dessa categoria e da perspectiva de se vislumbrar a extensão num campo teórico e de realizações sem alienação. Ver a extensão como um trabalho conduz à sua compreensão provida da dimensão humana, da essência do homem. O trabalho, portanto, “não cria apenas bens; ele também produz a si mesmo e o trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens” (ibid.: 90). Como um trabalho, o fazer extensão só pode resgatar o caráter humano do mesmo. É o trabalho como atividade racional humana na produção tanto de bens materiais como de bens espirituais. Assim, inicia-se 101
Sugerimos leitura mais detalhada da categoria trabalho em três obras de Marx: Os manuscritos econômicos e filosóficos, a ideologia alemã e o capital, particularmente o livro I, volume I, no seu V capítulo. Nestes livros, identifica-se a evolução do conceito em Marx, contida inicialmente nos Manuscritos. O livro, A Ideologia Alemã, caracteriza a divisão do trabalho e, de forma mais elaborada, em O Capital, o processo do trabalho.
102
Esta discussão teórica sobre o trabalho não é uma novidade para a filosofia nem para a teoria econômica. Não é criação do século XIX, posto que foi apresentada em séculos anteriores. É a partir da concepção de trabalho contida nas obras dos economistas políticos, considerados clássicos, como Ricardo e Smith, bem como nas formulações idealistas dos filósofos alemães, destacando Hegel, que Marx começa a desenvolver sua crítica sobre a formulação teórica desses pensadores e de uma forma mais ampla, sobre o conceito de trabalho.
199
200
a formulação do conceito de trabalho alienado e, conseqüentemente, de alienação. O objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, passa a não mais pertencer ao produtor. Passa a se lhe opor como um ser alienado, tornando-se uma força independente do próprio produtor. Tem-se então que esse produto “é trabalho incorporado em um objeto e convertido em coisa física; esse produto é uma objetificação do trabalho” (ibid.: 91). O seu exercício ou a sua execução dá-se, portanto, simultaneamente à sua objetificação. A execução do fazer extensão – um trabalho - vai aparecer como uma perversão do trabalhador, daqueles envolvidos nas atividades de extensão. A sua objetificação, dessa forma, torna-se uma perda e uma servidão em relação ao objeto “e a apropriação como alienação” (ibid.: 91). É um mecanismo em que o trabalhador não só perde o objeto, resultado de seu trabalho, como também coisas que lhe são essenciais, como até mesmo sua própria vida. Para Marx, “a apropriação do objeto aparece como alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado pelo seu produto, o capital” (ibid.: 91). Tudo isso é decorrente do fato de o trabalhador relacionar-se, agora, com o produto de seu trabalho que lhe é alienado. Isto remonta ao fazer extensão, como atividade geradora de um produto, podendo ser o conhecimento, mas que exige o envolvimento dos que atuam nessa produção, personagens da universidade e da comunidade e, ainda, a posse do produto por todos os seus produtores. Nessa relação entre produtor e objeto alienado, o trabalhador não pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensorial. E este é o material onde ocorre a concretização do trabalho, onde o produtor atua e por meio de tal ação se produzem as coisas. O trabalhador se converte em escravo do seu objeto. Em conversas, durante esta pesquisa, era comum ouvir-se afirmação do tipo: “Esta Usina Catende é a minha vida”. Em primeiro lugar, por receber “um objeto de trabalho, isto é, receber trabalho, e em segundo lugar por receber meios de subsistência. Assim, o objeto o habilita a existir primeiro como trabalhador e depois como sujeito físico” (ibid.: 92). Essa alienação vai se expressar através da seguinte compreensão: quanto mais ele produzir, menos terá para consumir; quanto mais ele produzir, mais perderá seu valor. Ou, nas palavras de Marx: “Quanto mais inteligência revela o trabalho, tanto mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da natureza” (ibid.: 92). A análise desenvolve-se sobre o trabalho, mas agora como fruto da relação entre trabalhador e produção. Assim, a alienação passa a ser vista, ao externar-se frente ao resultado da objetificação e, frente ao processo de produção, dentro da própria atividade produtiva, ocorrendo no próprio ato da produtividade. Essa alienação do trabalho não é uma simples abstração, uma vez que se caracteriza de várias formas. Em sendo parte da natureza do produtor, com a objetificação, o trabalho se externa ao produtor, ao trabalhador. Passa a apresentar-se não como um sentimento de bem-estar, mas de sofrimento, tornando-se não um ato voluntário, mas uma ação imposta e forçada. Ao invés de se constituir em algo gerador de satisfação de uma necessidade, torna-se apenas meio para satisfazer outras necessidades, sobretudo, porque passa a pertencer a outros e não mais ao trabalhador. Tudo isto dimensionará o trabalho alienado com as seguintes características: a primeira destaca essa relação do trabalhador com o produto de seu trabalho, expressando-se como objeto que lhe é estranho e que o domina; a segunda diz respeito à sua relação como ato de produção dentro de si próprio, caracterizando-se, dessa forma, como uma auto-alienação. A partir daí, introduz-se uma terceira característica, gerada das anteriores, que é a seguinte: “O homem é um ente-espécie (consciente não apenas de si mesmo como um indivíduo, mas da espécie ou „essência humana‟) não apenas no sentido de
200
201
que ele faz da comunidade (sua própria, assim como as de outras coisas) seu objeto, tanto prática quanto teoricamente, mas também (e isso é simplesmente outra expressão da mesma coisa) no sentido de tratar-se a si mesmo como a espécie vivente, atual, como um ser universal conseqüentemente livre” (ibid.: 95).
A dimensão de universalidade, requerida por Marx para o homem, está justificada considerando-se a base física. Nessa base, a espécie humana vive da natureza inorgânica, a qual torna o homem mais universal que um animal. Há todo um movimento teórico de demonstração dessa universalidade, expresso na prática por duas outras dimensões: “Como meio direto de vida, e, igualmente, como o objeto material e o instrumento de sua atividade vital” (ibid.: 95). Assim, pode afirmar-se que a vida tanto física como mental do homem e a natureza são interdependentes. Significa dizer que a natureza é interdependente em relação a si mesma, já que o homem é parte dessa natureza. Além disso, como qualquer outra espécie na natureza, o homem é um produto dessa natureza, sendo também por ela limitado. Mas ao homem se torna possível superar os limites impostos e, assim, subordinar ao seu poder a própria natureza. Ao homem se torna possível a transformação desse conjunto denominado de corpo inorgânico. É isto, inclusive, que o distingue como espécie das demais espécies de animais. Encontra-se, então, uma perfeita sincronia nos processos de alienação que estão ocorrendo nesse nível da natureza e da espécie. “Tal como o trabalho alienado: 1) aliena a natureza do homem e 2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital, assim também o aliena da espécie”. Ele transforma a vida da espécie em uma forma de vida individual. Em primeiro lugar, ele aliena a vida da espécie e a vida individual, e posteriormente transforma a segunda, como uma abstração, em finalidade da primeira, também em sua forma abstrata e alienada” (ibid.: 95).
A vida produtiva é, portanto, a vida da espécie. Assim, observa-se que é no tipo de atividade vital onde reside o caráter de uma espécie, o seu caráter como espécie. Nesse sentido, o caráter da espécie dos seres humanos se evidencia pela atividade livre e consciente. O animal, como se sabe, não distingue a si mesmo de sua atividade vital. Ele é sua própria atividade. Pela extensão, isto não pode ocorrer, simplesmente. Essa atividade humana poderá ser considerada como uma atividade vital, isto é, um objeto tanto de sua vontade como de sua consciência. Uma atividade que exige que seja consciente, distinguindo o trabalho da extensão das tantas outras atividades vitais de animais ou mesmo de humanos, constituindo-o como um ente-espécie. Pela extensão essa atividade precisa ser sua e ser uma atividade livre. Em não sendo entendida como uma atividade livre, esse trabalho extensionista inverte a relação, pois se torna alienado. Este trabalho só terá sentido unicamente como um meio para a sua existência. O homem é um ente-espécie, exatamente por seu trabalho exercido sobre o mundo objetivo. Essa produção é, em conseqüência, a sua vida ativa como espécie e, graças a ela, a natureza se apresenta como trabalho e realidade do ser humano. Assim, se pode definir o objetivo do trabalho: “A objetificação da vida-espécie do homem, pois ele não mais se reproduz a si mesmo apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente e em sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo por ele construído. Por conseguinte, enquanto o trabalho alienado afasta o objeto da produção do
201
202
homem, também afasta sua vida-espécie, sua objetividade real como enteespécie, e muda a superioridade sobre os animais em uma inferioridade, na medida em que seu corpo inorgânico, a natureza, é afastado dele” (ibid.: 96).
Dessa forma, o trabalho alienado, expresso e realizado a partir de tantas outras concepções de extensão, transforma tanto a atividade livre e dirigida pelo próprio indivíduo em um meio, quanto a vida do homem, como membro da espécie, também em um meio de existência física. Em conseqüência, o trabalho alienado aliena o homem de seu próprio corpo, a natureza intrínseca de sua vida mental e de sua vida humana. Além disso, o homem é alienado por outros homens (professor, alunos ou membros de comunidades), significando que, enquanto cada um é alienado por outros, cada um dos outros é alienado da vida humana. Dessa forma, “o que é verdadeiro quanto à relação do homem com seu trabalho, com o produto desse trabalho e consigo mesmo, também o é quanto à sua relação com outros homens, com o trabalho deles e com os objetos desse trabalho” (ibid.: 97). O conceito de trabalho alienado, em Marx, teve início não a partir de formulações meramente ideais, mas basicamente de um fato econômico e, portanto, possível de se expressar e de se revelar na realidade. Esse passa a pertencer a um ser estranho, que não o trabalhador. A esse ser estranho pertencem tanto o trabalho como o produto deste. A esse ser estranho o trabalho é devotado, a ele se destina o produto do trabalho. Esse ser estranho, em não sendo nem os deuses nem a natureza, só pode ser o próprio homem. Nesse sentido, Marx afirma: “toda auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, aparece na relação que ele postula entre os outros homens, ele próprio e a natureza” (ibid.: 98). O trabalho e o capital se tornam estranhos um para o outro. Relacionam-se, contudo, de maneira acidental e externa, mas isso se expõe na realidade. Com essa separação, se o capital não existe mais para o trabalhador, este deixa de existir para si e conseqüentemente a existir não mais como ser humano podendo, portanto, não ter mais emprego ou salário e, assim, morrer à míngua. “O trabalhador só é trabalhador quando existe como capital para si próprio, e só existe como capital quando há capital para ele. A existência do capital é a existência dele, sua vida, visto determinar o conteúdo de sua vida independentemente dele” (ibid.: 103).
Dessa forma, a produção da atividade humana - o trabalho - se torna estranha a si mesmo, ao homem e à natureza; e torna-se estranha tanto à consciência do homem como à possibilidade de realização da vida humana. Numa situação como essa, perde-se o significado de trabalho social como expressão genuína da vida comunal. Ele não pode não pode, portanto, conduzir a uma negação do homem. A visão da extensão como um trabalho social é um ato acadêmico e, estritamente, promotor da positividade do humano. O trabalho se torna fundante, pois se constitui como o resgate da dimensão humana do próprio trabalho com a superação daquilo que está gerando essa negação. Isso se torna possível com a superação da propriedade privada, possibilitando-se que o processo de trabalho passe a produzir não só objetos materiais como também o próprio homem, a si mesmo e aos outros homens. É uma existência que tem o homem como sujeito, constituindo-se em ponto de partida e resultado desse movimento. Havendo a produção do conhecimento pelo trabalho extensionista e a conseqüente posse do mesmo pelos participantes, resgata-se, dessa forma, a dimensão social do trabalho. A extensão se 202
203
estabelece como um trabalho social, constituindo-se como expressão de um caráter social, porém como caráter universal de todo esse movimento, em que a sociedade, ao mesmo tempo que produz o homem, também é produzida por ele. Dentro dessa visão, pode-se compreender o que expressa Marx: “A atividade e o espírito são sociais em seu conteúdo, assim como em sua origem; eles são atividade social e espírito social. A significação humana da natureza só existe para o homem social, porque só neste caso a natureza é um laço com outros homens, a base de sua existência para outros e da existência destes para ele. Só, então, a natureza é a base da própria experiência humana dele e um elemento vital da realidade humana” (ibid.: 118).
Esse movimento torna a existência natural do homem a sua própria existência humana. A natureza, por sua vez, se torna humana para ele. A sociedade, como conseqüência, é expressão do produto da união entre a natureza e o homem, realizando um naturalismo no próprio homem e um humanismo na própria natureza. Assim, a extensão só terá um papel importante no âmbito da instituição universitária e como uma possibilidade teórica, caso venha a se constituir como um trabalho em condição de contribuir para a humanização do próprio homem. A extensão, contudo, poderá sofrer da mesma mazela do trabalho alienado, passando a ser geradora da divisão social do trabalho, sobretudo quando promovida fora de uma realidade concreta.
A divisão do trabalho A extensão, nos marcos da categoria trabalho, proporciona uma preocupação teórica permanente na sua realização103. A realidade circundante do fazer extensão sempre mantém o convite à necessária conexão entre a crítica que precisa permanecer no fazer extensionista, com o seu próprio meio material. É este meio material que proporcionará a não transformação das análises sobre extensão em dogmas ou arbitrariedades, escapando de um fazer abstrato, prisioneiro puramente da imaginação. É importante o pensamento a partir de indivíduos reais, de sua ação, bem como de suas condições materiais de vida, tanto aquelas já existentes como as produzidas por sua ação. Nesse sentido, declara Marx (1996.: 27): “O primeiro ato histórico destes indivíduos, pelo qual se distinguem dos animais, não é o fato de pensar, mas o de produzir seus meios de vida”104. A ação extensionista terá importância à medida que tiver, de forma explícita, uma utilidade produtiva voltada à vida humana. Após a análise sobre o conceito de trabalho e o destaque ao trabalho alienado, urge uma discussão sobre a sua divisão, possível no trabalho extensionista. Essa divisão, historicamente, vem acontecendo entre o trabalho industrial e comercial, de um lado, e o trabalho agrícola, de outro, acompanhado, hoje, por uma divisão mais profunda, que é o trabalho concreto(manual) e o trabalho intelectual. Essa divisão gera a separação entre a cidade e o campo e, como conseqüência, os conflitos decorrentes da diferenciação dos interesses que estão em campos opostos. O trabalho industrial, ou mesmo o trabalho comercial, também apresenta sua separação interna. Nessa linha e em escala maior, afirma Marx: “Ao mesmo tempo, através da divisão do trabalho dentro destes diferentes ramos, desenvolvem-se diferentes subdivisões entre os indivíduos que 103
Nas citações da Ideologia Alemã de Marx e Engels, aparecerá apenas o nome de Marx.
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Ver maiores detalhes sobre a questão nas notas desenvolvidas por Engels, no Manifesto Comunista.
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cooperam em determinados trabalhos. A posição de tais subdivisões particulares umas em relação a outras é condicionada pelo modo pelo qual se exerce o trabalho agrícola, industrial e comercial (patriarcalismo, escravidão, estamentos e classes). Estas mesmas condições mostram-se ao se desenvolver o intercâmbio entre as diferentes nações” (ibid.: 29).
Constituindo-se de várias fases do desenvolvimento, a divisão do trabalho gera diferenciadas formas de propriedades, levando Marx a afirmar: “a da nova fase da divisão do trabalho determina igualmente as relações dos indivíduos entre si, no que se refere ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho” (ibid.: 29). Assim, a primeira forma de propriedade apresentada é a propriedade tribal, uma fase da sociedade em que um povo se alimenta da caça, da pesca, da criação de gado e da agricultura. Nesta fase de desenvolvimento, a divisão do trabalho se apresenta pouco expressiva, resumindo-se “a uma maior extensão da divisão natural no seio da família. A estrutura social limita-se a uma extensão da família: os chefes patriarcais da tribo, abaixo deles os membros da tribo e finalmente os escravos” (ibid.: 30). A segunda forma de propriedade é a comunal e estatal, encontrada na antiguidade, e que provém da reunião de tribos formando a cidade, gerada por contrato ou mesmo pela conquista. Destaque-se que, mesmo aí, ainda subsiste a escravidão. Marx observa que, ao lado desse modelo de propriedade, surge a propriedade móvel e, mais tarde, a imóvel, embora como forma estranha ao que está estabelecido como modelo, porém mantida subordinada à propriedade comunal. Este tipo de propriedade privada, ainda coletiva, vai perdendo espaço com o surgimento da propriedade privada imóvel. Com isso, a divisão do trabalho é mais desenvolvida. Estabelece-se, por outro lado, com maior radicalidade a divisão entre o campo e a cidade, em particular quanto aos seus interesses. A terceira forma de propriedade gerada dessa divisão é a feudal ou estamental. Se, na antiguidade, partia-se da cidade, na Idade Média, partia-se do campo. Isto resultava da existência de populações dispersas e disseminadas pelo campo e para as quais os conquistadores nada trouxeram de incremento, tendo como conseqüência essa inversão de ponto de partida. A explicação dessa mudança pode ser vista da seguinte maneira: “Ao contrário da Grécia e de Roma, o desenvolvimento feudal inicia-se, pois, em terreno muito mais extenso, preparado pelas conquistas romanas e pela expansão da agricultura e está, desde o começo, com elas relacionado. Os últimos séculos do Império Romano em declínio e as próprias conquistas dos bárbaros destruíram grande quantidade de forças produtivas; a agricultura declinara, a indústria estava em decadência pela falta de mercados, o comércio adormecera ou fora violentamente interrompido, a população, tanto a rural como a urbana, diminuíra. Essas condições preexistentes e o modo de organização da conquista por elas condicionado fizeram com que se desenvolvesse, sob a influência da organização militar germânica, a propriedade feudal” (ibid.: 34).
A comunidade (classe) agora responsável pela produção não era mais a escrava, como nos sistemas antigos, mas composta dos pequenos camponeses servos da gleba. O desenvolvimento dessa forma de propriedade aprofundaria a oposição entre as cidades. Marx mostra que “a essa estrutura feudal da posse da terra correspondia, nas cidades, à propriedade corporativa, à organização feudal dos ofícios. Aqui, a propriedade consistia, principalmente, no trabalho de cada indivíduo” (ibid.: 34). 204
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A divisão do trabalho se apresentava na época feudal, de forma diferenciada na propriedade territorial, lócus do trabalho dos servos. Outro aspecto dessa divisão era o trabalho próprio com pequeno capital que dominaria o trabalho dos oficiais. Ambas as formas estavam condicionadas pela limitada produção resultante do difícil cultivo da terra e também pela indústria do tipo artesanal. Se, por um lado, a divisão do trabalho na agricultura tornava-se mais difícil devido ao cultivo parcelado, gerando uma indústria doméstica de camponeses, por outro, na indústria, a divisão do trabalho ocorria dentro de cada ofício. A partir da Usina Catende, torna-se visível a presença da divisão de trabalho estabelecido no seio dos operários daquela indústria, conduzindo para a autoproteção de cada um na defesa de sua parte, naquele processo de produção de açúcar. Esses operários chegam a exigir da direção do Projeto Catende/Harmonia a realização de cursos para novos operários para aquelas habilidades, ou para os seus próprios filhos. Mas a divisão do trabalho possibilitará que tanto a atividade material como a espiritual, isto é, a atividade e o pensamento (atividade sem pensamento e pensamento sem atividade) desloquem-se para indivíduos diferentes. Segundo Marx, “a possibilidade de não entrarem esses elementos em contradição reside unicamente no fato de que a divisão do trabalho seja novamente superada” (ibid.: 46). Ora, com a divisão do trabalho, a extensão como trabalho social poderá estar permeada de todas essas contradições presentes e concentradas nessa divisão. Surge a divisão do trabalho na família e entre as várias famílias que compõem uma sociedade. Essa divisão entre as famílias, além do mais, é desigual, quantitativa e qualitativamente, tanto em relação ao trabalho como ao seu produto. Surge, então, a contradição entre o interesse do indivíduo ou da família e o interesse coletivo daqueles indivíduos que se relacionam entre si, também tão presentes em todas as formas de exercício extensionista. A esse respeito, Marx conclui: “Desde que há cisão entre o interesse particular e o interesse comum, desde que, por conseguinte, a atividade está dividida não voluntariamente, mas de modo natural, a própria ação do homem converte-se num poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado. Com efeito, desde o instante em que o trabalho começa a ser distribuído, cada um dispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual não pode sair; o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico (crítica à Bruno Bauer), e aí deve permanecer se não quiser perder seus meios de vida” (ibid.: 47).
O aprofundamento dessa divisão teve como conseqüência imediata, resultante da contradição entre as cidades, o nascimento das manufaturas e a superação dos limites da produção corporativa da época. Isso foi possibilitando uma maior diversidade de relações comerciais entre as cidades e, depois, entre as nações. Estabeleceram-se, paulatinamente, as regras de todos os tipos de comércio e também os direitos alfandegários, tributos exigidos pelos senhores feudais aos comerciantes que atravessavam seus territórios. No caso da universidade, esta não escaparia dessa divisão no aspecto acadêmico interno, entre os seus profissionais em suas diversas formações no campo do conhecimento. Além disso, transformou-se em uma instituição que veio atender a essas necessidades de cada modo de produção. É uma divisão que está presente com muito maior expressividade no capitalismo. Pode-se ver, no caso da família, que o indivíduo está ligado por laços da própria família ou da tribo, ou mesmo do solo. Mas há as relações de troca entre as famílias, entre tribos, nações ou mesmo entre indivíduos. Na primeira situação, a troca ocorre 205
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entre a natureza e o homem, uma troca expressa pelo trabalho dos primeiros e os produtos da natureza; na segunda situação, o que ocorre é uma troca entre os próprios indivíduos. Na primeira situação, não existe a separação entre a atividade corporal e a atividade espiritual, enquanto que na segunda essa divisão está, praticamente, realizada. Marx esclarece: “no primeiro caso, a dominação do proprietário sobre os não proprietários pode descansar nas relações pessoais, numa espécie de comunidade; no segundo caso, deve ter tomado uma forma reificada em uma terceira coisa, o dinheiro” (ibid.: 102). A divisão do trabalho arrasta consigo a divisão das condições de trabalho, das ferramentas e dos materiais e também a fragmentação do capital entre diferentes proprietários. Torna-se evidente a luta da extensão por recursos financeiros para a realização de projetos, em contraponto com as definições já existentes para o ensino e para a pesquisa. Estabelece-se, conseqüentemente, a divisão entre trabalho e capital e as diferentes formas de propriedade. Há um processo sincronizado de divisão de trabalho e o aumento da acumulação. Emerge uma fragmentação cada vez mais aguda. Marx conclui afirmando que “o próprio trabalho só pode subsistir sob o pressuposto dessa fragmentação” (ibid.: 104). A extensão universitária tem adquirido essa fragmentação, mesmo sendo considerada como um trabalho social com uma utilidade determinada. Os desafios que se abrem doravante dizem respeito às possibilidades de sua superação.
O processo de trabalho A extensão, vista nos marcos conceituais do trabalho, não precisa se abrir como um processo em que não se vislumbre apenas a produção de valores de uso. Não será possível a compreensão dessa categoria, sem a compreensão da dialeticidade existente nesse processo e de que forma se dá essa produção de valores de uso. Nessa perspectiva, Marx sugere a identificação do trabalho com o próprio mecanismo de utilização da força de trabalho. Para ele (1982: 201), “a utilização da força de trabalho é o próprio trabalho”. Assim é que o comprador da força do trabalho passa a consumi-la, enquanto que o seu vendedor apenas trabalha. Ao trabalhar, ocorre a superação daquilo que estava existindo no sujeito apenas de forma potencial. Agora esse sujeito é um trabalhador e detém a força de trabalho em ação. O realizador da extensão, o extensionista, é um trabalhador e detentor de sua força de trabalho em ação. Ora, essa força de trabalho em ação irá transformar as coisas que passam a apresentar uma finalidade, atender a uma necessidade, seja de qualquer ordem, tornando-se mercadorias. O produto da extensão, mesmo que seja o conhecimento, tem valor de mercadoria. Mas essa produção de mercadoria não acontece de forma espontânea ou mesmo arbitrária. Na verdade, está sob o controle daquele que determina que seja produzida tal ou qual mercadoria - o capitalista - produzindo o trabalho um valor de uso particular ao seu artigo também específico. A universidade não está, portanto, imune ao mercado do capitalista. Assim, a realização do trabalho, agora em valor de uso, transformação de algo em mercadoria, só torna possível o seu entendimento a partir da visão de trabalho como processo, que é assim definido por Marx: “O trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e
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pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana” (ibid.: 202).
Essa ação sobre a natureza externa é transformadora não só em relação à natureza que lhe é externa, mas também quanto à sua própria natureza. A extensão adquire a dimensão transformadora constituinte do próprio conceito. Este trabalho sugere um acordar das potencialidades da natureza, porém submetendo-a a seu próprio domínio. Essa conformação é uma pressuposição exclusivamente humana. Este não pode ser comparado com outros como o dos animais - a abelha ou a aranha, por exemplo, - que não planejam as suas atividades. Realizam-nas, apenas, instintivamente. O humano imprime sobre a natureza o seu desejo de realização. É capaz de realizar aquilo que anteriormente passara por sua consciência, sem, contudo, deixar de entender a anterioridade da realidade sobre a consciência. Estabelece-se nesse tipo de trabalho, uma intencionalidade. Ao definir o trabalho como um processo, Marx apresenta os elementos constituintes desse processo, que são os seguintes: “1) a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio objeto; 2) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; 3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho” (ibid.: 202). Com esse detalhamento dos elementos constituintes do processo, Marx vê a terra e os meios de subsistência que são apresentados ao homem como “objeto universal do trabalho do homem”. Mas há, na natureza, coisas que são separadas do trabalho e de seu meio natural. Essas coisas constituem-se nos objetos do trabalho que são, por sua vez, fornecidos pela própria natureza. O objeto de trabalho, em sendo produzido a partir de trabalho anterior, passa a ser chamado de matéria-prima. Nesse sentido, nem toda matéria-prima é objeto, assim como nem todo objeto de trabalho é matéria-prima. O objeto pode ser considerado como matéria-prima, após ter sido transformado pelo trabalho. O outro elemento dessa dialeticidade é o meio de trabalho, assim definido: “o meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto” (ibid.: 203). Todavia, o trabalhador aproveita as propriedades físicas, químicas e mecânicas das coisas para fazê-las atuar como forças sobre outras coisas. Todo esforço da extensão vai no sentido da posse do seu meio de trabalho para alguma utilidade. Portanto, aquilo de que o extensionista se apossa, excluindo os elementos fornecidos pela natureza, torna-se não o objeto de trabalho, mas o meio de trabalho. Ao adicionar essas outras coisas à sua própria força, estará aumentando sua força corporal e natural. O desenvolvimento da humanidade dá-se também no sentido de, cada vez mais, exigir meios de trabalho mais elaborados. Para Marx, “os meios de trabalho servem para medir o desenvolvimento da força humana de trabalho e, além disso, indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho” (ibid.: 204). Por sua vez, são esses meios usados ou produzidos pelo homem, que irão caracterizar esse processo como estritamente trabalho humano. Os meios de trabalho apresentam, contudo, uma maior abrangência conceitual, considerando-se como tal todas as condições materiais que sejam necessárias para a realização de todo o processo. Assim, a terra continua sendo um meio de trabalho considerado universal, já que oferece o local ao trabalhador. Mas, num sentido amplo, constituem-se em meios de trabalho aqueles resultantes de trabalho anterior. Por exemplo, as estradas, os edifícios, as fábricas, etc. No caso da universidade, em especial, são meios de trabalho todas as formas de conhecimentos ou técnicas adquiridas. A extensão universitária só pode se constituir como uma atividade humana, como um trabalho. Ora, a atividade humana sobre a natureza, no processo de trabalho, 207
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realiza uma transformação. Essa transformação apresenta um determinado fim sobre o objeto, através do instrumental de trabalho. O processo é concluído ao realizar-se no produto. Portanto, o produto é expressão da conclusão do processo de trabalho humano sobre a natureza. Algo que não se realiza por um mero prazer de estar expresso em um produto. Esse produto só terá sentido se atender a uma necessidade humana: “O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou. Concretizou-se e a matéria está trabalhada. O que se manifestava em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado do produto. Ele teceu e o produto é um tecido. Observando-se todo o processo do ponto de vista do resultado, do produto, evidencia-se que meio e objeto de trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho produtivo” (ibid.: 205).
O valor de uso desse processo se expressa como um produto. Nesse processo de produção, esse valor arrasta consigo vários produtos, assim como outros meios de produção e também outros valores de usos, constituindo-se como tal em processos de trabalhos anteriores. Assim é que um valor de uso se torna meio de produção de outro. Tem-se, portanto, que produtos constatados como meio de produção são, normalmente, melhor compreendidos como um produto, sendo também condição de processo de trabalho. Pela extensão, poderão surgir muitas outras formas de conhecimentos ou mesmo de tecnologias para além da produção existente e que ajudarão a organização do processo mesmo do trabalho e da organização dos trabalhadores. Os materiais utilizados nesse processo passam a ser muito diferenciados, sendo alguns deles subsumidos pelo próprio processo. O meio pode, inclusive, consumir o material acessório, presente em um processo de trabalho em que a matéria-prima é a substância principal. Essa diferença entre matéria-prima e matéria assessória desaparece nos processos de fabricação ou em processos de transformações químicas, por exemplo. As reações tidas como irreversíveis não mais recuperam os materiais anteriores ao processo. Elas são transformadas em novo produto eliminando, portanto, as diferenciações existentes no início do processo. Reaparecem, contudo, como um novo produto. Muitas dessas matérias apresentam uma diversidade de propriedades e podem aparecer em variados processos de trabalho, por exemplo, o carvão. Um produto assim pode aparecer útil num processo de trabalho, servindo como meio de trabalho e como matéria-prima. Da mesma forma acontece com a produção do conhecimento no processo de trabalho acadêmico como a extensão universitária. Dessa maneira, uma máquina que esteja sem operacionalidade não serve para um processo de trabalho e se torna inútil. Nessa perspectiva, Marx busca eliminar esse tipo de trabalho nela colocado para tornar-se máquina e considera a importância fundamental daquilo que foi, denominando-o de trabalho vivo. Este precisa apoderar-se das coisas e retirá-las do estado de inércia, inserindo-lhes valores de uso reais e efetivos. Simbolicamente, assim se expressa: “O trabalho, com sua chama, delas se apropria, como se fossem partes do seu organismo, e de acordo com a finalidade que o move lhes empresta vida para cumprirem suas funções; elas são consumidas, mas com um propósito que as torna elementos constitutivos de novos valores de uso, de novos produtos que podem servir ao consumo individual como meios de subsistência ou a novo processo de trabalho como meios de produção” (ibid.: 208).
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Os produtos desse trabalho anterior, contudo, só se realizam nesse processo como valores de uso, estando em contato com o trabalho vivo. Um trabalho útil para a realização de novos produtos e novas transformações. Este processo pela extensão expressa um trabalho social e útil, tendo como um produto político as mudanças sociais e um produto acadêmico – o conhecimento. O trabalho é um processo de consumo, visto que gasta os elementos materiais, tanto os seus objetos como os seus meios. É, entretanto, um consumo produtivo que muito se diferencia do consumo do indivíduo, o qual gasta os materiais como meio de sua sobrevivência. Já o primeiro consome os meios que possibilitam o funcionamento da força de trabalho “posta em ação pelo indivíduo”. O trabalho consome produtos para gerar outros produtos. Pode também se utilizar de produtos para torná-los meios de produção de novos produtos. Esse processo, cheio de elementos abstratos e simples, é assim definido: “Atividade dirigida com o fim de criar valores de uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais” (ibid.: 208).
O processo de trabalho, nas mãos dos capitalistas, apresenta duas questões. A primeira diz respeito ao zelo do capitalista no sentido de que o trabalho se realize da maneira mais apropriada possível, com melhor aplicação dos meios de produção, ausência total de desperdício da matéria-prima e manutenção do instrumental de trabalho. A segunda é o fato de que o produto desse processo pertence ao capitalista e não ao produtor imediato, o trabalhador. O capitalista o detém como uma compra idêntica à de qualquer outra mercadoria do mercado. A força de trabalho do trabalhador, como mercadoria, é negociada nas mesmas bases de qualquer outra mercadoria, como o aluguel de outro animal que foi alugado por um determinado tempo. Ao trabalhador está reservada a luta do retorno de seu trabalho para si mesmo, expressão de um processo de resgate de sua própria existência humana. O processo de extensão como um trabalho social e útil só terá sentido quando permeado da intencionalidade já estabelecida, isto é, a inter-relação entre o ensino e a pesquisa, na perspectiva desse resgate da existência humana. Esta discussão sobre o conceito de extensão como trabalho conduz ao resgate dessa categoria, restabelecendo a descoberta da relação do trabalho na formação do homem e da história. Isto parece contribuir para se ir bem além do papel da universidade, sobretudo pela extensão, como expressão de uma mera atividade reprodutiva do atual modelo de sociedade. Pela extensão, torna-se possível a superação de tantas e possíveis formulações idealistas ao mostrar a relação e não a separação entre o indivíduo e a sociedade, ou ainda, entre a sociedade e a universidade. A extensão como um trabalho social útil acompanhada de intencionalidade, na perspectiva política das transformações, reafirma a unidade entre o indivíduo e a sociedade. Evita-se uma fixação na sociedade como uma abstração e encastela o indivíduo como um ser social. Suas manifestações de vida em comum e realizadas simultaneamente com os outros indivíduos tanto expressam como reafirmam a vida social, possibilitada, necessariamente, pelo trabalho. Surge a criação da sociedade como fruto das relações que são colocadas em existência e condicionadas pela produção material do indivíduo. Ao postular o trabalho como elemento responsável por esse processo criador, Marx também demonstra o papel do trabalho no processo da universalidade do homem, ao resgatá-lo como sujeito do conhecimento e da história. Enfim, a sua essência, no 209
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sentido metafísico e absoluto antes defendido pela filosofia idealista, inexiste de fato. A extensão pode ser, assim, externada como uma atividade que se dirige para a satisfação de uma necessidade. Esta não acontece de imediato, porquanto se realiza através de uma mediação. Ao homem cabe essa mediatização e sua regulação, controlando o intercâmbio orgânico entre si e a natureza. Através do trabalho, o homem também humaniza os próprios sentidos. Sua consciência formada com base nas relações sociais promovidas pelo trabalho se torna condição da natureza social do homem. Sua existência está condicionada e só tem sentido enquanto consciência social, portanto, condicionada e posta em existência pela sociedade. A atividade da extensão não pode ser apresentada, agora, como um produto do indivíduo. Ela está qualificada como trabalho social, como uma propriedade do trabalho que consiste na inseparável ligação da atividade laboral, pura e simples, com a forma social da existência humana. Nessa dimensão, ajuda a resgatar esse tipo de trabalho com a característica de humanização da natureza e do próprio homem. No momento atual, em que estão se tornando tão escassas as possibilidades do emprego, pondo em risco a vida do trabalhador e promovendo ainda mais a desumanização, o trabalho se mantém como categoria fundante, mantendo a sua centralidade quando se busca a construção de um mundo humanizado.
A intencionalidade da extensão Expressando uma síntese, pode-se dizer que a extensão, adquirindo as dimensões filosófica e educativa, intrínsecas à categoria trabalho, pertence a instâncias fundamentais na vida da sociedade. Pela educação, em seu sentido mais amplo, garante-se a preservação dos conhecimentos do passado, que são transmitidos às novas gerações, num processo de acumulação, essencial à qualidade de vida material e espiritual da humanidade, mantendo a sobrevivência da espécie. O trabalho torna-se, portanto, fator de criatividade do humano. Como se vê, o trabalho vem marcando a discussão no campo da extensão. No desenvolvimento das atividades em que o humano defronta-se com a natureza, também realiza, a partir dela própria, uma síntese do particular com o universal. É o trabalho que possibilita o significado da ação social, suas limitações, suas possibilidades e conseqüências, sem nenhum recurso metafísico. Mesmo sendo um ponto de partida, é sobre essa base natural do trabalho que se elevam as relações sociais da espécie humana. Este torna-se uma relação social já a partir da relação estabelecida com a natureza, indicando nas relações de produção, também expressas nas atividades de extensão, o caráter social, indissociável, que acompanha o seu processo. A extensão como trabalho realiza-se como processo constituído através das relações sociais trabalho social útil com uma determinada intencionalidade. A possibilidade de se entender extensão como trabalho social com explícita utilidade opõe-se à visão fragmentada do trabalhador em relação ao processo produtivo, no modo de produção capitalista, determinada pela divisão social do trabalho. O conhecimento da totalidade do processo é transferido para o capital, representado, sobretudo, pela classe social dominante: a burguesia. A posse desse conhecimento reforça as estruturas de dominação que estão inseridas nas relações sociais de produção e vai garantir, pelo lado do capitalista, a reprodução das relações de produção, considerando que o modo de produção capitalista funda-se na separação entre a propriedade do trabalho e a dos meios de produção. Essa separação impõe ao trabalhador a manutenção de sua posição na estrutura das relações de produção, 210
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considerando que a sua sobrevivência estará garantida enquanto ele estiver fornecendo ao mercado a sua força de trabalho, já que esta é seu único bem disponível. A extensão expressa pela realização do trabalho social útil precisa, ainda, efetivar e desenvolver, entre seus participantes a necessidade da conquista de cidadania. Uma cidadania cujo significado está bem cristalino na perspectiva de que seja um processo de formação de cidadão crítico, consciente como sujeito de transformação e também ativo, superando o idealismo contemplativo e interpretativo da natureza. Um trabalho social útil não se exerce apenas a partir dos membros da comunidade universitária: docentes, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade, que é a participação dos membros da comunidade em seus movimentos sociais, sejam dirigentes sindicais ou mesmo as associações, ou outros ambientes, numa relação biunívoca para a qual confluem membros da universidade e participantes desses movimentos. Extensão, como trabalho social útil com a intencionalidade de conectar o ensino e a pesquisa, passa a ser agora exercida pela universidade e por membros de uma comunidade sobre a realidade objetiva. Um trabalho cooparticipado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho onde se buscam objetos de pesquisa para a construção do conhecimento novo ou reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados serão os constituintes de outra dimensão da universidade: o ensino. É também um trabalho de busca de objeto para a pesquisa. A extensão configura-se e concretiza-se como trabalho social útil, imbuído da intencionalidade de pôr em mútua correlação o ensino e a pesquisa. Portanto, é social na medida em que não será uma tarefa individual; é útil, considerando que esse trabalho deverá expressar algum interesse e atender a uma necessidade humana. É, sobretudo, um trabalho que tem na sua origem a intenção de promover o relacionamento entre ensino e pesquisa. Nisto, e fundamentalmente nisto, diferencia-se das dimensões outras da universidade, tratadas separadamente: o ensino e a pesquisa.
Considerações Como trabalho social útil acompanhado dessa intencionalidade, a extensão expressa-se sobre a realidade objetiva e seu produto aos produtores retorna. Isso mostra a extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica, também fundamental, que é a busca de superação da dicotomia entre teoria e prática. Há, então, possibilidade de se direcionarem projetos para a ampliação da hegemonia voltada aos setores subalternos da sociedade, contribuindo para o desvelamento das ideologias dominantes e construindo uma nova estratégia da função social, ou mesmo uma dimensão das atividades de extensão em favor da cultura das classes subalternas. Este é mais um papel possível do aparelho de hegemonia - a universidade - que, através da extensão, pode também direcionar a pesquisa e o ensino para um outro projeto social.
Referências BRASIL/MEC. I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas. Brasília, l987.(mimeo). BRASIL/MEC/UFRN. XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste. Documento Final. Natal, l995. 211
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BRASIL/MEC. Plano Nacional de Extensão. Ministério da Educação. Brasília, 1999. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 2a.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. In Erich Fromm. Conceito Marxista do Homem. 7a. ed. Zahar Editores, Rio de Janeiro, l979. MARX, Karl & ENGELS, F . A ideologia alemã. 10a. edição. Editora Hucitec. São Paulo, l996. MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária – uma análise crítica. Tese doutoral, na UFRJ, Rio de Janeiro: 1997. __________. Extensão universitária – uma análise crítica. Relatório de Pesquisa. João Pessoa: 2000. __________. Usina Catende – entre a doçura e a harmonia. Relatório parcial de pesquisa. Catende: 2002. __________. Extensão universitária, autogestão e educação popular. Relato de pesquisa pós-doutoral, na Universidade de São Paulo(USP). São Paulo: 2003. PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social Democracia. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia de Letras, l989. SILVA, Sílvio Carlos Fernandes; SOUZA, Karla Lucena de; COSTA, Izabel Marinho & MAGALHÃES, Andréa T. A. Extensão universitária como trabalho social. Relatório de Pesquisa/PIBIC/UFPB, João Pessoa, 2000.
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LIVRO 2 EXTENSÃO POPULAR
JOÃO PESSOA – PB 2006
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SUMÁRIO
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APRESENTAÇÃO
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POPULAR
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EXTENSÃO POPULAR
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EXTENSÃO POPULAR E ÉTICA
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EXTENSÃO POPULAR NA ORGANIZAÇÃO DE CURRÍCULO
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EXTENSÃO POPULAR NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO
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CONSIDERAÇÕES
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APRESENTAÇÃO Esta coletânea visa socializar as discussões em desenvolvimento no Grupo de Pesquisa em Extensão Popular, EXTELAR, da Universidade Federal da Paraíba, a partir de variados projetos em extensão, coordenados pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PRAC) e no Programa de Pós-Graduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura), nas áreas rural e urbana. É composta por textos, cuja leitura individualizada dos capítulos não prejudica o entendimento da temática abordada. Em alguns deles, aparecem repetições de aspectos presentes em outros textos que, propositadamente, assim permaneceram devido às características dos próprios - a sua independência. Essas ações extensionistas vêm conduzindo a reflexão de cunho teórico, fruto de pesquisas de mestrandos e doutorandos e de projetos outros em andamento neste grupo, com uma equipe de professores/as, alunos/as da graduação e pós-graduação e pessoas de fora da universidade, tentando mostrar que é possível respostas às dificuldades do interelacionamento entre a extensão, o ensino e a pesquisa. Pela extensão, pode-se mirar o ensino, ou mesmo realizar pesquisas, associando-os em atividades de forma simultânea. Para isto, debatem-se aspectos sociológicos, filosóficos, políticos e metodológicos da extensão, do ensino e da pesquisa, escapando de momentos diretivos de troca e venda de produtos acadêmicos, em certas relações da universidade com a sociedade, por canais extensionistas. Aqui, busca-se a perspectiva de ações acadêmicas com a sociedade, no sentido
de melhor equacionamento do ensino e da pesquisa com a realidade. Atividade de extensão que não só repassa o conhecimento universitário às pessoas ou comunidades, como também, absorve os seus ensinamentos. Neste sentido, pode-se falar da extensão popular como expressão daquele tipo de projeto que contribua com a organização das pessoas e da própria universidade, na perspectiva da aprendizagem mútua de cidadania que seja crítica enquanto propositiva e promotora de ações, mantendo os sonhos de uma sociedade inteiramente banhada pela justiça.
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POPULAR A sabedoria popular antecede a tecne e o saber científico.
Os conteúdos da educação entre os povos têm sido quase os mesmos, isto é, de ordem ética e prática. Nessa primeira dimensão, inserem-se as orientações principistas para o bem viver como, por exemplo: honrar deuses, pais, mães e outras regras de conduta como as da prudência ou, até mesmo, definidas através de mandamentos. A segunda dimensão volta-se a aspectos comunicativos do conhecimento de profissões acumuladas por um povo, denominada pelos gregos de tecne. Paralelamente ao processo educativo dentro dessas perspectivas, desenvolve-se uma sabedoria, expressa por essas regras, preceitos de prudência e mesmo superstições, baseadas na tradição oral que, no caso dos gregos, tornou-se pujante na poesia rural gnômica de Hesíodo105. A formação pela educação, como se vê, toma dois rumos distintos. O rumo dominante passa a criar o tipo humano pautado por um conjunto de idéias pré-fixadas, cabendo-lhe o seu alcance. Esse tipo elevará como fundamental a idéia de beleza, constituindo-se como o componente central do processo educativo. A educação torna-se a busca pelo belo. Nesta perspectiva, está o pensamento de Homero, indiferente ou não, tomando como essencial a utilidade das coisas. Dessa forma, constrói-se o ideário dominante na Paidéia grega, em que a “formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação” (Jaeger, 1995: 25). Contudo, é do campo que vem uma outra percepção do significado da educação e da formação, muito próximo, cronologicamente, dos tempos homéricos. Funda-se outra tradição que, mesmo entre os gregos, dará nova função à poesia, ao objeto dos poemas, relacionando-se com outro público e distanciando-se da perspectiva homérica. O poeta Hesíodo traz para o processo de educação humana a experiência do trabalho, a experiência do agricultor, dirigindo-se a seus conterrâneos, agricultores gregos e pequenos proprietários. Está na poesia hesiódica não mais a medida do homem pela sua árvore genealógica, mas pelo seu trabalho, que o torna independente e feliz. Como se vê, essas duas fontes permeiam os processos educativos dos gregos. Em Homero, há uma esfera social dominante voltada ao mundo e à cultura dos nobres. Uma fonte que dará maior ênfase a uma educação para a qualidade dos nobres e dos heróis, valorizando o heroísmo expresso pelas lutas, em campo aberto, entre cavaleiros nobres e seus adversários. Em Hesíodo, especialmente no seu poema os Erga106, há uma poesia arraigada à terra como representação da vida campestre, rústica, simples, suscitando uma outra fonte da cultura grega: o valor do trabalho. Nessa perspectiva, o 105
Homero e Hesíodo, poetas gregos, que viveram entre os séculos VIII e VII a.C. e marcaram a educação e a formação humana grega e ocidental. 106 Denominados, posteriormente, de Os trabalhos e os dias.
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poeta vê o mundo através de duas lutas sobre a terra e que são distintas, sobressaindose, todavia, a luta abaixo narrada. Desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico apressado em plantar, semear e casa beneficiar; o vizinho inveja ao vizinho apressado atrás da riqueza; boa Luta para os homens esta é; o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao carpinteiro, o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo. Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos” (Hesíodo, 1996: 23-24).
Além disso, a vida campesina expressa o seu heroísmo através da luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores, reclamando também disciplina e contendo qualidades de valor educativo permanente para o humano. Por trabalho os homens são ricos em rebanhos e recursos
E, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais. O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é! (Hesíodo, 1996: 45). Hesíodo condena o ocioso e o compara a zangões de colméias que destroem os esforços das abelhas, salientando ainda mais o papel do trabalho no processo de educação humana, reclamando uma vida de trabalho: “Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho” (Jaeger, 1994: 85). Em “Os trabalhos e os dias”, o poeta exprime maiores detalhamentos da vida no campo, sobretudo na segunda parte: as tradições e as regras sobre o trabalho do campo, em suas várias estações do ano; as regras de vestuário de acordo com essas estações, as suas máximas morais e proibições. A sua forma, o seu conteúdo e a sua estrutura revelam imediatamente a sua herança popular. Opõem-se totalmente à cultura da nobreza. A educação e a prudência na vida do povo não conhecem nada de semelhante à formação da personalidade total do homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza igual no uso das armas e das palavras, nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavalheiresco. Em contrapartida, impõese uma ética vigorosa e constante, que se conserva imutável através dos séculos, na vida material dos componentes e no trabalho diário da sua profissão. Este código é mais real e mais próximo da Terra, embora lhe falte uma grande meta ideal (ibid.: 91). (grifo nosso). Pela primeira vez, Hesíodo preenche essa lacuna, juntando a esses elementos culturais, em forma de poesia, a idéia de direito, expressa através de sua vida de trabalho, no sentido de combate às usurpações promovidas por seu próprio irmão, transformando-se num devoto fervoroso do direito (dike). O trabalho e a justiça tornam217
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se componentes intrínsecos de suas bases educativas. Para ele, trabalho e justiça interdependem-se. Seus versos mostram que: a tribo dos imortais irão, abandonando os homens, respeito e justiça distributiva; e tristes pesares vão deixar aos homens mortais. Contra o mal força não haverá! (Hesíodo, 1996: 37). Não há saída, portanto, para o poeta, entendendo-se que, caso não exista respeito pelo trabalho, também estará comprometida a justiça. Nesse sentido, acrescenta: o excesso é mal ao homem fraco e nem o poderoso
facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona quando em desgraça cai; a rota a seguir pelo outro lado é preferível: leva ao justo; justiça sobrepõe-se a excesso quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo (Hesíodo, 1996: 39). É bom lembrar a figura de Prometeu que, furtando o fogo de Zeus, repassando-o aos humanos e, por isso, é merecedor de castigo. “Oculto retém o deus o vital para os homens; senão comodamente em um só dia trabalharias para teres por um ano, podendo em ócio ficar” (Hesíodo, 1996: 25). O raio do soberano do Olimpo não mais será orientado em proveito dos mortais, não mais garantirá o sustento através do produto da terra, de forma natural. O surgimento do trabalho é expressão do conflito entre Zeus e Prometeu e, também, da separação entre deuses e humanos que viviam juntos. “Agora, o homem deverá trabalhar sua terra para conseguir frutos. É o fim da idade do ouro, cujo mito marca claramente a oposição entre a fecundidade e o trabalho” (Hesíodo, 1979: 13). A obra “Os trabalhos e os dias” constitui um fecho da expressão educativa fundada na forma descritiva da terra, através do trabalho cotidiano, revelando a totalidade da vida, seu ritmo e beleza, justeza e honradez, que fundamentam a ordem moral do mundo, englobando, ainda, uma ética do trabalho e da profissão que não vivem separados no pensamento hesiódico. Esse rico tesouro experiencial deriva, através da vida e do trabalho, de uma tradição milenar já bastante enraizada, externando um vigor dessa sua realidade que deixa de lado o convencionalismo poético de alguns cantos homéricos. Um vigor que só estimula, com toda a plenitude, a vida de trabalho no campo. Hesíodo torna-se um arauto dessa intimidade com a terra, planeando os próprios valores nesse estilo de viver, encontrando, mesmo na aspereza e nas atividades do dia-a-dia, um significado e uma finalidade. Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular, excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a sua própria forma e o seu ethos exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida (Jaeger, 1994: 103). (grifo nosso)
O conteúdo dos poemas de Hesíodo tem compreensão limitada aos camponeses, marcados pelo estilo próprio de viver e de se identificar com aquelas características próprias da vida campestre. Já o conteúdo moral implícito é acessível a qualquer povo. 218
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Mas, a identificação maior da educação grega não está no campo. É na polis onde se realiza a formação mais marcante e acabada. Todavia, importância igual, ou mesmo maior, foi dada a Hesíodo pelo povo grego, ao torná-lo um educador que está orientado para os ideais do trabalho e da justiça. Desde a sua época, ele censurava senhores venais que, quando do exercício de função de julgamento, atropelavam o direito. Direito que se transforma em luta de classe, antecipando-o como um reclamo universal. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos” (Jaeger, 1994: 134). A dimensão do ser justo passa a ter significado concreto entre os gregos, como aquele que obedece à lei e se regula por suas disposições e, mesmo na guerra, está cumprindo o seu dever. Habitualmente, as virtudes foram expressas em quatro: a fortaleza, a piedade, a justiça e a prudência. É na justiça, contudo, que todas estão concentradas, considerando que esta, no sentido mais geral, para além do jurídico, engloba a totalidade das normas morais e políticas. Nessa organização de Estado, fundamentado na noção do direito para todos, é que foi se pautar a vida na polis grega, criando a figura do cidadão, um novo tipo para uma nova comunidade. A presença agora do Estado passa a dar dupla conformação política na vida humana: uma vida privada e uma vida pública, no espaço da polis. Uma rigorosa distinção se estabelece entre aquilo que lhe é próprio e aquilo que é comum. Um modo de vida que deixa de lado a dimensão da educação hesiódica, pautado pela idéia do trabalho, impregnado de um conteúdo da vida rural. Embora reconhecendo esta importância, o processo civilizatório grego tomou um rumo completamente diverso. A dimensão educativa marcante, em Hesíodo, estava voltada à realidade mesma e, além disso, exigia dessa realidade o ponto de partida para o seu desenvolvimento. Um tipo de educação que busca a afirmação daquele que se educa. Educação fora de qualquer dimensão ideal, mas sim, fruto do ambiente, possibilitando a dimensão de universalidade, exigida por qualquer processo educativo. A educação nesses moldes conduz para a afirmação do educando ao se voltar à sua realidade e, sobretudo, por ter nessa realidade o ponto de partida e o ponto de chegada do ato educativo. Enquanto se afirma, procura a justiça como a medida necessária ao indivíduo, definindo a reivindicação do direito para todos. Estão se constituindo, dessa maneira, os elementos constantes do processo educativo, voltados a todos aqueles que não são reconhecidos (as maiorias da população ou os populares), sendo-lhes negada a justiça. A procura por justiça e pela afirmação de um povo, de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do processo educativo, tornouse traço constitutivo dos movimentos de contestação durante a Idade Média. Está presente, inclusive, nos dias atuais, como uma marca dos movimentos sociais populares, o grande esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como forma de definição de seu campo de ação política e educativa. Para Calado (1999: 23), essa busca de construção da identidade “implica, de um lado, o esforço de identificar e superar adversidades interpostas a tal caminhada, e, de outro, perseguir determinado alvo, objetivos ou mesmo um projeto alternativo „ao que aí está‟ “. Este aspecto do popular já se esboçara em comunidades antigas, como a judaica, com as mesmas características construtoras de identidade. A Bíblia narra vários episódios mostrando revoltas populares presentes na história do povo judeu. Revoltas em que o povo lutava pela sobrevivência e pela afirmação de sua identidade e por justiça para todos. Nos primórdios da Idade Média, são marcantes os movimentos de contestação contra a cobrança obrigatória do dízimo e o acúmulo de terras por parte da Igreja Cristã. Para o historiador Hoonaert (1986), constituíram-se como “um grande movimento 219
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popular”. Ainda na Idade Média, segundo Calado (1999), ocorreram vários movimentos sociais populares com características semelhantes àquelas presentes na Antigüidade e, marcadamente, com dimensões subversivas à situação em vigor. Expressaram sua própria afirmação e resistência aos ditames e mecanismos de controle social da época, sobretudo à poderosa Inquisição. O referido autor destaca os cátaros, ou albigenses, apresentando a sua indignação diante da ordem religiosa vigente, e seu combate sistemático ao estado de violência e de corrupção que se ampliava com a nobreza feudal e pela hierarquia eclesiástica. Eram movimentos compostos de gente simples, das classes populares. É marcante a presença dos valdenses e as beguínas que, juntos, apresentavam em comum (como marca do popular contida nesses movimentos) a contestação e a resistência, definindo as suas próprias alternativas. Ao mesmo tempo em que se insurgem contra as práticas e os métodos do establishment eclesiástico, tratavam de anunciar uma ordem alternativa à de então, por seu discurso e por suas práticas, por meio das quais, mais do que propriamente inovar, buscavam recuperar os valores fundantes do Cristianismo (ibid.: 81). Na Modernidade, são freqüentes os movimentos que marcam as lutas pela superação da situação política dominante. Sobressaem-se as revoluções liberais modernas e, dentre estas, a Revolução Francesa, que trouxe setores sociais simples ou populares ao cenário das lutas políticas por liberdade, fraternidade e igualdade (justiça). Uma revolução realizada por vários setores sociais e marcadamente pelos setores populares, definindo alternativas para uma vida digna. Contudo, é em Marx que se encontra um avanço fundamental na busca por alternativa. Em “O manifesto comunista”, ele aponta o encaminhamento à classe proletária (classes trabalhadoras, classes humildes, classes populares), a necessidade de luta por alternativa, ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999: 30), fecundando os movimentos de libertação, em todo o século XX, com a sua célebre orientação: Proletários de todos os países, uni-vos. Mas, neste século XX, o que vem sendo entendido como popular? O que revelam, nesse sentido, os movimentos sociais que atuam na organização do povo, na organização dos trabalhadores? Nos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade, várias experiências de grupos políticos107 e partidos políticos trazem o termo popular em suas bandeiras de lutas, seus projetos ou nas formulações políticas. A insurreição de 1935, no Brasil, orienta-se por um “Programa de governo popular nacional revolucionário”108. Esse programa tem no popular a expressão de interesses das “grandes massas da população”, adquirindo a dimensão de controle direto das ações políticas pelo povo, buscando a democracia e a liberdade de expressão. A Frente Popular do Chile traz nas suas formulações internas a necessidade da ampliação da própria Frente, reconhecendo a insuficiência da unidade, envolvendo simplesmente, a classe operária. Trata-se de uma frente política que vê no conceito de popular a possibilidade de se contar com outros e novos aliados. Com esta mesma
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Para uma visão mais completa desses grupos políticos, com textos que os orientaram nas ações políticas, ver: Lowy, Michael. O marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999. 108 É um documento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente político-militar do PCB com a ala esquerda do „tenentismo‟ que lideraram a sublevação de 1935.
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perspectiva, surge o Partido Popular, no México109, que veicula uma compreensão do termo com maior abrangência do que aquela da Frente, considerando que pelo popular é possível um grupo político de cooperação com o governo. A esse respeito, Löwy (1999: 168) esclarece: a elevação do nível de vida do povo interessa tanto ao proletariado e aos camponeses, quanto às pessoas de classe média e aos membros das organizações burguesas progressistas. Defender sua soberania e a independência da nação interessa ao proletariado, aos camponeses, à pequena burguesia da cidade, à grande burguesia progressista do país. Recentemente, também no Chile, dá-se a composição entre o MIR e a Unidade Popular110, que saem da clandestinidade, após a vitória de Allende, tendo no popular a perspectiva de poder autônomo, independente e alternativo ao Estado Burguês, combatendo a estratégia reformista em que as massas devam estar subordinadas à democracia desse tipo de Estado. Já aqui, no Brasil, o Partido Comunista do Brasil (PC do B)111 lança a “guerra popular”. Ao mostrar o caminho para essa guerra, expressa uma concepção voltada à ampliação dos agentes dessa revolução: o povo. Para o partido (ibid.: 434), “a luta armada em que se empenhará o povo brasileiro terá um profundo conteúdo popular, englobando as mais amplas massas da população”. Outro movimento marcante na história política da esquerda no Brasil é a criação do Partido dos Trabalhadores112, que formula uma “Estratégica democrática e popular, devendo conduzir um programa com as mesmas características”, ou seja, o socialismo petista. Trata-se de uma perspectiva que concebe o popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da classe trabalhadora, na construção da democracia. “Na verdade, a democracia interessa, sobretudo, aos trabalhadores e às massas populares” (Resoluções, 1998: 429). O “Programa democrático e popular‟, projeto de sociedade para o país, só se concretizará através de uma perspectiva de ampliação (aliança) e resistência desses atores sociais que vislumbram as transformações sociais. Nesse sentido, o popular tem um nítido componente classista, abrangendo as classes trabalhadoras, os camponeses, os setores médios da sociedade, além de setores da pequena burguesia. Popular ainda aparece em movimentos como o do Exército Zapatista de Libertação Nacional113, inserido no caudal teórico reivindicatório e traduzido pela 109
O Partido Popular é fundado no México por Vicente Lombardo Toledano. Depois passou a se denominar Partido Popular Socialista (PPS), um partido de oposição fundado para cooperar com o governo. 110 Unidade Popular constitui-se como uma coalizão de partidos de esquerda. O MIR, nessa frente, desenvolvese, sobretudo, a partir das frentes de massas Movimento Camponês Revolucionário, Movimento dos Favelados, Frente de Trabalhadores Revolucionários, junto com a ala esquerda da Unidade Popular, a esquerda cristã e outros. O MIR contrapõe-se estrategicamente ao PC chileno que defendia aliança das forças populares com a burguesia nacional. 111 Até o final da década de 60, o PC do B nega-se a comprometer com processos de luta armada, realizando, contudo, a sua própria experiência, de orientação maoísta, na década de 70 - uma guerrilha rural na Amazônia sendo dizimada pela ditadura militar. 112 O Partido dos Trabalhadores (PT) foi criado em fevereiro de 1980. Decide, no seu 7 o. Encontro Nacional, adotar o socialismo petista, inspirado em uma tradição marxista anticapitalista, expresso por uma visão de cultura política pluralista, propondo-se democrático e libertário. 113
Surge em Chiapas, México, em 1994. Esse movimento arrasta consigo a tradição de luta do povo mexicano. Uma organização guerrilheira de tipo novo enquanto não aspira à derrubada e tomada do poder, mas à luta com a sociedade civil mexicana pela conquista de democracia e justiça.
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aspiração de democracia e liberdade. Na Primeira Declaração da Selva Lacandona expressa que “Nossa luta se apega ao direito constitucional e é motivada pela justiça e pela igualdade” (Lowy, 1999: 515). Nesse contexto de luta pela vida, surge também no Brasil, em especial decorrente da questão fundiária, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST)114. Este, defendendo a reforma agrária, preocupa-se com o consumo popular como expressão dos que estão sem qualquer tipo de assistência: dessa forma, tanto os pequenos produtores familiares, como os produtos destinados ao mercado interno para consumo popular, sempre estiveram à margem das prioridades da pesquisa agropecuária e da assistência técnica, mantidas pelo Estado (ibid.: 519).
Mas essa discussão conceitual passa por intelectuais, basicamente por aqueles que atuam no campo da Educação Popular. Paulo Freire, por exemplo, em duas de suas importantes obras, “A educação como prática de liberdade” e “Pedagogia do oprimido”, externa seu entendimento de popular como sinônimo de oprimido. Daquele que vive sem as condições elementares para o exercício de sua cidadania, considerando que também está fora da posse e uso dos bens materiais produzidos socialmente. A educação, se popular, isto é, tendo como ponto de partida a realidade do oprimido, pode se tornar um agente importante nos processos de libertação do indivíduo e da sociedade. O popular adquire, a partir da ótica da cultura do povo, um significado específico no mundo em que é produzido, baseando-se no resgate cultural desse povo. Os processos simbólicos, dessa forma, têm razão no ambiente da própria comunidade, porém no sentido da ampliação do horizonte cultural das classes. O conceito é o elemento adjetivante da educação, enquanto propõe a construção das utopias libertárias, na tentativa de superação da exploração do oprimido. Para Jiménez (1988), é importante a construção dos setores populares com o papel de defender seus interesses, construindo também a sua própria identidade cultural. Manfredi (1980) associa o popular, vinculado à educação, ao sentido de prática para a autonomia, enquanto seja capaz de gerar um saber-instrumento e, sobretudo, quando contribui para a construção de direção política. Wanderley (1979 e 1980) vincula o conceito de popular ao de classes populares115 como algo que é legítimo, que traduz interesses dessas classes, podendo adquirir o significado de algo “do povo”. No senso comum, povo é entendido como sendo aquele segmento de poucos recursos, posses e títulos. É um sentido dicotômico, fixado pelas expressões como elite-massa, em que o termo “massa” exprime pessoas desorganizadas e atomizadas. Uma outra compreensão percebe na expressão “do povo” um conjunto de indivíduos iguais e com interesses comuns com pequenos conflitos, apenas. Numa visão nacional-popular, “o povo” é identificado como aquele conjunto de pessoas que lutam contra um colonizador estrangeiro. Uma outra visão “de povo” expressando as classes subalternas da sociedade, tem por oposição os dominantes. Há ainda o conceito de “povo” como o segmento social dinâmico, aberto e também conflitivo, sendo, portanto, histórico e dialético, enquanto que se dinamiza e se atualiza de forma permanente. 114
MST, um movimento deste final de século, no Brasil. Atento às questões agrárias, em 1995, lançou um programa de reforma agrária para o país. É um movimento que se reivindica de nenhuma doutrina política, mas nas suas análises sobre o país está explícita a influência do marxismo. 115 “Classes populares, pois serão entendidas no plural, compreendendo o operariado industrial, a classe trabalhadora em geral, os desempregados e subempregados, o campesinato, os indígenas, os funcionários públicos, os profissionais e alguns setores da pequena burguesia”. Wanderley, Luiz Eduardo W, Educação popular e processo de democratização. In: Brandão, Carlos Rodrigues (org). A questão política da educação popular. São Paulo: Brasiliense, 2a, 1980.
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O termo popular tem se apresentado com diferenciados significados, como se pode vê em Bezerra (1980). Ao estudar as novas dimensões entre as práticas de educação popular, no final da década de 50 e início dos anos 60, o autor mostra um conceito atrelado a essas práticas direcionadas para o exercício da cidadania, no sentido de que as maiorias possam assumir o seu papel sócio-político naquela conjuntura. O conceito retoma uma política de resistência, como uma necessidade para os grupos populares (do povo) na busca de mudanças, “no estabelecimento de melhor padrão de funcionamento da sociedade”(ibid.: 26). Na compreensão de Brandão (1980: 129), o popular vincula-se à classe e à liberdade, ao mostrar que “o horizonte da educação popular não é o homem educado, é o homem convertido em classe. É o homem libertado”. Para Beisiegel (1992), o popular vem atrelado às práticas educativas em educação popular. Nesse sentido, a origem desse agir educativo, historicamente, está também nas hostes do Estado, e suas formulações têm sido geradas nas elites intelectuais. Todavia, esses processos expressam um entendimento como algo necessário, sendo útil à preparação da coletividade para a realização de fins determinados. Souza (1999) relaciona o popular aos movimentos sociais populares. Esses movimentos expressam correntes de opiniões capazes de firmar interesses diante de posicionamentos contrários dos dominantes. Elas são externadas sobre os vários campos da existência individual e coletiva desses setores da sociedade. Neste sentido, o autor considera que: os segmentos sociais explorados, oprimidos e subordinados, cujos temas, quase sempre de maior incidência em suas vidas, em seu cotidiano são: trabalho, habitação, alimentação, participação, dignidade, paz, direitos humanos, meio-ambiente, gênero, gerações etc (ibid.: 38). Essa questão conceitual também passa pelo debate sobre comunicação. Torna-se necessária a apresentação da perspectiva do popular no seio da comunicação nos movimentos sociais. Assim, pode adquirir também outras conotações, como enfoca Peluzzo (1998: 118): a) o popular-folclórico, que abarca expressões do senso comum, presentes nas festas, danças, ritos, crenças costumes e outras formas; b) o popularmassivo, que se inscreve no universo da indústria cultural, adquirindo três outras dimensões, envolvendo: a apropriação e a incorporação de linguagens, de religiosidade ou outras características do povo; a influencia e a aceitação de certos programas massivos de rádio e TV; e as programações voltadas aos problemas da comunidade, entendidos como de utilidade pública; c) o popular-alternativo, que se situa no universo dos movimentos sociais. Esta última forma caracteriza-se como algo novo, na medida em que vincula a comunicação popular a algo voltado às classes subalternas da sociedade, às “lutas do povo”, adquirindo duas possibilidades, segundo Canclini (1987): a primeira concebe o popular como sendo algo libertador, revolucionário e portador de conteúdos críticos, concretizando-se através de alternativas marcantes no início da década de 80; a segunda nasce nos anos 90, diante das mudanças que vêm ocorrendo. Nesta concepção, o popular apresenta-se numa perspectiva dialética e mais flexível, como algo que contribua para a democratização da sociedade e da cultura. Na perspectiva do popular como algo que promove a democracia, segundo Rodrigues (1999: 23), há a exigência de que os grupos que compõem o povo precisam se comportar democraticamente. Para ele: 223
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muito mais através de ações que de palavras, a educação popular objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua. Esclarecedora, contudo, é a perspectiva do popular no campo da saúde, como expressão daqueles que são trabalhadores ou seus filhos. São os infectados por várias doenças ao mesmo tempo. A esse respeito, Vasconcelos (1999: 21) mostra que: diarréia, escabiose (sarna), verminoses intestinais, impetigo (perebas), micoses cutâneas, doenças venéreas, infeccões exantemáticas agudas (como catapora, rubéola e sarampo), resfriados, pediculose (infestação por piolho), pneumonia, tungíase (bicho-de-pé), faringites e outras doenças infecciosas e parasitárias fazem parte da rotina diária das famílias das classes populares brasileiras. Mas que compreensões116 estão sendo veiculadas por aqueles que vivenciam, dirigem ou assessoram movimentos sociais? Nesse final de século, as concepções continuam muito variadas. Dirigentes de movimentos sociais, no campo do sindicalismo, estão compreendendo o popular “como toda e qualquer ação que provoque transformação, defendendo os interesses da maioria da população”117. É uma perspectiva que insere a visão classista no conceito, compreendendo como classe a maioria da população. Para outros dirigentes de movimentos fora da estrutura sindical, o popular significa “ações ligadas a uma parcela da sociedade que não tem acesso aos direitos, ao trabalho, enfim, ao mínimo de condições para uma vida digna” 118. Uma outra percepção aproxima-o ao projeto político-popular como “um projeto de transformação social que saia dos modos de produção, organização e valores capitalistas, tendo uma concepção socialista de justiça social” 119. Ser popular é um exercício de transcendência do modo de produção capitalista. Pode ainda conter uma metodologia que abarque “ procedimentos de ação política que se articulem com as demandas dos excluídos”120. O popular implica, originariamente, uma vinculação aos setores excluídos (povo) dos bens culturais produzidos socialmente pela sociedade. Expressa, ainda, algo que “vem do povo, da classe subalterna da sociedade e atendendo aos interesses desta classe”121. Ou mesmo como “aquilo que seja realizado na perspectiva de transformar a realidade, de conscientizar e libertar” 122.
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Pesquisa desenvolvida no período de fevereiro de 1999 a junho do ano 2000. Foram entrevistados dirigentes de movimentos populares (Acorda Mulher, da cidade de Bayeux, Grande João Pessoa; Projeto Beira da Linha, Bayeux; Movimento Nacional de Meninos/as de Rua, João Pessoa); de organizações não governamentais (SAMOPS, João Pessoa; SEAMPO, João Pessoa; Núcleo de Educadores Populares da Paraíba – Rede EQUIP de Educadores, João Pessoa; AGEMTE, João Pessoa); movimento sindical (Sindicato dos Professores, Sindicato dos Servidores em Saúde, Sindicato de Servidores Federais); organizações de assessoria aos movimentos sociais (PRAC/UFPB, Mulheres de Teologia do Partido dos Trabalhadores) e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas do Estado da Paraíba. 117 Entrevista com dirigente do sindicato dos professores da rede oficial do Estado. 118 Entrevista com dirigente do Movimento Acorda Mulher, Bayeux, Pb 119 Entrevista com dirigente do Projeto Beira da Linha, Bayeux, Pb. 120 Entrevista com dirigente do Movimento Nacional de Meninos de Rua/Pb. 121 Entrevistas com assessorias do SEAMPO/UFPB; Rede de Educadores/EQUIP/Pb e AGEMTE/Pb. 122 Entrevistas com dirigentes do Sindicato dos Servidores da Saúde e Sindicato dos Servidores Federais/Pb.
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É importante destacar, nesse percurso conceitual, as diferenciadas alternativas apresentadas por dirigentes partidários que têm em suas formulações estratégicas de sociedade a dimensão do popular, como os que defendem um “Programa democrático e popular” para o país. É fácil perceber-se quão variadas têm sido as compreensões do termo entre militantes partidários ou de movimentos sociais, refletindo-se em suas ações políticas nas cidades onde as realizam. Tornou-se possível, dessa maneira, a catalogação das visões externadas, em quatro grandes blocos, como mostra o quadro a seguir. Há um bloco daqueles que compreendem o popular como algo que está, necessariamente, originado nas classes sociais, em particular na classe trabalhadora, também disseminadas em conceitos como: as maiorias, o povo, a população, os mais sofridos ou os excluídos. Um outro bloco vislumbra o popular como algo que se expressa por encaminhamentos dirigidos a essas maiorias, enfim, pautado em procedimentos. Nesta concepção, ser popular é tornar-se expressão de uma metodologia, mas só terá significado quando expressar uma visão de mundo em mudança, contendo em suas ações a dimensão de propor saídas para as situações de miséria vividas pelo povo. É uma visão que exige iniciativas no plano político, normalmente, originais, pois marcam a própria autonomia desses movimentos, que constrói um novo tecido social embasado em outros valores e objetivos. Esta perspectiva, entretanto, é bastante minoritária entre os ativistas dos movimentos sociais. Há, ainda, outras visões, pouco expressivas quantitativamente ou prisioneiras da idealização existente nos movimentos sociais populares.
CONCEPÇÕES DE POPULAR (pesquisa realizada entre militantes de movimentos sociais populares e/ou partidários de uma alternativa democrático-popular) 123 CAMPOS TEÓRICOS DAS CONCEPÇÕES
QUANTITATIVO DAS CONCEPÇÕES
1. ORIGEM Algo é popular quando tem origem no povo, nas maiorias. Alguns indicadores: vem da base; vem da experiência do povo; vem da tradição do povo; vem das classes desprivilegiadas; dirige-se às maiorias, ...
20,68% das compreensões externas apontam para visão de que algo é popular quando tem essas origens.
2. METODOLOGIA Algo é popular quando traz consigo um procedimento que incentive a participação, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a busca da cidadania. Alguns indicadores: direcionado ao povo humilde; ampliando canais de participação; exercitando participação ativa; possibilitando tomada de decisão; ouvindo e implementando decisões; promovendo novas formas de intervenção das
51,73% das compreensões externadas nas entrevistas apontam para visão de que algo é popular se expressar mecanismo para contribuir para o exercício da participação. Popular como sinônimo da própria prática.
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Entrevistas aplicadas a vinte e oito dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em toda as regiões geográficas da Paraíba e quinze dirigentes de movimentos sociais populares.
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massas; ... 3. POSICIONAMENTO POLÍTICO E FILOSÓFICO Algo é popular se expressa um cristalino posicionamento político e filosófico diante do mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias.
21,84% das compreensões externadas nas entrevistas apontam para a visão de que ser popular é posicionar-se diante do mundo, tomando um posição promotora de mudanças.
Alguns indicadores: assumindo as lutas do povo; atendendo interesses da população; resgatando a visão de um mundo em mudanças; propondo melhoria de vida do povo; trazendo a perspectiva do povo; ... 4. OUTROS ASPECTOS Surgem outras concepções trazendo as possibilidades de que ser popular passa pelo institucional. Pode ter origem no institucional, como sindicatos, associações ambientalistas, etc. Outros entendem que o ser popular é uma questão de consciência.
5,71 % compreendem a questão do popular como algo que deverá estar na consciência de cada indivíduo.
Alguns Indicadores Algo que vem de associação (comunidades de Base, movimentos dos Sem-Terra, sindicato...); uma questão de consciência.
Total de indicadores selecionados das concepções de popular: oitenta e sete indicadores
Como se vê, popular adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as atuais exigências. Nesta perspectiva, é possível mostrar um movimento conceitual que envolva os elementos que sempre estiveram presentes nos variados momentos históricos e outros que foram sendo assimilados com o tempo. A pesquisa mostra essa dialética entre os elementos constitutivos do conceito. O termo relaciona todas as suas dimensões constitutivas ao mesmo tempo em que se diferencia de cada uma delas, porém mantendo-as na sua formulação conceitual. Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, tornam-se uma exigência social. Algo pode ser popular se tem origem nos esforços, no trabalho do povo, das maiorias (classes), dos que vivem e viverão do trabalho. Mas, a origem apenas não basta. Esta, inclusive, pode nascer de agentes externos, evitando-se, contudo, todo tipo de populismo que porventura possa surgir. Todavia, é preciso ter-se conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. É preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias. 226
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Ao se definirem a direção e os interesses envolvidos, entra em cena uma segunda dimensão conceitual, que é a dimensão política. Ser popular é ter clareza de que há um papel político nessa definição. Essa dimensão política deve estar voltada à defesa dos interesses dessas maiorias ou das classes majoritárias. Em um segundo momento, essas ações políticas são, necessariamente, reativas às formulações ou às políticas que deverão estar sendo impostas a essas maiorias, também no sentido de busca de alternativas ou de estratégias que conduzam às iniciativas para um plano político geral de sociedade. Reativas enquanto geradoras de ação própria e, normalmente, original, retirada da prática do dia-a-dia, ou quando se tornam capazes de compor um novo tecido social com outros valores e objetivos. Ser popular, portanto, significa estar relacionando as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação. É estar se externando através da resistência às políticas de opressão e adicionadas com políticas de afirmação social. Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. Contudo, esse fazer político pode se expressar de várias maneiras ou através de diferenciadas metodologias. A metodologia que confirma algo como popular vai no sentido de promover o diálogo entre os partícipes das ações e, sobretudo, que seja contributiva ao processo de se exercer a cidadania crítica. Cidadania que se constitua como um exercício do pensamento, na busca das questões com as suas dimensões positivas e negativas contidas em qualquer ente de desejo de análise. Mas, a cidadania não se resume à análise. É preciso também que o indivíduo prepare-se para a ação, para desenvolver metodologias que exercitem o cidadão para a crítica e para a ação. E, para que essa ação? Sua direção precisa apontar no sentido de afirmação de sua própria identidade como indivíduo, como grupo ou como classe social. Busca ainda promover as mudanças que são necessárias à construção de uma outra sociedade - mesmo que arriscando a ordem para que todos tenham direitos – e possibilitar que a justiça, efetivamente, seja igual para todos. Essa metodologia, entretanto, rege-se por princípios éticos oriundos também das exigências do trabalho. Ser popular é estar dirigido por princípios voltados àquelas maiorias. Nesse contexto é que se reafirma como fundamental o princípio do diálogo, oferecendo condições para a promoção do pluralismo das idéias. Este deve ter condições de promover princípios como a solidariedade e a tolerância, sem cair no relativismo ético, na busca incessante da promoção do bem coletivo. Esse conceito arrasta para si definições envolvendo as utopias tão necessárias para os dias atuais. Ser popular é tentar alternativas. É estar realizando o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trará os elementos já realizados e tentativas de novas realizações. Isto só ocorre, contudo, quando da sua realização mesma, caminhando para aquilo que, efetivamente, é o necessário: a utopia da democracia, como valor permanente a ser vivida sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços da realização e da nãorealização estão as suas contradições e suas dificuldades maiores. Entretanto, não podem transformar-se em agentes impeditivos da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de liberdade e de felicidade.
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LIVRO 3. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA - uma análise crítica INTRODUÇÃO Este trabalho, quando foi concebido, inicialmente, sob a forma de projeto de tese, era uma tentativa de mostrar a universidade como ente fundamental para a organização dos setores subalternos da sociedade, particularmente através de projetos de extensão universitária. Partia-se da perspectiva de que era possível realizar projetos de extensão universitária que constituíssem ações, efetivamente, transformadoras e mesmo revolucionárias. Imaginava-se a universidade como um canal para o exercício da transformação, ao abrigar projetos de extensão que se orientassem para a realização dessa possibilidade. Um exercício que não se colocava necessariamente pelo ensino ou pela pesquisa, mas admitia-se que, com certeza, podia realizar-se pelo campo da extensão. Acreditava-se que a universidade poderia se constituir em um importante instrumento de transformação da sociedade, à medida que fossem viabilizados tais projetos de extensão. No entanto, as análises que embasaram a organização e o desenvolvimento da própria pesquisa transformaram o que antes eram certezas em meras possibilidades, que se expressam conforme as formulações: há práticas de extensão que contribuem para a construção da hegemonia dos setores sociais não burgueses; há elementos dessas práticas que permitem ultrapassar a concepção de extensão limitada à realização de eventos ou de programas temporários na universidade. Foram estas as formulações que nortearam a pesquisa. Esta pesquisa, portanto, em nenhum momento teve a pretensão de elencar ou descrever o conjunto das propostas ou das práticas de extensão que podem ser encontradas nas universidades brasileiras. Sabe-se que tanto ou mais que o ensino e a pesquisa, o campo da extensão universitária tem visado preferencialmente à reprodução social, seja buscando reforçá-la por meio de mais um uso da instituição escolar, seja pelo aplacamento de alguma espécie de consciência culpada de dominadores ou servidores da dominação. Não se desconsidera, aqui, a existência e mesmo a possível predominância dessa concepção de extensão universitária. Apenas, ela não é incluída como parte do objeto desta investigação, no qual toda a atenção foi dedicada a encontrar propostas e práticas de outro tipo de extensão universitária, procurando discuti-las enquanto possibilidade e enquanto concepção. Para alcançar um objetivo como este, não parece metodologicamente necessário e talvez nem mesmo recomendável tomar como objeto de pesquisa o universo das experiências de extensão universitária no Brasil. Parece ser mais adequado considerar experiências pontuais, desde que, fazendo parte regular e integralmente da instituição “universidade”, sejam significativas e relevantes em termos dos objetivos visados e sejam tratadas com o cuidado teórico, metodológico e técnico que tal objetivo requer. Foi seguindo essas diretrizes que se tomaram como objeto específico de investigação algumas das experiências em extensão universitária desenvolvidas na Universidade Federal da Paraíba. 230
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Desse modo, este é um estudo sobre a concepção de extensão universitária, o qual procura seguir as orientações metodológicas que Karl Marx formula sobre a dialética, suas orientações teóricas sobre sociedade e ideologia e de Gramsci sobre Estado ampliado, intelectual e hegemonia. Admite-se a anterioridade das ações de extensão da UFPB. Mas o objeto científico desta pesquisa é assumidamente construído, reconstruindo aquelas ações sob orientação metodológica e teórica precisa e explícita. A tese assume que existe uma teoria que a fundamenta e a sustenta e tem uma metodologia que incorpora essa teoria na construção do objeto: o objeto empírico (os projetos da UFPB) não é tomado dessa forma (empírica). Na verdade, é construído teoricamente a partir do conceito de hegemonia, em termos dialéticos. O objeto da pesquisa é, portanto, construído por um instrumento de análise, o qual tem clara orientação teórica. A universidade é tratada enquanto aparelho de hegemonia. Conseqüentemente, as experiências de extensão que ela propõe e realiza são concebidas como partes constituintes daquele aparelho, inseridas, portanto, no conjunto das relações de forças aí implicadas e submetidas às contradições que o caracterizam. Parte-se da compreensão de que, em Gramsci, hegemonia e crise de hegemonia formam sempre um par. Ao se trabalhar com a concepção gramsciana de hegemonia para pensar a universidade, em especial uma de suas funções - a de extensão - coloca-se, no entanto, como norte da pesquisa e como foco central da análise a noção de crise de hegemonia. Afinal, o que aqui preocupa, verdadeiramente, são as possibilidades que estão abertas ou que possam vir a ser abertas para a construção de uma nova hegemonia, capaz de configurar um novo bloco histórico. Assume-se, pois, a ótica das classes e setores sociais que hoje se encontram subalternizados e adota-se a perspectiva da sua autonomização ideológica, procurando discernir caminhos e meios pelos quais se possa - por meio do trabalho no âmbito institucional - contribuir para essa autonomização. O objeto empírico do estudo compreende quatro projetos de extensão que se encontram em andamento na UFPB: os projetos CERESAT, Escola Zé Peão, Praia de Campina e Qualidade de Vida. A seleção obedeceu a alguns critérios principais. Foram escolhidos projetos entre os que estão sendo desenvolvidos atualmente de forma efetiva e que estão implantados há pelo menos cinco anos, com isso, caracterizando sua permanência e consolidação. Houve também a preocupação de incluir projetos que, adotando diferentes tipos de orientação, fossem significativos para a catacterização do conceito de extensão universitária ou de concepções alternativas para esse conceito. O material empírico coletado se constitui de textos produzidos nos projetos em estudo, fruto das análises dos membros dos grupos e, basicamente, de entrevistas, sendo que estas são distribuídas em três níveis: o nível dos planejadores dos projetos, o nível dos seus executores e o nível da comunidade onde se desenvolve o projeto. Esses projetos foram submetidos a um instrumento de análise elaborado a partir da teoria e do método utilizados como suporte ao trabalho analítico, sobretudo no campo da hegemonia, adotando-se a perspectiva gramsciana1. Assim, a tese é um texto que toma por objeto concepções e tem como objetivo a formulação de um conceito. A pesquisa em que a tese se baseia tem como origem e como destino a prática, uma prática que pretende o desenvolvimento crítico do trabalhado universitário voltado para a transformação social. Neste sentido, esta tese constitui uma reflexão teórica calcada num certo tipo de prática e que deverá retornar a ela. No entanto, a tese se apresenta como um texto, cujo objeto são concepções e cujo objetivo é uma determinada (re)formulação de um conceito. Tendo-se estudado, detidamente, documentos e entrevistas com participantes de projetos de extensão, chegou-se à formulação da tese de que há projetos de extensão na universidade que podem contribuir para a ampliação da hegemonia dos setores subalternos da sociedade. ______________ 1.
A utilização dessa orientação teórica de forma efetiva não impediu, porém, que eventualmente tenham sido também incorporados a esse instrumento elementos experienciais gerados nas próprias entrevistas e nas anotações de campo realizadas quando do acompanhamento de alguns desses projetos. Como parte de uma teoria mais ampla - a teoria do modo de produção - a categoria da hegemonia organiza um conjunto de temas, sendo cada tema composto de itens que, por sua vez, se expressam por indicadores. O instrumento assim construído se compõe de dez temas, assim distribuídos: a visão de mundo; a concepção de sociedade; a concepção de Estado; a configuração dos interesses sociais e da prática social; a relação da universidade com a sociedade; a concepção de extensão universitária; a natureza do trabalho social na extensão; o papel do agente institucional - os que estão executando os projetos - e, ainda, a pedagogia que está sendo veiculada nessas práticas de extensão universitária. A partir desses temas geradores, constituem-se vinte e oito itens, que, por sua vez, são expressos nos documentos analisados através de quinhentas e cinqüenta e uma variáveis ou indicadores. A técnica utilizada neste instrumento de análise não se configura como uma análise de discurso. É, sim, uma forma específica de análise de conteúdo desenvolvida por Miriam Limoeiro Cardoso em Ideologia do Desenvolvimento - Brasil: JK-JQ. É
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uma técnica de análise que se adotou porque tem se mostrado fecunda, permitindo aprofundar a análise e entender relações e conexões esclarecedoras.
A tese aponta, portanto, no sentido da existência concreta e objetiva desta possibilidade, que, porém, não é mais do que possibilidade e, mesmo assim, limitada. Nesses termos, a tese é demarcadora: por um lado, a extensão universitária não tem necessariamente que ser reprodutora e, assim, uma extensão da dominação; por outro lado, é ingênua e ilusória a pretensão de tomá-la como revolucionária das relações sociais, dadas suas condições e suas limitações institucionais, sociais e políticas. O resgate da possibilidade de contribuição para a construção de uma nova hegemonia, na perspectiva das classes subalternas, parece ser capaz de esclarecer relações decisivas e contradições importantes da instituição universidade na área de extensão, encaminhando uma reconceituação deste campo enquanto trabalho social. Para apresentá-la e defendê-la, existem algumas indicações metodológicas e teóricas da fundamentação do estudo, procura-se situar o objeto como parte da universidade, enquanto aparelho de hegemonia, e se procede ao desenvolvimento analítico dos temas propostos. Com a sua análise, procura-se especificar a extensão universitária e as suas funções hegemônicas, indicando elementos para reconceituar extensão universitária nos marcos do trabalho social. Finalmente, discutem-se alguns aspectos, de dimensão mais ampla, a respeito de novos problemas da e para a universidade.
CAPÍTULO I CONSTITUINTES TEÓRICOS E METODOLÓGICOS Têm-se muito presentes, para a realização deste trabalho, os desafios contemporâneos do fazer ciência, como também uma busca para novos caminhos e, necessariamente, novos encontros com outros tantos desafios. Ao se estudar a extensão universitária, através de um “olhar” crítico, faz-se necessária uma maior exigência metodológica. Por outro lado, considerando-se o problema em discussão, não poderá ser adotada uma metodologia fixa, determinada e sem abertura para as tantas possibilidades novas que surgem, a cada momento, na procura de se produzir conhecimento. CARVALHO (1995: 25), na busca de caminhos/descaminhos para a razão, mostra-se atenta aos caminhos que se descortinam quando perscruta as trilhas do “fragmento, do particular e do sentido”. Em que bases deve fundamentar-se a análise de práticas de extensão que busquem as suas dimensões educativas para processos de construção de hegemonia de setores sociais não burgueses? Que elementos compartilhar, quanto à metodologia, na busca de constituintes que possam contribuir para a superação de concepções no campo da extensão universitária, que parece não atenderem as necessidades políticas de liberdade de setores sociais subalternos? Dentro dessas preocupações é que se colocaram, à frente das questões da pesquisa, os constituintes da análise dialética. Como escapar das críticas à ciência moderna, consideradas por FAUSTO (1987: 15) pertinentes e fecundas, no sentido de que esta se fechou numa perspectiva instrumental, perdendo-se em modelos universais abstratos, definidos a priori? Segundo ele, a ciência moderna “desconsiderou a riqueza e multiplicidade da experiência humana 232
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e mais: vulgarizou a dialética”. Nesse sentido, a questão a ser respondida é: que dialética pode ser utilizada como constituinte dessa metodologia?
1 - Dialética: concepção do objeto e orientação metodológica Para se iniciar a tentativa de apresentação dos constituintes da dialética, é razoável buscar-se a resposta à questão: O que é dialética? Essa resposta exige um debruçar-se sobre a história da filosofia, onde se pode encontrar a utilização da noção de dialética de várias maneiras e, dessa forma, nada passível de ser determinada ou explicada de forma definitiva1. Um conceito que tem recebido diferenciados significados no decorrer do tempo os quais, mesmo assim, são relacionados entre si. De forma sintética, baseando-se em considerações etimológicas, podem ser consideradas algumas fases dos quatro conceitos principais da dialética: a dialética vista por Platão como um método de divisão; a dialética como lógica do provável, presente em Aristóteles; a dialética como lógica, segundo Kant; e a dialética como síntese dos opostos, a partir das formulações de Hegel/Marx. São quatro conceitos pautados também em quatro doutrinas que exerceram forte influência na história da dialética, respectivamente: a doutrina platônica, a doutrina aristotélica, a doutrina estóica e a doutrina hegeliana. Nesta introdução à questão a ser conduzida tenta-se, de certa forma, alguma síntese conceitual. Na verdade, será mantida a sua generalidade, tendo em vista a impossibilidade de se englobarem as possíveis formulações em um só conceito. A resposta à questão acerca do conceito de dialética apresenta grande dificuldade, considerando-se que os autores a definem e a interpretam de várias maneiras. Parece que cada procedimento nessa direção se apresenta como insatisfatório. Há intérpretes que apresentam a dialética como sendo “a arte do diálogo, ou que ela é uma lei” (BORNHEIM, 1983: 153). Esta definição, que parece elucidativa, apresentase, porém, com nuanças que abrem outros tipos de
__________ 1. É uma tarefa que transcende o propósito deste estudo, sendo aqui apenas colocada a questão. No máxImo, serão externadas algumas noções preliminares para efeito, simplesmente, de situar a análise que se deseja no que concerne à extensão universitária.
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questões fundamentais, como a discussão sobre o sentido do diálogo, por exemplo. Existe, nessa visão, uma certeza ou uma clareza de base no sentido de que a dialética, em sua essência, é a arte do diálogo, em sua essência, é lei. Segundo essa interpretação, não tem sentido a defesa de uma determinação, uma definição como mecanismo de exclusão das demais. BORNHEIM (Ibid.:154) assim se expressa: “Nada prova que diversas determinações não possam corresponder de algum modo à índole interna da dialética. Vimos que, do ponto de vista histórico, a dialética metafísica não só se justifica como foi necessária. Assim também, a dialética pode ser a arte do diálogo, ou a lei do real, ou de certos setores do real. Talvez a dialética seja ainda outras coisas”. Diante dessas dificuldades pode-se ver, contudo, que a dialética é uma das expressões filosóficas bastante usada e que a sua universalidade tem sido muito estudada. MARITAIN (1964: l45), por exemplo, vai entender que está em Hegel o traço genial de fazer da idéia de Absoluto, Pensamento ou Espírito, o universo real que é apreendido, não por possuir uma existência fora do pensamento, mas no sentido de que o real passa a ser uma manifestação do pensamento no seio de si próprio. Na introdução da Fenomenologia do Espírito, Hegel destaca a impossibilidade do conhecimento formulado por Kant, seja através de um instrumento com o qual dominaria o Absoluto, seja como meio com o qual seria possível a sua contemplação. Explicita sua crítica ao fazer a seguinte afirmação: “Essa precaução deve até transformar-se na convicção de que toda a tarefa de conquistar para a consciência, por meio do conhecimento, o que é em si é, na sua conceituação mesma, um contrasenso, e de que o conhecimento e o Absoluto sejam separados por uma nítida linha de fronteira”(HEGEL,1974: 47). Se, para Kant existia, entre o sujeito e o objeto, o entendimento, uma separação da coisa em si, e se, agora, o real é manifestação do pensamento no seio de si próprio, a coisa em si está superada. O pensamento, sendo o Absoluto em movimento, passa a encerrar sobre si mesmo tudo quanto de si surge, bem como as suas autodiferenciações. Em sua crítica, HEGEL (ibid.: 48) continua: “... as representações do conhecimento entendido como instrumento e meio e, bem assim, uma diferença entre nós mesmos e esse conhecimento; pressupõe, sobretudo, que o Absoluto esteja de uma parte e o conhecimento, mesmo sendo algo de real, esteja de outra parte, para si e separado do Absoluto”. Algo inadmissível para ele, pois no seu sistema não há separação entre o sujeito e objeto. E mais, não se conhece nada senão o que já está conhecido em nós mesmos. Para Hegel, o Absoluto não pode utilizar-se de qualquer „astúcia‟ para se chegar ao conhecimento, já que Ele está e quer estar “em nós tal como é em si mesmo e 234
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para si mesmo” (ibid.: 48). Não só não há separação, como também o seu fazer história “ é a história do pensamento que a si próprio se encontra” HEGEL (l974a: 329). Um movimento dialético se instala como a síntese dos opostos. A filosofia hegeliana vê, em todos os lugares, tríades do tipo: tese, antítese e síntese, segundo intérpretes, como Azevedo, Bornheim, Thadeu Weber, Lima Vaz e Llanos, em que a síntese representa a “negação” ou o “oposto” ou o “ser outro” da tese. A síntese constitui a unidade, no seu próprio tempo, a verificação tanto de uma como de outra. Para LLANOS (1988: 94), “uma vez alcançada a síntese, esta se põe a si mesma como uma nova tese, isto é, como uma categoria afirmativa que se há de converter na base de uma nova tríade”. Ao analisar esse movimento triádico da dialética, WEBER (l993: 41) afirma que “em cada síntese, os momentos anteriores estão suprimidos (negados), mas, ao mesmo tempo, integrados numa forma superior”. Coube à Feuerbach, apud LLANOS (1988:109), a crítica às formulações idealistas de seu tempo, mostrando ser o espírito absoluto hegeliano “ o espírito finito humano - mas abstraído e separado do homem”. Toda crítica formulada (ibid.: 110) se constituía num materialismo, ao contrapor-se à idéia da transcendência sobre o dado no pensamento de Hegel, embora esse materialismo fosse limitado, ostentando um “caráter contemplativo, metafísico e antropológico, combinando-se com uma concepção idealista de sociedade”. Feuerbach, segundo o citado autor, não via a passagem do homem abstrato para um homem que atuasse, necessariamente, na história. A passagem do culto a esse homem abstrato, centro da formulação feurbachiana, pela ciência do real e de seu desenvolvimento histórico, poderia ser efetivada por Marx. Marx vai realizar a inversão da dialética, colocando o objeto ou “dado” como primeiro, o natural imediato antes da consciência. Assegura a primazia dos conteúdos materiais ou históricos - as formas finitas da consciência - sobre as formas infinitas da mesma consciência. Mas, após a crítica ao movimento dialético no campo das idéias, em Hegel, pode-se perguntar qual é a dialética ou o método de Marx. Ao estudar o método de análise da economia política, Marx descobre que esse método inicia-se sempre pelo real e pelo concreto, parecendo esta a forma correta. No estudo de um país, parece ser correto iniciar-se pela população que se constitui na base e no sujeito social da produção. Porém, uma observação mais atenta, segundo ele, mostra que a população, mesmo sendo tão concreta, é, na verdade, uma abstração. Por conseguinte, esse método é falso. MARX (l978:116) afirma: “A população é uma abstração, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Por seu lado, estas classes são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. Chegados a este ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não com 235
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uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas”. Este é o método dialético de Marx. Assim, o pensamento pode mover-se por dentro de suas partes do universo, apreender as suas interconexões e o conjunto no qual elas se fundem. Para PRADO JUNIOR (1980:513), Marx, “... aproveitando-se das comportas abertas por Hegel e do terreno desembaraçado que se estendia à sua frente, empurra o pensamento filosófico para fora do seu isolamento idealista e introspectivo”. O mundo das idéias, agora, passa a ter o sentido de mundo material, “transposto e traduzido no espírito humano”. FAUSTO (l993: 49), ao estudar o lugar da forma e o do conteúdo na dialética, observa que, em Marx, “o sistema de formas permanece sempre inscrito na matéria. Assim, a matéria é, em Marx, o lugar da inscrição das formas, não mais mas não menos do que isto”. Contudo, é em LIMOEIRO CARDOSO (1990: 19) que se encontra um acompanhamento mais explícito sobre o desenvolvimento do método de Marx, que está subdividido em seis partes.
“A primeira trata do método em geral e indica um movimento que é exclusivamente teórico, passando-se totalmente no abstrato. A segunda afirma a anterioridade do concreto. A terceira propõe e resolve uma relação específica entre o real e o teórico, desdobrando as relações entre as categorias mais simples e as mais concretas. A quarta precisa a condição da produção das abstrações mais gerais a partir do desenvolvimento concreto mais rico. A quinta indica que é no último modo de produção já estabelecido, porque o mais complexo, rico e variado, que se torna possível a inteligibilidade não só dele mesmo, como também de todas as sociedades anteriores. A sexta retorna ao método, estabelecendo que a ordem das categorias deve seguir uma hierarquia teórica, em função da sua importância correlativa dentro da sociedade mais complexa, base das abstrações mais gerais e categorias mais simples, e não em função do seu aparecimento histórico”. Esta divisão vai possibilitar, para a autora, uma segunda apreensão do método, que está assim exposta: 1 - Do abstrato para o concreto pensado . Na crítica ao método da economia clássica, considera-se que esta inicia sua análise a partir do “concreto”. Ela vai entender que tal “concreto” só tem sentido à medida que se vão descobrindo as suas determinações. A realidade social é determinada, e assim é não por obra natural. Há relações específicas que a determinam, respondendo a uma certa causalidade. Nesse sentido, a realidade social é determinada e só é possível a sua explicação, quando também se apreender a sua determinação. Na suposição de que não existam determinações essenciais, a realidade é concebida como se esgotando no mundo dos fenômenos. Para Marx, no entanto, a realidade é determinada, é produto de determinações que não se encontram no mundo fenomenal. Desse modo, enquanto o pensamento não alcançar as relações profundas (nãoaparentes) entre os fenômenos, apenas conseguirá descrevê-los, jamais explicá-los. Na verdade, as explicações precisarão melhor o próprio fenômeno e a sua completude nas 236
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relações (de superfície) que mantêm uns com os outros. O concreto real, de que partem os economistas clássicos, apresenta um sentido que não é previamente dado, mas sim, “adquirido pela ação do pensamento, na abstração” (ibid.:21). Este concreto real é uma abstração. “Assim, um procedimento como este não parte do concreto, como se supõe, e sim da abstração, e não pode sequer procurar condições para re-encontrar o concreto, porque supõe, enganosamente, que já o incorpora à análise desde o início” (ibid.: 21). O real, nesse sentido, se apresenta com um caráter caótico. Havendo uma ordem no real, essa ordem não se apresenta como já-dada, não transparece. Ela só pode ser atingida pelo pensamento que a investiga, aprofundando-se no mesmo. Essa investigação, contudo, não terá respostas imediatas dos dados ou contatos do real, mas será produto da reflexão que, informada pela teoria, vai em busca da realidade externa. Por ser determinada é que esta realidade se torna passível de ser conhecida e explicada racionalmente. Isto só é possível, todavia, quando se atingem os seus determinantes fundamentais. “E isto acontece no mundo dos conceitos, no plano teórico, no abstrato. Abstrato que tem a pretensão de reproduzir o concreto, não na sua realidade imediata e sim na sua totalidade real” (ibid.: 22). Possibilita-se, assim, a compreensão da formulação de Marx em que “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações”. A totalidade real se constitui, portanto, do conjunto das determinações, juntamente com o que elas determinam. Nas situações onde dominam as perspectivas empíricas, não se pode atingir essa totalidade real, valendo-se do estilo daquele método. A partir de uma análise que procede do real, não se consegue reproduzi-lo enquanto totalidade significativa. Este traz, em si mesmo, um impeditivo para tal conhecimento. Em Marx, segundo a autora, há uma proposta de procedimento novo - “do abstrato (determinações e relações simples e gerais) ao concreto (que então não é mais „uma representação caótica de um todo‟ e sim „uma rica totalidade de determinações e de relações diversas‟)”. O método de Marx vai do abstrato ao concreto. “E o mais importante, este concreto é um concreto novo, porque pensado. É um concreto produzido no pensamento, para reproduzir o concreto real („as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento‟)” (Ibid.: 23). 2 - Anterioridade do concreto. O movimento produção/reprodução do concreto, no caminho de volta, e o que constitui esse concreto a que se chega precisam ser explicitados, segundo a autora. A resposta, para isto, está, conforme sua interpretação, na formulação do texto de Marx, em que o concreto é concreto porque ele se constitui em síntese de múltiplas determinações. Essa concepção estabelece que o fato de se ter realidade não garante ser concreto. “O caráter de concreto está estreitamente vinculado ao de determinação. O que conta de fato são as determinações. Atinge-se o concreto quando se compreende o real pelas determinações que o fazem ser como é” (ibid.: 24). O concreto é síntese de muitas determinações e, assim, é uma totalidade: “unidade determinante/determinado” ou unidade de múltiplas determinações. Esse processo aparece, então, no pensamento como expressão de uma síntese, porquanto é unidade do diverso, como resultado e não como ponto de partida. Ele não se constitui simplesmente de um dado, mas é o resultado de um elaborado processo de pensamento.
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“E se esse processo começa cientificamente no abstrato, seu verdadeiro ponto de partida é o real. Está dito, explicitamente, que o verdadeiro ponto de partida do pensamento é o real, que é o ponto de partida da percepção e da representação. O papel do real para o pensamento e para o conhecimento não é, pois, eliminado como se, por ser o abstrato o campo próprio do teórico (em que se move o pensamento para produzir conhecimento) para ele, teórico, o real não existisse senão sob a forma pensada. Uma coisa é afirmar que o concreto só faz parte do teórico como concreto pensado (acentua-se aí o fazer parte de ); outra coisa diferente é afirmar que o concreto real não se relaciona com o teórico (abstrato), sob a alegação de que o teórico só pode afirmar do concreto o que sabe dele, isto é, o que tem precisado sobre ele. A perspectiva seguida por Marx é a que ele explicita, de que o concreto aparece no pensamento como resultado, embora seja o verdadeiro ponto de partida. O pensamento parte do concreto (real), ainda que só se torne verdadeiramente científico quando retoma o concreto, pensando-o, a partir do abstrato (suas determinações atingidas pelo pensamento originado no concreto” (ibid.: 25). Nesse momento tem-se, em Marx, segundo Limoeiro Cardoso, um triplo movimento. Um primeiro, onde se parte do real, porém se afastando cada vez mais dessa realidade, através da abstração, atingindo conceitos mais simples desse real. Um segundo movimento, que é o início da atividade científica propriamente dita, onde se tem como caótica a representação do real. Nesse movimento não se parte do real ou de sua representação imediata caótica e abstrata. Parte-se dos conceitos mais simples produzidos pelo movimento anterior. Esse movimento seria a busca pela especificação das determinações gerais e simples, configurando um movimento de reconstrução teórica. Finalmente, o terceiro movimento será de construção teórica de reprodução do concreto. De forma simplificada, os movimentos podem ser representados, através do seguintes vetores básicos: 1o)
real
abstrato (concreto)
2o)
abstrato
abstrato „ „ concreto
3o)
abstrato
concreto (pensado)
Para a autora, “com o segundo movimento, se iniciaria o que Marx aponta como „método cientificamente correto‟ “ (ibid.: 27). Dessa forma, pode ser entendido que o “caminho de volta” não se torna nada simples. Não significa apenas a troca do ponto de saída pelo de chegada ou o “começo pelo resultado”. Também pode não ser apenas uma troca de sentidos ou inversão de uma rota. Além do mais, esse ponto de partida do 238
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método de Marx é outro ponto diferente daquele de chegada do primeiro método - o da economia política de seu tempo. “Não só porque é abstrato, e não concreto. Sendo abstrato, é outro abstrato, diferente do abstrato a que o método anterior permitia chegar. É um abstrato reconstruído criticamente a partir deste” (ibid.: 28). Esclarece ainda a autora que, por um lado, o real está presente e alimentando a percepção e a representação e, por outro, também “não esquece que o concreto produzido pelo pensamento é apenas pensamento, não real. É neste ponto que contesta Hegel, ou a relação que este propõe entre abstrato e concreto” (ibid.: 28). Essa compreensão traduz, de forma explícita, uma negação, presente em Marx, de que o real seja resultado do pensamento. Na contestação marxista de que o pensamento seja a gênese do concreto, segundo Limoeiro Cardoso, “Marx argumenta que mesmo o pensamento mais simples só existe como relação unilateral e abstrata de um todo concreto, vivo, já dado. É nesse sentido que para ele o real é anterior ao pensamento” (ibid.: 29). Contesta dessa forma a possibilidade de um movimento de categorias autônomas e produtoras de real, como também a concepção de que o pensamento se basta a si mesmo e se movimenta por si mesmo. Em Marx, afirma a autora, “a realidade concreta preexiste, subjaz e subsiste ao pensamento. É este que de algum modo depende dela, e não ao contrário” (ibid.: 30). Dessa forma, o conhecimento científico do real tem início com a produção crítica das suas determinações. Essa produção se dá ao nível do teórico, ao nível das categorias. Porém, constituindo-se como crítica da produção anterior, ela só se realiza quando da existência de um desenvolvimento teórico “razoável e disponível”. “É daí que o método para produzir esse conhecimento se eleva do abstrato ao concreto” (ibid.: 32). 3) - Relação categorias/real. Foi abordada até agora, na interpretação de Limoeiro Cardoso, a afirmativa de Marx de que os conceitos mais simples permitem chegar a uma inteligibilidade do real. A autora supõe também a exposição desses conceitos a partir de uma abordagem que parta do próprio real. E mais: esse real, como ponto de partida, também é uma abstração das determinações que se expressam naqueles conceitos simples. Além disso, afirma a existência do real fora do pensamento que é anterior a ele. Estabelecido o conceito, na primeira parte da discussão do método, e o real, na segunda, busca-se a relação existente entre ambos, na terceira. Nesse sentido, salienta a autora que ”para produção teórica, o pressuposto básico é que ela seja comandada pelos conceitos mais simples, para ser possível a reprodução do concreto no pensamento” (ibid.: 32). E mais, dando sustentação a esse pressuposto, tem-se o mais geral - o da exterioridade e independência da realidade - a tese materialista fundamental1. As categorias mais simples, para a autora, não se apresentam em Marx com existência independente sem nenhuma característica histórica ou natural. A exigência fundamental de sua existência está na admissão do concreto vivo, isto é, expressando-se como relação unilateral e abstrata de um todo concreto já dado. “É sobre ele que se erigem as categorias, mesmo categorias as mais simples, que não são capazes de captá-lo no plano do teórico a não ser parcialmente, unilateralmente” (ibid.: 33). Quanto à discussão do simples originário, empreendida por Marx, Limoeiro Cardoso vê um movimento em três dimensões. A discussão passa por uma análise de que as categorias simples têm ou não existência independente e anterior às categorias mais concretas. O primeiro momento dess e
movimento consiste em que “as relações mais simples sempre pressupõem relações mais concretas - relações estas expressas em categorias mais concretas, no sentido de que se referem a um grau mais baixo de abstração” (ibid.: 34). As categorias simples expressam, assim, relações simples, e estas não existem antes de relações mais concretas, expressadas também em categorias mais concretas. Uma análise que convém salientar não se dá apenas no campo de categorias teóricas. O segundo momento se dá de forma mais complexa a partir da exemplificação de Marx, em que a posse se torna a relação jurídica mais simples. Acontece que não há posse sem a família, superada __________ 1.
Salientam-se, então, algumas questões suscitadas, tais como: 1) o porquê das determinações do real serem formuladas através de conceitos simples; 2) a da simplicidade originária dessas categorias; 3) as categorias simples terem ou não existência independente e anterior às das mais concretas; 4) a evolução histórica do real, que são postas e analisadas por LIMOEIRO CARDOSO( 1990: 32-44).
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apenas quando inicia com a distinção que é feita entre posse e propriedade. “A posse é uma relação simples, que exige uma relação mais concreta, como a família”. Aí também se insere, para superação dos questionamentos, a questão da evolução histórica real, influenciando tanto na diferenciação como na produção das categorias. É importante, portanto, se entender que “a categoria mais simples exige um certo grau mínimo de desenvolvimento para que possa seguir a relação mais simples que ela exprime” (ibid.: 37). Apresenta-se, até agora, uma contradição. No primeiro momento, o mais concreto é anterior ao mais simples; no segundo, o mais simples se torna anterior ao mais concreto1. Ao colocar e discutir a questão, a autora mostra que esta é uma contradição, mas que não é produzida por pura negação. O segundo momento não é pura negação do primeiro. Ele é outro momento. No primeiro , o concreto é real, é o dado. “As categorias mais simples são as mais abstratas(abstrações simples). A relação proposta é uma relação real, com sua contrapartitida pensada: família - posse; comunidade de famílias - propriedade. No segundo momento, o concreto pertence ao plano do pensamento. A relação dinheiro e capital é uma relação entre categorias pensadas. O real aparece relacionado com cada uma destas categorias através dos diferentes graus do seu desenvolvimento e da sua complexidade” ( ibid.: 39).
Assim, pode-se entender que é, numa sociedade mais complexa, onde a categoria mais simples se apresenta mais desenvolvida teoricamente. Em sociedades com grau de desenvolvimento menor, a categoria mais simples também existe, porém é parcial no sentido de não impregnar “todas as relações do setor a que se refere”. Este se constitui no terceiro momento, onde se analisa a categoria simples, como o dinheiro. Os exemplos apresentados, como o dinheiro, mostram a sua existência como categoria simples, mesmo que haja sociedades, bem desenvolvidas e não historicamente maduras, como o Peru pré-colombiano, onde não existia qualquer forma de moeda. O mesmo ocorre com os povos eslavos, em que a existência do dinheiro limitava-se às atividades comerciais nas suas fronteiras. De forma sintética, a autora sistematiza esses três momentos da seguinte forma: “1) concreto - relações mais concretas são anteriores a categorias mais simples; - fundamento: relação concreto/abstrato (abstração simples). 2)
simples
simples
concreto
( complexo) - categorias mais simples são anteriores a relações mais complexas ___________ 1 Esta aparente aporia é resolvida em LIMOEIRO CARDOSO, Miriam. (op. cit.: 38-41).
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(expressas em categorias mais concretas); - fundamento: relação simples/complexo (concreto). 3)
complexo
simples (concreto)
- a categoria mais simples só tem seu desenvolvimento completo numa sociedade complexa, enquanto que as categorias mais concretas podem ter seu desenvolvimento completo anteriormente” (ibid.: 42). Desses movimentos resultantes da relação entre categorias e real, surge a constatação de que o simples não é a origem. As categorias mais simples exigem um substrato mais concreto, isto é, uma certa organização social, um todo vivo. Também se observa que o processo histórico real vai do mais simples ao mais complexo. Aqui, e nesse sentido, o mais simples pode preceder o mais complexo. Contudo, é no mais complexo - completo - que o simples pode estar mais desenvolvido. Agora, ele pode ser pensado de forma teórica e mais completa. 4) - Produção das abstrações mais gerais. A autora identifica uma quarta parte no texto e descobre que é na sociedade mais complexa que a categoria mais simples se completa. É aí também onde se alcança o elo específico entre o real e o conceito. E conclui: “O abstrato de que se deve partir para começar a produção do conhecimento, que se fará no concreto pensado, já não depende só da produção teórica anterior, que se utilizará, criticando. Estas
produções teóricas e o movimento que as produz despontam numa íntima conexão com o real e o seu movimento próprio” (ibid.: 44). Pode-se entender como a categoria trabalho é uma categoria simples. Ora, a idéia de trabalho é bastante antiga, contudo, como categoria econômica é recente. O trabalho é a relação daquele que produz com o produto. Então, segundo a autora, a categoria, entendida como trabalho em geral, já está presente em A. Smith. O trabalho em geral, gerador de riqueza, segundo o economista, retira deste qualquer determinação possível que possa conter. Tem-se, desde aí, o trabalho em geral, indo além da formulação anterior, econômica, de trabalho manufatureiro, comercial e agrícola. Como trabalho em geral, não se pensa em particularidades da relação entre produtor e produto, mas nas formas de trabalho no seu caráter comum. Para a autora (ibid.: 45), “aparece aqui a primeira especificação precisa da categoria simples: a sua generalidade. O trabalho é uma categoria simples quando ele é pensado como trabalho em geral, como trabalho sem determinações, como trabalho, simplesmente”. É no atual estágio de sociedade que se vive com a diversidade de formas de trabalho, uma sociedade mais complexa, onde a categoria simples completa o seu desenvolvimento. A categoria trabalho, em sendo mais simples, se torna, pela diversidade de formas de realização, mais geral, e isso só é possível na sociedade mais complexa. A sociedade que possibilita a existência da categoria mais simples, no caso, o trabalho em geral, é aquela em que concretamente existe o trabalho em geral. A sociedade mais complexa possibilita o deslocamento do trabalhador, mesmo 241
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especializado, para outro ofício. Nesse tipo de sociedade tem-se o trabalho em geral, como a categoria mais simples, mais abstrata, criada na sociedade mais complexa. Esse desenvolvimento teórico “não depende exclusivamente da capacidade e da disponibilidade teórica. Em última instância, a produção teórica deriva de condições reais” (ibid.: 46). As categorias mais simples detêm as abstrações mais gerais. São definidas pela simplicidade, pelo alto grau de abstração, pois são úteis a todas as „épocas‟, exatamente, pela sua generalidade. 5) - A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. A análise feita até agora tem mostrado o método como um caminho, o papel do abstrato (conceito simples, determinação) na reprodução do concreto no pensamento, a relação da abstração com a realidade e a importância da fase do desenvolvimento da realidade social para a produção das abstrações mais gerais. Esta última incorpora, em si mesma, a própria história. A teoria desenvolvida aponta para a economia numa perspectiva histórica, residindo nela também a determinação, em última instância, da totalidade social, que é uma totalidade histórica. A análise dessa totalidade remete, por sua vez e necessariamente, para o conhecimento da economia, considerando a história um estudo do determinante da totalidade social. Convém destacar que a sociedade, em estudo, é a sociedade burguesa. O presente significa não o contemporâneo ou o que está ocorrendo, mas “o último modo de produção completo, o modo de produção capitalista” (ibid.: 53). Portanto, é nesse tipo de sociedade, mais complexa, onde é possível a criação de categorias as mais simples e, conseqüentemente, mais complexas e mais abrangentes, possíveis de serem utilizadas em análises de sociedades menos desenvolvidas. Em Limoeiro Cardoso, “a análise da história deve ser conduzida por categorias simples e gerais produzidas no estado mais avançado da própria história” (ibid.: 48). Entretanto, a autora levanta a questão do risco que se corre, ao se fazer uma análise com categorias geradas na sociedade mais complexa, questionando também se o “olhar” do presente não deformará o passado. Essa é uma preocupação para não se perder as especificidades de cada momento histórico, uma vez que cada um desses momentos se define por suas peculiaridades, diferenciando-se, assim, um do outro. Com esse cuidado de não perder a própria história, a autora vai mostrar que há em Marx uma concepção de história em que laços orgânicos ligam os diferentes momentos históricos. Em Marx, contudo, não há a possibilidade de ocorrer a perda da especificidade dos distintos momentos históricos. A análise entre esses diferentes momentos exige a preservação da diferença essencial entre eles. Nesse sentido, a autora afirma: “A lição dada é no sentido de que se disponha de categorias gerais que na sua generalidade abranjam todo o desenvolvimento desde o ponto em que foram produzidas. A sua generalidade, apoiada numa abstração que é condicionada historicamente, lhes dá validade para todos os momentos anteriores ao da sua produção, inclusive e principalmente para este” (ibid.: 50). Ora, a demarcação das diferenças essenciais de cada momento histórico exige uma definição a respeito de onde devem incidir os cortes na história ou na sua periodização. A autora levanta novo questionamento: Como realizar a periodização? Respondendo, ela destaca que a sociedade tem dificuldade de se ver criticamente. Em 242
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condições bem determinadas, um momento histórico consegue fazer sua crítica. Sendo assim, para a sociedade mais desenvolvida socialmente, mais complexa, isso também é verdadeiro. Ela vê no texto de Marx a possibilidade de relativizar os outros modos de produção, quando tem condições de relativizar este atual modo de produção. Como solução, aponta a crítica ou particularmente a autocrítica, compreendendo que isto só é possível na seguinte hipótese: “... Quando uma sociedade deixa de se absolutizar e passa a ser, portanto, capaz de assumir sua própria particularidade e especificidade, é capaz de atingir, reconhecendo-as e conhecendo-as, outras particularidades e especificidades diferentes da sua, ainda que lhe sejam anteriores” (ibid.: 51). A autocrítica de uma sociedade, contudo, é uma capacidade dessa própria sociedade para perceber, na sua singularidade no tempo, a sua historicidade. Isto ocorre quando esta não mais se identifica com o passado, onseguindo se ver como diferente. Limoeiro Cardoso, contudo, continua seu questionamento, buscando as conseqüências importantes dessa argumentação. Essa análise conduz, necessariamente, para um estudo do desenvolvimento social mais complexo na sua especificidade histórica, em que a autora vê várias conseqüências1. A primeira nega a possibilidade de explicação genética da história. Dizer, por exemplo, que a produção é histórica, é dizer que ela surge num determinado momento da história e se extingue em outro. Isto supera a possibilidade de uma visão genética que vê o desenvolvimento da história de modo linear. A segunda é que se procure ver, antes de tudo, as diferenças essenciais. É preciso respeitar as especificidades históricas, “tanto as do presente como as do passado”. A terceira é que “tanto „presente‟ como „passado‟ sejam entendidos (argumentos) em termos de „organização histórica da produção‟. Toda essa discussão é travada no nível teórico do modo de produção” (ibid.: 53). 6) - A ordem das categorias - Esta é a última parte do texto do método. É o momento em que se trata do plano de análise e da ordem das categorias nesse mesmo plano. Agora, as questões levantadas pela autora dizem respeito a como montar essa análise e por onde começá-la. Convém destacar que a realidade concreta existe independentemente de estar sendo pensada ou mesmo depois de ser pensada. Sua independência a localiza fora do espírito, caracterizado por atividades apenas teóricas. As categorias criadas têm todas, como base, o pressuposto da anterioridade da realidade, mas destas “não são mais que parciais em relação a ela”. As categorias não conseguem,
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__________ Um desenvolvimento teórico mais elaborado encontra-se em LIMOEIRO CARDOSO, Miriam. (op. cit.: 52 53).
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1) senão de forma unilateral, dar conta do real em toda sua completude. Isso exige organização dessas categorias para que se possa chegar ao conhecimento mais abrangente e mais profundo da realidade. E aí de novo surge a questão: E qual é o princípio organizador dessas categorias? Limoeiro Cardoso busca resposta para a questão apresentando os diferentes modos de produção, tentando mostrar como a agricultura, num determinado modo de produção, se constituiu numa atividade principal. Conseqüentemente, a renda fundiária e a propriedade vão se constituir em categorias que expressam essas dominâncias. Na sociedade burguesa, por sua vez, o capital é ponto de partida e de chegada de tudo, e se estabelece, no capitalismo, como categoria principal diante da renda fundiária. Finalmente, a autora afirma: “A ordem das categorias, portanto, responde à ordem de importância relativa das relações que expressam, importância que é relativa à capacidade das relações em determinar a organização da produção. Tem precedência teórica a categoria que expressa as relações mais determinantes” (ibid.: 54). É com esse método, na visão de Limoeiro Cardoso, que Marx busca analisar a sociedade burguesa. Como método geral, tem início no campo das abstrações (as determinações mais simples), reproduzindo essa sociedade no pensamento. Chega às determinações, teoricamente, ao realizar a análise crítica de conceitos gerados na empiria da economia clássica. Tal crítica apresenta o confronto desses conceitos com a realidade. Uma suposição primeira, presa à exterioridade e anterioridade do real, e uma outra, que é a mutabilidade histórica. Sob o manto da mutabilidade, conseqüentemente das condições históricas, é que são produzidos determinados conceitos. Conceitos simples - os mais abstratos - só são possíveis em sociedades mais complexas - aquelas que se quer estudar. E ainda, a ordem dos conceitos trabalhados não é a do seu aparecimento histórico e, sim, uma ordem significativa para a socieda - de em estudo. O princípio que rege essa ordem é o da hierarquia teórica. 1.2 - Hegemonia como direção intelectual e moral Essa forma de raciocínio, transmitido com o nome de dialética, apresentou-se, inicialmente, como uma arte de perguntar e responder, presente não só em Platão 1, mas também em antecessores, como Sócrates e sofistas. Adquiriu o significado de argumentação naquilo que é só provável, em ristóteles2; lógica formal, no sistema de “artes” medievais. Em Kant 3 , apre apresenta-se como lógica das aparências, porém, como motor do conhecimento primeiro, lógico ou na sua totatalidade. Transforma-se, hoje, em sinônimo de realidade histórica Isto é possível, quando o homem se reconhece com consciência da realidade e nela atua buscando uma contínua transformação. A busca por elementos teóricos que possibilitem análises para o objeto de pesquisa, com a visão de contínua transformação, está presente na filosofia da práxis, em Gramsci, mantendo-se um debate com Hegel e Marx, vindo trazer outros elementos para a análise da realidade histórica. Gramsci reelabora e apresenta novos conceitos para o campo do marxismo, tais como: bloco histórico, hegemonia, aparelhos de hegemonia, intelectuais orgânicos. Desse debate, destaca-se, como pontos constituintes de uma doutrina sobre o marxismo, uma visão da filosofia como historicidade e como ideologia. Chega-se à compreensão de que a “filosofia
não faz história consigo __________ 1.
Ver Platão. Diálogos. O Banquete - Fédon - Sofista - Político. Seleção de Textos de José Américo Motta Peçanha; traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 2a. ed. São Paulo, Abril Cultural, l979. 2. Ver Aristóteles. Tópicos; Dos Argumentos Sofísticos. Seleção de José Américo Peçanha. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. Abril Cultural, São Paulo, l978. 3. Ver Kant, Emannuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo, Abril Cultural, l980.
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mesma, mas com e a partir de outra coisa” (SICHIROLLO, 1980: 196). Daí a natureza da filosofia, nada utilitarista, mas tendo a ver com aquilo que existe, consistindo nisto seu caráter ideológico e abstrato. LIMOEIRO CARDOSO concebe o debate sobre a ideologia1, no campo do marxismo, a partir da perspectiva em que as relações de produção constituem a estrutura econômica da sociedade e sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política. Essa superestrutura vai corresponder a formas de consciência social determinadas. Apresenta, outrossim, uma diferenciação marcante entre a transformação material das condições econômicas de produção e as formas jurídicas, políticas, religiosas ou filosóficas. Essas são as formas ideológicas em que se expressam os conflitos e onde o homem toma consciência dos mesmos, buscando a sua superação. É importante destacar essas formas ideológicas que, juntamente com as condições de produção, constituem a estrutura, cabendo na superestrutura o jurídico, o político e as formas de consciência social. Explicita ainda que “as formas de consciência social existem no jurídico, no político e nos demais aspectos (religiosos, artísticos, filosóficos) que compõem a superestrutura” (LIMOEIRO CARDOSO, 1978: 42). O político, o jurídico, o artístico, o religioso, o filosófico são superestruturais e formam um só conjunto. São determinados pela base econômica, mas que reagem entre si e também com essa base. “Há, pois, uma ação que dinamiza aquele conjunto internamente e em direção à base econômica, mas estas ações são reações, embora como reações adquiram forma, consistência e direção próprias” (ibid.: 42). A autora apresenta ainda a estrutura não como expressão de unidade, mas como o campo de uma oposição. Nesse sentido, vê as relações de produção como o fundamento da estrutura, necessariamente, permeadas de classes sociais que estão bem definidas por essas relações de produção. Com as classes sociais no seu devido lugar na estrutura, esta conterá necessariamente a sua marca, não se expressando como uma unidade. Há, por parte da autora, um resgate necessário nesta formulação com o lugar das classes sociais e seu papel na estrutura. “As classes são condição da produção, pois são elas que dão forma à produção e a permitem; assim como são condição da troca, na sociedade produtora de mercadorias, pois é através delas que as mercadorias chegam e saem do mercado. As classes sociais são tão importantes na determinação do processo da produção quanto as condições materiais” (ibid.: 54). Situa-se a seguir numa posição gramsciana ao desenvolver uma análise teórica da ideologia, caracterizando-a e distinguindo-a a partir de sua vinculação com as classes sociais. “Resulta, pois, o caráter de classe da ideologia. A ideologia comporta a ideologia dominante e a ideologia dominada, com tendências semelhantes às classes sociais” (LIMOEIRO CARDOSO, l977: 91). Para uma melhor caracterização a autora define, frente à ótica da sociedade de classe, uma ideologia “do como”, isto é, aquela ideologia dominante cuja tarefa principal é a apresentação das justificativas das necessidades daquela classe dominante, mascarando-as como necessidades gerais. A outra é a “do por que” , a __________ 1. Ver LIMOEIRO CARDOSO, Miriam. Ideologia do Desenvolvimento - Brasil: JK - JQ. Rio de Janeiro , Paz e Terra, 2a.ed. l978, p. 41-42.
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ideologia das classes subalternas baseada, sobretudo, no questionamento da dominação, que é ao mesmo tempo responsável pela busca de outro tipo de organização da sociedade. Nesse sentido, está a importância da ação ideológica dessas classes subalternas, tornando-se possível a construção de sua própria ideologia, mesmo na sociedade capitalista. É de se questionar qual seria a categoria teórica explicativa dessa produção ideológica nas sociedades de classe. LIMOEIRO CARDOSO (1978: 73) encontra-a no conceito de hegemonia 1, segundo Gramsci. É com esse conceito que se tornam possíveis as explicações das relações que se travam entre as classes sociais e no interior das classes sociais fundamentais, constituindo-as. Torna-se possível trabalhar, agora, com os aspectos da direção política e cultural que envolvem as classes fundamentais presentes na sociedade. Em Gramsci, hegemonia é, portanto, um conceito que não exige o domínio prévio do poder, mas sim a adesão em torno de uma classe, seja por outra classe ou por segmentos dessa classe. Dessa adesão decorrem dois aspectos básicos: primeiro, a coesão por oposição, isto é, o processo de adesão no interior de uma classe, através de um processo gerador de uma direção, a partir de frações dessa mesma classe, distanciando-a da outra classe fundamental. Esse processo conduz à coesão de classe. É possível que a direção política também se exerça entre classes sociais, quando um projeto de uma fração de uma classe consegue a adesão não somente de setores afins da mesma classe, como também de frações de outra classe. Através desse processo, um projeto cuja base e origem é particular, se generaliza ou até se universaliza, funcionando então como um projeto da sociedade como um todo. O segundo aspecto se refere à coesão por domínio, num processo de imposição entre classes distintas. Instaura-se aí, com o recurso à força, a coesão entre classes. O primeiro aspecto depende da “subordinação, ou do exercício negativo do domínio e conduz a uma coesão de classe”. O segundo “depende do exercício positivo do domínio e instaura uma coesão, precária por que entre as classes” (ibid.: 73). Há algo diferente na formulação gramsciana de hegemonia. Para ele, esta se exerce e se expressa de duas maneiras: uma, pelo domínio; outra, pela direção intelectual e moral. “O domínio supõe o acesso ao poder e o uso da força, compreendendo a função coercitiva; a direção intelectual e moral se faz através da persuasão, promove a adesão por meios ideológicos, constituindo a função propriamente hegemônica” (ibid.: 73). Dessa forma, abre-se a possibilidade de se conceber hegemonia no campo das classes dominadas, naturalmente vinculada ao grupo hegemônico interno ou “grupo social básico”. Esta interpretação tem forte significado para o conceito de hegemonia,
__]_______ 1. Essa interpretação de hegemonia é desenvolvida por Limoeiro Cardoso em seus dois livros: La Construcción de conocimientos: cuestiones de teoría y método, p, 103 Brasil: JK-JQ, p, 73.
e
Ideologia do Desenvolvimento-
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considerando-se que, em Lenin, a hegemonia era exercida pela classe dominante, sendo necessário o acesso ao poder para se estabelecer a hegemonia também no campo cultural, moral e político. É uma visão onde a transformação no campo ideológico se implanta com a necessária transformação econômica, sendo possibilitada pelo acesso político. Na interpretação gramsciana há, portanto, uma negação dessa visão, abrindo espaço para o exercício da direção intelectual, moral e política da hegemonia, antes da chegada ao poder. Estabelece-se, dessa maneira, uma nova forma de relacionamento do político e do econômico. “Sem deixar de considerar o econômico como determinante, procura descobrir a autonomia relativa da política quanto à economia, revalorizando, assim a ideologia. ... Não há dúvida de que a determinação é do econômico, mas não diretamente, nem imediatamente, nem absolutamente” (ibid.: 74). Segundo a autora, há uma revalorização “positiva e determinante” do fator ideológico, expressando-se assim uma forma de como se efetiva tal ação, onde há o exercício da função dirigente sem testar ainda sob seu controle a função de domínio. Fica claro que não há independência entre transformações ideológicas e transformações econômicas e nem tão pouco que elas podem acontecer de forma natural, direta ou espontânea. “A hegemonia é apresentada como uma reforma intelectual e moral junto a uma transformação das relações econômicas da sociedade”1. Esse é um processo de formação da vontade coletiva, unificador do proletariado, dos trabalhadores em torno das lutas fundamentais da classe. Um processo de unicidade de fins econômicos e políticos com a unidade intelectual e moral que é possível com a formação de uma política de alianças. “O proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de classes que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora ...” (GRAMSCI, l977: 22). Assim é que se estabelece como elemento fundamental a questão das alianças no pensamento de Gramsci. É uma questão decisiva para o operariado na conquista da direção ideológica e política da sociedade. Para CARVALHO (1986: 54), as alianças são importantes para a conquista do poder, considerando que é através desse sistema de alianças que se “configura a base social da ditadura do proletariado e do Estado operário”. A constituição desse sistema ou a construção dessa vontade coletiva se dá em decorrência de um processo complexo de relações políticas que se estabelecem entre as frações das classes dominadas. Dessa maneira, está reservado a uma dessas frações (por exemplo, o operariado) o exercício da direção política, firmando alianças, eliminando-se qualquer relação de opressão política e de domínio e estabelecendo-se compromissos com as reivindicações fundamentais da classe. “O processo de constituição de alianças é um processo democrático na busca de um consenso, pressupondo uma direção exercida pela classe proletária enquanto classe que, assumindo uma função fundamental no sistema produtivo, tem um papel histórico no desenvolvimento da sociedade” (Ibid.: 55).
Dessa mesma base teórica surge o conceito de bloco histórico, que, de acordo com uma das interpretações correntes, designa o fato de que as forças materiais são o conteúdo, enquanto as ideologias constituem a forma desse pensamento. Não se conceberão, portanto, historicamente, forças materiais sem forma nem as __________ 1.
Cambareri, S. Il Concetto di egemonia nel pensiero di A. Gramsci. Roma, Runiti, apud Limoeiro Cardoso , Miriam. Ideologia do Desenvolvimento - Brasil: JK - JQ, p. 75.
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ideologias sem forças materiais. “Esse conceito pode ser assumido como o positivo, sendo o negativo as componentes que o acionam, o colocam em crise e o derrubam” (SICHIROLLO,1980: 198). As forças materiais, as ideologias e a sua dialética não são, na verdade, um ponto de vista na análise gramsciana. A filosofia, como historicidade e ideologia, e o conceito de bloco histórico se tornam “um resultado histórico, e o conceito de dialética, que é a sua mediação, identificase com a realidade histórica, quando é encarada como (e na) plenitude das contradições” (ibid.: 199). Em Concepção Dialética da História, Gramsci faz um resgate da “filosofia da práxis” . No contexto da chamada “corrente historicista”, pode-se afirmar que o aludido pensador põe uma essência nessa elaboração, não isolando as dimensões econômica, política e ideológica, mantendo em última instância a determinação econômica. Essa visão vai perpassar os temas candentes do campo do marxismo, tais como a singularidade de seu método de análise, bem como a transição para o socialismo. Ao resgatar a filosofia da práxis, GRAMSCI (1981: 189) também lhe confere uma autonomia, que consiste no fato de não poder se confundir e nem se reduzir a nenhuma outra filosofia. “ Ela não é só original enquanto supera as filosofias precedentes, mas notadamente enquanto abre um caminho inteiramente novo, isto é, renova de ponta a ponta o modo de conceber a própria filosofia...”. Nessa perspectiva está uma nova concepção de mundo. Está também uma nova formação social, sendo indispensável pensar a ideologia nesse contexto, considerando-se que ela está encaixada nas relações entre as classes constituintes dessa formação social. “Eliminando-se qualquer destas relações, elimina-se a possibilidade de entender a ideologia e a sua influência na formação, na manutenção e na transformação da sociedade” (LIMOEIRO CARDOSO, l978:72). O conceito de hegemonia não pertence exclusivamente à fórmula gramsciana da “hegemonia civil” , pois já aparece em outros autores na tradição marxista, particularmente em Lenin. Trata-se de uma fórmula que aponta para uma necessidade tática, para as atividades de organização dos setores subalternos da sociedade, na busca da construção de sua própria hegemonia. TUMOLO (1991) mostra que a escola, a universidade, como “aparelho de hegemonia”, pode tornar-se uma das “agências” da construção da hegemonia proletária, na medida em que exercer a função de transmissão do conhecimento sistematizado, considerando que essa construção pressupõe a apropriação desse conhecimento. A busca por outras visões de mundo com as classes subalternas que eventualmente estejam sendo discutidas através de projetos de extensão ou outras formas pode constituir-se em experiências de construção de hegemonia. A discussão da hegemonia, em GRAMSCI (l987: 9), implica reforma intelectual e moral. Ele fala de outra civilização que pretende a “elevação civil dos estratos oprimidos da sociedade” e que “deve estar ligada a um programa de reforma intelectual e moral”. Uma discussão da hegemonia trata especificamente de relações internas à superestrutura, mas também remete à estrutura como determinante delas. Essa análise do autor (ibid.: 45) é marcada por duas formulações feitas por Marx. A primeira diz respeito à impossibilidade da sociedade de propor tarefas para cuja solução não existam já as condições necessárias e suficientes, ou que estas não estejam em vias de aparição e de desenvolvimento. A segunda é que nenhuma sociedade se dissolve ou pode ser substituída sem antes ter desenvolvido todas as formas de vida 248
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implícitas nas suas relações. São essas relações, segundo o pensador, que precisam ser distinguidas em movimentos orgânicos e movimentos de conjuntura. Hegemonia com essas características, incluindo a possibilidade de que também seja construída e exercida pelos grupos dominados, constitui um avanço no campo das formulações marxistas, desdobrando teoricamente recursos de estratégia e de tática para um processo de transformação, a ser assumido pelas classes subalternizadas. É um processo marcadamente cultural enquanto conhecimento de sua própria personalidade, compreensão de seu valor histórico, de sua função na sociedade, além de seus direitos e deveres. Tudo isso pode dar-se antes da tomada do poder. Este é um processo em que as classes subalternas já iniciam o exercício de sua hegemonia, enquanto a consolidam através de sua própria prática política, difundindo e vivenciando a sua concepção de mundo. A partir daí, pode-se analisar a sociedade com base numa metodologia que é a de detectar os princípios ou movimentos que buscam a organização de uma “vontade nacional-popular” 1 , tendo como desafio a combinação do orgânico e do ocasional - a conjuntura. A dimensão ocasional valoriza aspectos econômicos num determinado momento. A estratégia é, contudo, a afirmação da necessidade de acúmulo de forças, intensificando a busca por mais e mais aliados. A visão orgânica pode arrastar consigo um certo voluntarismo, salientando a intervenção da vanguarda teórica que interpreta o desejo das massas. Essa vanguarda, muitas vezes, buscou uma ruptura revolucionária, apesar de não haver movimento das mesmas. DIAS (l991: 5) exemplifica essa visão com a postura da tática classe versus classe, desenvolvida pela Internacional Comunista, contra a qual Gramsci se posicionara, mesmo no cárcere. No processo de construção de hegemonia das classes subalternas da sociedade, GRAMSCI (1987: 49) distingue três níveis ou momentos das relações e forças. No primeiro, a classe existe objetivamente, mas não se traduz necessariamente em existência política. No segundo momento - o político - as classes vivem um processo econômico-corporativo voltado para si e para seus interesses específicos. Seu processo de avanço político dá-se no sentido de perceber a necessidade de sair de seu isolamento enquanto classe. É um processo de onde se desenvolvem avaliações do grau de homogeneidade a classe, de sua auto-consciência e de organização. Quanto a esse momento, GRAMSCI (ibid.: 50) afirma: “ Há vários graus de consciência política coletiva: a) o econômicocorporativo onde a identificação se faz a nível de corporação, e não de classe; b) já se apercebe da identidade de classe mas não coloca a questão do Estado. Sua política está na perspectiva e no terreno da política existente; c) é, especificamente política e que assinala a clara passagem da estrutura à esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias germinadas precedentemente se tornam partido (...), criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados”. No terceiro momento, situa-se a relação das forças militares. Este, por sua vez, está dividido em graus, no sentido estritamente técnico-militar e político militar. Em _____ 1.
Ver DIAS, Edmundo Fernandes. Hegemonia: nova civilitá ou domínio ideológico. História e Perspectiva, no. 5 , jul-dez. l991. Editora da Universidade Federal de Uberlândia, MG.
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Gramsci, há possibilidades de cristalização de limites onde se tenha a criação de novo bloco histórico, como nas revoluções francesa e russa. Para ele, “o desenvolvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momentos, com a mediação do segundo” (ibid.: 51). Assim é que a construção da teoria da hegemonia na visão gramsciana vai sendo construída através da concepção de ampliação do Estado, e com isso, a estrutura de poder, com a retificação do conceito de intelectual-partido, bem como de uma concepção mais abrangente da luta de classe, ou seja, da revolução. Nesse processo de análise, alguns pressupostos são colocados como base na formulação da teoria de hegemonia das classes subalternas. Num primeiro momento da obra gramsciana, investe-se no terreno das relações sociais, dando maior amplitude e definição aos sujeitos dessas relações. Hegemonia, como direção e consenso, não se simplifica nas explicações das relações entre classes. Vai mais além. A hegemonia, ao explicar as relações entre os diversos grupos e camadas sociais que dão a conformação de uma sociedade, ultrapassa o terreno das relações entre classes e passa a nomear outros sujeitos para as relações entre grupos sociais no interior de um mesmo aparelho de hegemonia, num partido político ou nas igrejas, entre leigos e pastores, ou no interior da escola, entre alunos e professores. Amplia-se mais a hegemonia ao discutirem-se as relações de um país, ao estudar-se a História dos Estados, nomeando-os hegemônicos e subalternos. Maior ampliação se apresenta, ao trazê-la para o nível conceitual, destacando as relações do exercício do saber, ao desenvolver a critica à filosofia idealista, posicionando-se pela filosofia da práxis, buscando, como ação, a unidade entre ciência e vida, entre teoria e prática. Convém ainda destacar em GLUCKSMANN (l980: 30), como elemento importante na abordagem de Gramsci sobre esse processo de construção de hegemonia, a questão do conceito de Estado, entendido como instrumento coercitivo. Esse conceito se apresenta como expressão de equilíbrio entre sociedade civil e política (ou hegemonia exercida por um grupo social sobre a sociedade nacional como um todo, por meio de organizações pretensamente privadas, tais como: Igreja, sindicatos, escolas, etc). Essas organizações vão constituir os aparelhos de hegemonia de uma classe, em suas várias articulações e subsistemas. Situam-se, como aparelhos de hegemonia, o aparelho escolar, o aparelho cultural e o editorial, envolvendo bibliotecas e museus. Como aparelho de hegemonia estão também os jornais, as igrejas, os partidos e até os nomes de rua. Esse conceito, segundo a autora, é uma novidade nos Primeiros Cadernos - o conceito de aparelho de hegemonia - sendo completado pelo de “estrutura ideológica de classe”. Define-se aparelho de hegemonia como um “conjunto complexo de instituições, ideologias, práticas e agentes (entre os quais os “intelectuais”), que encontra sua unificação através da análise da expansão de uma classe vindo qualificar e precisar o conceito de hegemonia” (ibid.: 70). Fundamental também é a compreensão do intelectual no processo de direção, bem como, seu papel no processo de organização e transformação. GRAMSCI (1979: 7) compreende o intelectual não no sentido da erudição, deslocandoo daquilo que é intrínseco às atividades intelectuais, para defini-lo “no conjunto de sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram, no conjunto geral das relações sociais”. Isto exige, para a realização do conceito, a ação ao nível da organização da classe reivindicada pelo 250
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intelectual. É, então, um organizador em todos os campos da vida social. Sua função social e seu vínculo orgânico com um projeto político de classe, para construção de hegemonia, são os parâmetros que definem o intelectual gramsciano. Partindo de suas observações do modo de constituição da unidade italiana, GLUCKSMANN (1980) destaca a importância dada à maçonaria, como representação da ideologia e da organização real da classe burguesa capitalista. Para ela, isto é a prova de uma organização aparentemente privada, porém, desempenhando papel ideológico e político, portanto decisivo, na unificação de classe, por intermédio do Estado e dos “intelectuais”. Um exemplo apresentado pela autora “mostra o papel do aparelho de hegemonia em um modo de constituição de classe, seus vínculos com o Estado” (ibid.: 141). Aparelhos de hegemonia podem ou não estar vinculados ao Estado. A escola e a universidade se constituem em aparelhos dessa natureza, veiculando ações que podem ajudar a construção de hegemonia da “classe subalterna”. GRAMSCI (1979: 130), em sua investigação sobre o princípio educativo, onde discute também o papel dos intelectuais, observa: “A escola luta contra o folclore, contra todas as sedimentações tradicionais de concepções de mundo, a fim de difundir uma concepção mais moderna, cujos elementos primitivos e fundamentais são dados pela aprendizagem da existência de leis naturais como algo objetivo e rebelde às quais é preciso adaptar-se para dominá-las, bem como de leis civis e estatais que são produtos de uma atividade humana estabelecida pelo homem e podem ser por ele modificadas visando a seu desenvolvimento coletivo (...) a lei civil e estatal organiza os homens de modo historicamente mais adequado à dominação das leis da natureza, isto é, a tornar mais fácil o seu trabalho, que é a forma própria através da qual o homem participa ativamente na vida da natureza, visando transformá-la e socializá-la, cada vez mais profunda extensamente”. A noção de aparelho de hegemonia, atribuindo qualificação e precisão à hegemonia, acrescenta ainda mais uma proposição na formulação dessa teoria. Nela, a de idéia de hegemonia não depende só dos sujeitos e “locus” da sua realização. Não diz respeito à maneira distinta de sua realização. Depende, isto sim, da articulação dessas proposições. Ela se efetiva através de instrumentos, as “instituições” várias. Para NASCIMENTO (l984: 81), “a hegemonia de um sujeito histórico precisa realizar-se em „locus‟ específicos, com um conteúdo preciso, em formas singulares e através de instrumentos e instituições que lhe são próprias”. Da tentativa de compreensão de uma relação hegemônica, portanto, surgirá a definição do sujeito ou sujeitos a quem ela diz respeito, mesmo que nem sempre estejam evidentes. A definição de espaço social, em que a hegemonia se exerce, precisa seu tempo, forma e conteúdo na historicidade dos sujeitos. Serão necessários também os seus mecanismos particulares de realização, além dos instrumentos e instituições onde a hegemonia se concretiza, ou se concretiza o seu aparelho. Estas são as bases teórico-metodológicas que estarão permeando os estudos dos vários projetos de extensão universitária, em desenvolvimento, na busca de respostas às questões formuladas para pesquisa. 251
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CAPÍTULO II EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA 1 - Concepções de extensão universitária O papel singular possivelmente reservado à extensão universitária conduz a uma busca das diferenciações conceituais nesse campo. Os primórdios da extensão universitária aparecem com as universidades populares da Europa, no século passado, que tinham como objetivo disseminar os conhecimentos técnicos, segundo vários autores, como ROCHA (1986), FAGUNDES (1986) e BOTOMÉ (l992). É importante observar os comentários de GRAMSCI (1981: 17) sobre essas universidades: “ ... estes movimentos eram dignos de interesse e merecem ser estudados; eles tiveram êxito no sentido em que revelaram da parte dos simplórios um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma forma superior da cultura e de uma concepção de mundo. Faltava-lhes, porém, qualquer organicidade, seja de pensamento filosófico, seja de solidez organizativa e de centralização cultural; tinha-se a impressão de que eles se assemelhavam aos primeiros contatos entre mercadores ingleses e negros africanos: trocavam - se berloques por pepitas de ouro”. A crítica se refere aos intelectuais que, mesmo desejosos de “servir ao povo”, à classe dominada, teriam um outro papel, que era o de compreender as formas de vida e as propostas da classe trabalhadora. Esquecidos desse papel, ou mesmo por incompetência, esses intelectuais expressavam, segundo a crítica de Gramsci, uma visão dominadora de seus saberes ao pretender “levá-los” ao povo. Além das experiências européias, foi em universidades norte-americanas, sobretudo naquelas localizadas na zona rural, que surgiram duas novas visões diferenciadas daquelas existentes na Europa: uma visão denominada cooperativa ou rural e outra universitária em geral. Essas visões, contudo, estavam “marcadas” por um certo desejo de “ilustrar” as comunidades. A extensão nas universidades americanas caracterizou-se, desde seus primórdios, pela idéia de prestação de serviços. Os movimentos europeus de universidades populares, ou a extensão veiculada por eles, diferenciam-se substancialmente das versões americanas. Estas, em geral, resultaram da iniciativa oficial, enquanto aquelas surgiram de esforços coletivos de grupos autônomos em relação ao Estado. A esse respeito, TAVARES (l996: 27), afirma: “ Visando, por um lado, preparar técnicos e, por outro lado, dispensar o mínimo de atenção às pressões das camadas populares, ainda que cada vez mais expressivas e mais reivindicativas, a extensão universitária se consolida através de cursos voltados para 252
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os ausentes da instituição que, sem formação acadêmica regular, desejam obter maior grau de instrução”. Já, na América Latina, a extensão universitária esteve voltada, inicialmente, para os movimentos sociais. Merece destaque o Movimento de Córdoba, de l918. Nesse movimento, os estudantes argentinos enfatizam, pela primeira vez, a relação entre universidade e sociedade. A materialização dessa relação ocorreria através das propostas de extensão universitária que possibilitassem a divulgação da cultura a ser conhecida pelas “classes populares”. Esta foi uma idéia preliminar, que permeou também a organização estudantil no Brasil, a partir de l938, quando da criação da União Nacional dos Estudantes - UNE. Essa idéia foi determinante para a concepção de extensão veiculada pelo movimento estudantil brasileiro.
No Brasil, anteriormente ao movimento estudantil organizado pela UNE, houve experiências de vinculação da extensão com as universidades populares, na tentativa de tornar o conhecimento científico e literário acessível a todos. No início do século, surgem a Universidade Popular da Paraíba e a Universidade Popular de São Paulo, sendo esta a mais importante. Mas, sobretudo com a Universidade Popular de São Paulo, a experiência de extensão a partir da organização universitária inicia-se pela promoção de “cursos de extensão” veiculadores de conteúdos “positivistas ou de disseminação da cultura da elite” (ROCHA, 1989:7). Na concepção veiculada pelo Movimento de Córdoba, a extensão universitária surge como “fortalecimiento de la función social de la Universidad. Proyección al pueblo de la cultura universitária y preocupación por los problemas nacionales” (BLONDY, 1978: 8). Nesse caso, a extensão universitária se desenvolve como uma tentativa de participação de segmentos universitários nas lutas sociais, objetivando transformações da sociedade, sendo esta uma preocupação marcante no movimento de reformas de Córdoba, uma combinação, segundo ROCHA (lbid.:11), da “ideologia nacional-populista então vigente, com uma luta política de combate ao imperialismo, que se traduzia na necessidade de uma aliança panamericana”. Desses ideais, destacam-se dois tópicos constantes na Carta de Córdoba: “a) a extensão universitária entendida como fortalecimento da função social da universidade. Projeção ao povo da cultura universitária e preocupação pelos problemas nacionais; b) a unidade latino-americana e a luta contra as ditaduras e o imperialismo” (ibid.: 13). Essas reivindicações estudantis, entre outras, sugerem que a reforma de Córdoba se movimenta num campo teórico-político muito vasto. Caracterizando-se como um movimento político-estudantil, a reforma mostrou a necessidade de participação das classes subalternas na nação, através da extensão. Tudo isso ocorre num momento político em que a Argentina vivia um clima de anti-imperialismo, projetando-se a necessidade de que, através de segmentos universitários, a própria universidade participasse das transformações sociais. Pode-se compreender que as „tarefas de extensão‟ possibilitariam aos estudantes formas de se familiarizarem com os problemas da realidade, decorrentes dos contatos com o “povo”. O ideário da extensão desenvolve-se voltado para a difusão cultural, sobretudo, para a educação popular - desde o Congresso Universitário, em l908, no México - refletindo-se no movimento de reformas de Córdoba. São esses ideais que inspiram a plataforma dos estudantes brasileiros. A UNE, que é referência da organização do movimento estudantil no país, assume essas idéias, de acordo com ROCHA (Ibid.:13) ao “elaborar o Plano de Sugestões para uma Reforma Educacional 253
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Brasileira”. O ideário de Córdoba está expresso nas funções sociais reservadas para a universidade, assim delineadas: “1) (...) a transmissão e desenvolvimento do saber e dos métodos de ensino e pesquisa através de exercício da liberdade do pensamento, da cátedra, da imprensa, de crítica e de tribuna de acordo com as necessidades e fins sociais; 2) a difusão da cultura pela integração da universidade na vida social popular”(apud, POERNER, 1979:328).
A extensão aqui é entendida em termos de difusão da cultura e de integração da universidade com o “povo”. As vias de implementação serão, naturalmente, os cursos de extensão e divulgação de conhecimentos científicos e artísticos. Trata-se de uma concepção que compreende a função da universidade como “doadora” de conhecimentos, pretendendo impor uma “sapientia” universitária a ser absorvida pelo povo. Por isso, o caráter assistencialista está presente nesse Plano de Sugestões da UNE. A concepção de extensão do movimento estudantil foi sendo divulgada pelas mais diferentes formas em todo o país, através do Teatro da UNE, dos Centros de Debates, Clubes de Estudo, Fóruns, Campanhas para a Criação de Bibliotecas nos Bairros, Agremiações Desportivas das Populações Pobres e, até, Educação Política, com debates públicos, quando a temática era de interesse dos trabalhadores. Com a criação da UNE, o Movimento Estudantil enfrentaria, em vários momentos, a política hegemônica dos grupos dominantes em relação não só à universidade, mas também às políticas voltadas para a sociedade. Em particular, destaca-se a famosa campanha do “Petróleo é Nosso”. Em seu Congresso da Bahia (UNE, 1961: 26), ao discutir a Reforma Universitária, a entidade apresenta os traços marcantes da extensão universitária. Esse documento trata de dois aspectos básicos: a análise da realidade brasileira e a análise da universidade no Brasil. No texto, merece destaque o capítulo que trata da Reforma Universitária que, definindo suas diretrizes, passa a assumir um “compromisso com as classes trabalhadoras e com o povo”. Assim, é que se defende a abertura da universidade ao povo, com prestação de serviços e promoção de cursos a serem desenvolvidos pelos estudantes em faculdades. Esses cursos possibilitariam o conhecimento da realidade por eles e, por isso, a universidade - a extensão - os levaria à realidade. A universidade teria um papel de “trincheira de defesa das reivindicações populares, através da atuação política da classe universitária na defesa de reivindicações operárias, participando de gestão junto aos poderes públicos e possibilitando cobertura aos movimentos de massa” (ibid.: 56). Caberia à universidade, através da extensão, a conscientização das massas populares, despertando-as para seus direitos. Das diretrizes da Declaração da Bahia depreendem-se as características de uma universidade democrática, marcada pela extensão universitária. O Movimento Estudantil, através das mais diferentes formas, encaminhava suas propostas, principalmente pelos Centros Populares de Cultura - os CPCs da UNE - desenvolvendo ações no sentido de “abrir a universidade ao povo” e, por outro lado, de “levar os estudantes à realidade”. Torna-se problemático, nesse documento, o papel da universidade que, enquanto serviço de órgãos governamentais, seria também a “gestora” na defesa das reivindicações operárias. 254
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Mesmo assim, na Declaração da Bahia, o caráter da extensão é marcado pela autoridade do saber universitário e pelo seu paternalismo em relação às comunidades tanto da cidade como do campo. Quanto aos processos de democratização da universidade, as lutas continuavam ainda limitadas a processos eleitorais de que apenas estudantes e docentes participavam. Após 64, a ditadura militar assumiu algumas das reivindicações do Movimento Estudantil, dando-lhes a sua peculiar conotação ideológica1. Inclui como disciplina nos currículos da universidade os estudos de problemas brasileiros. A análise política, contudo, era feita segundo o “catecismo” do poder militar dominante e não traduzia, na prática, o significado dado pelos estudantes, na Declaração da Bahia. No tocante à extensão, a ditadura militar criou vários programas de integração estudante-comunidade como o do Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária - CRUTAC 2, considerado por MATTOS (1981: 108) “um recurso realmente capaz de viabilizar a política de extensão universitária...” , sendo relevantes o destaque que teve o programa na estrutura da universidade e as condições, inclusive financeiras, de sua realização. Foram criados o Projeto Rondon e a Operação Mauá, esta vinculada mais diretamente à área tecnológica. Criaram-se tais programas como expressão política de contenção das reivindicações estudantis e de combate às mudanças de base, defendidas no governo de João Goulart. Com isso podiam apresentar-se às comunidades rurais como os benfeitores da sociedade organizada que preconizavam. Os estudantes podiam desenvolver atividades profissionais, nesses projetos, ainda que de caráter assistencial, tudo sob rigoroso controle político e ideológico. Observe-se o papel político atribuído à extensão universitária, demonstrando como pode também servir ao controle social e político. A universidade pode, dessa maneira, exercer efetivamente uma função social sem estar sob o ponto de vista das classes subalternas. Convém ainda lembrar que, naquele momento, também efetivavam-se duras medidas de repressão sobre a sociedade brasileira e, de forma mais direta, sobre o Movimento Estudantil, vindo a desfazer, em consequência, o sonho da universidade democrática. Ao analisar conceitualmente a extensão veiculada por Córdoba e pelo Movimento Estudantil, ROCHA (l989:27) vê uma dupla possibilidade nessas formulações. A primeira se apresenta como uma linha institucional, em termos de atuação própria da universidade; a segunda se processa no plano organizacional, quando da ação autônoma do estudante, que sempre foi o agente fundamental desse processo. Na vida universitária, a partir da Reforma de l968, a extensão formaliza-se institucionalmente, firmando-se a idéia de prestação de serviço, “como algo próprio e permanente na vida universitária”. A extensão passa a desempenhar papel importante para a realização das políticas do governo, através da extensão universitária, a partir da Reforma Universitária, assumindo uma função oficialmente definida e que tem tido também o objetivo de captação de recursos para complementação de verbas
________ 1 - Ideologia. Ver: LIMOEIRO CARDOSO, Miriam. Ideologia do Desenvolvimento - Brasil: JK - JQ. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2a. ed., 1978. Destacar a partir da temática: A ideologia como problema teórico. p.39. 2.
Para melhor análise, ver: PAIVA, Vanilda. Extensão Universitária no Brasil. Rev. Bras.de Estudos Pedagógicos. Jan/abril/86, vol, 67, no. 155.
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insuficientes das dotações universitárias. A relação da universidade com as “classes subalternas” da sociedade tem se efetivado, preferencialmente, pela oferta de cursos - os cursos de extensão - ou ainda através de serviços médico, odontológico ou jurídico. A extensão se delineará como um canal de construção de hegemonia de setores dominantes da sociedade, enquanto veiculadora, sobretudo, de um saber dominante. Esse tipo de função social se exerceu, de forma marcante, na época da ditadura militar, na medida em que se buscou o controle de total da universidade. É importante destacar que, nos dias de hoje, de novo, o Governo procura também exercer o controle total da universidade com as suas decisões políticas. Essa situação põe em alerta os que desenvolvem atividades acadêmicas e em particular aqueles que estão trabalhando em projetos de extensão. As experiências vêm mostrando que a universidade continua praticamente mantendo essa mesma postura, ao lado dos setores dominantes. Ao discutir o envolvimento da universidade na vida da sociedade, KERR (1982: 97) apresenta uma visão ainda mais ampla da extensão universitária, considerando uma maior “fusão” dos “campi” das universidades com as indústrias e com o próprio governo. Nesse sentido é que compreende a extensão como uma “aprendizagem permanente”, expressando um entendimento idêntico ao que vem sendo apresentado pelas atuais políticas neoliberais para a universidade. SAVIANI (1981), por outro lado, apresenta uma visão não extensionista da extensão universitária. O autor faz um detalhamento sobre o que é o ensino, a pesquisa e a extensão na universidade. Vê o ensino centrado, basicamente, na transmissão do saber; a pesquisa destinada à produção de novos conhecimentos, à “ampliação da esfera do saber humano”. Por fim, a extensão, a terceira função da universidade, “significaria a articulação da universidade com a sociedade” (ibid.: 62). Essa visão se torna importante, pois aquilo que se está produzindo, como conhecimento novo, precisa ser repassado à sociedade e não apenas a um grupo especial que busca uma profissão acadêmica. O autor tenta superar uma visão profissionalizante de universidade. DARCY RIBEIRO (1982), por outro lado, vai tratar a extensão universitária como extensão cultural, considerando-a uma atividade de caráter mais ou menos demagógico, exercida no interior da universidade ou fora dela. Entende tal ação como um “borrifar caridoso” de um chuvisco cultural sobre as pessoas. Para superar essa prática política, propõe que na universidade haja obrigatoriedade no sentido de que todos os seus setores assumam atividades de extensão universitária como atividades regulares. Um segundo requisito é que a “universidade nova” ofereça o maior número possível de “Cursos de Seqüência”. “Para isso, será preciso tornar obrigatória, para todos os Departamentos, a abertura de seus cursos regulares à inscrição de candidatos não curriculares, até o limite de 25% do total das matrículas” (ibid.: 239). Pode-se perguntar se isso constitui democracia na universidade ou não será essa a qualidade de educação pública superior proposta por Darcy Ribeiro. Que significa esse tipo de presença das pessoas na universidade? A quem serve essa medida acadêmica? A idéia de extensão universitária, segundo FRAGOSO FILHO (1984), é algo que vem de fora da universidade. A finalidade principal era, na verdade, o aprimoramento ou desenvolvimento de novas técnicas para a produção, sobretudo nos Estados Unidos. Para ele, a extensão é um recurso inventado para queimar etapas do desenvolvimento, fazendo parte de um projeto da UNESCO, para os países de Terceiro Mundo. Extensão pode então ser entendida como “ação prolongada da universidade junto à comunidade circundante; segundo, como expansão para outra comunidade 256
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carente e distante de sua sede, do resultado de sua atividade universitária” (ibid.:29). Para ele, esta segunda versão também é conhecida por “campi” avançados. MEC (BRASIL/MEC,1985: 31) expressa a importância, bem como a conceituação de extensão universitária, através da Comissão Nacional para a Reformulação da Educação Superior. O relatório final dessa comissão menciona que a extensão universitária vem assumindo formas diversificadas e, conseqüentemente, exige uma melhor definição de sua natureza. A extensão universitária tem adotado as mais variadas formas de atividades como: estágios curriculares, trabalhos de assessorias e consultorias, além de atendimento a setores sociais carentes. Isto posto, a comissão recomendou, na época, estudos sistemáticos para uma maior especificação da “natureza e seu significado para o conhecimento da realidade” (ibid.: 31). Contudo, propõe que as atividades de extensão universitária busquem assegurar a “difusão dos conhecimentos obtidos; a continuidade dos serviços oferecidos à população; a contínua ação recíproca entre a extensão, por um lado e, por outro, o ensino e a pesquisa” (ibid.: 32). Destaca-se sobre extensão, em relação ao MEC, o relatório do GERES (BRASIL/MEC,1986: 3), reforçando a Lei n O. 5.540/68, em que se estabelece o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, prefigurando esta como elemento associado em igualdade de condições. Mas a formulação sobre a extensão é ausente nesse relatório que, por seu turno, reforça sua compreensão idealizada de universidade, com citação de Karl Jaspers, onde a idéia de universidade vincula-se a de sua independência para “a busca da verdade sem restrições”. Para profissionais da área tecnológica, há uma diferenciação também quanto ao conceito de extensão universitária. Para ALENCAR (1986: 99), a extensão universitária apresenta visibilidade quando se formula através de convênios diretos entre universidade e empresa. Assim, vê a extensão contando com programas dentro de possíveis convênios, apontando para um espectro amplo de atividades que, no campo da tecnologia elétrica, envolve programa de visitas de alunos e professores a empresas; visita de engenheiros e técnicos das empresas às universidades; programa de estágios e até programas de atualização técnica de professores junto às empresas. Trata-se de uma visão em que, utilizando-se um laboratório, por exemplo, se pode fazer extensão através da prestação de serviço tecnológico. Uma solicitação que é formulada a um laboratório por uma empresa e sua resposta a essa demanda vão se constituir numa via de duplo sentido, caracterizando uma atividade extensionista. Para o autor esta é uma idéia em que se busca a superação da instituição universitária, entendida como tradicional, caminhando-se, assim, na direção de um perfil moderno de universidade. Vislumbra, dessa forma, a modernização da universidade através da extensão. A extensão, nessa perspectiva, aparece como “função fim, interligada ao ensino e à pesquisa e voltada para a formação de carreiras tecnológicas, em estreito contato com a sociedade, para servi-la em suas necessidades de progresso e desenvolvimento” (ALMEIDA, l992: 61). Esses autores atribuem à extensão um papel modernizador único e bastante sonhador, como se o atendimento dessas necessidades só dependesse da extensão. Antes de tudo, deve-se questionar essa modernização perguntando pelo menos a quem ela serviria, mesmo que se realizasse através da extensão. Para CORDEIRO (l986: 51), de uma maneira geral, as iniciativas no campo da extensão universitária têm se curvado à influência cultural dominante do autoritarismo e do elitismo. Isto conduz a autora a formular dois grandes desafios à 257
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universidade, a saber: a tarefa educativa para construção de uma cultura democrática e a tarefa necessária de se rever a si mesma, frente aos ensinamentos da realidade. Para ela, “esses processos podem se constituir em um só e a extensão, enquanto momento de vivência comunitária, poderá ser um eixo importante para as mudanças que se quer promover”. Tem-se uma perspectiva possível de extensão como eixo possibilitador de alguma transformação, bem como a extensão expressa pela “convivência comunitária”. A proposta de extensão da Universidade de Brasília (UnB: l989), veiculada pelo Decanato de Extensão, caracteriza a sociedade em um nível incipiente de organização, tendo como conseqüência a falta de consciência pelos seus direitos de cidadania. As solicitações imediatas são as primeiras a serem colocadas, vindo fomentar o assistencialismo e não a autonomia dos setores populares. Nessa situação, a extensão universitária pode direcionar-se para “a autonomia política dos segmentos populares, resgatar sua cidadania e lutar contra o tradicional e nocivo assistencialismo (ibid.: 58). Durante o XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste (BRASIL/MEC,1994: 1), a extensão é vista como “um nascedouro e desaguadouro da atividade acadêmica, da qual a pesquisa seria o desenvolvimento das respostas, e o ensino o envolvimento dos estudantes em todas as etapas desse processo ... “. Isto vai implicar a necessária parceria tão propalada nos dias de hoje. Parcerias que se expressarão tanto na dimensão interna como, também, na dimensão externa da comunidade universitária. Tal perspectiva vai abrir a concepção de extensão como “a porta na qual os clientes e usuários têm de bater, quando necessitados” SOUSA (1994: 16). Para o autor, a extensão tem o papel de construir as “passarelas” para o relacionamento da universidade com a sociedade. A universidade exerce, segundo ele, uma liderança na sociedade, pois ela “faz com“ e “faz fazer”. ”Amealhar parcerias. E, num mutirão de solidariedade, consegue navegar” (ibid.:16). Como resultado das deliberações do VIII Encontro Nacional de PróReitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (BRASIL/MEC, 1994a: 3), ter-se-á uma perspectiva de extensão voltada para a cidadania. É a partir do conceito de cidadania que a extensão se externa como um conjunto de direitos civis, políticos e sociais gerando, como conseqüência, deveres do indivíduo para com a sociedade e para com o Estado. Nesse encontro, a universidade é vista como sujeito social, devendo, portanto, inserir-se na sociedade “cumprindo seus objetivos de produtora e difusora de ciência, arte, tecnologia e cultura compreendidas como um campo estratégico vital para a construção da cidadania”. A partir de uma auto-reflexão, a universidade deve possibilitar esse intercâmbio entre si mesma e a sociedade, contribuindo para a construção de uma cultura de cidadania. É diretriz daquele encontro que “as atividades de extensão devem voltar-se prioritariamente para os setores da população que vêm sendo sistematicamente excluídos dos direitos e da compreensão de cidadania” (ibid.: 3). Nesse debate, ROCHA (1980) mostra, sinteticamente, as diferentes formulações “equivocadas” sobre extensão, quais sejam: como prestação de serviços, como estágio expressando, as mais das vezes, a agregação da universidade aos programas do governo, opção de captação de recursos, expressão da autonomia do ensino e da pesquisa, como possibilidade de se estudar a realidade e ainda como qualquer atividade que não possa situar-se como ensino ou como pesquisa. Analisando aspectos ideológicos do “fazer extensão”, FREIRE (1976) sugere a substituição do conceito de extensão por comunicação, entendendo que este último traduz muito mais essa dimensão da universidade, superando o conteúdo de uma educação “bancária e domesticadora” , a qual a extensão possa conduzir. 258
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Para REIS (l994), a extensão universitária, no Brasil, vem apresentando duas linhas de ação, refletindo o próprio conceito. Em uma delas, o autor apresenta a extensão centrada no desenvolvimento de serviços, difusão de cultura e promotora de eventos, daí a denominação de eventista - inorgânica. Na outra linha, denominada de processual - orgânica, está voltada para ações, com caráter de permanência presente ao processo formativo (ensino) do aluno, bem como à produção do conhecimento pesquisa - da universidade. Nessa linha de ação, estão sendo realizadas, em geral, as atividades de extensão por boa parte das universidades brasileiras, com base no conceito de extensão universitária do I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas , em Brasília. Nele a extensão foi considerada: “ Processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e a sociedade. A extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica que encontrará, a sociedade, a oportunidade de elaboração da praxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será associado aquele conhecimento. Este fluxo que estabelece a troca de saberes sistematizado, acadêmico e popular, terá como conseqüência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira regional; a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizada deste processo dialético de teoria/prática, extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social” (BRASIL/MEC, l987: 1). DANTAS (1983: 26), ao analisar a tarefa social que constitui a extensão universitária, em especial ao pensar os serviços da extensão, coloca-a “gravitando” em dois aspectos fundamentais: o primeiro, que é a consideração do saber que existe no povo, destacando a necessidade de não “absolutizar e sacralizar essa sabedoria popular, porém deve-se levar em conta, criticamente, a extensão universitária”. O segundo, que é a extensão voltada à ação que assessora as populações com mecanismos ou instrumentos que as ajudem, tendo em vista a transformação social. Já o Movimento Docente, através da ANDES, ainda voltado à compreensão de extensão como prestação de serviço, vai caracterizá-la à parte, em relação à realização de atividades. Estas devem ser concebidas e estruturadas enquanto instrumentos acadêmicos voltados à formação acadêmica e ao desenvolvimento da pesquisa, bem como a apoios à comunidade. Essas ações não podem estar voltadas à captação de recursos para complementação de verbas das instituições universitárias. O Movimento Docente, admitindo saldos financeiros dessas atividades, entende que “aos departamentos envolvidos cabe gerenciar os recursos eventualmente provenientes dessas atividades dentro de normas gerais, estabelecidas de forma democrática” (ANDES, l985: 20). Isto sugere uma abertura para tais possibilidades de geração de recursos, submetendo-os, entretanto, a uma gestão “transparente” de seu gerenciamento. O Ministério da Educação e Desporto - MEC continua utilizando o conceito de extensão definido no I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão como um processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade. Reconhece a extensão como uma prática acadêmica que visa a interligar as 259
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atividades de ensino e pesquisa com as demandas da sociedade, com isso, procurando assegurar o compromisso social da universidade para com a sociedade. Para o MEC (BRASIL/MEC,1996) a extensão, sendo essa via de interação entre universidade e sociedade, se constitui em elemento capaz de operacionalizar a relação entre a teoria e a prática. Ao assumir o conceito desse Fórum, o MEC coloca também como objetivos da extensão, no ano de l996, a articulação do ensino e da pesquisa, no sentido de atender as demandas da sociedade. Estabelece mecanismos de integração entre o saber acadêmico e o saber popular. Propõe democratizar o conhecimento acadêmico promovendo a participação da sociedade na vida universitária e formando o profissional-cidadão. Pretende, também, contribuir para as reformulações das concepções e práticas curriculares e, ainda, para a reformulação do conceito de “sala de aula”. Para efetivar sua política, o MEC definiu, para l996, o Programa de Fomento à Extensão Universitária, voltado à integração com o ensino fundamental que abrange três linhas básicas: “formação inicial e continuada de professores do ensino fundamental(1a. a 4a. séries); produção de material didático; educação de jovens e adultos” (ibid.: 1). Na vida universitária, como se vê, a extensão vem se colocando, em geral, de forma institucionalizada por parte do poder de Estado, seguindo a tônica da prestação de serviço e, mais que isso, buscando integrar as comunidades a seu projeto de sociedade e de universidade. Isto tem, de certa forma, se constituído em algo próprio e permanente na vida universitária. A extensão assume uma função oficialmente definida, passando a ter um papel de captação de recursos para complementação de verbas insuficientes das dotações orçamentárias. A relação da universidade com a sociedade tem se dado preferencialmente pela oferta de cursos e dos serviços de saúde e jurídico. A extensão se delineia como um canal de construção de hegemonia de setores dominantes da sociedade enquanto veiculadora, sobretudo, de um saber também dominante. A universidade parece manter essa postura. Todavia, o papel da extensão não tem sido apenas o de contribuir para um exercício de ratificação dessas práticas de dominação. Por exemplo, as experiências de extensão, no início da década de 60, da Universidade de Pernambuco; as tentativas de extensão como caráter processual da Universidade de Brasília; projetos de extensão como os da Universidade de Ijuí, no Rio Grande do Sul; projetos de extensão na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), como o SEAMPO ( Setor de Estudos e Assessorias aos Movimentos Populares) e outros projetos em andamento nas várias universidades, onde profissionais atuam, as mais das vezes, de forma isolada, ao que parece, veiculam uma outra visão de mundo, outro papel para a extensão universitária, outra concepção de universidade. Parece importante conhecer como vem se desenvolvendo a extensão na UFPB e, a partir daí, fazer-se uma análise sobre suas possibilidades diante desse quadro da extensão universitária.
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2 - Extensão na Universidade Federal da Paraíba - UFPB 2.1 - Política de extensão na UFPB A Universidade Federal da Paraíba tem presença marcante em todo o Estado, por constituir-se numa instituição que oferece sessenta e cinco cursos de graduação e trinta e seis cursos de pós-graduação, dos quais seis em nível de doutoramento. A área construída e a sua população, de aproximadamente vinte e quatro mil pessoas, são marcas de sua presença no Estado. Presença essa que é notável, sobretudo, na área artístico-cultural do Estado, sendo expressa quando dirigentes do Estado vêm dos quadros da própria universidade - professores ou técnicos - ou quando a arte se faz nas próprias dependências da instituição, em espaços culturais, alternativos ou formais. Num Estado com características econômicas como as da Paraíba, a universidade é bastante solicitada, atuando, às vezes, em áreas de obrigação do Estado e de Municípios. A UFPB é uma das poucas instituições de ensino superior no país distribuída em sete “campi”, cobrindo as várias regiões do Estado. É uma configuração que traz benefícios à população, pois possibilita um “olhar” tanto diferenciado como mais próximo da realidade do Estado e, assim, tenta responder, através da produção de conhecimentos, às suas demandas. “Por outro lado, é essa mesma malha, que, grande e operosa, espalha recursos e pulveriza ações tendo em vista que o MEC não consegue, orçamentariamente, „ler‟ as necessidades mínimas de uma instituição desse porte. Sua matriz orçamentária passa ao largo entre o real e o ideal” (UFPB/PRAC, 1994c: 2). Sendo um centro gerador e formador de recursos humanos em nível de graduação e pós-graduação, é uma das poucas instituições no Estado a desenvolver pesquisa, o que a torna significativa, não somente para o Estado da Paraíba, mas para toda a região nordestina. Quanto à extensão, a UFPB conta com a Coordenação de Extensão Cultural, que vê nessas práticas a saída para o interagir da universidade com a sociedade nas diversas regiões do Estado. A extensão, como conceito, se torna “o elemento catalisador e propulsor dessa empatia, e mais, especificamente, a leitura cultural que essa instituição pode, e deve fazer, da sua identidade e do seu povo” ( ibid.: 2). Uma declaração, na verdade, de uma instituição que busca tornar-se “vanguarda” dos movimentos da sociedade. A Coordenação de Extensão Cultural entende “ser a extensão o caminho mais curto entre a academia e a sociedade que nos sustenta” (Ibid.: 3). Estes são conceitos de extensão apresentados como elemento catalisador e propulsor de empatias ou como um caminho, demonstrando uma diferenciada percepção sobre extensão no próprio setor coordenador da extensão. Essas concepções repassam para a extensão um papel de responsabilidade pela promoção de contatos com a sociedade. Todavia, esse papel não é exclusivo da extensão. Na segunda concepção, elege a extensão como um caminho, pretendendo-o talvez verdadeiro e, conseqüentemente, único. Essa é uma perspectiva que pode expressar o autoritarismo da própria definição. 261
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Na Universidade Federal da Paraíba, a extensão universitária destina-se a toda a comunidade acadêmica - alunos, servidores não docentes e servidores docentes como “um processo educativo, cultural, científico e tecnológico que articula o ensino e pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade” (UFPB/CONSEPE, 1993: 1). Esse processo pode ser exercido com um duplo caráter: o eventual e o permanente. O caráter eventual da extensão é compreendido como a realização de atividades esporádicas que estão voltadas ao aperfeiçoamento e à atualização de conhecimentos. Visa também à implementação de práticas objetivando a produção técnico-científica, cultural e artística. Essas práticas podem estar voltadas a “serviços educativos, assistenciais e comunitários”. O caráter permanente, por sua vez, é aquele conjunto de atividades já elencado, mas que adquiriram formas sistematizadas e de maior duração em relação ao tempo de execução. Esse conceito de extensão já é conhecido dentro das formulações em estudo, mesmo que, do ponto de vista da equipe da UFPB, exista um alerta aos aplicadores de projetos ou programas de extensão - os departamentos - destacando que a “indissociabilidade entre o ensino, pesquisa e extensão é um preceito constitucional, que deverá ser obedecido...”(ibid.: 1), quando da elaboração e realização de planos de atividades originárias de núcleos ou departamentos. Reconhece que a extensão é uma das atividades básicas da universidade, colocando para os seus diversos setores a necessidade de ser tratada de forma compatível com a sua importância quanto aos aspectos de disponibilidade de recursos financeiros, programação das atividades e distribuição de encargos docentes, bem como para efeito de avaliação funcional do docente. Ao enfatizarem a legalidade quanto à indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, os dirigentes reafirmam não a indissociabilidade que é necessária entre ensino, pesquisa e extensão. Reforçam, na verdade, o conceito de extensão exposto anteriormente que também passou a ser uma orientação para os Pró-Reitores de Extensão, ou seja, o conceito de extensão como sendo uma via de mão dupla. Com isso impede-se a tentativa exploratória, papel característico da pesquisa, em buscar outras formas alternativas e conceituais para a extensão. A extensão universitária passou a se realizar através das seguintes formas:
“Cursos de treinamento profissional; estágios ou atividades que se destinem ao treinamento pré-profissional de pessoal discente; prestação de consultoria ou assistência a instituições públicas ou privadas; atendimento direto à comunidade pelos órgãos de administração, ou de ensino e pesquisa; participação em iniciativas de natureza cultural; estudo e pesquisa em termo de aspectos da realidade local ou regional: promoção de atividades artísticas e culturais; publicação de trabalhos de interesse cultural; divulgação de conhecimentos e técnicas de trabalho; estímulo à criação literária, artística, científica e tecnológica; articulação com o meio empresarial; interiorização da universidade” (UFPB/CONSEPE; 1993: 2).
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As formas de extensão acima definidas foram apresentadas aos Centros da Instituição. Nos Conselhos de Centros estão sendo regulamentadas, contemplando-se as especificidades dos diversos campos do conhecimento. Ao se observar a regulamentação em um dos Centros da UFPB - o Centro de Educação - se constata que o conceito de extensão permaneceu, basicamente, igual ao que já havia sido definido pelo Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade (CONSEPE). Pouca ou nenhuma contribuição houve, nesse sentido, na regulamentação pelos diversos Conselhos de Centros. A extensão universitária, considerada “como atividade básica e indissociável de ensino e da pesquisa, deve ser contemplada quanto a recursos financeiros; espaço físico; programação das atividades e distribuição de encargos docentes; avaliação funcional docente” ( UFPB/CE, 1994: 4). Esta é a orientação aprovada, mas, como se sabe, deverá haver muita pressão política, por parte daqueles profissionais que atuam também na extensão, para a efetivação desse dispositivo legal. Vê-se, por outro lado, que a formulação de extensão da UFPB se enquadra perfeitamente nas orientações gerais repassadas aos Pró-Reitores de Extensão para as demais universidades no país. O processo de organização da Pró-Reitoria de Ação Comunitária - PRAC - se inicia com a criação do Comitê de Extensão, com o objetivo de manter discussão permanente sobre as práticas na extensão universitária, sobretudo buscando, através desse grupo, formular políticas para serem desenvolvidas no âmbito dos sete “campi” instalados em todo o Estado: João Pessoa, Campina Grande, Areia, Bananeiras, Patos, Sousa e Cajazeiras. Na instalação desse comitê, discutiu-se a extensão na universidade, ocasião em que o Reitor a considerou como: “... A ligação direta com a comunidade, acreditando no crescimento da UFPB, na construção de uma universidade diferente, com pesquisa de ponta, ensino de qualidade, e a extensão na escuta do que está acontecendo na região, na integração da sociedade e que, independentemente de posições políticas, tem-se que trabalhar para a construção dessa universidade que desejamos” (UFPB/PRAC; 1993a: 2).
Com esse comitê instala-se efetivamente um grupo de discussão sobre questões de extensão, apresentando formas de encaminhamentos com projetos que estão, por sua vez, sendo desenvolvidos em todo o Estado. Tal comitê, tratado como um fórum de debates sobre políticas de extensão no âmbito da UFPB, torna-se também um elemento da estrutura da vida acadêmica. Com sua instalação, evidencia-se uma compreensão sobre extensão, considerando-a um “elo importante que a universidade mantém com a comunidade” (ibid.: 2). Assim, enfatiza-se definitivamente a concepção da extensão como um elo dentro do ideário simbólico da via de mão dupla. Será necessário, para se acompanhar o desenvolvimento de projetos no campo da extensão universitária, através da PRAC-UFPB, destacar-se a avaliação que foi realizada pelos diversos setores voltados para a extensão e, particularmente, para sua decisão de criação de coordenações. A primeira é a Coordenação de Cursos e Programas de Extensão (COPREX), voltada para políticas de incentivos e apoio a cursos que são aprovados em nível departamental. A segunda é a Coordenação de Extensão Cultural (COEX), voltada para implementação de projetos e eventos no campo cultural do Estado. 263
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A terceira é a Coordenação de Assistência e Promoção Estudantis (COAPE), que cuida das questões referentes aos estudantes. A quarta é a Coordenação de Programas de Ação Comunitária (COPAC), que se ocupa da elaboração de projetos de organização das comunidades e movimentos sociais, bem como da efetivação e acompanhamento desses projetos. A quinta e última é a Coordenação de Programas de Integração Universidade Municípios, criada para o atendimento das demandas vindas de prefeituras das várias regiões do Estado. Cuidou-se ainda de organizar um grupo de trabalho para acompanhar, junto à própria universidade, os diversos processos de ordem financeira e de pessoal envolvidos na extensão universitária. A dinamização e a agilização desses trabalhos de extensão ficaram por conta do setor de projetos que passou a ter como um dos objetivos principais a identificação de fontes de financiamento e ajuda para os diversos setores da PróReitoria, atuando na elaboração e encaminhamento desses projetos. Uma tarefa que se apresenta imediata, exigindo posicionamento político da equipe de extensão, é a presença de muitas demandas dos setores sociais organizados, basicamente, de prefeituras. Quem deve ser prioritariamente atendido? Um debate estabelecido e não resolvido a nível de equipe, indica que, pelas orientações gerais, devem ser atendidos todos os segmentos sociais. Porém, isto não é possível pelas limitações intrínsecas da equipe. Segundo análise da equipe da Pró-Reitoria, a PRAC teve crescimento, sobretudo, quanto ao número de funcionários assumindo atividades de extensão, algo incompatível com as suas funções. Em si, atividades de extensão não são da competência de uma Pró-Reitoria específica. A extensão estava muito centrada na PróReitoria de Ação Comunitária, com isso, dificultando o trabalho de profissionais da universidade voltados à extensão que estavam em seus departamentos ou centros. Importa ressaltar, no entanto, que houve um reordenamento de pessoal e, com isto, uma descentralização das atividades de extensão para os departamentos, no sentido de que os projetos de extensão pudessem ser gerados a partir dos profissionais nos seus setores de trabalho. Esse aspecto foi aceito pela equipe, que iniciara o processo de “retorno” da extensão aos centros e particularmente aos departamentos. Na verdade, o papel da Pró-Reitoria é apoiar, vitalizar e coordenar as atividades de extensão no âmbito da UFPB. Nesse sentido, o grupo de reordenamento de pessoal passou a ter o seguinte entendimento da extensão: “Uma atividade acadêmica que se propõe ser o elo de ligação entre a universidade e a sociedade, no sentido de que a ela cabe levar para a sociedade os resultados dos conhecimentos adquiridos e produzidos, objetivando a melhoria da qualidade de vida da população, ao mesmo tempo que permite à universidade apreender os problemas, os anseios, as necessidades existentes na comunidade, de modo, tanto a instigar novas pesquisas quanto a repensar o seu saber” (UFPB/PRAC; 1992: 11).
Portanto, a equipe expõe a sua visão voltada para a extensão como uma via de mão dupla. Para ela, nesse sentido é que a universidade se coloca em um processo permanente de interação com a sociedade. Entende ainda que, sem esse 264
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processo extensionista, a universidade “entra em processo de envelhecimento, de isolamento, de esclerose, deixando de exercer a sua função social” (ibid.: 11). Com o cuidado de não cair em práticas pontuais ou mesmo voluntaristas, a equipe definiu alguns programas básicos que congregassem e fortalecessem os esforços existentes nos diferentes setores da universidade. A visão de mão dupla, como foi apresentada, torna a extensão a única via de se interagir com a sociedade. Nega dessa forma que, através do ensino e da pesquisa, também se interage com a sociedade. A discussão que deve ser encaminhada por qualquer via - ensino, pesquisa ou extensão - é a seguinte: Quem está interessado por essa interação e a quem ela está servindo? Os programas iniciaram-se pela assistência estudantil, caracterizando-se não como mero assistencialismo, pautado apenas pelas distribuições de passagens, doações de xerox, ajudas financeiras individuais como tônicas de Pró-Reitorias de Ação Comunitária, mas para o direcionamento de ações dirigidas aos estudantes, situadas no âmbito da formação da cidadania. “O apoio aos estudantes deve ser feito através de suas entidades representativas em função de uma política do reitorado frente ao movimento estudantil” (Ibid.: 11). Segue-se, com essa política, uma redefinição do programa de bolsas, inserindo-o no programa de extensão e das atividades de pesquisa, estabelecendo critérios de concessão, em que haja pleno conhecimento do segmento estudantil. Estimulou-se a atividade cultural com ações voltadas para a organização de cursos de extensão cultural, mapeamento e dinamização dos espaços disponíveis, existentes na universidade e em todo o Estado. Finalmente, no campo interno, salientou-se a importância no sentido de que as atividades de extensão fossem voltadas ao processo de avaliação da universidade, fomentando os seminários internos de avaliação das atividades de extensão. É interessante ressaltar o desenvolvimento de uma política voltada para os estudantes, a partir da assistência. Será essa a melhor política a ser implementada pela extensão, ensino ou pesquisa para ser desenvolvida com os estudantes? Não será interessante o fortalecimento maior das entidades estudantis primando pela sua autonomia? Com relação aos programas, criou-se o da Integração Universidade/Setor Produtivo, no sentido de estabelecer mecanismos que contribuíssem para a viabilização da integração entre a instituição e o setor produtivo estadual. O programa volta-se para esse setor, de modo a buscar as suas dificuldades ou problemas técnicos que enfrenta, promovendo-se, com os pesquisadores da universidade, o estudo desses problemas. O relacionamento exigiria, por outro lado, a necessária divulgação dos resultados dessas possíveis pesquisas. Até porque já existem na universidade setores com potencial técnico para realizar pesquisa nesse campo. Por conseguinte, não constitui nenhuma novidade a consolidação e expansão de mecanismos como esses. A extensão na UFPB, com esse projeto, continua enfatizando o percurso que vem sendo dado, que é a ênfase ao atendimento ao empresariado. Abre possibilidades de pagamentos por esses serviços prestados, dentro da perspectiva de a universidade colocar-se no mercado para, no futuro, buscar os seus próprios recursos. No campo da saúde, já existiam vários projetos em andamento, alguns deles fixados nos próprios setores e inerentes àquelas atividades, como o atendimento ambulatorial nos HU‟s. Desenvolvem-se ainda atividades voltadas para o campo didático do ensino da saúde como o Estágio Rural Integrado - ERI - do qual participam 265
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estudantes de várias universidades do país, como também ao atendimento odontológico e farmácia/escola. Além dessas atividades, buscaram-se incentivos para outros programas de saúde, inserindo-se o CERESAT - Centro de Referência da Saúde do Trabalhador - e outros programas, no sentido de integrá-los em torno de núcleos de extensão permanente. Um cuidado especial se exige das coordenações de projetos dessa natureza, como o ERI, para não repetir simplesmente a fórmula do Projeto Rondon, em que a extensão se tornou um instrumento muito importante na veiculação da ideologia dominante. Definiu-se também um programa de Apoio e Assessoria aos Movimentos Sociais. A perspectiva desse programa é no sentido de contribuir com o processo organizativo da sociedade civil. A PRAC definiu-se pelo apoio e incentivo às iniciativas que visassem a colaborar, no interior da universidade, com os vários tipos de movimentos sociais existentes na Paraíba - sejam movimentos comunitários, como associações de moradores, cooperativas, comunidades de base e outros, bem como o movimento sindical e movimentos populares. O apoio a esses movimentos não estava voltado apenas para o caráter de suas reivindicações, mas, principalmente, “enquanto experiências de exercício criativo na busca de alternativas viáveis para a superação de aspectos da crise econômica, política e social que passa o País” (Ibid.: 13). O Programa de Extensão Cultural está dirigido à promoção do processo de interiorização da arte e da cultura, em suas diferentes formas de expressão e manifestação, juntamente com outros órgãos do Estado e de prefeituras. Volta-se ainda para a identificação e o incentivo à preservação das diversas manifestações locais de cultura popular. Toda a perspectiva até então analisada configura uma percepção do papel da universidade, particularmente pela extensão, de atendimento a todos os setores sociais. Uma visão eclética da função social da universidade em que ela deve atender a todos devido ao seu caráter de universalidade. Esconde-se dessa forma a idéia de que todos os setores da sociedade são atendidos de forma equânime, tornando sem sentido o debate sobre a existência de classes sociais. Vários foram os encaminhamentos feitos no sentido de inicialmente regulamentar as atividades de extensão da universidade, num processo de institucionalização. Com isso, também foi possível a interiorização das atividades de extensão. Com a criação do informativo Eventos, de divulgação mensal, possibilitou-se a socialização de todas as atividades desenvolvidas nos departamentos, no âmbito de toda a universidade. Pode-se, agora, acompanhar com maior agilidade a programação que está se realizando nos centros e departamentos. Procurou-se viabilizar um programa de cooperação técnica entre as universidades do Nordeste na área de extensão, com destaque para o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis e Comunitários, contribuindo para a definição de uma política nacional de assistência estudantil, destacando a luta pela dotação orçamentária que garanta a implementação dessa política. Existe, ainda, a implementação de um Programa Nacional de Referência de Extensão - PRONARE - em andamento, que está subordinado ao Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão. Destacam-se, na dimensão social-comunitária do Plano de Trabalho para l993, as ações visando à criação de condições básicas para o desenvolvimento das atividades de extensão - a proposta de regulamentação da extensão como orientação para toda a universidade e a criação de bolsas de extensão, com os recursos da própria instituição, como forma de estímulo à participação discente nos projetos de extensão. É determinante, nesse momento, a definição da política de extensão da UFPB, apresentada através do Programa de Apoio ao Ensino de 1o. e 2o. Graus, objetivando a 266
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coordenação e apoio às diversas iniciativas existentes na UFPB, voltadas a treinamento e qualificação da rede pública de ensino de 1o. e 2o. graus. O programa de extensão cultural busca dotar a universidade de uma política extensionista com identidade cultural, “na formação de novos agentes e na difusão dos bens artístico-culturais, a linha mestra de suas ações, na perspectiva de uma nova relação da sociedade com o seu fazer cultural” (UFPB/PRAC, 1993b: 2). Entre as atividades em desenvolvimento até o ano de l994, podem ser destacadas aquelas voltadas à melhoria do ensino de 1o. e 2o. graus, a partir dos diversos núcleos, laboratórios, programas e serviços disseminados pelos vários “campi”, em todo o Estado. Os seis núcleos existentes ocupam-se com atividades que vão desde a educação especial até estudos sobre a mulher sertaneja. Os quatro laboratórios envolvem-se com pesquisa do ensino da Matemática, no Campus II, bem como com a capacitação de professores em Ciências e Matemática, em João Pessoa. Os quatro programas tratam desde a pesquisa em literatura popular até programa de apoio ao ensino de Química nas escolas. Os projetos de extensão, voltados ao ensino fundamental, desenvolvem-se também com as mais variadas temáticas. Há projetos no campo da Comunicação e Expressão, no tocante à linguagem, destinados aos professores de primeira fase do primeiro grau, do município de Olivedos, na Serra da Borborema, “revendo o conceito de leitura e produção de texto” - ou mesmo um projeto, como “o livro de pano é coisa séria” desenvolvido em Campina Grande e Guarabira. Ao todo podem ser listados quatorze projetos no Estado. Ainda no mesmo campo, em Educação Artística e Educação Física, outros projetos se desenvolvem, bem como na área da Matemática - como a Forma e a Figura na Escola, em Estudos Sociais, como o projeto sobre a Avaliação da Qualidade e Melhoria do Ensino de Geografia, projetos da área de Ciências, Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, além de outros projetos, cursos, treinamentos, assessorias, reciclagens, como o projeto de capacitação para professores leigos da zona rural, em Cajazeiras. Além disso, são desenvolvidas atividades em congressos, encontros e até em cursos ao nível de pós-graduação, como o curso de Especialização em Administração da Educação a Distância. Todas essas atividades estão sendo desenvolvidas em trinta e oito municípios do Estado. Em relatório divulgado pela Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários, observa-se a existência de um hiato entre as intenções e gestos no orçamento e nas precárias condições para o desenvolvimento de projetos voltados, em particular, para a extensão universitária. Com o crescente esvaziamento das atividades extensionistas, foi criado um Programa de Bolsas de Extensão “como forma de incentivar o engajamento do corpo discente em projetos elaborados pelos docentes, estimulando, por sua vez, a produção acadêmica nessa área” (UFPB/PRAC, 1994a: 2). Vislumbra-se, na participação do aluno, um canal de reflexão sobre os problemas da sociedade. Essa participação, por seu turno, revigora o saber acadêmico acumulado, através desse “estreitamento das relações entre a universidade e sociedade” (ibid.: 2). Com o objetivo de promoção da participação dos alunos em atividades de extensão, essas bolsas são distribuídas para os programas de Extensão Cultural, Apoio ao Ensino de 1 o. e 2o. Graus, programa de Saúde, Promoção Estudantil, Assessoria aos Movimentos Sociais e Programa de Integração Universidade/Empresa/Municípios. Um programa foi implantado, a partir do mês de setembro de 93, com dotação de duzentas bolsas, distribuídas entre os projetos selecionados nos Centros da Universidade. A distribuição pautou-se por critérios de eqüidade entre os Centros e proporcionalidade em relação ao números de alunos, definidos pelo Comitê Assessor da Pró-Reitoria que, por sua vez, é 267
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composto por assessores de extensão dos Centros e coordenadores da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários. Esses projetos variam quanto aos objetivos, considerando as diferentes temáticas, envolvendo: Curso de Instrumentação Cirúrgica, promoção do I Circuito Integrado de Ciências e Artes, Capacitação de Professores ao Ensino de Ciências, Assessoria ao Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil em Saúde e Segurança do Trabalho, “Design” de um equipamento para fins de Dessalinização de Águas Salobras, Rotinas Trabalhistas, Assessoria às Administrações Municipais na nova Visão Jurídico-Social e Empréstimo de Reprodutores “Sindi” aos Criadores do Semi-Árido paraibano, com objetivos de “melhoramento genético do rebanho bovino da região, difusão da raça Sindi e a observação do desempenho dos mestiços do cruzamento Sindi x Animais comuns da região” (UFPB/PRAC; 1994b: 52). Ao se buscarem os objetivos da Coordenação de Extensão Cultural, encontra-se, nas suas atividades, o relato, de forma sucinta, das principais experiências extencionistas na área cultural. Tem ainda por objetivo: “Oportunizar ao meio universitário, em geral, o conhecimento das atividades desenvolvidas pela administração central no campo artístico-cultural; prestar contas, ao contribuinte, em geral, de tudo o que se fez nesse período administrativo, do menor gesto ao mais problemático projeto; e, registrar e avaliar as realizações, os acertos e os desacertos visando o consolidar um processo de transformação nas maneiras de administrar a coisa pública” ( UFPB/PRAC, 1994c: 3). No relatório de atividades, podem-se destacar os seguintes eventos: reuniões, encontros, seminários, debates, programas e aquelas atividades necessárias para a efetivação dos apoios a eventos, seja em forma isolada ou mesmo em parcerias com outros organismos, inclusive com empresas privadas. Registra-se, no período de janeiro a dezembro de 1994, um total de quatrocentas e onze atividades. Destas podem ser destacadas as seguintes: apoio ao V Curso de Teatro Infantil, à Associação Cultural de Cabedelo (cidade do litoral da Paraíba), ao grupo Lâmpada Mágica, do Curso de Educação Artística, ao Documentário Homem-Peixe, ao vídeo SERTÃOMAR, de Marcus Villar, e ao Núcleo de Documentação - NUDOC. Para a Coordenação de Extensão Cultural, todo esse trabalho está reconhecido no cenário cultural paraibano e nordestino. Isto é decorrente de um programa que leva em consideração “os documentos e discussões emanadas dos fóruns de debates sobre políticas culturais. Esse resgate é um detalhe importante. Queremos mais” (UFPB/PRAC, 1994c: 41). Este “querer mais” vem se confirmar ao serem elencadas as atividades do ano seguinte(1995), constatando-se a realização de seiscentas e noventa e uma atividades, sendo grande parte delas ações do ano anterior, acrescidas de novas atividades (UFPB/PRAC; 1995a). Da Coordenação de Programas de Ação Comunitária (COPAC) destacam-se as atividades conduzidas pela própria equipe da COPAC, incentivando a organização social e melhoria da capacidade produtiva de várias comunidades. Essas comunidades são em número de cinqüenta e cinco, distribuídas em praticamente todo o Estado, sobretudo em comunidades do litoral e brejo paraibanos. Essas atividades organizativas passam por criação de associações em muitas dessas comunidades, como 268
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Associação dos Pescadores de Costinha, Associação de Moradores da Aldeia Cumaru, em Baía da Traição e Associação de Moradores da Praia de Campina, no Município de Rio Tinto. Além disso, incentiva, no processo de organização, a criação de conselhos como o Conselho Indígena da Aldeia São Francisco, Conselho Indígena Nova Jerusalém, na aldeia Tracoeiras, na Baía de Traição, Conselho Indígena Tupã, Conselho dos Indios Potiguaras, Conselho da Aldeia de Jacaré de São Domingos, em Rio Tinto, e incentivos às atividades sindicais, como também à luta pela posse da terra. As atividades desenvolvidas nessas comunidades são sistematizadas por projetos - os mais variados - tais como: barcos de pesca, projetos agrícolas, projetos de produção de confecção e costura (Bairro do Areial) ou projetos de horticulturas. Desenvolve-se um total de dezenove projetos (UFPB/PRAC, 1993c: 3). Os cursos organizados também constituem atividades dessa coordenação e ajudam, por vezes, as lideranças comunitárias na própria comunidade. Há ações voltadas para a saúde e promoção de mutirões de canais para plantio em várzeas e até abertura do Rio Jaguaribe, em João Pessoa. Foram ainda atividades dessa coordenação, em l995, o apoio ao plantio em dez comunidades e o apoio à distribuição de mudas em parceria com o Estado. Nesse ano, realizaram-se trezentas e trinta e oito reuniões, nas várias comunidades, abordando os diferenciados trabalhos dirigidos a sua organização. Destaque-se ainda o necessário acompanhamento desses movimentos. Registre-se também, como importante, a articulação com outras instituições, em nível estadual ou mesmo federal, como o IBAMA, EMATER, FUNAI, INCRA, e Bancos, como o do Brasil e do Nordeste, além de Secretarias de Governo e ONGs internacionais. Para acompanhar essas ações, existe o programa das bolsas de extensão. As equipes que fazem parte desses programas ou projetos são constituídas de alunos dos mais variados cursos, tais como: Filosofia, Serviço Social, Odontologia, Educação e Medicina. Já se registram conquistas resultantes dessas lutas, como a desapropriação de terras do litoral para os moradores da comunidade praieira da Penha e conquista de várzeas para plantio, sobretudo em períodos de seca, na região do Vale do Mamanguape, composto dos Municípios de Mamanguape, Rio Tinto, Baía da Traição, Itapororoca e Espírito Santo. Conquistou-se também a demarcação de terras indígenas, na aldeia de Jacaré de São Domingos; criação de uma Federação de Associações Comunitárias de Pequenos Produtores, no Vale do Mamanguape; apoio a pequenos produtores no plantio em terras até mesmo da própria universidade, bem como assessoria ao Banco do Brasil quanto ao acompanhamento de projetos do Fundo de Desenvolvimento Comunitário - FUNDEC, para as comunidades rurais, nos municípios de Bananeiras, Fagundes, Solânea e Caaporã ( Mata Sul do Estado). Em relação ao Programa de Assessoria aos Movimentos Sociais, destacase o movimento sindical, com projetos em parcerias com a Secretaria Nacional de Formação, da CUT; com os Sindicatos de Trabalhadores em Educação do Estado; com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de vários municípios, contribuindo na sua organização burocrática e nos projetos de educação de adultos, assim como educação sindical para lideranças do movimento sindical. Em particular, registra-se o apoio ao Sindicato da Construção Civil, em João Pessoa, com diversas assessorias, destacando-se o projeto de alfabetização nas construções da cidade, denominado Projeto Escola Zé Peão. Com as comunidades rurais surgem demandas no sentido de montar programas com assessorias da UFPB, como as dos sindicatos das cidades do Conde e Pitimbu. No 269
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âmbito da Educação Física, são solicitados até padrões de camisa de futebol para organização do esporte nessas comunidades e organização de comitês contra a fome. Nesses movimentos, unem-se tarefas da Pastoral Operária, da Igreja Católica, de Centros Sociais e Movimento dos Sem-Terra, quando existentes, além de organizações não governamentais. Das ações concretas, a Coordenação destaca as seguintes: roçados comunitários em comunidades das várias regiões do Estado; hortas comunitárias ou de quintal, projeto de captura de pescado na Praia da Penha e apoio à educação rural. Vários desses projetos são realizados em parceria com diversas instituições, a exemplo da FAC - Fundação de Ação Comunitária - e até com a Marinha do Brasil, na orientação técnica de navegação marítima em cursos para os pescadores. No ano de l995, as atividades foram acrescidas com novas frentes de trabalho. Implementaram-se maiores níveis de organização com aquelas comunidades onde vem se desenvolvendo algum projeto de extensão. A COPAC destaca a participação de seus técnicos, estudantes e professores nos seguintes setores: programa de Comunidade Solidária, do governo federal, juntamente com a Casa Civil do Governador do Estado da Paraíba; trabalho ligado aos pescadores da Praia da Penha; assessoria nas comunidades com ONGs como a AGEMTE (Assessoria de Grupo Especializada Multidisciplinar em Tecnologia e Extensão) e a Visão Mundial; grupos de assessorias dessas organizações, desenvolvendo ações em dezessete municípios, nas regiões do Agreste, Litoral, Brejo, além de quatorze municípios do Cariri. O relacionamento da universidade com outras entidades, mesmo as estatais, insere-se na linha do discurso das parcerias. Aqui também lançam-se as equipes de projetos de forma pouco analítica sobre o significado dessas parcerias com projetos ou campanhas governamentais. Atende-se a essas demandas, justificando-se apenas pelo convite que foi feito à universidade. Ora, a universidade pode dizer não. Esta é uma opção política de suas equipes de trabalho na extensão. É preciso, portanto, uma análise sobre essas solicitações, questionando os destinatários e a que políticas podem estar atendendo. Operacionalizou-se o acompanhamento do Convênio UFPB/ INCRA, nas áreas de assentamento de reforma agrária, na Paraíba, através de vários projetos, como a publicação do Atlas Geográfico e Fundiário do Estado, produzido pela Profa. Emília De Rodat Moreira. Fez-se o levantamento de áreas de tensão e conflitos de terra no Estado e instalação de vários núcleos habitacionais. Destacam-se a formação de banco de germoplasmas e campos de multiplicação de sementes selecionadas de várias espécies e o aproveitamento nas áreas de assentamento do INCRA, sob a responsabilidade de docentes da área de agricultura do Campus de Areia. Ressaltem-se também cursos de capacitação em dez áreas de assentamento sobre gerenciamento de associações de pequenos produtores rurais e associativismo, assim como a parceria realizada com a implantação do Projeto CONTACAP/INCRA, sob a responsabilidade do INCRA, BNB, DEFARA, INTERPA, EMATER - organizações do Estado - o MST e a CPT , sob a coordenação de professores da universidade. No total listam-se quarenta e dois projetos ou atividades em desenvolvimento. Na parte esportiva, estão envolvidas duas mil, oitocentas e quinze crianças, além de outros projetos que atendem as mais variadas faixas etárias, como o projeto do Núcleo sobre a Terceira Idade, do qual têm surgido trabalhos monográficos ao nível de especialização em Gerontologia, voltados a temáticas ” da afetividade na meia - idade para as mulheres que estão realizando curso de pós-graduação na UFPB; o alcoolismo como causa da senilidade”(UFPB/PRAC; 1995; 8). 270
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A Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários tem expressado uma preocupação contínua com a construção de uma base institucional, assegurada ao nível dos conselhos da universidade, para a implantação e execução de uma política de extensão. Como síntese das atividades desenvolvidas até final de l994, a coordenação apresenta as seguintes iniciativas ( UFPB/PRAC; 1994d: 105): a) regulamentação das atividades de extensão pelo Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE); b) desenvolvimento de ações junto às assessorias de extensão; c) criação e implantação do programa de bolsas de extensão; d) implantação do banco de dados sobre a temática ligada à extensão - o Bandex; e) estímulo e apoio às assessorias de extensão; f) reestruturação do setor de registro de eventos da universidade; g) calendário de eventos; h) elaboração do catálogo de atividades permanentes de extensão; i) apoio material a eventos; j) criação de uma equipe de apoio estrutural a eventos; k) reorganização da Pró-Reitoria; m) participação na elaboração do projeto de avaliação institucional, em andamento na instituição. Com essas atividades, a Pró-Reitoria entende que, juntamente com as assessorias de extensão dos centros da universidade e dos departamentos, os seus vários segmentos “têm contribuído efetivamente para o resgate das atividades de extensão da UFPB. ... tem-se procurado recuperar a importância da extensão, lado a lado com o ensino e a pesquisa, enquanto funções legitimadoras da própria existência da universidade” (Ibid.: 128). Essa recuperação deu passos importantes quando da realização do I Encontro Integrado de Ensino, Pesquisa e Extensão, em 1995. O Encontro não expressou ainda uma „perfeita‟ indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, mas apontou um caminho. Nesse encontro realizaram-se outras atividades, a saber: a) o III Seminário de Monitoria, com apresentação de quarenta e oito temáticas na área do ensino; b) o III Encontro de Iniciação Científica, com apresentação de seiscentos e oitenta e quatro trabalhos, dos quais duzentos e cinquenta e oito em painéis, e quatrocentos e vinte e seis sob a forma de comunicação oral, correspondentes aos bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC - sob avaliação do CNPq (UFPB/PRPG, 1995); c) o II Encontro de Extensão, com apresentação e exposição de cento e oitenta projetos de extensão assim distribuídos: sessenta e oito projetos voltados para a articulação com o ensino de 1o. e 2o. graus, quarenta e oito na área de saúde, dezoito de articulação da universidade com o setor produtivo, nove projetos de extensão cultural, trinta e cinco voltados à ação comunitária e três projetos identificados como de outras políticas públicas, a exemplo do projeto de assessoria em contabilidade pública das prefeituras municipais do Estado da Paraíba ( UFPB/PRAC, 1995b). Todas as atividades desenvolvidas constam de forma mais explicitada no relatório de atividades da Pró-Reitoria, referente ao ano de 1995, reforçando os objetivos já expostos para o campo da extensão. O relatório apresenta também as ações desenvolvidas pelas suas várias coordenações - COPREX (cursos), COAPE (estudantes), COPAC (ação comunitária) e COEX (cultural), detalhando nesta última os projetos permanentes e as atividades em andamento: as do núcleo de Teatro Universitário, os projetos do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular, o Núcleo de Arte Contemporânea, o Coral Universitário, o Balé Popular da UFPB e demais atividades do Núcleo de Documentação. São destacados também o II Encontro de Extensão, as publicações e os investimentos nesses setores, bem como as 271
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dificuldades financeiras diante das políticas públicas voltadas para a universidade (UFPB/PRAC; 1995 c). Assim, entendem os coordenadores que a extensão, embora não tenha se iniciado nesse período administrativo, venha apresentando, contudo, maior ritmo e corpo institucional. Buscando ainda a manutenção do debate em torno da problemática da extensão universitária, o desenvolvimento de processos de avaliação e a dinamização das atividades extensionistas, a Pró-Reitoria volta-se para a criação de convênios com vários órgãos e instituições estatais, bem como com entidades da sociedade civil. O objetivo é “a obtenção de recursos e melhorar a possibilidade de viabilização de projetos e práticas de extensão, em quase todas as áreas de conhecimentos onde a UFPB tem produção acadêmica significativa” ( UFPB, 1996: 45). Como se vê, é também propósito da administração da universidade encaminhar a obtenção de recursos a partir da extensão universitária. Isto expressa uma confluência administrativa com o discurso do projeto neoliberal que se instala nas instituições de ensino superior. Dos programas institucionais em andamento na universidade, particularmente os voltados à extensão, pode ainda se destacar, no campo da ação comunitária, o Programa de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho, em ações conjuntas com mais trinta outras universidades brasileiras, envolvendo, interna e externamente, grupos de acadêmicos preocupados com as questões da temática do trabalho. Há a publicação de catálogo das produções teóricas e relatos de experiências nesse campo, ao nível do Estado, bem como a publicação de um boletim da UNITRABALHO/PB. Há o programa dirigido à criação de políticas de extensão voltadas para a assessoria de grupos e movimentos sociais e o programa de apoio a projetos produtivos comunitários, que articula várias iniciativas de grupos ou setores da universidade. Isto vem possibilitando a viabilização de alternativas produtivas rurais e urbanas, juntamente com órgãos governamentais e entidades da sociedade civil, possibilitando a realização de projetos e atividades em cinquenta e duas comunidades rurais, oito comunidades de pescadores, onze comunidades urbanas, com a presença da universidade em cento e vinte e um municípios da Paraíba (Ibid.: 47). Essa presença é marcada por atividades de acompanhamento de produção, assessoramento, realização de cursos, treinamento e participação na implantação de área de proteção ambiental. Pode-se perceber o leque de demandas advindas da sociedade para a universidade, exigindo as devidas soluções. Por isso, a instituição universitária deve estar permanentemente atualizada e qualificada no que diz respeito aos instrumentos de ações e de políticas no campo da extensão, para seu atendimento ou não. A compreensão da administração é que o seu atendimento é expressão construtiva para uma universidade verdadeiramente pública. Esse atendimento não necessariamente pode significar a construção de uma universidade radicalmente pública. Ela pode desenvolver ações radicais, no sentido de torná-la pública, caso esse atendimento esteja voltado aos processos de democratização interna da universidade. Deve-se esclarecer também se essas demandas têm origem em setores da maioria da sociedade ou de pequenos grupos participantes das elites que dominam politicamente o Estado. São alguns procedimentos que podem construir uma universidade “mais radicalmente pública”. Mas não se pode conceber a universidade, por mais que sua direção seja “comprometida” com o social, como uma instituição que está agindo com 272
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“desprendimento”, em busca de algum “nobre ideal”. A “polivalência” no atendimento às comunidades pode sugerir melhores análises sobre o relacionamento da universidade com aqueles que estão sendo “servidos” por seus projetos. O atendimento da universidade em relação à comunidade não pode desconhecer a heterogeneidade que é inerente, tanto à própria universidade como à comunidade. É um equívoco pensar a sociedade como algo homogêneo, sem diferenciação de classes. Assim, são múltiplos os interesses que presidem as relações entre sociedade e universidade. Atualmente, mais críticas são apresentadas às práticas e conceito de extensão universitária. É preciso voltar-se às atividades de extensão que desenvolvem esforços “de construir o conhecimento e educar a população para atuar de acordo com o melhor conhecimento disponível” (BOTOMÉ, l996: 83). A extensão, no contexto em que se está vivendo no país, tem apresentado problemas de concepção sobre o papel da universidade e sobre o que é possível ser feito. Nesse sentido é que experiências em extensão merecem análise mais detida, na busca de suas formulações e possibilidades transformadoras. A partir da análise crítica de algumas dessas experiências desenvolvidas na UFPB, cabe perguntar: Há práticas de extensão que contribuem para a construção da hegemonia dos setores sociais não burgueses? Há elementos dessas experiências que permitem ultrapassar a concepção de extensão limitada à realização de eventos ou programas temporários? São questões que estarão norteando esta pesquisa.
2.2 - Projeto CERESAT O CERESAT - Centro de Referência de Saúde do Trabalhador - está vinculado à Universidade Federal da Paraíba, através do Núcleo de Estudos de Saúde do Trabalhador (NESC). Formou-se a partir de um grupo de profissionais da universidade, preocupados com a necessidade de realização de um trabalho interdisciplinar. Há economistas, médicos, geógrafos, psicólogos e outros profissionais que buscam analisar a relação da saúde e dos processos da saúde com o processo da produção. No que se refere à saúde, o grupo vincula-se a uma perspectiva da medicina social atual, que elabora a sua análise a partir de instrumental marxista, buscando alcançar e entender a origem da doença. Na área da saúde, que se caracteriza por ser um setor crítico da visão biologicista dominante nas análises sobre as doenças - a doença como sendo causada por agentes biológicos que apareceriam, de repente, para atacar o ser humano. Aquela visão crítica vai mostrar, por outro lado, que os agentes biológicos causadores das doenças não surgem dessa maneira, mas que existe uma história da doença. A partir dessa concepção, busca-se a problematização dessas relações. Esta idéia não é novidade no âmbito da organização dos trabalhadores. Entre os trabalhadores italianos, há bastante tempo vêm se colocando as questões de saúde no conjunto de suas reivindicações. Saliente-se que na Itália, bem como no Brasil, esse movimento esteve inicialmente ligado diretamente aos sindicatos. Entre os seus princípios básicos há a compreensão de que os trabalhadores não devem delegar a responsabilidade de sua saúde a nenhum técnico ou mesmo a nenhum Estado. Outro aspecto desse movimento é a idéia da necessidade de uma política de afirmação da experiência operária conduzida pelos próprios operários. No caso em que um trabalhador esteja com problemas de saúde decorrentes do uso de uma máquina, não sendo o problema detectado pelo médico da empresa, recomenda-se que todos devem
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denunciar as condições existentes. A experiência operária italiana promove a politização dos trabalhadores também em relação à saúde. A saúde entra como elemento dinamizador da política do sindicato. Na Itália, ocorreu uma aliança entre as centrais sindicais, de modo que em muitas fábricas os operários passaram a exercer a própria vigilância sanitária, no sentido de lutar por mudanças no ambiente de trabalho. Essas lutas levaram a reformas importantes no campo da saúde, em todo o mundo, inclusive no campo da psiquiatria. “O trabalhador está com problema neurológico, mas está por quê? Como é que pintou esse problema neurológico? Foi desde criança? Ou foi alguma substância, tipo mercúrio, que está no seu ambiente de trabalho que causou essas lesões neurológicas irreversíveis?” 1 O resultado de todo esse movimento é que o trabalhador mutilado no trabalho, por exemplo, passa a ser analisado a partir do ponto de onde esse problema surgiu e tem a ver com a sua condição de trabalho. Passa-se a ter uma vigilância sanitária nos locais de trabalho. E o que é a vigilância sanitária? “ É o lado político e que tem um lado técnico, que é você ter a capacidade de ir lá e fazer a sua investigação no ambiente de trabalho”2. Esta é uma estratégia de cunho nada regional ou mesmo nacional, adquirindo dimensões hoje internacionais. No caso do Brasil, também é um movimento amplo de dimensão maior, agrupando profissionais na Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraíba e outros Estados. Procura juntar três aspectos na saúde: a assistência, isto é, cuidar do „paciente‟ com o seu problema e conhecer o local de trabalho; desenvolver uma vigilância epidemiológica construindo um banco de dados para desenvolver a vigilância sanitária. Essa vigilância exige maior empenho político e, portanto, é mais difícil de se realizar, já que implica mudança do ambiente de trabalho. Os sindicatos, dessa forma, podem ter um campo importante para sua atuação nesse aspecto. No Brasil, essa experiência do operariado italiano é absorvida muito mais pelo movimento sanitarista e bem menos pelo movimento operário. Na Paraíba, esse projeto é gerado partindo da preocupação de se fazer a articulação da universidade com os movimentos sociais. A partir do SEAMPO (Setor de Pesquisa e Apoio aos Movimentos Populares), ligado ao CCHLA/UFPB, cria-se o grupo que vai tratar a saúde do trabalhador como ente de pesquisa. Esse movimento inicia-se na década de 70. Na Paraíba, no início da década de 90, cria-se a rede de informações sobre a temática, com a finalidade de fazer avançar a organização das informações, bem como de reduzir a sua burocracia. Com a criação do CERESAT, monta-se a estratégia de não se limitar a trabalhos isolados e nem ao nível de poucos sindicatos.
__________ 1. 2.
Membro da equipe do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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Executa-se o trabalho, mas coloca-se também a necessidade da absorção dessa política pelo Estado, isto é, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), considerando, inclusive, a exigência da legislação em vigor de “que a saúde do trabalhador seja assumida pelo Sistema Único de Saúde”1. O CERESAT tem atuado nos níveis sindical e governamental, incentivando a criação do Fórum Estadual de Saúde do Trabalhador, com entidades estaduais e com o SUS. Criou-se ainda o Coletivo de Saúde, Trabalho e Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhadores - CUT. As atividades do CERESAT vêm se desenvolvendo também em municípios da Zona da Mata (como o município de Mamanguape), do Litoral (como o município de Caaporã) e em sindicatos da zona urbana da grande João Pessoa. Mais recentemente vem desenvolvendo, junto ao Hospital Universitário o Programa de Saúde do Trabalhador, que apresenta como objetivo: “Contribuir com a melhoria da qualidade de vida do trabalhador realizando assistência integral à sua saúde através de:
a) consultas para trabalhadores de um modo geral, com a finalidade de fornecer diagnóstico, tratamento e referências para ambulatórios clínicos e internamentos hospitalares; b) estudos epidemiológicos a partir dos casos registrados de doenças e agravos relacionados com o trabalho; c) formação de profissionais na área de Saúde do Trabalhador” (UFPB/PRAC, JAN/1995).
Em todos os municípios ou sindicatos onde vem atuando, o CERESAT tem sido, no princípio da discussão coletiva, o fator propulsor para se “aumentar a compreensão de todos sobre o processo gerador de saúde/doença, além de possibilitar a tomada de posição dos interessados na solução dos problemas identificados” ( STRC/SACTES/UFPB, 1993:151). Observe-se a seguir como os temas da pesquisa aparecem neste projeto, após a quantificação de seus indicadores ou variáveis.
__________ 1.
Membro da equipe do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa.
275
276
GRÁFICO 1 FREQÜÊNCIA DOS TEMAS
2000 1800 1600 1400 1200 1000 IX
800 V II
600 V
400 III
200 I
0 26
25
1
I. II. III. IV. V.
8
6
2
5
17
2
8
%
Concepção de mundo Concepção de sociedade Concepção de Estado Configuração dos interesses sociais Concepção de prática social 276
277
VI. VII. VIII. IX. X.
Relação universidade-sociedade Concepção de extensão universitária Natureza do trabalho social na extensão Papel do agente institucional Pedagogia da extensão universitária
Em termos quantitativos, salta aos olhos que três temas aparecem de forma mais expressiva: os temas I - concepção de mundo, II - concepção de sociedade e VIII - natureza do trabalho social na extensão veiculados pela coordenação do projeto(A), pelos executores do projeto (B) pelos membros da comunidade entrevistados(C) e pelos textos produzidos no projeto(D). É conveniente observar com cuidado os demais temas que, mesmo não se sobressaindo pela quantidade, podem apresentar aspectos importantes para a análise. Note-se que os temas IV - configuração de interesses sociais, V - concepção de prática social, VII - concepção de extensão universitária e X - pedagogia da extensão universitária, aparecem com resultados quantitativos muito próximos. Chama também a atenção para a pouca expressão em quantidade de dados dos temas III - concepção de Estado, VI - relação universidade-sociedade e IX papel do agente institucional. O gráfico aponta, apenas, para uma primeira aproximação com o material empírico, que deverá ser analisado na sua consistência e nas possíveis contradições que abrigue. A simples distribuição percentual dos temas, no total de entrevistas e documentos analisados num determinado projeto, não significa mais do que o volume relativo das informações que os conjuntos dos textos coletados apresentam. É, dessa forma, um dado importante que assim precisa ser considerado, mas que requer a análise qualitativa da sua expressão e compreensão interna para que se possa chegar a alguma conclusão. Neste estudo, cabe lembrar que se manterá sempre como preocupação central a busca de elementos que permitam a continuação do debate sobre extensão universitária, especialmente no seu aspecto conceitual. A Tabela 1 - Distribuição dos temas e itens, por segmento - permite um maior detalhamento da análise. TABELA 1 DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO 1
Temas
Itens 1.1 - Visão que privilegia o mercado
I - Concepção de mundo
1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc.
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado IV - Configuração dos interesses sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidade-sociedade VII – Concepção de extensão universitária
1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: ( contradições de classe ) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social ( construção de nova hegemonia )
A% 07 06 87 04 01 95 22 33 45 00 57 43 02 98 38 00 62 61 06 33
B% 06 02 92 02 04 94 14 50 36 03 21 76 05 95 65 11 24 29 08 63
C% 09 02 89 01 03 96 67 00 33 00 10 90 03 97 58 33 09 66 00 34
D% 09 01 91 03 01 96 00 100 00 07 68 35 06 94 31 56 13 62 01 37
Fi 136 36 1668 43 43 1713 06 16 10 11 155 425 19 423 41 17 16 167 17 16
% itens 07 02 91 02 02 96 19 50 41 02 26 72 04 96 55 23 22 48 05 47
Fgi
% tema
1840
26
1799
25
32
01
591
08
442
06
74
02
349
05
277
278
VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X – Pedagogia da extensão universitáRia
8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador 9.1 - Agente de interesses do mercado ( capital ) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores
00 09 91 14 28 58 00 100
C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos
02 06 92 64 01 35 00 100
00 08 92 36 41 23 00 100
04 09 87 55 14 31 00 100
23 89 1063 85 21 51 00 549
02 08 92 54 13 33 00 100
1175
17
157
02
549
08
Fi - Freqüência de indicadores Fgi - Freqüência geral dos indicadores
1.
Esta tabela mostra a composição interna dos temas com seus itens, a freqüência dos indicadores por item e seus percentuais considerados separadamente nos documentos e nas entrevistas - estas distribuídas em entrevistas com os coordenadores, os executores e os membros da comunidade alcançada pelo projeto. Mostra ainda a frequência geral dos indicadores de cada tema, bem como o percentual desse tema no conjunto do projeto.
Concepção de mundo e de sociedade De acordo com o instrumento de análise construído, o tema I concepção de mundo, pode manifestar-se através de uma visão que privilegia o mercado, em sintonia com as perspectivas dominantes nesse momento, no que tange às políticas públicas em andamento no país. Nessas políticas destacam-se temáticas que podem ser tomadas como indicadores úteis para se detectar tal tendência num discurso, como o da qualidade fixada pela eficácia e pela eficiência, projetando a competência e a competitividade a serem asseguradas pela qualidade total. O mercado, a empresa, o lucro e o faturamento são preocupações marcantes nessa tendência. Outro item do tema concepção de mundo a expressa através de uma visão integradora entre instituições e pessoas, aperfeiçoando a sociedade. No caso em estudo, o pequeno produtor, parcerias e integração são marcas dessa concepção. Um terceiro item, adotado como possibilidade neste tema, exprime o mundo através de uma visão transformadora, em que se dá ênfase aos movimentos sociais, às classes sociais, às relações capital-trabalho e à luta e organização dos setores subalternos da sociedade. No projeto CERESAT, a análise do tema I mostra grande consonância entre coordenadores, executores, comunitários e documentos, todos adotando em sua grande maioria (de 87% a 92%) uma visão transformadora do mundo, sendo também um dos temas quantitativamente mais destacados em todo o projeto, com um índice de 26% do total dos temas. Isso significa pelo menos uma grande e comum preocupação em definir o projeto em termos de transformação social. No caso deste projeto, não parece que essa preocupação se manifeste unicamente no discurso. No tema II - concepção de sociedade, três perspectivas definem as possibilidades enquanto itens, quais sejam: sociedade como um conjunto de instituições independentes; sociedade como uma totalidade integrada, que pode se revelar sob a forma de sistemas ou subsistemas, pela perspectiva funcional dessas organizações e da vida em sociedade e, sobretudo, a concepção de vida em equilíbrio entre as classes ou a ausência de conflitos. Inclui a defesa do controle social. A comunidade é vista como um 278
279
todo homogêneo, como também “a população” e “o povo”. A terceira possibilidade entende a sociedade como um modo de produção, definido a partir de uma base material. Enfatiza-se a existência de conflitos sociais, as lutas entre trabalhadores e patrões, a presença de “movimento” como categoria fundamental da concepção, além do destaque aos movimentos populares e sociais. Os índices do tema II mostram consistência entre as posições expressas por coordenadores, executores, comunitários e pelos documentos gerados nos projetos(variando de 94% a 96%) e são quantitativamente expressivos, atingindo o índice de 25% do total do projeto. As concepções de mundo e de sociedade se especificam na concepção da relação entre universidade e sociedade (tema VI). Essa relação apresenta, a partir da perspectiva da particularidade da universidade, a percepção que se tem do mundo, bem como da sociedade. Uma possibilidade de expressão dessa relação considera a universidade como instituição do saber, com vida independente da sociedade. Trata-se de uma visão marcada pela ênfase na produção neutra de conhecimento, sendo a universidade tratada como organização fechada e deslocada da sociedade e, especificamente enquanto tal, como geradora e difusora de conhecimento, capacitadora e formadora. Uma outra perspectiva coloca a universidade voltada para o mundo empresarial, caracterizando-a nos mesmos termos que a universidade privada. Aí a ênfase passa pelo desenvolvimento do próprio Estado e do empresariado, sendo a instituição universitária vista como prestadora de serviço às empresas ou de consultoria através de convênios. Uma terceira posição define a universidade como um aparelho de hegemonia permeado por conflitos político-ideológicos, inclusive com a presença de movimento político interno em disputa para torná-la efetivamente pública, gratuita, de qualidade, autônoma, democrática, laica e necessariamente crítica. Esta é uma visão onde são apresentadas as contradições, as mediações, os embates políticos e ideológicos, a disseminação do conhecimento e as possibilidades alternativas, com ênfase nos processos de democratização da universidade e da sociedade. A análise dos itens do tema VI, considerando a origem dos textos(documentos do projeto e entrevistas com seus coordenadores, executores e membros da comunidade alcançada), revela inconsistências, discrepâncias e contradições. Para os executores do projeto e para os membros da comunidade a universidade aparece como uma instituição do saber, independente da sociedade(65% do tema entre os executores e 58% entre os comunitários). Já para os coordenadores do projeto, 62% dos indicadores deste tema apontam para uma compreensão da universidade como aparelho permeado de conflito. Chama ainda a atenção o fato de que 56% dos mesmos indicadores nos documentos concebem a universidade voltada para o mundo empresarial. É interessante essa discrepância. Nos documentos do projeto, a universidade é pensada prioritariamente enquanto ligada ao mundo empresarial, secundariamente enquanto instituição independente e minoritariamente enquanto aparelho ideológico. Cabe indagar como e em que circunstâncias este projeto foi concebido. Os dados disponíveis na pesquisa indicam que pelo menos os atuais coordenadores adotam uma concepção de relação entre universidade e sociedade que é bem distinta daquela que se expressa nos documentos do projeto. Nas entrevistas com os coordenadores, a posição majoritária nos documentos é completamente ausente. Há, mesmo, uma completa inversão de posições neste tema em relação aos dados provenientes dessas duas origens. Entre os coordenadores, 62% de suas manifestações 279
280
sobre o tema VI consideram a universidade como aparelho ideológico e 38% como instituição independente. Por outro lado, executores do projeto e membros da comunidade atendida adotam majoritariamente a identificação da universidade como independente da sociedade. A posição que identifica a universidade como aparelho ideológico aparece em 24% das manifestações do tema VI entre os executores do projeto e em apenas 9% entre os comunitários. Os dados desse tema mostram compreensões e expectativas diferentes quando são comparados pela origem dos textos em estudo. As diferenças e mesmo divergências encontradas indicam tensões que podem ser bastante significativas. Esta discussão envolve a questão do mercado de trabalho que é manifestada, neste projeto de saúde coletiva, como não criador de mercado de trabalho. Mesmo assim, existe algum mercado de trabalho, porém “ a grande maioria dos formados está sendo absorvida pelos outros Estados do Nordeste ou mesmo do Sudeste. A universidade forma, mas fora dela não existe uma política de absorção desses recursos humanos”1. Uma visão como esta pode significar também uma perspectiva de vida independente da instituição universitária, por parte da equipe de coordenação do projeto. O que se evidencia, entre os coordenadores, é a perspectiva diferenciada surgida com essa discussão e que se revela, por exemplo, na seguinte afirmativa: “Pensar saúde coletiva é pensar um pouco todas as relações que não estão somente no aparelho do Estado. Estão na própria sociedade que as produz e que vão ser objetos de uma intervenção do profissional de saúde. Então, muitas vezes, o que é predominante aqui nas instituições públicas, que absorveriam esse tipo de recursos humanos, não é ainda essa concepção de saúde que predomina” 2.
Projeta-se nos documentos(letra D) a concepção voltada para uma visão da instituição vinculada ao mundo empresarial. Isso mostra que os documentos aí gerados, como por exemplo relatórios, têm tido pouca ou nenhuma participação da equipe coordenadora. Os textos produzidos evidenciam sempre uma grande equipe de elaboradores com presença marcante de seus executores e comunitários, uma ênfase do processo de participação desenvolvido no projeto. É, contudo, uma prática que se mostra como algo limitador para a divulgação daquilo que se está produzindo neste projeto de extensão quanto a uma linha política única do projeto. É significativo destacar que este tema se apresenta em relação aos demais como pouco significativo, já que apenas 2% de seus indicadores foram detectados, o que demonstra contradição quanto à perspectiva transformadora e visão de sociedade apresentada nos itens anteriores. Mas, é nos executores do projeto que se evidenciam as possibilidades, no interior dos próprios instrumentos estatais, para se ter uma maior pressão por mudanças na legislação. Há uma disposição por parte dos executores na busca de que as possíveis conquistas, no campo do movimento da saúde, também passem a fazer parte das normas estatais. E mais: enquanto não ocorrerem as possíveis conquistas, em _________ 1. 2.
Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa.
280
281
termos formais, avança-se no interior do aparelho do Estado, conquistando aqueles que são simpáticos a essa luta. “É preciso, também, dentro de vários organismos do aparelho estatal, conquistar alianças” 1.
Interesses sociais e prática social A configuração dos interesses sociais (tema IV) objetiva visualizar: se eles estão voltados a indivíduos, isto é, se externam de forma enfática a individualidade, a promoção dos indivíduos pela política, cultura ou economicamente, e se manifestam por comportamentos com características estritamente pessoais; ou se os interesses definidos estão voltados a grupos específicos, presentes no movimento organizativo em estudo ou em outro setor da sociedade. Aí observa-se a presença ou não de interesses corporativos (sejam produtivos, privados, industriais ou do comércio) e a promoção de grupos pela política, pela prevalência do econômico ou pela cultura. Vizualiza ainda se esses interesses estão voltados às classes e se eles se projetam através da explicitação direta pela classe. Nesse caso, os tipos de compromissos surgem através de indicadores como greve, aliança, paralisação, luta, e também através das instituições de classe, como o sindicato, a associação, etc. As concepções de prática social (tema V) perpassam duas visões. A primeira procura mostrar a ênfase aos interesses voltados a indivíduos. São seus indicadores palavras que expressem o significado do que está sendo colocado para este conceito através de expressões que apontam para o tipo de indivíduo que se deseja, ou seja, eficiente, eficaz, competidor, reciclado, modelado em relação ao indivíduo do “Primeiro Mundo”. No processo de modelamento buscam homogeneizar as sociedades, a cultura, a educação, a moral e a ética. A segunda visão diz respeito ao processo político em consonância com as classes dominadas, expressando movimentos com diferentes mediações e espaços, mas no campo dos dominados. Estão presentes nesse tipo de discurso palavras que expressam transformação, movimento, alternativa política, combatividade, compromisso e envolvimento com as lutas, entre outras. A observação da Tabela 1 revela consistência entre esses dois temas (IV e V ). Há uma sintonia entre a configuração dos interesses sociais que estão sendo colocados ao nível do discurso e ao nível da prática social. É inexpressiva, nesse caso, a perspectiva individualista ou individualizante, variando de 2% a 6% a soma desses indicadores no discurso dos coordenadores, dos executores, dos comunitários e nos documentos do projeto. Entre os coordenadores há maior expressão de interesses voltados para a classe e para grupos que expressem setores do movimento, mas a variação nesta opção abrange apenas de 94% a 98%. Ao se conjugarem os itens 4.2 e 4.3, por considerá-los como aprofundamento e diferenciação meramente esclarecedora de uma caracterização ideológica bastante semelhante, vê-se que tanto entre os coordenadores quanto entre os comunitários não há qualquer menção de interesses de caráter individual. Entre os executores do projeto, essa identificação alcança apenas 3% e sua maior expressão, que se encontra nos documentos, não ultrapassa 7%. Esses dados são consistentes com o que revela o item 5.1, quando os interesses são definidos não genericamente, mas em termos de prática social, quando a variação atinge de 2% a 6%. ____________ 1. Membro da equipe do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquis
281
282
A análise comparada dos temas I, II, IV e V, neste projeto, demonstra forte consistência de uma concepção transformadora, adotando a perspectiva dos setores dominados da sociedade.
Agente institucional e natureza do trabalho O tema IX - papel do agente institucional, é aqui concebido conforme as seguintes alternativas possíveis: a primeira é a de que o agente apresenta-se comprometido com interesses do mercado, isto é, com o capital. Dessa forma estarão presentes no discurso os interesses individuais, a promoção do indivíduo, a ênfase no bem-estar individual e a necessidade da formação para o profissional avançado, no que concerne à sua adequação aos interesses do mercado. Uma segunda possibilidade é a perspectiva do agente neutro frente à realidade, seja ele de qualquer instituição, do Estado ou mesmo da universidade. Nessa compreensão estará presente a visão de que os agentes são meros representantes da instituição, no caso, a universidade. A terceira possibilidade é a figura do agente comprometido, especificamente, com a classe subalterna. Nessa visão o agente assume perspectivas de solidariedade, participação, combinação de seu discurso com a prática, afetividade, companheirismo, ajuda, conscientização e cooperação, entre outras. Em relação ao tema VIII - a natureza do trabalho na extensão - esta é analisada, prevendo a possibilidade de o trabalho se apresentar com um discurso “modernizador”, em consonância com as idéias do mercado e assumindo a perspectiva da qualidade total, da integração das comunidades e dos indivíduos à sociedade dominante, da preocupação com a produtividade tida como meta, da atualização técnica, do gerenciamento e da otimização do trabalho. Uma outra alternativa é a sua expressão através de um trabalho com discurso da neutralidade e aí o trabalho é prestador de serviço numa perspectiva do tipo paternalista. Sua ação é pautada pela cientificidade. Evidenciam-se os aspectos corporativos. Conceitos como os de cidadania, de parceria e de confiabilidade, sem nenhuma explicitação do significado de cada um, estão sempre presentes nessa linha de discurso. A terceira possibilidade aqui vislumbrada é o trabalho como discurso transformador. Este se externa através das preocupações com a organização dos setores subalternos. Está presente a preocupação do diálogo com a população. Aparecem a discussão pela autonomia, as lutas dos trabalhadores, os processos, a articulação política, a formação de lideranças, etc. Esses temas passarão a ser confrontados, pois, de certa forma, a discussão sobre o papel do agente institucional se configura como uma continuidade do tema sobre a natureza do trabalho em desenvolvimento pelos agentes do projeto de extensão. Poderão, por sua vez, consolidar contradições ou revelar consistência interna existentes entre os diferentes grupos em análise, sejam coordenadores, executores, comunitários ou mesmo presentes nos documentos do projeto. A comparação entre os percentuais dos itens do tema VIII evidencia que dois temas projetam a natureza do trabalho na extensão como um trabalho técnico com discurso transformador, tendo índice, no geral, de 90%. Destaca-se a consistência existente entre os membros dos vários grupos de trabalho e nos textos gerados pelo projeto. Os percentuais 91%, 92%, 92% e 87% para os coordenadores, executores, 282
283
comunitários e textos, respectivamente, são bem ilustrativos. Este tema, por sua vez, representa uma preocupação que parece importante entre os grupos do projeto, já que apresenta um percentual de 17% em relação aos demais . O papel do agente institucional (tema IX) se mostra bastante esclarecedor. De início se apresenta contraditoriamente em relação ao tema anterior. Os indicadores apontam um percentual de apenas 33% para o papel do agente comprometido, especificamente, com a classe dominada. Um total de 54% dos indicadores afirma o papel do agente voltado aos interesses do mercado, ao capital. Há diferenças importantes quando da comparação entre os temas VIII e IX, bem como quando se comparam as posições dos diferentes grupos participantes do projeto. O percentual do tema (2%) mostra que a discussão interna no projeto sobre o papel do agente institucional foi pouco desenvolvida. São discutidas normalmente as propostas e as tarefas imediatas geradas das ações de saúde, contudo, o papel do agente nessas ações aparece muito mais de forma embutida na análise das ações. Pode-se avançar no estudo das contradições, observando-se a Tabela 2 Papel do agente institucional, frequência de indicadores e percentual. TABELA 2 PAPEL DO AGENTE INSTITUCIONAL Distribuição dos itens do tema IX, por segmento ITEM
A 1
A 2
A 3
A T
%
B1
B2
B 3
B T
%
C 1
C 2
C 3
CT
%
D 1
D 2
D 3
D T
%
T T
% item
9.1
01
---
---
01
14
20
11
28
59
64
03
10
---
13
36
04
06
02
12
55
85
54
9.2
02
---
---
02
28
00
01
00
01
01
10
05
---
15
41
01
01
01
03
14
21
13
9.3
04
---
---
04
58
03
12
17
32
35
03
05
---
08
23
01
00
06
07
31
51
33
%tema
02
9.1 - Agente comprometido com interesses do mercado ( capital ). 9.2 - Agente neutro da instituição, seja Estado ou universidade. 9.3 - Agente comprometido especificamente com a classe dominada. A - Entrevista com coordenadores AT - Freqüência de indicadores no item A B - Entrevista com executores BT - Freqüência de indicadores no item B C - Entrevista com comunitários CT - Freqüência de indicadores no item C D - Documentos dos projetos DT - Freqüência de indicadores no item D TT - Freqüência total de indicadores no item
Consolida-se nesta tabela a visão conflitante entre os diferentes grupos pesquisados no projeto, constatando-se no item agente comprometido com interesses do mercado, percentuais de 14% e 64%, para os coordenadores e executores, respectivamente. Juntando-se os indicadores relativos ao agente que se identifica com o mercado e o agente neutro, tem-se 67% de opção por essa compreensão, ao passo que o agente da classe dominada alcança 58%. São dados que negam os procedimentos de ação do agente institucional voltados à classe dominada (tema V). Os próprios comunitários vêem predominantemente esses agentes como neutros, possivelmente por cumprirem tarefas acadêmicas. Contraditoriamente, esses agentes se identificam na sua
___________ 1. Membro da equipe do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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284
ação como aqueles que incentivam a necessidade da vigilância sanitária, o que significa ir ao local de trabalho e detectar qual é de fato a questão da saúde do trabalhador que está em cena. Sentem-se como agentes que vão ao local onde está aparecendo a doença, de forma que o deslocamento significa intervir no sentido da mudança. Todavia, para que esse trabalho de mudança seja possível, deve-se atuar no âmbito do legislativo e do judiciário, tentando provocar, inclusive, mudanças das leis. É a luta do trabalhador por mais espaços de atuação. Sabe-se que a configuração jurídica apresenta uma correlação de forças desfavorável para o trabalhador. Sobre essa necessidade de atuação do agente, diz um dos entrevistados: “Então, ou ele se mobiliza, há uma mobilização política para que as leis abram mais espaço para essa intervenção de mudança ou fica um campo político bastante desfavorável” 1. Nos debates que se desenvolvem no interior do projeto, surge com clareza a necessidade de contrapor-se ao corporativismo que comumente cerca a ação
sindical. No caso da saúde coletiva, sempre se discute a articulação que deve ser feita entre os sindicatos, no sentido de maior pressão para mudanças das leis. É aí onde surge o debate sobre as necessidades de se buscarem mudanças mesmo no aparelho estatal. Muitas vezes, mesmo ao nível das plenárias de saúde coletiva, coordenadas pela CUT e onde há participação dos setores governamentais, os trabalhadores começam a perceber o deslocamento de problemas que estão em pauta para serem analisados em futuras plenárias. Eles começam a perceber o jogo quando os representantes do governo ( DRT, Secretaria de Saúde, INSS, CRP (Centro de Realização Profissional) pretendem deslocar questões de solução iminente para outros momentos, no futuro. Há, portanto, muito jogo por parte das autoridades da saúde quando a decisão aponta para medidas imediatas. É importante ressaltar que é também papel do Coletivo de Saúde, Trabalho e Meio Ambiente, da CUT, a formação de trabalhadores de base, de cipeiros (membros da CIPA - Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) e de dirigentes sindicais. Eles percebem a reação dos representantes do governo, que vão logo se fechando, mesmo quando admitem que o problema deva ser resolvido. Apesar disso, os sindicalistas e membros da equipe do Projeto Zé Peão que vão aos canteiros já conseguem promover discussões salariais e também questões de saúde. Tempos atrás a única discussão era a questão salarial. Também os representantes do governo tomam consciência ali do que deveriam estar fazendo e vários deles assumem esta situação. “A saúde do trabalhador passa a ter um papel fundamental na formação política, a partir da discussão da problemática da saúde do trabalhador com o processo de trabalho”1.
_________ 1.
Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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285
As discussões são, posteriormente, remetidas ao âmbito institucional e os agentes do projeto passam a ser cobrados como incentivadores daquelas críticas. Mas os trabalhadores também cobram desses agentes do CERESAT maior empenho na solução dos problemas. Esses embates parecem suscitar possíveis explicações da visão dos comunitários, no caso um percentual de 41%, sobre o papel neutro do agente do CERESAT. Os dados mostram uma profunda contradição nesse aspecto, contradição não só entre a natureza do trabalho no projeto e o papel do agente institucional, como também acerca da visão dos interesses voltados à classe (tema IV), da consonância da prática social com as classes subalternas (tema V) e da noção do trabalho com discurso “transformador” (tema VIII). Já se notam, na análise do tema IX, as diferenças de posição quanto ao papel do agente institucional entre os coordenadores e os executores do projeto. Cabe confrontar esses dados com as opções encontradas nos documentos do CERESAT. Aí prevalece a identificação do agente do mercado (55%), seguida da compreensão do agente da classe dominada (31%) e, finalmente, do agente neutro (31%). Trata-se do mesmo tipo de distribuição encontrada entre os executores do projeto. Já entre os coordenadores, as prioridades se acham invertidas: 58% dos indicadores do tema se concentram na concepção do agente como agente da classe dominada, enquanto que 14% o apontam como agente do mercado. Ou os atuais coordenadores não participaram da elaboração dos documentos do projeto, ou mudaram sua concepção no exercício da coordenação. É ainda curioso o fato de que coordenam executores cujas concepções são divergentes das suas, embora perfeitamente ajustadas aos documentos do projeto. A discussão do tema acerca do papel do agente institucional mostrada pela freqüência desses indicadores(157) e o percentual entre os temas de 2% apontam mais ainda a necessidade da discussão dessa questão entre os membros do projeto CERESAT.
Extensão universitária O tema VII do instrumento de análise dos projetos de extensão está voltado à compreensão de extensão veiculada pelos participantes das atividades de extensão. Além de buscar encontrar elementos das concepções que são veiculadas, hoje, através de diferenciados projetos de extensão, também buscar-se-ão elementos outros que, talvez, possam contribuir para o debate conceitual. No tema concepção da extensão universitária enfatizaram-se três visões sobre a questão e que estão muito em voga nas práticas educativas. A primeira é a visão de extensão como um caminho ou uma via de mão única. O que caracteriza essa visão é a compreensão de que a universidade é uma instituição independente e que cabe a ela passar para a sociedade os resultados de alguns dos seus trabalhos. Bem caracterizam essa visão a prestação de serviços, a promoção de cursos e eventos, a assistência, a venda de serviços, o treinamento de indivíduos da sociedade, a realização de estágios, enfim, a universidade levando benefícios à sociedade. Uma outra visão é apresentada através da simbologia da “mão dupla”. Nesse caso, a extensão é compreendida como um processo educativo, cultural e científico. Esta concepção privilegia o aspecto de que a universidade leva conhecimento à comunidade, como também traz conhecimento da sociedade para a instituição. A universidade e a sociedade são aí concebidas como agindo de mãos dadas. Estabelece-se, às vezes, a simbologia do canal e do elo como expressões dessa mão dupla. A universidade procura atender as demandas sociais em forma de troca de algo com a sociedade e tendo desta a sua contrapartida. Uma terceira 285
286
concepção em desenvolvimento neste trabalho está sendo inserida com o objetivo de tentar encontrar nessas experiências elementos que possam ser apresentados ao debate sobre a extensão e que possam projetar conceitualmente a extensão como um trabalho social. Nesse sentido é que essa compreensão estaria sendo marcada por indicadores que mostram certo tipo de trabalho em desenvolvimento entre universidade e sociedade, não como entes separados, mas em relação permanente entre si. Contudo, nem por isso se identificam, pois se diferenciam. Trata-se de um movimento contínuo de relação e de diferenciação. A universidade tem suas especificidades, mesmo que a sociedade, como um todo, a contenha. O sentido que se propõe apreender é de um trabalho social como processo educativo, cultural e científico, porém voltado à construção de uma nova hegemonia. O trabalho aqui aparece configurado com a própria classe subalterna, especialmente voltado à organização dos seus diferentes setores. De acordo com esse entendimento, a universidade e também a comunidade devem ser as proprietárias do produto desse trabalho. A extensão assim concebida deve acarretar processos em desenvolvimento de forma contínua que se realimentam desse fazer e que são marcados por uma relação imanente da teoria e da prática.
TABELA 3 CONCEPÇÃO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA Distribuição dos itens do tema VII, por segmento ITEM
A 1
A 2
A 3
A T
%
B 1
B 2
B 3
B T
%
C 1
C 2
C 3
CT
%
D 1
D 2
D3
DT
%
TT
%item
7.1
00
---
---
30
61
11
23
11
45
29
04
15
---
19
66
29
12
32
73
62
167
48
7.2
03
---
---
03
06
00
10
03
13
08
00
00
---
00
00
00
00
01
01
01
17
05
7.3
16
---
---
16
33
16
19
61
96
63
04
05
---
09
34
21
05
18
44
37
165
47
% tema
05
7.1 - Via de mão única: da universidade para a sociedade. 7.2 - Via de mão dupla: processo educativo, cultural e científico. 7.3 - Trabalho social: processo educativo, cultural e científico voltado à construção de nova hegemonia. A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos
AT - Freqüência de indicadores no item A BT - Freqüência de indicadores no item B CT - Freqüência de indicadores no item C DT - Freqüência de indicadores no item D TT - Freqüência total de indicadores no item
Para uma maior visualização observe-se a Tabela 3 - Concepção de extensão universitária, constante já na Tabela 1, que revela no geral a existência de duas concepções diferenciadas que são bastante nítidas. Um percentual de 48% dos indicadores desse tema (% item) refere-se à extensão como uma via de mão única, enquanto 47% apontam para uma percepção da extensão como trabalho social. Contudo, na visão da extensão como mão única, a análise interna dos itens por origem dos textos revela diferenças importantes entre os coordenadores e comunitários e nos textos gerados que são de 61%, 66% e 62%, respectivamente. Convém destacar que a expressão “mão única” não aparece sempre explicitada dessa forma precisa nos textos ou nas entrevistas, só estando registrada assim quando o sentido é claramente este. Já com relação aos executores do projeto, 63% das opções do tema se concentram no entendimento de extensão muito mais em termos da possibilidade de 286
287
torná-la um trabalho social. É importante ressaltar que a percepção de extensão como mão dupla teve pouca expressão percentual. É digno de se notar que este tema se apresenta com 5% do total dos temas do projeto. Parece não ser relevante quantitativamente, contudo, serão vistas com maior atenção as possibilidades de diferenciação conceitual surgida no projeto. Uma observação de forma vertical (Tabela I), em torno dos temas do projeto, afirma-se de forma consistente entre os coordenadores do projeto: a visão transformadora de mundo; a concepção de sociedade como um modo de produção; a concepção de Estado ampliado com suas contradições de classe, mesmo com a sua frequência de indicadores baixa em relação aos demais temas, (1%); a concepção de prática social como processo voltado às classes subalternas; a relação entre a universidade e a sociedade como uma relação permeada de conflitos ideológicos; a natureza do trabalho social como um trabalho técnico com discurso transformador, além do papel do agente institucional como aquele agente da classe dominada, com percentuais de 87%, 95%, 45%, 98%, 62%, 91% e 58%, respectivamente. Para os executores surge um relacionamento entre o tema IX - papel do agente institucional entendido como agente do mercado, com 64% e o tema VI - relação da universidade com a sociedade, sendo a instituição vista como portadora de um saber com vida independente, com 65%. Estes aspectos conflitam frontalmente com a visão de mundo (tema I) e concepção de sociedade (tema II) com percentuais de 92% e 94%, respectivamente voltados a uma visão transformadora e a sociedade como um modo de produção. Assim, estes últimos estão em consistência, contudo, com a possibilidade de verem na extensão uma concepção diferenciada daquelas que hegemonizam o debate em torno dessa temática, com percentual 63% para extensão como trabalho social. Esta concepção também está em consonância com a idéia de prática social voltada às classes subalternas, com percentual de 95%. Já entre os executores, as visões predominantes são: o Estado árbitro acima das classes; a universidade se expressando como saber e com independente; a extensão vista como via de mão única, expressando percentual para o papel de agente de mercado ao agente institucional com 67%, 58%, 66%, e 36%, respectivamente. Entre os textos produzidos pelos projetos (D%) também se estabelece a consistência nos temas sobre visão de mundo (91%) e visão sociedade (96%), sendo nessa perspectiva dissonante quanto à visão de extensão como via de mão única (62%) e quanto ao papel do agente institucional como agente de mercado (55%).
Considerações O debate diferenciador está presente no projeto CERESAT. Coordenadores que vêem a instituição como um aparelho de conflito ideológico (62% do total do tema VI), contudo, não apresentam uma perspectiva de extensão como trabalho social. “Não vejo a função social da universidade, apenas, como trabalhar na visão dos trabalhadores, embora não se possa escapar disso. Na área tecnológica, não vejo como ela não realizar ou ouvir as necessidades de outro segmento ” 1. 287
288
Um entendimento como este possibilita uma perspectiva eclética do trabalho de extensão. Pode-se encontrar ainda a visão de extensão como “os canais que existem para se fazer essa passagem entre o que está acontecendo na universidade e o que está acontecendo na sociedade, de forma a criar esse caminho de mão dupla”2. Para alguns executores do projeto que estão numa perspectiva diferenciada de extensão universitária, em relação aos coordenadores, esta pode ser “ exatamente as respostas da universidade para a sociedade, ou seja, seria a tentativa da universidade de penetrar nos movimentos, nas instituições e ali poder dialogar com os atores mais diversos, que estão presentes nessas diversas instituições, nas diversas instâncias da sociedade”3. Esse tipo de visão coloca a necessidade de que a universidade responda às demandas sociais e a extensão se torna essa própria resposta. Para outros membros do CERESAT, no entanto, o seu trabalho de extensão se inicia a partir de um desejo de atender a uma demanda especificamente sindical, embora permaneça também aí a marca da compreensão de extensão como uma resposta, tal como foi considerado anteriormente. Não importa que seja para um sindicato de trabalhadores, sindicato patronal ou uma instituição qualquer. O produto do fazer extensão seria a resposta a ser dada àquela demanda. Há, todavia, nessa visão a decisão de cunho ideológico de atender a uma demanda de um sindicato ou mesmo de iniciar um trabalho na possibilidade de desenvolvimento desse sindicato, tendo como base a realidade da classe trabalhadora. Nessa perspectiva é que um dos entrevistados vislumbra uma nova forma de trabalho na categoria dos trabalhadores da construção civil: “Hoje, o pessoal consegue ir para os canteiros de obra e fazer uma discussão com os trabalhadores sobre a questão da saúde e, não só, como faziam antigamente: apenas discutindo a questão econômica”1. Esta se apresenta como uma forma diferenciada de concepção de extensão, que coloca não mais as perspectivas, seja de mão única ou de mão dupla, e que estabelece o índice de 63% do item para os executores do projeto CERESAT, diferenciando-se, assim, das compreensões dominantes de extensão. Contudo, as diferenciações se mantêm ainda dentro do próprios coordenadores quando vêem no desenvolvimento do projeto a seguinte dimensão: “Em muitos momentos, se inicia uma atividade que seria, predominantemente, de prestação de serviços. Na prática, contudo, ao se ter uma concepção mais ampla do que é o conhecimento; do que são as interrelações do Estado - Sociedade; de repente, se vê que nesta prestação de serviço, o que se produz como informações, só seriam geradas se tivessem formalizadas como pesquisa”2.
__________ 1.
Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. 3. Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. 2.
288
289
2.3 - Projeto Escola Zé Peão A tinta esconde a massa. A massa esconde o tijolo. O tijolo ocupa o vazio. A massa, a tinta, o tijolo escondem a minha mão. Escondem a mão do meu companheiro pintor. Escondem a mão do meu companheiro pedreiro. O edifício aparece naquela rua. Alto, bonito, aprumado ... 1
A década de 70 marca a tentativa dos trabalhadores de recuperarem as suas organizações e particularmente os seus sindicatos, apesar da vigência da ditadura militar. Esse processo inicia-se, sobretudo, nos centros mais industrializados do país, sendo São Paulo o carro-chefe, e espalha-se pelos demais Estados. Na Paraíba, a luta dos sindicatos dos trabalhadores, no caso o da construção civil, faz parte dessa luta maior pela democratização da sociedade. É dessa época a história da organização de um grupo de pessoas, voltado para a organização dos trabalhadores da construção civil, em João Pessoa. Esse grupo veio denominar-se Movimento de Reconstrução Sindical ou Grupo Zé Peão, caracterizando-se em três períodos: “O primeiro período cobre os anos 1976-81, formando a “préhistória” do grupo. O segundo período começa em l982 com a decisão do grupo de assumir a sua identidade de oposição sindical e termina com a sua consagração nas urnas como direção do sindicato (l986-l989), a sua reeleição em l989 e a continuação de sua luta até o atual momento, no qual o Projeto Escola Zé Peão está profundamente arraigado”(IRELAND, 1991: 5). Essa referência histórica se torna importante, para que se possa traçar uma análise marcada pela dimensão histórica do projeto e pela preocupação crescente do grupo Zé Peão, na tentativa de contribuir para a organização de uma categoria de trabalhadores, através da construção de sua identidade coletiva. De forma mais geral, pode-se reconhecer a influência de todo um movimento nacional, com o renascer do sindicalismo no ABCD paulista, das lutas pela anistia, sendo o embrião de organização nacional dos trabalhadores a I Conferência Nacional das Classes Trabalhadores - I CONCLAT - e posteriormente com a criação da Central Única dos Trabalhadores - CUT . Esse é o primeiro momento organizativo desse grupo, tendo suas raízes em uma Comunidade Eclesial de Base (CEB), no bairro popular de Mandacaru, em João Pessoa. Esteve nessa origem o movimento de criação da Comissão Pastoral Operária (CPO), além de operários que, sem vínculos com organização religiosa, vieram a constituir o primeiro núcleo de trabalhadores da construção civil nos bairros populares em João Pessoa. Esta foi uma medida tomada internamente pelo grupo, visando ao seu crescimento. O grupo volta-se às atividades das lutas operárias por melhores salários e ________ 1.
Ver texto para alfabetização no livro: IRELAND, Vera S. J. da Costa. Aprendendo com o trabalho: livro de alfabetização de jovens e adultos trabalhadores. Col. Maria de Lourdes Barreto de Oliveira. João Pessoa, Editora Universitária/UFPB/1995.
289
290
condições de trabalho. Estabelece, dessa forma, um início de relacionamento com a instância formal da categoria - o sindicato. Todavia, o grupo só vem se formalizar como oposição sindical em l982. Prepara-se, inclusive, para enfrentar as eleições sindicais. As dificuldades de acesso às normas sindicais e às informações burocráticas dos procedimentos de eleições, a pouca inserção nas bases, as dificuldades no trato com as grandes firmas da construção civil, as perseguições políticas aos trabalhadores, a pouca presença do grupo nos canteiros de obras e a conjuntura política local adversa foram os elementos marcantes e responsáveis pela derrota eleitoral dessa oposição sindical que se apresentava para a categoria, através de boletim, com o nome de Zé Peão. Em l986, a conjuntura política, no país, era bem diferente da de l983. As preocupações dos empresários locais estavam muito mais voltadas para as eleições estaduais e federais e menos para as eleições sindicais. O afastamento da base sindical pela diretoria “pelega” era marcante. A oposição sindical se afirmava e mantinha um elo com a categoria, através do boletim Zé Peão. Levava a sua mensagem oposicionista e reiterava sua opção pela organização da categoria e dos demais trabalhadores. Esse trabalho vai consolidar-se, finalmente, com a eleição da diretoria oposicionista, naquele mesmo ano, desenvolvendo as atividades antes postuladas pelo boletim para toda a categoria. Agora, o Zé Peão estava na direção do sindicato. Pode-se configurar como um outro momento desse processo ou o Sindicato Zé Peão. O percurso de ação política do grupo esteve, desde esse momento, em sintonia com um grupo de profissionais da Universidade Federal da Paraíba, constituindo-se numa perspectiva de se desenvolver processos de educação básica para os trabalhadores adultos. Isto revelaria contradições entre os operários, considerando o desejo de mudanças imediatas. (Poderia também) “justificar-se tanto pelos pequenos ganhos de ordem pragmática que ela(educação) pode conferir ao trabalhador quanto pela possibilidade de se constituir num meio através do qual ele avalia sua inserção/alienação da sociedade. Isto fortaleceria as lutas desses setores pela afirmação de sua cidadania”( OLIVEIRA, 1994: 5). O grupo chegava à direção com idéias diferentes sobre o processo de organização da categoria. Era um conjunto de idéias políticas voltadas a uma prática sindical democrática, participativa, na construção de um sindicalismo combativo. “E como parte da estratégia do grupo para ir criando um sindicato democrático, obviamente, com um eixo muito forte, era a questão da educação. Educação em termos abrangentes”1. Todo o trabalho, praticamente, estava por ser feito, desde aquele mais simples, como a burocracia do sindicato, até as ações políticas necessárias e importantes, como a realização de assembléias preparatórias para os dissídios coletivos. ___________ 1.
Membro do Grupo Zé Peão. Texto da entrevista para esta pesquisa.
290
291
Os diretores iniciam suas visitas aos locais de trabalho. Detectam alto índice de analfabetismo e pouca formação sindical e política entre os trabalhadores. Além dessa questão, outras ainda são específicas da categoria. O operário da construção civil não tem condições de, depois da longa jornada de trabalho, sair do canteiro para um local de estudo. Eles dormem no próprio canteiro. Sua vida toda está no próprio canteiro de obras. São operários que vêm do meio rural. Trabalham, comumente, por temporada. Nas épocas de plantio retornam às suas terras. Há canteiros constituídos de trabalhadores de um mesmo sítio ou município do interior do Estado. Essa situação gerou a idéia de, junto com o pessoal da universidade, organizar-se uma escola no próprio canteiro de obras. Foi preciso um certo tempo de mobilização e politização para se conseguir, até, a autorização do sindicato patronal para poder efetivar-se a experiência da escola Zé Peão. Esta foi uma conquista forjada na luta e na justiça através da organização do dissídio coletivo. Projeta-se a Escola Zé Peão, como uma experiência de alfabetização de adultos, dirigida aos operários da construção civil. Estes são caracterizados como operários, vindos da zona rural, migrantes para a cidade em busca de emprego, com baixa ou nenhuma escolaridade. “Eles não têm, de um modo geral, uma alfabetização preliminar. Alguns entraram na escola e aprenderam a decodificar ou codificar alguma coisa, mas necessitam de um processo mais sistematizado de alfabetização, no sentido tanto da leitura e da escrita, quanto do cálculo e do conhecimento geral. O Projeto Escola Zé Peão tenta trabalhar, justamente, com esse pessoal mais específico. Esta foi a proposta inicial, em l991, quando tínhamos em mente esse objetivo”1. A realidade do operário da construção civil relativa à educação apontava para a existência de um quadro de trabalhadores analfabetos. Para estes elaborou-se um programa denominado de Alfabetização na Primeira Laje ( APL). Contudo, parte desses operários já tinha alguma noção da escrita e de cálculo. Essa outra realidade revelou a necessidade de outro programa que foi denominado de Tijolo Sobre Tijolo (TST), destinado a essa outra clientela. Essa experiência se reveste de uma perspectiva educativa voltada não apenas à sistematização dos códigos da leitura e de cálculo, mas que privilegia uma visão de globalidade e de politização dos operários. Este projeto pedagógico se desenvolve e está contido no livro Aprendendo com o Trabalho, elaborado a partir dessa experiência e em utilização nas escolas do Projeto Zé Peão. “O projeto tem um caráter escolar, onde a gente trabalha a linguagem, a matemática e os conhecimentos gerais, estes através de discussões, cujos temas estão implícitos nos livros didáticos. No caso, o livro Aprendendo com o Trabalho é um relato da história de Benedito. É uma cartilha construída a partir do conhecimento da realidade do operário. Esse livro didático contém uma diversidade de temas do tipo: migração, subjetividade do operário, 291
292
exploração do trabalho, reconhecimento do operário, etc”2. Com o processo educativo de caráter mais amplo, configurou-se um terceiro programa que veio subsidiar o trabalho nas escolas através de imagens. Um programa que pudesse utilizar as potencialidades da cidade como o Planetário e os diversos espaços da arte. Criou-se o programa Varanda Vídeo (VV). Seu objetivo era enfatizar as visitas culturais, as discussões sobre os mais variados temas relacionados a geografia, história, democracia e cidadania. Em síntese, é um projeto organizado nessas três dimensões: APL, TST e VV. Não é um projeto do sindicato. É um projeto gerado das discussões, das necessidades dos operários e em parcerias com profissionais da universidade, com setores da universidade comprometidos com os operários e em conjunto com o sindicato.
Atuando junto à universidade, a educação do trabalhador é pensada e praticada numa dimensão de parceria do tipo universidade/sindicato e da perspectiva para a luta política que possa interessar aos trabalhadores. Mais adiante o Estado também entrará nessa parceria, assumindo parte das despesas decorrentes. Contudo, o que se demonstrava, ao se desenvolver uma educação nos canteiros de obras, era a urgência de se tratar da articulação de dois temas fundamentais: “trabalho e escola ou trabalho e educação”(ibid.: 5). As questões- chave postas para estudos dos participantes da universidade, nesse processo de educação, eram: “Como encontrar a educabilidade do trabalho a partir da práxis produtiva do trabalhador da construção civil ou como encontrar a educabilidade da escola e da alfabetização pela práxis produtiva? Este era um desafio interno que a experiência colocava”( Ibid.: 5). trabalho estava sendo entendido como uma relação social e não como expressão de relações de força ou poder. Estava definindo o modo humano de existência, não apenas atendendo às exigências físico-biológicas, mas envol -vendo dimensões sociais, estéticas, de lazer, etc. Era o trabalho construindo o mundo da liberdade. A questão enfatizada vai ao encontro de preocupações postas por educadores, como ARROYO (1980: 23), que, desde o início da década de 80, já mostrava a necessidade urgente de se “redefinir nossas pesquisas sobre as relações reais entre escola e organização do processo produtivo”. Essa experiência também vai relacionar-se com as posturas e práticas dos sindicalistas. Este modelo de escola projeta um repensar de suas práticas sindicais ou um delinear da “nova prática do Zé Peão”. A chegada da diretoria Zé Peão ao sindicato provocou, de início, o fim das “mordomias” de várias pessoas que percebiam salários da entidade sem desenvolver qualquer trabalho sindical. O ambulatório médico atendia a toda a redondeza do sindicato com dividendos eleitorais para a antiga diretoria, não servindo aos sindicalizados. Dessa forma foi sendo desativado como política de superação do assistencialismo desenvolvido. O funcionamento da diretoria foi modificado e os diretores passaram a trabalhar, pelo menos, duas horas por dia, na sede do sindicato. O tempo restante foi direcionado às visitas aos canteiros de obras. Os duzentos e cinqüenta canteiros passaram a receber visitas, praticamente, diárias. Existiam muitas reclamações dirigidas ao sindicato, às empresas, reclamações trabalhistas que vinham, conseqüentemente, aumentar os pedidos de visitas por parte dos próprios trabalhadores. A prática da nova diretoria foi se diferenciando das anteriores. O princípio do seu trabalho passava, inicialmente, pelos canteiros de obras. ___________ 1.
2.
Membro do Grupo Zé Peão. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro do Grupo Zé Peão. Texto da entrevista para esta pesquisa.
292
293
”Temos a vantagem de não nos envolvermos com o trabalho burocrático. Toda parte burocrática são dos funcionários. A nossa parte é apenas a política. Isso facilita o trabalho com a categoria”1 . A participação da universidade enquanto instituição só se manifesta após o convênio firmado em l992, como fruto de uma integração de profissionais que já atuavam individualmente junto aos trabalhadores da construção civil. “Eu quero dizer que a universidade tá nesse meio também porquê a gente fez com que ela viesse. A gente pediu. A gente fez com que ela se aproximasse. Eu acho que a universidade tá diferente da universidade de 20 anos atrás”1. Destaca-se, a seguir, a apresentação dos variados temas em discussão na pesquisa do Projeto Escola Zé Peão, após a aplicação do instrumento de análise aos documentos e às entrevistas realizadas, expressa pela quantificação de seus indicadores ou variáveis.
__________ 1.
Liderança sindicalista da construção civil. Texto da entrevista para esta pesquisa.
_________ 1.
Liderança sindicalista da construção civil. Texto da entrevista para esta pesquisa .
293
294
GRÁFICO 2 FREQÜÊNCIA DOS TEMAS
1800 1600 1400 1200 1000 IX
800 VII
600 V
400 III
200 I
0 26
27
1
11
7
I. Concepção de mundo II. Concepção de sociedade III. Concepção de Estado IV. Configuração dos interesses sociais V. Concepção de prática social
2
4
12
3
7
%
VI. Relação universidade - sociedade VII. Concepção de extensão universitária VIII. Natureza do trabalho social na extensão IX. Papel do agente institucional X. Pedagogia da extensão universitária
A visualização do Gráfico 2 demonstra a freqüência com que os indicadores aparecem nos variados temas da pesquisa. Projetam-se dois temas: a concepção de mundo e a concepção de sociedade. Ambos se expressam no conjunto dos demais temas, com percentuais de 26% e 27%, podendo mostrar que, do ponto de vista teórico, estão bastante discutidos tanto entre os coordenadores do projeto como entre seus executores e sindicalistas, assim como nos documentos produzidos por membros do projeto. O Gráfico 2 destaca um segundo bloco de temas: a configuração dos interesses sociais, a concepção de prática social, a natureza do trabalho social na extensão e a pedagogia da extensão universitária. Esses temas tiveram percentuais de 294
295
11%, 7%, 12% e 7%, respectivamente, e servirão como guia para uma melhor observação, ao nível desses temas, considerando que o Gráfico 2 não possibilita tal averiguação. Finalmente, oferece um bloco de temas com percentuais pouco expressivos quantitativamente, mas ainda assim muito importantes qualitativamente, quais sejam a concepção de estado, a relação da universidade com a sociedade, a natureza do trabalho social na extensão e o papel do agente institucional. Os percentuais referentes a esses temas estão expressos em 1%, 2%, 2% e 3%, respectivamente. Esses dados conduzem a uma busca de maiores detalhes no interior dos referidos temas. Vai se tornando necessária a observação mais específica sobre a consistência interna entre os temas, em seu conjunto, e dentro do projeto. Para isso, a explicitação maior será possível através da Tabela 4 - Distribuição dos temas e itens, por segmento.
Concepção de mundo e de sociedade Observe-se que há uma consonância entre os percentuais referente à concepção de mundo projetada pela visão transformadora entre os vários atores do projeto, sejam eles: coordenadores, executores ou sindicalistas. Tanto os coordenadores como os textos produzidos no projeto apresentam percentuais ligeiramente abaixo dos demais. Porém, o percentual geral de 88% dessa perspectiva é bem ilustrativo da predominância de concepção de mundo, enquanto temática discutida tanto nas entrevistas como nos textos.
TABELA 4 DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO Temas I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado IV - Configuração dos interesses sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidade-sociedade VII - Concepção de extensão universitária VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X - Pedagogia da extensão universitária
Itens 1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: ( contradições de classe ) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social ( construção de nova hegemonia ) 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador 9.1 - Agente dos interesses do mercado ( capital ) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
A% 13 01 86 06 01 93 83 17 00 00 37 63 11 89 41 12 47 35 07 58 02 27 71 38 27 35 00 100
B% 09 01 90 06 01 93 20 80 00 01 17 82 01 99 57 25 18 35 04 61 03 09 88 30 00 70 00 100
C% 07 01 92 04 03 93 00 100 00 00 20 80 02 98 74 13 13 84 02 14 01 07 92 17 04 79 00 100
D% 24 01 75 01 01 98 60 40 00 00 49 51 07 93 55 25 20 24 06 80 01 03 96 52 03 45 00 100
Fi 183 08 1420 61 37 1586 12 25 00 01 207 508 08 433 79 23 31 92 10 110 08 58 680 48 12 110 00 100
% itens 11 01 88 04 02 94 33 67 00 00 29 71 02 98 60 17 23 43 05 52 01 08 91 28 07 65 00 100
Fgi
% tema
1631
26
1684
27
37
01
716
11
441
07
133
02
212
04
746
12
170
03
461
07
295
296
A - Entrevista com coordenadores indicadores B - Entrevista com executores
C - Entrevista com comunitários
Fi - Freqüência de
D - Documentos dos projetos
Fgi - Freqüência geral dos indicadores
Essa visão é veiculada pelos próprios sindicalistas. Quando são consultados sobre os seus planos para o futuro, respondem que, ao se tornarem uma pessoa que adquiriu conhecimentos sobre a vida do operário, sobre a mecânica desse sistema e o funcionamento da sociedade, vão continuar voltados a essa causa. “Os planos são estes: de continuar na luta, de continuar lutando, organizando os trabalhador, procurando dar minha contribuição, como operário para operário e para os outros trabalhador. ... Meu plano é continuar esse trabalho, não pensando em mim, ... mas na perspectiva de um dia os trabalhador, a classe operária, comemorar sua emancipação”1. Essa compreensão vem sendo alicerçada pela prática de vários participantes do Projeto Escola Zé Peão, desde os tempos que juntavam as pessoas dos bairros para reuniões. Essa prática abriu a possibilidade de debates e discussões com trabalhadores da construção civil e com outras categorias de trabalhadores e trabalhadoras, isto é, as donas de casa, as lavadeiras de roupa, as empregadas domésticas, os operários do setor têxtil, em que juntos discutiam as questões do bairro onde viviam. Esse debate não se traduzia como sinônimo de consenso entre eles, mas estava cheio de conflitos e de contradições. Para um dos líderes sindicais, ainda há brigas, mas que não têm ocorrido pelo poder ou por cargos simplesmente, pelo menos no Projeto Escola Zé Peão. “Temos uma briga, sim, pela consolidação dos trabalhadores. Temos briga, sim, quando um membro sindical da diretoria começa a achar que o sistema capitalista tá correto. Se achar que os patrão tá correto, aí sim, vamo brigar”2.
Tal interpretação também se expressa através da concepção de sociedade. Aí se consolida uma concepção onde predomina a visão da sociedade como um modo de produção, sendo definido a partir de uma base material. Todos os setores do projeto apresentam proximidade na concepção e quase coincidência no percentual. Uma média dos itens de 94% (2.3) expressa tal aproximação de visão de sociedade e visão de mundo. É uma concepção veiculada após o aprendizado do trabalho educativo de organização num bairro ou num sindicato, com todas as suas possibilidades e limitações. Conhecem, desde o início, as contradições que permeiam os movimentos e as pessoas que os constituem.
Muitos se identificam com uma visão mais ampla de sociedade, demonstrando clareza quanto aos modos de exploração. Conhecem os mecanismos culturais de dominação e são capazes de assumir a sua classe social. Esclarecem a seus colegas as diferentes formas de lutas nas relações trabalho-capital. São capazes de distinguir com nitidez as formas diferenciadas dos movimentos sociais. Isto tudo, porém, não elimina as contradições, que são intrínsecas aos indivíduos. Entre membros da diretoria do sindicato e membros da equipe do Projeto Zé Peão surgem formulações onde os procedimentos de organização dos trabalhadores são divergentes ________ 1. 2.
Líderança sindicalista da construção civil. Texto da entrevista para esta pesquisa. Id., ib.
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quanto à sua concepção. Expressam-se quando do confronto nos embates políticos internos. Num mesmo palco ideológico, como o da equipe do Projeto Escola Zé Peão, as divergências muitas vezes passam pela percepção dos instrumentos organizativos dos trabalhadores. É colocada a visão de que sindicato é sindicato, associação de moradores é associação de moradores; trabalho de comunidade de base é um, trabalho sindical é outro, trabalho religioso é outra coisa. Essa percepção enfatiza a diferenciação existente entre os vários instrumentos e formas de organização, esquecendo, todavia, da relação necessária existente entre todas essas formas. Outras contradições surgem da comparação do tema I - concepção de mundo, e do tema II - concepção de sociedade, com o tema VI - relação da universidade com a sociedade. Seria consistente para aqueles que se identificam com a visão de sociedade e a visão de mundo, apresentada no Gráfico 2 , verem, na universidade, uma instituição permeada de conflitos no seu interior. A universidade se mostra como um aparelho de hegemonia expressando os seus conflitos ideológicos. Um aparelho de hegemonia em que pelo menos uma parcela de sua comunidade está em permanente luta para torná-la pública, gratuita e crítica. Aparelho permeado por suas contradições de classe, porém com mediações que possibilitam sua penetração nos movimentos sociais. Aí destaca-se um núcleo de formulação de propostas alternativas em busca de sua democratização interna, disseminando conhecimento e promovendo a consciência política. A contradição surge ao se observar a relação da universidade com a sociedade, quando a primeira é vista como uma instituição do saber com vida independente. Nesse aspecto, registra-se um percentual de 41% (6.1) entre os coordenadores, percentual que cresce entre os executores do programa para 57% (6.2) e é ainda maior entre os trabalhadores, com 74% (6.3). Chega-se a uma média de 60% (6.1) da visão da universidade tida como fechada para a sociedade. Trata-se de uma visão na qual a universidade permanece encastelada em seu próprio mundo e forma indivíduos comprometidos, basicamente com a ideologia das elites. Ou seja, uma instituição que vem exercendo o papel de treinadora, recicladora de pessoas, em geral das classes dominantes. A relação da universidade com a sociedade, no item referente à visão da instituição como um aparelho de conflito ideológico, apresenta, contudo, um percentual expressivo de 47% (6.3) para os coordenadores. É, ao mesmo tempo, uma contradição e uma diferenciação de percepção entre os próprios coordenadores do Projeto Zé Peão. Os coordenadores vêem a necessidade de criação de vínculos entre universidade e sociedade. Uma forma bastante procurada neste projeto é a via da institucionalidade, observando-se, entretanto, que não é tão fácil a realização desse vínculo. Sabe-se que não é um papel assinado ou um documento burocrático que vão gerar esse vínculo. No início do Projeto Escola Zé Peão, já havia uma relação informal da universidade com o sindicato. Essa relação evoluiu, transformando-se de um compromisso individual para um compromisso institucional. Já quanto ao compromisso individual político, destaca-se no projeto a visão de que há grupos no interior da universidade, marcadamente, descomprometidos com o mundo fora dela. Em debates internos admite-se que há grupos comprometidos politicamente com mudanças, mas que apresentam limitações intelectuais quanto ao desempenho do trabalho acadêmico e que tendem a apoiar ações pouco recomendáveis para o campo da extensão. No entanto, há grupos não
comprometidos que assumem com competência suas atividades. “Acho que há uma divisão. Infelizmente, o lado progressista, também, tem a sua dose de incompetência - de muito discurso e pouca prática. O que ganha as pessoas é um projeto sério. É honestidade”1. __________ 1.
Membro do grupo Zé Peão. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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Numa linha diferenciada da apresentada, mas no campo dos coordenadores e formuladores do projeto, há visões que se expressam na perspectiva de existir, na universidade, um espaço de liberdade para dar respostas às demandas imediatas. Isto, todavia, não pode levar a universidade ao comprometimento apenas com o imediato, porque a instituição seria sacrificada pelo imediatismo. “Talvez ela passasse a ser, simplesmente, uma instância de assistencialismo e não uma istância onde a questão do conhecimento, de forma mais profunda, e, portanto, mais duradoura, pudesse acontecer”1. Entendimentos os mais variados vão sendo externados no conjunto do projeto, como a tentativa de se conceber uma unidade entre universidade e sindicato. Define-se pela possibilidade de elaboração de projetos que atendam os diferenciados interesses existentes. O surgimento do Projeto Escola Zé Peão passa por essa interface. Esse relacionamento, contudo, não se dá na direção da universidade para o sindicato. “Ele ocorre de setores da universidade comprometidos com essa clientela e desse sindicato(construção civil) que reconhece a necessidade de construir um projeto”2. O encaminhamento dessas relações poderá produzir ações pensadas não simplesmente pelos representantes da universidade para serem repassadas aos operários, mas por setores comprometidos com a classe trabalhadora, desenvolvendo atividades com esses trabalhadores, nesse caso, também com o sindicato. O operário da construção civil deixa evidente a sua visão de universidade fechada para a sociedade, conforme foi apresentada, na Tabela 4, com um percentual de 74%. É uma visão em que a universidade é uma instituição do saber com vida independente, mas que, mesmo assim, se mostra contraditória. Os operários, em suas reuniões, afirmavam que seria muito bom que a universidade apoiasse todos os projetos que a classe trabalhadora pretendesse. Entendiam eles, porém, que o atendimento a essa expectativa tem limitações, por conta da existência de um sistema por trás dessa instituição que não permite que isso aconteça. Do operário surge a visão de que a universidade bem que poderia, de certa forma, conscientizar o seu estudante que no futuro pode ser o patrão. A universidade, para ele, poderia: ”Ter um insinamento, um isclarecimento prá ele(estudante), então, ele seria um patrão mais flexíve do que aquele patrão que não aceita siquer niguciar”1. Esta é uma visão já bastante conhecida na história da educação, sobretudo no campo religioso, onde muito se investiu nas mentalidades das elites, na esperança de que poderiam ser “melhores” e dirigentes mais “caridosos”. __________ 1. 1.
Membro do grupo Zé Peão. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro do grupo Zé Peão. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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Liderança sindical da construção civil. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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Interesses sociais e prática social A configuração dos interesses sociais(tema IV) está definida de acordo com três possibilidades. A primeira é que os interesses podem estar voltados a indivíduos, estando permeada de formulações que conduzem à sua promoção, seja na política, no aspecto econômico ou mesmo na dimensão cultural. São interesses que se expressam por uma visão que privilegia o comportamento da pessoa individualmente, marcada por enfatizar as expressões financeiras e as promessas. A segunda possibilidade de interesses é aquela voltada a setores do movimento. Essa percepção concebe apenas os interesses corporativos e busca a promoção de grupos da sociedade, nas dimensões política, econômica e cultural. Pode estar definida em torno de interesses do setor produtivo, privado, seja industrial ou comercial. A terceira possibilidade é aquela em que os interesses se apresentam direcionados à classe. Os seus indicadores revelam os interesses políticos voltados à classe que defendem. Também podem apresentar interesses ligados ao campo das alianças ou mesmo de greves. Lutas, organização, reclamações, etc. são expressões também utilizadas por aqueles que defendem os interesses da classe trabalhadora. Quanto à concepção de prática social (tema V), tem-se uma complementação e uma reaplicação do tema anterior - configuração dos interesses sociais. A prática social está formulada através de interesses, podendo estar voltada a indivíduos . Nesse caso ter-se-á um discurso pela modernização preocupado com eficiência, eficácia, competitividade, competência, modelamento e que prende em geral as preocupações administrativas. Um segundo aspecto da prática social é quando ela se constitui como processo político em consonância com as classes dominadas, podendo externar-se ou expressar-se como movimento com diferentes mediações e espaços. Essa postura passa a afirmar e complementar o jogo de interesses sociais, explicitando-se em discursos onde estão presentes possibilidades de mudanças, transformações, lutas, alternativas políticas, consciência política e formação política das classes trabalhadoras. A Tabela 4 revela consistência entre o tema IV - configuração dos interesses sociais e o tema V - concepção de prática social, como revelam os percentuais dos indicadores. No tema IV, os interesses voltados à classe apresentam os índices de 63%, 82%, 80% e 51%, relativos, respectivamente, aos coordenadores do projeto, aos seus executores, aos trabalhadores ou comunitários e aos documentos produzidos pelo projeto. Esses dados serão expressos de forma consistente no tema V - configuração da prática social, por meio dos indicadores que apontam para uma prática como processo em consonância com as classes subalternas (5.2). De forma mais acentuada, os percentuais de 89%, 99%, 98% e 93% são determinantes quanto à percepção da prática no Projeto Escola Zé Peão. As médias desses indicadores são também expressivas - 71% (4.3) e 98% (5.2) -relativas ao compromisso voltado para os interesses das classes trabalhadoras, como também às práticas direcionadas para essas mesmas classes. A análise das entrevistas dos trabalhadores da construção ou comunitários indica uma percepção clara dessa prática, que se apresenta através de resultados concretos. Quanto aos resultados que os sindicalistas esperam, não se faz necessário que suas propostas sejam executadas pelos próprios trabalhadores ou mesmo por seus agentes ou instituições. Para eles, o importante é que haja repercussão da necessidade de se fazer aquele tipo de trabalho. Nesse sentido, o resultado passa pela disposição gerada no sindicato patronal para fazer convênios e também para realizar cursos de alfabetização nos canteiros de obras, até a possibilidade de financiamento pelos empresários, a partir do Ministério da Educação e Desporto. A esse respeito, diz um dos sindicalistas: “Quando vejo o Presidente da República que não soltou dinheiro prá nós, mas já está financiando o empresário que quiser alfabetizar, o meu trabalho teve uma repercussão lá em cima”1.
Para ele, pouco importa quem são os agentes da prática social; o que importa é a realização dessa prática e o atendimento das necessidades.
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Esta é uma contradição ( ou a indicação de uma falha) no discurso do dirigente sindical, pois se sabe que os agentes da prática social são determinantes na realização do trabalho que se pretende como organizador de uma classe. O exercício pedagógico da escola Zé Peão não será o mesmo se for desenvolvido por qualquer agente social, despojado também de compromisso de classe. Para o sindicalista, pouco importa a discussão política, inclusive interna, que possa traduzir-se como visões de tendências ou visões políticas diferenciadas. O ganho de uma posição política se apresenta como uma possibilidade de pouca importância, a que ele se refere como “brigas ou picuinhas políticas”. O que importa para ele é o trabalho. O que ele pretende mesmo é trabalhar. É de se perguntar se o trabalho político não é um trabalho. Essa compreensão de prática social coloca-se em contraposição às formulações dos coordenadores, que vêem na prática pedagógica de um fazer sistematizado o significado dessa prática social, no sentido de que o operário passe também a apropriar-se do saber sistematizado, assim como aqueles que estão desenvolvendo aquela ação. A organização do projeto passa a ter sentido desde que haja um caráter educativo primordial, ou seja, a formação de uma identidade de classe: “um conhecimento da condição de trabalhador”. Revelam-se também metodologias de práticas sociais bastante peculiares a partir dos próprios trabalhadores ou dirigentes sindicais. Para se le var o boletim Zé Peão e algumas discussões até os canteiros de obras, muitas vezes
chega-se na hora do almoço dos trabalhadores. “Às vezes chego na hora do almoço. Eu pego um „bico‟ com eles. Um me dá um pouco de feijão, outro farinha, outro um pedaço de carne. Pego o „bico‟ deles. Quando falta 15 ou 20 minutos prá eles pegar no serviço, costumam jogar até a cachorra bater, é a sineta, que é um pedaço de ferro que bate prá eles pegar no serviço. Eu vejo que eles já têm jogado bastante, já deu prá se divertir, aí eu digo: companheiro! vamo parar o dominó. Hoje, vamo discutir umassunto que é muito importante. A questão, vamo dizer, do plano. Quem tá entendendo o plano do Governo?” 1. Para esse líder sindical, a discussão imediata sobre política não será compreendida tão facilmente pelos trabalhadores. Daí porque tal técnica possibilita ao próprio dirigente sindical uma inserção no mundo específico daquele canteiro de obra. Tanto o tema político como o próprio sindicato, como instituição, pode não ser aceito naquele ambiente de trabalho. Esse é um trabalho conhecido por “começar de baixo” , mas que suscita desconfiança por parte de outros dirigentes, que não aprovam essas formas de passar as informações aos seus companheiros. Para a liderança sindical, entretanto, essa é a linguagem e também um pouco a escola do trabalhador. Ao ser questionado sobre essas estratégias de fazer prática sindical, o sindicalista responde que não vai chegar entre os operários da construção e dizer que irá conscientizá-los e que o certo é a instalação do comunismo no Brasil. Não irá dizer aos trabalhadores que devem votar no Lula para Presidente ou que devem votar todos no PT ou outro partido de esquerda. Os trabalhadores não vão entender essa linguagem. “Eles acham que todo partido é igual. Eles acham que todo político calça 40. Nós temo que começar pelo dominó, mostrando prá ele que as pedra do dominó são diferente. Umas têm três pingos brancos outras têm quatro. Temos de mostrar prá ele que todo dirigente sindical é diferente. Todo político não é igual” 2.
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Há, portanto, diferenças e contradições no que concerne às percepções de prática social entre os coordenadores, bem como entre coordenadores e comunitários que participam do Projeto Escola Zé Peão, e ainda entre os dirigentes sindicais que participam diretamente do projeto. Segundo um membro da coordenação do projeto, ao participar dessa luta na busca de bens simbólicos, se encontram “futuros heróis”: o trabalhador que após dez horas de trabalho ainda vai em busca da escolarização, em nome da cidadania. Há uma introjeção desses bens como sendo bons para eles. Constroem um projeto pessoal. Há muitos aspectos nessa relação das práticas sociais com a configuração dos interesses sociais. “Há, contudo, uma vida noturna e uma sociabilidade entre esses operários e até de „encantos‟ das professoras do projeto. Vai se vendo que, agora, esses trabalhadores „compraram‟ o projeto. Inicialmente, ia-se „vender‟ tal projeto”1.
Agente institucional e natureza do trabalho O papel do agente institucional(tema IX) configura-se das seguintes formas: a primeira analisa o comprometimento do agente institucional com os interesses do mercado, do capital; a segunda vê o papel desse agente expresso de forma neutra e a terceira compreende a possibilidade de o agente institucional estar compromissado, especificamente, com as classes subalternas da sociedade. Em relação à primeira possibilidade, serão enfatizadas aquelas palavras ou expressões indicadoras de situações como, por exemplo, o discurso voltado aos interesses individuais, à promoção individual ou mesmo à preocupação com o bem-estar individual. Além disso, estão inseridas como indicadores expressões que definam integração, bem como formação para profissionais “avançados”, no sentido de saber utilizar as tecnologias ditas de “ponta”. Na segunda condição - o agente neutro da instituição, seja ligado à universidade ou ao Estado, há indicadores que apontam esses profissionais relacionando-se com a comunidade ou entre si, como representantes apenas da instituição a que pertencem. Já a terceira forma analisa o papel do agente institucional como pessoa comprometida com a classe dominada. Observa se ele se externa assumindo e defendendo as condições de participação da comunidade ou de pessoas nos projetos ou práticas sociais em estudo. Costuma estar presente aí uma preocupação com a relação entre teoria e prática. O agente se apresenta na defesa da solidariedade, da afetividade, do compartilhamento, companheirismo, conscientização e cooperação. A Tabela 4 (temas, itens e percentuais de indicadores) apresenta percentuais onde se pode ver que a equipe de coordenadores é constituída por pessoas com marcante diferenciação de perspectivas políticas. No tema VIII (natureza do trabalho social) os coordenadores divergem quanto à natureza do trabalho, onde 27%(8.2) indicam que esta se constitui de trabalho técnico com discurso de neutralidade frente às ações em desenvolvimento no projeto. Um percentual expressivo de 71%(8.3) assume, contudo, que o caráter desse trabalho deve ser técnico, acompanhado de um discurso transformador. Todavia, ao nível do sindicato e do grupo Zé Peão, discutem-se as formas de fazer chegar tal discurso à categoria, diante de sua complexidade quanto à origem dos trabalhadores da construção civil. Essa composição se apresenta com uma duplicidade de identidade. Trata-se de um trabalhador rural que veio à cidade enquanto espera o tempo de plantio e
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colheita no campo. Breve estará voltando ao seu lugar de origem. É também um trabalhador urbano, pois seu trabalho localiza-se na cidade, sendo conduzido pelo movimento social da própria cidade. Sua relação com o sindicato da construção, na maioria dos casos, é a primeira e esta é conduzida pelos traços da relação política vivenciada por ele lá na sua terra de origem. É uma relação geralmente de dependência para com o vereador ou o prefeito da pequena cidade: é o compadre que o conduz à feira e que não cobra passagem. São relações de amizade familiar, considerando que a família vive na mesma região. Ou é uma relação ao nível econômico, baseada no empréstimo de dinheiro sem cobrança de juros, fora, portanto, das relações normais do capital. Enfim, alguém com esse tipo de história passa a ver no sindicato uma possibilidade de relacionamento semelhante, onde espera ver resolvido o seu problema. O sindicato trabalha no sentido de quebrar esse tipo de relacionamento. Parece razoável se entender que o trabalho social desenvolvido não rompe “in totum” com essas práticas políticas, mas que contribui para a sua superação, pelo menos enquanto esse trabalhador permanecer na cidade. Essas são algumas expressões das dificuldades enfrentadas e que são geradoras de contradições entre coordenadores. Os índices relativos ao papel do agente institucional (tema IX), ou seja, 38% para a perspectiva de se apresentar como um agente de mercado, 27% como agente neutro e 35% como agente da classe dominada, expressam contradições. E isso, talvez, se constitua na divergência maior na solução de questões como aquela apontada no parágrafo anterior. Isto tem sido colocado e analisado, no âmbito do projeto, como uma característica que lhe é inerente, ou seja, a tentativa de manter as posições diferenciadas nos limites do próprio grupo. Trata-se de uma experiência onde os conflitos nunca foram sufocados, mas sempre colocados em discussão. “Os conflitos, sejam cognitivos, políticos, de valores, sempre foram colocados como objeto de observação e de discussão. Sempre tendo em vista o aprimoramento do projeto, no sentido último, de viabilizar para o operário, o acesso a todo esse saber e contribuir, em parte, para sua subjetividade e, em parte, para formação de uma identidade sindical, de uma consciência coletiva. Entretanto, todas as coisas que eu disse, na entrevista, refletem um olhar” 1. O Projeto Escola Zé Peão contém uma diversidade de percepções. Essas percepções têm tido diferenciação marcante a partir da posição que ocupam no projeto, do tempo como agente do projeto e da conjuntura do momento. Há também uma diferenciação marcante no que se refere à natureza do trabalho social caracterizado, neste projeto de extensão, como um trabalho técnico com discurso transformador, embora apenas 35% dos respondentes estejam voltados à visão do papel do agente institucional comprometido com a classe dominada. Destaca-se a consistência existente em ambos os temas quanto à visão da natureza do trabalho social na extensão se constituir como um trabalho técnico, com
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discurso de neutralidade, com 27%, verificando-se o mesmo índice para o papel do agente institucional, expresso como agente neutro. O papel do agente institucional ganha relevo quando da movimentação para o dissídio coletivo ou quando questões específicas de algum canteiro de obra são colocadas. Há casos em que os trabalhadores de determinados canteiros de obra nunca tinham paralisado suas atividades. A presença da escola, após sete meses de atividades, contribuiu para que os trabalhadores desse canteiro resolvessem paralisar suas atividades por conta de não pagamento de salário-família por parte da empresa construtora. O sindicato, inclusive, chegou a formular uma proposta para o grupo daquela empreiteira, a qual não foi aceita por parte dos trabalhadores. Entraram em negociação com a empresa e com o sindicato, e decidiram pela greve, independentemente da proposta do sindicato. O sindicato, naturalmente, aprovou a greve desse grupo. O que marca a presença da escola são declarações dos próprios trabalhadores para o diretor sindical e membros do Projeto Escola Zé Peão: “Ah! você sempre falou que era a gente se unindo que conseguia as nossa reivindicação e agora, eu posso dizer que é verdade”1. É importante salientar que hoje a organização nos canteiros de obra é bastante variada, como são variados os próprios trabalhadores nesses canteiros. O trabalho na construção civil leva o operário a permanecer por pouco tempo no mesmo local, considerando o pouco tempo de duração da obra e conseqüente rodízio no trabalho. Mas há canteiros com uma organização maior que outros. A diretoria, cada vez mais, tem de manter o processo de visita direta aos canteiros. Alguns deles exigem a presença do sindicato diariamente. Há outros que procuram o sindicato como forma de prestar todos os esclarecimentos que precisam ter em decorrência de mudanças de salários e cálculos de percentuais de férias, décimo terceiro salário ou mesmo o cálculo do FGTS. Essas discussões ajudam a todo o processo de um desenvolvimento organizativo. “Chego em canteiros de obras em que os operários estão dando aulas uns para os outros. É uma teima gostosa entre eles. Você não sabe que é desse jeito? Você não sabe como é que você dividiu isso e deu esse resultado?” 1. Essas constatações parecem configurar uma natureza do trabalho social em extensão neste projeto. O Projeto Escola Zé Peão vem, inclusive, contribuindo para a criação de frentes de lutas como a da questão da saúde e da segurança no trabalho. Ainda mais
esclarecedoras são as contribuições do projeto no seio da categoria e diretamente para a diretoria sindical. Ressalte-se que o projeto tem sido bastante divulgado, no Nordeste, através da liderança que o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil tem exercido na região. Em l991 organizou-se aqui em João Pessoa o I Encontro dos Sindicatos da Construção Civil do Nordeste. O sindicato também já participou da formação de uma Federação de Trabalhadores. Há um departamento de trabalhadores da __________ 1.
Declaração de um operário no canteiro de obras, após a conquista da reivindicação do salário-família.
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Liderança sindical da construção civil. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro do grupo Zé Peão.Texto da entrevista para esta pesquisa.
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construção civil na Central Única dos Trabalhadores(CUT) onde esse sindicato exerce a liderança no Estado da Paraíba. Há ainda fortes contatos com sindicatos da construção civil em Campinas/SP, Recife e em Fortaleza. O contato com Campinas vem se dando, através do trabalho que vem sendo desenvolvido naquela cidade voltado à educação básica, para a alfabetização dos operários. “Acho que o projeto tem extrapolado o espaço local, isto porque foi divulgado, a nível nacional, via trabalhos escritos, participação em eventos, encontros nacionais e internacionais, através da rede do MEB”2. A natureza do trabalho social neste projeto de extensão, que expressa a opção por um trabalho técnico, acompanhado de um discurso transformador, atinge o percentual expressivo de 88% entre os executores do projeto. Sabe-se que a alfabetização não é tarefa específica da universidade e sim do Estado. Mas, ao realizarem tal papel, a universidade ou o sindicato apontam a sua perspectiva. A universidade pode estar se propondo a um trabalho de ensino ou de pesquisa ao realizar atividades de extensão. O sindicato, por sua vez , assume a formação política de sua base operária. Pretende motivar suas bases de trabalhadores para incentivá-las à participação no sindicato, exercitando-os para uma participação mais ampla no âmbito da sociedade. O sindicato e a universidade confluem, portanto, para um objetivo comum, relacionando-se e diferenciando-se quanto ao propósito de que o acesso ao saber sistematizado faz parte do processo de conquista de cidadania. A universidade tem, dessa forma, uma ligação social com as pessoas, desenvolvendo, com eles, um trabalho particular. Nesse sentido, existem perspectivas: “ Primeiro, a perspectiva de melhor formação de professores para educação de adultos. A segunda é estender os seus conhecimentos à comunidade. Mas não é qualquer conhecimento e sim um conhecimento de qualidade. A universidade tem a responsabilidade de colocar o que há de melhor que tem a serviço da comunidade” 1. A proposta do Projeto Zé Peão era inicialmente modesta, mas pouco a pouco foi conquistando a construção civil. A demanda, hoje, é mais expressiva e já são os trabalhadores que procuram o sindicato reivindicando a Escola Zé Peão no seu canteiro de obras. Há pressão sobre o sindicato nesse sentido e, atualmente, já existem dificuldades para o atendimento dessas reivindicações. Em discussões da diretoria do sindicato sobre o Projeto Escola Zé Peão, diretores costumam afirmar que essa parceria não pode se prender apenas à escola, no sentido de alfabetizar, ensinar a ler e escrever o nome. Para eles, esse trabalho conjunto da universidade com o sindicato, através deste projeto, precisa ir além do que se está fazendo. Às vezes, acham vaga a proposta pedagógica da alfabetização. Levantam a necessidade de que esse trabalho possa ir além do que se está propondo como alfabetização, como escola. Para os trabalhadores não basta apenas saber escrever o nome ou fazer algumas contas. É necessário que seja envolvido todo o contexto da sociedade em que vivem. ________________ 1.
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O trabalho social desenvolvido está despertando entre os próprios sindicalistas a necessidade da reciclagem das diretorias. A oposição Zé Peão foi eleita para a direção do sindicato. Houve uma repetição de mandato desse grupo. Agora eles estão preocupados em sair dos cargos que exercem. Como inicialmente estiveram em funções de “linha de frente”, agora acham que, se permanecerem na diretoria, serão deslocados para cargos com atividades de menor importância. Assim, acreditam que estarão empurrando os demais diretores para assumir a proposta de desenvolver tal política. Outra dimensão da natureza do trabalho desenvolvido tem sido o avanço no sentido de maior envolvimento da direção sindical e de alguns trabalhadores da base sindical em vários outros movimentos sociais, indo além da participação exclusiva no sindicato. Os membros do Projeto Escola Zé Peão e da diretoria do sindicato atuam em várias frentes como nos partidos políticos, nos movimentos da Igreja Católica ou na organização de associações de moradores em seus bairros. Suas atividades no movimento sindical passam a ter maior expressão nos diversos movimentos de organização da sociedade, possibilitando que suas questões passem também pelas discussões do movimento sindical. Com relação ao Projeto Escola Zé Peão, podem-se confrontar, na Tabela 4, os dados do tema IV - configuração dos interesses sociais, e do tema V - concepção de prática social com os temas VIII - a natureza do trabalho social, e IX - o papel do agente institucional. Constata-se a consistência expressa pelos dados da tabela, através dos percentuais dos itens: interesses voltados à classe subalterna e os processos em consonância com as classes dominadas; o trabalho técnico com discurso transformador e o papel do agente voltado às classes dominadas, com percentuais de 71%, 98%, 91% e 65%, respectivamente, havendo, mesmo assim, uma diferença de trinta e três pontos percentuais entre os executores e textos do projeto. Não se pode deixar de observar, contudo, a dificuldade existente no grupo de coordenadores, apresentando a divergência maior quanto ao papel do agente institucional.
A extensão universitária O tema VII trata das concepções de extensão universitária apresentadas no projeto. As concepções de interesse no estudo projetam três possibilidades na apresentação dessas concepções. A primeira é a concepção de extensão como uma via de mão única, em que a universidade se “dirige” para a sociedade. É uma perspectiva reveladora de uma visão onde a universidade se situa desvinculada da sociedade. Ela “vai” em busca da sociedade. Essa visão é detectada por indicadores que apresentam a universidade como prestadora de serviço, fornecedora de cursos, condutora de conhecimentos para a sociedade. Firma-se nessa compreensão a idéia da assistência ou da venda de serviços. A universidade se torna um balcão de atendimento de demandas mais imediatas de comunidades ou grupos da comunidade, ou mesmo de interesses individuais. Consolida-se a idéia de patrocínio de eventos onde os serviços de assessoria aparecem como forma de ganho de proventos para os departamentos ou para os profissionais prestadores de serviços. Prevalece a noção de que a universidade deve fazer treinamento e estender os seus 305
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conhecimentos à sociedade. Assim, “beneficiará” a sociedade e exercerá a sua função social. Outra possibilidade de extensão universitária é aquela definida como via de mão dupla. Esta visão se reveste de um processo educativo, cultural e científico. Em geral, tem sido apresentada pelas Pró-Reitorias voltadas à extensão universitária. É uma conseqüência do conceito alimentado nos encontros dos Pró-Reitores dessa área de atividades das universidades. Está sempre presente nesse conceito a compreensão de que a universidade leva conhecimentos para a comunidade e, ao mesmo tempo, dela extrai conhecimentos. A extensão da universidade é simbolizada pela mão dupla, compreendendo-se como um canal ou elo promovedor do diálogo, da troca, buscando tanto captar como atender as demandas postas aos organismos de extensão da universidade. A terceira possibilidade em construção é a visão de que extensão universitária pode ser entendida como um trabalho social e necessariamente será um processo educativo, cultural e científico. Esse processo está relacionado com o papel do agente de extensão, bem como com a sua concepção e prática social. Revela-se como processo voltado à construção da hegemonia dos setores subalternos da sociedade. Concebe-se como um trabalho realizado junto à comunidade pela universidade ou seus agentes(estudantes e professores) que, mesmo diferenciando-se, relacionam-se, rompendo a dicotomia existente entre os pólos dessa relação. O conhecimento é produzido não só pela universidade e repassado para a comunidade (através de pessoas participantes dos movimentos), mas também pela comunidade e universidade(através de seus pesquisadores, estudantes, etc). A comunidade e a universidade são as proprietárias do conhecimento produzido e de todo o produto gerado dessa ação conjunta. É uma perspectiva onde o trabalho se configura numa dimensão de continuidade e de permanência, em processos de realimentação, valorando a prática e a reflexão sobre essa prática. A projeção dos percentuais da Tabela 4 sugere a presença, no Projeto Zé Peão, das várias correntes de conceituação sobre a extensão universitária. É marcante a visão de que extensão universitária se expressa como uma via de mão única, em percentuais de 35% para os coordenadores do projeto, 35% para os executores e 74% para os comunitários. A comunidade mantém a expectativa de que a universidade, como instituição governamental, deva atender as suas demandas de forma assistencial. Essa é uma visão que reforça uma concepção autoritária do fazer acadêmico da instituição, no momento em que a universidade se torna a detentora da solução ou a única possuidora do saber. São expressivos, contudo, os resultados do item 7.3 entre os coordenadores e executores e nos documentos produzidos pelo projeto, com percentuais de 58%, 61% e 80%, respectivamente. Esses dados abrem possibilidades para um novo pensar sobre as formulações conceituais dominantes acerca da extensão universitária.
306
307
TABELA 5 CONCEPÇÃO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA Distribuição dos itens do tema VII, por segmento I T E M
A 1
A 2
A 3
A T
%
B 1
B 2
B 3
B T
%
C 1
C 2
C 3
C T
%
D 1
D 2
D 3
D T
%
T T
t %
% item
7 . 1
1 1
0 5
0 0
1 6
3 5
1 1
0 6
0 0
1 7
3 5
1 0
1 4
1 9
4 3
8 4
0 9
0 7
0 0
1 6
2 4
9 2
4 3
04
0 1
0 2
0 0
0 3
0 7
0 1
0 1
0 0
0 2
0 4
0 1
0 0
0 0
0 1
0 2
0 3
0 1
0 0
0 4
0 6
1 0
0 5
1 4
1 3
0 0
2 7
5 8
1 4
1 6
0 0
3 0
6 1
0 3
0 2
0 2
0 7
1 4
3 1
1 5
0 0
4 6
8 0
1 1 0
5 2
7 . 2 7 . 3
7.1 - Via de mão única: da universidade para a sociedade. 7.2 - Via de mão dupla: processo educativo, cultural e científico. 7.3 - Trabalho social: processo educativo, cultural e científico voltado à construção de nova hegemonia. A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos
AT - Freqüência de indicadores no item A BT - Freqüência de indicadores no item B CT - Freqüência de indicadores no item C DT - Freqüência de indicadores no item D TT - Freqüência total de indicadores no item
Observando-se, na Tabela 5 - concepção de extensão universitária, o total de indicadores em relação aos itens, constata-se que foram detectados 35% entre os coordenadores, 35% entre os executores, 24% nos documentos e 84% entre os comunitários, perfazendo um total de 43% de indicadores detectados para a compreensão da extensão como uma via de mão única. Essa expectativa entre os comunitários surge com um total de 84% dos indicadores, sendo um índice esperado, considerando as perspectivas das comunidades habituadas ao paternalismo das políticas públicas. Todavia, o percentual final de indicadores (52%), voltado para a visão da extensão como trabalho social, projeta-se com maior significação para se pensar a extensão como trabalho social. A extensão universitária, neste projeto, vai se explicitando no trabalho de extensão feito em conjunto, estabelecendo uma relação entre a universidade e a realidade da construção civil. Constitui-se em um espaço pedagógico para aprendizagem dos grupos envolvidos, sejam eles da universidade, da comunidade ou de um sindicato, conferindo significado ao fazer ensino a partir da extensão. Há um espaço pedagógico de formação profissional tanto para os trabalhadores como para os membros da universidade que fazem extensão. Há, inclusive, um profundo exercício de responsabilidade para todos os envolvidos
num projeto dessa natureza. Quanto ao espaço pedagógico existente no fazer extensão, foi apresentado o seguinte depoimento: “É o espaço que a extensão oferece para a pesquisa. Eu acho que quando a gente fala na possibilidade do ensino-pesquisa-extensão é uma frase vazia para muitas pessoas. Na área de extensão, você dificilmente separa o ensino, a pesquisa e a extensão. Uma coisa está embutido na outra. Não se consegue fazer extensão sem um mínimo de ensino e de pesquisa também. Pode não ser formalizada em termos de projeto, mas a nível de sistematização isto tem que existir” 1 . ___________ 1. Membro do grupo Zé Peão. Texto da entrevista para esta pesquisa
307
308
O projeto de extensão universitária Escola Zé Peão vem apresen-tando a dimensão de pesquisa quando, de forma concreta, vários trabalhos acadêmicos são gerados dessa experiência. Dissertações de mestrado e teses de doutoramento já foram aprovadas, cujos objetos de pesquisa analisavam aspectos sócio-culturais do projeto ou estudos de dimensões metodológicas voltados à área pedagógica, especificamente, no campo da alfabetização de adultos. O espaço do Projeto Escola Zé Peão tem se mantido aberto a alunos e professores comprometidos com a sua perspectiva política. A extensão realizada pelo projeto vai se configurando dentro da idéia de um trabalho inserido em questões sócio-políticas e culturais da região. Tem buscado coletivamente alternativas viáveis e práticas para as necessidades do cotidiano, num trabalho que, à medida que vem se realizando, promove também a pesquisa. Esta adquire um “caráter” de ênfase no conhecimento da realidade para subsidiar futuros planejamentos e ações de ensino. A pesquisa vai se fortalecendo, na medida em que são produzidos mais conhecimentos sobre a realidade. Diante de uma necessidade que é destacada para estudos de propostas de solução viáveis, nesse momento, surge um conhecimento mais minucioso, mais concreto, que só é possível através da pesquisa. A pesquisa vai, inclusive, qualificando essa intervenção possibilitada pela extensão. “Eu penso que a articulação do trabalho de extensão e pesquisa, se casa bem na particularidade do Projeto Escola Zé Peão. Em sendo um projeto que atua no âmbito do simbólico, as três dimensões se articulam: extensão, ensino e pesquisa” 1 .
__________ 1. Membro da equipe Zé Peão. Texto da entrevista para esta pesquisa.
308
309
Considerações Uma observação de forma vertical nos índices percentuais dos temas e itens mostra que prevalece neste projeto a grande consistência existente nas formulações dos executores do projeto: a letra B da Tabela 4. Em relação aos comunitários, dirigentes sindicais, os dados também se comportam assim, excetuando-se o tema VII, em que prevalece a conceituação da extensão universitária como via de mão única, como expressão de uma clara contradição à consistência dos dados desse segmento da pesquisa nos demais temas. Esta concepção da extensão universitária como via de mão única, com índice de 84% entre os comunitários, se choca tanto com as concepções que prevalecem entre os coordenadores e os executores quanto com os documentos do projeto. A análise dos documentos demonstra sua grande consistência no conjunto dos temas, com exceção do tema IX - papel do agente institucional. Neste tema há uma divisão entre a opção do papel do agente como agente do mercado (9.1), que prevalece com 52%, e aquela onde se destaca o papel do agente comprometido com a classe subalterna(9.3), com 45%. É importante destacar a definição do papel do agente institucional relacionado aos interesses do mercado (tema IX), com percentuais de 38% e 52%, respectivamente, para os coordenadores e textos produzidos. Ao considerar todo o tema, essa configuração percentual se altera para 65% de um posicionamento para que o agente institucional esteja comprometido com as classes subalternas. Neste projeto se consolida uma perspectiva em que o sindicato vem desempenhando um papel fundamental no sentido de dizer a cada um que todos são operários. Todos pertencem a uma mesma classe. Também os dirigentes sindicais, até o momento, não perderam os seus contatos com as bases da categoria. Já desenvolvem sua própria capacidade
de elaborar análises sobre o mundo e sobre a realidade. Eles apresentam condições de falar sobre sua própria realidade e, além disso, são capazes de passar para os seus companheiros essas suas análises. Sem a junção dessas duas coisas, possivelmente, não teria sido possível o funcionamento do projeto, que permanece até os dias de hoje. Há a relação da universidade com o sindicato, no sentido formal, o que também privilegiará a continuidade do projeto e conduzirá os seus encaminhamentos para além do compromisso individual entre pessoas. Estão superadas as relações informais de assessoria. Desperta-se, entre os docentes da universidade, bem como entre os estagiários ou professores do projeto, um compromisso político para com o próprio projeto e sua filosofia. Além disso, é oferecido aquilo que de melhor se tem - a própria força de trabalho, o trabalho profissional da equipe, sem ser preciso sair da área profissional de cada um. Assim é que, do ponto de vista metodológico , não se espera esse tipo de situação: “Não! Eu não vou agora porque ainda não aprendi. Não. Tem que ir. Isso acontece, também na extensão e aconteceu com a gente. Tivemos de ir criando e só no final de três anos é que se teve uma proposta metodológica. Tem-se um projeto metodológico para experiência. Marcado esse projeto, não só pelas minhas convicções, mas por outras que foram se cruzando também com as minhas próprias observações” 1. __________ 1. Ver. IRELAND, Vera E. J. da Costa. APRENDENDO COM O TRABALHO: livro de alfabetização de jovem e adultos trabalhadores. Col. Ma. de Lourdes Barreto de Oliveira. João Pessoa, Editora Universitária UFPB, 1995.
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Este é um projeto que se revela com a possibilidade de trazer à tona a questão da aquisição de bens simbólicos pela aprendizagem da língua escrita. Enquanto trata da oralidade como forma de expressão, também acrescenta um novo código do qual o operário está excluído. Esta é a possibilidade que se aponta. Um projeto que tenta fazer regular a irregularidade de não se ter escola para uma classe na sociedade. Um projeto estabelecido com as contradições que lhe são peculiares como, por exemplo, superar a rotatividade da equipe da universidade. Esta questão pode gerar também insegurança na sustentabilidade do próprio projeto. Um projeto que luta na expectativa de que a escolarização do adulto, mesmo chegando tardiamente, se torne um direito da cidadania e um dever do Estado e da sociedade. Uma luta para que a educação básica se torne popular, com o objetivo de produzir a organização da base do setor social do poder das comunidades ou, no caso, no canteiro de obras e na sociedade em geral. Uma experiência que vem conduzindo a instrução com a alfabetização, porém combinada com o trabalho produtivo. Talvez seja esta uma expressão específica da relação entre teoria e prática. Esta experiência tem nessa relação uma dimensão prática, pois, “ enquanto a teoria serve de guia de ação, a atividade prática constitui o fundamento de todo o conhecimento” (MACHADO,1992 :129).
2.4 - Projeto Praia de Campina “Se não se discutir o problema político, fica o campo aberto para os burgueses” 1. O início das visitas da equipe da Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários à Praia de Campina, município de Rio Tinto, litoral norte do Estado da Paraíba, foi decorrente de convite feito pelo pessoal da Fundação Peixe-Boi-Marinho. A Fundação tem sede em Barra de Mamanguape onde se desenvolvem atividades voltadas à proteção do peixe-boi. A região é constituída de l4.500 hectares, sendo a Praia de Campina a área mais habitada. A situação dessa população depende do cultivo da cana-de-açúcar, que tem crescido na região, sobretudo de l975 a l985, mas cuja manutenção hoje se constitui em um grande desafio para o governo. Presos ao Projeto do PROÁLCOOL, os moradores da região estão hoje à mercê da crise desse setor. Para MOREIRA(l992:1), “após l986, segue-se uma fase de desaceleração, desencadeando a crise por que passa atualmente a agroindústria sucro-alcooleira estadual”. Trata-se de uma área de proteção ambiental do IBAMA. Juntamente com esse órgão, a partir do Projeto Peixe-Boi, atua a universidade. Em conversas conjuntas formulam a necessidade de organizar a comunidade e desenvolver um programa experimental nessa base, que é cedida pelo IBAMA, ainda que esteja ocupada pela Usina de Açúcar Japungu. _________________ 1.
Declaração de um trabalhador rural, participante das Ligas Camponesas, presente no 3o. Encontro de Comunidades Rurais. Promoção do Projeto/PRAC/UFPB.
310
311
No início do projeto houve algumas reuniões com a comunidade, onde foram discutidas suas dificuldades em relação à produção de alimentos, à pesca e à disponibilidade de tempo para desenvolver um trabalho comunitário, um mutirão talvez, para se fazer a plantação de uma área denominada de paul1. A área estava tomada totalmente de vegetação “braba”, exigindo daqueles moradores trabalho braçal. Vinte e dois homens da comunidade, moradores de Praia de Campina, iniciaram esse trabalho com a participação de dois técnicos da universidade. Todo o processo de organização foi dirigido nesse local para a produção de várias culturas, como a mandioca, a macaxeira, o milho e o feijão. Sendo a área considerada de proteção ambiental, a sua jurisdição deveria passar automaticamente para o IBAMA. Isto, contudo, não estava ocorrendo, pois o domínio era da Usina Japungu que impedia qualquer ação da comunidade nesse sentido, mantendo os seus jagunços na área, sob intensa fiscalização. Estabeleceram-se imediatamente conflitos com a usina e o pessoal da universidade teve de responder processos na comarca local. Contudo, a comunidade se estabeleceu nessa área, fazendo suas plantações que, ainda hoje, são a base de sua sobrevivência. Dessas lutas foi criada a Associação Agrícola dos Moradores de Praia de Campina, que desde então passou a coordenar as lutas e as reivindicações da comunidade. Todo um processo de educação ambiental se desenvolveu nesse trabalho, sob a responsabilidade da equipe do Projeto Peixe-Boi e da universidade. Era necessária a compreensão por parte da comunidade a respeito do manejo de solo e sobre o significado da produção ambiental - a condição de usar a região do mangue, por exemplo, sem degradá-lo.
_________________ 1.
Região com muita água, possibilitando plantio mesmo em época de seca. Sua característica é a fertilidade.
311
312
Os conflitos aí gerados não estiveram apenas voltados à usina. À medida que se discutia a questão ambiental, veranistas que são proprietários e que constroem suas mansões praticamente na praia, foram alertados pelo IBAMA sobre suas construções. Mexeu-se com pessoal muito forte política e financeiramente que tentou sustar as atividades da universidade e do IBAMA naquela região. Entretanto, essas pessoas não tiveram sucesso e foram duramente multadas pelo IBAMA, tendo que recuar de seus empreendimentos. Assim, têm início as atividades nessa região, que se abre para parceria com organizações não-governamentais, como a AGEMTE e a Visão Mundial, organização não-governamental internacional. Desse conjunto de organizações presentes em Praia de Campina se consolida um projeto apresentado ao governo japonês, cuja aprovação deveu-se muito à presença da universidade em outros projetos dessa natureza. Trata-se de um projeto voltado para o desenvolvimento de formas de produção de alimentos, de material escolar, de fardamento escolar, de saúde e de educação das crianças. A medicação deve ser desenvolvida no próprio local, comprando-se apenas o que não existe na produção local. A duração do projeto está prevista para sete anos. Há vários conflitos no local. Uma companhia de tecidos passou a reivindicar as casas dos moradores do povoado de Praia de Campina. Ainda que as casas tivessem sido construídas pelos moradores, a Companhia de Tecidos de Rio Tinto, município vizinho de Mamanguape, exigia sua propriedade sobre essas construções. Muitas negociações foram encaminhadas, decorrentes da participação e do trabalho da equipe de extensão. Com a participação da comunidade foram preparados vários processos, expostos em reuniões e encaminhados à justiça, aguardando uma solução. Daí surge, por parte da equipe da universidade, em parceria com o Estado, com a AGEMTE e com a Associação Agrícola local, a formulação da proposta de compra da terra pelo Estado e de criação de um condomínio produtivo, abrangendo inclusive a região do paul. Denominado Produção em Condomínio em 120 ha de Policultura em Praia de Campina, esse projeto tem como objetivo a compra de 120 hectares de terra na área. A terra seria utilizada para produção de alimentos de subsistência, além de produtos economicamente viáveis, em forma de cooperativismo, criando uma alternativa produtiva em condomínio. O projeto tem como objetivos específicos: o combate à fome e a miséria, com a produção de alimentos básicos; a implantação de um programa produtivo consorciado; a implantação de cooperativa de produção com os moradores locais e a capacitação dos mesmos para administração, economia, armazenamento, contabilidade, comercialização e educação ambiental. A proposta nunca se consubstanciou de forma concreta. Continua sob análise do Projeto Peixe-Boi Marinho e do Governo do Estado. A AGEMTE, em contato com a Secretaria do Bem-Estar Social do Estado, também formulou uma proposta de desenvolvimento integral para os municípios paraibanos, tendo como base experimental as atividades no Vale do Mamanguape e em Praia de Campina. Esse projeto centra suas metas na produção de alimentos, na geração de emprego e renda, na educação, na saúde e na cultura. É um projeto inspirado em programas de outros Estados, como o PDCTA(Programa de Difusão e Capacitação em Tecnologia Alternativa), desenvolvido pelas ONGs SERTA/PE(Serviços de Tecnologia Alternativa), GTAE/Al e PAER/PB( Programa de Apoio à Educação Rural). Essas experiências vêm sendo “implantadas” em Pernambuco e em Alagoas e podem ser também implantadas na Paraíba. É um projeto 312
313
que está no papel, mas que ainda não teve nenhum encaminhamento por parte do Governo do Estado. Finalmente, há um terceiro projeto na região, que é um programa de preservação e de educação ambiental, onde se aprende a promover o extrativismo sem provocar desequilíbrio ao meio ambiente. São projetos da zona dos pescadores, dos catadores de marisco, de ostras, de caranguejos, entre outros. Basicamente são estes os três projetos existentes. O conjunto de atividades em desenvolvimento em Praia de Campina passa a compor o Programa Interdisciplinar de Extensão Comunitária, sendo o responsável pelas bolsas de extensão da universidade, que possibilitam o deslocamento de estudantes, semanalmente, para tais atividades. Esse programa teve início em l990 na PRAC/UFPB, buscando também uma metodologia para a prática da interdisciplinaridade. Ele cobre, hoje, mil e duzentas famílias em várias comunidades e “busca a promoção do homem e de uma prática acadêmica mais comprometida com a ética e a democratização dos conhecimentos gerados dentro da Universidade”1. Desa forma, o Programa Interdisciplinar de Extensão Universitária se afirma como “um trabalho que tem como prioridade a discussão sobre as demandas da sociedade e sobretudo a relação que a universidade tem para com essas demandas”2. Esse trabalho se constitui na possibilidade de desenvolver nas comunidades certas ações que conduzam para um processo de discussão sobre seus problemas particulares e, assim, apresentem soluções para os mesmos. Tais ações devem ser capazes de melhorar as condições de vida e de cidadania dos habitantes da comunidade, buscando um desenvolvimento social, político, econômico e cultural. O programa se organiza a partir de um grupo interdisciplinar subdividido em três outros grupos: saúde, produção e educação. Esses grupos, por sua vez, vêm desenvolvendo as seguintes ações: treinamentos, capacitação, assessorias, diagnósticos, consultorias, organização, caracterização sócio-econômica e acompanhamento técnico e científico. Atuam em várias comunidades como Penha, Praia de Campina,
__________ 1.
UFPB/PRAC/COPAC. Extensão. Programa Interdisciplinar de Extensão Comunitária. Folder de divulgação. João Pessoa, s/d. 2. Id. , ib.
313
314
Fagundes, Cruz do Espírito Santo, Mussumago, Costinha, Mamanguape e Santa Rita. Esse trabalho se expande para além da comunidade de Praia de Campina, abrangendo, atualmente, trinta e oito comunidades em vários municípios vizinhos às cidades de Rio Tinto e Mamanguape. Envolve também outras organizações como os sindicatos rurais dos dois municípios, participando de programações e até de passeatas nessas localidades, objetivando a luta por suas reivindicações, além de comemorações como a do dia 1o. de Maio. A organização dessas comunidades foi gerando associações de moradores, que em sua evolução chegaram a constituir-se em uma Federação de Associações do Vale do Mamanguape, responsável agora por alguns dos projetos em funcionamento na região, como, por exemplo, o da Comunidade Solidária. As ações desenvolvidas por esses projetos promovem a participação da universidade, do IBAMA, da comunidade e de organizações não- governamentais, bem como do Estado. Elas confluem, através de suas mediações, correlações e contradições contidas em cada uma dessas entidades, como uma experiência das mais complexas, do ponto de vista político, geradora também de maiores contradições frente ao “alinhamento” difuso que apresenta. Todas as ações que vêm sendo desenvolvidas em Mamanguape, Rio Tinto e Praia de Campina, através dos três projetos, sinteticamente apresentados, serão denominadas para efeitos deste estudo, de Projeto Praia de Campina. Projeta-se, agora, o estudo elaborado sobre o Projeto Praia de Campina a partir de entrevistas com os coordenadores do projeto, os executores e os comunitários, além de textos do próprio projeto. O instrumento de análise é o mesmo que foi utilizado tanto no Projeto CERESAT quanto no Projeto Zé Peão. Pode-se observar o comportamento dos variados temas neste projeto, a partir do Gráfico 3.
314
315
GRÁFICO 3 FREQÜÊNCIA DOS TEMAS
1000 900 800 700 600 500
IX
400
VII
300
V
200 III
100 I
0 16
28
1
8
5
3
4
21
2
12
%
I. Concepção de mundo VI. Relação universidade-sociedade II. Concepção de sociedade VII . Concepção de extensão Universitária III. Concepção de Estado VIII. Natureza do trabalho social na extensão IV. Configuração dos interesses sociais IX. Papel do agente institucional V. Concepção de prática social X. Pedagogia da extensão universitária
O Gráfico 3 revela quatro blocos temáticos considerando-se a sua expressão quantitativa. O primeiro é a concepção de sociedade, externada em 28% de indicadores do projeto. É um projeto que, de acordo com as possibilidades colocadas dentro dessa concepção, vai apresentar uma divisão quase pela metade dos respondentes, sejam coordenadores ou executores do projeto, num total de 52% e 59%, respectivamente, para uma visão de sociedade se expressando como uma totalidade perfeitamente integrada (ver Tabela 6). Por outro lado, também se externa a visão de modo de produção para os mesmos setores, com percentuais de 46% e 40%, respectivamente para os coordenadores e executores. Surge logo de início uma contradição, considerando-se que essas mesmas visões não partem dos mesmos índices relativos aos comunitários e textos produzidos no projeto. A visão de sociedade como uma totalidade integrada apresenta índices bem inferiores, assim como a perspectiva do modo de produção, tendo conseqüentemente 63% e 83% dos percentuais. Os comunitários, na condição de trabalhadores rurais, talvez não tenham a percepção ou a 315
316
compreensão de uma sociedade integrada, mas talvez sintam na pele o significado da sociedade como um modo de produção, considerando a sua situação de trabalhadores. No segundo bloco estão o tema VIII - natureza do trabalho social na extensão, e o tema I, concepção de mundo. Seus percentuais de 21% e 16% dentro do tema indicam essa proximidade quantitativa. Ao observar-se a Tabela 6, ter-se-á uma consistência no tema I, voltado à visão transformadora de mundo, com percentuais de 81%, 81%, 72% e 80%, referentes aos coordenadores, executores, comunitários e documentos do projeto, respectivamente. Essa visão está em total discordância com o tema VIII, onde os percentuais mais altos apontam para a perspectiva de um trabalho técnico com discurso de neutralidade, com percentuais de 58% e 63% para coordenadores e executores. Estão em consistência, contudo, com os percentuais de 72%, 80%, 71% e 89% relativos aos comunitários e textos produzidos no projeto para ambos os temas. O terceiro bloco é constituído pelos temas X - pedagogia da extensão universitária, com 12% de percentual, e IV - configuração de interesses sociais, com um percentual de 8%. Analisando-se a Tabela 6, observa-se uma certa consonância entre os discursos pedagógicos da extensão com a configuração de interesses sociais. No quarto bloco, estão os temas V (concepção de prática social), VII (concepção de extensão universitária), VI (relação da universidade com a sociedade), XI (papel do agente institucional) e III (concepção de Estado), com percentuais de 5%, 4%, 3%, 2%, 1%, respectivamente. Observem-se ainda os dados da Tabela 6.
Concepção de mundo e sociedade A comparação entre esses dois temas mostra as discordâncias existentes no projeto. Na concepção de mundo ter-se-á de forma clara a marcante visão transformadora no projeto, com percentuais expressivos entre os coordenadores(A%), executores(B%), comunitários(C%) e textos do projeto(D%). Esses percentuais atingem índices elevados, o que porém não se confirma com o tema II. Neste, a visão de sociedade como modo de produção sobressai-se apenas nos textos, com percentual de 83%. Aproxima-se da visão dos comunitários, com percentual de 63%, mas é bastante destoante da visão dos executores e coordenadores. É expressiva, contudo, no tema II, a visão de sociedade integrada, com percentuais de 52% e 59% entre os coordenadores e executores, respectivamente. Há de se perguntar: Qual é mesmo a visão de mundo externada por este projeto? Ela está no discurso dos coordenadores e executores ou está explicitada pelos comunitários e nos textos? Os comunitários não estão assimilando pedagogicamente as visões veiculadas pelos coordenadores e executores, ou há um conflito estabelecido e uma profunda discordância interna e externa entre essas visões? TABELA 6 DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO Temas
I - Concepção de mundo
II - Concepção de
Itens
A %
B % C%
D %
Fi
1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada
15 04 81
15 04 81
19 09 72
10 10 80
92 33 442
% iten s 16 06 78
02 52
01 59
-37
-17
08 455
01 47
Fgi
% tema
567
16
979
28
316
317
sociedade
46
40
63
83
516
52
3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. absoluta III - Concepção de 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante Estado 3.3 - Estado ampliado: ( contradições de classe )
-66 34
-100 --
75 25 --
50 -50
04 05 02
36 46 18
11
01
IV - Configuração dos interesses sociais
4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada
-39 61
05 32 63
01 07 92
-20 80
03 47 253
01 16 83
303
08
V - Concepção de prática social
5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas
12 88
-100
-100
-100
04 181
02 98
185
05
6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico
55 21 24
82 09 09
65 31 04
-50 50
68 18 13
69 18 13
99
03
7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social ( construção de nova hegemonia )
25 28 47
63 24 13
68 13 19
95 -05
73 24 25
60 19 21
135
04
01 58 41
01 63 36
-29 71
-11 89
03 361 360
01 50 49
724
21
9.1 - Agente dos interesses do mercado ( capital ) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes dominadas
42 29 29
64 04 32
--100
100 ---
23 05 18
50 10 40
46
02
0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
01 99
-100
-100
-100
01 389
01 99
408
12
VI - Relação universidadesociedade VII - Concepção de extensão universitária
2.3 - Modo de produção
VIII - Natureza do 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador trabalho social na 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade extensão 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador
IX - Papel do agente institucional X - Pedagogia da extensão universitária
A - Entrevista com coordenadores C - Entrevista com comunitários Fi - Freqüência de indicadores B - Entrevista com executores D - Documentos dos projetos Fgi - Freqüência geral dos indicadores
A concepção de mundo e de sociedade também vincula-se às relações da universidade e da sociedade. Comparando-se o tema VI - relação da universidade com a sociedade, com o tema I - concepção de mundo, e com o tema II, concepção de sociedade, observa-se que aparece outra inconsistência, considerando-se que a visão transformadora de mundo poderia replicar na relação entre a universidade e a sociedade com o item ( 7.3), ou seja, a instituição como um aparelho de hegemonia. O que se vê, contudo, é que no tema VI os índices mais marcantes estão entre os coordenadores, executores e comunitários - 55%, 82% e 65%, respectivamente, na visão da universidade como possuidora de um saber com vida independente. Já os textos dividem-se igualmente, expressando uma visão dupla e contraditória. Portanto, há possibilidades e dificuldades as mais variadas para implementação desse tipo de projeto. Uma delas é a visão de que a universidade continua elitizada e enclausurada nos seus muros, nas suas salas de aula. “Não tenta renovar essa parte rica que poderia sustentar o ensino e a pesquisa, aproveitando isso que está acontecendo como algo novo. Essas experiências mostram que a universidade deve ser feita em cima do tripé: ensino, pesquisa e extensão. E a gente percebe, hoje, que infelizmente a extensão não consegue ser articulada com a pesquisa e o ensino. A extensão fica um pouco relegada a um plano inferior”1. _____________ 1.
Membro da equipe do projeto. Texto da entrevista para esta pesquisa.
317
318
Contudo, os trabalhos continuam sendo realizados e apresentam alguns resultados interessantes em regiões circunvizinhas à de Praia de Campina. Esta parece isolada no litoral; contudo, comunidades as mais diversas e localizadas até quinze quilômetros de distância chegam a participar de algumas reuniões. Fazem-se presentes comunidades, como a de Tacaré, área de assentamento, como da Estiva e a localidade do Geraldo. O processo de organização de Tavares, outra comunidade, surgiu a partir da influência do Projeto Praia de Campina. Os trabalhadores têm conseguido mostrar a sua força, mesmo com as contradições existentes. Isso tem motivado outras comunidades a buscarem sua auto-organização. A universidade nessa sua relação com a sociedade, percebe que assim pode ajudar os grupos em certas comunidades a se organizarem no sentido de conquistarem sua autonomia. Pode ajudar a superar a dependência de grupos comunitários ao “doutor” e às forças políticas locais a que estão submetidos, quer sejam secretários de Estado, vereadores, deputados ou prefeitos, que só marcam presença nas comunidades naquelas tradicionais épocas eleitorais. Logo, a universidade pode estar passando conhecimento para a comunidade e vice-versa, estabelecendo-se uma dupla troca, inclusive técnica. Pode, dessa forma, marcar sua presença nos problemas da sociedade. “O papel da universidade, é interessante porque apesar de ser instituição governamental, ela não é tão atrelada quanto outros órgãos. É mais independente. Acho que ela é uma ponte com as comunidades e com outros órgãos de uma forma mais independente, mais interessante portanto. Então, a gente quer manter essas relações, quer aproximar mais, quer aprofundar essa relação. Especificamente com o Estado, a Visão Mundial não tem relação direta”1. Apesar das contradições já apresentadas, os executores expressam suas lutas e suas utopias em relação ao projeto. Dedicam-se, enquanto estudantes, à busca de alimentar as ansiedades do seu próprio saber científico, transmitido apenas em sala de aula, com complementações resultantes da sua permanência nessas comunidades. Acreditam naquilo que estão fazendo.
__________ 1.
Membro da equipe do projeto e de ONG na Paraíba. Texto da entrevista para esta pesquisa.
318
319
“A gente fala muito na universidade transformar a sociedade e a gente não pode esquecer que a universidade devia ser transformada internamente. Essa universidade pode ser uma universidade diferente. Essa sociedade pode ser uma sociedade diferente e embora muitos digam que não. Esses trabalhadores podem se organizar. A gente tem condições de ter um país diferente, de romper com isso aí, a partir do que a gente tem visto em Praia de Campina”1.
Interesses sociais e prática social A configuração dos interesses sociais combinada com a prática social (ver Tabela 6) alerta para a caracterização de uma perfeita consonância entre os interesses sociais e a prática social. Os interesses sociais indicados pelo tema IV, voltados à classe dominada, definem percentuais para os coordenadores, executores, comunitários e textos do projeto, em perfeita consonância. Os percentuais de 61%, 63%, 92% e 80% demonstram a inexistência de qualquer contradição, mesmo havendo diferenças significativas percentualmente de 61% e 63% para 92% e 80%. Mas isso não se sustenta ao serem observados os índices do tema V concepção de prática social, onde se tem, de forma exagerada, percentuais de 88%, 100%, 100% e 100%, para uma compreensão de prática em consonância com as classes dominadas. A heterogeneidade dos participantes desse projeto não possibilita tal nível de identidade em suas formulações discursivas ou mesmo nos textos escritos. Isso que se apresenta como uma consistência de praticamente 100% não significa, a rigor, consistência de prática social, considerando a heterogeneidade do ideário das equipes de extensão. Por outro lado, também é possível observar-se nesse projeto a participação maior dos trabalhadores, ao se fazer uma comparação temporal de 1990 até os dias de hoje. Houve uma certa intranqüilidade em setores dominantes do município onde está localizado o projeto, na medida em que já se explicitam certos desejos de trabalhadores de também quererem “mandar”, terem a autoridade de mando. Um dos entrevistados usa uma linguagem simbólica para expressar um possível avanço organizativo. “E com relação ao poder do capital, os grupos oligárquicos da região, a gente vê o seguinte: de uma forma ou de outra, os sindicatos conseguem barrar um pouco aquele achatamento que era feito pelas usinas e pelos fazendeiros sobre o trabalhador da região. Claro que ainda é muito tímida essa relação do trabalho com o capital. Os conflitos ainda precisam ser avaliados. A gente viu que antigamente só os usineiros e as fazendas ganhavam com placar de 10 x 0 , hoje, já tá dando de 7 x 3. Quer dizer, o placar já mudou um pouco”1. Mas quanto à politização dos comunitários, os executores do projeto também divergem frontalmente, como se percebe no depoimento de uma estudante participante, desde o início, da organização dos comunitários, “Se eu chegar lá com uma proposta política, eles não estão preparados. Eles ainda estão acostumados com aquela história dos donos de lá, dos que têm dinheiro lá dentro, com aqueles que lhes são mais próximos. A questão política é forte. É muito mais lenta. Se é prá gente conseguir lá entrar, fazer com que eles assimilem algo diferente será um algo mais lento”2.
__________ 1. 2.
Funcionário da UFPB e membro da equipe do projeto. Texto da entrevista para esta pesquisa. Id., ib.
319
320
Em Praia de Campina possivelmente não há mais necessidade da presença de técnicos da universidade. Lá, as reuniões são feitas pelo próprio pessoal local. Suas lideranças já geraram novas lideranças e permutaram os dirigentes da Associação Agrícola. Tocam seus interesses com o grupo da própria comunidade. Há o pessoal que organiza a burocracia e as finanças da Associação e mantém financeiramente a entidade. “Para nossa alegria, hoje, Praia de Campina não precisa mais dos técnicos da universidade. Já caminha com seus próprios pés. Agora, não quer perder o vínculo de amizade, de acompanhamento, porque é uma coisa salutar”1. Contudo, é fácil entender as diferenças dos percentuais presentes na Tabela 6, ao se comparar outra declaração do mesmo funcionário, referente ao crescimento pessoal de componentes da equipe. Sobre um membro da comunidade, afirma:
“Era uma pessoa subserviente e, hoje, já tem o seu carrinho, já tem seu televisor a cores, seu vídeo-cassete. Então, quer dizer, não sei se isso aconteceria com outras pessoas, mas a maioria dos líderes trabalharam, cresceram e melhoraram de vida. Isso é um fato concreto. Se esses líderes melhoraram de vida, isso quer dizer que qualquer outro líder poderia, também”2.
__________ 1.
Membro da equipe do projeto e estudante. Texto da entrevista para esta pesquisa.
___________ 1. Funcionário da UFPB e membro da equipe do projeto. Texto da entrevista para esta pesquisa. 2. Estudante e membro da equipe do projeto. Texto da entrevista para esta pesquisa.
320
321
Tal afirmação expressa de forma clara, as contradições existentes entre os próprios coordenadores e demais participantes do projeto. Concepção dessa ordem exigirá de todos a ocupação dos postos de lideranças. Todavia, é impossível a sua realização, pois não há postos para todos. A condição de melhoria de vida também fica condicionada à exigência de ser líder, outra condição impossível de se concretizar pela própria exigência que torna cada um, necessariamente, um líder. Além do mais é uma compreensão muito semelhante à expressão popular do “crescer na vida”, caracterizada como a conquista de algum bem material. Ficam esquecidas as dimensões culturais e sociais, além do crescimento das relações como pessoa, seja líder ou não, ou um crescimento voltado à dimensão coletiva dos comunitários. E mais: ele opõe “subserviência” a “subir na vida”, como se “o mau” da subserviência fosse dificultar ou impedir “o subir na vida”. A relação entre prática social e interesses sociais também se destaca em Praia de Campina no tocante às demais entidades presentes na área, além da universidade, ou seja, o pessoal do Projeto Peixe-Boi, da Visão Mundial, do Sindicato Rural. Nessa localidade, logo de chegada, parece não existir nada de organização comunitária. Os moradores estão sempre ocupados com suas tarefas de pesca ou agrícolas. Chegar-se até as organizações e a população diz respeito à prática social e aos interesses em jogo para aqueles comunitários. Depende da postura não só dos órgãos, mas das pessoas. Depende também do tipo de relacionamento que elas mantêm. Esse mesmo cuidado vai estar presente quando da preparação de lideranças para a continuidade do trabalho em desenvolvimento. “Há uma responsabilidade de quem trabalha com esse pessoal de formar lideranças que sejam só legítimas. Elas devem ser da comunidade mas é preciso que tenham uma visão correta das coisas, isso é, não podem ser pelegas ou atreladas a quaisquer interesses que não seja o interesse comunitário”1. Ao ser questionado sobre as formas de que dispunha para preparar os futuros presidentes da associação ou mesmo os futuros sócios, um dos principais líderes locais responde com a sua singular fala de homem do campo. Para ele, o preparo de futuros dirigentes se dá da seguinte forma: “É cunvesano. é cunvesano. Porque num é em dinhêro qui a gente ganha. Num é nada. É cunvesano o povo prá se combiná; prá se ajuntá e aí vai. ... Quando nóis vamo apresentá uma conta, aí se ajunta a diretoria na minha casa. Vamo cunversá prá vê o que nóis vamo falá na reunião. “1. Vem se desenvolvendo entre as associações agrícolas da região uma vida de bastante solidariedade. Em épocas de seca, como em l993, a grande dificuldade era conseguir as ramas dos produtos para serem plantados, como mandioca, macaxeira, inhame e batata. Desenvolveu-se entre eles um processo de troca dentro das comunidades onde havia algum trabalho organizativo. Há uma troca até mesmo de informações “sutis” que circulam entre os presidentes ou coordenadores de associações e
_______ 1.
Membro do projeto e de ONG na Paraíba. Texto da entrevista para esta pesquisa.
321
322
sindicatos. O que está ocorrendo com uma associação, com o sindicato ou com algum trabalhador nessas áreas de atuação do projeto logo é transmitido para todos e assim se iniciam as primeiras providências de solução. Então existe uma espécie de canal, indicado por um dos líderes do Sindicato Rural: “Esse canal, essa rama é os presidentes de associação. Quando a gente precisa de alguma coisa, vai buscar deles. Eles lá, dos sítios, traz o pessoal deles e faz a festa na cidade”2. Com isso se mantém um intercâmbio de informações relativo às questões que estão ocorrendo no campo, o que é de fundamental importância para a própria organização sindical da região. O sindicato não tem como percorrer todo o município com regularidade. Mesmo assim se transformou numa referência para os trabalhadores rurais que passaram a vivenciar sua própria organização e resolveram muitos de seus problemas. Transformou-se numa espécie de central de solução de impasses, sobretudo aqueles que não se consegue resolver nas associações. As informações repassadas para o sindicato são fundamentais, inclusive as críticas, mesmo as críticas “raivosas” contra essa entidade ou contra a associação. “ Sempre se tem uma falha. Não se agrada a todo mundo. Quando há uma falha, nós vamos corrigir. Vamos ver onde falhou. Se houver falha a gente tenta corrigir. Vamos conversar. Se precisar me desculpar, eu me desculpo. Se eu precisar então contar a história que não é daquele jeito, eu conto. É por aí”1
Agente institucional e natureza do trabalho A comparação entre os temas IX - o papel do agente institucional, e VIII natureza do trabalho na extensão, apresenta dados bastante contraditórios (ver Tabelas 7 e 8).
Os coordenadores e executores, no tema IX, apresentam percentuais de 42% e 64%, voltados à visão do agente comprometido com interesses do mercado, do capital. Existe uma contradição expressiva na medida em que eles vêem os agentes institucionais comprometidos com as classes dominadas, mas os textos apontam para compromissos com o mercado e, portanto, com o capital. Os comunitários estão presentes, ao lado dos agentes da universidade, em suas ações na comunidade. Seu discurso, entretanto, não bate com a disposição de trabalho que os comunitários têm apresentado sobre esses agentes. Contudo, há percentuais importantes de
comprometimento do agente com as classes dominadas, que são 29% e 32%. O Tema VIII - a natureza do trabalho na extensão, se apresenta dividido em dois blocos. Um entende que esse trabalho deve ser técnico, porém com discurso de neutralidade. Os percentuais apontam uma maioria para essa visão, com 58% e 63%, não havendo correspondência com a visão dos comunitários e dos textos, já que os percentuais da visão de um trabalho técnico com discurso transformador são de 71% e 84%. __________ 1.
Líder comunitário e membro da Associação Agrícola de Praia de Campina. Texto da entrevista para esta pesquisa.
2.
Liderança sindical rural da região. Texto da entrevista para esta pesquisa.
__________ 1.
Liderança sindical rural e comunitária. Texto da entrevista para esta pesquisa.
322
323
Esses valores apontam para uma inconsistência, ao serem comparados no interior do tema, bem como entre os temas. TABELA 7 PAPEL DO AGENTE INSTITUCIONAL Distribuição dos itens do tema IX, por segmento ITEM
A 1
A 2
A 3
A T
%
B1
B2
B3
B T
%
C1
C2
C3
C T
%
D1
D2
D3
DT
%
TT
% item
9.1
03
03
---
06
42
---
15
01
16
64
---
---
---
---
---
01
---
---
01
100
23
50
9.2
---
04
---
04
29
01
---
---
01
04
---
---
---
---
---
---
---
---
---
---
05
10
9.3
02
02
---
04
29
02
05
01
08
32
06
---
---
06
100
---
---
---
---
---
18
40
% do tema
02
9.1 - Agente comprometido com interesses do mercado ( capital ). 9.2 - Agente neutro da instituição, seja Estado ou universidade. 9.3 - Agente comprometido especificamente com a classe dominada. A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos
AT - Freqüência de indicadores no item A BT - Freqüência de indicadores no item B CT - Freqüência de indicadores no item C DT - Freqüência de indicadores no item D TT - Freqüência total de indicadores no
item
TABELA 8 NATUREZA DO TRABALHO NA EXTENSÃO Distribuição dos itens do tema VIII, por segmento ITEM
A 1
A 2
A 3
AT
%
B 1
B2
B3
BT
%
C1
C2
C3
C T
%
D 1
D 2
D 3
D T
%
TT
% item
8.1
01
---
---
01
01
---
---
02
02
01
---
---
---
---
---
---
---
---
---
---
03
01
8.2
64
42
---
106
58
28
96
88
212
63
26
05
06
37
29
09
---
---
09
11
361
50
8.3
45
28
---
73
41
22
83
18
123
36
72
08
11
91
71
73
---
---
73
89
360
49
% do tema
21
8.1 - Trabalho técnico acompanhado de discurso “modernizador” . 8.2 - Trabalho técnico acompanhado de discurso de “neutralidade” . 8.3 - Trabalho técnico acompanhado de discurso “transformador” .
A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos
AT - Freqüência de indicadores no item A BT - Freqüência de indicadores no item B CT - Freqüência de indicadores no item C DT - Freqüência de indicadores no item D TT - Freqüência total de indicadores no
item
323
324
Esperava-se que o percentual do item 8.3 do tema VIII fosse replicado no tema IX, item 9.3, pois são visões que se aproximam. Não é, contudo, o que vem ocorrendo no projeto. Há uma profunda variação e discrepância, tanto no interior do tema como ao serem comparados os diversos temas. No entanto, essas incongruências estão presentes no cotidiano da comunidade. Uma parte dos moradores fica localizada mais entre os coqueirais e se diferencia radicalmente da outra parte, que são moradores-visitantes de finais de semana, residentes em mansões, à beira da praia. Também é foco de problema quando, após dois anos de seca, a água vem para além do necessário e destrói as plantações preparadas coletivamente, baixando o ânimo daqueles trabalhadores para o trabalho coletivo. Em suas falas e discursos, observa-se que a perspectiva de classe que vai se construindo é bastante tênue, considerando, inclusive, que a identificação que se faz por meio da palavra trabalhador vai sendo substituída pela expressão pequeno produtor. Introduzem o que se reflete posteriormente nos processos eleitorais e partidários da região, já que processos desse tipo criam dificuldades para a construção de alternativas políticas efetivas daqueles trabalhadores, quando passam a aceitar o jogo de mando das práticas políticas tradicionais na localidade. Mesmo que as escolhas para representação recaiam sobre membros da comunidade, as opções partidárias adotadas não têm demonstrado nenhum compromisso com as questões que vêm sendo colocadas através daqueles movimentos em construção. As práticas dos agentes são agora determinantes. Nas últimas eleições, Praia de Campina passou a ter uma representação na Câmara Municipal de Rio Tinto. Tem-se reforçado o discurso de que o importante é a pessoa. Resta esperar pelo exercício parlamentar dessa visão e ver se é mesmo insignificante a questão da sigla partidária. A prática comunitária em Praia de Campina vem demonstrando que a comunidade pouco a pouco constrói seus líderes. Observa-se um crescimento não só das lideranças como também da comunidade como um todo, com a contribuição da vivência de agentes de várias instituições no dia-a-dia daquela comunidade. Constatam-se as diferenças através das relações das lideranças com o grupo de jovens, com o clube de mães e com a percepção que se desenvolve em relação ao Projeto Peixe-Boi. Tudo isso parece tender à superação de relações de dependência. As contradições, contudo, permanecem no que concerne ao problema mais grave a ser enfrentado - o problema da terra. Querem a legalização oficial da terra. Sonham com a sua pequena propriedade, mesmo que já se tenha falado de cooperativa, de condomínio produtivo ou de outras formas coletivas de sobrevivência. A propriedade é a grande fascinação. A falta de ambulância na região, a falta de médicos nos postos de saúde ou outras reivindicações da comunidade ficam em segundo plano quando se trata da questão da terra. As práticas com as diferenciadas instituições também são geradoras de conflitos e inconsistências. Relações com ONGs, com o Governo do Estado, com a Prefeitura, com programas do tipo Comunidade Solidária ou com a universidade podem tornar-se pouco institucionais e muitas vezes expressam apenas relações entre pessoas. “Há necessidade de união entre todos. O governo também pode ser comunidade; também pode ser sociedade, depende muito desse ou daquele governante. O Estado também está um pouco mais acima do que os governos provisórios que são hoje e não são amanhã. Sei que é uma relação um tanto tensa. Eu só vejo condição dessa relação dar alguns frutos a partir das pessoas, dos técnicos, do compromisso pessoal desses técnicos”1.
__________ 1.
Membro da equipe do projeto e de ONG. Texto da entrevista para esta pesquisa.
324
325
Realizam-se, mesmo assim, atividades que têm consistência para o desenvolvimento da comunidade e para aqueles que estão mais diretamente voltados ao processo organizativo. Pode-se destacar, por exemplo, a realização da Semana da Saúde. Para os comunitários, Semana de Saúde significa presença de médicos, de dentistas, de enfermeiras, enfim de “um povo” todo de branco para realizar consultas médicas para toda a população. Significa ainda o recebimento gratuito de remédios. “Então, a gente começa a preparar o pessoal prá desmistificar essa história toda - de dar remédio, extrair dente. Nesta primeira semana de Saúde não foi nenhum médico, nem odontologista. Foram pedagogos, pessoal de nutrição, educação física, biblioteconomia. A gente começou a falar prá eles que saúde não só diz respeito à doença, mas a prevenção de doenças ...”1. Atividades dessa natureza vão apresentando as formas de pensar dos moradores daquela região. Surgem as compreensões que eles têm de mundo que, por sua vez, vão sendo confrontadas com as maneiras, o trabalho e as práticas dos agentes dessas atividades. Tudo isso começa a mexer nas percepções, nos relacionamentos e nas formas de sentir e agir dessas comunidades. Perpassando esse tipo de trabalho, percebe-se que ele não é todo composto pela totalidade da comunidade que está presente. Há grupos que estão mais próximos do projeto e que vão influenciando os parentes, os vizinhos, etc. Esse trabalho vai se estendendo à medida que os benefícios vão aparecendo e mais gente vai se sensibilizando. Há, inclusive, discursos produzidos pelas lideranças locais que vão sendo colocados durante as reuniões e que acabam sendo reproduzidos por todos eles. Podem até ser repetitivos, mas a comunidade os entende e começa a reproduzi-los. São discursos produzidos no dia-a-dia, discursos que vão se modificando e começam a repercutir até mesmo na prefeitura e nos sindicatos, de maneira agora bem diferenciada. Mas o agente comunitário, o líder comunitário, também vai absorvendo práticas coletivas e necessárias, a partir de coisas simples. Nas reuniões da associação se faz, por exemplo, a prestação de contas, assim apresentada por um dos comunitários: “Agora, eu vou apresentar aqui as conta. Mando a tisôrêra dizer. Fica dizendo: gastei tanto, tanto, tanto. Pregunto assim o povo: qui você quisé prá quem foi, vocês pregunta. Tá tudo assentado. Ainda tem gente que pregunta: prá qui foi esse dinhêro qui o prisidente gastou? Então, ela diz: dez prá fulano, uma viage prá fulano, reméido prá fulano. ...”1. As contradições também estão presentes entre os comunitários quanto à prática social e ao papel do agente institucional. Existem até quanto à natureza do trabalho, por exemplo, em relação ao Programa Comunidade Solidária que aqui foi ________ 1.
Estudante e membro da equipe do projeto. Texto da entrevista para a pesquisa.
325
326
desenvolvido em conjunto com a Federação das Associações. Todavia, coube à Federação definir as formas de como deveriam ser distribuídas as cestas básicas. A tradição na região é de doação simplesmente, mantendo as pessoas no costume da mendicância. Com a intervenção da Federação, porém, passou-se a fazer a doação a partir do trabalho da pessoa, trabalho necessário para o preparo das terras e organização de todos para o plantio. Apesar disso, houve uma grande reclamação. “O pessoal não acreditava nesse trabalho. Começou a história de trocar alimento por serviço. Dar alimento não funciona não, doutor. Alimento dado é a mesma coisa de você está fabricando bandido. Aí, veio umas cestas básicas e ia todo mundo na reunião: era velho, velha, homem, menino. Quando chegava lá que se cadastrava que tinha que fazer alguma coisa, aí nego não queria nada”1. Mas assim foi feito e houve resultados importantes quanto à produ-ção de alimentos. Com a regularização das chuvas, tem-se feito distribuição para as regiões mais carentes das ramas e sementes, para que essas localidades assumam a sua própria produção, comercialização e alimentação. Destacam-se, ainda, nessa luta por melhores condições de vida, as mobilizações feitas na cidade de Mamanguape, reivindicando serviços de saúde e energia na área rural. Aconteceram passeatas, antes nunca vistas, para pressionar o prefeito a assumir esse compromisso com a população rural. Os agentes da universidade, das ONGs, dos sindicatos rurais e membros do governo estiveram todos presentes nessas mobilizações. Hoje muitas das comunidades dispõem de energia elétrica, havendo inclusive um programa do governo estadual para “apagar a última lamparina, na Paraíba”. Contudo, nesse movimento permeado de inconsistências e contradições, a comunidade continua a tentar a sua organização e com isso se torna importante que “vá crescendo, nesta articulação, na coesão, na elaboração de sua forma de entender a realidade”(SAVIANI, 1984: 63). Extensão universitária Como foi mostrado, a extensão pode-se apresentar sob três possibilidades. A primeira enfatiza a via de mão única em que a universidade vai à sociedade levar algo de sua especificidade. Admite-se que a universidade resolve ir à sociedade para prestar algum serviço, oferecer curso, promover algum evento, fazer assistencialismo, ensinar, prestar alguma assessoria, levar algum benefício à população, que é vista apenas como receptora desses “serviços”. A segunda possibilidade trata a extensão como via de mão dupla, pensando a universidade como promotora de um processo cultural, educativo e científico em que, por um lado, leva conhecimento para a sociedade e, por outro lado, traz conhecimento da comunidade. Num processo desse tipo, a universidade e a sociedade estão de mãos dadas, daí a idéia de mão dupla. Nessa compreensão, a extensão passa a ser o elo, o canal capaz de promover essa troca através do diálogo em termos das demandas da sociedade e também da universidade. A terceira possibilidade manifesta a extensão como um processo educativo, cultural e científico assumido a partir de uma posição das classes subalternas, _________ 1. Líder comunitário e membro da Associação Agrícola de Praia de Campina. Texto da entrevista para esta pesquisa.
326
327
buscando contribuir para a construção de uma outra hegemonia. Nesse sentido, a extensão é um trabalho social a serviço das classes subalternas. O processo que se estabelece, por conta dessa concepção, envolve a universidade e a sociedade, propondo uma relação efetiva entre elas a partir da sua clara diferenciação, considerando as suas especificidades. O conhecimento aí gerado é produção coletiva e deve estar voltado ao trabalho de organização coletiva das classes dominadas. Trata-se de um trabalho que pretende se apropriar do saber da universidade e do saber dessas classes, dessas populações ou comunidades, para, num processo de reflexão e reelaboração, possibilitar nova apropriação desse saber. Deve ser um trabalho continuado, permanente e que contemple as possibilidades do conhecimento teórico e prático. Observando-se a Tabela 9 - concepção de extensão universitária, conclui-se que os coordenadores expressam visões bem diferenciadas do trabalho que vêm desenvolvendo. Se o percentual de 47% em (7.3) traduz a extensão como um trabalho social e assim vem se exercendo no projeto, os percentuais de 25% para a visão de mão única e 28% para a visão de mão dupla são valores muito expressivos. O desenvolvimento das atividades do projeto tem mostrado uma ênfase, inclusive, na concepção de extensão como mão dupla, assumindo os coordenadores, em geral, a visão dos Pró-Reitores de Extensão. Entre os executores, os percentuais se invertem, pois a percepção de que é a universidade que vai através do estudante levar algo é mais marcante. A via de mão única apresenta percentual de 63%; a via de mão dupla 24%, enquanto a perspectiva de realização de um trabalho social cai para 13%. Para os comunitários, a visão marcante de dependência continua quando mantêm o entendimento de que a universidade vai levar algo para eles, que apenas esperam ou recebem esse bem ou serviço. A instituição tem algo para dar e eles precisam receber. Isto evidencia a expressão de que as políticas públicas têm sido assistencialistas, particularmente nessa região. Os textos também traduzem uma outra contradição com o conjunto dos segmentos envolvidos, considerando que não expressam sequer a visão dos coordenadores e se enfileiram em torno da visão da extensão como mão única, com um percentual de 95%. Muitas ações e atitudes desenvolvidas no projeto surpreendem e contrapõem-se aos dados. O trabalho se mostra comumente de forma comunitária, mesmo que se tenha a produção com área de plantio individualizada. A produção que vem se adquirindo tem sido marcante, quantitativamente. No final de l995, foram colhidas em torno de mil toneladas de macaxeira e mandioca. Além disso, registrou-se um total de trezentas e cinquenta sacas de farinha como sobra de produção que foi comercializada na região, apesar do prejuízo causado pela chuva.
__________ 1. Líder comunitário e sindical. Texto da entrevista para esta pesquisa.
327
328
TABELA 9 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA Distribuição dos itens do tema VII, por segmento. ITEM
A 1
A 2
A 3
A T
%
B1
B2
B3
B T
%
C1
C2
C3
C T
%
D 1
D 2
D 3
D T
%
TT
% item
7.1
06
01
---
07
25
17
12
04
33
63
14
01
---
15
68
08
---
---
18
95
73
60
7.2
08
---
---
08
28
04
08
01
13
24
03
---
---
03
13
---
---
---
---
---
24
19
7.3
05
08
---
13
47
01
02
04
07
13
02
02
---
04
19
01
---
---
01
05
25
21
% do tema
04
7.1 - Via de mão única: da universidade para a sociedade. 7.2 - Via de mão dupla: processo educativo, cultural e científico. 7.3 - Trabalho social: processo educativo, cultural e científico voltado à construção de nova hegemonia.
A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos
AT - Freqüência de indicadores no item A BT - Freqüência de indicadores no item B CT - Freqüência de indicadores no item C DT - Freqüência de indicadores no item D TT - Freqüência total de indicadores no
item
Por outro lado, esse tipo de trabalho marca o aluno da universidade, que passa a ter maior respeito por esses trabalhadores, ao perceber que eles também levam as coisas muito a sério. Estabelece-se uma relação pedagógica de aprendizagem para os próprios alunos, gerando maior respeito pelas comunidades e pelo saber dessas comunidades. O aluno, com essa experiência, começa a desenvolver uma maior preocupação com o seu conhecimento e com a comunidade. Essa aprendizagem ocorre com todos os integrantes do projeto, sejam eles da universidade, do Estado, das ONGs ou da localidade. A universidade passa a ser vista como parceira, diferenciando-se da visão do Estado patrão que promove apenas a mera assistência. Este é um exemplo claro de uma tentativa de encontrar outras formas de se fazer extensão e de se fazer pesquisa e ensino. “Voltando um pouco àquela história da universidade de ensino, da pesquisa e da extensão. Acho que o mundo da pesquisa é estritamente técnico. O mundo do ensino tá muito preso ainda aos livros acadêmicos, aos livros de pesquisa. Nos compêndios da vida existe, contudo, uma outra coisa que a gente chama de extensão que alimentaria, muito bem, novos livros, novas pesquisas”1.
__________ 1.
Membro da equipe do projeto. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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As visões diferenciadas de extensão percorrem todo o projeto. Da parte de executores encontram-se também formulações contrárias a qualquer visão que venha confundir extensão com assistência social paternalista, colocando a perspectiva de não se confundir com a cultura política do assistencialismo. São formulações que vislumbram a extensão como um estar presente na universidade, na vida cotidiana da sociedade, em particular, no projeto daquela comunidade. Abrem ainda a perspectiva de um trabalho que possibilita a compreensão das causas que geram as brigas internas da comunidade, das lutas periódicas pela administração, entendendo a existência de grupos políticos e o jogo de seus interesses. Propõem um trabalho em que seja possível também o esclarecimento das questões ligadas às lutas sindicais e partidárias e que permita aos comunitários compreenderem a diversidade entre a universidade e as demais instituições presentes nesses projetos. Um trabalho que ajude os comunitários a tentarem caminhar com suas próprias pernas e que possibilite fazer suas reflexões comparativas com outras formas de realizar extensão. Um trabalho que tem como objetivo, no depoimento de um dos entrevistados, “organizarr o homem do campo e fazer com que ele se valorize com o seu pequeno pedaço de terra”.
Considerações A participação de várias instituições neste projeto o torna rico, embora abrigue maior possibilidade de orientações díspares e até inconsistentes. Afinal, num trabalho envolvendo equipes da universidade, Estado, ONGs, dirigentes sindicais e até o pessoal de prefeitura, existem as mais variadas posições políticas e ideológicas interagindo e se refletindo nas diferenciadas visões das temáticas apresentadas. Parece não haver aqui um privilégio de qualquer das orientações assumidas para o trabalho organizativo da comunidade. No entanto, o trabalho organizativo está sendo encaminhado, apesar desses percalços, com saldos políticos, inclusive, partidários, bem diferenciados. O estudo vertical dos temas revela que as disparidades que o projeto abriga podem apontar mais uma pluralidade de visões, mas que se identificam naquilo que deve ser feito. A concepção de mundo presa à visão transformadora, inicialmente, não condiz com a concepção de sociedade voltada a uma visão de totalidade integrada. Ainda que os interesses estejam predominantemente voltados às classes subalternas, a unanimidade quanto à compreensão de prática social não deixa de chamar a atenção, especialmente diante de tantas contradições já apresentadas. A relação da universidade com a sociedade se expressa através do saber com vida independente que se assemelha aos percentuais referentes à concepção de universidade como via de mão única. Além disso, a natureza do trabalho na extensão é bem destoante do papel do agente institucional, o qual oscila entre os interesses do mercado, o agente neutro ou o agene comprometido com as classes dominadas. Mesmo o exercício do compromisso com as classes dominadas exige grande esforço do agente institucional ou comunitário, no sentido de que, reconhecendo a importância política do seu trabalho e sua essência política, não caia nas “malhas” da doutrinação política de qualquer coloração ideológica. Esse trabalho deve desenvolver-se na direção do apoio político às lideranças comprometidas com a sua comunidade, incentivando-as a manterem seus compromissos políticos com aquela gente. Foi promovido, no ano de 96, o 5o. Encontro de Comunidades na universidade, do qual, certamente saíram novos ensinamentos que devem ser, posteriormente, trabalhados pela
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equipe da universidade. Observa-se que, nesses encontros, o narcisismo de alguns membros do projeto começa a sobressair-se de forma exacerbada, inibindo a formação de novas lideranças. Há ainda o processo de valorização exagerada de membros da equipe do projeto por parte dos trabalhadores, inibindo assim os demais membros da própria equipe de trabalho. Deseja-se desmistificar mitos tradicionais, mas não podem ser gerados outros com as mesmas práticas que se está combatendo. Esses encontros parecem cobrar maior politização dos membros das equipes, refletindo exigências dos próprios trabalhadores. avanço organizativo dos trabalhadores também vai gerando conflitos ideológicos internos à comunidade, entre os próprios trabalhadores. Passa-se a exigir um maior preparo político da equipe para enfrentar questões pertinentes como a discussão sobre Estado, ideologia, propostas estratégicas dos partidos políticos, etc. Contraditoriamente, tem se observado a existência de um reduzido campo voltado às políticas de esquerda neste projeto, expressando outros encaminhamentos políticos de interesses muito particulares e sutis. Também se pode observar que as relações com outras instituições, como a Igreja Católica local e sindicatos de outros municípios, se tornam bastante “pesadas” e difíceis de se tornarem efetivas. Há ainda a força das relações familiares que são muito profundas no Projeto Praia de Campina. Não se pode pretender quebrá-las, mesmo porque não há necessidade. Ocorre que em alguns momentos não são compreendidas certas atitudes, que, ao serem analisadas, mostram passar por esse tipo de relação. Pode ser uma facilidade a mais, como também pode tornar-se um agravante para a organização. Outro aspecto a destacar é a acomodação da comunidade em relação aos seus próprios líderes. Ao instalar suas lideranças, parece que a comunidade chegou a um patamar de excelência e aí tudo volta ao lugar de antes. Deve-se ter cuidado permanente para que as lideranças não passem a substituir os antigos políticos ou os papéis exercidos pelo Estado quanto à autoridade, ao assistencialismo e até mesmo quanto à possibilidade de se gerar novos “coronéis” respaldados pelos trabalhos da extensão universitária. Parece ainda necessário dar-se maior atenção à participação da mulher nesse tipo de projeto. Até mesmo como filiada da associação, seu espaço é bastante reduzido, como mostra um dos líderes comunitários: “Mulé pode filiar-se . Pode. Mulé tem pouca, mas mulé só aquelas quando não têm home em casa”. Também precisa ser enfatizada a questão da identidade institucional da associação e a sua importância para os comunitários. Essa maior compreensão é que possivelmente dará mais consistência quanto à defesa da associação, sua manutenção e sua continuidade. Contudo, os tantos esforços e equívocos gerados vão exigindo, cada vez mais, a colocação de questões tais como: Como fazer tudo isso em outras localidades? Por onde começar? E o que se deve levar em conta? São desafios que devem estar presentes em cada momento de encaminhamento desse tipo de projeto e de outros que poderão vir, dadas as atuais condições políticas do país.
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2.5 - Projeto Qualidade de Vida O Projeto Coleta Seletiva de Resíduos Sólidos Urbanos e Qualidade de Vida - Projeto Qualidade de Vida - vem sendo desenvolvido num bairro periférico da cidade de Campina Grande, numa das áreas mais pobres da cidade e bastante distante do centro - o Mutirão. É um bairro de características mais rurais do que propriamente urbanas. Por ser uma das áreas mais pobres da cidade e sem assistência do governo municipal, inclusive relativa à coleta de lixo, é que uma equipe do Campus II, da UFPB, decidiu iniciar esse projeto de coleta seletiva de resíduos sólidos urbanos com o objetivo principal de implantar a coleta seletiva dos resíduos sólidos, promover sua reciclagem e buscar comercialização desse produto1. O projeto tem como meta a reativação de uma unidade de produção de material de construção que já existiu na comunidade e, por meio dessa atividade, possibilitar a geração de emprego e renda para um grupo de moradores da localidade. Essa unidade de produção deverá estar em funcionamento, articulada com a usina de triagem e compostagem dos resíduos sólidos, coletados pelo grupo de moradores envolvidos no projeto. Boa parte desses resíduos será usada como insumo alternativo na fabricação de materiais de construção. É um projeto que, de acordo com sua dimensão técnica, não se limita apenas a esses aspectos da usina, compostagem, geração de emprego e renda. Nessas ações vivencia-se todo um processo educativo junto à comunidade, através da promoção de debates com os moradores locais, onde se discute a usina, o próprio lixo como uma perspectiva de educação pela saúde e, de forma mais ampla, a questão ambiental. É um projeto voltado à conscientização daquela comunidade que também objetiva: “Sensibilizar os poderes públicos para a preservação do meio ambiente e para a redução do desperdício. Na realidade, tudo que se joga no lixo tem trabalho incorporado e pode ser reaproveitado. A questão é usar a inteligência e a criatividade para isso. ... Ali nós pretendemos provar que tudo que vai para o lixo que não seja produto químico corrosivo, que não seja lixo atômico ou lixo hospitalar contaminado, tudo mais pode ser convertido em material de construção”2.
Originário de um outro projeto de extensão que tinha como objetivo determinar quais eram os resíduos sólidos industriais do município de Campina Grande, o Projeto Qualidade de Vida, todavia, dirigiu seu trabalho só para o bairro do Mutirão. Espera-se que sua próxima versão avance, não especificamente quanto ao objetivo técnico do projeto, mas com relação a um maior envolvimento dos demais departamentos da universidade, considerando a abrangência da temática. Espera-se com isso absorver ainda mais o curso de Engenharia Civil, além do curso de Engenharia Mecânica, o de Engenharia Agrícola e o de Engenharia Química. Num primeiro momento, as ações do projeto estiveram voltadas ao acompanhamento de um Plano de Saúde da Família (PSF) que já vinha sendo desenvolvido pelo Governo Federal há mais de dois anos. Dessa forma, foi possível a ______ 1. Membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa. 2. Membro da equipe do projeto. Texto de entrevista para esta pesquisa.
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discussão da questão do lixo e da saúde decorrente daqueles resíduos espalhados por todo o bairro. Assim se caminhou para um processo de conscientização da população, através da saúde, chamando a atenção dos comunitários para a importância da reciclagem do lixo e despertando os moradores para o valor do próprio lixo. “O lixo não é „lixo‟. Ele pode até virar dinheiro. Ele pode gerar emprego, sendo uma alternativa de renda para a população. O principal, contudo, é uma melhoria na qualidade de vida da própria comunidade. Esta é uma conseqüência principal”1. Um dos eventos mais importantes gerados a partir do projeto foi a realização do I Seminário de Resíduos Sólidos Urbanos e Rurais da Paraíba. Nesse seminário, que se desenvolveu durante três dias, foram apresentadas mais de vinte palestras, além de trabalhos de pesquisa sobre essa temática. Foi um seminário bastante abrangente, quanto à diversidade de conteúdos apresentados e que envolveu toda a equipe do projeto. A diversidade das palestras mostra o interesse que o assunto vem despertando não só entre alunos do Campus II, como também entre os professores que estão, em suas diversas áreas, dirigindo estudos e pesquisas para a questão da qualidade de vida das populações mais carentes, debatendo especificamente a questão do lixo. Apresentou-se um trabalho da área de Engenharia Mecânica em que estudantes estão desenvolvendo peças apropriadas para as tarefas do projeto. Também foi apresentada a possibilidade de utilização de outros tipos de materiais na construção de casas, adequados às necessidades e condições financeiras dos moradores, fruto de pesquisas em andamento no curso de Engenharia Civil. No caso, discutiu-se a possibilidade de construção de material 30% mais barato do que o convencional e pronto para ser utilizado na construção civil em geral, com a técnica do solo-cimento. Essa técnica consiste na construção de qualquer obra apenas com terra e cimento dentro das proporções adequadas, já sendo testada para aquele ambiente. Inicia-se assim uma divulgação maior do próprio projeto entre setores da comunidade universitária, assim como em setores do governo do Estado e da prefeitura local, acreditando-se que isso possa vir a alterar as condições de apoio à realização e à aceleração do projeto. Esse estudo do projeto como objeto de pesquisa em extensão universitária seguiu o mesmo instrumento que foi aplicado aos demais projetos em exame. Ou seja, é um instrumento voltado a detectar a presença de indicadores para os vinte e oito itens que são gerados em dez temas, assim definidos: tema I - concepção de mundo; tema II - concepção de sociedade; tema III - concepção de Estado; tema IV - a configuração dos interesses sociais; tema V - concepção de prática social; tema VI - relação da universidade e sociedade; tema VII - concepção de extensão universitária; tema VIII - natureza do trabalho social na extensão; tema IX - papel do agente institucional e tema X - a pedagogia da extensão universitária. __________ 1. Estudante do curso de Engenharia e membro do projeto. Texto da entrevista para a pesquisa.
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Aplicado o instrumento de análise ao material do projeto, isto é, às entrevistas , apresenta-se uma maior visualização do mesmo ao se observar o Gráfico 4, a seguir. 1
GRÁFICO 4 FREQÜÊNCIA
DOS
TEMA
200 180 160 140 120 IX
100 80
VII
60
V
40
III
20 I
0 28
25
1
3
3
8
6
17
3
6
%
I. Concepção de mundo II. Concepção de sociedade
VI. Relação universidade-sociedade VII. Concepção de extensão universitária III. Concepção de Estado VIII. Natureza do trabalho social na extensão IV. Configuração dos interesses sociais IX. Papel do agente institucional V. Concepção de prática social X. Pedagogia da extensão niversitária Pode-se observar no gráfico três blocos de temas bem delineados quantitativamente. O primeiro bloco reúne o tema I - concepção de mundo, com 18% de indicadores do projeto; o tema II - concepção de sociedade, com 25% de indicadores e o tema VIII - natureza do trabalho social, com 17% de indicadores no total do projeto. O segundo bloco compõe-se do tema X - pedagogia da extensão universitária,
com 6% ; do tema VII - concepção de extensão universitária, com 6% e do tema VI relação universidade - sociedade, com 8% dos indicadores dos temas. __________ 1.
Não foram aplicadas entrevistas entre comunitários por não haver grupos definidos em torno do projeto, nem analisados textos por não haver, ainda, uma produção própria de textos.
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O terceiro e último bloco é formado pelo tema III - concepção de Estado; tema IV - configuração dos interesses sociais; tema V - concepção de prática social e tema IX - papel do agente institucional, com 1%, 3%, 3% e 3% de indicadores, respectivamente. A observação do Gráfico 4, contudo, não apresenta um quadro que possibilite maior detalhamento dos temas. Expressa apenas percentuais que são importantes para análises posteriores. Nesse sentido é que são sugeridos outros estudos a partir da Tabela 10: Distribuição de temas e itens, por segmento.
Concepção de mundo e de sociedade Observa-se que, no tema I - concepção de mundo, apresenta-se uma visão que privilegia a perspectiva do mercado, com percentuais de 53% e 58% entre os coordenadores e executores do projeto. Uma compreensão transformadora também está presente com expressivos percentuais entre os coordenadores e executores, com percentuais de 37% e 41%, respectivamente. Comparando-se com o tema II - visão de sociedade, encontra-se uma
surpresa, pois, embora a concepção integradora de mundo não apresente percentual exexpressivo, é marcante, contudo, a concepção de sociedade como totalidade integrada, com percentuais de 48%, entre os coordenadores e 75% entre os executores. Surge uma contradição, portanto, ao se comparar a concepção de mundo com a concepção de sociedade. Há também uma diferença de percentuais entre os coordenadores e os executores, tanto na visão da sociedade como uma totalidade integrada (perto de trinta pontos percentuais) quanto na visão de sociedade como um modo de produção (com uma diferença de dezessete pontos percentuais). Na sua relação com a sociedade, a universidade é apresentada predominantemente como uma instituição que tem um saber com vida totalmente independente. Essa visão perpassa os coordenadores e também como o executores do projeto, consolidando percentuais de 84% e 76%, respectivamente. Os percentuais referentes a uma visão da relação entre universidade e sociedade de forma empresarial são de 16% e 12%, o que também aponta para uma inconsistência com a visão de mundo apresentada no tema I. Nesse item a visão de mercado é preponderante, não se reproduzindo na relação da universidade com a sociedade. Pode observar-se ainda uma discrepância ao se comparar o tema VI com o tema II - visão de sociedade, no sentido de que a perspectiva de totalidade integrada que domina o tema II não se reproduz no tema VI. A visão transformadora que aparece no tema I, com percentuais de 37% e 41%, não se traduz na visão da universidade como um aparelho ideológico, e, portanto, submetido aos conflitos ideológicos, frutos de suas contradições. No tema VI, não há indicação da universidade como aparelho ideológico entre os coordenadores, sendo apenas de 12% entre os executores. Quanto ao papel do agente institucional, há coordenadores que sabem que sua ação não é neutra, embora 50% dos indicadores do tema IX o afirmem nesse segmento. “Não existem atividades de ensino, de pesquisa e de extensão „neutras‟. Em sala de aula, quando se está pesquisando, e/ou fazendo extensão, de certo modo, também se está contribuindo para alguma transformação” 1.
___________ 1. Membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida . Texto da entrevista para a pesquisa.
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TABELA 10 DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO Temas I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado IV - Configuração dos interesses sociais V - Concepção de prática social
VI - Relação universidade-sociedade VII - Concepção de extensão universitária VIII - Natureza do trabalho social na extensão
IX - Papel do agente institucional X - Pedagogia da extensão universitáRia
Itens 1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: ( contradições de classe ) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social ( construção de nova hegemonia ) 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador 9.1 - Agente dos interesses de mercado ( capital ) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes dominadas 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
A% 53 10 37 15 48 37 75 00 25 00 69 31 09 91 84 16 00 69 14 17 09 74 17 12 50 38 00 100
B% 58 01 41 05 75 20 00 00 100 00 00 100 10 90 76 12 12 83 17 00 16 72 12 27 09 64 07 93
C% ---------------------------------------------------------
D% ---------------------------------------------------------
Fi 107 13 75 19 101 54 03 00 02 00 11 09 02 19 44 08 01 30 06 05 15 91 18 04 05 10 02 43
% itens 55 07 38 11 58 31 60 00 40 00 55 45 10 90 83 15 02 73 15 12 12 73 15 21 26 53 05 95
Fgi
% tema
195
28
174
25
05
01
20
03
21 03 53
08
41
06
124
17
19
03
45
06
A - Entrevista com coordenadores C - Entrevista com comunitários Fi - Freqüência de indicadores B - Entrevista com executores D - Documentos dos projetos Fgi - Freqüência geral dos indicadores
Evidencia-se, na relação objetiva da universidade com a sociedade, a dificuldade de se trabalhar institucionalmente com a participação da Secretaria Estadual ou Municipal de Saúde, por exemplo, ou com a Fundação de Ação Comunitária do Estado, Secretaria de Meio Ambiente, além de empresas públicas como a ATECEL (empresa sem fins lucrativos que facilita projetos entre pesquisadores e universidade, situada no Campus II) e às vezes até com empresas privadas. “Apesar da dificuldade para se desenvolver um trabalho em equipe, conseguimos quebrar barreiras e formar uma equipe multi-disciplinar, interdepartamental e interinstitucional”1. As contradições internas dessa equipe são fatores determinantes e geradores de muitas dificuldades de encaminhamento num projeto dessa natureza. Cruzam-se interesses eleitorais de prefeituras ou do Estado com interesses acadêmicos dos profissionais da universidade, além dos interesses diferenciados dos membros da comunidade. Estes precisam de resultados imediatos. Aspectos burocráticos e recursos materiais também são pontos difíceis de superação que demandam, normalmente, tempo para solução. Ao se falar da relação entre a universidade e a sociedade, logo vem à tona a questão da função social da universidade colocada por coordenadores que vêem essa função em todas as atividades da universidade. Para eles, ensinar e pesquisar são funções sociais e conseqüentemente concebidas como ações “extramuros” ou extensão. “Na hora que a universidade exerce a extensão universitária tenta melhorar, educar a comunidade. Tenta conscientizar a comunidade e até sensibilizar os poderes públicos. Ela está ensinando, ensinando a viver, ensinando a promover melhores condições de vida, melhorar a qualidade de vida. Tudo isso é função social da universidade” 2
_______ 1. Membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa. 2. Id.,Ibid.
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Assim, de acordo com esse depoimento, a função da universidade é tudo que está ocorrendo, seja no seu exterior ou no seu interior. É uma visão muito ampla, onde cabem os mais variados interesses em jogo na instituição. É uma visão que carrega uma dosagem grande de neutralidade para a tomada das decisões, considerando-se que qualquer atividade é passível de ser assimilada por um trabalho de extensão e, conseqüentemente, inserida na função social como salvaguarda para qualquer prática. O entrevistado sente a falta, inclusive, de empresas privadas, como em países estrangeiros, em que a universidade atende demandas que com freqüência vêm dessas empresas. Isso indica que a função social da universidade não se apresenta como salvaguarda sem a perspectiva de interesses determinados, conforme o mesmo entrevistado havia afirmado anteriormente. “Elas vão buscar apoio na universidade. Vão buscar tecnologia. Vão buscar desenvolvimento. Vão buscar processos tecnológicos na universidade. Encomendam pesquisas. Financiam pesquisas. Aqui, infelizmente, não há muito essa mentalidade”1. No sentido da mudança, argumenta o entrevistado que, mesmo os processos técnicos novos e desconhecidos, sofrem dificuldades para serem implantados. As práticas de extensão, como a deste projeto, se processam muito lentamente. Resiste-se muito a mudanças. Mesmo os mais progressistas resistem à mudança. Isso acontece também com as técnicas desenvolvidas como a do solo-cimento, muito mais barata e possível de utilização não só em conjuntos habitacionais como em mansões ou outros tipos de construções. Mudanças até mesmo para implantação de novas técnicas levam muito tempo. “O processo é confiável ou não. É natural que mesmo os mais evoluídos, os progressistas, não queiram a mudança. Estes ficam em guarda, um pouco, até terem a certeza de que a coisa é confiável. Um pé atrás, outro na frente. Mas no Brasil, parece que quem mais resiste a essas mudanças não é o povo, é o próprio governo. Nós temos encontrado grande aceitação popular, grande aceitação por parte exatamente de quem só pode aplicar pouco. Quem pode aplicar pouco é o pobre governo municipal, estadual e o pobre governo federal. São os três pobres que mais precisariam dessa tecnologia. Mas tendem a resistir”1. Torna-se necessário um certo empenho por parte da universidade, no sentido de promover essas possíveis mudanças, até mesmo as de dimensões técnicas. São mudanças que precisam ser demonstradas para servir de convencimento às demais instituições que se integram num projeto desse tipo. Também se observa uma dedicação muito grande por parte de executores do projeto que, como “sonhadores”, assumem até materialmente o projeto. Neste, em especial, se tem trabalhado com as próprias mãos em substituição a peças como colher do pedreiro ou misturadeiras para análises em laboratório dos materiais em exame. “Acho que também deveria a universidade liberar o material para a gente fazer o trabalho. Não adianta você estar com a boa vontade e não ter material para trabalhar”2. __________ 1. Membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa. 2. Membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa.
__________ 1. Membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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Interesses sociais e prática social Comparando-se, na Tabela 10 - distribuição dos temas e itens, por segmento - os temas configuração de interesses sociais e concepção de prática social, observam-se alguns elementos destoantes. Na configuração dos interesses há, entre os executores, uma forte tendência (60%) para entenderem os interesses voltados a grupos. Os interesses voltados à classe dominada expressam-se em 31% e 100% entre os executores. Essa perspectiva entre os executores apresenta consistência, enquanto que na concepção de prática social tem-se uma compreensão de que a ação do projeto se dá em consonância com as classes dominadas. A opção pela região e pelas atividades a serem desenvolvidas mostra essa tendência que é muito mais forte percentualmente entre os executores do projeto: os estudantes. As práticas desenvolvidas no Projeto Qualidade de Vida não se restringem simplesmente ao aprendizado de separar seletivamente o lixo. “Na verdade, esse trabalho envolve não só um processo de educação ambiental, hábitos higiênicos mas também a mobilização da população para outras sugestões relacionadas com a qualidade de vida”1. Por outro lado, além das práticas com a dimensão educativa, observa-se um despertar de interesses por parte de bairros vizinhos ao Mutirão que anseiam por desenvolverem atividades semelhantes com a equipe da universidade. As equipes que vêm tocando o projeto estão sendo convidadas para participarem de reuniões em outros bairros. Esse fato leva à seguinte conclusão: “Um projeto desse tipo atende de forma direta à comunidade do Mutirão. Indiretamente, teríamos bairros vizinhos que percebem as ações ali desenvolvidas e nos requisitam para falarmos sobre a experiência no Mutirão. Atinge ainda: professores, alunos, funcionários que participam do projeto onde temos muito aprendido e de certo modo, a universidade, particularmente os quatro departamentos do CCT envolvidos...”2. É importante destacar que existem possibilidades concretas de ser reativada a fabriqueta de material alternativo para a construção, feita à base de resíduos de toda essa coleta seletiva de vidro, granito artificial e uma série de outros resíduos. Tudo isto se constitui em processos educativos com a comunidade ou com grupos de moradores dessa comunidade. “Pode ser que se consiga gerar empregos prá várias pessoas. É uma forma de melhorar a qualidade de vida delas. Elas vão ser educadas no momento em que trabalhem a reciclagem produzindo alguma coisa útil. Elas vão também se educar. Eu acho que isto é possível”1. __________ 1. Membro da Equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa. 2. Id., Ibid.
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A visão utilitarista da perspectiva educativa é dominante entre os técnicos e engenheiros da universidade. Um processo terá significado e expressará algo importante, se lhe for apresentado um resultado que seja positivo. Claro que se precisa de resultados, mas a universidade não pode estar presa à realização de atividades que expressem apenas resultados positivos imediatos. O imediatismo sempre está presente nos projetos de áreas técnicas, mas precisa ser relativizado, considerando-se que, mesmo nessa área, processos dialógicos de comunicação e de educação estão sempre ocorrendo e estabelecendo momentos de participação de todos para o exercício da cidadania, muito além de meros resultados imediatos. Agente institucional e natureza do trabalho na extensão Comparando-se o tema VIII - natureza do trabalho na extensão, com o tema IX - papel do agente institucional, observa-se que há consistências e contradições. A consistência fica por conta da percepção da natureza do trabalho social com discurso de neutralidade, com percentuais de 74% e 72%, respectivamente entre coordenadores e executores. Já com relação ao tema IX, a dimensão da neutralidade do agente é expressa entre os coordenadores, com percentual de 50%, sendo destoante entre os executores, com apenas 9% dos indicadores. Outra contradição se expressa nos percentuais referentes ao trabalho técnico com discurso transformador, verificando-se percentuais de 17% e 12% entre os coordenadores e executores, enquanto que os percentuais de comprometimento com as classes subalternas, pelos agentes institucionais, são de 38% e 64%, respectivamente. É mais uma contradição entre os temas e uma falta de consistência quanto ao papel a ser desempenhado pelo agente institucional entre os próprios agentes do projeto.
O projeto também tem a tarefa de resgatar práticas do Estado já existentes no Mutirão. O Estado, através da FAC(Fundação de Ação Comunitária), vinha tocando a idéia de produzir material de baixo custo na comunidade. Mas havia abandonado até mesmo o galpão já construído e só agora resgatado pelo projeto. Já tinha havido um treinamento dado pela FAC para um grupo de pessoas, mas tudo havia sido suspenso. A universidade assume o projeto e se propõe, inicialmente, diferenciar a sua atividade de agente nessa área, para trabalhar não só elementos técnicos, mas sobretudo a educação ambiental. Há, portanto, um conjunto de outras práticas que vinham sendo desenvolvidas e que mudaram com a intervenção da universidade. A universidade assume, dessa forma, uma atividade específica do Estado. Para um dos entrevistados, a idéia de que é o governo que está continuando o trabalho é muito importante para a universidade. Para ele, o povo acredita muito no governo, mesmo que o governo esteja desacreditado.
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TABELA 11 PAPEL DO AGENTE INSTITUCIONAL Distribuição dos temas e itens, por segmento ITEM
A1
A2
A3
AT
%
B1
B2
B3
BT
%
TT
% item
9.1
00
01
---
01
12
03
00
---
03
27
04
21
9.2
00
04
---
04
50
01
00
---
01
09
05
26
9.3
00
03
---
03
38
07
00
---
07
64
10
53
% tema
03
9.1 - Agente comprometido com interesses do mercado ( capital ). 9.2 - Agente neutro da instituição, seja Estado ou universidade. 9.3 - Agente comprometido especificamente com a classe dominada. A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores
AT - Freqüência de indicadores no item A BT - Freqüência de indicadores no item B TT - Freqüência total de indicadores no
item
TABELA 12 NATUREZA DO TRABALHO Distribuição dos itens do tema VIII, por Segmento ITEM
A1
A2
A3
AT
%
B1
B2
B3
BT
%
TT
%item
8.1
05
02
---
07
09
08
00
---
08
16
15
12
8.2
27
28
---
55
74
32
04
---
36
72
91
73
8.3
04
08
---
12
17
04
02
---
06
12
18
15
% tema
17
8.1 - Trabalho técnico acompanhado de discurso “modernizador” . 8.2 - Trabalho técnico acompanhado de discurso de “neutralidade” . 8.3 - Trabalho técnico acompanhado de discurso “transformador” . A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores
AT - Freqüência de indicadores no item A BT - Freqüência de indicadores no item B TT - Freqüência total de indicadores no
item
A universidade, contudo, já experimentou essas técnicas em suas próprias instalações físicas, construindo bibliotecas no Campus de Cajazeiras, por exemplo. ”É preciso a gente mostrar a todo momento que a universidade é governo e que a universidade está fazendo. Está fazendo para ela própria. Se ela faz para ela própria é porque acredita. Se ela está fazendo para ela própria é porque acredita”1. 339
340
Trata-se de uma técnica de convencimento muito simples, de acordo com o coordenador do projeto. Nesse sentido, vai-se tentando a superação das contradições existentes também na universidade e enfrentando outras, quando se assumem experiências que não tiveram início unicamente na universidade. “Não só a importância de como se recicla o material ou como se separa o material. Não só quanto de energia se vai economizar ou quanto vai economizar prá gente e gerar renda. A gente passa também uma questão holística: o que é o meio ambiente? Por que é importante a educação ambiental? De onde vem isso? Prá onde vai isso? Quais os vetores que nos prejudicam? Quais os que nos ajudam?”2. Esses questionamentos, por sua vez, abrem a perspectiva da pesquisa. Um exemplo prático ocorre com a turma de Engenharia Mecânica, como já foi afirmado, trabalhando no sentido de desenvolver novas peças para se encaixarem na realidade local. Essa é uma dimensão também interessante neste projeto, sendo a comunidade beneficiada onde ele vem sendo implantado, sobretudo na possibilidade de se gerar alguns empregos. Extensão universitária Para destacar a análise sobre extensão universitária, faz-se necessário observar a Tabela 13, referente ao tema VII - distribuição dos itens do tema VII, por segmento. A tabela vai mostrar uma visão de extensão como via de mão única, onde a universidade tem um conhecimento que precisa ser repassado para a sociedade. É a visão da universidade como prestadora de serviço, promotora de eventos, que leva um conhecimento necessário para a sociedade. Em geral essa visão está “impregnada” de forte assistencialismo. A Tabela 13 revela que essa visão é preponderante neste projeto, com percentuais entre coordenadores e executores de 69% e 83%, respectivamente. “É justamente aí onde eu vejo essa parte da extensão. Eu vejo como um trabalho da universidade, justamente com a sociedade, com o objetivo de quê? De assessorar essa comunidade, transmitindo conhecimentos que ela não adquiriu. A gente está na universidade, tem esse conhecimento que precisa ser repassado para a sociedade”1. Com a visão de mão dupla, entre a universidade e a sociedade, é estabelecida uma ligação, pela qual o conhecimento é levado e trazido a uma e a outra. A extensão é um canal, um elo ou algo que possa simbolizar uma passagem da universidade para a sociedade ou vice-versa. Esse caminho tem a finalidade de captar e também de atender as demandas sociais. Existe, nesse sentido, uma troca de __________ 1. 2.
Membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa.
340
341
conhecimentos. A Tabela 13 apresenta percentuais pouco significativos para essa perspectiva. Diferenciadas compreensões, contudo, se externam mesmo entre os coordenadores, como o entendimento de que a extensão é expressão do cumprimento das obrigações sociais da universidade a todos os segmentos da sociedade. Para um deles, a universidade precisa estar atendendo a todos os segmentos, pois tem obrigação para com todos. O que se vê, entretanto, é a expressão de interesses de diferenciadas formas e intensidades dos setores sociais para com a universidade. Existem muitas demandas de prefeituras, transformarem alguns trabalhos da universidade em expressão de sua própria política. Portanto, o atendimento a todos setores da sociedade, em certos casos, tem um viés que pesa mais para o lado daqueles que detêm o poder local ou regional. Assim, não se pode entender de forma “ingênua” o atendimento a todos os setores sociais. Esses setores se expressam politicamente diferenciados e com forças diferenciadas quando apresentam suas demandas à universidade. Existem ainda outros procedimentos educativos que passam por projetos como este. Pode-se falar de processos informais de educação transmitidos pela universidade em momentos em que há reuniões. A comunidade leva sua educação aos agentes da universidade e estes à comunidade. De acordo com um dos entrevistados, não se trata, na verdade, de uma educação de banco de escola. É uma palestra menos formal, ilustrando assuntos que estão mais voltados aos interesses das pessoas. Quanto à visão da extensão como uma possibilidade de trabalho social, esta é apontada pelos coordenadores, com um percentual de 17%. É um percentual expressivo, considerando o fato de que esse tema se revela com 6% no conjunto dos temas do projeto, enquanto que este mesmo item projeta um percentual de 12% entre os demais itens. particularmente de certos prefeitos, que vêem a possibilidade de conquistarem a universidade para seus governos e com isso
__________ 1.
Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. 3. Membro do CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. 2.
__________ 1.
Estudante e membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para esta pesquisa.
341
342
TABELA 13
DISTRIBUIÇÃO DOS ITENS DO TEMA VII, POR SEGMENTO ITEM
A1
A2
A3
AT
%
B1
B2
B3
BT
%
TT
%item
7.1
05
15
---
20
69
10
00
---
10
83
32
73
7.2
04
00
---
04
14
01
01
---
02
17
06
15
7.3
05
00
---
05
17
00
00
---
00
00
05
12
% tema
06
7.1 - Via de mão única: da universidade para a sociedade. 7.2 - Via de mão dupla: processo educativo, cultural e científico. 7.3 - Trabalho social: processo educativo, cultural e científico voltado à construção de nova hegemonia. A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores
AT - Freqüência de indicadores no item A BT - Freqüência de indicadores no item B TT - Freqüência de indicadores no item
Este é um trabalho de extensão que, embora apresente contradições e inconsistências, também configura uma possibilidade de extensão como um trabalho social. Volta-se para a produção de um conhecimento que num certo nível é conjunta, pois a comunidade, além de contribuir com a apresentação do problema, também apresenta soluções através da sua participação. A universidade e a comunidade se apoderam daquele conhecimento. É um trabalho que se afirma como permanente na comunidade e que prioriza, como expressão da verdade daquele conhecimento, a relação que está ocorrendo entre a teoria trazida pela equipe da universidade e a prática da qual a comunidade participa.
Considerações A partir do exercício da prática de extensão em comunidades carentes como a do Mutirão, além dos aspectos técnicos, se vislumbram processos educativos, apesar das dificuldades que às vezes parecem ser intransponíveis. Além das dificuldades já apontadas, outras podem ser definidas para se poder desenvolver maiores reflexões e contribuir para a tomada de decisões com maior solidez de propósitos voltados aos setores subalternos da sociedade. Um dos aspectos a se analisar com maior profundidade é a contribuição de um projeto dessa natureza relativo à pesquisa com questões ambientais e cujas soluções possíveis se prestem para a região. Esse aspecto é interessante, pois supera uma tradição da pesquisa apenas através de projetos encomendados por agências nacionais ou internacionais, algo que foi muito comum no Campus II, em particular para a área tecnológica. Difícil é, todavia, a garantia de financiamento para tais projetos, considerando que não atendem demandas externas expressas como tal. 342
343
Um projeto com essa perspectiva de um trabalho social contribui para a busca de mais adeptos para seu desenvolvimento, como também para a abertura de outros tipos de projeto, com outros profissionais. O que se exige é a pertinência das questões a serem abordadas pela comunidade universitária. São questões que podem estar nas imediações do próprio campus universitário. Pouco a pouco, como vem demonstrando o curso de Engenharia Mecânica, ao participar deste projeto, a técnica pode adquirir a dimensão social que está embutida no seu desenvolvimento. Não é a comunidade toda fabricando em um torno mecânico determinadas peças que lhe são úteis, mas é o processo de definição daquelas necessidades técnicas que, junto com as possibilidades de conhecimento da universidade, permite que sejam trocadas as experiências e os conhecimentos, também, no campo tecnológico.
343
344
CAPÍTULO III EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E SUAS FUNÇÕES HEGEMÔNICAS 1 - Extensão e hegemonia nos projetos da UFPB Após a apresentação de cada projeto de extensão tomado como objeto de análise, torna-se necessário fazer-se alguma comparação entre eles. Sabe-se, contudo, que cada um desses projetos analisados tem sua peculiaridade, o que traz dificuldade para um estudo em bloco, contemplando-os conjuntamente. Por outro lado, pode-se verificar que elementos teóricos estão presentes em todos eles e podem ser apreendidos através das temáticas políticas que estão no conjunto da teoria da hegemonia e que reaparecem no interior das práticas desses tipos de projetos. Há projetos voltados para áreas distintas de conhecimento, como: saúde, educação, desenvolvimento comunitário e tecnologia, esta voltada à qualidade de vida. Pode mesmo se tornar interessante um estudo abordando os quatro projetos, pois essa análise comparada possibilita, na sua diversidade, trabalhar com elementos teóricos que podem suscitar diferenciados debates. Para este estudo é preciso observar-se a Tabela 14 (temas e itens nos projetos, por segmento). Nessa tabela pode-se destacar que os temas I - concepção de mundo, e II - concepção de sociedade, em todos os projetos, tiveram os percentuais mais expressivos, tendo como destaque o tema sobre a concepção de sociedade. Esses temas mostram uma grande coerência entre os projetos, sobretudo, o CERESAT, o Zé Peão e o Praia de Campina, onde se externa, no tema I, uma perspectiva transformadora. Faz exceção o Projeto Qualidade de Vida, em que os percentuais referentes à visão são privilegiadora do mercado são mais expressivos, atingindo 53% e 58% entre os coordenadores e executores do projeto. Quanto ao tema II - concepção de sociedade, os projetos apresentam discordância no seu conjunto. São concordantes apenas os projetos CERESAT e Zé Peão quanto à visão de sociedade como modo de produção. Existe diferenciação no projeto Praia de Campina, em que coordenadores e executores vêem a sociedade como um conjunto de instituições integradas entre si, divergindo em relação aos executores e aos textos. Destaca-se a visão integradora da sociedade no Projeto Qualidade de Vida, com percentuais de 48% e 75%.
344
345
T ABELA 14 TEMAS E ITENS NOS PROJETOS, POR SEGMENTO T I
II
III
IV V
VI
VII
VIII
IX X
Item 1.1 1.2 1.3 2.1 2.2 2.3 3.1 3.2 3.3 4.1 4.2 4.3 5.1 5.2 6.1 6.2 6.3 7.1 7.2 7.3 8.1 8.2 8.3 9.1 9.2 9.3 0.1 0.2
AE 07 06 87 04 01 95 22 33 45 00 57 43 02 98 38 00 62 61 06 33 00 09 91 14 28 58 00 100
BE 06 02 92 02 04 94 14 50 36 03 21 76 05 95 65 11 24 29 08 63 02 06 92 64 01 35 00 100
CE 09 02 89 01 03 96 67 00 33 00 10 90 03 97 58 33 09 66 00 34 00 08 92 36 41 23 00 100
I - Concepção de mundo extensão II - Concepção de sociedade III - Concepção de Estado
A - Entrevista com coordenadores
DE 09 02 89 01 03 96 00 100 00 07 68 35 06 94 31 56 13 62 01 37 04 09 87 55 14 31 00 100
TE 26
25
01
08 06
02
05
17
02 08
AZ 13 01 86 06 01 93 83 17 00 00 37 63 11 89 41 12 47 35 07 58 02 27 71 38 27 35 00 100
BZ 09 01 90 06 01 93 20 80 00 01 17 82 01 99 57 25 18 35 04 61 03 09 88 30 00 70 00 100
CZ 07 01 92 04 03 93 00 100 00 00 20 80 02 98 74 13 13 84 02 14 01 07 92 17 04 79 00 100
DZ 24 01 75 01 01 98 60 40 00 00 49 51 07 93 55 25 20 24 06 80 01 03 96 52 03 45 00 100
TZ 26
27
01
11 07
02
04
12
03 07
AP 15 04 81 02 52 46 --66 34 --39 61 12 88 55 21 24 25 28 47 01 58 41 42 29 29 01 99
BP 15 04 81 01 59 40 --100 --05 32 63 --100 82 09 09 63 24 13 01 63 36 64 04 32 --100
IV - Configuração dos interesses sociais V- Concepção de prática social VI - Relação universidade-sociedade VII - Concepção de extensão universitária
E - Projeto CERESAT
C - Entrevista com comunitários U - Política da UFPB
T - Percentual total do tema
1.1 - Visão que privilegie o mercado 1.2 - Visão integradora ( inst. pessoa ) aperfeiçoando a socieddade. empresarial 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes 3.2 - Estado instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: ( contradições de classe ) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos ( setores de movimento ) 4.3 - Interesses voltados à classe 5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes dominadas
DP 10 10 80 --17 83 50 --50 --20 80 --100 --50 50 95 --05 --11 89 100 ------100
TP 16
28
01
08 05
03
04
21
02 12
AQ 53 10 37 15 48 37 75 00 25 00 69 31 09 91 84 16 00 69 14 17 09 74 17 12 50 38 00 100
BQ 58 01 41 05 75 20 00 00 100 00 00 100 10 90 76 12 12 83 17 00 16 72 12 27 09 64 07 93
TQ 18
25
01
03 03
08
06
17
03 06
VIII - Natureza do trabalho social na IX - Papel do agente institucional X - Pedagogia da extensão universitária
D - Documentos dos projetos
B - Entrevista com executores
CP 19 09 72 --37 63 75 25 --01 07 92 --100 65 31 04 68 13 19 --29 71 ----100 --100
P - Projeto Praia de Campina Q - Projeto Qualidade de Vida L - Grupo de Tecnologia Z - Projeto Zé Pião
6.1 - Instituição do saber com vida independente 6.2 - Instituição voltada ao mundo 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única 7.2 - Via de mão dupla 7.3 - Trabalho social 8.1 - Trabalho técnico com discurso modernizador 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transformador 9.1 - Agente do mercado 9.2 - Agente neutro 9.3 - Agente da classe dominada 0.1 - Pedagogia tradicional 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
Quanto ao tema III - concepção de Estado, o que se observa é, praticamente, uma ausência dessa discussão, o que leva a entender que o debate político em geral estabelecido nos projetos é de pouca efetividade, considerando a ausência da 345
346
temática referente ao Estado em suas discussões, mesmo que suas ações sejam muito vinculadas com as atividades do Estado. No tema IV - configuração dos interesses sociais, existem discrepâncias e concordâncias. Nos projetos Zé Peão e Praia de Campina, existe uma afluência para a visão de interesses voltados às classes subalternas da sociedade, enquanto que os dois outros projetos se diferenciam, sobretudo internamente, quanto às perspectivas de interesses sociais. No tema V - concepção de prática social, há um destaque nos quatro projetos para a visão de prática como processo e em consonância com as classes dominadas. Estabeleceu-se, praticamente, um consenso no projeto Praia de Campina quanto a essa visão, com percentuais de 88%, 100%, 100% e 100% respectivamente para os coordenadores, executores, comunitários e textos. O tema VI - relação da universidade com a sociedade, também mostra entre os projetos uma diferenciação das visões, ora voltada para uma compreensão de instituição com saber e com vida independente, ora como instituição voltada ao mundo empresarial, ora como aparelho de conflito ideológico. Há uma aproximação maior entre os projetos Praia de Campina e Qualidade de Vida quanto à visão de universidade como instituição do saber com vida independente, com percentuais de 55%, 82%, 65% para coordenadores, executores e comunitários e no Projeto Qualidade de Vida, com percentuais de 84% e 76%, respectivamente para os coordenadores e executores. Os projetos CERESAT e Zé Peão revelam discordâncias, num predominando a perspectiva de instituição voltada ao mundo empresarial e noutro a de instituição como aparelho de conflito ideológico. Quanto ao tema VII - concepção de extensão universitária, são apresentadas três possibilidades de visão: a via de mão única, a via de mão dupla e a perspectiva de extensão como um trabalho social. Os índices se distribuem entre essas três possibilidades, destacando-se um expressivo percentual em alguns projetos quanto à visão do trabalho social. Nos projetos Praia de Campina e Qualidade de Vida aparecem os menores índices para essa perspectiva, com percentuais de 13% e 5%, para os executores e os textos do Projeto Praia de Campina e de 17% e 00%, para os coordenadores e executores do Projeto Qualidade de Vida. É importante destacar que mesmo os índices mais baixos revelam indicadores qualitativamente expressivos para a discussão conceitual da extensão universitária como um trabalho social. A perspectiva da via de mão dupla se expressa com os menores índices nos Projetos CERESAT e Zé Peão, com índices que variam de 00% a 7%, entre os coordenadores, executores, comunitários e textos de ambos os projetos. O tema VIII trata da natureza do trabalho social na extensão. Entre os projetos, há quase um consenso na ausência da perspectiva de um trabalho técnico com discurso modernizador. Destoam os projetos CERESAT e Zé Peão com relação aos demais, no que tange à visão de um trabalho técnico com discurso de neutralidade. Os índices no Projeto Praia de Campina, com alguma divergência interna, vão se tornando ainda maiores no Projeto Qualidade de Vida, atingindo percentuais de 72% e 74% entre os coordenadores e executores, respectivamente. Consolidam-se índices expressivos para a visão de um trabalho técnico com discurso transformador, particularmente nos projetos CERESAT e Zé Peão, com índices que variam entre 71% e 96% . O tema IX - papel do agente institucional, revela-se um dos temas mais dilemáticos, considerando-se a variação entre os seus índices, tanto interna como externamente. A comparação interna desses percentuais conduz a uma inconsistência presente entre os coordenadores, executores, comunitários e textos dos projetos, o que também ocorre na comparação externa com os 346
347
demais projetos. Quanto à visão do agente institucional como agente do mercado, os índices variam de 14% a 64%, no projeto CERESAT; de 17% a 52%, no projeto Zé Peão; de 00% a 100%, no projeto Praia de Campina e de 12% a 27%, no Projeto Qualidade de Vida. Disparidades semelhantes ocorreram nas demais visões de agente como neutro ou como agente da classe dominada. Em relação ao tema X - pedagogia da extensão universitária, pode-se observar uma consistência interna que alcança percentuais de 100%, praticamente em todos os projetos e em todos os agentes dos projetos. Trata-se de uma consistência que chama a atenção para o tipo de discurso que está sendo veiculado e que de certa forma nega o distanciamento que se tem no exercício prático desse discurso. Passa uma idéia de que o discurso pedagógico transformador está bem consolidado entre os agentes destes projetos, o que colide com a caracterização expressa do agente institucional e com as concepções de sociedade ou de mundo, que nem sempre estão em sintonia com o discurso ou a visão pedagógico-educativa da ação política declarada. Na Tabela 14, destacam-se temas, tanto pela forte, como pela fraca presença quantitativa, valendo a pena tentar uma melhor compreensão dos dados apresentados. O tema III - concepção de Estado, apresenta percentuais de apenas 1% em todos os projetos analisados. Isso indica um ausência da discussão política fundamental ao se encaminharem ações políticas para a organização de setores subalternos da sociedade. As políticas públicas são formuladas e encaminhadas apenas pelo Estado, nessa região. Essa condição torna imprescindível o debate sobre o Estado, suas concepções e diferenciações políticas, bem como a dimensão da ação de seus agentes para qualquer projeto que apresente tal dimensão social. A ausência desse tipo de debate tende a limitar as possibilidades de um maior conhecimento sobre o papel do Estado e necessariamente sobre as condições de possibilidade de mudanças. A relação da universidade com a sociedade é outro tema que se apresentou pouco expressivo quantitativamente, em relação aos demais, com percentuais de 2%, 2%, 3% e 8% para os projetos CERESAT, Zé Peão, Praia de Campina e Qualidade de Vida, respectivamente. Esses dados demonstram a dificuldade existente entre os agentes dos projetos para uma formulação mais clara sobre o papel da universidade em sua relação com a sociedade. Terá a universidade vida independente, como mostram alguns percentuais, como no Projeto Qualidade de Vida, que chegam a 84% e 76%, entre os coordenadores e executores do projeto? Essa visão apresenta a instituição isolada da sociedade, como se isso fosse possível, gerando, conseqüentemente, uma outra visão que é a da neutralidade de seu trabalho ou do produto desse trabalho: o conhecimento. O tema IX - papel do agente institucional, também apresenta percentuais praticamente desprezíveis do ponto de vista quantitativo. Seus percentuais, seguindo a ordem dos projetos já citada anteriormente, atingem os índices de 2%, 3%, 2% e 3%. Ora, a perspectiva da ação prevista no papel do agente institucional depende da compreensão daquilo que se entende por Estado e do posicionamento do agente diante do mesmo. A ausência dessa discussão em uma sociedade de classes só contribui como fator gerador de dúvidas quanto ao papel do agente. Assim é que, mesmo prevalecendo uma visão transformadora em relação à sociedade, como foi apresentado na Tabela 14, isso não é suficiente para se definir com clareza o papel do agente institucional como agente das classes subalternas. Todos esses temas, embora quantitativamente pareçam pouco ou nada indicar para a análise, não podem deixar de ser tratados no conjunto dos projetos, onde é preciso tentar alcançar a importância de cada temática, independentemente de percentual. Esses temas também contribuem muito para a discussão e o entendimento dos projetos em estudo, e não apenas os temas com valores expressivos, como os temas I e II (a concepção de mundo e 347
348
concepção de sociedade), que atingiram os maiores índices dos projetos. Parece que, juntos, podem estar indicando os debates que em geral ocorrem na universidade. Os percentuais encontrados nos temas I e II apontam para visões nem sempre transformadoras e indicam que estes projetos estão impregnados de variadas possibilidades de concepção de sociedade e de mundo. Os percentuais, entretanto, não conduzem a exigências maiores quando se analisam temas tais como o jogo dos interesses sociais ou mesmo as concepções de práticas sociais . O que subjaz nesses tipos de projetos, particularmente nos Projetos Praia de Campina e Qualidade de Vida, é a idéia da necessidade de se desenvolver a comunidade, de fazê-la crescer. Nesses projetos, as formulações quanto aos objetivos passam pela idéia de desenvolver as regiões onde o atraso é responsável pela miséria. Nessa perspectiva têm-se apresentado vários projetos para financiamento, mesmo os que envolvem a universidade. Coloca-se normalmente um desejo, às vezes até religioso, de se pretender vencer esse atraso e para isso vai-se tentando resolver as questões da pobreza. Existe uma ideologia de desenvolvimento para as comunidades “carentes” na perspectiva de mudanças ou de transformações. Esses são propósitos que precisam ser submetidos ao crivo dos dados dos projetos. Também é preciso descobrir se estão em curso projetos que pretendam contribuir para a organização dos setores subalternos da sociedade. Parece fundamental para a execução dos projetos que seus coordenadores, executores e comunitários possam estar minimamente afinados com a filosofia desses projetos e sua formulação política. Isso traz mais clareza às suas ações, gerando benefícios à comunidade, de maneira diferenciada. Quando essa aproximação ou identificação não ocorre, a comunidade percebe, ainda que não expresse oralmente sua percepção. Isso cria uma situação mais difícil que quando o poblema é posto em reflexão pelos grupos ou equipes dos projetos, já que ela, docilmente aceita tal situação. Em conseqüência, a comunidade tende a desenvolver formas de participação em que cada indivíduo passa a buscar, nessa diferenciação, o máximo de benefícios para si próprio. Tais formas deveriam exigir das equipes uma reflexão mais crítica possível no sentido de buscar atividades ou políticas que possam envolver todos os setores da comunidade. Esse trabalho, no entanto, está se tornando ausente das atividades de reflexão crítica das equipes de trabalho social. Pelo menos nos projetos Praia de Campina e Qualidade de Vida, as discussões têm basicamente decorrido de encaminhamentos imediatos, dando-se ênfase a uma metodologia do tipo “aprender a fazer, fazendo”, esquecendo-se da importante tarefa da reflexão crítica sobre o fazer, para inclusive poder refazer o que está sendo feito quando ocorrerem possíveis equívocos, permitindo correções. Esse movimento se constitui de ação educativo-crítica fundamental. Forma-se, assim, uma ideologia nas equipes de trabalho destes projetos, particularmente por parte dos estudantes, que aceitam as condições que lhes são oferecidas como membros de equipe dos projetos, sendo conduzidos pelo pressuposto não da reflexão crítica, mas da acomodação às atividades em desenvolvimento nos projetos. As concepções de universidade e de extensão dominantes são aquelas mais veiculadas, impedindo dessa maneira a reflexão sobre possibilidades outras que venham a ser geradas nesses trabalhos sociais. Essa ideologia expressa os valores e as concepções dominantes, que, por sua vez, mantêm a ordem vigente sem questionamentos. Por outro lado, em nome de um desenvolvimento de comunidades consideradas “atrasadas” ou “carentes” , procura-se veicular como ideologia uma necessidade de superação da situação do atraso como se fosse algo de consenso entre todos. Isto é, todos apóiam que se desenvolvam as regiões ou as comunidades. Conseqüentemente, qualquer ação com essa denominação é bem vista, bem aceita e deve ser implementada. Estabelece-se dessa forma uma total ausência da reflexão. Torna-se necessário, pelo menos, responder-se à pergunta: A quem interessam essas ações ou que organização social está sendo promovida para os setores subalternos da sociedade? Trata-se de uma ideologia sutilmente veiculada e assimilada por 348
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várias equipes de projetos de extensão, que procuram instaurar um processo único para toda e qualquer comunidade, o qual, portanto, vem carregado de autoritarismo. Há certas vantagens, inclusive, que podem acontecer nas relações de entidades com o Estado ou com ONGs onde se beneficiam, às vezes, poucos. Casos assim são veiculados como se fossem conquista ou benefício de todos. Escondem-se a diferenciação e a exclusão de tantos que ficam sem essas benesses dentro dos próprios projetos. Ora, estas são formas de se veicular as ideologias dominantes e se prestam para a organização do proletariado, no sentido de sua não autonomia e sob o controle ideológico ou político dos setores dominantes. As ações desenvolvidas nos projetos em estudo mostram um conjunto de contradições, discrepâncias e mesmo divergências. Nos embates entre os trabalhadores da construção civil e dos trabalhadores de Praia de Campina com a usina, surgem imediatamente contradições profundas. Com relação à política local da prefeitura dos dois municípios vizinhos, Mamanguape e Rio Tinto, apresentam-se formas de resistência e luta, mas também existe uma certa tolerância que assume ares de valor ético por parte daquelas autoridades. Tal atitude traduz a ideologia pela qual é preciso tratar da miséria, pois o seu combate, além de expressar uma atitude “caridosa” e muito ligada à religiosidade, se torna uma questão de segurança para o município e seus setores médios. Os poderes locais comumente estão se prontificando a colaborar com esses projetos, a fim de manterem a sua presença também nessas ações sociais. O processo, particularmente desenvolvido pelo Projeto de Praia de Campina, de se buscar atender a algumas necessidades básicas das comunidades, pode interessar aos poderes locais, pois não estabelece nenhuma mudança estrutural radical que possa ameaçar o poder das oligarquias da região. O incentivo para tornar-se voluntário, desencadeado na universidade e por equipes desses projetos em relação aos encaminhamentos do Programa Comunidade Solidária, por exemplo, mostra bem que a ideologia de acabar com a pobreza tem dimensão nacional, sendo, portanto, uma ideologia nada restrita a particularidades regionais. Equipes da universidade, através de projetos de extensão, podem se prestar a esse tipo de trabalho social, se não entenderem o caráter ideológico de um projeto dessa natureza. Um projeto como o da Comunidade Solidária ajuda a ver que a ideologia vai exercendo o seu domínio em dimensão nacional. A politização e a aprendizagem da análise crítica pelos setores subalternos da sociedade não são desejos dos setores dominantes. Esses setores sempre se apresentam com as decisões já tomadas. A discussão aberta e crítica não é de interesse dessas minorias dominantes, que nunca promovem nem estimulam o debate das questões a serem decididas. Seus representantes se apresentam como se já conhecessem todos os problemas e suas soluções. E já têm definidas as decisões. A sua política é uma política de bastidores. O entendimento desses aspectos ideológicos conduz necessariamente as equipes de projetos a atuarem como educadores críticos da realidade, baseados no desenvolvimento da capacidade de pensar autonomamente, no desenvolvimento da capacidade crítica e assim compreenderem as diferenciadas formas de dominação desse estilo de política. Essa é uma atividade considerada imprescindível por aquele agricultor que mostrava a necessidade de se discutir as questões políticas para não se deixar campo aberto para a burguesia. Essa educação sistemática é pouco desenvolvida, carecendo de incentivo maior, aproveitando o conjunto de outras ações encaminhadas pelos projetos. Tanto o tema referente à ideologia como também seu conceito precisam ser analisados nesses projetos. Permeia toda a discussão o conhecimento político sobre o Estado e, a partir daí, as suas relações com os aparelhos de hegemonia, com o intelectual, com os comunitários e o seu papel como agente de mudanças, as políticas do Estado. Tudo isso costuma estar fora de discussão nesses projetos. A ausência dessas discussões dificulta a sua 349
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compreensão crítica por parte dos comunitários e deixa vazio um espaço pedagógico importante para o exercício da discussão, da autonomia e da crítica. A análise crítica do papel do Estado, muito pouco desenvolvida nos projetos, se torna fundamental para o exercício educativo e crítico entre os setores subalternos da sociedade. Os Estados capitalistas mais avançados apresentam uma complexidade maior, bem como a sociedade civil. Nessa direção, urge a discussão para o redirecionamento dos aparelhos de hegemonia na superestrutura e na vida estatal. Destaca-se a rediscussão sobre concepção de Estado como instrumento de uma classe, ou mesmo a redução da compreensão da própria hegemonia à dominação de classe. A ausência de objetivos educativos como exercícios da crítica desses projetos retira a compreensão necessária da articulação das diferentes práticas sociais e, sobretudo, elimina o debate sobre as medidas políticas das classes dominantes. A ausência dessas discussões de forma sistemática nesses equipes dificulta a compreensão das temáticas da atualidade, como a autonomia do próprio movimento, a democracia na sociedade e, conseqüentemente, a necessidade de sua defesa. Através do aprendizado crítico, a partir das ações nos projetos, mostra-se a necessidade de combate às práticas autoritárias, sobretudo nas relações entre dirigente e dirigido; reduz a busca por novas formas de organização de instrumentos para transformação e avança no exercício de valorização de seu próprio saber, passando pela compreensão da necessidade do respeito ao saber diferente. São possibilidades que podem ajudar na condução do desenvolvimento metodológico de se aderir ao real concreto de forma diferenciada da adesão positivista, assegurando uma compreensão mais sistematizada e rica, no sentido da superação do conservadorismo estabelecido na sociedade. Estes projetos demonstram a limitada ação da universidade, como uma instituição, nessa direção. Ainda um aspecto a considerar diz respeito à cultura e aos intelectuais na teoria da hegemonia, que Gramsci chama de “questões pedagógicas” e escolares. Essas questões podem ser vistas no desenrolar dos projetos em estudo e dizem respeito à ligação das questões culturais e escolares com o movimento dos trabalhadores. As tentativas de desenvolver atividades que contribuam para uma organização dos trabalhadores passam pela prática concreta do movimento dos trabalhadores. Há, nesse sentido, uma forma diferente no processo de organizar as reivindicações dos setores de trabalhadores, como o desenvolvido nesses projetos, que é voltar-se à organização da cultura. Manifesta-se também como importante a solidificação dos instrumentos de divulgação e sua articulação com as lutas concretas em desenvolvimento, constituindo-se em uma dimensão da luta pela hegemonia dos setores subalternos da sociedade. As manifestações culturais estão inseridas no próprio movimento da realidade. Não se constituem como algo abstrato. Estão, na verdade, presas ao “povo”, sendo sua própria manifestação em cada momento histórico. Uma concepção como esta expressa o fim do saber enciclopédico. O homem culto não pode ser “depósito” de informações, cheio de dados e fatos. A perspectiva gramsciana valoriza o saber como fruto de um processo de conquista “espiritual” (o homem como criação histórica e não natureza):
“A tomada de consciência, social e histórica, é, ao mesmo tempo, a construção de si próprio e dos outros. A cultura passa a ser pensada, pois, como consciência pensada, pois, como consciência de si próprio, do contexto social no qual se está inserido, da realidade histórica, enfim, de que se é parte”( Pamplona: Cadernos do Cedes no. 3, p.19). 350
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O desenvolvimento de atividades nesses projetos, sobretudo nos Projetos Zé Peão e Praia de Campina, tem valorizado o aspecto cultural. Ações educativas são promovidas no sentido de articular as necessidades do movimento em organização, bem como as suas exigências. Pode-se exemplificar com a comemoração da colheita do camarão - a festa do camarão - que tem sido incentivada e se tornou, hoje, uma tradição entre os pescadores da região. Isto pode ser entendido como parte de um processo de expansão da hegemonia que, assim, deve ser buscado, ainda mais porque consolida um aprendizado de fortalecimento de diversas dimensões que constituem o cultural. Destaca-se a importância de reconhecimento dessas manifestações dos trabalhadores, fortalecendo, dessa forma, sua própria cultura, para além das tantas manifestações da cultura burguesa. É possível conceber essas atividades de tal modo que com elas se vá definindo e distinguindo a concepção de intelectual. É importante trabalhar com uma ampliação do conceito de intelectual, que passa a ser definido nos marcos de sua função de organizador da sociedade, abrangendo todas as esferas da vida social cotidiana dos trabalhadores. Assim, nega-se a formulação burguesa do intelectual pedante e recusa-se a postulação positivista do saber. Aprofunda-se também a discussão sobre a natureza humana como algo abstrato, fixo e imutável, como é normalmente entendido. Abre-se a perspectiva de destaque para as relações sociais entre os homens/mulheres, contrariando a formulação transcendental de sua natureza ou essência. Nega-se qualquer determinação apriorística ou transcendente. Essas noções de cultura e de intelectual, bem como as suas relações, ficam determinadas pelas condições de existência em seus contextos reais e históricos. Esses aspectos tendem a conduzir para formulações diferenciadas desses conceitos. Intelectual, agora, pode ser qualquer homem/mulher, apesar de nem todos estarem exercendo uma atividade que lhes é peculiar, voltada à organização de sua classe. É este o papel do intelectual orgânico no processo de ampliação da hegemonia dos setores subalternos da sociedade. Nesse sentido, estão sendo propostas certas atividades nos projetos em estudo. Estas têm conduzido os projetos para contribuírem na criação de instrumentos ou aparelhos de hegemonia capazes de ampliarem esse processo. Não se pode esquecer, todavia, de que a hegemonia passa pelos diferenciados momentos de relações de forças. Não está presa apenas à esfera cultural, mas também diz respeito à economia e não pode prescindir dessa dimensão. Os encontros promovidos por vários aparelhos de hegemonia dos trabalhadores, como sindicatos, central sindical, associações, federação de associações, encontros abertos para toda a comunidade, como o da Semana de Extensão, e mesmo reuniões isoladas em comunidades, de que têm participado equipes dos projetos em estudo, também abrem a discussão da hegemonia como relação pedagógica. Essas atividades vão mostrando a importância da escola, particularmente da Escola Zé Peão, que vem demonstrando ser fundamental nesse processo. Sabe-se que são experiências com equipes reduzidas e que não cobrem a classe trabalhadora, tanto no campo quanto na cidade. Essas experiências, todavia, expressam programas adequados à importância que vêm expressando esses movimentos. Supera-se o estudo compreendido como “desinteressado” ou a “objetificação” no sentido positivista e que vão assumindo importância na formação da cultura dos setores subalternos. E mais: destacam-se como elementos-chave nesse processo dois aspectos, que são a organização dessa cultura e a necessária articulação dessa educação com ações concretas desses movimentos. Abre-se, dessa forma, a discussão sobre o papel do intelectual, intelectual orgânico e a sua participação nas lutas desses movimentos, estabelecendo-se nexos entre a cultura e a sua direção. Ao mesmo tempo, a partir das ações em andamento nesses projetos, superam-se as posturas de uma cultura popular inferior baseada na simples informação e aceitação passiva da cultura dominante. Esta está sempre sendo apresentada como a mais bela, 351
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sistemática, melhor elaborada, mas se omite o quanto ela é “carregada” de ideologia dominante. Algumas das experiências desses projetos apontam para a superação pedagógica de visões mágicas do mundo ou da natureza e, além disso, caminham no combate ao individualismo tão presente hoje em dia. A partir do seu ensino se passa a incentivar o folclore, posicionando-se contra as tradicionais concepções de mundo em que elementos da realidade são dados à aprendizagem. Inicia-se o ensino a partir das questões locais, mas abrindo-se para diversas temáticas, superando o localismo daquelas questões. A tentativa de rediscussão das concepções dominantes de homem/mulher e de mundo põe em xeque essa escola tradicional. Funciona, ao que parece, como tentativa de superação do tradicionalismo estabelecido pelo ensino das escolas formais, estando essas experiências marcadas por um outro modo de vida intelectual e moral. Essas experiências caminham, de forma positiva, para a afirmação de uma nova personalidade voltada à sua realidade no sentido de sua transformação. Um homem/mulher com a consciência voltada ao processo de mudança. O intelectual comprometido com as lutas permanece ao lado dessa transformação e isso significa situar-se do ponto de vista das classes subalternas e lutar por sua formação cultural e política. Essa compreensão significa também a necessidade de mudança do modo de existência da filosofia. Uma filosofia cuja tradição tem se pautado pelas formulações idealistas. Essa filosofia é superada quando se estabelece um processo de conhecimento originado na prática. A análise dos projetos realizada sob a ótica da teoria da hegemonia em Gramsci pode ainda apresentar diferenciados ângulos. Pode-se, segundo CARDOSO (l995: 78), tomar a questão das alianças de classe(operário e camponeses) como central. Uma segunda perspectiva é ter como fundamental a questão do partido político como intelectual coletivo “ao qual é atribuída a tarefa de estabelecer o nexo entre intelectuais e massa, cultura científica e cultura popular, no sentido da construção da vontade coletiva nacional popular, ou seja da constituição das classes subalternas como sujeitos da ação histórica”. Por fim, uma terceira possibilidade examina o processo de construção de hegemonia como reforma intelectual e moral ou como a construção de uma outra cultura. A análise crítica dos projetos a partir do ângulo das alianças de classes, mostra que estes pouco privilegiaram essa perspectiva. Pouco se analisou a questão da aliança entre os diversos setores de trabalhadores. O Projeto Escola Zé Peão é a experiência em que essa perspectiva foi trabalhada pelas equipes de extensão. Essa experiência tem contribuído para a formação de “quadros” para os vários movimentos de organização de trabalhadores, particularmente para a Central Única dos Trabalhadores e para partidos que vêm assumindo as bandeiras da classe trabalhadora. Além da participação na CUT com seus quadros, o sindicato da construção civil tem tido papel importante nas relações entre os vários movimentos surgidos na cidade de João Pessoa, não só financeiramente como também com sua presença marcante nesses movimentos. Saliente-se ainda a sua contribuição relativa a quadros sindicais que assumiram vários partidos de esquerda no interior do movimento dos trabalhadores. Um sindicato que antes era desconhecido se tornou, hoje, um dos mais atuantes no Estado e até na região Nordeste. Não se pode creditar, naturalmente, todo esse conjunto de atitudes apenas à obra do Projeto Escola Zé Peão. Contudo, este tem dado uma contribuição considerável no âmbito da política sindical. Quanto ao projeto CERESAT, o seu envolvimento na questão da saúde e a sua busca de alianças entre as demais categorias de trabalhadores, em torno dessa questão, começam a aparecer através da Central Única dos Trabalhadores. Com isso vai introduzindo a questão da saúde nos demais sindicatos. Contudo ainda é um trabalho que apenas foi iniciado. 352
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O Projeto Praia de Campina vem desenvolvendo um concentrado esforço no sentido de que as lutas da região onde funciona o projeto possam se prestar como motivadoras para outras comunidades. Tem havido vários momentos onde se veiculam essas experiências e outros procedimentos semelhantes como os dos sindicatos dos trabalhadores rurais das cidades de Rio Tinto e de Mamanguape. A partir das associações geradas nas comunidades, que atingem hoje um total de trinta e três, criou-se a Federação dessas Associações, envolvendo cada vez mais trabalhadores de vários municípios. Contudo, os membros da equipe e os comunitários ainda não perceberam a importância política que pode assumir a aglutinação dessas forças políticas no seio da classe ou entre classes, bem como a questão das alianças políticas. O quarto projeto - Qualidade de Vida - não tem apresentado preocupações com essa questão. Cabe considerar a incipiência do seu processo de implantação, bem como as dificuldades que vem tendo que vem enfrentando quanto à implementação de políticas que envolvam conjuntamente outras entidades e o Estado. A questão das alianças exige clareza das equipes dos projetos para o problema. Também salienta-se o papel da direção de classe que se exerce nos marcos de uma política deliberada de alianças e a clareza das equipes de que essa hegemonia se ganha na luta. Assim como está apresentada, pode-se afirmar que a busca pela hegemonia, nesses projetos, não tem se apresentado como uma deliberação educativa e crítica voltada à construção da hegemonia dos setores subalternos da sociedade. Quanto ao segundo aspecto, que é a ênfase na construção do partido político como intelectual coletivo, a contribuição desses projetos aparece, talvez, de forma indireta, considerando que a universidade pública com suas atividades rotineiras não interfere nessas questões. Além do mais, em virtude da heterogeneidade de classe no seu interior, pode-se perguntar qual seria o partido que ela poderia ajudar a construir. Pelas relações de forças existentes no seu interior, não seriam partidos comprometidos com as classes trabalhadoras. Contribui, contudo, para uma maior projeção política do Sindicato da Construção Civil, com a sua inserção nos diversos movimentos sociais que se têm manifestado na cidade de João Pessoa. Os demais projetos não têm se voltado para essa questão como uma decisão política deliberada dos membros de equipes envolvidas. O exame do processo da construção de hegemonia como reforma intelectual e moral merece alguns detalhamentos. Esse movimento de construção de hegemonia precisa ser analisado como processo que se realiza na prática política. Nessa perspectiva, a hegemonia se apresenta de forma mais explícita como uma função “eminentemente pedagógica, enquanto processo de constituição ideológica das classes subalternas, que se realiza tanto para afirmar a direção dessas classes quanto para superar a sua condição de subalternidade, construindo uma nova ordem social”(Ibid., 79). Esse caráter pedagógico não significa, em nenhum momento, que se está reduzindo a compreensão do pedagógico à dimensão da escola. O conjunto de relações em que as novas gerações entram em contato com as mais antigas e destas vão absorvendo suas práticas, visões, valores e experiências transpõe a dimensão meramente escolar. São relações históricas de que participam intelectuais, não intelectuais, Estado, elites e seus seguidores, trabalhadores, aparelhos de hegemonia, dirigidos e dirigentes. São, portanto, relações no interior da sociedade. Essa dimensão alcança uma percepção mais rica dentro dos projetos analisados em que se manifestam lutas ideológicas e tentativas de superação, seja entre os trabalhadores da construção civil, trabalhadores da área de saúde ou trabalhadores rurais ou urbanos (Projeto Qualidade de Vida). Tem havido eventos que vão demonstrando o rompimento com a dominação ideológica entre trabalhadores que estão mais em torno desses projetos. Sabe-se que o rompimento só ocorre definitivamente com as transformações econômicas, apesar de que não 353
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depende exclusivamente destas. Várias são as manifestações presentes nesses projetos em que foram externadas visões de mundo fora do controle da burguesia, produzidas por trabalhadores que também se tornam filósofos, segundo Gramsci. Isso ocorre quando se manifestam em relação ao mundo, veiculando sua visão de mundo, sendo implícita também a sua ideologia. Esta vem sendo expressa entre os trabalhadores de diferenciadas formas. Por isso há grande cuidado por parte dos membros de equipes desses projetos quanto à observação atenta das suas formas de falar e de gesticular. Sua visão de mundo e sua ideologia aparecem nas suas crenças, no seu bom senso, no senso comum das pessoas, nas superstições, nas opiniões e nos modos de ver e de agir diante do mundo. Os seus códigos lingüísticos são outros e é preciso estar atento a isso quando se trata de trabalhos de extensão, de pesquisa ou mesmo de ensino. Os recursos utilizados por eles nesses códigos se exteriorizam normalmente em expressões concretas e, de forma concisa, através do olhar e de diversos gestos que precisam ser traduzidos em cada contexto cultural onde se desenvolve o projeto. Essas expressões, por sua vez, causam dificuldades ao se buscar um significado mais adequado, considerando que normalmente os pesquisadores e as equipes de extensão não vivem no local e só compartilham algum tempo com essas pessoas. Tais dificuldades vão aparecer em todo e qualquer projeto que busque reconhecer formas culturais nas comunidades e que estejam fora dos padrões dominantes. Um trabalho que é o de reconhecimento de elementos da cultura que não seja os da classe dominante. Nesse sentido, é que BOSI (1982: 27) destaca a importância de se ter a fadiga como elemento presente nessa construção cultural e na sua poesia, possibilitando uma maior compreensão por parte do trabalhador. É sobre esse conjunto interpretativo e de ação sobre o mundo que se pode conhecer a complexidade de suas visões e a elaboração ideológica dessas pessoas, inclusive, a que grupos sociais pertencem. A compreensão desses fatores que envolvem as relações sociais e o exercício de elaboração crítica tem sido presenciada nos projetos, particularmente, Zé Peão e Praia de Campina. A percepção de que o homem é um produto de sua história é, também, uma marca inicial dessa elaboração crítica. A hegemonia como expressão de uma reforma intelectual e moral se constitui na criação de homens que sejam capazes de pensar o real presente de modo unitário e dessa forma construir cultura, tornando-a patrimônio de todos. Para GRAMSCI (l981: 4), “este é um fato filosófico bem mais importante e original do que a descoberta, por parte de um „gênio filosófico‟ , de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais”. Nessa direção é que vem sendo desenvolvido um conjunto de atividades nesses projetos, que parecem estar contribuindo para o exercício do pensar criticamente a realidade desses trabalhadores. Essa reflexão é que fundamenta a compreensão gramsciana de filósofo, sendo possível a afirmação de que “todos os homens são filósofos” , considerando-se que em qualquer atividade intelectual há uma visão de mundo. Mas existe uma diferenciação entre os filósofos que estão no nível da elaboração crítica realizada por cada um. Há diferenças entre a filosofia e o senso comum. Ambos expressam visões de mundo ao se manifestarem como fenômenos históricos, porém são diferenciados quanto ao nível da crítica que cada um desenvolve. A filosofia se desenvolve enquanto crítica do senso comum que passa pela elaboração “individual” e também se constitui na luta para transformar a mentalidade popular buscando “verdades” que se firmaram historicamente. Pode-se afirmar que nos projetos aqui analisados não há propósitos programáticos e deliberados que busquem o exercício crítico permanente das situações vivenciadas, mesmo que, de certa forma, essas atividades se constituam em ações organizativas. Pensar a escola dentro do canteiro de obra, pensar a organização da terra coletivamente ou trabalhar em mutirão para o plantio em terras adquiridas na luta são atividades que expressam e possibilitam, mesmo que parcialmente, exercícios críticos sobre a 354
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realidade. Os projetos (com menor intensidade, nessa direção, o Projeto Qualidade de Vida) têm possibilitado, mesmo assim, alguns exercícios de reflexão. Contudo, a construção da hegemonia dos setores subalternos da sociedade está associada ao desenvolvimento de novo projeto cultural, mesmo que se coloque no terreno econômico, propiciando a elaboração de outra visão de mundo e em combate a toda a lógica do capital. O processo de construção de hegemonia dos setores subalternos da sociedade passa pelas dimensões da consciência de classe e da organização. Essa consciência vincula-se necessariamente à atividade material e coletiva dos homens/mulheres. Não dá para compreendê-la de forma isolada ou fora do conjunto das relações sociais. Enquanto isso, do ponto de vista intelectual, o que fundamenta a ação organizativa revolucionária é também a realidade histórica. Nesses projetos há relações que se movem na busca da ampliação da hegemonia desses setores subalternizados, destacando os aspectos intelectual e moral . Mesmo assim, pode-se afirmar que não respondem aos dois níveis distintos e que se interpenetram na direção da hegemonia, apontados por Lowy (l962: 139) : “a) Uma análise e previsão de processos histórico-sociais em curso, sobretudo o da emergência da consciência de classe do proletariado (sua estrutura interna, determinantes, etc., ; b) um plano de organização do instrumento de ação revolucionário (o partido) e de coordenação de suas relações com o conjunto da classe operária, tendo em vista a concretização do programa comunista de mudança social”. Parece que a ausência de um propósito organizativo nas formulações dos projetos de extensão, a reflexão crítica sobre a política partidária nas equipes e nos comunitários e mesmo na equipe total de cada projeto e, sobretudo, o caráter do aparelho(a universidade) da hegemonia dominante em uma sociedade de classe dificultam e distanciam as possibilidades de ampliação de hegemonia dos setores subalternos da sociedade. Nesses projetos existem ações que estão voltadas ao processo organizativo das classes trabalhadoras, mas não existe busca pela hegemonia daqueles setores, onde todos tenham clareza política de que hegemonia se constitui em um processo e que, portanto, as atividades imediatas são apenas possíveis como início de um projeto político mais amplo. Além disso, é preciso clareza no sentido de compreender que esta é uma disputa política no interior da universidade, no terreno da sociedade civil, que atinge os aspectos da vida e do pensamento de uma comunidade, conseqüentemente de uma sociedade. Além do mais, não se pode esperar que caiba à universidade a construção da hegemonia dos setores subalternos dessa sociedade de classe. Além disso, a hegemonia como processo se efetiva no interior das classes e entre classes diferenciadas; especifica relações de direção e de domínio de setores de classes sobre grupos afins e entre classes. Hegemonia em processo instaura uma coesão de classe, bem como uma adesão entre classes, manifestando-se pela direção, através da persuasão e da ideologia, bem como pelo domínio, através da dimensão coercitiva. Considerando-se a ampliação da hegemonia entre os setores subalternos como uma possibilidade e um objetivo, constata-se que esses projetos de extensão universitária estão muito distantes, pelo menos ainda, nas suas formulações de um processo hegemônico desse tipo, apesar de que em suas práticas muitas ações imprescindíveis são encaminhadas no sentido da ampliação de um processo de hegemonia entre os setores subalternos da sociedade. 355
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Um exemplo dessas atividades é a promoção de vários seminários por parte de entidades não-governamentais e da universidade, em que se discute a extensão universitária e a organização dos trabalhadores. Uma dessas entidades, por exemplo, é a organização nãogovernamental Equipe Quilombo dos Palmares (EQUIPE), responsável pela formação política e pela pesquisa para a Central Única dos Trabalhadores no Nordeste. A universidade e a EQUIPE realizarão juntas, neste ano de l997, o IV Seminário Fazer Acadêmico e Movimentos Sociais no Nordeste, expressando a busca de conhecimento da realidade nordestina, ao desenvolverem pesquisa para subsidiar as lutas dos trabalhadores da região. Ora, comparando-se a situação existente no início desses projetos com o nível de atividades que vêm sendo desenvolvidas, nos dias de hoje, pode-se comprovar que essas experiências de extensão vêm promovendo um movimento de ampliação dos sujeitos históricos com suas práticas que também incentivam outras categorias a se organizarem. Com certeza não estão apresentando a intensidade que se espera. É de se destacar que também buscam novos aliados, particularmente dentro da mesma classe. Há finalmente a ampliação do “tempo social”, isto é, a teoria da hegemonia sustentada num arcabouço teórico perfeitamente útil para a análise dessas situações vivenciadas mesmo para os dias de hoje. As crises que envolvem a contemporaneidade, por certo, abrangem as formulações mais diferenciadas nos campos teóricos. Contudo, essas experiências têm possibilitado sua utilização para análise. As categorias gramscianas têm mantido o seu valor enquanto contribuem para a compreensão do passado. Hoje, a exemplo do que ocorre nessas experiências, projetam indicações para a formulação de estratégias em busca de uma democracia que possa atender aos anseios das maiorias subalternas da sociedade.
2 - Para uma reconceituação da extensão universitária enquanto trabalho social Caminhos para um conceito
Uma leitura mais atenta nos dados dos projetos apresentados e a participação em várias de suas atividades - a atuação em comissões de seleção de projetos de extensão, em seleção de alunos bolsistas para fazerem parte das equipes de projetos de extensão desenvolvidos pela Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários (PRAC) - possibilitam uma reflexão crítica sobre os conceitos de extensão, que vêm sendo assumidos pela universidade. A preocupação maior que lastreia tal reflexão é a possibilidade de elaboração de outro conceito que contemple a perspectiva da construção de hegemonia das classes subalternas. O envolvimento com as atividades de seleção de projetos de extensão e de seleção de alunos para atuarem nesses projetos facilita a apreensão de vários conceitos externados e que estão fazendo parte das compreensões dominantes sobre extensão universitária. Uma dessas concepções afirma ser a extensão algo “enriquecedor” para os objetivos da universidade. Observa-se nessa compreensão que, primeiro, não são colocados os objetivos da universidade e muito menos se esclarece de que forma acontece esse enriquecimento, se é monetário, teórico, prático ou outra alternativa. Esta é uma formulação que permanece vaga, vazia de conteúdo e de sentido, no que tange ao conceito de extensão. Existem concepções do tipo: “a extensão promove o conhecimento”. Nessa mesma linha se questiona que tipo de conhecimento está sendo promovido, bem como quem está sendo beneficiado com ele. 356
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A extensão também é vista como expressão do “retorno à sociedade daquilo que esta investe na universidade”. Embute-se uma compreensão de troca entre a universidade e a sociedade, em que aquele precisa devolver a esta tudo que está sendo investido. A possibilidade de execução dá-se através da extensão. Essa visão coloca a universidade numa situação de devedora da sociedade, com isso fragilizando-a nessa relação. Nesse sentido é que não se determina o lugar específico pelo qual se prevê a “devolução” daquilo que seria devido. Um outro aspecto é o fato de que se estabelece esse lugar como se fosse a extensão. Por que não se propõe que seja pelo ensino ou pela pesquisa? Ou talvez, não seria a política do toma-lá-dá-cá, instalando-se na universidade? Define-se extensão “como um meio que liga ensino e pesquisa”. Imagina-se que um ente concreto liga os dois outros constituintes: ensino e pesquisa. Contudo, o ensino e a pesquisa também podem constituir esse ente. Mas será necessário que se saiba o significado de meio que é colocado nessa conceituação. Será o meio um instrumento com o qual se pode chegar a outras conjecturas sobre extensão? Será um instrumento com o qual se domina a própria extensão, o ensino ou a pesquisa? E mais: quais as outras possíveis conjecturas? Será o meio o intermediário para se chegar ao ensino e à pesquisa? Precisa-se desse meio? Extensão é apresentada ainda como “uma forma de corrigir a ausência da universidade na problemática da sociedade”. A extensão, aqui, se externa como forma. Terá essa forma um conteúdo? Se houver, a questão a ser posta será : E qual é o conteúdo dessa forma? Mas a formulação vai mais além. Nessa compreensão considera-se a universidade como ausente dos problemas da sociedade. É verdade que ela está ausente de vários problemas, mas é também verdade que se faz presente em outros tantos problemas. No campo das Ciências Sociais, por exemplo, por que nos cursos de graduação não se estuda “Brasil” ou “América Latina”? Em tantos cursos de Medicina não se estudam as doenças tropicais. Essas mesmas indagações podem ser feitas em relação à pesquisa. A universidade estará presente, todavia, naquelas temáticas que os setores dominantes definirem para que sejam submetidas ao ensino e à pesquisa. Os órgãos financiadores de pesquisa são os definidores do lugar onde deve estar a pesquisa da universidade. Durante a realização do XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste, a extensão foi considerada “um nascedouro e desaguadouro da atividade acadêmica, da qual a pesquisa seria o desenvolvimento das respostas, e o ensino o envolvimento dos estudantes em todas as etapas desse processo ...”1. Ao considerar a extensão como nascedouro e desaguadouro de atividades, esta visão simplesmente a elege como a origem e o fim das atividades acadêmicas. Parece muito mais um procedimento idealizado quando destina esse papel para a extensão. Há de se perguntar: A origem da problemática da pesquisa não passa pela realidade circundante do pesquisador? Será obra de mera idéia gerada de sua própria “genialidade” ou de circunstancial “inspiração”? O ensino envolvido pela perspectiva apresentada não poderá ter origem a partir de elementos da realidade? De que forma a extensão se propõe a ser nascedouro e desaguadouro de toda e qualquer atividade acadêmica? Essa formulação inspira Pró-Reitores para veicularem a compreensão de extensão como “a porta na qual os clientes e usuários têm de bater, quando necessitados”. Materializa-se a extensão, extraindo-se o véu metafísico que a envolvia anteriormente para uma base real ao tornar-se um ente concreto. Todavia, a presença de uma porta pressupõe a existência de uma divisão, sendo esta o divisor entre o “dentro” e o “fora”. Pressupõe-se, em decorrência das formulações até então apresentadas, que a ______ 1. . Conceito apresentado no XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste. Natal, l995.
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universidade deva estar do lado de dentro e o algo de fora deve ser a sociedade. Mais uma vez, se isto é verdade, mantém-se o mesmo viés da visão na qual a universidade se constitui numa instituição descolada da sociedade e esta, por sua vez, desvinculada da universidade. Em grande medida a extensão vai sendo veiculada como prestação de serviços. Ora se torna estágio, quando atrelada a programas de governo; ora, se torna uma forma de captar recursos; ora, por meio dela, se busca estudar problemas da realidade. O mais curioso é que extensão muitas vezes é considerada como uma espécie de sobra na universidade, podendo ser tudo aquilo que não se identifique como atividade de ensino ou de pesquisa. Para ROCHA (l980), todas essas expressões são “equivocadas”, na compreensão do que seja extensão. Segundo ele, é melhor pensar a extensão por meio da comunicação, considerando esta comunicação numa perspectiva freireana, em que a sua sustentação decorre do processo dialógico. Colocada a existência do diálogo, é preciso, porém, perguntar com quem o diálogo se faz. Será que não permanece, nessa formulação, a divisão entre a sociedade e a universidade, mesmo que ambas possam existir se distanciando e se aproximando como resultado desse diálogo? Como se dá esse diálogo comunicativo? Existe uma ação comunicativa habermasiana nessa compreensão, onde a busca principal se constitui no consenso como mecanismo último da organização da sociedade? Esse diálogo proposto como estratégia para a convivência social suportará a coexistência consensual em uma sociedade de classes? Pode-se ainda recuperar nessa revisão a formulação de extensão universitária produzida pelo I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas. Nele foram apresentados vários aspectos úteis para uma compreensão da extensão universitária e que merecem destaque, como por exemplo: a extensão se constitui como processo educativo, cultural e científico. Parece interessante ter como ponto de partida para uma análise sobre o conceito de extensão a idéia de que o que existe na extensão é um processo. O Fórum caracteriza esse processo como via de mão dupla. Aí pode-se questionar o uso da idéia de via, considerando que essa simbologia cai também na dificuldade de compreensão da existência da instituição universitária como integrada à sociedade. Essa via de mão dupla da extensão teria o papel de manter a interligação entre ambas. Esse movimento de vai e vem, na formulação do Fórum, viabiliza a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade, ou seja, no buscar e levar conhecimento. Ora, será que a democratização do conhecimento, mesmo aquele acadêmico, resolve-se simplesmente pela extensão nessa perspectiva de mão dupla? Parece que não. A questão da democratização do conhecimento envolverá a produção e a posse dos resultados, constituindo-se, dessa forma, numa questão muito mais abrangente e complexa do que aquela colocada na formulação do Fórum. O conceito de extensão não pode fixar-se como uma via de mão única, considerando que nessa compreensão está implícita a concepção autoritária do fazer acadêmico, onde a universidade “sabe” e vai levar algum conhecimento àqueles que “nada sabem”, a classe trabalhadora. A concepção de extensão como via de mão dupla separa o processo educativo da própria educação, o processo cultural da produção da cultura, bem como o processo científico da própria ciência. Pode-se questionar a constituição dessa articulação ou perguntar quais os interesses que se manifestam na sua realização. Será a extensão algo ideal, capaz de viabilizar uma relação transformadora, como propõe aquele conceito? Em uma via de mão dupla, há um momento de tensão nesse passar de algo que vem em uma mão, por algo que vem em “sentido” contrário. Será esse o momento da extensão? Mas de que se constitui esse momento? Em geral as ultrapassagens no mundo físico, seguindo a simbologia das vias apresentadas, são muito rápidas. Extensão é apenas um rápido momento ou busca-se a sua permanência, considerando-se a idéia de processo? Talvez, visualize-se uma mão que segura 358
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outra. Essa simbologia já foi bastante utilizada, na década de 60, sobretudo nos tempos da Aliança para o Progresso, prestando-se para a ideologia do desenvolvimento. Mesmo a concepção da mão que segura a outra não garante permanência. Essa simbologia parece conduzir, por conseguinte, à monotonia e à estabilidade. Assim, essas situações não combinam com o conceito de processo, que é dinâmico. Extensão será expressão de monotonia? A compreensão de extensão, como via de mão dupla, destaca um retorno dos conhecimentos para a universidade, como se aí estivesse o único espaço para a reflexão teórica. Será que apenas na universidade é que está sendo gerada a reflexão teórica? Os participantes das ações de extensão promovem sua reflexão crítica e desta têm necessidade. Não estará sendo gerada uma dicotomia, inclusive espacial, da condição de reflexão teórica, ao transladá-la para o espaço da universidade? Pode-se até perguntar: Será a universidade o lugar, por excelência, para a reflexão teórica? Não seria esse espaço o próprio “locus” de realização das atividades de extensão? Ainda na compreensão da extensão, como via de mão dupla, afirma-se que a produção de conhecimento é resultante do confronto com a realidade, seja brasileira, regional, .... enfim, confronto com a realidade. Será que, somente dessa forma, ocorre a geração do conhecimento? A quem interessa esse conhecimento produzido numa ação de extensão? Contudo, na perspectiva conceitual do Fórum, convém retomar a idéia de que “... extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social”(BRASIL/MEC, l987: 1). Esta é uma formulação interessante que traz o trabalho como uma preocupação conceitual. Um trabalho que pode, perfeitamente, servir à concepção integradora de sociedade. Portanto, a extensão terá o papel integrador e, além disso, poderá ser um instrumento integrador da sociedade. Esse tipo de trabalho não condiz com o tipo de sociedade que interessa aos setores subalternos da sociedade. Mas, o conceito de trabalho poderá ser útil para se discutir uma perspectiva diferenciada da extensão voltada ao trabalho. O conceito de extensão carece da presença da crítica como ferramenta nas atividades que o constituem. Esse conceito traz, em si, a dimensão de superação do “senso comum”, ao expor, explicar ou mesmo tomar contato com os elementos da realidade. Elementos que são gerados de formulações abstratas, sim, mas tendo na realidade, no mundo concreto, a anterioridade de suas bases analíticas; a compreensão de que nesse movimento de análise da realidade, um segundo movimento tem continuidade no campo das abstrações, em busca de elementos mais abstratos, permeados, entretanto, pelo concreto inicial e, finalmente, através dos recursos expostos por essas abstrações, seja possível criar um novo concreto, permeado das abstrações anteriores, um concreto pensado. Nesse percurso, a crítica tem papel determinante, pois, além da superação do “senso comum”, também é propositiva. Busca a superação das dimensões do estabelecido, considerando, por exemplo, que “as relações de classe não são espontaneamente transparentes ao nível da experiência „imediata‟, da experiência „vivida‟ - aquela experiência que é simplesmente um reflexo sobre a vida cotidiana” (PRZEWORSKI, 1989:122). Para se conhecer essas relações, torna-se necessário o exame da crítica. Este possibilita ir além da experiência vivida pelas equipes e comunitários, superando esse “reflexo” primeiro da experiência. A crítica é necessária, pois perscruta essas relações e, além do mais, assume seu papel transformador. A extensão pode ir além de um trabalho como o proposto pelo conceito do I Fórum de Pró-Reitores. Esse trabalho tem uma dimensão educativa e precisa, conseqüentemente, ser “qualificado”. Esse direcionamento conceitual é manifestado ao nível dos projetos analisados. Observe-se que os indicadores em torno dessa perspectiva apresentaram percentuais elevados nos projetos CERESAT e Zé Peão, particularmente entre os executores, com percentuais de 63% e 61%, respectivamente. Entre os coordenadores do Projeto Praia de Campina, atinge-se o índice percentual de 47% e entre os executores, 13%. No Projeto Qualidade de Vida, essa 359
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concepção se expressa entre os coordenadores com 13%, um índice também importante, considerando ser este um projeto da área tecnológica. Retomando-os, pode-se destacar a universidade sendo vista em outra perspectiva, por outros entrevistados. É entendida, por outro lado, como responsável por um “trabalho para fazer com que os alunos assimilem um conhecimento pela inserção na realidade em que estão vivendo e que esses conhecimentos digam alguma coisa para o nosso momento atual”1. Essa mesma visão concebe a universidade como responsável por um trabalho que possibilite o exercício da função de “ligar o ensino e a pesquisa com a realidade”. A extensão é vista como responsável pela saída dos muros da universidade. Constrói problemas a partir da discussão da realidade em que está se inserindo e vivenciando. Extensão como uma busca não só de explicações teóricas mas também de respostas àquelas necessidades imediatas de setores da sociedade. Nesse sentido, a extensão se torna: “Um trabalho. Um trabalho que não tem um tempo definido mas está dentro de uma perspectiva de trabalho permanente, trabalho continuado” 2 . Tem-se dessa maneira não apenas uma perspectiva diferenciada daquelas até então apresentadas, como também se vai qualificando o tipo de trabalho que está sendo desenvolvido pelas atividades nos projetos em andamento. Para alguns entrevistados, a preocupação conceitual é desnecessária, porém mesmo estes identificam a extensão com as próprias atividades que desenvolvem nos projetos e as consideram como trabalho. “Penso extensão como o trabalho a partir daquilo que a gente faz. Acho que é a partir daquilo que cada grupo faz que, na verdade, vai se constituindo o que a gente chama de extensão-universidade ...”1.
________________ 1. 2.
Membro da equipe da PRAC. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro da equipe de projeto CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa.
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Veicula-se, em alguns projetos de extensão, uma perspectiva de extensão necessariamente gerada a partir das atividades em desenvolvimento e sem estar prisioneira de qualquer formulação idealista. O ponto de partida dessa perspectiva é a realidade concreta ou o concreto real que, submetido à análise da teoria, da abstração, vai possibilitando que se vislumbrem outras possibilidades ideológicas da extensão. Expressa-se ainda da seguinte forma: “ Extensão como trabalho que envolva pesquisa e um trabalho que tenha uma finalidade social bastante definida” 2. Assim, enfatizando-se outras possibilidades de realização para a extensão universitária, esta pesquisa aponta um conjunto de elementos teóricos que podem constituir uma dimensão de trabalho que seja adequada à questão, do ponto de vista das classes subalternizadas. Esse trabalho, por exemplo, se realiza junto com a comunidade ou com os grupos da comunidade que vivenciam o projeto. Aqui se pretende destacar a não existência da dicotomia entre universidade e sociedade ou comunidade. A universidade existe como instituição da sociedade. A universidade é parte da sociedade. Ambas se diferenciam, mantendo cada uma as suas peculiaridades. Entretanto, não existe a visão dualista de que, de um lado, está a universidade e, de outro, está a sociedade, confrontando-se ou não. Sendo trabalho, a sua efetivação gera um produto que transforma a natureza, na medida em que cria cultura. É um trabalho imbuído da sua dimensão educativa. O produto desse trabalho, todavia, passa a pertencer tanto às equipes de projetos de extensão como também à própria comunidade ou aos grupos ___________ 1.
2.
Membro da equipe do projeto CERESAT. Texto da entrevista para esta pesquisa. Membro da Direção da Universidade. Texto de entrevista para esta pesquisa.
comunitários para aplicação na organização dos movimentos. Tanto a comunidade como a universidade ou os movimentos sociais são os proprietários do produto desse trabalho. A extensão, marcada por essa dimensão do trabalho será produtora de cultura, estabelecendo pelo trabalho a possibilidade de conhecimento do mundo onde o indivíduo atua. Essa dimensão da extensão, em que o produto seja pertecente aos movimentos sociais e à universidade, possibilita a superação da alienação gerada pela não posse do produto do trabalho por seus produtores, no modo de produção capitalista. Todos os produtores se apropriam desse produto do trabalho, que é o saber. Esse trabalho deve apresentar ainda a dimensão do desenvolvimento da comunidade. Não é a produção de algo para manter-se guardado e reservado a uns poucos privilegiados. A apropriação do saber gerado deve ser possível a todos os produtores. Esse trabalho se caracteriza como um espaço de atuação de todos os que buscam a organização de seus grupos, de sua comunidade ou de sua classe. Um espaço onde existem processos de realimentação dos conhecimentos que estão sendo produzidos e outros que são gerados a partir desses últimos. Esse trabalho deve expressar, necessariamente, uma relação íntima entre a teoria e a prática social em desenvolvimento. O trabalho que se presta para esse conceito se constitui em um processo educativo das comunidades e das classes subalternas. É também um processo cultural, produtor de conhecimento científico e, ao mesmo tempo, produtor de consciência política para a ampliação da hegemonia dos setores subalternos da sociedade. 361
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Uma questão necessariamente se põe: Que qualificativos deve ter o substantivo trabalho para poder atender a essas exigências e tornar-se o fundamento do conceito de extensão? É importante ver que o trabalho, como dimensão educativa pertence a instâncias fundamentais na vida da sociedade. É pelo trabalho que o ser humano assegura as condições materiais de sua subsistência. Já pela educação, em seu sentido mais amplo, se garante a preservação dos conhecimentos do passado, que são transmitidos às novas gerações, num processo de acumulação de conhecimentos, essencial à qualidade de vida material e espiritual da humanidade, que mantém a sobrevivência da espécie. O estudo conceitual do trabalho na sociedade capitalista foi apresentado, inicialmente, por Adam Smith. Mas é em Marx, em seu livro O Capital, particularmente no Volume I, que se apresenta o trabalho, inicialmente, na perspectiva natural, considerando-o como uma relação do homem com a natureza. Contudo, desde esse início, ele apresenta o trabalho como um processo. “Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (MARX, 1983: 149). Mas o homem, diferentemente dos outros animais que se guiam pelo instinto, atua sobre a natureza de forma diferenciada, modificando-a e modificando também a si mesmo. É esta situação que o distingue dos demais animais, ao superar a condição de animalidade de sua espécie. Também, a partir das análises realizadas nos projetos de extensão da UFPB, parece que o trabalho deve ser considerado como categoria fundamental para a rediscussão e reconceituação da extensão universitária. Ao defrontar-se com a natureza, o homem realiza, a partir dela própria, uma síntese do particular com o universal. É o trabalho que possibilita o significado da ação social, suas limitações, suas possibilidades e conseqüências sem nenhum recurso metafísico. Mesmo sendo um ponto de partida, é sobre essa base natural do trabalho que se elevam as relações sociais da espécie humana. O trabalho se torna uma relação social já a partir da relação estabelecida com a natureza. Em Marx, vai se observar que esse estabelecimento das relações sociais na produção indica o caráter social, indissociável, que acompanha o processo de trabalho. À medida que a extensão universitária pode ser apresentada como um trabalho, exige-se desse trabalho a superação da simples relação primeira do homem com a natureza. O trabalho realiza-se como processo constituído através das relações sociais - trabalho social. A atividade orientada nos projetos de extensão analisados passa pela produção do conhecimento como uma necessidade humana, indispensável a esse “metabolismo” entre o homem e a natureza, como dimensão do social. No modo de produção capitalista, os conhecimentos do processo de trabalho, que antes estavam sob controle de indivíduos como os artesãos, se tornaram capital. FLEURY (l990: 129) afirma: 362
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“A totalidade do processo, as condições que lhes dão sentido, somente são apreendidas a partir do ponto de vista dos capitalistas, e o conhecimento passa a ser uma propriedade exclusiva deste grupo social, e como tal, uma das suas grandes fontes de poder na sociedade”. A possibilidade de se entender extensão como trabalho social opõe-se à visão fragmentada do trabalhador em relação ao processo produtivo, no modo de produção capitalista, determinada pela divisão social do trabalho. O conhecimento da totalidade do processo é transferido para o capital, representado sobretudo, pela classe social dominante: a burguesia. A posse desse conhecimento reforça as estruturas de dominação que estão inseridas nas relações sociais de produção e também vai garantir, pelo lado do capitalista, a reprodução das relações de produção, considerando que o modo de produção capitalista se funda na separação entre a propriedade do trabalho e a dos meios de produção. Essa separação também impõe ao trabalhador a manutenção de sua posição na estrutura das relações de produção, considerando que a sua sobrevivência estará garantida enquanto ele estiver fornecendo ao mercado a sua força de trabalho, já que esta é seu único bem disponível. A extensão expressa pela realização do trabalho social pode efetivar e desenvolver entre os participantes a necessidade da conquista de cidadania. Uma cidadania cujo significado deve estar bem “cristalino” na perspectiva de que seja um processo de formação de cidadão crítico, enquanto consciente como sujeito de transformação, e também ativo, superando o idealismo contemplativo e interpretativo da natureza. Um trabalho social não se exerce apenas a partir dos membros da comunidade universitária, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade que é a participação dos membros da comunidade com os movimentos sociais, dirigentes sindicais, associações, numa relação “biunívoca” para a qual confluem membros da universidade e participantes desses movimentos. Extensão, como trabalho social, passa a ser agora exercida pela universidade e pela comunidade sobre a realidade objetiva. Um trabalho coparticipado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho onde se buscam objetos de pesquisa para a realização da construção do conhecimento novo ou novas reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados são também os constituintes de outra dimensão da universidade: o ensino. Portanto, a extensão é um trabalho que se realiza na realidade objetiva, sendo exercido por membros da comunidade e membros da universidade. É um trabalho de busca de objeto para a pesquisa e também para o ensino. Como trabalho social, a extensão se expressa sobre a realidade objetiva. Essa relação é responsável pela geração de um produto resultante da parceria com a comunidade cujo resultado a ela deverá retornar. Esta é outra dimensão fundamental caracterizada como devolução de suas análises da realidade objetiva à própria comunidade ou a seus movimentos organizados. A devolução dos resultados do trabalho social à comunidade caracteriza a universidade como possuidora de novos saberes ou saberes rediscutidos, os quais serão utilizados pelas lideranças em seus movimentos emancipatórios e reivindicatórios. Isso faz acreditar na extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica, também fundamental, que é a busca de superação da dicotomia entre teoria e prática. Há, então, possibilidade de direcionarem-se projetos para a ampliação da hegemonia voltada aos setores subalternos da sociedade, contribuindo para o desvelamento das ideologias dominantes e construindo uma nova estratégia da função social, ou mesmo uma condição de serviços de extensão a favor da cultura das classes subalternas. Aparelhos de hegemonia permeados de suas contradições e 363
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seus conflitos possibilitam expectativas para esses setores de classes. Este é mais um papel do aparelho de hegemonia - a universidade - que, através da extensão, pode também direcionar a pesquisa e o ensino para um outro projeto social.
CONCLUSÕES O estudo que vem sendo apresentado sobre a extensão universitária teve início com a apresentação dos principais projetos de universidade em discussão no Brasil, o projeto defendido pelo governo e aquele outro projeto que busca reconstruir esse aparelho de hegemonia, de modo a que este não seja reduto exclusivo da ótica do capital, como propõe o governo, mas que abrigue também a ótica dos setores subalternizados da sociedade. O percurso analítico desenvolvido neste trabalho, através da teoria da hegemonia e da ferramenta metodológica da dialética materialista, necessariamente retoma a discussão sobre a temática geradora do problema, objeto deste estudo: a questão da universidade. Com base nesse crivo teórico-metodológico, questões maiores podem ser vistas sobre a universidade no Brasil e nos demais países do mundo “subdesenvolvido”. Isso possibilita o conhecimento da profundidade e do volume das tarefas que estão depositadas naqueles que assumem a perspectiva de dominados e que procuram contribuir para a organização dos setores subalternos da sociedade, inclusive através do trabalho profissional exercido na universidade. A análise dos projetos de extensão sob a perspectiva crítica e a possibilidade de se pensar extensão como um trabalho social abre entendimentos de como as atuais políticas, hegemônicas na sociedade, se fazem presentes e mesmo dominam esse aparelho de hegemonia, o que se reflete na prática usual da extensão universitária. Há de se perguntar que elementos teóricos da política surgem em trabalhos dessa natureza. E, também, que elementos filosóficos estão substanciando as atuais políticas, replicando no trabalho de extensão. A resposta a essas questões exige o conhecimento das políticas, reconhecidamente neoliberais, que estão sendo implementadas no país, de diferenciadas formas, e que de certa maneira já vinham sendo propostas em décadas anteriores. Hoje estão mais visíveis, com “ímpeto avassalador”, em decorrência das condições objetivas que estão postas e que são profundamente desfavoráveis para os setores críticos dessas políticas. Esses setores assumem posturas de resistência diante do que vem sendo implementado pelo governo. O liberalismo configura-se como uma tradição que vem se definindo desde a segunda metade do século XVII e durante o século XVIII. Como uma visão capitalista do mundo, vem tendo diferenciações no decorrer do percurso histórico. Decerto, como toda formulação teórica que se pretende hegemônica, o liberalismo tem apresentado, também, “plasticidade” conceitual, tendo atualmente assumido uma nova forma, que vem sendo denominada “neoliberalismo”. O liberalismo é uma filosofia, no sentido gramsciano do termo, isto é, um pensamento que engloba um arco de uma época e que, por si mesmo, se torna capaz de organizar toda uma civilização. Mesmo na efetivação de projetos como os que foram apresentados nesta pesquisa, é possível ver a força desse ideário através das decisões tomadas, das posturas políticas dos agentes desses projetos e das próprias políticas da universidade, em andamento. O liberalismo expressa, de forma articulada, uma concepção de economia, política, história e ética. É uma síntese do racionalismo enquanto elege a razão e 364
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não a fé como meio de conhecimento e guia de conduta; do naturalismo tendo o homem inscrito no “estado de natureza” e não na ordem divina; e do individualismo ao fazer críticas ao ideário do homem da Idade Média e sua organização social. Essa síntese cultural apresenta-se com um “núcleo rígido” constituído da defesa intransigente da propriedade privada, do mercado e da acumulação capitalista. Particularmente o mercado que, se já era anunciado como o centro na formulação liberal, agora se transforma na sua nova deusa. Exacerba esse conceito gerando uma leitura economicista do mundo que se pretende única e verdadeira. Atualmente, cada vez mais se observa, do ponto de vista político, um deslocamento para a direita em nível internacional, reforçado pelos resultados políticos do Leste Europeu e dos Estados de Bem-Estar Social na Europa. As políticas do “neoliberalismo” vêm se fortalecendo e atacando a política keynesiana, o distributivismo do Estado de Bem Estar Social (com a denúncia da crise fiscal), o gigantismo estatal, acusando-o de burocrático, ineficiente e, sobretudo, os “excessos” de democracia que abrem um exagero de demandas (reivindicações ou mesmo apropriação por setores) sobre o Estado. Em um segundo momento se torna propositivo em torno de alguns temas como privatização, desregulamentação, diminuição dos impostos e encargos sociais, internacionalização da economia, bem como autonomização dos governos frente ao controle democrático. E ainda: o neoliberalismo pretende tornar-se a última e mais avançada organização da história da sociedade - o fim da história - e dessa maneira aniquilar todo e qualquer pensamento crítico. O trabalho desenvolvido em projetos de extensão sofre o impacto dessas políticas em andamento no país, em particular, na universidade. Nesses projetos e nos contatos com as comunidades, elas se externam de diferenciadas formas, desde dificuldades de instrumentos para efetivarem os projetos até, e sobretudo, a questão do individualismo que vem impregnando cada vez mais pessoas alcançadas por esse ideário. Cada dia se torna mais difícil a defesa de “bandeiras” éticas, como as da solidariedade, preocupações com a coletividade, tolerância e respeito às pessoas. Os participantes desses processos não podem deixar de conhecer as formulações políticas dominantes atualmente na sociedade e precisam fortalecer-se teórica e politicamente, para tentar diminuir o risco de, com a sua ação ou a sua omissão, deixar ainda mais “o campo aberto para os burgueses”. A realidade dos projetos analisados exibe, na verdade, um mundo injusto, violento e profundamente instável. O que está ocorrendo assemelha-se mais a um exercício de dominação, expressando uma contra-reforma, tanto econômica e política quanto cultural, contra as conquistas democráticas e sociais em lugares em que já se havia chegado a essas conquistas e dificultando ainda mais que estar sejam alcançadas naquelas regiões onde o desenvolvimento social é mais rudimentar. O que se vê é desemprego de longa duração, precariedade quanto aos instrumentos elementares de vida, pobreza antiga e surto de pobreza nova, pauperização de populações, problemas de agressão ecológica, impacto e maior distanciamento dessas populações em relação à implantação das novas tecnologias, exacerbação da exploração do trabalho, aceitação explícita das desigualdades, além da crise moral (crise esta tanto em âmbito internacional, como nacional). Os agentes de extensão precisam estar atentos, inclusive, quanto às ações em desenvolvimento nos projetos, pois é possível a reprodução dessa crise moral, também dentro desses projetos, considerando a sua presença no interior da universidade. As práticas de extensão na perspectiva de trabalho social, voltadas aos setores subalternizados, abrangem todas essas condições e problemas, e submetem-nos à análise nos grupos de agentes de extensão e em reuniões abertas à comunidade. São temáticas que devem ser apresentadas e que exigem metodologias adequadas para sua veiculação e seu encaminhamento. 365
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As questões que estão sendo colocadas como pertencentes à comunidade e da sociedade também dizem respeito à universidade. A universidade é igualmente submetida à ordem para a realização das políticas públicas. Contudo, no seu interior é possível constatarse, à medida que se efetivam projetos envolvendo particularmente a pesquisa, questões de ética na Produção do conhecimento1. É quando se destaca a presença daqueles que vêem a universidade basicamente como espaço de poder, bem como dos que buscam, sobretudo, vantagens pessoais e corporativas por meio da própria rotina do trabalho universitário. A universidade abriga dessa maneira muitas contradições as quais, pelo exercício desses projetos voltados à construção da hegemonia dos trabalhadores, vislumbrando também a pesquisa, passam a ser mais visíveis. Mas a universidade pode contribuir para o debate e a construção de projetos voltados para o conjunto da sociedade, projetos pautados em questões éticas que permitam superar uma ética concebida pela valorização máxima do sucesso econômico e que afirmem, sim, uma ética pautada “ ... pela valorização da responsabilidade social do governante e do intelectual ...” (LIMOEIRO CARDOSO, 1994: 16). No confronto entre projetos de universidade, as questões fulcrais desse aparelho de hegemonia precisam ser mais discutidas e socializadas, demonstrando-se a importância de sua existência e as suas potencialidades, mesmo que reduzidas, para os setores subalternos da sociedade. O Projeto da ANDES para a universidade no Brasil defende os seguintes pontos: o padrão unitário de qualidade; as diretrizes para definição de políticas acadêmicas de ciência e tecnologia; o financiamento da universidade; a gestão democrática; a organização da carreira profissional e o incentivo à capacitação docente além da avaliação institucional tanto externa quanto interna. Todas essas questões são permeadas pela inegociável autonomia universitária. O projeto da Universidade Cidadã para os Trabalhadores, apresentado e defendido pelo Movimento dos Servidores das Universidades, através da FASUBRASindical, Federação dos Sindicatos que representam os trabalhadores técnico-administrativos em educação das Instituições de Ensino Superior Públicas do país, defende a necessidade de uma universidade pública e gratuita; a definição do padrão unitário de qualidade; o compromisso social da instituição; a defesa da democratização da instituição, sendo todas essas questões também fundamentadas na necessidade de autonomia universitária. As propostas de ambos os projetos traduzem a resistência ao modelo de universidade que paulatinamente vem sendo implantado no país. Essas propostas procuram ir além dos limites já conquistados quanto ao processo de democratização da universidade, ampliando o seu atendimento ao público estudantil, na perspectiva de uma universidade pública, gratuita, autônoma, de qualidade, laica, democrática e necessariamente crítica. Estes são elementos mais diretamente voltados à universidade que podem compor a elaboração de uma pauta de debates a ser desenvolvida na efetivação de projetos de extensão universitária. Além da temática universitária, há as questões estratégicas gerais que precisam estar nos embates do cotidiano. As informações sobre o que ocorre na sociedade brasileira precisam chegar aos setores sociais que dispõem de pouca informação. Assim, os projetos de extensão revelam-se úteis para essa tarefa, socializando as temáticas que vêm sendo discutidas nos mais diversos espaços como, por exemplo, as que têm sido discutidas em conferências como as realizadas em Brasília, promovidas por universidades, organizações _________ 1.
Ver análise sobre a questão em : LIMOEIRO CARDOSO, Miriam. Reflexões sobre ética e produção do conhecimento. ( anotações para pesquisa - versão preliminar). Caxambu, MG, 1994. Texto apresentado na Conferência de Abertura da 17 a. Reunião anual da ANPED (Associação Nacional de Pós - Graduação em Educação). 41p.
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não-governamentais, instituições civis, empresariais e de trabalhadores de diferentes Estados brasileiros1. Tanto esse tipo de debate nacional quanto as práticas sociais trazem temáticas que estão no dia-a-dia das pessoas, independentemente da localidade em que estejam vivendo. Por que não promover discussões dos paradigmas e “modelos” de desenvolvimento, com atenção ao próprio desenvolvimento da sociedade com um sentido ético, capaz de encaminhar o rompimento com a “exclusão” social, cada dia mais expressiva? Nessa agenda não podem faltar as discussões sobre o papel do Estado, especialmente enquanto definidor de políticas econômicas e sociais, tão ausentes nos projetos aqui analisados. O estudo de toda essa lógica de exclusão social é fundamental para que os comunitários e agentes de extensão compreendam melhor os processos sociais dentro dos quais atuam, dando então mais sentido político às atividades de extensão voltadas aos interesses dos trabalhadores. A alternativa de desenvolvimento(sustentável), com suas particularidades, também é temática necessária na educação dos setores sociais subalternos da sociedade e na formação de uma ética para as gerações futuras. A distribuição espacial do desenvolvimento torna-se central, não como uma variável exógena para depois ser incorporada, mas como elemento constitutivo do projeto estratégico diante das discussões e impactos decorrentes da “globalização”. Esse conceito precisa estar voltado à construção do espaço, também enquanto globalização da cidadania, a partir de forças sócio-espaciais locais e regionalizadas. Em todo esse debate se insere o papel da universidade, sobretudo, naquilo que diz respeito às questões da ciência e da tecnologia, perpassadas pelo debate sobre a cultura, com destaque para a veiculação de valores coletivos frente à avalanche do individualismo patrocinada pelas políticas neoliberais. Um debate que é necessário tornar-se mais público, mais regionalizado e mais localizado, para maior interação com propostas e com diversos atores sociais dispostos a somarem na direção das mudanças na sociedade brasileira. Os projetos de extensão como um trabalho social voltados aos subalternizados podem contribuir para “o quadro de uma nova ética para o desenvolvimento nacional, cuja definição deve ser aprofundada, em termos teóricos, a partir de experimentos concretos, em curso no País, que podem ser generalizados”1 . As reflexões sobre as temáticas aqui expostas podem ser apresentadas em seminários ou encontros de extensão, ensino e pesquisa, na universidade e nas comunidades. Através dessas atividades instala-se uma forma de socialização e de integração no fazer acadêmico, seja ele realizado pelo ensino, pela pesquisa ou pela extensão. Encontros ou seminários dessa natureza alertam para a necessidade de se estudar e pesquisar temáticas localizadas (sem que isso signifique defesa de uma “ciência” regional) que parecem não ter “valor acadêmico” exatamente por serem localizadas, segundo cânones que estão se implantando para a avaliação da produção de conhecimento. É necessário fazer-se este estudo para maior conhecimento dessas realidades diferenciadas. Que multinacional patrocinará pesquisa1 sobre a situação de crianças na Amazônia ou na região do Semiárido nordestino; sobre o impacto de tecnologias no ambiente da Zona da Mata no Nordeste; sobre o mundo da economia informal fora dos grandes centros populacionais; sobre as potencialidades da caatinga nordestina ou do cerrado do Centro-Oeste; sobre a avaliação de carcaças, gordura de cobertura e peso de bovinos abatidos no matadouro municipal de uma cidade de interior do país; sobre a regionalização pluvial das águas de um rio num determinado Estado com pouca
_________ 1. Ver Projetos Estratégicos Alternativos para o Brasil, primeira e segunda Conferências, realizadas em Brasília, em 1993 e 1995.
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expressão econômica no cenário nacional; sobre o emprego do maturi (caju verde) na introdução do conceito de acidez, ou sobre a análise dos conflitos de terra e áreas de assentamento? São todos projetos que privilegiam as questões regionais e até localizadas, objetos de trabalho de extensão e de pesquisa, embora seja razoável desconfiar que não sejam de interesse do capital nacional ou internacional. E mais: tais pesquisas só se tornam possíveis caso seja garantida a autonomia da universidade, possibilitando a produção do conhecimento também voltado às problemáticas regionais ou localizadas. À medida que projetos de extensão se efetivam como trabalho social, do ponto de vista teórico, vão mostrando que a miséria, por si só, não gera mudanças. O pensamento crítico, por si só, também não. Mas ele tem um papel a desempenhar no processo de transformação da realidade. Nesse sentido, é importante e necessário o debate de temáticas atualizadas, como as da cidadania e da democracia política e social; a globalização dos direitos humanos proclamados; os direitos civis e a igualdade desses direitos para crianças, jovens e mulheres; o discurso de combate à ditadura do mercado que instaura a lei do mais forte; a solidariedade entre gerações (ecologia) e a internacionalização de direitos sociais; a dívida externa e a reforma agrária. Realidades e pensamento crítico precisam estar num permanente confronto, gerando práticas sociais que contribuam para o delineamento de reivindicações e processos pedagógicos de uma nova formação intelectual e moral em que os trabalhadores se apercebam de sua própria realidade e se convençam da justeza de suas próprias reivindicações. Parece necessário vislumbrar-se um horizonte, pois não é possível movimento social conseqüente sem um projeto no horizonte. Há dilemas que vão se configurando com a realização de projetos de extensão quanto às práticas dos agentes do trabalho social, como o incentivo de se ter as mais diferenciadas práticas possíveis contribuindo para esse projeto de horizonte, que, por outro lado, corre o risco, com esta fragmentação, de perder esse horizonte. Outro problema que convém não esquecer são as tentativas de cooptação de membros de equipes, seja da universidade ou da comunidade, pelos setores dominantes, caracterizando o processo político que Gramsci chama de „transformismo‟ e que gera situações cuja superação ou “controle” é quase impossível. Também começa a crescer, ainda mais, a influência dos setores conservadores de igrejas, particularmente a Igreja Católica, em decorrência das posições políticas que passam a adotar com o remanejamento de dirigentes religiosos que, na região, estavam mais comprometidos com os setores subalternos da sociedade. Muitas organizações governamentais, às vezes, estão se transformando no próprio movimento social e seus dirigentes passam, dessa maneira, a substituir as próprias lideranças dos trabalhadores, tornando-se o próprio movimento. Há uma espécie de translado das direções dos movimentos, que passam a ser ocupadas por essas assessorias. Os movimentos, assim, se tornam apenas temas de estudos para intelectuais, desaparecendo seus conflitos, suas confrontações, quando são anulados os “verdadeiros” atores sociais. Mas a universidade se insere como elemento propulsor para o projeto de modernização conservadora em curso no país e no mundo. A ela está reservado um papel, que é o de divulgar e garantir a efetivação desse projeto como um aparelho de hegemonia do Estado. Cabe às forças internas comprometidas com um movimento democrático resgatar as contradições daquele projeto, à medida que se formula e se implanta. Para isso parece necessário restabelecer possíveis laços da universidade com as lutas sociais, a luta democrática, promover a produção de um conhecimento da realidade que seja relevante socialmente na ciência, na arte, na
filosofia, produzindo e fortalecendo uma cultura inovadora, aberta e crítica. Esses laços, essas lutas e esses saberes podem trazer contribuições valiosas para montar e implantar uma nova agenda voltada para uma sociedade livre, igualitária, justa - socialista. Isto, no entanto, está por ser construído. A universidade pode ter aí um papel de destaque. __________ 1. Carta de Brasília. Projetos Estratégicos Alternativos para o Brasil. 1a. Conferência Nacional. Brasília, nov/ 1993. 2. Estes temas formam uma amostra de projetos apresentados no I Encontro Unificado de Ensino, Pesquisa e Extensão, composto pelo III Seminário de Avaliação da Monitoria, II Encontro de Extensão e III Encontro de Iniciação Científica, num total de novecentos e quatorze projetos em andamento na Paraíba, sob a coordenação da UFPB.
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LIVRO 4.
EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, AUTOGESTÃO E EDUCAÇÃO POPULAR
João Pessoa Editora Universitária 2004
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COLEÇÃO EXTENSÃO POPULAR Organizador: José Francisco de Melo Neto
Títulos publicados: Extensão universitária - uma análise crítica José Francisco de Melo Neto Extensão universitária – diálogos populares José Francisco de Melo Neto (org.) Música e mudança – uma experiência em educação popular Hector Jorge Rossi Extensão universitária, autogestão e educação popular José Francisco de Melo Neto Extensão universitária é trabalho José Francisco de Melo Neto Educação popular – enunciados teóricos José Francisco de Melo Neto
Títulos a publicar: .Diálogo em educação .Extensão popular (coletânea) ----------------------------------------------------------------------------------GRUPO DE PESQUISA EM EXTENSÃO POPULAR – EXTELAR ------------------------------------------------------------------------------------------Apoios: - USINA CATENDE - PE. Companhia Agrícola Harmonia. - ANTEAG - Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária/SP. - PPGE - Programa de Pós-Graduação em Educação/UFPB.
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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, AUTOGESTÃO E EDUCAÇÃO POPULAR
EDITORA UNIVERSITÁRIA diretor JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES vice-diretor JOSÉ LUIZ DA SILVA divisão de produção ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS divisão de editoração MARTHA MARIA BARRETO DE OLIVEIRA
M528e
Melo Neto, José Francisco de. Extensão universitária, autogestão e educação popular/José Francisco de Melo Neto. João Pessoa: Editora Universitária /UFPB, 2004. 210p. – (Coleção Extensão Popular) ISBN nº 85-237-0514-7
UFPB/BC
1.
Extensão universitária – trabalho social. 2. Educação popular. 3. Autogestão. I. Título
CDU: 378
Direitos desta edição reservados à: UFPB/EDITORA UNIVERSITÁRIA. Caixa Postal 5081 - Cidade Universitária -João Pessoa – Paraíba-Brasil. CEP 58.051-970. www.editora-ufpb.com.br Impresso no Brasil. Printed in Brazil. Foi feito depósito legal.
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Agradecimentos À equipe docente que compõe o Departamento de Habilitações Pedagógicas (DHP) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba; a Doralice Melo, Finha Melo, Givaldo Melo, Léo Melo, Rui Melo, Cristiana Melo, Fátima Melo, Beto Melo, Edenilson Melo e Marcelo Bezerra; aos trabalhadores da Companhia Agrícola Harmonia (Usina Catende - PE) e sua equipe de direção centrada na pessoa do Dr. Mário Borba, Lenivaldo, Izabel, Marivaldo, Arnaldo, Chico, João, Bruno; ao São; à Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária (ANTEAG); ao Luigi Verardo; à equipe de estudantes (2002/2003) da ITCP-USP – Fernando, Zé Paulo, Teca; às professoras Sylvia Leser e Sônia Kruppa (Coordenação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP); ao professor Paul Singer e, em especial, ao professor Celso de Rui Biesiegel, que tornaram possível este trabalho.
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: UM TRABALHO SOCIAL ÚTIL - A extensão não alienante - A divisão do trabalho - O processo do trabalho - A intencionalidade da extensão AUTOGESTÃO - Realidade - Constitutivos A história O trabalho A igualdade A autonomia - Condições para a autogestão - Limites e sonhos EDUCAÇÃO POPULAR - Educação - Educação para a autogestão - A educação popular – constitutivos: A experiência histórica A cultura O popular O concreto O trabalho A autonomia/liberdade /igualdade O diálogo
CONSIDERAÇÕES REFERÊNCIAS ANEXO: Carta de João Pessoa (I Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, 2002)
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APRESENTAÇÃO Paul Singer Este livro apresenta um percurso ambicioso, da luta da universidade brasileira por autonomia face ao governo e ao mercado à extensão universitária enquanto trabalho socialmente útil, à autogestão e finalmente à educação popular, enquanto elo que liga a universidade às lutas dos trabalhadores por emancipação e autogestão de empreendimentos, por eles criados ou conquistados. A universidade brasileira sempre foi um bastião de lutas da intelectualidade e dos movimentos estudantis por democracia, pela defesa das riquezas naturais e de solidariedade com os trabalhadores e suas aspirações por uma sociedade sem classes, sem diferenciação econômica, social, racial e de gênero. Depois de enfrentar a repressão do regime militar, que procurou submeter a universidade expurgando-a, alunos e professores confrontam hoje o estado neo-liberal, que limita o gasto com o ensino superior público, dificultando sua expansão e entregando a imensa massa dos que querem estudar e não encontram lugares na universidade pública gratuita, à iniciativa educacional privada, sem e com fins de lucros. A penúria financeira obriga a universidade pública a lutas defensivas, pelo ganho real do corpo docente e pela manutenção de condições mínimas do labor acadêmico. As greves quase anuais, que paralisam a universidade pública, são mostradas à opinião pública como lutas corporativas de professores, que ganham muito em relação ao pouco que produzem, e de alunos, que usufruem o ensino gratuito, embora a maioria de suas famílias pudesse pagar por ele, enquanto a massa de estudantes pobres é obrigada a pagar pelo ensino privado. A recente introdução de quotas para alunos de cor e/ou provenientes da escola pública confere verossimilhança a esta versão. Nestas condições, a extensão universitária aparece como a grande oportunidade de levar o saber universitário ao povo, aos que a pobreza exclui prematuramente da escola. Nesta concepção, a extensão, como diz o autor, se volta “à construção duma nova hegemonia.” Mas, também neste campo, a disputa com concepções neo-liberais ou simplesmente com os que buscam vantagens financeiras para si, reaparece com inusitado vigor. A insuficiência da verba pública incita setores da universidade pública a complementá-la mediante a venda de ensino e consultoria às empresas. E como este mercado está em franca expansão, estes setores praticamente se sustentam com as receitas da extensão, enquanto o recurso do orçamento governamental é reduzido a um papel secundário. O que se observa, portanto, é a divisão da extensão universitária em duas: uma voltada às classes exploradas e suas necessidades, outra atendendo as demandas por conhecimento científico dos negócios privados. Melo Neto está fundamentalmente interessado na primeira, mostrando como o crescimento da economia solidária no Brasil oferece a alunos e professores amplo campo de atividades. Um número cada vez maior de empreendimentos em crise acaba sendo apropriado (em geral por arrendamento da massa falida) pelos seus ex-empregados, organizados em cooperativa ou outra forma societária equivalente. Alem disso, a luta dos trabalhadores sem-terra multiplica as cooperativas nos assentamentos de reforma agrária. E a incubação de cooperativas populares (formadas por desempregados ou marginalizados) por universidades (e órgãos ligados a igrejas e a sindicatos) em todo território nacional, vai povoando as periferias miseráveis de nossos centros urbanos com empreendimentos solidários. Esta obra aprofunda o exame do papel da extensão universitária no desenvolvimento da autogestão, estudando com mais profundidade o caso da Usina Catende, a maior das empresas solidárias brasileiras, cujas terras cobrem cinco municípios da Zona Mata Sul de Pernambuco. Democratizar a administração dum empreendimento deste porte representa um desafio instigante não só aos sindicatos, que representam os trabalhadores e compartilham as responsabilidades da autogestão, mas também às outras entidades que, desde o seu início, dão todo tipo de apoio a Catende. “Entidades que acompanham e apóiam a luta na Usina Catende e que procuram soluções novas no cenário envelhecido da Zona da Mata: CONTAG, FETAPE, CUT, CPT, FASE, CEAS RURAL, CENTRU, ANTEAG, STRs da região de Catende e de toda zona canavieira; associações de trabalhadores; fornecedores de cana da região; expressiva maioria da sociedade da cidade de Catende e
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algumas prefeituras, além de grupos de profissionais da Universidade Federal de Alagoas e da Universidade Federal Rural de Pernambuco.” (p. 124 nota de rodapé). Neste ensejo, se encaixa a educação popular, preocupação maior desta obra. A extensão universitária que objetiva a mudança estrutural da sociedade brasileira encontra na educação popular o seu mais importante instrumento. A mudança almejada requer profunda mudança de mentalidade dos protagonistas do processo, que neste caso se concretiza no desenvolvimento de relações sociais de produção democráticas no empreendimento autogestionário. “O avanço de um empreendimento falido para uma economia solidária é um momento de transição da tradição de empresariamento capitalista para uma outra forma de gestão da economia. É a tentativa de implementação de outra cultura, quebrando a hierarquização exacerbada neste processo produtivo e a compreensão estabelecida de que a exploração é algo natural e assim deve ser. Há a criação de novos direitos, orientada por práticas participativas. Investe-se na superação de uma racionalidade prisioneira da técnica, adquirindo dimensões emancipatórias, sem promover a separação do mundo das necessidades e do mundo da liberdade.” (p. 125) Até então, a educação popular havia tido grande aperfeiçoamento no Brasil, graças à contribuição inolvidável de Paulo Freire à educação de jovens e adultos num sentido verdadeiramente emancipador. Agora, mostra Melo Neto, a educação popular ganha nova tarefa, sem que as anteriores tenham se esgotado. Não se trata, apenas, de desenvolver a capacidade de refletir de forma crítica sobre a realidade econômica, social e política em que se vive, mas de aprender a transformá-la. A luta pela posse dos meios de produção é o ponto de partida desta transformação. Uma vez esgotada esta etapa, a luta se torna mais insidiosa, pois não se trata mais de alcançar uma conquista exterior ao indivíduo que luta, mas uma conquista interior a ele, a de mudança de cultura e de compreensão, acima especificada. Este é pois o novo desafio com que se defrontam os trabalhadores de Catende (e de centenas de outras cooperativas operárias de produção, que vem surgindo no Brasil) e as muitas entidades que lhe dão apoio, inclusive duas universidades federais. Vamos necessitar que surja novo Paulo Freire, capaz de inventar um método que eduque sem subordinar, que faça do compartilhamento de conhecimentos entre a elite universitária e o povo trabalhador o crisol duma nova ciência, a da autogestão que se aperfeiçoa pela prática e pela superação dos conflitos que marcam toda mudança. Para este desafio, esta obra é importante contribuição. Aprofundando a noção de educação popular, no quadro do início da construção dos alicerces duma sociedade em que a economia é solidária, o autor oferece à reflexão elementos conceituais e históricos imprescindíveis à emancipação de educando e educador através da sua interação criativa.
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INTRODUÇÃO estudo sobre a universidade vem sendo desenvolvido, particularmente, nas três últimas décadas, como um espaço de debate no campo teórico, mas que tem se apresentado como um terreno em permanente disputa das forças políticas no país. Esse debate teórico passa a cobrar, contudo, uma categoria explicativa nesse campo de luta ideológica para as sociedades de classe, tornando viáveis tais estudos. Um instrumento teórico capaz de dar razoável contribuição para essa finalidade é a categoria hegemonia acompanhada do canal de sua veiculação – o aparelho de hegemonia - na visão gramsciana. É com esse corpo conceitual que se tornam possíveis explicações das relações que ocorrem entre as classes sociais no interior desses aparelhos de hegemonia, onde se travam as luta ideológicas, sendo a universidade um desses aparelhos. Em Gramsci, hegemonia é um conceito que ajuda o processo organizativo das classes sociais. Ocorre, não necessariamente, por uma exigência do domínio prévio do poder, mas sim pela adesão em torno de uma classe ou segmentos dessa classe. Assim entendendo, tornam-se recorrentes dois aspectos. O primeiro envolve a coesão por oposição, isto é, o processo de adesão no interior de uma classe, através de um processo gerador de uma direção, a partir de frações dessa mesma classe, distanciando-a da outra classe fundamental. Esse processo conduz à coesão de classe. É possível que a direção política também se exerça entre classes sociais, quando um projeto de uma fração de uma classe consegue a adesão não somente de setores afins da mesma classe, como também de frações de outra classe. Através desse processo, um projeto, cuja base e origem são peculiares, generaliza-se ou até se universaliza, funcionando, então, como um projeto da sociedade como um todo. O segundo aspecto refere-se à coesão por domínio, por meio de um processo de imposição entre classes distintas. Instaura-se aí, com o recurso à força, a coesão entre classes. O primeiro aspecto depende da “subordinação, ou do exercício negativo do domínio, e conduz a uma coesão de classe”; o segundo “depende do exercício positivo do domínio e instaura uma coesão, precária por que entre as classes” (Limoeiro Cardoso, 1977: 73). Esta concepção de hegemonia abre a possibilidade de sua efetivação de duas maneiras: uma, pelo domínio; outra, pela direção intelectual e moral. A esse respeito, afirma ainda a autora:
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“O domínio supõe o acesso ao poder e o uso da força, compreendendo a função coercitiva; a direção intelectual e moral se faz através da persuasão, promove a adesão por meios ideológicos, constituindo a função propriamente hegemônica” (ibid.: 73). A hegemonia passa a ser concebida não só no nível das classes dominantes, numa visão presente em Lenin, como também no campo das classes dominadas, vinculada a um “grupo social básico”. Abre, dessa forma, espaço para o exercício da direção intelectual, moral e política da hegemonia, antes da chegada ao poder. Estabelece, ainda, uma nova forma de relacionamento dos campos político e econômico. Instaura a autonomia, mesmo que relativa, da política quanto à economia. Revaloriza o ideológico. Mantém uma visão de determinação pelo econômico, embora, não de forma direta nem imediata, e, muito menos de forma absoluta. Mas, fica claro que não há independência entre transformações ideológicas e transformações econômicas, nem tão pouco que elas possam acontecer de forma natural, direta ou espontânea. O enfrentamento político e ideológico acontece, portanto, por meio de aparelhos veiculadores da luta ideológica e política, os aparelhos de hegemonia. A universidade, como um aparelho de hegemonia, é um palco de disputas políticas e ideológicas. Mas, como se expressa esse movimento no âmbito das políticas voltadas à universidade? A análise da universidade como um campo dessa disputa vem se firmando com mais intensidade, nos últimos anos, a partir, sobretudo, da formulação de projetos diferenciados do Governo Sarney (GERES - Grupo de Estudos e Reestruturação do Ensino Superior), do projeto que vem sendo construído pelo Movimento Docente, através do ANDES/SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) e do Movimento dos Servidores, através da Federação das Associações de Servidores das Universidades Brasileiras (FASUBRA). No início da chamada Nova República, a universidade esteve nos planos de reformas governamentais. A formulação marcante desse momento resultou na reestruturação do ensino superior
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proposta pela Comissão de Alto Nível, criada pelo então Ministro da Educação Marco Maciel (l985l987). Esse projeto veio marcado pelo princípio de racionalização da universidade, presente na reforma universitária de l968. Pretendia-se reformular aspectos considerados superados pela conjuntura. Mas, na essência, não se promovia algum movimento significativo de reforma da lógica privatista e autoritária do ensino, em andamento no país. Tudo isso passou a estabelecer relações com fatos, considerados consensuais entre os estudiosos, que afetaram a vida da universidade, a partir da década de 60, a saber: o acordo MEC/USAID, a reação estudantil, o relatório Meira Mattos e a criação do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras - CRUB. Nos mais diferentes setores do Governo Federal, ocorreram tentativas em busca do desenvolvimento, sempre com maior ênfase nos aspectos da economia do país. Esse projeto de superação do subdesenvolvimento, para Fernandes (1976: 194), “significa alteração na posição através da qual suas sociedades nacionais participam da civilização ocidental”. Nesse movimento, as universidades dos países dependentes se inserem nas relações de dependência que “concorrem para preservar as formas de subordinação cultural existentes, servindo de elo à assimilação da cultura produzida nas nações desenvolvidas e hegemônicas, que exercem o monopólio na invenção e difusão das formas básicas de saber” (ibid.: 195). Nesse contexto, o papel das universidades só pode aparecer e se afirmar historicamente como “fator de desenvolvimento”, quando concorrer para a negação e superação desse status quo. Raras, entretanto, têm sido as tentativas, no campo da educação e, particularmente, nas universidades, nessa direção. O relatório do acordo MEC/USAID destaca, entre as suas conclusões, o fato de que a universidade se encontra totalmente inadequada para atender ao crescimento econômico brasileiro. Com base nisso, Tavares (1980: 24) assinala: “se conseguíssemos ajudar essas universidades, teríamos mais segurança de que o Brasil seria uma sociedade livre e um amigo leal dos Estados Unidos”. Analisando a Reforma Universitária, Benevides (l981: 34) entende que esta “transformou-se em mística, sob o respaldo de altas vozes da educação nacional, que ignoraram, sem dúvida, as limitações e insuficiências das falanges vingadoras”. Ocorre nesse momento a mobilização124 do Movimento Estudantil Universitário, denunciando como esse acordo desejava manipular o aparelho escolar brasileiro e, dessa maneira, possibilitar o alinhamento político do Brasil aos Estados Unidos e o fortalecimento da Aliança para o Progresso. Nessa mesma direção, Arapiraca (l982: 124) acrescenta: “A documentação disponível expressa claramente a tentativa político-ideológica, por parte da USAID, de manipular o aparelho escolar brasileiro para legitimar um processo de modernização da sociedade, a fim de possibilitar um alinhamento geopolítico com o neocapitalismo norte-americano no continente”. Nessa perspectiva, Covre (l983: 199) mostra que, ao longo do período de atuação da USAID, fez-se um levantamento da situação educacional no Brasil, desde o pré-escolar até a pós-graduação. Esclarece que o acordo125 conquistou os tecnocratas brasileiros, transitando livremente pelo MEC e levando muitos brasileiros aos Estados Unidos, para realizarem seus cursos de pós-graduação, aperfeiçoamento e outros tipos de reciclagem. Em resposta à insatisfação estudantil, o governo edita o Decreto no. 477. Para Romanelli (l987: 226), “as medidas de contenção do protesto se revelavam, assim, a única via capaz de impor a ordem, e, ao mesmo tempo, as reformas. Essas medidas definem, assim, os aspectos assumidos pela reforma geral do ensino”. Convém destacar do relatório Meira Mattos (1967: 243) que, após trabalho em regime intensivo, apresentou, entre as tantas falhas existentes no sistema educacional, a própria inadequabilidade do MEC. Isto resultava da inoperância de muitos órgãos, com atividades desintegradas, gastos excessivos de verba e estrutura superada. Também se destaca o que se denominou no relatório de crise de autoridade no sistema educacional. Segundo o relatório, essa crise A mobilização não surge apenas em decorrência dos acordos MEC/USAID, o que vai ocorrer a partir de 1964. Além do repúdio à repressão político-militar, as discussões no meio estudantil dirigem-se contra a Lei Suplicy, o Relatório Atcon e os demais acordos, principalmente o de junho de 1965. 124
Relatório da Equipe de Assessoria ao Planejamento do Ensino Superior – EAPES. (Acordo MEC/USAID. Janeiro, MEC/DES, 1968. 125
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estava ligada ao poder excessivo do Conselho Federal de Educação (CFE) e a uma autonomia muito ampla, que fora concedida às administrações das universidades. Foi também apontada como medida importante a ser tomada a melhoria da remuneração do professor. Para a efetivação dessa medida, sobretudo na questão dos excedentes126, criou-se o ciclo básico nos cursos universitários; introduziu-se o sistema de créditos e instituíram-se os cursos de curta duração127. Muitos estranharam a criação do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), sobretudo envolvendo a participação das universidades federais, por se tratar de uma proposta que viera da Diretoria de Ensino Superior do Ministério da Educação128. As providências para a implantação do Conselho haviam sido solicitadas ao Prof. Rudolph Atcon, ligado estreitamente ao acordo MEC-USAID129, o qual posteriormente veio a ocupar, durante dois anos, a Secretaria Executiva do CRUB. Este Conselho norteou ações de integração da universidade com o meio social, segundo Fagundes (l986: 121). Contudo, assinala o autor: “a autonomia que se buscava foi muito mais induzida pelo MEC/CEF do que decorrente de um projeto do CRUB. A integração pautou-se, na verdade, muito mais pela ótica da política governamental vigente”. Para Atcon, o problema da universidade era uma questão técnica e nada política. Segundo ele, sua organização era tarefa para os planejadores da universidade, a quem cabia equacionar os problemas. Para Vieira (l982: 32), a universidade, no pensamento de Atcon, “era um fato administrativo e devia ser administrada como uma empresa privada e não como órgão público”. Exercendo a atividade de Secretário Executivo do CRUB, Atcon vinha fazer o elo entre os reitores e o acordo MEC/USAID. Estas informações, segundo Boaventura (1988: 223), são suficientes para se “perceber grande identidade entre a modernização universitária defendida por Atcon, com os decretos castelistas e o Relatório Meira Mattos”. É importante destacar, também, os procedimentos de condução das políticas da educação no país, através de formulações de grupos de trabalhos ou de comissões de estudos. Esta tem sido uma constante na organização do sistema educacional no Brasil. Duas décadas após as reformas, surgia o Projeto GERES - criado na administração do Ministro Jorge Bornhausen - que também viera possibilitar a concretização da proposta da Comissão de Alto Nível, agora em forma de projeto de lei. A organização dos docentes, em nível nacional, bem como dos demais servidores de universidades, através do ANDES/SN e da FASUBRA, respectivamente, colocou-se contrária àquele projeto, mostrando seu distanciamento em relação às suas reivindicações históricas, assim como aos procedimentos institucionais desencadeados de cima para baixo. O movimento de luta pela reconquista dos direitos de cidadania vinha se firmando desde a segunda metade da década de 70. Medeiros & Seiffert (1998: 114) caracterizam esse momento, enfatizando: “Nesse período, a atuação do movimento estudantil, em fase de reorganização e com tradição de luta, e o nascente movimento organizado dos docentes de ensino superior, foram as vozes mais fortes em defesa do ensino superior público e gratuito”. Um primeiro momento do embate entre os projetos de universidade130 se constituiu numa divulgação maior das reivindicações postas pelo ANDES e pela FASUBRA frente ao projeto
Vestibulandos que haviam obtido a média de aprovação na seleção do exame vestibular, mas que a universidade não dispunha de vagas para os mesmos. 126
Essa modalidade de curso, com menor tempo de formação, foi resgatada na recente reforma ocorrida no ensino técnico profissionalizante, com a transformação de Escolas Técnicas Federais em Centros Federais de Educação Tecnológica – CEFETS e na criação de Centros Universitários. 127
Até 1966, a execução de convênios da USAID para o ensino superior estava a carga do MEC/DES. Com a criação do CRUB, em abril de 1966, este órgão passou a assumir a coordenação e a execução desses acordos (MEC/USAID). 128
A pedido do Diretor do Ensino Superior (DES) – Moniz Aragão – sendo divulgado em 1966. Entre as recomendações de Atcon, a primeira delas propõe: “A constituição de um Conselho de Reitores e a organização de sua secretaria executiva em moldes empresariais, para criar local apropriado para empreender estudos sistemáticos sobre ensino superior e planejamento ininterrupto”. (Ver: Relatório Atcon. Reunião à reformulação estrutural da Universidade Brasileira. Rio de Janeiro. MEC/DES, 1996. p. 121). 130 A proposta do ANDES/SN, presente no Cadernos Andes no.2, foi publicada em julho de 1986, com o seguinte título: Proposta das Associações de Docentes e do ANDES/SN para a Universidade Brasileira, reeditada em julho de 1996. Esta 129
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apresentado pelo MEC. Na verdade, as entidades apresentavam projetos alternativos, que ainda não eram considerados acabados, mas que colocavam, para o debate nacional, questões como: o ensino público e gratuito, o padrão unitário de qualidade, autonomia da gestão financeira, bem como a função social da universidade voltada às “maiorias da sociedade”. Sua continuação levou à formulação da proposta da FASUBRA, que se constituiu num projeto intitulado Universidade dos Trabalhadores, que, hoje, em versão mais atualizada, denomina-se Universidade Cidadã para os Trabalhadores. Esta proposta de universidade se fundamenta nos seguintes pontos básicos: a) a defesa do ensino público e gratuito, entendendo-se que a universalização do ensino só se torna possível a partir da extensão da rede pública e garantia da gratuidade; b) a autonomia e democratização como entes imprescindíveis para a definição de seus planos administrativo, financeiro, didático-pedagógico, técnico-científico e político (a autonomia e democratização só serão asseguradas se estiverem vinculadas entre si); c) o controle pela comunidade universitária, o qual se vincula aos seus movimentos políticos internos que com capacidade podem intervir na gestão cotidiana da universidade; d) a defesa do padrão único de qualidade, assegurada a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão; e) o compromisso social, considerando que “a universidade tem por objetivo, através do ensino, pesquisa e extensão, contribuir para romper as desigualdades sociais e superar a alienação individual e coletiva” ( SINTESPB, 1995: 16). O palco dos embates ideológicos de projetos políticos para a universidade e para a sociedade, bem como sua dialética, se tornam mais explícitos nos momentos de suas disputas eleitorais. Esses momentos têm sido marcados por lutas e algumas conquistas importantes como: a garantia da posse aos candidatos mais votados; as denúncias de falta de verbas; o embate envolvendo as mantenedoras das universidades particulares, destacando-se as questões relativas ao processo de democratização das mesmas ou a redução das mensalidades, contribuindo para uma maior politização dessas reivindicações. Por outro lado, observa-se, por parte do MEC, uma intransigência em atendê-las, mantendo-se o processo de redução das verbas para as universidades públicas, de modo a deixá las em situação de penúria. Isso, porém, não impediu os avanços organizativos entre docentes, estudantes e servidores quando da promoção de atividades conjuntas, seja nas greves ou nas assembléias. Todos esses embates demonstraram, contudo, segundo o Projeto Alfabetação da UNE - União Nacional dos Estudantes (1990: 4), a necessidade de um projeto nacional que possibilitasse a unificação dessas lutas. No âmbito dos docentes, o debate sobre a necessidade de elaboração de um projeto de reestruturação da universidade para o país vem sendo realizado pelo ANDES/SN, desde o início da década de 80, através de simpósios, reuniões, conselhos e congressos. Em junho de 1982, em Belo Horizonte, o V Conselho Nacional das Associações Docentes elaborou a primeira versão de um documento, apresentado ao MEC, que se tornou a Proposta das Associações de Docentes e do ANDES/SN para a Universidade Brasileira. A partir desse documento, o ANDES, buscando a ampliação do debate, junta-se à OAB-Ordem dos Advogados do Brasil, à SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e à ABI-Associação Brasileira de Imprensa. Essas entidades formam um acordo de ação comum sobre princípios para a reestruturação da universidade no Brasil, com a seguinte base: “Manutenção e ampliação do ensino público e gratuito; autonomia e funcionamento democrático da universidade com base em colegiados e cargos de direção eletivos; estabelecimento de um padrão de qualidade para o ensino superior, estimulando a pesquisa e a criação intelectual nas universidades; dotação de recursos públicos orçamentários suficientes para o ensino e pesquisa nas universidades públicas; criação de condições para a adequação da universidade à realidade brasileira, garantia do direito à liberdade de pensamento nas contratações e nomeações para universidade, bem como no exercício das funções e atividades acadêmicas” (Cadernos ANDES, 1986: 2).
proposta veio tomando corpo a partir da articulação do ANDES/SN, no período de 92 a 95, com outros setores sociais organizados, como a SBPC, a OAB, a ABI, a UNE e a FASUBRA.
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O processo de reestruturação da universidade toma corpo desde a realização, no Rio de Janeiro, em l983, do Simpósio sobre a Universidade Brasileira, sob o título O Público e o Privado, o Poder e o Saber: a Universidade em Debate. Em l985, ocorreu em Brasília, numa promoção conjunta da UNE, FASUBRA e ANDES, o Seminário sobre Reestruturação da Universidade, que tentava maior ampliação do debate, com a participação de várias outras entidades da sociedade civil. Foram convidados, além do Ministro da Educação, o Ministro da Ciência e Tecnologia e o da Administração. Com o acúmulo das discussões anteriores, promoveu-se o Seminário de Olinda, em 1985, quando se definiu, de forma conclusiva, a proposta de Reestruturação da Universidade Brasileira. O debate continuou com o seminário em Salvador. Com algumas complementações no tocante ao texto, em particular na temática sobre administração, realiza-se o XIII CONAD, promoção do ANDES/SN, em São Paulo. Daí, formalizou-se, mesmo se mantendo o debate, a Proposta das Associações Docentes e do ANDES/SN para a Universidade Brasileira. É possível, a partir desse momento, fazer-se uma análise sobre a contribuição do movimento docente para a universidade no Brasil. Nesse sentido, a compreensão é de que esta é um patrimônio social, que se caracteriza “pela sua necessária dimensão de universalidade na produção e transmissão da experiência cultural e científica da sociedade” (ibid.: 5). Dessa forma, a universidade passa a se definir como “instituição social de interesse público”. A análise do movimento docente é de que, na história recente, isto não vem ocorrendo no âmbito do ensino superior, sobretudo a partir da implantação da Lei no. 5.540, de l968. Desse período até os dias atuais, vem se observando na educação do terceiro grau a existência de um processo estrategicamente armado para comprometer as Instituições de Ensino Superior da rede pública, caracterizando-se a política estatal como: “Progressiva aceleração do processo de privatização e de empresariamento do ensino, a crescente desobrigação do Estado com o financiamento das universidades, a definição pelo poder público de uma política educacional que não assegurou efetivamente condições reais de ensino e pesquisa na produção acadêmica e o autoritarismo estatal” (ibid.: 6). O processo de privatização encetado pelo governo é acompanhado pela deterioração do ensino público, caracterizando-se pelo descomprometimento orçamentário para com essa rede. Nesse sentido, Fávero (l992: 128) mostra que não é suficiente discursar sobre a necessidade do cumprimento da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, mas que é preciso assegurar “a liberação dos recursos aprovados pelo Congresso Nacional dentro dos prazos previstos”. Em análise de documentos do Fórum de Pró-Reitores, a pesquisadora constatou que 37% dos recursos relativos ao ano de l991, em pleno mês de outubro, marcados sob a rubrica outros custeios de capital (OCC), não tinham sido repassados às universidades. Essa tendência para com a educação pública brasileira vem se acentuando desde a década de 70. Cresceu durante toda a década de 80 e continua até os dias de hoje131. O Projeto de Reestruturação da Universidade no Brasil defendia também um processo de avaliação da universidade que devia desenvolver-se, sistematicamente, com critérios definidos, de forma pública e democrática. Este caminho não é apenas um mecanismo de proteção contra a tutela do Estado e das influências do capital; é também um esquema de proteção contra possíveis privilégios corporativos, eventualmente, existentes. Convém destacar a questão da avaliação que foi retomada, desde l985, com a divulgação do relatório GERES, embora já tivesse sido colocada pelo documento da Comissão Nacional pela Reformulação da Educação Superior - Uma Nova Política para a Educação Superior132. Nesse documento, a avaliação está voltada para o desempenho da educação superior. Para aquela comissão surgiram dúvidas, sobretudo no que se refere à ausência de padrões para o ato de Nas eleições presidenciais de 2002, em pleno mês de novembro, foram mostradas pela imprensa as reclamações de reitores de universidades públicas, sobre o atraso de repasses de verbas dessa rubrica contábil e os seus malefícios. A Universidade Federal da Minas Gerais chegou a suspender pagamento de energia elétrica, água e telefone (Folha de São Paulo: 21/11/02). A queixa dirigia-se, também, ao atraso no repasse do duodécimo (1/12 do orçamento das universidades). 131
É importante, também, o conhecimento da Proposta de redefinição da estrutura jurídica das IFES. BRASIL/MEC/MARE. Brasília, 1996. 132
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avaliar. Ao se perguntar: avaliar o quê? recorreu-se à experiência internacional e aos procedimentos de avaliação dos cursos adotados por especialistas, segundo as áreas de conhecimento. Buscou-se avaliar os recursos físicos, financeiros e pedagógicos aplicados nas universidades. Essa abordagem possibilita a quantificação de parâmetros e vislumbra uma avaliação voltada à eficiência em seus diversos tipos, tais como: aluno versus professor; taxas de desistência e repetência; custos com alunos e professores. Os alunos passam a ser avaliados em relação à demanda e assim avaliam-se os cursos. Há, dessa forma, a suposição de que os cursos com mais candidatos, “e candidatos mais qualificados, são superiores aos menos demandados, ou demandados por pessoal menos qualificado” (Brasil/MEC, 1985: 55). Há a avaliação comparativa dos formados, através de testes comparativos, bem como a avaliação das oportunidades de trabalho, hoje, em franca implantação. Tem-se a avaliação dos professores, que consiste em verificar a sua “reputação” entre os colegas, por uma parte, e entre os alunos por outra (ibid.: 56), a qual praticamente não se implantou. Além da avaliação didáticopedagógica do ensino, é contemplada a avaliação das carreiras profissionais e também a avaliação dos servidores técnico-administrativos. Esta consiste em “verificar o desempenho funcional, tendo em vista a subordinação das atividades administrativas às atividades acadêmicas” (ibid.: 56). No documento da Comissão Nacional para Reformulação da Educação Superior, a avaliação da universidade contemplaria uma auto-avaliação, uma avaliação governamental e ainda uma avaliação pela comunidade, expressa através de pessoas ligadas à profissão dos cursos e de avaliações independentes. O Movimento Docente continua na defesa de seu projeto e de suas concepções de universidade e, desde o início dos anos 80, alerta para o seguinte fato: “O governo afirmar que está empenhado na transformação estrutural da universidade não é uma garantia de que vai implementá-la e, menos ainda, de que pretenda fazê-lo no sentido das propostas da comunidade universitária. O enfrentamento democrático das questões cruciais da sociedade brasileira no momento de sua desejada transformação não pode ser resolvido por comissões de alegada ou real competência, mas exige a livre manifestação dos setores sociais envolvidos através dos organismos nos quais se organizam as entidades que os representam” (Cadernos ANDES, 1986: 2). Sob essa perspectiva, Limoeiro Cardoso (l989: 9) distingue dois níveis: o primeiro refere-se ao procedimento na elaboração desses documentos governamentais, destacando o relatório GERES133; o segundo analisa a avaliação que, nesse documento, dá-se sob a ótica do binômio autonomia-avaliação, sendo esta uma questão central. A divisão em níveis é meramente de caráter analítico, já que, para a autora, o importante mesmo é que tanto a questão de procedimento quanto o conteúdo do projeto de avaliação “estão subordinados a uma lógica da eficiência” (ibid.: 9). Desta lógica pode-se considerar a sua estrutura, que é a relação da universidade com o sistema de forças sociais a que serve. Por isso é que Pinto (1986: 27) considera a universidade não passível da crítica de que é ineficiente. Para ele, “a universidade é maximamente eficiente, pois produz com perfeição os resultados que dela se devem esperar, dada a sua natureza”. O autor quer mostrar que a universidade não está destinada a funcionar como propulsora de transformações materiais da realidade brasileira. Não estando voltada a esses interesses, pode ser caracterizada como retrógrada e reacionária. O embate ideológico pela hegemonia de projetos de sociedades vai adquirindo sutilezas de dimensões filosóficas e econômicas nos encaminhamentos do projeto governamental de universidade. Ao analisar a autonomia no cenário da educação brasileira, Fávero (l991: 29) vê a questão posta, já em l966, por Atcon. Este, nas suas análises sobre a reformulação da estrutura da universidade, busca torná-la um tipo de empresa privada, sugerindo a implantação desse modelo. Com isso, estariam também reformulados critérios como os de remuneração de pessoal universitário, condicionados, Ver: Tavares, Maria das Graças Medeiros. Educação superior cidadã e a extensão universitária: possibilidades e limitações na Lei no. 9.394/96 – LDB. Dessa obra, destaca-se que a concepção de universidade presente naquele relatório contemplava dois tipos de instituição: “a) a universidade do ensino em que a pesquisa científica não era uma atividade-fim, sendo substituída pelo uso do método científico incorporado à prática didática do cotidiano; 2) a universidade do conhecimento, considerada modernizante, baseada no desempenho acadêmico e científico, protegida das flutuações de interesses imediatistas” (p. 56). 133
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agora, a esses novos cânones. Ainda para a autora, Atcon ignora “diferenças básicas entre a atividade universitária e a atividade empresarial, deixando de estabelecer precisão no que entende por produtividade e por atividade realmente desempenhada, no caso do professor universitário” (ibid.: 3). Pode-se entender, contudo, que essa produtividade a que se refere a proposta do GERES vincula-se à de autonomia plena que pressupõe a autonomia financeira e não a autonomia de gestão financeira defendida pelo Movimento Docente. Com a autonomia financeira, o que se pretende é conduzir a universidade em vínculo estreito com o mercado, tornando-a diretamente gerida pela lógica do capital (uma proposta que na sua essência já era neoliberal). É muito mais do que isso: ela propõe diferenciação e hierarquização dentro do sistema de ensino superior, com o pequeno número de centros de excelências (onde estará sendo desenvolvida a pesquisa) e universidades, como de segunda categoria, desenvolvendo apenas o ensino. O relatório GERES apresenta, por sua vez, uma concepção clássica de autonomia da universidade, voltada à sua independência e a uma busca da verdade sem restrições. O Estado e a sociedade em nada poderiam intervir em regras ou limites das atividades acadêmicas. É a liberdade de decidir o que ensinar, por si mesma e de forma autônoma. O relatório contempla, ainda, uma concepção de pesquisa onde esta seria a própria pedagogia da universidade. O seu ensino não pode ser uma verdade acabada, pois é um método de se encontrar essa verdade. Seria uma autonomia em relação às finalidades acadêmicas, deixando a pesquisa de ser uma atividade-fim. O relatório retoma uma concepção clássica de universidade voltada para o ensino. Esta concepção permanece nas formulações apresentadas pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), iniciadas, sobretudo, pelo Ministro Bresser Pereira, ao formular a concepção de associação civil ou fundação de direito privado, em substituição ao de instituição federal de ensino superior. Estabeleceuse legalmente a diferenciação entre universidade, centros superiores de educação e outras denominações para instituições de ensino superior. Entre as entidades qualificadas como organizações sociais, insere-se a universidade, além de instituições da área da saúde, pesquisa, tecnologia, meio ambiente e outras, que teriam suas atividades dirigidas à prestação de serviços. De acordo com Santos Filho (1993: 38), o que está sendo proposto para a universidade é a manutenção e ampliação do discurso em favor do ensino privado. Para ele, essa discussão perpassa duas questões: “1) o capital impõe condições para a universidade subsistir, obrigando-a a criar um processo de avaliação de sua produção; 2) a universidade deve vender serviços, como lógica imposta pelo próprio capital, que transforma os centros de saber em mercadorias”. Entende Lima Neto (1991: 13) que o significado político da autonomia para a universidade pública é outro: “Fundamenta-se na concepção de que cabe ao Estado retornar os recursos públicos para a remuneração justa de seus funcionários e professores”. Dessa forma, cabe à universidade, no gozo de sua autonomia didático-científica, administrativa e de gerência financeira, poder definir suas prioridades, com independência, frente aos governos, mas em sintonia com as necessidades maiores de setores subalternos, os sem privilégios da sociedade. Para Buarque (1994: 152), a autonomia não pode significar um comportamento isolacionista. O autor defende a universidade autônoma, mas não autista. Vê como saída a possibilidade de exercício dessa autonomia com vínculos externos e como caminho para “formular alianças e chamar para os órgãos consultivos e deliberativos representantes externos sindicais, empresariais, governamentais, líderes comunitários e personalidades da comunidade acadêmica, científica e intelectual”. Hoje, passadas duas décadas do relatório GERES, o planejamento institucional vem se efetivando em torno de dois conceitos que, juntos, serão a certeza de novos financiamentos de projetos: a eficiência e a eficácia. A eficácia é compreendida como uma certa capacidade de obtenção de resultados. Já a eficiência estaria mais voltada para a possibilidade de medida da produtividade, isto é, uma relação entre essa capacidade de produzir determinado resultado por unidade de custo. As medidas de eficiência seriam traduzidas de forma mais quantificável, ao se expressar a taxa de evasão, por curso, ou a relação professor/alunos, constituindo-se em indicadores de desempenho científico. Desta forma, pretende-se fazer “tabula rasa” de todas as instituições de ensino superior. Como o projeto do governo é diferenciador, hierarquizador e, sobretudo, excludente, os indicadores apresentados conduzem com facilidade a se timbrar universidades “produtivas” ou “improdutivas”, ou mesmo a se listar pesquisadores como “produtivos” ou “improdutivos”. Tudo isto vem apontar as
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diferentes possibilidades técnicas de execução de atividades avaliativas e demais atividades desenvolvidas no interior da instituição, dirigindo-se todas pela lógica do capital/poder/dinheiro. Kourganoff (1990: 254) mostra a dificuldade de se fazer uma aferição avaliativa no tocante à questão da eficiência134. O autor considera exemplos que mostram a não-existência de padrão nessa área de conhecimento. Há professores avaliados como excelentes por alguns e que são considerados lamentáveis por outros. Destaca ainda que a eficiência contém pelo menos duas variáveis do problema, pouco conhecidas: “suas qualidades pedagógicas e as particularidades do aluno” (ibid.: 255). Para essas medições, a popularidade do professor não serve. O professor pode ser popular pela sua benevolência na avaliação dos exames escolares. O professor pode ser eficiente com alunos que já são brilhantes e que já apresentem bons resultados e, ao mesmo tempo, negligente com os demais. Woff (1993: 112) trata a questão da eficiência como um mito. Ao ser tomado, em sentido abstrato, o conceito de eficiência, além de inócuo, também não provoca questionamento. Seja lá o que se deseja fazer, utiliza-se o método que lhe custar menos. O autor alerta para o fato de que os administradores, ao pensarem em eficiência, de imediato, imaginam os procedimentos de quantificação. Para ele, é possível “medi-la em termos daquilo que está genuinamente relacionado a metas ou valores reais da instituição”. Questiona ainda o modo como se pode medir uma política de admissão em uma escola. Talvez, a melhor política seja a seleção em que os candidatos possam beneficiar-se, ao máximo, das oportunidades educacionais oferecidas pela escola. Mas, para o autor, passa a ser extremamente difícil julgar a eficiência de uma experiência educacional, considerando-a um sucesso ou não. “Os efeitos são subjetivos, variados e freqüentemente latentes por anos e até mesmo décadas” (ibid.: 114). É comum um resultado negativo de uma dessas experiências se revestir de grande positividade para a vida de um estudante, professor ou mesmo para a escola. Novas pressões foram sendo postas para a universidade no Brasil. As novas exigências do capital e sua lógica cultural impõem também uma reorganização própria da universidade. Nessa fase de reordenamento do capitalismo, o governo colocou uma das questões básicas para a universidade, isto é, o problema da avaliação. O Movimento Docente defende a existência da avaliação. Discorda, em relação ao governo, quanto aos métodos ou procedimentos. Contesta também a discussão de questões que procuram avaliar se a instituição é produtiva ou não, ou se os conhecimentos produzidos se alinham à nova ordem. Se esses conhecimentos se adequarem a essa ordem são financiados. Da mesma forma, são incentivados os possíveis novos paradigmas envolvendo esses conhecimentos. Para Leite (1994: 296), “uma rápida olhada para as universidades do Cone Sul mostra que o processo da reordenação sobre as universidades está instaurado”. No Chile135, segundo a autora, as universidades já não recebem os aportes financeiros in totum, e estes são insuficientes para a manutenção das instituições. Implantou-se, naquele país, pagamento de taxas de mensalidades em todas as universidades; vendeu-se patrimônio da instituição; a colocação de serviços e pesquisa no mercado é que está direcionando a fase atual de reordenamento136. Pouco a pouco, a universidade vai se tornando um espaço de formação (ensino) mais do que um espaço para a produção do conhecimento (pesquisa). Nessa lógica, se a pesquisa já está sendo realizada pelas universidades do norte, para que realizá-la, aqui, abaixo da linha do equador? A pesquisa, se for feita, é para atender aos interesses do mercado. Isto mostra um desafio grande e uma situação de embate entre as propostas de universidade para o país, aqui no Brasil, também defendidas por Ab‟Saber (1994: 5). Segundo ele, “é preciso adequar a produção científica às necessidades da população”. A organização do projeto de reformulação da universidade no Brasil, para os tempos atuais, foi retomada, com maior ênfase, desde o XXXI Conselho Nacional de Associações Docentes (CONAD), realizado em Salvador, em outubro de l995. Nele, resgataram-se os planos de lutas do XIV Congresso do ANDES/SN, realizado no ano anterior, e do XXX CONAD. Deu-se especial destaque a uma análise sobre o movimento docente e sobre a situação do país, bem como a avaliação e A esse respeito, observar a atual avaliação docente, pautada pela busca da gratificação da produtividade, conhecida por GED, expressa por um relatório quantitativo de atividades docentes (RAD). 135 O recente aniversário dos 100 anos da Universidade de Santiago do Chile foi comemorado com muito luto, diante do desmonte daquela importante universidade latino-americana, com a implantação das políticas neoliberais. 134
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Vale comparar a identidade das políticas daquele país com as que vêm sendo implementadas aqui no Brasil.
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atualização do plano de lutas anterior. Foram retomadas questões internas das entidades de ensino superior quanto ao aspecto organizativo e financeiro. Organizou-se ainda um conjunto de propostas, destacando-se a elaboração político-teórica denominada Unidade Estratégica População/Trabalhadores. Além disso, foram definidas políticas para as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), no tocante à educação, ciências e tecnologia; comunicação e seguridade social/aposentados. Ainda nesse evento, preparou-se um projeto de avaliação para as IFES. De acordo com análise feita no XXXI CONAD (Cadernos de Textos, 1995), o Estado liberal se constitui como o arcabouço legal-institucional de implementação da racionalidade capitalista. Apontou-se o Estado como o parceiro privilegiado das empresas capitalistas, tanto de forma individual como coletiva. Segundo foi frisado, e não menos importante, “ele estimula ou interdita, através de suas políticas, os movimentos da sociedade em relação à racionalidade capitalista” (p. 31). Essa racionalidade pode ser denominada de economia de mercado que elege, exatamente, o mercado como o regulador principal das relações econômicas e financeiras. Ela institui a individualidade como um caminho ético e a exacerba para uma ilimitude. Constitui-se, assim, de todos esses princípios que são permeados por práticas de mero reforço à propriedade privada. Trata-se de uma racionalidade que procura impedir outras formas possíveis de racionalidade. A situação que se coloca, com a chamada reestruturação produtiva, expõe mais uma crise do modo de produção capitalista buscando mudanças na formação do Estado. Por outro lado, encontra o movimento sindical, popular e partidário em crise e, com isso, vão se limitando os direitos sociais, e ainda os gastos com estatais e com os programas sociais. Há uma luta de encaminhamentos, no seio do próprio movimento organizado, no sentido de que este não passe a fazer negociações a qualquer preço, sendo isto considerado uma idéia moderna. Em relação à educação pública, as políticas do MEC alinham-se com aquelas definidas pelo MARE. Já está em vigor a Lei de Diretrizes de Bases da Educação, conhecida por Lei Darcy/MEC. Por outro lado, o governo continua administrando através de medidas provisórias, cujo plano político estratégico se identifica em uma tônica: a culpa pelo fracasso dos estudantes é da escola e do sistema educacional. Contudo, sabe-se que há planos estratégicos diferenciados. As comissões de estudo já apresentaram seu plano estratégico. O MEC tem plano estratégico e apresenta propostas muito claras. O ANDES/SN e a FASUBRA têm planos estratégicos, porém com objetivos diferentes, propostas diferentes e estratégias também diferentes em relação às do MEC. É preciso, portanto, se perguntar: estratégico para quê? Para quem? “As afirmações de descentralização e parceria, contidas no Plano (o do governo), estão longe de representar democratização, gestão partilhada e distribuição de poder para a sociedade. Significam apenas a transferência de compromissos para os estados e municípios e de responsabilidade para a sociedade. A participação da sociedade é concebida como parceria para o custeio de programas, projetos e de escolas em todos os níveis, alijando-a, como é praxe, da possibilidade de intervenção no planejamento e no controle das políticas públicas para a educação”. “Isto evidencia o desrespeito ao princípio de indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão. Defende o aumento da eficiência e da eficácia das instituições públicas e privadas, comprometendo o Governo cada vez mais com o sistema privado de ensino o qual incentiva ao propor a simplificação do reconhecimento de cursos e credenciamento de instituições. Prevê mais recursos para as instituições privadas através do crédito educativo, do restabelecimento do auxílio financeiro às instituições comunitárias e municipais” (Cadernos de Textos, 1995: 41). Quanto à autonomia contida na Constituição Federal (art. 207), esta precisa ser garantida; entretanto, devem ser mudadas as regras, de acordo com o governo. Essas mudanças são aquelas que o MARE já propôs, isto é, a autonomia condicionada ao controle de qualidade do ensino de todo o sistema. A autonomia está agora apresentada como dependente da parceria para financiamento e para gestão. Nesta mesma direção, foram implantados os procedimentos de avaliação para desmoralizar o ensino público superior, ante a inexistência de quadros qualificados em número suficiente e definir a
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qualidade dos cursos e do desempenho dos alunos expressos pelos exames de final de curso. Através desses mecanismos, processar-se-ão também o reconhecimento de cursos, bem como o credenciamento e o recredenciamento de instituições. Para o Movimento Docente, o MEC oculta o fato de esse centralismo ter sido, historicamente, “construído por iniciativa da burocracia governamental como forma de controle sobre a liberdade universitária. (...) O MEC se recusa a colocar seriamente em debate a questão universitária. Nega, na prática, sua tarefa de garantir a educação como direito de todos e dever do Estado” (ibid.: 42). Essa linha de intervenção, relativa ao ensino superior, se reproduz no âmbito do ensino fundamental e médio. O MEC fez aprovar a criação do Sistema Nacional de Educação Tecnológica (Lei no. 8.948, de 8/12/94), em vigor. Com essa lei, o governo anunciou, mas não cumpriu, o atendimento a dezesseis milhões de estudantes nas Escolas Técnicas e Agrotécnicas Federais. Isto tudo como se fosse uma mágica, não fazendo nenhuma referência a recursos para atendimento dessa meta. Como se não bastasse, poucas têm sido as medidas tomadas para a melhoria do funcionamento das escolas de ensino fundamental e médio e Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) existentes. Essa política sinaliza para a manutenção da dualidade estrutural da educação brasileira, mantendo a linha elitista, mesmo dentro dos quadros de técnicos qualificados pelas antigas Escolas Técnicas e Agrotécnicas. Por outro lado, transforma essas escolas em ambientes reprodutores do modo de produção capitalista, “tornando tênue a separação entre a esfera pública e a esfera privada” (ibid.: 43). Ainda quanto à questão da autonomia, o MEC desenvolve uma tática de cooptação e exclusão em relação às entidades de representação dos segmentos sociais envolvidos. Sob o pretexto de tratar questões de cunho estritamente institucional, até o ano de 2002, empenhou-se em promover contatos e encontros apenas com a ANDIFES (Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), excluindo o ANDES/SN e a FASUBRA, numa tentativa explícita de tentar cooptar os reitores para aceitarem suas propostas, destacando a do orçamento global, separando a autonomia da isonomia, da estrutura de carreira, do padrão único, etc. Esta tática funcionou com alguns reitores de universidades públicas. Em relação ao padrão único, o MEC tenta mostrar a inexistência desse padrão em qualquer lugar do mundo. “A aparente ausência de uma política educacional, tradicional no MEC, é na realidade a mais danosa das políticas. Ela revela com clareza o processo do desmonte do Estado. Política unânime: Sarney, Collor, Itamar e FHC” (ibid.: 42). Está em jogo, portanto, a concepção de universidade defendida pelo Movimento Docente. Mesmo quanto ao padrão unitário de qualidade, o MEC “sinaliza para repassar para as mãos dos dirigentes da formação contínua” (Motta, l996: 63). Aquele parecer, ao ser encaminhado dessa forma - o repasse para as IFES - parece querer deixar sobre os seus dirigentes a responsabilidade do erro, caso não funcione a proposta. Enquanto isso, o MEC põe em operacionalidade o provão de final do curso, implantado já em quase todos eles. Como se não bastasse, altera os procedimentos conquistados pelos segmentos da universidade, no tocante aos valores de votos referentes à eleição de reitores. Como forma de serem mantidos o combate sistemático às propostas neoliberais do governo FHC e o debate sobre a questão da universidade, na reunião do CONAD (Salvador), o Movimento Docente definiu oito eixos centrais em defesa da universidade e da educação: “A defesa da escola pública, gratuita, democrática e de qualidade em todos os níveis; a construção do projeto democrático popular em oposição às políticas neoliberais do governo FHC; a defesa da soberania nacional e dos direitos sociais garantidos na constituição e a luta contra a reforma constitucional de caráter neoliberal; a defesa do serviço público e o controle democrático desses serviços pela população; a luta pela democratização dos meios de comunicação; a defesa da independência de classe das organizações dos trabalhadores contra a cooptação governamental/patronal e a solidariedade com a luta dos trabalhadores e dos povos do mundo, em especial do México, Argentina e contra o bloqueio a Cuba; a defesa das liberdades democráticas e construção efetiva da cidadania; a luta pela reversão da miséria e por condições dignas de vida para toda a população” (ibid.: 44). Diante da evolução dos acontecimentos em torno do debate de projetos de universidade com a sociedade, o Movimento Docente atualizou a Proposta do ANDES/SN para a
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Universidade Brasileira, quando da realização do XXXII CONAD, ocorrido em Guaratinguetá, São Paulo, em junho de l996. Essa proposta contemplava os seguintes temas: a universidade e a responsabilidade do Estado com a educação; a sua caracterização jurídica; a proposta de autonomia do ANDES/SN; a proposta para financiamento da universidade; a universidade, ciência e tecnologia; a carreira docente e a política de capacitação docente; a gestão democrática; a avaliação interna e externa (Cadernos ANDES, no. 2, 1996). Por outro lado, Darcy Ribeiro, ao buscar apresentar finalidades para a educação superior, debatendo sobre a ´universidade necessária`, atribui à extensão um papel de formação cultural e profissional dos cidadãos pela extensão cultural. A esta tem sido dada, até, constitucionalmente, a função de garantir cursos abertos à sociedade, atendendo aos requisitos definidos pelas próprias instituições. Destaca-se, aqui, o papel da extensão nesse voltar-se da universidade para os diferenciados setores da sociedade. As propostas de universidade para o país, elaboradas pelo Movimento dos Servidores, através da FASUBRA e pelo Movimento Docente, através do ANDES/SN, vêm mostrando que cabe à universidade a capacidade de preparar profissionais que sejam compatíveis com as necessidades de desenvolvimento regional ou do país, e com “as aspirações técnico-artístico-culturais da sociedade” (ibid.: 12). Exige-se a necessidade de integração entre ensino, pesquisa e extensão. É um projeto a ser inserido num plano educacional global formulado pela comunidade universitária e vinculado às necessidades da sociedade. Compete ao Estado137 garantir as demandas pela educação; em particular, a universidade precisa ser autônoma e democrática. “As atividades de extensão, seja através da prestação de serviços à comunidade, seja por outros mecanismos, devem ser concebidas e estruturadas enquanto instrumento de formação acadêmica, de apoio às atividades de pesquisa e à comunidade, não estando, portanto, subordinadas ao objetivo de captação de recursos para a complementação de recursos insuficientes na dotação orçamentária” (ibid.: 30). Sendo a universidade um campo de disputas políticas, cabe à sua administração o gerenciamento de tensões. Essa administração não se realizará sem um sistemático embate envolvendo questões de autonomia da universidade e, talvez, a experimentação de uma administração colegiada. Nesse sentido, defrontar-se-á com uma incessante busca por autonomia institucional em suas diferenciadas facetas de expressão ou, como esclarece Penteado (1998), autonomia acadêmica plena, voltada à produção e à socialização do conhecimento. Mas, será uma autonomia restrita se não estiver contemplada a autonomia administrativa, de gestão financeira e patrimonial, de liberdade para estabelecer políticas e concepções pedagógicas. Autonomia que não se confunda com a que está sendo propalada pelo MEC e que, também, é combatida pela Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). Para Oliveira (1999a: 4)138, a proposta do MEC provocará “efeitos desastrosos”, caso seja implantada. Uma das conseqüências é submeter a universidade a contratos de gestão, simplesmente enquadrando-a no art. 37, § 8o., da Constituição, cujo artigo refere-se a qualquer tipo de instituição pública. Ao aderir a esse tipo de contrato, efetivamente, a universidade perde a sua autonomia. Esse contrato possibilitará, inclusive, intervenção na universidade, caso as metas definidas não tenham sido cumpridas. Isso pode atingir, particularmente, as universidades federais da região Nordeste e Norte. Ou seja, quebrando-se o plano de carreira, a remuneração dos servidores deverá ficar à mercê do mercado, reduzindo os seus recursos. Há de se considerar, ainda, a permanente asfixia
Mesmo no atual contexto, sempre é interessante relembrar palavras do fundador da Universidade de Berlim – Humboldt que via como obrigação do Estado: “a) manter a atividade científica do modo mais dinâmico possível; b) evitar o declínio desta atividade. Em outras palavras, preservar com precisão a diferença entre instituição superior e escola. Tal diferença deve ser preservada não apenas no que se refere à instituição, predominantemente, dedicada à atividade teórica mas também àquela que se volta para aspectos diversos da vida prática” (1997: 82). 138 Jader Nunes de Oliveira, Reitor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Vice-Presidente da Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). Ver: Jornal Multidéias. Em debate – Autonomia. Ano I, no. 4, dez/1999, João Pessoa, PB. 137
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de recursos pelo governo federal às universidades, mesmo neste início de século, comprometendo o ensino, a pesquisa e a extensão. Mas, o debate político entre projetos de universidade continua. Na atualidade, a situação de crise da universidade pode ser vista sob vários ângulos. Para Oliveira (1999b: 15) 139, há várias crises decorrentes de inúmeras funções que foram sendo outorgadas às universidades. Há uma crise de hegemonia, na medida em que se “perde espaços no tocante à pesquisa, ao ensino das profissões e à prestação de serviços para outras instituições, sejam elas escolas politécnicas, institutos tecnológicos, faculdades particulares, institutos não universitários de pesquisa (públicos e privados), Ongs”. Há uma crise de legitimidade, na medida em que a universidade não cumpre os objetivos que lhe são destinados, pondo sua credibilidade em questão. Há uma crise institucional, posto que se vive numa situação de permanente contração orçamentária, provocada pelo governo 140. Há, ainda, uma crise de paradigma de conhecimento, tão presente na cultura moderna. Esta se externa pelo grau de especialização que se vive, pela fragmentação dos saberes, além da “inexistência de vasos comunicantes entre os diferentes domínios do conhecimento, pelo fato de a ciência ter se tornado instrumental, separada da arte, das humanidades e do saber da tradição. Enfim, pela disjunção sujeitomundo, natureza-cultura, subjetividade-objetividade” (ibid.: 16). Isso tudo vai conduzindo a universidade pública às normas do mercado, privilegiando a dimensão instrumental para a execução de suas tarefas e reduzindo a formação do indivíduo. Assim é que o redimensionamento da universidade pública passa por desafios tais como: reanálise do atual modelo de gestão; definição da função social da universidade e sua identidade; questionamento, com a radicalidade necessária, das práticas do ensino, da pesquisa, da extensão e de administração; procedimentos de entrada na instituição (vestibular); relacionamento com setores produtivos, com o governo e instituições da sociedade civil; capacitação profissional e a avaliação da universidade; prestação de contas, de forma inteligível, à sociedade e o desafio do fomento de projetos inovadores aos seus próprios quadros. Mas, o cenário político nacional alterou-se com os resultados eleitorais neste início de milênio141. Ora, as políticas para a educação e para toda a sociedade não serão alteradas com a velocidade dos anseios das massas sociais e populares que buscaram, pelo voto, as mudanças necessárias para o país. O modelo das políticas dominantes insistirá em permanecer por um certo tempo. Todavia, as reivindicações tidas tão distantes, hoje, podem estar mais próximas de serem efetivadas142. Contudo, só terão significado se fizerem parte da busca por saídas criativas, com a convocação geral das capacidades intelectivas instaladas na universidade, para o exercício político das atividades em geral, voltado à implementação de uma universidade pública, gratuita, de qualidade, autônoma, democrática, laica e necessariamente crítico-ativa. Ora, a luta pela hegemonia no campo universitário continua sendo fruto do conjunto das práticas que já vêm sendo desenvolvidas no âmbito desse aparelho de hegemonia. Continuará com os novos direcionamentos da práxis universitária dos setores empenhados na busca de mudanças, também, no campo institucional. Pensar assim é buscar uma nova formação social, sendo indispensável a visão ideológica desse novo contexto, considerando-se que ela se insere nas novas relações de classes estabelecidas com o atual momento político. Essas relações servirão como guia para uma melhor compreensão da própria ideologia em jogo, de sua influência na formação, Ótom Anselmo de Oliveira, Reitor eleito, para o quatriênio 1999-2003, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Um exemplo que ajuda a compreensão desse processo é a crise em 2002, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH - da maior universidade pública do país (USP), onde os alunos mantiveram-se por um longo período de greve, reivindicando contratação de professores. 139 140
Referência aos resultados eleitorais da disputa presidencial no ano de 2002, em que foi eleito, para Presidente da República, o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). 141
Na primeira reunião com o Ministro da Educação, Cristóvam Buarque, foram-lhe entregues os seguintes documentos do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES/SN): carta do 4o. CONED; PNE da sociedade brasileira; termo de acordo entre o MEC, ANDES/SN e SINASEFE assinado no fim da greve de 2001; projeto de lei de carreira única, do ANDES/SN; pauta de reivindicações dos SPF; Proposta do ANDES/SN de medidas emergenciais a serem implementadas pelo novo governo; e o cadernos de política educacional do ANDES/SN, n O..1, set. de 2002 – “ A transformação da educação em mercadoria: ALCA, OMC e outros (des) acordos internacionais”, n o. 2, out. de 2002 – “ O programa de capacitação docentes do ANDES/SN em tempos de PQI”. 142
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manutenção e transformação da sociedade em geral. Presente estará em todas as suas dimensões o debate de reformas que, no conjunto, poderão expressar uma reforma intelectual e moral. A elevação civil dos estratos sociais empobrecidos será definida, em boa parte, nos programas dessa reforma. Trata-se de um programa que exigirá muita análise por parte de seus implementadores, considerando os limites postos por duas formulações de Marx. A primeira diz respeito à impossibilidade de a sociedade propor tarefas para cuja solução não existam de imediato as condições necessárias e suficientes, ou que estas não estejam em via de aparição e de desenvolvimento. A segunda é que nenhuma sociedade se dissolve ou pode ser substituída sem antes ter desenvolvido todas as formas de vida implícitas nas suas relações. Essas relações exigirão maior discernimento de si mesmas em movimentos orgânicos e em movimentos de conjuntura. No processo de construção de hegemonia, agora de forma mais aguda e com tendências para os setores populares, a lembrança de Gramsci (1987: 49) ajuda a distinguir os três momentos das relações e forças. No primeiro, a classe existe objetivamente, mas não se traduz necessariamente em existência política. No segundo momento – o político – as classes vivem um processo econômico-corporativo voltado para si e para seus interesses específicos. No terceiro, situa-se a relação de forças militares. Esse momento está dividido em graus, no sentido estritamente técnico-militar e político militar. A constituição de uma nova hegemonia irá permeando, possivelmente, por estes momentos, com maior destaque aos dois primeiros. Na construção dessa hegemonia, estará em jogo um conjunto de políticas que envolve diversas organizações sociais como igrejas, sindicatos, escolas, comunicação, organizações populares e outras – os aparelhos de hegemonia de classe que serão convocados à participação. A universidade nunca esteve fora e não estará, também, neste momento, acompanhada de todas as suas contradições e conflitos. A noção do aparelho de hegemonia, presente em toda a teoria da hegemonia, não dependerá de sua articulação das proposições que estão em cena nas lutas políticas estabelecidas. Sua realização dependerá do lócus específico; terá um conteúdo preciso e com as formas e instrumentos que lhes são próprios. Mas, como poderá a universidade contribuir nesse processo de ajuda na construção da hegemonia dos setores subalternos da sociedade, considerando os novos ares políticos de mudanças que assolam todo o país? Ora, a extensão universitária vem sendo apresentada como o elo entre a universidade e a sociedade, um canal comunicante da instituição com o povo, ou outras formas de facilitar a relação entre universidade e sociedade. A luta ideológica atual se apresentará com maior radicalidade em confronto com as políticas estabelecidas em bases liberais que têm se apresentado com tal plasticidade que continua a atrair as maiorias da sociedade. O liberalismo que assume postura de uma filosofia, no sentido gramsciano do termo, isto é, um pensamento que engloba um arco de uma época e que, por si mesmo, se torna capaz de organizar uma civilização, continuará seduzindo os corações. As políticas públicas vigentes estão permeadas ainda desse ideário presente nas tomadas de decisões, nas posturas políticas dos agentes dessas políticas, também, na universidade. Nesta, a extensão universitária muito poderá contribuir para difundir as características de uma nova cultura em instalação, em combate sistemático ao modelo que continua incentivando a individualidade, a defesa intransigente da propriedade privada, alimentando o mercado como seu grande sonho, buscando a acumulação capitalista e se postando como a única alternativa de vida para as pessoas. A sociedade exibe-se como injusta, violenta e profundamente instável. O que poderá ocorrer é um novo exercício de combate à dominação estabelecida, buscando outras reformas, tanto no campo econômico e político como no cultural, em favor de novas conquistas democráticas e sociais, onde já houver conquistas, e garantia de sua realização em ambientes onde tais conquistas sociais ainda não chegaram. A realidade mostra que o saldo dessa versão política liberal tem gerado desemprego de longa duração, pobreza antiga e surto de pobreza nova, agressão ecológica, impacto e maior distanciamento dessas populações em relação à implantação das novas tecnologias, maior exploração pelo trabalho, aceitação explícita das desigualdades, além da crise moral, em âmbito nacional e internacional. Pela extensão, os seus agentes precisam estar atentos, quanto às ações em desenvolvimento nos projetos, pois é possível a reprodução dessa crise moral, também no interior desses projetos. As práticas de extensão passarão a exigir novas perspectivas teóricas para o próprio campo da extensão e com perspectivas metodológicas promotoras da participação dos agentes e, sobretudo, da própria comunidade, onde esses
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projetos estejam em desenvolvimento. Novas práticas também serão exigidas para a veiculação de novas ações políticas. Como mostra Melo Neto (2001a: 227), no confronto de projetos de universidade “as questões fulcrais desse aparelho de hegemonia precisam ser mais discutidas e socializadas, demonstrando a importância de sua existência e as suas potencialidades, mesmo que reduzidas, para os setores subalternos da sociedade”. Um debate que insere a universidade, naquilo que diz respeito às questões da ciência e da tecnologia, perpassadas pelo debate sobre cultura, com destaque para a veiculação de valores coletivos frente à avalanche do individualismo, patrocinada pelas políticas neoliberais estabelecidas. Esse tipo de debate avançará, tornando-se mais público, mais regionalizado e mais localizado, para maior interação com propostas e com diversos atores sociais dispostos a somarem, na direção das mudanças para a sociedade brasileira. A universidade, por meio de seminários, encontros e congressos de extensão, ensino e pesquisa em comunidades, poderá instaurar formas de socialização e de integração do fazer acadêmico, buscando o conhecimento de temáticas regionais, sem defender ciência regionalizada. Com isso, contribuirá para as soluções de problemas também regionais, na permanente busca de questionamentos de cânones instalados por avaliações da produção do conhecimento que desprezam essas questões. Afinal, a quem interessaria estudos143 sobre a situação de crianças na Amazônia ou na região do semi-árido; sobre o mundo da economia informal fora dos grandes centros populacionais; sobre as potencialidades da caatinga nordestina ou do cerrado do Centro-Oeste; sobre a avaliação de carcaças, gordura de cobertura e peso de bovinos abatidos em matadouros de pequenas cidades de interior; sobre as formas de organização em áreas de assentamentos? É razoável admitir que estes não são projetos de pesquisa que despertem interesse ao capital nacional e internacional. A realidade e o pensamento crítico precisarão estar confrontando e ratificando ou não, de forma permanente, as práticas sociais em desenvolvimento. Estas precisarão contribuir para o delineamento de novas reivindicações144, conquistas das necessidades universalizadas, gerando outras práticas pedagógicas e educativas de uma nova formação intelectual e moral, em que os que vivem ou viverão da força de seu trabalho se apercebam de sua realidade mesma e se convençam da justeza de sua caminhada para a cidadania. Este novo momento histórico da sociedade brasileira instaura as seguintes questões: que bases conceituais servirão de vetor para a extensão universitária atendendo à perspectiva delineada? Para que tipo de sociedade poderão estar contribuindo? Que processos educativos serão úteis para a sua realização? Estas são questões que balizarão as futuras disputas políticas, no interior da universidade, em todo o país145.
Uma amostra de projetos apresentados no I Encontro Unificado de Ensino, Pesquisa e Extensão, na Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 1996. 143
Ver Carta de João Pessoa(anexa), resultante do I Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, realizado em João Pessoa, PB (nov/2002), em que se reconhecem os desejos de mudanças da sociedade brasileira e a disposição da universidade para integrar esse movimento de mudança, reafirmando o seu compromisso social e compreendendo a “educação superior como um bem social, indispensável ao desenvolvimento do país e ao bem-estar do seu povo”. 145 A busca de respostas a estas questões tem como base empírica a pesquisa - Extensão universitária, autogestão e educação popular, realizada a partir da experiência da Usina Catende, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, no período de maio a setembro de 2002; na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da USP; além da participação em atividades desenvolvidas pela Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS) da Central Única de Trabalhadores, na Paraíba, e na Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária (ANTEAG), em São Paulo, de outubro a março de 2003. 144
A Usina Catende, como massa falida, está sendo administrada por um Conselho de Gestão, constituído de seis sindicatos de trabalhadores e técnicos especializados em questões de açúcar, com perspectiva autogestionária. A ITCP/USP vem se tornando uma das mais importantes incubadoras de cooperativas populares em universidades, a ADS, como uma agência voltada a todo país, formando quadros técnicos e políticos no campo da economia solidária e a ANTEAG/SP que promove a Associação dessas empresas. Esta pesquisa foi parte do programa pós-doutoral, desenvolvido juntamente com o Prof. Dr. Celso de Rui Beisiegel, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP.
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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: UM TRABALHO SOCIAL ÚTIL Os desafios postos com o novo momento histórico por que passa o país desafiam também as instituições de ensino superior para uma maior interatividade com as camadas sociais que, efetivamente, não estão presentes nos ambientes onde se realiza esse tipo de ensino. A rigor, também não se fazem representar em outros níveis da educação formal, considerando os altos índices que indicam a fome146, o analfabetismo e as desistências das escolas públicas. Estas questões consubstanciam um desafio para o Estado e suas instituições, alimentando a possibilidade de sua superação por meio de políticas que eliminem tal processo de exclusão social. Não basta, contudo, o sentimento da necessidade de superação de tais situações. Urge analisar as possibilidades da contribuição das várias instituições da sociedade, em particular, a instituição de ensino, pesquisa e extensão – a universidade. Por outro lado, é importante, do ponto de vista teórico, a busca de instrumentos que possam contribuir nessa perspectiva, considerando que várias práticas políticas foram desenvolvidas, às vezes, com preocupações nessa mesma direção, não atingindo os seus objetivos proclamados. Isto conduz a uma reflexão mais rigorosa sobre a extensão, dimensão da universidade que tem expressado maiores possibilidades de ter a realidade presente em seus objetos de estudos. Nesse contexto, é preciso retomar a questão: Que bases conceituais servirão de vetor para a extensão universitária, podendo contribuir para possíveis encaminhamentos condizentes com a busca de soluções aos desafios presentes e que possibilitem o envolvimento das demais dimensões da universidade - o ensino e a pesquisa? Várias têm sido as concepções da extensão universitária. São conceitos que foram estabelecendose a partir de discursos gerais oriundos do interior de si mesma, presentes no discurso de professores e de órgãos públicos que atuam no campo da extensão. Esses conceitos, em sua maioria, fazem parte das acepções dominantes sobre a extensão universitária, em geral, originários de práticas assistenciais. Uma dessas concepções147 afirma ser a extensão algo enriquecedor para os objetivos da universidade. Observa-se nesta compreensão que não são colocados os objetivos da universidade. Além disso, não se esclarecem o tipo e a forma como ocorre esse enriquecimento: se é monetário, teórico, prático ou outra alternativa. Extensão também é vista como atividade promotora do conhecimento. Mas esta é uma perspectiva incapaz de responder às seguintes questões: que tipo de conhecimento está sendo promovido? Como está sendo produzido? Quem está sendo beneficiado com essa promoção? A extensão é mostrada como expressão do retorno à sociedade daquilo que esta investe na universidade. Embute-se uma compreensão de troca entre a universidade e a sociedade, em que aquela precisa devolver a esta tudo que está sendo investido. Essa visão vislumbra a universidade como devedora da sociedade, fragilizando-a nessa relação ou expressando, talvez, um desejo de instalação, na universidade, da política do toma-lá-dá-cá. Há ainda uma definição que mostra a extensão como um meio que liga o ensino e a pesquisa. Imagina-se que um ente concreto liga os dois outros constituintes: ensino e pesquisa. Contudo, o ensino e a pesquisa podem constituir esse ente. Mas, será necessário que se saiba o significado do meio presente nessa conceituação. Será o meio um instrumento pelo qual se pode chegar a outras conjecturas sobre extensão? Será um instrumento através do qual se domina a própria extensão, o ensino ou a pesquisa? Será o meio o intermediário para se chegar ao ensino e à pesquisa? Precisa-se desse meio? Extensão também tem se apresentado como uma forma de corrigir a ausência da universidade nas problemáticas da sociedade. A extensão, aqui, externa-se como forma. Terá essa forma um conteúdo? Afinal, qual é o conteúdo dessa forma? Entretanto, a formulação vai mais além: ela considera a universidade como ausente dos problemas da sociedade. É verdade que ela está ausente de vários problemas, mas se faz presente em outros tantos. No campo das ciências sociais, cabe perguntar: por que nos cursos de graduação, em geral, não se estuda Brasil ou América Latina? Por que em muitos cursos de A propósito, ver o primeiro discurso do Presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (eleições presidenciais de 2002), estabelecendo, como prioridade de seu governo, a eliminação da fome no país, com a definição do Projeto Fome Zero. 147 As concepções que seguem nesses três parágrafos foram coletadas de projetos de extensão universitária, encaminhados para financiamento, na Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários (PRAC/UFPB), durante a realização da pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000), coordenada pelo prof. José Francisco de Melo Neto. 146
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medicina não se enfatizam doenças tropicais? Essas mesmas indagações podem ser feitas em relação à pesquisa. Contudo, a universidade está presente naquelas temáticas definidas pelos setores dominantes para que sejam submetidas aos projetos de extensão, às atividades de ensino e à pesquisa. Os órgãos financiadores estão, permanentemente, definindo essas temáticas. Durante a realização do XIII Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Nordeste (1995), em Natal, a extensão foi considerada “um nascedouro e desaguadouro da atividade acadêmica, da qual a pesquisa seria o desenvolvimento das respostas, e o ensino o envolvimento dos estudantes em todas as etapas desse processo...”. Ao considerar a extensão como nascedouro e desaguadouro de atividades, esta visão, simplesmente, a elege como a origem e o fim das atividades acadêmicas. Parece muito mais um procedimento idealizado quando se destina esse papel à extensão. Há de se perguntar: a origem da problemática da pesquisa não passa pela realidade circundante do pesquisador? Será obra de mera idéia gerada de sua genialidade ou de circunstancial inspiração? O ensino envolvido pela perspectiva apresentada não poderia ter origem a partir de elementos da realidade? De que forma a extensão propõe-se ser nascedouro e desaguadouro de toda e qualquer atividade acadêmica? Essa formulação inspira pró-reitores a veicularem a compreensão de extensão como a porta na qual os clientes e usuários têm de bater, quando necessitados. Dessa forma, materializa-se a extensão, extraindo-lhe o véu metafísico que a envolvia, tornando-a um ente concreto. Todavia, a presença de uma porta pressupõe a existência de uma separação, sendo esta o divisor entre o dentro e o fora. Pressupõe-se, em decorrência desta formulação, que a universidade deva estar do lado de dentro, enquanto o algo do lado de fora deve ser a sociedade ou vice-versa. Mais uma vez, assim compreendido, mantém-se o mesmo viés da visão na qual a universidade constitui-se como uma instituição isolada da sociedade, como se não fosse uma organização da própria sociedade, em constantes conflitos ideológicos. Em grande medida, a extensão vai sendo veiculada como prestação de serviços. Ora se torna estágio, quando atrelada a programas de governo; ora se torna uma forma de captar recursos; ora, por meio dela, busca-se estudar problemas da realidade. O mais curioso é que a extensão, muitas vezes, é considerada como uma espécie de sobra na universidade, podendo ser tudo aquilo que não se identifique como atividade de ensino ou de pesquisa. No entendimento de Rocha (l980), essas expressões são equivocadas para a compreensão da extensão. Para ele, é melhor pensar a extensão por meio da comunicação, considerando essa comunicação na perspectiva freireana, em que a sua sustentação decorre do processo dialógico. Contudo, admitida a existência do diálogo, é preciso perguntar: com quem o diálogo se faz? Será que não permanece, nessa formulação, a divisão entre a sociedade e a universidade, mesmo que ambas possam existir, distanciando-se e aproximando-se como resultado desse diálogo? Como se dá esse diálogo comunicativo? Existe uma ação comunicativa habermasiana nessa compreensão, onde a busca principal constitui-se no consenso como mecanismo último da organização da sociedade? Esse diálogo proposto como estratégia para a convivência social suportará a coexistência consensual em uma sociedade de classes e tão profundamente dividida? Pode-se ainda resgatar a formulação de extensão universitária produzida pelo I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas. Nele foram apresentados vários aspectos determinantes para uma compreensão da extensão universitária e que merecem destaque, como, por exemplo: a extensão constitui-se como processo educativo, cultural e científico. Parece interessante ter, como ponto de partida, a visão de processo para análise e definição do que seja extensão. O Fórum caracterizou esse processo como via de mão dupla. Aí, pode-se questionar o uso da idéia de via, considerando que essa simbologia cai na dificuldade de compreensão de que a universidade é parte da sociedade. Essa via de mão dupla da extensão teria o papel de manter a interligação entre ambas. Esse movimento de vai-e-vem, na formulação do Fórum, viabilizaria a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade, ou seja, no buscar e levar conhecimento. Ora, será que a democratização do conhecimento, mesmo aquele acadêmico, resolve-se pela extensão através da perspectiva de mão dupla? Sabe-se que a questão da democratização do conhecimento envolverá a produção e a posse dos resultados, constituindo-se, dessa forma, numa questão muito mais abrangente e complexa. O conceito de extensão não pode assentar-se como via de mão única, considerando a presença autoritária, aí implícita, do fazer acadêmico, onde a universidade sabe e vai levar algum conhecimento àqueles que nada sabem: as comunidades ou a classe trabalhadora. “A universidade pode passar a sua
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experiência para as pessoas que estão diretamente fazendo com que as suas experiências funcionem, aqui na região” (Ronaldo R. Silva, agricultor participante do Projeto Cana de Morador, nos engenhos da Usina Catende/PE)148. Destaque-se que, diante do mundo da vida que levam as pessoas, muitos dirigentes de comunidades, de entidades ou de movimentos sociais passam a reforçar a percepção da universidade como alimentadora de práticas que expressam o doar da universidade para a comunidade. A universidade nesta visão não sofre qualquer tipo de aprendizagem na relação que se estabelece, conforme expressa este depoimento: “Eu acho que a universidade pode contribuir demais aqui dentro (Projeto Harmonia-Catende), porque aqui a gente não tem muito conhecimento. A cultura daqui é plantar cana que vem dos nossos ancestrais. E aí a questão de outro tipo de cultura, quando se tem a universidade engajada num projeto desse, eu acho que só tem a contribuir, porque ela pesquisa” (Maria Antonieta, assessora para projetos de educação e produção da Usina Catende-PE)149. Enquanto solicita a ajuda por não ter conhecimento para sair de seus próprios problemas, contraditoriamente, a entrevistada demonstra que tem conhecimento ao dizer aquilo que sabe que é a cultura da cana. O trabalhador, ao ser perguntado sobre a possibilidade de contribuição da universidade ao mundo dele, vislumbra uma certa força mágica da instituição, dando-lhe um poder capaz de conscientizar as pessoas: “Eu acho que é tentando conscientizar, orientar, passar para os trabalhadores, para os empregados de Catende” (Elenildo Ferreira, Presidente da Associação de Moradores do Engenho Riachão – Catende/PE)150.
Campos da Usina Catende (PE)
Mas há aqueles que vêem outras possibilidades mais atinentes ao papel da universidade no cenário da produção do conhecimento: “Acho que é de suma importância essa usina conviver bem com as universidades. Acho que está com a universidade a questão-base para o desenvolvimento que é
148
Entrevista para esta pesquisa.
149
Entrevista para esta pesquisa. Entrevista para esta pesquisa.
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a tecnologia” (Mário Borba, Síndico da Usina Catende)151. Ou, como destaca Arnaldo Liberato (Assessor-técnico da diretoria da Usina Catende): “Somos uma área muito rica para a pesquisa. A questão do meio ambiente, as questões agrícolas, as questões sociais mostrando que precisamos muito das universidades com sua capacidade científica, sua capacidade de pesquisa, sua capacidade de orientação. Nós temos uma carência muito grande nesse sentido e não temos pernas para bancar pesquisas. Entendemos que este é um papel da universidade. Na universidade, buscamos parcerias, porque têm muitas pessoas sérias, muitos técnicos competentes que gostam e apostam em coisas assim (o projeto Catende/Harmonia). Estamos apostando nisso”152 . A concepção de extensão como via de mão dupla separa o processo educativo da própria educação, o processo cultural da produção da cultura, bem como o processo científico da própria ciência. Pode-se questionar: quais os interesses que se manifestam nessa realização? Será a extensão algo ideal, capaz de viabilizar uma relação transformadora, como propõe aquele conceito? Em uma via de mão dupla, há um momento de tensão nesse passar de algo que vem em uma mão, para algo que vem em sentido contrário. Será esse o momento da extensão? Mas de que se constitui esse momento? Em geral, as ultrapassagens no mundo físico, seguindo a simbologia das vias apresentadas, são muito rápidas. Extensão será apenas um certo momento ou buscar-se-á uma maior permanência, considerando a idéia de processo? Talvez, visualize-se uma mão que segura outra. Essa simbologia já foi bastante utilizada, na década de 60, sobretudo, nos tempos da Aliança para o Progresso153, prestando-se para a ideologia do desenvolvimento da época. Essa simbologia parece conduzir, por conseguinte, à monotonia e à estabilidade e, naquele caso, à dominação. As mãos tinham expressão de força diferenciada. Assim, essas situações não combinam com o conceito de processo, que é dinâmico. Extensão será expressão de monotonia? Esta compreensão de extensão, como via de mão dupla, pode destacar, ainda, um retorno dos conhecimentos para a universidade, como se aí estivesse o único espaço para a reflexão teórica. Não se estará gerando uma dicotomia, inclusive espacial, da condição de reflexão teórica, ao transladá-la para o espaço da universidade? Pode até se perguntar: será a universidade o lugar, por excelência, para a reflexão teórica? Não seria esse espaço o próprio lócus de realização das atividades de extensão? Ainda na compreensão da extensão como via de mão dupla, afirma-se que a produção de conhecimento é resultante do confronto com a realidade, seja brasileira, regional ... enfim, do confronto com a realidade. Não será uma redução dos diferenciados processos de geração do conhecimento? Extensão, na perspectiva da produção do conhecimento, não pode contemplar conceitos que expressem apenas uma „relação unívoca‟, que se desenvolve em um sentido - universidade para o povo. Esta visão não permite novas definições ou possibilidades, ao anular o espaço da contradição, uma vez que os intelectuais da universidade (professores, alunos e servidores) já definiram tudo. Paulo Freire (1979: 22), ao interpretar as diferenciadas possibilidades conceituais de extensão, mostra que o termo aparece como transmissão; sujeito ativo (de conteúdo); entrega (por aqueles que estão além do muro, fora do muro). Daí falar-se em atividades extramuros; messianismo (por parte de quem estende); superioridade (do conteúdo de quem entrega); inferioridade (dos que recebem); mecanismo (na ação de quem estende); invasão cultural (através do conteúdo levado, que reflete a visão do mundo daqueles que levam, que se superpõem, à daqueles que passivamente recebem). Sugere, finalmente, extensão como comunicação. Ao se vislumbrar extensão como comunicação, permanece ausente o significado mesmo da extensão. A formulação de um conceito a partir de um outro, como o de comunicação, leva a extensão a permanecer no vazio da indefinição, tornando-se o outro substantivo. A superação desse tipo de conceito exigirá que outros demonstrem a instauração do diálogo como pressuposto de suas realizações, dando prioridade às metodologias que incentivem a participação dos envolvidos nesses 151 152
Entrevista para esta pesquisa. Entrevista para esta pesquisa.
Projeto ligado ao governo norte-americano para eliminar a fome do continente, implementando a sua ideologia de progresso, consistindo em distribuição de alimentos ao povo pobre. 153
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processos. Extensão também é expressão de relações processuais, contudo não é essa relação em si mesma. A atividade de extensão tem sentido se interpretada como “a criação e recriação de conhecimentos possibilitadores de transformações sociais, onde a questão central será identificar o que deve ser pesquisado e para quais fins e interesses se buscam novos conhecimentos” (BRASIL/MEC, Plano Nacional de Extensão Universitária, 1999: 5). Destaque-se a necessidade da produção do conhecimento e não simplesmente a promoção de uma relação entre saberes acadêmicos e saberes populares. A busca por produção de um conhecimento transpõe a dimensão meramente de troca de saberes. Essa dimensão ocorre nas ações extensionistas, mas não se constitui, meramente, de processos relacionais. A definição formulada no I Fórum de Pró-Reitores (Brasil/MEC: 1987) já vislumbrava a preocupação com a “produção do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade” (ibid.: 5). Fazer extensão pressupõe a ação propriamente dita, pois esta não se enquadra em mera perspectiva contemplativa da realidade. Nesse sentido, é importante ressaltar a conclusão do Fórum: “A intervenção na realidade não visa levar a universidade a substituir funções de responsabilidade do Estado, mas sim produzir saberes, tanto científicos e tecnológicos quanto artísticos e filosóficos, tornando-os acessíveis à população, ou seja, a compreensão da natureza pública da universidade se confirma na proporção em que diferentes setores da população brasileira usufruam dos resultados produzidos pela atividade acadêmica, o que não significa ter que, necessariamente, freqüentar seus cursos regulares” (ibid.: 6). A construção de um conceito atualizado para as necessidades que estão apresentadas, no atual momento histórico, exige que se vá além das possibilidades apontadas, buscando as relações internas existentes e suas práticas nas instituições promotoras de extensão, como a universidade. Volta-se, ainda, às questões que a realidade objetiva mais expõe àqueles que desenvolvem atividades de extensão. É nessa perspectiva que se torna possível encontrar uma definição de extensão, nas conclusões do citado Fórum de Pró-Reitores. Nessa condição, a extensão busca atender as multiplicidades de perspectivas em consonância com os seguintes princípios: a ciência, a arte e a tecnologia devem alicerçar-se nas prioridades da região; a universidade não pode entender-se como detentora de um saber pronto e acabado; a universidade deve participar de todos os movimentos sociais, visando à construção da cidadania. Nesse aspecto, a extensão pode “ser encarada como um trabalho social, ou seja, ação deliberada que se constitui a partir da realidade e sobre esta realidade objetiva, produzindo conhecimentos que visam à transformação social” (ibid.: 8). Contudo, na perspectiva conceitual do Fórum, convém retomar a idéia de que “... extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social” (BRASIL/MEC, l987: 1). Estas são formulações que avançam no campo teórico, trazendo, pela categoria trabalho, uma preocupação conceitual à extensão. Mas o trabalho presente na realização das atividades de extensão pode servir para integrar pessoas à sociedade. Todavia, esta sociedade é a responsável pela exclusão, gerando os sem-comida, os sem-escola, os sem-moradia ... e de uma maioria sem quaisquer traços de cidadania. Portanto, a extensão adquire um papel integrador da sociedade, tornando-se este instrumento. Ao que se apresenta, essa visão teórica de trabalho não condiz com o tipo de sociedade que interessa aos setores subalternos da sociedade, que podem buscar a superação desse estado de coisas. Como integrar pessoas em sociedades que lhes excluem? Mas a categoria teórica trabalho pode ser utilizada para se discutir um conceito de extensão voltado a um trabalho diferenciador de qualquer perspectiva de integração social e definido pela busca de outras possibilidades de vida, da construção de outro processo cultural. Extensão pode ir além de um trabalho como o proposto pelo Fórum. Esse trabalho tem uma dimensão educativa e precisa, conseqüentemente, ser qualificado. É uma qualificação para a própria universidade, enquanto seja possível observá-la em outra perspectiva. Dessa forma, extensão é entendida como responsável por um “trabalho para fazer com que os alunos assimilem um conhecimento através da inserção na realidade em que estão vivendo e que esses conhecimentos digam
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alguma coisa para o momento atual” 154. Esta mesma visão concebe a universidade como a responsável por um trabalho que possibilite o exercício da função de “ligar o ensino e a pesquisa com a realidade”, contribuindo, inclusive, com a reflexão das práticas acadêmicas de docentes e estudantes. Isto vem sendo mostrado por muitos que nem estão em universidades. “Muitas vezes, os professores que só se formavam numa faculdade para o seu exercício da profissão, nos possibilita ter a oportunidade de estar convivendo um pouco na prática desses profissionais da universidade. Isto tem ajudado bastante na compreensão e tem ajudado até a discuti-la”(Marivaldo Silva Andrade, presidente da Companhia Agrícola Catende/HarmoniaPE).155 A extensão ainda pode ser vista como tendo a missão de fazer a universidade sair dos seus muros. Elabora problemas existentes a partir da discussão da realidade em que está inserindo-se ou vivenciando. Extensão como uma busca não só de explicações teóricas, mas de respostas àquelas necessidades imediatas de setores da sociedade. A realidade apresenta desafios para todos os projetos sociais alternativos em andamento que podem ver a universidade com o papel de contribuir de diferenciadas formas. Nesse aspecto, convém transcrever o seguinte depoimento sobre o projeto Catende/Harmonia: “Este projeto vai ser sustentado se tivermos pelo menos três pessoas em cada Engenho com condição de dirigir negócios locais, articulando uma rede que é a Companhia Agrícola Harmonia. Há pessoas voltadas à área do meio ambiente, na área de organização dos trabalhadores, pessoas na área de dirigir as cooperativas e dirigir esses processos que vão acontecendo nesses engenhos. Se a gente não tiver pessoas ou recursos humanos que possam orientar esse trabalho, que possam conduzir e dar direção a esse processo, garantindo a democracia e a participação dos donos dos negócios que são os sócios, o processo não anda” (Risadalvo José da Silva (o São), ex-assessor da Companhia Agrícola Catende/Harmonia) 156. Nesse sentido, a extensão torna-se “um trabalho; um trabalho que não tem um tempo definido mas está dentro de uma perspectiva de trabalho permanente, trabalho continuado”157. Apresenta-se, dessa maneira, uma possibilidade diferenciadora daquelas visões, até então apresentadas, enquanto qualifica o tipo de trabalho que está sendo desenvolvido nos projetos de extensão em andamento. Essas atividades, para muitos, passam a se constituir como sendo a própria extensão e, marcadamente, identificando-as como um trabalho: “Penso extensão como o trabalho a partir daquilo que a gente faz. Acho que é a partir daquilo que cada grupo faz que, na verdade, vai se constituindo o que a gente chama de extensão-universidade”158. Veicula-se, em alguns projetos de extensão, uma perspectiva gerada a partir das atividades em desenvolvimento e sem estar prisioneira de qualquer formulação idealista. O ponto de partida dessa perspectiva é a realidade concreta ou o concreto real que, submetido à análise da teoria, da abstração, vai vislumbrando outras possibilidades ideológicas da extensão. “Extensão como trabalho que envolva pesquisa e um trabalho que tenha uma finalidade social bastante definida” 159. Conforme os dados coletados no âmbito do Projeto CERESAT (Centro de Referência da Saúde do Trabalhador), dentre os aspectos variados de interesse da pesquisa, observa-se a dimensão
Membro da equipe da PRAC/UFPB. Texto de entrevista para a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000). 155 Entrevista para esta pesquisa. 154
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Entrevista para esta pesquisa.
Membro da equipe de projeto do Centro de Referência da Saúde do Trabalhador – CERESAT/UFPB. Texto da entrevista para a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000). 158 Membro da equipe do projeto CERESAT. Texto da entrevista para a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000). 157
Membro da direção da universidade. Texto da entrevista para a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000). 159
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referente à concepção de extensão que inspira aquele projeto e que alimenta a continuação do debate sobre a questão conceitual (Tabela 1, abaixo).
TABELA 1 PROJETO CERESAT - DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO37 TEMAS
ITENS
A %
B %
C %
D %
Fi
Itens %
1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a soc. 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. absoluta 3.2 - Est. instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado:(contradições de classe) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos 4.2 - Interesses voltados a grupos 4.3 - Interesses voltados à classe dominada
07 06
06 02
09 02
09 01
136 36
07 02
87 04 01 95 22
92 02 04 94 14
89 01 03 96 67
91 03 01 96 00
1668 43 43 1713 06
33
50
00
100
45
36
33
00 57 43
03 21 76
5.1 - Interesses voltados a indivíduos 5.2 - Processo em consonância com classes Dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente VI - Relação universidade6.2 - Instituição voltada ao mundo sociedade empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito ideológico 7.1 - Via de mão única VII - Concepção de extensão 7.2 - Via de mão dupla universitária 7.3 - Trabalho social (construção de nova hegemonia) 8.1 - Trabalho técnico com discurso moderni zador VIII - Natureza do trabalho social 8.2 - Trabalho técnico com discurso de na neutralidade extensão 8.3 - Trabalho técnico com discurso transforMador 9.1 - Agente de interesses do mercado IX - Papel do agente institucional (capital) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes Dominadas X - Pedagogia da extensão 0.1 - Pedagogia tradicional universitária 0.2 - Pedagogia crítica e transformadora
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I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
IV - Configuração dos interesses sociais
V - Concepção de prática social
A - Entrevista com coordenadores C - Entrevista com comunitários B - Entrevista com executores D - Documentos dos projetos
Fgi
Tema %
1840
26
91 02 02 96 19
1799
25
16
50
2
01
00
10
41
00 10 90
07 68 35
11 155 425
02 26 72
591
08
05 95
03 97
06 94
19 423
04 96
442
06
38
65
58
31
41
55
00 62
11 24
33 09
56 13
17 16
23 22
74
02
61 06 33
29 08 63
66 00 34
62 01 37
167 17 16
48 05 47
349
05
00
02
00
04
23
02
09
06
08
09
89
08
1175
17
91
92
92
87
1063
92
14 28 58
64 01 35
36 41 23
55 14 31
85 21 51
54 13 33
157
02
00 100
00 100
00 100
00 100
00 549
00 100
549
08
Fi - Freqüência de indicadores Fgi - Freqüência geral dos indicadores
Tema VII da tabela está voltado à compreensão de extensão, veiculada pelos participantes das atividades nesse projeto. A concepção da extensão universitária foi sintetizada a partir de três visões que, normalmente, se apresentam no debate dentro da universidade. A primeira é a via de mão única que, de forma mais caracterizada, expressa a universidade como uma instituição independente, a quem cabe passar para a sociedade os resultados de alguns dos seus trabalhos. Concretizam esta perspectiva a prestação de serviços, a promoção de cursos e eventos, a assistência, a venda de serviços, o treinamento de indivíduos da sociedade, a realização de estágios, cursinhos preparatórios para programas de pós-graduação, entre outras atividades. É em síntese, a universidade levando benefícios à sociedade. A segunda visão é apresentada através da simbologia da mão dupla em que a extensão pode ser compreendida como um processo
403
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educativo, cultural e científico. Esta concepção privilegia o aspecto de que a universidade leva conhecimento à comunidade, como traz conhecimento da sociedade para a instituição. A universidade e a sociedade são, assim, concebidas como agindo de mãos dadas, procurando, também, atender às demandas sociais em forma de troca de algo com a sociedade e tendo desta a sua contrapartida. A terceira concepção que começa a projetar-se nesses projetos de extensão é a extensão como um trabalho social com uma utilidade definida. Esta concepção estaria sendo demarcada por indicadores que mostram certo tipo de trabalho em desenvolvimento entre universidade e sociedade, não como entes separados, mas em relação permanente entre si e que, nem por isso, deixam de se diferenciar. O sentido que se propõe é de um trabalho social útil como processo educativo, cultural e científico, porém voltado à construção de uma nova hegemonia. O trabalho aqui, aparece configurado com a própria classe subalterna, especialmente dirigido à organização dos seus diferentes setores. De acordo com esse entendimento, a universidade e a comunidade devem ser as possuidoras do produto desse trabalho. Um trabalho que carece da presença da crítica como ferramenta nas atividades que o constituem. Esse conceito traz, em si, a dimensão de superação do senso comum ao expor e explicar os elementos da realidade. Elementos que são gerados a partir de formulações abstratas, mas tendo na realidade, no mundo concreto, a anterioridade de suas bases analíticas. Nesse movimento de análise da realidade, um segundo movimento tem continuidade no campo das abstrações, em busca de elementos ainda mais abstratos, permeados, entretanto, pelo concreto inicial. Finalmente, através dos recursos expostos por essas abstrações, busca-se criar um novo concreto, permeado das abstrações anteriores, enfim, um concreto, agora, cheio de pensamento. Este movimento de produção de conhecimento expressa outro instrumental teórico de produção de bens culturais e de outro processo cultural. Esse percurso metodológico estabelece-se pela constante crítica dessa produção e do produto gerado, tornando-se também propositivo. Busca a superação das dimensões do estabelecido, considerando, por exemplo, que “as relações de classe não são espontaneamente transparentes ao nível da experiência „imediata‟, da experiência „vivida‟ - aquela experiência que é simplesmente um reflexo sobre a vida cotidiana” (Przeworski, 1989:122). Para o conhecimento dessas relações, torna-se necessário o exame da crítica. Este possibilita ir além da experiência vivida pelas equipes e comunitários, superando o reflexo primeiro da experiência. A crítica é necessária, pois perscruta essas relações, assumindo seu papel transformador. Os dados revelam que, neste projeto, 47% das opções apontam para uma percepção da extensão como trabalho social. Mas, com relação aos executores do projeto, 63% das opções do tema concentram-se no entendimento de extensão muito mais em termos da possibilidade de torná-la um trabalho social. Observa-se, contudo, que, entre os coordenadores existe uma sintonia dessa visão de extensão com as percepções da visão transformadora do mundo, presente em um modo de produção determinado e um Estado expresso através de possibilidades de sua ampliação decorrente das contradições de classe. É uma relação entre universidade e sociedade permeada dos conflitos ideológicos dessas classes. A Tabela 2, a seguir, apresenta as preocupações conceituais referentes ao Projeto Escola Zé Peão160. TABELA 2 PROJETO ESCOLA ZÉ PEÃO - DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO TEMAS
I - Concepção de mundo
II - Concepção de sociedade
III - Concepção de Estado
ITENS 1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a sociedade 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/autonomia absoluta 3.2 - Estado instrumento: inst. manip. pela
A % 13 01
B % 09 01
C % 07 01
D % 24 01
Fi 183 08
Itens % 11 01
86
90
92
75
1420
88
06 01 93 83
06 01 93 20
04 03 93 00
01 01 98 60
61 37 1586 12
04 02 94 33
17
80
100
40
25
67
Fgi
Tema %
1631
26
1684
27
37
01
Este projeto volta-se a alunos adultos e trabalhadores em canteiros de obras, em unidades do Sindicato de Trabalhadores na Construção Civil, em João Pessoa (PB). Faz parte dos projetos do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Educação da UFPB. Projeto analisado durante a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000). 160
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classe dominante 3.3 - Estado ampliado: (contradições de classe) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos IV - Configuração dos interesses 4.2 - Interesses voltados a grupos s 4.3 - Interesses voltados à classe dominada Ociais 5.1 - Interesses voltados a indivíduos V - Concepção de prática social 5.2 - Processo em consonância com classes Dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida independente VI - Relação universidade6.2 - Instituição voltada ao mundo empresasociedade ri al 6.3 - Instituição como aparelho de conflito Ideológico 7.1 - Via de mão única VII - Concepção de extensão 7.2 - Via de mão dupla universitária 7.3 - Trabalho social (construção de nova hegemonia) 8.1 - Trabalho técnico com discurso VIII - Natureza do trabalho social modernina zador extensão 8.2 - Trabalho técnico com discurso de neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transforMador 9.1 - Agente dos interesses do mercado ( IX - Papel do agente institucional capital ) 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes Dominadas X - Pedagogia da extensão 0.1 - Pedagogia tradicional universi0.2 - Pedagogia crítica e transformadora Tária
00
00
00
00
00
00
00 37 63
01 17 82
00 20 80
00 49 51
01 207 508
00 29 71
11 89
01 99
02 98
07 93
08 433
02 98
41
57
74
55
79
60
12
25
13
25
23
17
47
18
13
20
31
23
35 07 58
35 04 61
84 02 14
24 06 80
92 10 110
43 05 52
02
03
01
01
08
01
27
09
07
03
58
08
71
88
92
96
680
91
38
30
17
52
48
28
27 35
00 70
04 79
03 45
12 110
00 100
00 100
00 100
00 100
00 100
716
11
441
07
133
02
212
04
746
12
07 65
170
03
00 100
461
07
A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores C - Entrevista com comunitários D - Documentos dos projetos Fi - Freqüência de indicadores Fgi - Freqüência geral dos indicadores
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A ação extensionista que se desenvolve neste projeto, pouco a pouco, consolida uma concepção onde predomina a visão da sociedade como um modo de produção, definido a partir de uma base material. Todos os setores do projeto apresentam proximidade na concepção e quase coincidência no percentual. Uma média de 94% (item 2.3) expressa tal aproximação de visão de sociedade e visão de mundo. É uma concepção veiculada após o aprendizado do trabalho educativo de organização num bairro ou num sindicato, com todas as suas possibilidades e limitações. A contradição surge ao se observar a relação da universidade com a sociedade, quando aquela é vista como uma instituição do saber com vida independente. Nesse aspecto, registra-se um índice de 41% (6.1) entre os coordenadores, percentual que cresce entre os executores do programa para 57% (6.2) e é ainda maior entre os trabalhadores, com 74% (6.3). Chega-se a uma média de 60% (6.1) da visão da universidade tida como fechada para a sociedade. Trata-se de uma visão na qual a universidade permanece encastelada em seu próprio mundo e forma indivíduos comprometidos, basicamente, com a ideologia das elites, ou seja, uma instituição que vem exercendo o papel de treinadora, recicladora de pessoas, em geral das classes dominantes. Convém destacar, sobre concepções de extensão, a terceira possibilidade como uma visão de que a extensão universitária pode ser entendida como um trabalho social útil e, necessariamente, como um processo educativo, cultural e científico. São expressivos, contudo, os resultados do item 7.3 entre os coordenadores, executores e nos documentos produzidos pelo projeto, com percentuais de 58%, 61% e 80%, respectivamente. Concebe-se como um trabalho realizado junto à comunidade pela universidade ou seus agentes (estudantes e professores), rompendo a dicotomia existente entre os pólos dessa relação. É uma perspectiva onde o trabalho configura-se numa dimensão de continuidade e de permanência, em processos de realimentação, valorizando a prática e a reflexão sobre essa prática. Esta concepção de extensão torna viável a atividade de ensino entre aqueles adultos que se alfabetizam, a pesquisa sobre metodologias e os próprios conteúdos dessas atividades extensionistas. Uma perspectiva que também é seguida, ao se analisar o projeto de extensão Praia de Campina161 (Tabela 3).
Projeto que se realiza no Vale do Rio Mamanguape, na região canavieira da Paraíba, analisado durante a pesquisa: Extensão universitária – uma análise crítica (2000). 161
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TABELA 3 PROJETO PRAIA DE CAMPINA - DISTRIBUIÇÃO DOS TEMAS E ITENS, POR SEGMENTO TEMAS
ITENS
1.1 - Visão que privilegia o mercado 1.2 - Visão integradora (inst. pessoa) aperfeiçoando a sociedadade 1.3 - Visão transformadora 2.1 - Conjunto de instituições independentes II - Concepção de sociedade 2.2 - Totalidade integrada 2.3 - Modo de produção 3.1 - Estado árbitro: acima das classes/auton. absoluta III - Concepção de Estado 3.2 - Estado instrumento: inst. manip. pela classe dominante 3.3 - Estado ampliado: (contradições de classe) 4.1 - Interesses voltados a indivíduos IV - Configuração dos interesses 4.2 - Interesses voltados a grupos Sociais 4.3 - Interesses voltados à classe dominada 5.1 - Interesses voltados a indivíduos V - Concepção de prática social 5.2 - Processo em consonância com classes Dominadas 6.1 - Instituição do saber com vida indepen dente VI - Relação universidade6.2 - Instituição voltada ao mundo sociedade empresarial 6.3 - Instituição como aparelho de conflito Ideológico 7.1 - Via de mão única VII - Concepção de extensão 7.2 - Via de mão dupla universi7.3 - Trabalho social (construção de nova tária hegemonia) I - Concepção de mundo
8.1 - Trabalho técnico com discurso moderniVIII - Natureza do trabalho social zador na 8.2 - Trabalho técnico com discurso de extensão neutralidade 8.3 - Trabalho técnico com discurso transforMador 9.1 - Agente dos interesses do mercado (capital) IX - Papel do agente institucional 9.2 - Agente neutro da instituição 9.3 - Agente comprometido com as classes Dominadas X - Pedagogia da extensão 0.1 - Pedagogia tradicional universitá0.2 - Pedagogia crítica e transformadora ria
A % 15 04
B % 15 04
C % 19 09
D % 10 10
Fi 92 33
Itens % 16 06
Fgi
Tema %
567
16
81 02 52 46 --
81 01 59 40 --
72 -37 63 75
80 -17 83 50
442 08 455 516 04
78 01 47 52 36
979
28
66
100
25
--
05
46
11
01
34
--
--
50
02
18
-39 61 12 88
05 32 63 -100
01 07 92 -100
-20 80 -100
03 47 253 04 181
01 16 83 02 98
303
08
185
05
55
82
65
--
68
69
21 24
09 09
31 04
50 50
18 13
18 13
99
03
25 28 47
63 24 13
68 13 19
95 -05
73 24 25
60 19 21
135
04
01
01
--
--
03
01
58
63
29
11
361
50
724
21
41
36
71
89
360
49
42
64
--
100
23
50
29 29
04 32
-100
---
05 18
10 40
46
02
01 99
-100
-100
-100
01 389
01 99
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A - Entrevista com coordenadores B - Entrevista com executores C - Entrevista com comunitários Fi - Freqüência de indicadores D - Documentos dos projetos Fgi - Freqüência geral dos indicadores
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Destaca-se, aqui, a terceira possibilidade que se manifesta em 47% (7.3), que é a extensão como um processo educativo, cultural e científico, assumido a partir da posição das classes subalternas, buscando contribuir para a construção de uma outra hegemonia. Nesse sentido, a extensão é um trabalho social útil a serviço das classes subalternas. O processo que se estabelece, por conta dessa concepção, envolve a universidade e a sociedade, propondo uma relação efetiva entre elas a partir da sua clara diferenciação, considerando as suas especificidades. O conhecimento aí gerado é resultado da produção coletiva e deve estar voltado ao trabalho acadêmico universitário e à organização coletiva das classes dominadas. Trata-se de um trabalho que pretende apropriar-se do saber da universidade e do saber dessas classes, dessas populações ou comunidades, para, num processo de reflexão e reelaboração, possibilitar nova apropriação desse saber. Um trabalho útil que, segundo o depoimento de um dos entrevistados, serve para “organizar o homem do campo e fazer com que ele se valorize com o seu pequeno pedaço de terra”. Mesmo em projetos de extensão voltados à tecnologia, também se apresenta a perspectiva da extensão como trabalho social útil. No Projeto Qualidade de Vida, analisado nesta pesquisa162, a presença da visão de extensão como via de mão única está representada entre coordenadores e executores com percentuais de 69% e 83%, respectivamente. “É justamente aí onde eu vejo essa parte da extensão. Eu vejo como um trabalho da universidade, juntamente com a sociedade, com o objetivo de quê? De assessorar essa comunidade, transmitindo conhecimentos que ela não adquiriu. A gente está na universidade, tem esse conhecimento que precisa ser repassado para a sociedade”163. Mas a visão da extensão como uma possibilidade de trabalho social útil aparece, entre os coordenadores, com um percentual de 17%. É um percentual expressivo, considerando-se o fato de que esse tema revela-se com 6% no conjunto dos temas do projeto, enquanto que este mesmo item projeta um percentual de 12% entre os demais itens. Esse direcionamento conceitual – extensão como trabalho social útil - é manifestado nos projetos analisados164. Convém destacar que os indicadores, em torno desta perspectiva, apresentaram percentuais elevados nos projetos CERESAT e Escola Zé Peão, particularmente entre os executores, com percentuais de 63% e 61%, respectivamente. Entre os coordenadores do Projeto Praia de Campina, atingese o percentual de 47% e 13% entre os executores. No Projeto Qualidade de Vida, essa concepção expressa-se entre os coordenadores com 13%, considerado, ainda um índice representativo.
Projeto em desenvolvimento na Universidade Federal de Campina Grande (PB) que busca o tratamento do lixo, acompanhado de um processo de educação dos moradores de um bairro da cidade e a geração de renda. 162
Estudante e membro da equipe do Projeto Qualidade de Vida. Texto da entrevista para a pesquisa: Extensão Universitária – uma análise crítica.(2000). 164 A pesquisa Extensão universitária: uma análise crítica analisou dez temas, entre eles, a concepção de extensão presente nos projetos, buscando os indicadores para a concepção de extensão como via de mão única, via de mão dupla e trabalho social, destacando a visão dos coordenadores, dos executores e de membros da comunidade. 163
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Canaviais do vale do Mamanguape (PB)
Sendo trabalho social e útil, a efetivação da extensão gera um produto que transforma a natureza, na medida em que cria cultura. É um trabalho imbuído da sua dimensão educativa. O produto desse trabalho, todavia, passa a pertencer tanto às equipes dos projetos de extensão, na universidade, quanto à própria comunidade ou aos grupos comunitários, para aplicação na organização de seus movimentos. Esta tem sido uma busca constante de apropriação do produto gerado nas atividades de extensão. Essa dimensão da extensão possibilita a superação da alienação gerada pela não posse do produto do trabalho por parte de seus produtores, no modo de produção capitalista. Todos os produtores devem apropriar-se desse produto do trabalho, que é o saber. Esse trabalho caracteriza-se como um espaço de atuação de todos os que buscam a organização de seus grupos, de sua comunidade ou de sua classe. Deve ser um espaço onde existem processos de realimentação dos conhecimentos, que estão sendo produzidos, e outros que são gerados a partir desses últimos. Esse trabalho deve expressar uma relação íntima entre a teoria e a prática social em desenvolvimento. Nessa perspectiva de extensão, a Tabela 4 a seguir apresenta resultados165 que mostram dados convidativos para manter-se a possibilidade de conceituação da extensão, a partir das experiências em desenvolvimento em vários cenários de práticas extensionistas.
Pesquisa desenvolvida no período de maio de 1998 a setembro de 2000 (Extensão universitária como trabalho social), pelo aluno Sílvio Carlos Fernandes da Silva e pelas alunas Karla Lucena de Souza, Izabel Marinho da Costa e Andréa Tavares A. Magalhães, como bolsistas do PIBIC/CNPQ/UFPB, sob a coordenação do Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto. A pesquisa analisou, além de outros aspectos das atividades extensionistas, as concepções de extensão presentes nessas atividades, na Universidade Federal da Paraíba, nas décadas de 80 e 90. Seguiu também o mesmo itinerário metodológico da pesquisa nos projetos já apresentados. 165
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410
TABELA 4 CONCEPÇÕES DE EXTENSAO UNIVERSITÁRIA INDICADORES
DÉCADA DE 80
DÉCADA DE 90
Concepção de extensão como via de mão única
68,92%
51,93%
Concepção de extensão como via de mão dupla
11,33%
25,95%
Surgimento da extensão como trabalho social útil
19,75%
21,97%
Fonte: Dados do relatório de Sílvio Carlos Fernandes da Silva, da pesquisa Extensão Universitária como Trabalho Social, que analisou a concepção de extensão nas décadas de 80 e 90, presente em atividades extensionistas, na Universidade Federal da Paraíba.
Há um expressivo decréscimo percentual da presença dos indicadores de mão única nas décadas de 80 e 90. Em contrapartida, há um crescimento da visão de extensão como mão dupla, expressando a aplicação do conceito de extensão, na visão do Fórum, presentes nos projetos dessas décadas, e o aparecimento da perspectiva de reconceituação da extensão como um trabalho social útil, em vários projetos e atividades, com percentuais de 19,75% na década de 80 para 21,97% na década de 90. Contudo, é importante a perspectiva da extensão na ótica do trabalho, mas, ainda, não encerra a discussão. A partir dos dados apresentados dessas pesquisas, uma questão impõe-se: que dimensões pode ter esse trabalho166, como uma categoria filosófica fundante para a extensão? Esta pesquisa remete à discussão dessa temática central, muito discutida e complexa, que tem apresentado possibilidades concretas, no sentido de contribuir para outras e, talvez, melhores análises sobre a realidade desse mundo atual, além de outros possíveis redirecionamentos práticos. É um mundo que aponta a necessidade da discussão, nos dias de hoje, sobre o papel da universidade, em particular, da extensão universitária.
A extensão não alienante A extensão como um trabalho167 não pode realizar-se, adquirindo um papel alienante, possibilidade existente inclusive se assumir essa dimensão. Como escapar da alienação nesse tipo de fazer acadêmico, se o trabalho alienado é possível? Como o trabalho adquire essa dimensão? Nessa busca, Marx (1979: 89) inicia seu estudo sobre essa categoria teórica, aceitando os conceitos utilizados pela economia clássica, tais como: a propriedade privada, os salários, os lucros e arrendamento, a competição, o conceito de valor de trabalho, a separação do trabalho, capital e terra, como também a divisão do trabalho. É sobre essa base empírica que constrói a sua crítica, constatando que o trabalhador, na perspectiva da economia clássica e, sobretudo, nas bases do modo de produção estabelecido, o capitalismo, “afunda até um nível de mercadoria, e uma mercadoria das mais deploráveis; que a miséria do trabalhador aumenta com o poder e o volume de sua produção”. Destaca Sugerimos leitura mais detalhada da categoria trabalho em três obras de Marx: Os manuscritos econômicos e filosóficos, a ideologia alemã e o capital, particularmente o livro I, volume I, no seu V capítulo. Nestes livros, identifica-se a evolução do conceito em Marx, contida inicialmente nos Manuscritos. O livro, A Ideologia Alemã, caracteriza a divisão do trabalho e, de forma mais elaborada, em O Capital, o processo do trabalho. 167 Esta discussão teórica sobre o trabalho não é uma novidade para a filosofia nem para a teoria econômica. Não é criação do século XIX, posto que foi apresentada em séculos anteriores. É a partir da concepção de trabalho contida nas obras dos economistas políticos, considerados clássicos, como Ricardo e Smith, bem como nas formulações idealistas dos filósofos alemães, destacando Hegel, que Marx começa a desenvolver sua crítica sobre a formulação teórica desses pensadores e de uma forma mais ampla, sobre o conceito de trabalho. 166
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ainda que a competição estabelecida no capitalismo gera o acúmulo de capital em poucas mãos restaurando, dessa forma, o monopólio. Enfim, essa dualidade existente entre capitalista e proprietário de terra, em relação ao trabalhador agrícola e operário, precisa desaparecer. Um fato econômico relevante é que o trabalhador está ficando mais pobre. Sua pobreza relaciona-se com a sua produção. “O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento do valor do mundo das coisas” (ibid.: 90). Aqui, aparece um traço fundamental distanciador das concepções anteriores de trabalho, cuja preocupação (economia clássica) estava voltada à dimensão da produção de mera mercadoria, ou como atividade externa ao homem e gerador de riqueza. Toma corpo o mundo humano ou a dimensão humana do trabalho, que surge como um elemento novo, com uma dimensão filosófica fundamental dessa categoria e da perspectiva de se vislumbrar a extensão num campo teórico e de realizações sem alienação. Ver a extensão como um trabalho conduz à sua compreensão provida da dimensão humana, da essência do homem. O trabalho, portanto, “não cria apenas bens; ele também produz a si mesmo e o trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens” (ibid.: 90). Como um trabalho, o fazer extensão só pode resgatar o caráter humano do mesmo. É o trabalho como atividade racional humana na produção tanto de bens materiais como de bens espirituais. Assim, inicia-se a formulação do conceito de trabalho alienado e, conseqüentemente, de alienação. O objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, passa a não mais pertencer ao produtor. Passa a se lhe opor como um ser alienado, tornando-se uma força independente do próprio produtor. Tem-se então que esse produto “é trabalho incorporado em um objeto e convertido em coisa física; esse produto é uma objetificação do trabalho” (ibid.: 91). O seu exercício ou a sua execução dá-se, portanto, simultaneamente à sua objetificação. A execução do fazer extensão – um trabalho - vai aparecer como uma perversão do trabalhador, daqueles envolvidos nas atividades de extensão. A sua objetificação, dessa forma, tornase uma perda e uma servidão em relação ao objeto “e a apropriação como alienação” (ibid.: 91). É um mecanismo em que o trabalhador não só perde o objeto, resultado de seu trabalho, como também coisas que lhe são essenciais, como até mesmo sua própria vida. Para Marx, “a apropriação do objeto aparece como alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado pelo seu produto, o capital” (ibid.: 91). Tudo isso é decorrente do fato de o trabalhador relacionar-se, agora, com o produto de seu trabalho que lhe é alienado. Isto remonta ao fazer extensão, como atividade geradora de um produto, podendo ser o conhecimento, mas que exige o envolvimento dos que atuam nessa produção, personagens da universidade e da comunidade e, ainda, a posse do produto por todos os seus produtores. Nessa relação entre produtor e objeto alienado, o trabalhador não pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensorial. E este é o material onde ocorre a concretização do trabalho, onde o produtor atua e por meio de tal ação se produzem as coisas. O trabalhador se converte em escravo do seu objeto. Em conversas, durante esta pesquisa, era comum ouvir-se afirmação do tipo: “Esta Usina Catende é a minha vida”. Em primeiro lugar, por receber “um objeto de trabalho, isto é, receber trabalho, e em segundo lugar por receber meios de subsistência. Assim, o objeto o habilita a existir primeiro como trabalhador e depois como sujeito físico” (ibid.: 92). Essa alienação vai se expressar através da seguinte compreensão: quanto mais ele produzir, menos terá para consumir; quanto mais ele produzir, mais perderá seu valor. Ou, nas palavras de Marx: “Quanto mais inteligência revela o trabalho, tanto mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da natureza” (ibid.: 92). A análise desenvolve-se sobre o trabalho, mas agora como fruto da relação entre trabalhador e produção. Assim, a alienação passa a ser vista, ao externar-se frente ao resultado da objetificação e frente ao processo de produção, dentro da própria atividade produtiva, ocorrendo no próprio ato da produtividade. Essa alienação do trabalho não é uma simples abstração, uma vez que se caracteriza de várias formas. Em sendo parte da natureza do produtor, com a objetificação, o trabalho se externa ao produtor, ao trabalhador. Passa a apresentar-se não como um sentimento de bem-estar, mas de sofrimento, tornando-se não um ato voluntário, mas uma ação imposta e forçada. Ao invés de se constituir em algo gerador de satisfação de uma necessidade, torna-se apenas meio para satisfazer outras necessidades, sobretudo, passa a pertencer a outros e não mais ao
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trabalhador. Tudo isto dimensionará o trabalho alienado com as seguintes características: a primeira destaca essa relação do trabalhador com o produto de seu trabalho, expressando-se como objeto que lhe é estranho e que o domina; a segunda diz respeito à sua relação como ato de produção dentro de si próprio, caracterizando-se, dessa forma, como uma auto-alienação. A partir daí, introduz-se uma terceira característica, gerada das anteriores, que é a seguinte: “O homem é um ente-espécie (consciente não apenas de si mesmo como um indivíduo, mas da espécie ou „essência humana‟) não apenas no sentido de que ele faz da comunidade (sua própria, assim como as de outras coisas) seu objeto, tanto prática quanto teoricamente, mas também (e isso é simplesmente outra expressão da mesma coisa) no sentido de tratar-se a si mesmo como a espécie vivente, atual, como um ser universal conseqüentemente livre” (ibid.: 95). A dimensão de universalidade, requerida por Marx para o homem, está justificada considerando-se a base física. Nessa base, a espécie humana vive da natureza inorgânica, a qual torna o homem mais universal que um animal. Há todo um movimento teórico de demonstração dessa universalidade, expresso na prática por duas outras dimensões: “Como meio direto de vida, e, igualmente, como o objeto material e o instrumento de sua atividade vital” (ibid.: 95). Assim, pode afirmar-se que a vida tanto física como mental do homem e a natureza são interdependentes. Significa dizer que a natureza é interdependente em relação a si mesma, já que o homem é parte dessa natureza. Além disso, como qualquer outra espécie na natureza, o homem é um produto dessa natureza, sendo também por ela limitado. Mas ao homem se torna possível superar os limites impostos e, assim, subordinar ao seu poder a própria natureza. Ao homem se torna possível a transformação desse conjunto denominado de corpo inorgânico. É isto, inclusive, que o distingue como espécie das demais espécies de animais. Encontra-se, então, uma perfeita sincronia nos processos de alienação que estão ocorrendo nesse nível da natureza e da espécie. “Tal como o trabalho alienado: 1) aliena a natureza do homem e 2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital, assim também o aliena da espécie. Ele transforma a vida da espécie em uma forma de vida individual. Em primeiro lugar, ele aliena a vida da espécie e a vida individual, e posteriormente transforma a segunda, como uma abstração, em finalidade da primeira, também em sua forma abstrata e alienada” (ibid.: 95). A vida produtiva é, portanto, a vida da espécie. Assim, observa-se que é no tipo de atividade vital onde reside o caráter de uma espécie, o seu caráter como espécie. Nesse sentido, o caráter da espécie dos seres humanos se evidencia pela atividade livre e consciente. O animal, como se sabe, não distingue a si mesmo de sua atividade vital. Ele é sua própria atividade. Pela extensão, isto não pode ocorrer, simplesmente. Essa atividade humana poderá ser considerada como uma atividade vital, isto é, um objeto tanto de sua vontade como de sua consciência. Uma atividade que exige que seja consciente, distinguindo o trabalho da extensão das tantas outras atividades vitais de animais ou mesmo de humanos, constituindo-o como um ente-espécie. Pela extensão, essa atividade precisa ser sua e ser uma atividade livre. Em não sendo entendida como uma atividade livre, esse trabalho extensionista inverte a relação, pois se torna um trabalho alienado. Este trabalho só terá sentido unicamente como um meio para a sua existência. O homem é um ente-espécie, exatamente por seu trabalho exercido sobre o mundo objetivo. Essa produção é, em conseqüência, a sua vida ativa como espécie e, graças a ela, a natureza se apresenta como trabalho e realidade do ser humano. Assim, se pode definir o objetivo do trabalho: “A objetificação da vida-espécie do homem, pois ele não mais se reproduz a si mesmo apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente e em sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo por ele construído. Por conseguinte, enquanto o trabalho alienado afasta o objeto da produção do homem, também afasta sua vida-espécie, sua objetividade real como ente-espécie, e muda a superioridade sobre os animais em uma inferioridade, na medida em que seu corpo inorgânico, a natureza, é afastado dele” (ibid.: 96).
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Dessa forma, o trabalho alienado, expresso e realizado a partir de tantas outras concepções de extensão, transforma tanto a atividade livre e dirigida pelo próprio indivíduo em um meio, quanto a vida do homem, como membro da espécie, também em um meio de existência física. Em conseqüência, o trabalho alienado aliena o homem de seu próprio corpo, a natureza intrínseca de sua vida mental e de sua vida humana. Além disso, o homem é alienado por outros homens (professor, alunos ou membros de comunidades), significando que, enquanto cada um é alienado por outros, cada um dos outros é alienado da vida humana. Dessa forma, “o que é verdadeiro quanto à relação do homem com seu trabalho, com o produto desse trabalho e consigo mesmo, também o é quanto à sua relação com outros homens, com o trabalho deles e com os objetos desse trabalho” (ibid.: 97). O conceito de trabalho alienado, em Marx, teve início não a partir de formulações meramente ideais, mas basicamente de um fato econômico e, portanto, possível de se expressar e de se revelar na realidade. Esse passa a pertencer a um ser estranho, que não o trabalhador. A esse ser estranho pertencem tanto o trabalho como o produto deste. A esse ser estranho o trabalho é devotado, a ele se destina o produto do trabalho. Esse ser estranho, em não sendo nem os deuses nem a natureza, só pode ser o próprio homem. Nesse sentido, Marx afirma: “toda auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, aparece na relação que ele postula entre os outros homens, ele próprio e a natureza” (ibid.: 98). O trabalho e o capital se tornam estranhos um para o outro. Relacionam-se, contudo, de maneira acidental e externa, mas isso se expõe na realidade. Com essa separação, se o capital não existe mais para o trabalhador, este deixa de existir para si e conseqüentemente a existir não mais como ser humano podendo, portanto, não ter mais emprego ou salário e, assim, morrer à míngua. “O trabalhador só é trabalhador quando existe como capital para si próprio, e só existe como capital quando há capital para ele. A existência do capital é a existência dele, sua vida, visto determinar o conteúdo de sua vida independentemente dele” (ibid.: 103). Dessa forma, a produção da atividade humana - o trabalho - se torna estranha a si mesmo, ao homem e à natureza; e torna-se estranha tanto à consciência do homem como à possibilidade de realização da vida humana. Numa situação como essa, perde-se o significado de trabalho social como expressão genuína da vida comunal. Ele não pode, portanto, conduzir a uma negação do homem. A visão da extensão como um trabalho social é um ato acadêmico e, estritamente, promotor da positividade do humano. O trabalho se torna fundante, pois se constitui como o resgate da dimensão humana do próprio trabalho com a superação daquilo que está gerando essa negação. Isso se torna possível com a superação da propriedade privada, possibilitando-se que o processo de trabalho passe a produzir não só objetos materiais como também o próprio homem, a si mesmo e aos outros homens. É uma existência que tem o homem como sujeito, constituindo-se em ponto de partida e resultado desse movimento. Havendo a produção do conhecimento pelo trabalho extensionista e a conseqüente posse do mesmo pelos participantes, resgata-se, dessa forma, a dimensão social do trabalho. A extensão se estabelece como um trabalho social, constituindo-se como expressão de um caráter social, porém como caráter universal de todo esse movimento, em que a sociedade, ao mesmo tempo que produz o homem, também é produzida por ele. Dentro dessa visão, pode-se compreender o que expressa Marx: “A atividade e o espírito são sociais em seu conteúdo, assim como em sua origem; eles são atividade social e espírito social. A significação humana da natureza só existe para o homem social, porque só neste caso a natureza é um laço com outros homens, a base de sua existência para outros e da existência destes para ele. Só, então, a natureza é a base da própria experiência humana dele e um elemento vital da realidade humana” (ibid.: 118). Esse movimento torna a existência natural do homem a sua própria existência humana. A natureza, por sua vez, se torna humana para ele. A sociedade, como conseqüência, é expressão do produto da união entre a natureza e o homem, realizando um naturalismo no próprio homem e um humanismo na própria natureza. Assim, a extensão só terá um papel importante no âmbito da instituição universitária e como uma possibilidade teórica, caso venha a se constituir como um
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trabalho em condição de contribuir para a humanização do próprio homem. A extensão, contudo, sofrerá da mesma mazela do trabalho alienado, passando a ser geradora da divisão social do trabalho, sobretudo quando promovida fora de uma realidade concreta.
A divisão do trabalho A extensão, nos marcos da categoria trabalho, proporciona uma preocupação teórica 168 permanente na sua realização . A realidade circundante do fazer extensão sempre mantém o convite à necessária conexão entre a crítica que precisa permanecer no fazer extensionista, com o seu próprio meio material. É este meio material que proporcionará a não transformação das análises sobre extensão em dogmas ou arbitrariedades, escapando de um fazer abstrato, prisioneiro puramente da imaginação. É importante o pensamento a partir de indivíduos reais, de sua ação, bem como de suas condições materiais de vida, tanto aquelas já existentes como as produzidas por sua ação. Nesse sentido, declara Marx (1996.: 27): “O primeiro ato histórico destes indivíduos, pelo qual se distinguem dos animais, não é o fato de pensar, mas o de produzir seus meios de vida”169. A ação extensionista terá importância à medida que tiver, de forma explícita, uma utilidade produtiva voltada à vida humana. Após a análise sobre o conceito de trabalho e o destaque ao trabalho alienado, urge uma discussão sobre a sua divisão, possível no trabalho extensionista. Essa divisão, historicamente, vem acontecendo entre o trabalho industrial e comercial, de um lado, e o trabalho agrícola, de outro, acompanhado, hoje, por uma divisão mais profunda, que é o trabalho concreto(manual) e o trabalho intelectual. Essa divisão gera a separação entre a cidade e o campo e, como conseqüência, os conflitos decorrentes da diferenciação dos interesses que estão em campos opostos. O trabalho industrial, ou mesmo o trabalho comercial, também apresenta sua separação interna. Nessa linha e em escala maior, afirma Marx: “Ao mesmo tempo, através da divisão do trabalho dentro destes diferentes ramos, desenvolvem-se diferentes subdivisões entre os indivíduos que cooperam em determinados trabalhos. A posição de tais subdivisões particulares umas em relação a outras é condicionada pelo modo pelo qual se exerce o trabalho agrícola, industrial e comercial (patriarcalismo, escravidão, estamentos e classes). Estas mesmas condições mostram-se ao se desenvolver o intercâmbio entre as diferentes nações” (ibid.: 29). Constituindo-se de várias fases do desenvolvimento, a divisão do trabalho gera diferenciadas formas de propriedades, levando Marx a afirmar: “a da nova fase da divisão do trabalho determina igualmente as relações dos indivíduos entre si, no que se refere ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho” (ibid.: 29). Assim, a primeira forma de propriedade apresentada é a propriedade tribal, uma fase da sociedade em que um povo se alimenta da caça, da pesca, da criação de gado e da agricultura. Nesta fase de desenvolvimento, a divisão do trabalho se apresenta pouco expressiva, resumindo-se “a uma maior extensão da divisão natural no seio da família. A estrutura social limita-se a uma extensão da família: os chefes patriarcais da tribo, abaixo deles os membros da tribo e finalmente os escravos” (ibid.: 30). A segunda forma de propriedade é a comunal e estatal, encontrada na antiguidade, e que provém da reunião de tribos formando a cidade, gerada por contrato ou mesmo pela conquista. Destaque-se que, mesmo aí, ainda subsiste a escravidão. Marx observa que, ao lado desse modelo de propriedade, surge a propriedade móvel e, mais tarde, a imóvel, embora como forma estranha ao que está estabelecido como modelo, porém mantida subordinada à propriedade comunal. Este tipo de propriedade privada, ainda coletiva, vai perdendo espaço com o surgimento da propriedade privada imóvel. Com isso, a divisão do trabalho é mais desenvolvida. Estabelece-se, por outro lado, com maior radicalidade a divisão entre o campo e a cidade, em particular quanto aos seus interesses. A 168 169
Nas citações da Ideologia Alemã de Marx e Engels, aparecerá apenas o nome de Marx. Ver maiores detalhes sobre a questão nas notas desenvolvidas por Engels, no Manifesto Comunista.
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terceira forma de propriedade gerada dessa divisão é a feudal ou estamental. Se, na antiguidade, partiase da cidade, na Idade Média, partia-se do campo. Isto resultava da existência de populações dispersas e disseminadas pelo campo e para as quais os conquistadores nada trouxeram de incremento, tendo como conseqüência essa inversão de ponto de partida. A explicação dessa mudança pode ser vista da seguinte maneira: “Ao contrário da Grécia e de Roma, o desenvolvimento feudal inicia-se, pois, em terreno muito mais extenso, preparado pelas conquistas romanas e pela expansão da agricultura e está, desde o começo, com elas relacionado. Os últimos séculos do Império Romano em declínio e as próprias conquistas dos bárbaros destruíram grande quantidade de forças produtivas; a agricultura declinara, a indústria estava em decadência pela falta de mercados, o comércio adormecera ou fora violentamente interrompido, a população, tanto a rural como a urbana, diminuíra. Essas condições preexistentes e o modo de organização da conquista por elas condicionado fizeram com que se desenvolvesse, sob a influência da organização militar germânica, a propriedade feudal” (ibid.: 34). A comunidade (classe) agora responsável pela produção não era mais a escrava, como nos sistemas antigos, mas composta dos pequenos camponeses servos da gleba. O desenvolvimento dessa forma de propriedade aprofundaria a oposição entre as cidades. Marx mostra que “a essa estrutura feudal da posse da terra correspondia, nas cidades, à propriedade corporativa, à organização feudal dos ofícios. Aqui, a propriedade consistia, principalmente, no trabalho de cada indivíduo” (ibid.: 34). A divisão do trabalho se apresentava na época feudal, de forma diferenciada na propriedade territorial, lócus do trabalho dos servos. Outro aspecto dessa divisão era o trabalho próprio com pequeno capital que dominaria o trabalho dos oficiais. Ambas as formas estavam condicionadas pela limitada produção resultante do difícil cultivo da terra e também pela indústria do tipo artesanal. Se, por um lado, a divisão do trabalho na agricultura tornava-se mais difícil devido ao cultivo parcelado, gerando uma indústria doméstica de camponeses, por outro, na indústria, a divisão do trabalho ocorria dentro de cada ofício. A partir da Usina Catende, torna-se visível a presença da divisão de trabalho estabelecido no seio dos operários daquela indústria, conduzindo para a autoproteção de cada um na defesa de sua parte, naquele processo de produção de açúcar. Esses operários chegam a exigir da direção do Projeto Catende/Harmonia a realização de cursos para novos operários para aquelas habilidades, ou para os seus próprios filhos. Mas a divisão do trabalho possibilitará que tanto a atividade material como a espiritual, isto é, a atividade e o pensamento (atividade sem pensamento e pensamento sem atividade) desloquem-se para indivíduos diferentes. Segundo Marx, “a possibilidade de não entrarem esses elementos em contradição reside unicamente no fato de que a divisão do trabalho seja novamente superada” (ibid.: 46). Ora, com a divisão do trabalho, a extensão como trabalho social poderá estar permeada de todas essas contradições presentes e concentradas nessa divisão. Surge a divisão do trabalho na família e entre as várias famílias que compõem uma sociedade. Essa divisão entre as famílias, além do mais, é desigual, quantitativa e qualitativamente, tanto em relação ao trabalho como ao seu produto. Surge, então, a contradição entre o interesse do indivíduo ou da família e o interesse coletivo daqueles indivíduos que se relacionam entre si, também tão presentes em todas as formas de exercício extensionista. A esse respeito, Marx conclui: “Desde que há cisão entre o interesse particular e o interesse comum, desde que, por conseguinte, a atividade está dividida não voluntariamente, mas de modo natural, a própria ação do homem converte-se num poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado. Com efeito, desde o instante em que o trabalho começa a ser distribuído, cada um dispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual não pode sair; o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico (crítica à Bruno Bauer), e aí deve permanecer se não quiser perder seus meios de vida” (ibid.: 47).
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O aprofundamento dessa divisão teve como conseqüência imediata, resultante da contradição entre as cidades, o nascimento das manufaturas e a superação dos limites da produção corporativa da época. Isso foi possibilitando uma maior diversidade de relações comerciais entre as cidades e, depois, entre as nações. Estabeleceram-se, paulatinamente, as regras de todos os tipos de comércio e também os direitos alfandegários, tributos exigidos pelos senhores feudais aos comerciantes que atravessavam seus territórios. No caso da universidade, esta não escaparia dessa divisão no aspecto acadêmico interno, entre os seus profissionais em suas diversas formações no campo do conhecimento. Além disso, transformou-se em uma instituição que veio atender a essas necessidades de cada modo de produção. É uma divisão que está presente com muito maior expressividade no capitalismo. Pode-se ver, no caso da família, que o indivíduo está ligado por laços da própria família ou da tribo, ou mesmo do solo. Mas há também as relações de troca entre as famílias, entre tribos, nações ou mesmo entre indivíduos. Na primeira situação, a troca ocorre entre a natureza e o homem, uma troca expressa pelo trabalho dos primeiros e os produtos da natureza; na segunda situação, o que ocorre é uma troca entre os próprios indivíduos. Na primeira situação, não existe a separação entre a atividade corporal e a atividade espiritual, enquanto que na segunda essa divisão está, praticamente, realizada. Marx esclarece: “no primeiro caso, a dominação do proprietário sobre os não proprietários pode descansar nas relações pessoais, numa espécie de comunidade; no segundo caso, deve ter tomado uma forma reificada em uma terceira coisa, o dinheiro” (ibid.: 102). A divisão do trabalho arrasta consigo a divisão das condições de trabalho, das ferramentas e dos materiais e também a fragmentação do capital entre diferentes proprietários. Tornase evidente a luta da extensão por recursos financeiros para a realização de projetos, em contraponto com as definições já existentes para o ensino e para a pesquisa. Estabelece-se, conseqüentemente, a divisão entre trabalho e capital e as diferentes formas de propriedade. Há um processo sincronizado de divisão de trabalho e o aumento da acumulação. Emerge uma fragmentação cada vez mais aguda. Marx conclui afirmando que “o próprio trabalho só pode subsistir sob o pressuposto dessa fragmentação” (ibid.: 104). A extensão universitária tem adquirido essa fragmentação, mesmo sendo considerada como um trabalho social com uma utilidade determinada. Os desafios que se abrem doravante dizem respeito às possibilidades de sua superação.
O processo de trabalho A extensão, vista nos marcos conceituais do trabalho, não precisa se abrir como um processo em que não se vislumbre apenas a produção de valores de uso. Não será possível a compreensão dessa categoria, sem a compreensão da dialeticidade existente nesse processo e de que forma se dá essa produção de valores de uso. Nessa perspectiva, Marx sugere a identificação do trabalho com o próprio mecanismo de utilização da força de trabalho. Para ele (1982: 201), “a utilização da força de trabalho é o próprio trabalho”. Assim é que o comprador da força do trabalho passa a consumi-la, enquanto que o seu vendedor apenas trabalha. Ao trabalhar, ocorre a superação daquilo que estava existindo no sujeito apenas de forma potencial. Agora esse sujeito é um trabalhador e detém a força de trabalho em ação. O realizador da extensão, o extensionista, é um trabalhador e detentor de sua força de trabalho em ação. Ora, essa força de trabalho em ação irá transformar as coisas que passam a apresentar uma finalidade, atender a uma necessidade, seja de qualquer ordem, tornando-se mercadorias. O produto da extensão, mesmo que seja o conhecimento, tem valor de mercadoria. Mas essa produção de mercadoria não acontece de forma espontânea ou mesmo arbitrária. Na verdade, está sob o controle daquele que determina que seja produzida tal ou qual mercadoria - o capitalista - produzindo o trabalho um valor de uso particular ao seu artigo também específico. A universidade não está, portanto, imune ao mercado do capitalista. Assim, a realização do trabalho, agora em valor de uso, transformação de algo em mercadoria, só torna possível o seu entendimento a partir da visão de trabalho como processo, que é assim definido por Marx:
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“O trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana” (ibid.: 202). Essa ação sobre a natureza externa é transformadora não só em relação à natureza que lhe é externa, mas também quanto à sua própria natureza. A extensão adquire a dimensão transformadora constituinte do próprio conceito. Este trabalho sugere um acordar das potencialidades da natureza, porém submetendo-a a seu próprio domínio. Essa conformação é uma pressuposição exclusivamente humana. Este não pode ser comparado com outros como o dos animais - a abelha ou a aranha, por exemplo, - que não planejam as suas atividades. Realizam-nas, apenas, instintivamente. O humano imprime sobre a natureza o seu desejo de realização. É capaz de realizar aquilo que anteriormente passara por sua consciência, sem, contudo, deixar de entender a anterioridade da realidade sobre a consciência. Estabelece-se nesse tipo de trabalho, uma intencionalidade. Ao definir o trabalho como um processo, Marx apresenta os elementos constituintes desse processo, que são os seguintes: “1) a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio objeto; 2) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; 3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho” (ibid.: 202). Com esse detalhamento dos elementos constituintes do processo, Marx vê a terra e os meios de subsistência que são apresentados ao homem como “objeto universal do trabalho do homem”. Mas há, na natureza, coisas que são separadas do trabalho e de seu meio natural. Essas coisas constituem-se nos objetos do trabalho que são, por sua vez, fornecidos pela própria natureza. O objeto de trabalho, em sendo produzido a partir de trabalho anterior, passa a ser chamado de matériaprima. Nesse sentido, nem toda matéria-prima é objeto, assim como nem todo objeto de trabalho é matéria-prima. O objeto pode ser considerado como matéria-prima, após ter sido transformado pelo trabalho. O outro elemento dessa dialeticidade é o meio de trabalho, assim definido: “o meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto” (ibid.: 203). Todavia, o trabalhador aproveita as propriedades físicas, químicas e mecânicas das coisas para fazê-las atuar como forças sobre outras coisas. Todo esforço da extensão vai no sentido da posse do seu meio de trabalho para alguma utilidade. Portanto, aquilo de que o extensionista se apossa, excluindo os elementos fornecidos pela natureza, torna-se não o objeto de trabalho, mas o meio de trabalho. Ao adicionar essas outras coisas à sua própria força, estará aumentando sua força corporal e natural. O desenvolvimento da humanidade dá-se também no sentido de, cada vez mais, exigir meios de trabalho mais elaborados. Para Marx, “os meios de trabalho servem para medir o desenvolvimento da força humana de trabalho e, além disso, indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho” (ibid.: 204). Por sua vez, são esses meios usados ou produzidos pelo homem, que irão caracterizar esse processo como estritamente trabalho humano. Os meios de trabalho apresentam, contudo, uma maior abrangência conceitual, considerando-se como tal todas as condições materiais que sejam necessárias para a realização de todo o processo. Assim, a terra continua sendo um meio de trabalho considerado universal, já que oferece o local ao trabalhador. Mas, num sentido amplo, constituem-se em meios de trabalho aqueles resultantes de trabalho anterior. Por exemplo, as estradas, os edifícios, as fábricas, etc. No caso da universidade, em especial, são meios de trabalho todas as formas de conhecimentos ou técnicas adquiridas. A extensão universitária só pode se constituir como uma atividade humana, como um trabalho. Ora, a atividade humana sobre a natureza, no processo de trabalho, realiza uma transformação. Essa transformação apresenta um determinado fim sobre o objeto, através do instrumental de trabalho. O processo é concluído ao realizar-se no produto. Portanto, o produto é expressão da conclusão do processo de trabalho humano sobre a natureza. Algo que não se realiza por um mero prazer de estar expresso em um produto. Esse produto só terá sentido se atender a uma necessidade humana:
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“O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou. Concretizou-se e a matéria está trabalhada. O que se manifestava em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado do produto. Ele teceu e o produto é um tecido. Observando-se todo o processo do ponto de vista do resultado, do produto, evidencia-se que meio e objeto de trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho produtivo” (ibid.: 205). O valor de uso desse processo se expressa como um produto. Nesse processo de produção, esse valor arrasta consigo vários produtos, assim como outros meios de produção e também outros valores de usos, constituindo-se como tal em processos de trabalhos anteriores. Assim é que um valor de uso se torna meio de produção de outro. Tem-se, portanto, que produtos constatados como meio de produção são, normalmente, melhor compreendidos como um produto, sendo também condição de processo de trabalho. Pela extensão, poderão surgir muitas outras formas de conhecimentos ou mesmo de tecnologias para além da produção existente e que ajudarão a organização do processo mesmo do trabalho e da organização dos trabalhadores. Os materiais utilizados nesse processo passam a ser muito diferenciados, sendo alguns deles subsumidos pelo próprio processo. O meio pode, inclusive, consumir o material acessório, presente em um processo de trabalho em que a matéria-prima é a substância principal. Essa diferença entre matéria-prima e matéria assessória desaparece nos processos de fabricação ou em processos de transformações químicas, por exemplo. As reações tidas como irreversíveis não mais recuperam os materiais anteriores ao processo. Elas são transformadas em novo produto eliminando, portanto, as diferenciações existentes no início do processo. Reaparecem, contudo, como um novo produto. Muitas dessas matérias apresentam uma diversidade de propriedades e podem também aparecer em variados processos de trabalho, por exemplo, o carvão. Um produto assim pode aparecer útil num processo de trabalho, servindo como meio de trabalho e também como matéria-prima. Da mesma forma acontece com a produção do conhecimento no processo de trabalho acadêmico como a extensão universitária. Dessa maneira, uma máquina que esteja sem operacionalidade não serve para um processo de trabalho e se torna inútil. Nessa perspectiva, Marx busca eliminar esse tipo de trabalho nela colocado para tornar-se máquina e considera a importância fundamental daquilo que foi, denominando-o de trabalho vivo. Este precisa apoderar-se das coisas e retirá-las do estado de inércia, inserindo-lhes valores de uso reais e efetivos. Simbolicamente, assim se expressa: “O trabalho, com sua chama, delas se apropria, como se fossem partes do seu organismo, e de acordo com a finalidade que o move lhes empresta vida para cumprirem suas funções; elas são consumidas, mas com um propósito que as torna elementos constitutivos de novos valores de uso, de novos produtos que podem servir ao consumo individual como meios de subsistência ou a novo processo de trabalho como meios de produção” (ibid.: 208). Os produtos desse trabalho anterior, contudo, só se realizam nesse processo como valores de uso, estando em contato com o trabalho vivo. Um trabalho útil para a realização de novos produtos e novas transformações. Este processo pela extensão expressa um trabalho social e útil, tendo como um produto político as mudanças sociais e um produto acadêmico – o conhecimento. O trabalho é um processo de consumo, visto que gasta os elementos materiais, tanto os seus objetos como os seus meios. É, entretanto, um consumo produtivo que muito se diferencia do consumo do indivíduo, o qual gasta os materiais como meio de sua sobrevivência. Já o primeiro consome os meios que possibilitam o funcionamento da força de trabalho “posta em ação pelo indivíduo”. O trabalho consome produtos para gerar outros produtos. Pode também se utilizar de produtos para torná-los meios de produção de novos produtos. Esse processo, cheio de elementos abstratos e simples, é assim definido: “Atividade dirigida com o fim de criar valores de uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais” (ibid.: 208).
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O processo de trabalho, nas mãos dos capitalistas, apresenta duas questões. A primeira diz respeito ao zelo do capitalista no sentido de que o trabalho se realize da maneira mais apropriada possível, com melhor aplicação dos meios de produção, ausência total de desperdício da matéria-prima e manutenção do instrumental de trabalho. A segunda é o fato de que o produto desse processo pertence ao capitalista e não ao produtor imediato, o trabalhador. O capitalista o detém como uma compra idêntica à de qualquer outra mercadoria do mercado. A força de trabalho do trabalhador, como mercadoria, é negociada nas mesmas bases de qualquer outra mercadoria, como o aluguel de outro animal que foi alugado por um determinado tempo. Ao trabalhador está reservada a luta do retorno de seu trabalho para si mesmo, expressão de um processo de resgate de sua própria existência humana. O processo de extensão como um trabalho social e útil só terá sentido quando permeado da intencionalidade já estabelecida, isto é, a inter-relação entre o ensino e a pesquisa, na perspectiva desse resgate da existência humana. Esta discussão sobre o conceito de extensão como trabalho conduz ao resgate dessa categoria, restabelecendo a descoberta da relação do trabalho na formação do homem e da história. Isto parece contribuir para se ir bem além do papel da universidade, sobretudo pela extensão, como expressão de uma mera atividade reprodutiva do atual modelo de sociedade. Pela extensão, torna-se possível a superação de tantas e possíveis formulações idealistas ao mostrar a relação e não a separação entre o indivíduo e a sociedade, ou ainda, entre a sociedade e a universidade. A extensão como um trabalho social útil acompanhada de intencionalidade, na perspectiva política das transformações, reafirma a unidade entre o indivíduo e a sociedade. Evita-se uma fixação na sociedade como uma abstração e encastela o indivíduo como um ser social. Suas manifestações de vida em comum e realizadas simultaneamente com os outros indivíduos tanto expressam como reafirmam a vida social, possibilitada, necessariamente, pelo trabalho. Surge a criação da sociedade como fruto das relações que são colocadas em existência e condicionadas pela produção material do indivíduo. Ao postular o trabalho como elemento responsável por esse processo criador, Marx também demonstra o papel do trabalho no processo da universalidade do homem, ao resgatá-lo como sujeito do conhecimento e da história. Enfim, a sua essência, no sentido metafísico e absoluto antes defendido pela filosofia idealista, inexiste de fato. A extensão pode ser, assim, externada como uma atividade que se dirige para a satisfação de uma necessidade. Esta não acontece de imediato, porquanto se realiza através de uma mediação. Ao homem cabe essa mediatização e sua regulação, controlando o intercâmbio orgânico entre si e a natureza. Através do trabalho, o homem também humaniza os próprios sentidos. Sua consciência formada com base nas relações sociais promovidas pelo trabalho se torna condição da natureza social do homem. Sua existência está condicionada e só tem sentido enquanto consciência social, portanto, condicionada e posta em existência pela sociedade. A atividade da extensão não pode ser apresentada, agora, como um produto do indivíduo. Ela está qualificada como trabalho social, como uma propriedade do trabalho que consiste na inseparável ligação da atividade laboral, pura e simples, com a forma social da existência humana. Nessa dimensão, ajuda a resgatar esse tipo de trabalho com a característica de humanização da natureza e do próprio homem. No momento atual, em que estão se tornando tão escassas as possibilidades do emprego, pondo em risco a vida do trabalhador e promovendo ainda mais a desumanização, o trabalho se mantém como categoria fundante, mantendo a sua centralidade quando se busca a construção de um mundo humanizado.
A intencionalidade da extensão Expressando uma síntese, pode-se dizer que a extensão, adquirindo as dimensões filosófica e educativa, intrínsecas à categoria trabalho, pertence a instâncias fundamentais na vida da sociedade. Pela educação, em seu sentido mais amplo, garante-se a preservação dos conhecimentos do passado, que são transmitidos às novas gerações, num processo de acumulação, essencial à qualidade de vida material e espiritual da humanidade, mantendo a sobrevivência da espécie. O trabalho torna-se, portanto, fator de criatividade do humano. Como se vê, o trabalho vem marcando a discussão no campo da extensão. No desenvolvimento das atividades em que o humano defronta-se com a natureza, também realiza, a partir
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dela própria, uma síntese do particular com o universal. É o trabalho que possibilita o significado da ação social, suas limitações, suas possibilidades e conseqüências, sem nenhum recurso metafísico. Mesmo sendo um ponto de partida, é sobre essa base natural do trabalho que se elevam as relações sociais da espécie humana. Este torna-se uma relação social já a partir da relação estabelecida com a natureza, indicando nas relações de produção, também expressas nas atividades de extensão, o caráter social, indissociável, que acompanha o seu processo. A extensão como trabalho realiza-se como processo constituído através das relações sociais - trabalho social útil com uma determinada intencionalidade. A possibilidade de se entender extensão como trabalho social com explícita utilidade opõe-se à visão fragmentada do trabalhador em relação ao processo produtivo, no modo de produção capitalista, determinada pela divisão social do trabalho. O conhecimento da totalidade do processo é transferido para o capital, representado, sobretudo, pela classe social dominante: a burguesia. A posse desse conhecimento reforça as estruturas de dominação que estão inseridas nas relações sociais de produção e vai garantir, pelo lado do capitalista, a reprodução das relações de produção, considerando que o modo de produção capitalista funda-se na separação entre a propriedade do trabalho e a dos meios de produção. Essa separação impõe ao trabalhador a manutenção de sua posição na estrutura das relações de produção, considerando que a sua sobrevivência estará garantida enquanto ele estiver fornecendo ao mercado a sua força de trabalho, já que esta é seu único bem disponível. A extensão expressa pela realização do trabalho social útil precisa, ainda, efetivar e desenvolver, entre seus participantes a necessidade da conquista de cidadania. Uma cidadania cujo significado está bem cristalino na perspectiva de que seja um processo de formação de cidadão crítico, consciente como sujeito de transformação e também ativo, superando o idealismo contemplativo e interpretativo da natureza. Um trabalho social útil não se exerce apenas a partir dos membros da comunidade universitária: docentes, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade, que é a participação dos membros da comunidade em seus movimentos sociais, sejam dirigentes sindicais ou mesmo as associações, ou outros ambientes, numa relação biunívoca para a qual confluem membros da universidade e participantes desses movimentos. Extensão, como trabalho social útil com a intencionalidade de conectar o ensino e a pesquisa, passa a ser agora exercida pela universidade e por membros de uma comunidade sobre a realidade objetiva. Um trabalho cooparticipado que traz consigo as tensões de seus próprios componentes em ação e da própria realidade objetiva. Um trabalho onde se buscam objetos de pesquisa para a construção do conhecimento novo ou reformulações das verdades existentes. Esses objetos pesquisados serão também os constituintes de outra dimensão da universidade: o ensino. É também um trabalho de busca de objeto para a pesquisa. A extensão configura-se e concretiza-se como trabalho social útil, imbuído da intencionalidade de pôr em mútua correlação o ensino e a pesquisa. Portanto, é social na medida em que não será uma tarefa individual; é útil, considerando que esse trabalho deverá expressar algum interesse e atender a uma necessidade humana. É, sobretudo, um trabalho que tem na sua origem a intenção de promover o relacionamento entre ensino e pesquisa. Nisto, e fundamentalmente nisto, diferencia-se das dimensões outras da universidade, tratadas separadamente: o ensino e a pesquisa. Como trabalho social útil acompanhado dessa intencionalidade, a extensão expressa-se sobre a realidade objetiva e seu produto aos produtores retorna. Isso mostra a extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica, também fundamental, que é a busca de superação da dicotomia entre teoria e prática. Há, então, possibilidade de se direcionarem projetos para a ampliação da hegemonia voltada aos setores subalternos da sociedade, contribuindo para o desvelamento das ideologias dominantes e construindo uma nova estratégia da função social, ou mesmo uma dimensão das atividades de extensão em favor da cultura das classes subalternas. Este é mais um papel possível do aparelho de hegemonia - a universidade - que, através da extensão, pode também direcionar a pesquisa e o ensino para um outro projeto social.
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AUTOGESTÃO Realidade Boa parte das ações desenvolvidas no campo da extensão universitária têm tido a marca do atendimento a satisfações individuais de pessoas. Precisam tornar-se projetos atrelados à busca de realizações de novas relações sociais, pautadas em outros fundamentos. Podem estar voltadas à construção de um novo estilo de vida. Nessa direção, mantém-se a questão já formulada: para que tipo de sociedade estão sendo direcionadas essas ações pela extensão? Elas parecem ter significado à medida que sejam conduzidas a processos que mantenham o humano como centro dessas realizações e o trabalho impulsionador de sua emancipação, assegurando a existência da própria vida humana resultante de sua intervenção na natureza. Mas a reafirmação desses propósitos presentes conduz a uma análise da realidade neste atual momento histórico. Esta vem apontando para uma situação geral de avanço do desemprego170 diante de novas tecnologias, da ausência de políticas voltadas a esta questão que mais aflige a classe trabalhadora, além da pouca possibilidade de as pessoas conseguirem emprego, comprometendo a sua sobrevivência humana que, no capitalismo, a cada dia, se torna mais agravante. As tentativas de ações para a solução do problema do desemprego, como as aplicadas na Usina Catende, sejam jurídicas, de incentivos financeiros à empresa, com redução da contribuição da previdência, maior racionalização nas atividades do cotidiano, ou mesmo a redução das tarefas do trabalho, têm contribuído muito pouco para minorar o problema. Estas medidas têm sido paliativas, pois mantêm-se atreladas a perspectivas unicamente asseguradoras do funcionamento econômico e financeiro da empresa. As questões que estão presentes na vida dessas maiorias trabalhadoras transcendem estas dimensões, exigindo medidas mais amplas, audazes e também mais realistas que incentivem o crescimento econômico, sem, contudo, aniquilar o seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Não é suficiente a luta por uma política de superação do desemprego com o incentivo, apenas, para o contrato de mais pessoas, com a criação de novos postos de trabalho. O que se pretende é a luta por uma política que vise à ocupação dessas pessoas, até com possíveis empregos, porém facilitadora de sua ação humana sobre a natureza e de sua satisfação pela vida. Para isto, são urgentes reformas estruturais do mercado e da economia. O mercado e a economia têm uma lógica própria de funcionamento dominante, no atual momento histórico, uma vez que estão atrelados a um padrão estritamente mecânico, caracterizado pela constatação das necessidades humanas em suas várias formas de expressão: físicas, culturais, espirituais e outras. Para atender a essas necessidades, produzem bens e realizam serviços, respondendo às demandas daqueles que estão na linha de consumo. Há um reduzido grupo que utiliza as diferenciadas maneiras de expressar o capital – dinheiro, idéias, técnicas etc – que, interagindo com matérias-primas, promovem a organização do trabalho por meio do planejamento e gestão. A matériaprima e a tecnologia estão dominadas por macroempresas, aumentando a concentração da riqueza nas mãos de poucos. Além disso, descarta-se a mão de obra dos processos produtivos, promovendo, ainda mais, o aumento do desemprego. Isto tudo forma uma característica geral do capitalismo em que o capital passou a pertencer a poucos. Análises européias previam que a ocupação da mão-de-obra por novos trabalhadores seria apenas de 20%, para a década de 1991 a 2000, naquele continente. É sabido que o PIB dos EUA, acumulado em vinte anos (70/90), atingiu a cifra de 70% de crescimento, enquanto que a taxa do emprego, no mesmo período, só cresceu 49%. A União Européia, em período semelhante, atingiu cifras de 81% e 9%, respectivamente (Comisión Europea, 1994). Nos países como o Brasil e Argentina, é comum esse índice atingir a casa de 20%, destacando-se, em geral, o desemprego nas
A falência da Usina Catende, em 1993, insere-se no quadro vivenciado por outras empresas do ramo da produção do açúcar e do álcool, na região Nordeste, agudizando, pelo desemprego, as condições de vida dos trabalhadores na Zona da Mata nordestina. 170
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metrópoles como São Paulo e Buenos Aires. Esses índices adquirem maior dimensão se comparados por regiões, o que expressaria uma maior concretude dessa realidade. Dentro desse contexto, pode-se perguntar: quais têm sido as medidas tomadas para a superação do desemprego? Em geral, uma primeira medida apresentada e, às vezes, aceita pelos trabalhadores é a redução da jornada de trabalho. Em que pese a sua importância para possível melhoria da qualidade de vida e mais absorção da mão-de-obra, essa medida tem acompanhado a redução do salário, tornando pouco interessante à classe. Outra proposta implementada é a flexibilização do mercado, no sentido de promover uma maior repartição do trabalho. Esta se manifesta com alguma importância para o cenário da vida do trabalhador. Entretanto, promove a suspensão efetiva de conquistas, em especial, quanto à previdência social. Outra sugestão é a busca de novos estilos de ampliação do mercado, através do atendimento de necessidades culturais - melhor idade, meio ambiente e outras. Constata-se, todavia, que a maioria das pessoas enfrenta uma luta angustiante pela sobrevivência, em primeiro lugar. Com a falência de empresas, todos os trabalhadores são demitidos. As atividades culturais estão sendo relegadas a um segundo plano. Outras possibilidades para além da sobrevivência, recorrentes do trabalho, atingem apenas uma minoria. Os novos mercados surgem muito mais enriquecedores para as próprias empresas especializadas nessas novas atividades, pouco restando para o atendimento das necessidades básicas da população. Além do mais, o turismo não é algo possível em qualquer ambiente ou geografia. Aspectos atraentes a serem mostrados para fomento dessa atividade não estão espalhados por todos os recantos. Outra alternativa veiculada por órgãos como o SEBRAE é o fomento à criação de microempresas, introduzindo uma ideologia de que a todos é possível o gerenciamento de um empreendimento. O incentivo à capacidade de empreendedorismo é importante. A realidade, porém, cobra dos possíveis empreendedores outras habilidades, muitas vezes, ausentes nos mesmos. Não existe apoio de políticas voltadas àquela nova atividade, como estudos e pesquisas sobre o mercado, análise do ambiente cultural em que se vive, cálculos sobre a renda do empreendimento, além de um conhecimento da economia local ou regional. Indagados sobre o seu interesse pelo processo de gestão/administração da empresa, 88,64% dos trabalhadores da usina responderam ter interesse. Entretanto, quando solicitados a indicar essas atividades, 78,57% afirmaram desconhecê-las171. Políticas de acesso a esses tipos de conhecimento não têm tido apoio suficiente nem técnico ou financeiro, em geral. Delrio (1999), ao analisar a situação do desemprego na Europa, constata que há uma falsidade no discurso estabelecido sobre a globalização. A sua abrangência não se constata nos setores que são apregoados. O autor mostra que esse discurso não envolve todas as dimensões da vida. Estabelece-se como uma ideologia, mesmo que seja efetivada nos campos rentáveis ao mercado. Na verdade, o discurso da globalização é algo que não promove a inclusão das pessoas, não integra soluções e respostas às necessidades gerais. Esse discurso “nos uniformiza como consumidores do mercado que está globalizado” (p.29). Segundo ele, não foram globalizados a saúde, a nutrição, a educação para autonomia das pessoas, os conhecimentos técnicos e científicos, a informação, o emprego e, muito menos, a renda para todos. As políticas geradas a partir desse discurso têm se caracterizado pela desregulamentação da circulação internacional de capitais, pelo agravamento do desemprego e, ainda, pelo desmonte dos serviços públicos essenciais como saúde, educação, habitação, seguro-desemprego, aposentadoria, entre outros. São políticas que insistem em permanecer. Como reação, no sentido da reabsorção dos trabalhadores aos postos de trabalho, soluções estão sendo tentadas pelos próprios trabalhadores, criando e reapropriando-se de formas alternativas de ocupação. Nelas inserem-se as variadas formas autônomas de trabalho, a autogestão das empresas que faliram ou a criação de cooperativas. Essa procura por alternativas surge em todo o mundo. Delrio (1999) reforça-as mostrando que há vários grupos espalhados que estão propondo saídas para a construção de um outro tecido social ou promovendo outras formas de relações econômicas. São organizações que desenvolvem experiências de gestão, buscam outras soluções na tentativa de mudanças culturais profundas na sociedade. São 171Todos
os dados expressos em percentagens sobre a Usina Catende/Harmonia fazem parte da pesquisa realizada pelo IBASE/Rio de Janeiro, em 2001/2002.
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experiências que, mesmo em pequena escala, constroem e desenvolvem capacidades e valores essenciais para a vida e o trabalho. A esse respeito, esclarece o autor: “- pensar observando, analisando a realidade e buscando soluções; - responsabilizar-se, acostumar-se a planificar e avaliar os resultados das ações empreendidas; - respeitar as opiniões dos demais cidadãos que participam e criticam, na perspectiva da melhoria para solucionar os problemas; - participar, adquirir prática do trabalho coletivo e consensuado; coordenar-se de igual para igual, promovendo a confiança no outro; - acostumar-se ao manejo da economia como algo normal da vida; - e, promover a sua imaginação, disseminar e promover experiências de autogestão econômica e social desde que rentáveis e coerentes” (ibid.: 38).
Constitutivos: A história As novas experiências vêm apresentando grandes desafios aos trabalhadores, apontando para outro estilo de se inserir no mercado e o tratamento a ser dado aos produtos culturais, como o gerenciamento de forma autogestionária. Isto exige uma maior compreensão sobre a própria autogestão. Mesmo atuando em uma empresa que tem como modelo a participação, 63% dos trabalhadores da Usina Catende estão sem qualquer idéia do que seja uma empresa de autogestão. Autogestão é uma palavra que vem tendo uma maior divulgação, a partir da década de 60, através de grupos de estudos, sindicatos, partidos e organizações-não governamentais, aparecendo na imprensa e jornais e em vários outros meios de comunicação. Dessa maior divulgação tem saído uma diversidade de compreensão, dificultando bastante o seu significado conceitual. Para isto, é importante fazer-se uma breve revisão histórica. O avanço tecnológico no capitalismo tem trazido para a classe, ao atingir a base de sua própria existência, diferenciadas formas de reação ao desemprego. Com a primeira revolução industrial, os trabalhadores resistiram a esse modelo de produção, inicialmente, reivindicando direitos que já tinham sido conquistados e perdidos, reforçando o antigo regime. Uma segunda forma reativa voltou-se diretamente à política, neste caso, buscando radicalizar os processos de democratização, tendo sido a Revolução Francesa um marco motivador nesse tipo de proceder dos operários. Uma terceira forma deu-se com o desenvolvimento de alternativas ao modelo capitalista, como o sindicalismo, ou mesmo da produção e da distribuição por meio de cooperativas. Convém destacar que a mobilização dos trabalhadores nessas situações tem envolvido, sobretudo, aqueles mais qualificados. Também, não se pode deixar de lembrar que essas lutas foram marcadas por insurreições súbitas, resultantes de explosões de desespero diante da condição de miséria humana com o comprometimento de sua própria sobrevivência, provocando atitudes violentas. Várias têm sido as tentativas de superação dessa situação histórica impingida aos trabalhadores. Salienta-se a tentativa do socialista utópico Owen (1770-1858), ao propor acabar com a fome, a partir da criação das “aldeias cooperativas”. A sua idéia básica estava centrada na possibilidade de pôr fim à pobreza daqueles que estavam sem emprego e, ao mesmo tempo, superar a situação de vida atrelada, simplesmente, à beneficência das paróquias (Leis dos Pobres, na Inglaterra). O caminho definido por Owen, por meio das aldeias, possibilitava a vida em comunidade e promovia a produção coletiva, trocando as suas mercadorias com as outras cooperativas. Era uma tentativa de pôr fim à miséria, buscando-se uma mudança social, reorganizando a empresa capitalista, buscando-se acabar com o lucro. Essas experiências, contudo, não foram forjadas pelas simples idéias, mas estiveram permeadas de importantes lutas contra aquela situação de vida, buscando-se a organização dos trabalhadores. Travou-se uma luta política profunda contra o capitalismo, sendo exteriorizada, principalmente, com o movimento de criação de sindicatos e de cooperativas. Estas foram as descobertas fundamentais dos trabalhadores que sentiram a importância de se reunirem em organismos políticos que possibilitassem, de forma coletiva, superar as lutas internas dos operários, de modo a
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poderem enfrentar a organização dos compradores de sua força de trabalho. Reafirmaram, dessa forma, a sua principal luta contra o capitalismo para além da reação da ´quebra do maquinário`, que é a busca construtiva de uma outra sociedade, com padrões diferenciados para a propriedade privada e o lucro. Os sindicatos e cooperativas foram, portanto, expressão reativa dos trabalhadores aos exorbitantes preços de material de primeira necessidade e produtos da revolução industrial. Essas cooperativas remontam ao século XVIII. Foram resultados de muitas lutas contra a exploração da mão-de-obra dos trabalhadores e que no Brasil, mesmo nos dias de hoje, revelam verdadeira escravidão, sobretudo, na zona rural, através da velha tradição dos „barracões‟. No passado, eles estavam presentes nas áreas dos cafezais e nas de cultivo de cana-de-açúcar e, mais recentemente, nas fazendas de gado, onde o trabalhador nunca consegue equilibrar as suas despesas. No início do século XIX, começaram a surgir sociedades em forma de cooperativas, que passaram a se diferenciar entre si. Para Singer (1998), elas tinham um espírito socialista ao se tornarem pioneiras na busca de uma sociedade melhor, substituindo no futuro o capitalismo. Contudo, eram diferentes de outras comunidades cooperativadas e constituídas por pessoas da classe média, dependendo de contribuições filantrópicas. A esse respeito, esclarece: “Essas cooperativas, que podemos chamar de „operárias`, surgem da luta de classes e muitas vezes foram criadas para enfrentar e eliminar a empresa capitalista de mercado. A idéia era ingênua, mas empolgou os trabalhadores britânicos durante as jornadas quase revolucionárias dos 1820 e 1830. Ao contrário das cooperativas que chamaremos de `comunitárias´, as operárias constituíram, neste período, um genuíno movimento de massas, participando diretamente das lutas sindicais”(p. 94). A depender de outros apoios de ordem financeira, essas comunidades e aquelas formuladas por Owen caminharam para o fracasso, provocando um período de descenso do movimento operário. Aliás, essas experiências, até meados do século XIX, tiveram existência passageira, passando por momentos vivos enquanto durava o tempo de confronto, vindo a declinar com a superação ou a derrota daquele movimento. As cooperativas e sindicatos estiveram submetidos a esse tipo de avanços e recuos políticos. Mas foi em Rochdale, cidade industrial perto de Manchester, na Inglaterra, que surgiu a sociedade cooperativa denominada Society of Equitable Pioneers, decorrente da realização de uma greve derrotada de tecelões. Esses pioneiros marcariam todo um movimento de lutas e confrontos e, também, de adaptação aos processos do capitalismo. Importante para a organização dos operários parece ter sido a definição dos objetivos dessa cooperativa, voltada à construção de armazéns para o abastecimento de seus sócios, de casas para aqueles que ainda não as possuíam e produção coletiva de artigos, ocupando os desempregados. Dessa forma, criava-se uma entidade em condição de auto-sustentabilidade de seus membros, mas mantendo o ideário socialista. Eis as regras dessa cooperativa: a sociedade seria administrada democraticamente, onde cada sócio teria um voto; estaria aberta a qualquer um que desejasse ser sócio, desde que integrasse uma quota que era igual para todos; a divisão do excedente teria regras próprias para repartição, mas ao capital investido seria assegurada uma taxa fixa de juros de 10%, incentivando-se inclusive as compras na própria cooperativa; a venda realizada pela sociedade seria apenas à vista; estaria assegurada a venda de produtos de boa qualidade; a sociedade se manteria neutra em relação à política e à religião. Destaca-se, aqui, a importância de uma regra voltada ao desenvolvimento da educação dos sócios nos princípios do cooperativismo. Essa experiência, além de manter o ideário socialista, mostrou a sua capacidade de adaptação e de assegurar aqueles princípios diante das oportunidades e também dos riscos de se viver em uma economia de mercado. Tornou-se, dessa maneira, um modelo para outras sociedades cooperadas, tanto na Inglaterra como nos demais países. As lições trazidas por esse movimento floresceram no Reino Unido, espalhando-se por todo o mundo. Singer (ibid.) destaca que uma importante lição dessa experiência é a demonstração de que a revolução capitalista se move pelo relacionamento das forças produtivas, fomentando a generalização das relações sociais de produção capitalista. Para ele, a acumulação na escala desejada pelas novas forças produtivas se torna viável com a instituição dos seguintes instrumentos: papel-
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moeda e padrão-ouro, sociedade anônima, bolsa de valores, livre câmbio, governo representativo, divisão de poderes, império da lei e liberdades civis. Entretanto, essa revolução, que parece positiva, também tem a dimensão destrutiva das instituições definidas, estabelecendo novas instituições. Assim, destrói-se o banqueiro local ou mesmo a dinâmica das mercadorias que, no caso da Inglaterra, não sustentou as condições concorrenciais com os produtos oriundos de outras partes do mundo. Além disso, esse tipo de revolução vai, pouco a pouco, revogando toda a legislação voltada ao trabalho, dentro do modelo concorrencial anterior. Na primeira revolução industrial, bem como na segunda, foram sendo anulados os regulamentos do trabalho artesanal. Há uma dialética no processo de superação dos resultados estabelecidos socialmente em cada momento revolucionário. Na primeira revolução industrial, não só a legislação foi destroçada como também as qualificações profissionais, surgindo novas qualificações. Esse processo continuaria com as revoluções seguintes, tanto na segunda como na terceira. As relações artesanais e semiartesanais foram superadas e, hoje, a revolução tecnológica, como na construção de um automóvel, destrói profissionais voltados às atividades de transporte em animais. Em contrapartida, surgiram outros profissionais vinculados às exigências mecânicas da nova máquina. Mais recentemente, datilógrafos e outros profissionais foram substituídos por digitadores, analistas de sistemas, reparadores de computadores. Isto tudo gera as suas vítimas, restando-lhes apenas buscar outro projeto social alternativo ao capitalismo, na perspectiva da manutenção da ocupação do trabalhador para sua própria sobrevivência em uma outra perspectiva de trabalho. A construção desse projeto passou a exigir, do ponto de vista ideológico, o respeito às liberdades individuais, políticas e econômicas já conquistadas e que “lhes ofereça inserção no processo produtivo em termos do pleno emprego, participação nas decisões que afetam seus destinos também ao nível de empresa e um patamar mínimo de rendimento que lhes proporcione um padrão ´normal` de vida” (ibid.: 110). A manutenção dessa luta, combinada e determinante por direitos políticos, continuará sendo por democracia. A autogestão entre os trabalhadores não se constitui apenas de um ideário ou um objetivo. Há uma experiência histórica estabelecida pelas lutas da classe. Está presente nas formulações dos socialistas utópicos (Owen, Fourier e Proudhon), adquirindo características de mudança gradual por meios pacíficos da sociedade capitalista, através das “livres associações de produtores”. É possível terse referência no movimento operário com a Revolução Francesa, em que a autogestão expressou o tipo de luta espontânea. Nas oficinas da Comuna, os operários nomeavam os seus dirigentes e os retiravam quando as condições e o rendimento não eram atendidos. Definiam os seus salários e as condições de trabalho. Os trabalhadores em luta superaram o movimento do ´ludismo` para a autogestão, marcada pela dimensão da espontaneidade presente no movimento. Exercitaram as possibilidades autogestionadas ao assumirem as fábricas quando eram abandonadas pelos patrões. Esteve presente nas lutas dos operários alemães durante o primeiro pós-guerra, sob a forma de conselhos operários; no início da revolução russa com os sovietes, organismos criados sem qualquer interferência partidária, surgidos espontaneamente, chegando a regular a revolução de 1905; na luta do povo checo-eslovaco pela democratização de seu país durante o império soviético; na organização dos trabalhadores na extinta Iugoslávia; na Polônia com o sindicato ´Solidariedade`; na Espanha, após 1936, com experiências autogestionárias; em Portugal, com a Revolução dos Cravos; na Hungria, com os conselhos operários (1918 e 1919) e em países da África e da América Latina. Quando Marx defende que a organização dos trabalhadores é uma tarefa para os próprios trabalhadores, merece destaque, na América Latina, a instalação da República Libertária do México, em 1911. Também sobressaem a Revolução Cubana de 1959, as revoluções da Nicarágua e de El Salvador, com a insurreição dos camponeses (1932). É marcante a revolução de 1952 na Bolívia, quando os camponeses estabeleceram um duplo poder com a Central Operária Boliviana (COB). No Chile, se destaca o governo de unidade popular estabelecido com Allende.
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No Brasil, o cooperativismo surge desses ideários dos tecelões de Rochdale, por volta do final do século XIX, na cidade paulista de Limeira, com a então denominada Associação Cooperativa dos Empregados da Companhia Telefônica. Sua expansão, contudo, só viria a ocorrer nas décadas de 50 e 60, a partir do Rio Grande do Sul. Para Benato (1998), o modelo que foi sendo instalado não teve como referência a idéia de uma sociedade voltada às pessoas, com intenção de prover bens e serviços dos quais necessitavam. Consolidou-se, na verdade, um modelo conservador de Rochdale, onde o interesse das cooperativas era oriundo das elites que estavam preocupadas com a possibilidade da organização dos pobres. Mas, quais são os princípios doutrinários para que uma cooperativa seja instalada sem adotar um modelo conservador? Para o referido autor, são os fundamentos doutrinários do cooperativismo que, com essa perspectiva, se definem por sua busca humanista de liberdade, de igualdade e de solidariedade, pautando-se racionalmente nesta luta. Atualmente, as sociedades cooperadas seguem as normas em vigor e se constituem como entidades jurídicas de direito privado. Como é uma sociedade de um conjunto de pessoas, passa a diferenciar-se das demais sociedades em vários aspectos. A lei de falência não a atinge. O seu capital é variável e, dessa forma, depende dos sócios que ingressam na sociedade. Cresce com cada novo sócio ou diminui quando alguém é eliminado. Trata-se de uma sociedade que não visa ao lucro; os seus produtos ou resultados financeiros retornam aos sócios. O processo democrático se expressa, independentemente do seu capital, com cada sócio decidindo individualmente. As cooperativas são regidas por leis específicas, operando no mercado de acordo com as especificidades de suas atividades. Destaque-se um princípio sempre presente no cooperativismo, hoje, que é a preocupação com um trabalho voltado ao desenvolvimento sustentável para as comunidades, pautado pela economia solidária, orientada por políticas aprovadas por seus membros, definindo sua própria autogestão, em assembléias. A economia solidária precede as próprias organizações econômicas associativas, com suas características diferenciadoras, como o relacionamento dos sujeitos da ação que, conforme Oliveira (1999), são os produtores que não desejam explorar a força de trabalho do outro produtor. Outra característica é o modelo de propriedade que deve alicerçar-se em bases coletivas, tanto os meios de produção como os recursos da produção. A organização econômica solidária está pautada na gestão coletiva exercida pelos trabalhadores, atingindo o controle e a administração do capital. Convém salientar ainda os princípios da repartição eqüitativa dos resultados e a própria valorização do trabalho, enfatizando a natureza solidária que pode adquirir o mercado, alicerçado por um projeto de mudanças. No embate com o modelo dominante, alerta-se para a compreensão do papel dos mecanismos públicos existentes que são úteis para o desenvolvimento, com a consolidação das organizações solidárias. Reforça-se, além disso, a importância da educação, treinamento e informação aos sócios, como requisito fundamental para a permanência desse tipo de luta. Com se vê, são muitos os desafios presentes na vida dos trabalhadores e na vida da sociedade autogestionária. Isto se torna determinante na vida cooperada ou autogestionada, considerando que as políticas neoliberais, pouco a pouco, vêm reduzindo o poder de pressão dos trabalhadores. Urge que se esteja atento às demandas tecnológicas, mutáveis a cada dia, que mantêm a exigência de trabalhadores mais qualificados, motivados e cientes de seu papel na sociedade. Todos são sabedores do processo de universalização dessas políticas, considerando que elas se impõem pela concorrência. Essas políticas também afetam a vida cooperada, ideologicamente, com os avanços técnicos ou mesmo porque dependem do modelo de Estado, incrustado na vida de cada um. Nessa luta geral, estão inseridas as criações de novos sindicatos e novas cooperativas que expressam `ações socialistas´ no modo de produção capitalista. Estas, por sua vez, carregam diferenciadas possibilidades de degeneração político-ideológica. Uma cooperativa, quando obtém êxito, pode despertar o desejo de enriquecimento de seus membros, fortalecendo o ideário capitalista no interior da instituição. Por outro lado, em situação de crise, o modelo cooperado indica a melhor forma de minorar os resultados da crise, isto é, quando os seus sócios assumem partilhar perdas de forma coletiva. Estas são situações vivenciadas e desafiadoras, também, na experiência de cooperação na Usina Catende/Harmonia. Hoje, prejuízos decorrentes após a destruição de patrimônio com enchente em 2000 e incêndio em 2002, foram pactuados coletivamente. Os trabalhadores (62,85%) percebem
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com isso alguma mudança no seu comportamento pessoal. Este projeto já mostra resultados eivados de diferenças. Desses trabalhadores, 26,05% entendem que se tornaram mais participativos na empresa; outros 22,74% se sentem mais cooperativos e solidários; 20,58% se percebem mais tranqüilos e bem humorados e 10,04% adquiriram maior satisfação em trabalhar. A experiência continua com a difusão de sementes ideológicas para um outro estilo de tratar as relações de trabalho, o seu produto e as relações de poder. No Brasil, há também vários exemplos revolucionários em sua história. Mas, para os dias de hoje, salientam-se aquelas experiências que estão em andamento. São visíveis as tentativas solidárias em várias prefeituras, como a da cidade de São Paulo, dirigidas por partidos com base na classe trabalhadora e por experiências de organismos não-governamentais ou movimentos sociais. Instituições como ANTEAG e CUT estão alimentando grupos e empresas a reproduzirem gestões democráticas e solidárias. Podem ser listadas a experiência do Banco do Povo (Fortaleza); as Cooperativas Populares no Rio Grande do Sul, como as do Leite; a maior experiência em curso no momento, em números de trabalhadores envolvidos, que é a da Usina Catende, em Pernambuco; as experiências de cooperativas promovidas pelo Movimento dos Sem-Terra (MST)172, em todo o país. São tentativas históricas de busca de uma sociedade com princípios autogestionários, dando ênfase à produção e atentas à força da espontaneidade criativa da classe trabalhadora.
O trabalho Os princípios teóricos dessa nova sociedade autogestionada passam por Proudhon173, idealizador de uma sociedade “que deveria se pautar pela cooperação e pelo poder coletivo, numa relação de comutação e reciprocidade, que serão as fontes da força coletiva” (apud, Ansart,1972: 146). Dessa forma, há a substituição da noção de força técnica ou material, sendo elaborado o conceito de relação social constituindo-se como o fundamento da força coletiva. A espontaneidade social completa a formulação desse modelo de sociedade. Sua história é o próprio produto do trabalho, sendo o seu desenvolvimento apoiado nas diversas maneiras de sua produção. O trabalho é o foco da vida social e se torna o componente originário do movimento social. “A sociedade autogestionária é a sociedade organicamente autônoma, constituída de um feixe de autonomias, de grupos se auto-administrando, cuja vida exige a coordenação, mas não a hierarquização” (Motta, 1981: 133). A autogestão se insere na perspectiva de transformação geral da sociedade. São mudanças de ordem intelectual, cultural e moral da classe trabalhadora, inscritas em avanços e recuos profundos, marcando um socialismo que, na sua essência, é a autogestão social, baseada na mais ampla democracia e na hegemonia dos trabalhadores. Nesse sentido, afirma Nascimento (1999: 128): “As novas possibilidades abertas com a revolução tecnológica e cultural, a crise social em todo o mundo capitalista e a derrota cultural e material do socialismo estatal abrem novas perspectivas para a reflexão socialista autogestionária sobre as possibilidades de construção da hegemonia do trabalho em torno de um projeto socialista que aponte perspectivas para alternativas à crise civilizatória em curso”. Autogestão pode ser compreendida, portanto, como uma forma de promoção da democracia em instituições sociais em que trabalhadores são os sócios e os sócios são os trabalhadores (Singer, 2000). É uma visão avessa aos tantos instrumentos de promoção de participação, prisioneira da hierarquização, no campo da democracia formal. Considera, todavia, essas formas interessantes, Ver a tese doutoral de Ronbinson Janes, defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, intitulada: Autogestão e educação popular: O MST. 1998. 172
Há divergências quanto aos marcos originais da autogestão. Para Alain Guillerm e Ivon Bourdet, essas bases se encontram muito mais em Rousseau. É mais comum a leitura de que essa origem está nos anarquistas. Para Cláudio Nascimento, encontra-se, particularmente, na obra de Murray Bookchin, ao desenolver várias teses sobre a ação do cidadão na vida e na gestão da cidade. 173
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porém limitadas, se comparada ao exercício democrático vivenciado diretamente pelos próprios trabalhadores174. Este é um exercício gestionário que pressupõe o desaparecimento da propriedade privada, sendo importante ainda que este exercício não se torne geral em todas as empresas. Este tipo de autogestão, em momentos de transição de modelos de capitalismo ao socialismo, é visto por Mandel (1988) como um melhor modelo de democratização da empresa, abrindo a possibilidade de ascensão dos trabalhadores ao poder e ao comando da decisão econômica. Também no mundo do trabalho, tudo está ocorrendo com muita velocidade e, conseqüentemente, as possibilidades de emprego ou de garantia de uma vida melhor. Na autogestão, o trabalho se encontra no centro do debate, despertando análises teóricas sobre essa categoria. Diante da discussão que se trava em torno da problemática do trabalho e sua centralidade, uma certeza é cristalina: a continuar com a conformação que ora se estabelece mundialmente e se cristalizando esse tipo de desenvolvimento, a vida dos trabalhadores caminha para piorar, com a ausência do emprego. Outra verdade é que as transformações que se processam no mundo são surpreendentes, animando a todos para a continuidade das lutas sociais por mudanças, tentando a superação de tantas formas de conservadorismo. Do ponto de vista das idéias, vive-se diante de um grande retrocesso. Neste início de milênio, incita-se por um “salve-se” em qualquer formulação ou teoria. O que está ocorrendo é um encontro de elementos cada vez mais precários. As opções surgidas, no campo do trabalho, como o toyotismo, não têm mais a mesma empolgação de seu início. Parece que aquilo que está surgindo como uma novidade é muito mais uma mesclagem profunda de vários estilos de produção, ocorrendo com muita velocidade. Isso tudo pode suscitar a questão: será que não está surgindo um novo estilo de modo de produção? 175. Entretanto, se isto se torna possível, não significa uma passagem para o socialismo. Este momento está se apresentando como período de transição que está levando ao aumento da exclusão, ao ponto de jogar a África e regiões da América Latina fora do processo mundial, impondo condições de vida piores do que as de épocas passadas. Tem sido um processo com devastação avassaladora sobre o proletariado. É um processo destrutivo do operariado no estilo antigo, que, ao abrir novos postos de trabalho, constitui-se como uma transição modificadora profunda nas relações capital/trabalho. Esse processo dialético destrutivo infunde sua dimensão construtiva, ou seja, surgem alternativas de algo novo ou gerador de possibilidades distintas para se viver. Diante desse cenário, uma questão se impõe de imediato: o trabalho ainda se mostra como central, no processo de transformação social ou em um exercício autogestionário? Pode-se aceitar o questionamento em torno da centralidade do trabalho do ponto de vista sociológico ou relativo ao cotidiano. Pode-se discutir a centralidade do trabalho no próprio campo do trabalho assalariado, como Claus Offe176 o coloca, do ponto de vista do emprego propriamente dito. Mas, estará sendo questionada a centralidade ontológica do trabalho como fundante do ser humano? O trabalho centrado no ser humano, na perspectiva gramsciana, lukacsiana e mesmo em Marx, continua presente em todas as suas dimensões enquanto se expresse como condição de construção e realização de o homem tornar-se humano pelo trabalho. O trabalho como expressão da relação entre o humano e a natureza, em cujo relacionamento o humano naturaliza-se porque está cheio de natureza, enquanto que esta humaniza-se como recorrência da expressão desse trabalho humano sobre si mesma. A humanização e a naturalização são buscadas nas experiências autogestionárias. Com essa perspectiva do trabalho, Marx funda uma nova concepção de mundo - sua ontologia - uma visão mais global do mundo. Os homens fazem a sua história, um contraponto à concepção hegeliana de história. Essa visão apresenta-a como algo radical do humano. Não é o espírito absoluto que a constrói para o homem. Ele é o próprio agente dessa história através do trabalho. Os homens constroem a sua própria história. Enunciam-na por meio de duas alternativas, pelo menos: a primeira ocorre na medida em que se transforma a natureza para o mundo dos homens; a segunda é que essa Ver aspectos da aversão de Proudhon à democracia formal, em defesa do ideário autogestionário. Proudhon, P. J. (1810). A propriedade é um roubo. Porto Alegre: L&PM, 2000. 175 Questão levantada pelo Prof. Sérgio Lessa (UFAL) e apresentada no Simpósio sobre a Centralidade do Trabalho no Mundo Contemporâneo, promovido pelo Curso de Mestrado em Economia Rural, da Universidade Federal da Paraíba, campus de Campina Grande, em set/1998. Está presente nas preocupações de vários estudiosos do país. 176 Pesquisador alemão no campo do trabalho. 174
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transformação, que se dá pelo trabalho, não é atividade individual ou de um só indivíduo, mas é social, coletiva. Uma mesa é um ente de natureza transformada. A natureza, por si mesma, não a produziria. O processo de construção das coisas é algo social. É expressão do ser humano; é expressão de uma nova esfera ontológica. Essa dimensão está presente na criação de novas fórmulas químicas, de novas situações de natureza desenvolvidas nos estudos teóricos da física, nas formulações abstratas deduzidas por matemáticos, nas linguagens computacionais ou em novos softwares, no trabalho braçal e nos exercícios autogestionários. Todas essas possibilidades, sem exceção, expressam a dimensão ontológica do ser humano e marcam a presença do humano nesses entes criados ou transformados. Constituem a esfera ontológica cuja articulação só ocorre através do trabalho. É, por isso, que o trabalho é categoria fundamental. O emprego se externa como uma forma de trabalho com o objetivo imediato da subsistência humana. O trabalho humano transpõe, portanto, essa importante e limitada esfera do próprio trabalho. O trabalho conduzido pelas práticas autogestionárias ultrapassa a dimensão da subsistência. São ainda suas partes as realizações com e na natureza. Os humanos edificam, assim, o mundo objetivo na consciência. Isso só acontece nesse nível, mesmo sem se tornar mera idealização. E não o é enquanto se coloca uma existência anterior à consciência, sendo esta determinada pela existência. Toda idéia nova, portanto, sempre se coloca a posteriori da existência. Toda vez que se objetiva uma idéia, cria-se nova situação histórica, que nunca mais é igual à nova idéia. A decisão de que o amanhã seja igual ao dia de hoje já carrega uma impossibilidade de realização, pois o hoje não teve como partida uma decisão. A condição do trabalho como elemento central na vida humana e na realização autogestionada da vida não parece questionada. Pelo contrário, é impossível de não ser, entendendo que sem trabalho não há riqueza nem humanização. As transformações no mundo do trabalho, hoje, só reforçam essa centralidade177. As transformações que ora ocorrem não superaram a produção, nem eliminaram o trabalho. Sendo o homem o demiurgo de sua história, então, esta base é o próprio trabalho. Assim, a efetivação da autogestão pressupõe a sua existência, mesmo fora da escala do emprego. Outras categorias podem estar em questionamento, como o próprio emprego, a profissão que não caracterizará mais o indivíduo (a sua perda o remeterá para outra profissão, imediatamente), a configuração de classe social, a centralidade política do trabalho, ou mesmo a perspectiva sociológica do trabalho. No escravismo, já se tinha o trabalho como fundante e, até hoje, a evolução da sociedade não vem fornecendo elementos de questionamentos178 convincentes para a superação dessa categoria teórica enquanto questão ontológica (base do velho Marx). A autogestão se constitui, portanto, em um exercício teórico e prático que se nutre desse elemento central para a realização da vida, em todas as suas dimensões: o trabalho.
A igualdade Esse é um trabalho que se situa fora das características de sua divisão social. Trata-se de um trabalho que afasta a alienação dominante no atual estágio social de vida. É um trabalho que urge assumir características geradoras de emancipação, contribuindo para a liberdade humana, tendo como pressuposto dessa realização a igualdade das pessoas. Esta é um constitutivo também fundante da autogestão. A sua efetivação se torna possível se forem debeladas as perspectivas da desigualdade, tidas como naturais entre as pessoas. A desigualdade passa ser a justificação de propriedades que contribuem para a existência de diferenciados papéis sociais em comunidades. A alguns poucos é reservado o papel de comandar os demais. A estes está reservado, simplesmente, o cumprimento das ordens dos mandantes. Não se pretende, aqui, reduzir a vida humana ao trabalho. Há outras categorias que compõem a vida do indivíduo. O trabalho não é a única atividade humana. Há, inclusive, mediações internas na sua realização que o submetem para além dessa categoria. Criam-se, por outro lado, necessidades novas com a realização do trabalho. As transformações, contudo, ocorrem pelo trabalho. 178 Jürgen Habermas, pensador alemão, questiona a centralidade do trabalho, através da fenomenologia, a partir de sua teoria da ação comunicativa. 177
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Aceita a desigualdade, abre-se um caminho para a fundamentação da necessidade de uma ´elite` que exerça o mando sobre as demais pessoas. Firma-se o princípio da autoridade. Os demais, os comandados, são exercitados para os caminhos da obediência cega. Pela desigualdade é que se vai fundamentar a inexistência de qualquer tipo de problema, seja de fundo teórico ou mesmo evitando o dissabor moral pela inexistência de questões dessa ordem. Justifica-se, inclusive, a existência do preconceito, considerando a desigualdade como uma premissa da natureza. No exercício da autogestão, o princípio que se contrapõe a estas expressões de aceitação, tidas como algo natural, é que todos, em sua dimensão de humanos, são iguais. Este princípio não traduz um tipo de compreensão que conduza a tornar equivalentes os conceitos de igualdade e de identidade. As ciências biológicas, cada dia mais, apontam e aprofundam, em suas análises teóricas e científicas (código genético), a não identidade das pessoas. Cada um tem as suas propriedades que lhe são singulares. Os conceitos de igualdade e identidade não expressam um mesmo significado. Todos são iguais enquanto espécie humana. Todos são diferentes, enquanto seres distintos desta espécie. A todos, devem-se assegurar os mesmos direitos e obrigações. Configura-se a visão rousseauniana179 em que cada um à medida que se doa a todos, em verdade, não se doa a ninguém. É a garantia para si mesmo do direito que cada um pode ter em relação aos demais, ganhando tudo aquilo que, eventualmente, possa ter cedido. A autogestão, como gerência de qualquer organização, promove a igualdade de todos os seus membros, bem como a sua completa liberdade. Uma organização que promove a igualdade de seus membros não carece, assim, da existência de um poder de mando centralizado em qualquer dos indivíduos. As suas normas não necessitam estar sob o poder de alguém que seja alheio ao próprio grupo. A própria organização é que define as pessoas que irão exercer as diversas atividades, inclusive, a atividade coordenadora, nada centralizada. O princípio da igualdade promove o da liberdade e vice-versa. Os indivíduos passam a compreender que a sua determinação de vida lhes pertence. Esta característica é algo comum e de compreensão elementar, estando intrínseca a todos os seres racionais. Em grupo, passa-se a estabelecer contratos úteis a todos sem gerar, entre eles, diferenças de poder. Autogestão se constitui como manifestação de gerência técnica e, essencialmente, política. O trabalho realizado pelos humanos passou a ter uma perspectiva diferenciada ao ser nomeado pelos anarquistas como uma atividade expressa pela liberdade, defendendo-se que o mesmo fosse efetivado como uma atividade atraente, tendo por bases o ´livre impulso das paixões`. Para eles, essas paixões podem ser úteis à satisfação humana e efetuadas como atividades comuns. Os homens, sendo iguais, poderiam viver em liberdade, autônomos, com alegria, paz e em um ambiente de total harmonia. São estes os sonhos. Por outro lado, a aceitação do princípio da igualdade das pessoas, pelo pensamento ocidental, segundo Guillerm e Bourdet (1976: 51)), “fez da autogestão uma tarefa política necessária”.
A autonomia Como se vê, a perspectiva autogestionária dos bens econômicos e culturais passa pela sensibilização das classes trabalhadoras e, sobretudo, daqueles que estão em situação de desemprego, evidenciando que é possível o desenvolvimento de atividades, fruto da cooperação entre eles próprios e entre todos. Na Usina Catende, vem se implantando o cultivo de culturas alternativas, como a criação de abelhas e o plantio de um tipo específico de café que se adapta à região. Há, ainda, a criação de peixes, contrastando com a cultura dominante da cana, além do incentivo às ações coletivas no campo da habitação, resultante de decisões próprias. Numa sistemática aversão ao individualismo, promovem-se práticas organizativas que possam, além da cooperação, destacar o exercício da autonomia das pessoas. Uma autonomia relacionada ao outro, no sentido de que não se pode ser autônomo sozinho. Ou mesmo cada um reivindicar a sua autonomia ao ponto de expressar desejos de não fazer nada, tornando-se um inútil social. Uma sensibilização para a autogestão, como capacidade de poder ser gerido por si mesmo, na relação com 179
Ver Rousseau, J. J. Do contrato social. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
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os demais, de se organizar livremente, fecundando empreendimentos democráticos. Estas são formas profundamente distintas de organização capitalista do trabalho e dos trabalhadores. A autogestão se torna melhor compreendida quando se analisa o princípio da autonomia a partir do ponto de vista etimológico. É uma composição de duas outras palavras: autós, que pode significar por si mesmo, algo que se basta (uma expressão que pode ser reivindicada por todos os humanos, em diferenciadas condições em que se externem) e nomia. Esta é uma palavra polissêmica, podendo significar lei, regra, modelo a seguir, bem como uma região delimitada (distrito, comarca, território, ou mesmo originalmente como um campo de pastagem). O primeiro significado apresentase como uma idealização do conceito. O segundo, por sua vez, sugere menos um modelo autosuficiente e mais um lugar relativo, onde se procura pôr aquilo que se manifestar em condição superior de qualidade. Expressa um movimento de busca, por si mesmo. Autonomia produz, assim, uma dialetização entre lei, região e o por si mesmo. Por si mesmo, significa ter condição de elaborar a lei e de se tornar uma regra ou um modelo a ser seguido; com a região, como um espaço de busca de algo melhor. O local onde se vive e se desenvolvem as relações humanas tem se apresentado como determinado para o exercício autogestionário. Nesse movimento, traz uma marca muito `cara´, que é o de proceder por si mesmo. É um movimento entre lei, região e o por si mesmo, o qual, sendo capaz de relacionar essas dimensões, não as torna a mesma coisa; pelo contrário, diferencia-as entre si. Dessa forma, a autonomia pode ser entendida e vivenciada como a condição de se governar por si mesmo e de forma independente. A pensar com Kant, pode assemelharse a autodeterminação, independência e liberdade – expressa também pela capacidade do agir por si mesmo. Questiona-se a possibilidade de sua realização em sentido absoluto, total. Nesses processos de organização, onde se tenta a autogestão, vários têm sido os condicionantes para a autonomia, sejam eles sociais, políticos, econômicos, biológicos ou psicológicos que a limitam. Mas está no próprio ser humano essa possibilidade de realização da liberdade, considerando que humano e liberdade são um mesmo constituinte. Cooperação, autonomia e liberdade são exercícios profundamente entrelaçados. Também entre os trabalhadores, a questão da cooperação se torna fundamental. Perguntados sobre as suas diferenciadas formas de expressão no ambiente de trabalho (usina), responderam que ela ocorre quando um precisa e o outro ajuda (45,75%), quando há colaboração entre todos os setores da usina (41,25%) ou mesmo nas conversas para a resolução de problemas (9,05%). É praticamente unânime a importância e a necessidade da cooperação entre os trabalhadores. As suas reclamações vêm mais na direção da reduzida cooperação de seus pares, em seus ambientes de trabalho e nas questões gerais da empresa. Cooperar para ser assegurada a liberdade do outro é a forma mais consistente de garantia, para si mesmo, desse desejo de liberdade. A autonomia vai se tornando, assim, um constituinte para a cooperação na luta pela liberdade.
Condições para a autogestão A partir das formulações conceituais e de vários experimentos em andamento por todo o país que conformam a autogestão, é possível apresentar elementos dessa síntese que apontem para a existência de condições de sua realização. A auto-análise, como a capacidade do grupo de provocar estudos e discussão sobre aquilo que se está edificando socialmente, é uma das condições necessárias. Por esta visão analítica, essas perspectivas se manifestam mais facilmente quando as circunstâncias são favoráveis. Podem ser encontrados aspectos que mostrem as possibilidades de incentivos aos procedimentos que ocorrem na vida cotidiana do grupo. Isto faz ver as metodologias de condução do trabalho, ou seja, estão caminhando para um maior aprofundamento na direção de práticas de autogestão. Há profundas diferenças de percepção quanto à participação em empreendimentos solidários. Elas são resultantes das várias dimensões existentes no processo participativo. Quando se questionou se os trabalhadores administram a Usina Catende, várias foram as respostas:
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“Eu quero dizer que, na verdade, os trabalhadores ainda não administram completamente a usina, considerando que se vive um processo judicial. Mas, há uma preparação para que essa coisa no futuro aconteça, muito embora, todas as decisões e o processo que temos conduzido nesses sete anos de falência, têm sido construídas a partir do trabalhador. Então, na verdade, o trabalhador tem uma participação muito grande” (Marivaldo, Presidente da Companhia Agrícola Catende/Harmonia)180. A dimensão dessa participação se diferencia quando a mesma questão é apresentada a outros trabalhadores. Observe-se a visão externada pelo dirigente sindical, operário nessa indústria: “Não. Nem os operários administram Catende, nem os trabalhadores do campo administram Catende. Quem administra Catende é o Dr. Bruno Ribeiro, o Dr. Mário Borba e o Dr. Adalberto, que é o juiz da massa falida. Esses três é que administram Catende. Alguns companheiros também dão algum tipo de assessoria, acompanhando na questão administrativa. Eu acredito que futuramente, vamos administrar Catende, mas isso é um processo de longo prazo” (Francisco Leandro, Vice-presidente do Sindicato)181. Outra visão é dada pelos trabalhadores do campo que exercem algum tipo de liderança no ambiente de seu trabalho. A mesma questão adquire outra perspectiva: “Sim, com toda certeza. Administra porque eu sou trabalhador e eu me sinto no direito e no dever. Ninguém nunca me negou isso, por mais que tenha sido um pouco grosso. Eu chego na usina, entro na sala da Harmonia, digo o que eu quero dizer dentro do que eu vejo que está certo. Falo, discuto com o Dr. Mário, com o Dr. João, com o Marivaldo, com Natanael, com Amaro Jovino e com os companheiros que ali trabalham. Eu sinto que os trabalhadores são donos de Catende e administram a Catende. Há, inclusive, um conselho em que os presidentes dos 5 sindicatos rurais da região e do sindicato dos operários fazem parte” (Elenildo Ferreira, Presidente da Associação do Engenho Riachão)182. Algumas perspectivas externadas se mantêm muito próximas das respostas positivas e outras se afastam dessa posição, questionando a participação dos trabalhadores. As diferenciações parecem estar bastante relacionadas com o nível de informações que cada um está recebendo. Um dirigente de associação está mais próximo da direção central do empreendimento e, conseqüentemente, recebe um maior volume de informes nas conversas de que participa, mesmo em caráter informal. As demais visões externam essa diferença quando apresentam uma maior cobrança para a participação, reivindicada pelos dirigentes sindicais. Há também o reconhecimento de que esta tem sido limitada, segundo afirma o próprio presidente do empreendimento Catende/Harmonia. Outro aspecto é que existe diferenciação na visão e na participação interna dos empreendimentos com perspectivas solidárias, decorrentes das próprias informações que são repassadas. Há, em geral, várias dessas informações que não são colocadas à disposição do conjunto. Outras, sequer, chegam a todos, refletindo na perspectiva de atuação de cada trabalhador, revelando uma diferenciação de sua influência sobre as questões de seu trabalho. Podem ser destacadas as estruturas de como os trabalhadores são escolhidos para realizarem suas tarefas de representação em empreendimentos com expressiva quantidade de trabalhadores envolvidos. Esses mecanismos interferem na participação nesses ambientes voltados a uma economia que possa tornar-se, efetivamente, solidária, provocando diferenciações em suas práticas. É importante salientar que esses aspectos nem sempre caminham juntos. Surgem ou desaparecem, diferenciadamente. Às vezes, avança-se em determinados espaços e em outros há retrocessos ou inexiste qualquer tipo de investimento naquela direção. Contudo, é importante que sejam considerados todos ao mesmo tempo, para efeito de melhor análise do empreendimento. A participação dos trabalhadores adquire 180
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Entrevista para esta pesquisa. Vice-Presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Indústria de Açúcar e do Álcool de Pernambuco. 181
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distintas dinâmicas em cada empreendimento. Uma situação em determinado local não serve para ser transplantada para outro. Sabe-se que a realidade é um ponto de partida para qualquer nova experiência. Essas realidades não são repicáveis e, conseqüentemente, exigem para cada tipo ações que sejam específicas. Sobre as dificuldades presentes no empreendimento Catende/Harmonia, convém transcrever o seguinte depoimento: “Vejo que a intenção da indústria é muito boa. O trabalho em equipe é muito bom. Só que, do lado do trabalhador rural, há uma resistência muito grande pela questão da cultura, do paternalismo e da submissão. Há uma resistência muito grande pelo lado do trabalhador em aceitar toda essa situação nova. ... Às vezes isso tem trazido conflitos entre Sindicato, trabalhador e Associação. Acho que isso é natural, pois o trabalho da monocultura da cana e da exploração é secular e é difícil mudar a concepção das pessoas” (Edjane Lima, Professora e integrante da equipe de educação da Catende/Harmonia)183. Ou mesmo quando a preocupação sobre o processo na Catende/Harmonia volta-se estritamente à questão da participação, conforme este registro: “A minha preocupação é fazer com que esse projeto seja um projeto de todos e não um projeto de poucos. Os trabalhadores e trabalhadoras precisam estar discutindo, pensando e encaminhando a concretização desse projeto, porque entendo que o pessoal está muito à margem disso. Também acho que o trabalho informativo, educativo, de conscientização é que vai favorecer a participação dessas pessoas” (Izabel Cristina, Assessora de Educação)184.
Casa de Usineiro. Hoje, Centro de Educação Popular (Catende-PE)
A mesma preocupação continua, porém, em um outro ângulo de visão e no estilo reivindicatório: “Vejo, como maior dificuldade, o fato de que os trabalhadores não entendem aonde é que esse projeto quer chegar. E a dificuldade maior chama-se falta de informações. Esses são carentes de informações e querem participar. Na realidade, eles participam só na produção, e as pessoas que administram tem esse cuidado. As pessoas que estão à frente aceitam apenas aquelas
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pessoas que sirvam para colaborar e não ´atrapalhar` com questionamento” (Edvaldo Ramos, Diretor de Base do Sindicato dos Operários da Catende/Harmonia)185. Risadalvo José (Assessor da Catende/Harmonia)186, além dos problemas econômicos, sobre as dificuldades nos processos de participação que estão sendo encaminhados, cita os seguintes: “Há problemas de se planejar estrategicamente a ação dos bons quadros e atores existentes em torno do projeto Catende/Harmonia. Todos aqueles dirigentes são importantíssimos mas é possível aproveitar, ainda mais, o potencial deles num todo. As pessoas também têm muito potencial e é necessário ajudá-los nisso. Não se pode sobrepor recursos, pessoas ou ações. Você tem várias pessoas e o projeto precisa avançar no conjunto. Catende tem 48 engenhos e precisa ter ações acontecendo em todos eles. Ações de educação popular, de formação de dirigentes de cooperativas, projetos com grupos de engenhos. Trabalho para todo mundo mas que precisa ser muito planejado”. As informações atingem os trabalhadores diferenciadamente. Perguntados sobre as maneiras de se obter informações, responderam: pedindo para a administração (42,87%); através de assembléias e reuniões (40,71%); por meio de documentos e relatórios (21%); em conversas informais com outros trabalhadores (14,43%); pelo mural da empresa (10,29%). São meios ainda insuficientes para que as informações cheguem a todos e em todos os ambientes na área total da usina. Sobre as dificuldades inerentes ao movimento organizativo, naquela experiência, os trabalhadores afirmaram que existem problemas e desentendimentos na empresa, sobretudo no que se refere à diferença de opiniões (24,03% dos entrevistados), dificuldade de reconhecimento de erros cometidos (14,54%) e falta de empenho e compromisso com o trabalho (29,50%), sendo estes elementos os mais expressivos. Como se vê, a dinâmica participativa vai ocorrendo distintamente e está vinculada a questões de organização estrutural da própria empresa, neste caso, como as questões ambientais, de tecnologia utilizada, mercado para o produto. Todavia, aparecem aspectos de ordem pessoal, voltados ao conhecimento acumulado das pessoas, de suas relações com os demais, do trato com suas emoções e, essencialmente, da cultura instalada no ambiente. Para Störch (1987: 151), “as estratégias educacionais assumem que a melhor forma de mudar sistemas sociais é através de mudanças nas pessoas. Essas estratégias incluem o treinamento em relações humanas para supervisores, programas de comunicação, laboratórios de sensibilidade, planejamento de carreira, etc”. Neste sentido, repete-se que, mesmo veiculando a autonomia, o indivíduo isoladamente não pode reivindicar-se, ele próprio, como uma experiência autogestionária. A autogestão é um movimento que tem o coletivo como um dos seus constituintes. Mas esse coletivo não expressa, simplesmente, um ajuntamento de pessoas agrupadas pela formalidade. Não tem condições de gerenciamento de um empreendimento. Esse coletivo significa a existência de um grupo unido para além das formalidades, apresentando um certo nível de condições que possa tornar-se a sua própria referência em termos de atitudes. Um coletivo que aprova, diverge e negocia consigo mesmo, sem provocar a sua dissolução. A autogestão representa maneiras de avanços para a autonomia e liberdade, porém sob a estrita orientação dos trabalhadores. É um estilo de produção que exige a participação e, sobretudo, o controle por parte dos trabalhadores em todo o processo produtivo. Para exercer esse controle sobre a produção, é imprescindível o conhecimento de todo o curso gerador do produto do empreendimento. Com esse conhecimento, reclama-se o controle dos mecanismos de gestão, em seus mais diversos aspectos de realização, inclusive aqueles da burocracia das contas e de mercado, exigidos para o comércio do produto de qualquer produção. O controle se torna mais efetivo, à medida que há uma aceitação simbólica do mesmo por parte dos componentes do grupo. As lideranças, inclusive, constroem-se entre os participantes que detêm pleno reconhecimento dos seus liderados. É uma legitimidade que se obtém por meio de mecanismos, os mais profundos, da discussão, do confronto de
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proposituras, além da contestação mesma. Essas atitudes formam a substância simbólica de sustentação do próprio grupo. Além disso, este desenvolvimento educativo em que os grupos se educam consigo mesmos em decorrência de sua práxis de mudanças, acompanhada de assessorias, provoca o conflito como outra condição autogestionária. O conflito como componente social que cultiva a prática do respeito às diferenças dos indivíduos como atitude de vida. Pelo conflito, contraditoriamente, se caminha ao encontro do consenso maior possível, para as deliberações políticas de produção. A existência do conflito traduz a constituição de espaços para a divergência. Por meio deste ambiente, mostram-se meios que podem estar assegurando o hábito da promoção da liberdade das idéias, da autonomia para o pensamento e da aceitação de que é preciso igualdade para todos. “O conflito é a demonstração de que há possibilidade do debate público das questões que permanentemente acometem o empreendimento. O conflito demonstra ainda que há política ativa no grupo” (Sato e Esteves, 2002: 42). Uma prática, para ser considerada autogestionária, carece de que as suas relações de trabalho entre os membros não estejam condicionadas a qualquer outro tipo de vínculo de posse dos bens da produção que não o estabelecido por todos. O exercício da autogestão não pode combinar relações de exploração do trabalho humano ou incentivar a exploração do grupo em relação a trabalhadores pertencentes ou não ao próprio grupo de produção. A ocupação para a geração de renda não comporta quaisquer outras diferenciadas expressões de relações de trabalho que provoquem ainda mais a sua divisão ou estabeleçam práticas alienantes na efetivação desse trabalho. Outra condição é a existência entre os trabalhadores da ética do diálogo. Por meio desta, assegura-se a todos a tolerância entre as pessoas. A todas deve ser garantida a efetivação da igualdade, da autonomia e da liberdade, para assumirem a produção coletiva, ou semicoletiva, contando que sejam grupos para uma economia solidária. Uma economia que se define por uma natureza própria. “Entendemos que a natureza da economia popular atual está definida por seus componentes constitutivos básicos: a) o trabalho se constitui como seu centro; b) os setores sociais populares são o seu agente e sujeito, simultaneamente”187. Assim, pode-se incluir na autogestão uma variedade expressiva de experimentos fomentadores do diálogo, como as unidades de economia familiar, cooperativas de produção ou comercialização, empresas ou grupos orientados pela economia solidária. A autogestão conduz para que a produção, particularmente em setores terciários da economia ainda regulada por critérios da eficiência, eficácia e rentabilidade, prisioneira da lógica da economia de mercado, possa assimilar outros significados ou ser criterizada com parâmetros de serviços públicos, adquirindo uma dimensão estritamente social. Finalmente, entre as linhas gerais para o desenvolvimento de cooperativas e outras experiências autogestionárias, a educação é uma das condições que permeia todas as demais. É definidora do conhecimento de novas formas de se poder viver que não apenas as estabelecidas nos marcos das relações capitalistas, acompanhada de um rigoroso processo de capacitação nas dimensões gerais de uma educação popular.
Limites e sonhos Há no mercado, todavia, uma gama de diferenciados produtos. Cada um exprime um tipo próprio com suas especificidades. Assim, as vivências de um processo produtivo estabelecidas pela realidade cultural do ambiente são distintas e únicas. Um mesmo produto, em que sejam mantidas as mesmas técnicas em duas ou mais realidades, é diferenciado em seus aspectos culturais, além de condicionado pelo espaço geográfico e pelas relações sociais naquele ambiente e tempo determinados. Esses condicionantes manifestam o início de desafios no sentido do gerenciamento pela autogestão. As práticas de vida acontecem em um determinado local, com suas metodologias próprias, dentro de um marco cultural e tempo que lhes são próprios. São aprendizagens que se desenvolvem marcadas por princípios teóricos que podem ser comuns a outras experiências. Contudo, ela mesma serve tãosomente àquele conjunto e tempo delimitados. 187
Taller Permanente de Economia Popular y Solidária Asociada ao Desarollo, 2002: 3.
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Do ponto de vista teórico, todavia, uma orientação é possível de ser seguida como referência geral. Qualquer tipo de ação sobre um meio precisa pautar-se pela realidade desse meio. O ponto de partida e de chegada para qualquer análise social reclama como origem o concreto da experiência. Ponto de chegada na medida em que aquele tipo de análise se dirige para uma tomada de ação política que, necessariamente, será sobre a realidade em movimento. Os conceitos são úteis como guias do processo, mas não podem estar definidos fora da realidade. Estes se prestam como pontos de continuidade ou de chegada e não como pontos de partida, para não se cair nas armadilhas do idealismo ou do sonho impossível. É certo que se chega aos ambientes com visões teóricas ou abstrações demarcadas. São aquelas que cada um traz consigo mesmo. Contudo, é a realidade que tem a anterioridade nesse tipo de análise teórica. A realidade é desafiadora das metodologias ou procedimentos para a sua abordagem por meio da pesquisa de suas potencialidades, para o exercício de uma economia solidária e popular. Heráclito188 já alertara que a “realidade ama se esconder”. É desafiadora a opção por um projeto coletivo num oceano de individualidades, aberto para sofrer correções de rumo necessário para as mudanças, contemplando ações para além dos desafios do local. A Anteag (1998) desenvolve o conceito de estabilidade como central em uma empresa de economia solidária. Estável como expressão de equilíbrio que tende a permanecer no tempo. Distante está da compreensão de que em equilíbrio a empresa esteja parada ou estática. Estabilidade que se origina no equilíbrio, sendo resultante de uma combinação de forças e mantendo-se em constante movimento. Os vários pontos de equilíbrio instituídos em uma empresa solidária devem estar no pagamento de retiradas, no pagamento dos demais encargos e no investimento, assegurando uma estabilidade dinâmica do empreendimento. No exercício da participação e promoção da democracia, além do estímulo às iniciativas espontâneas das massas, é imprescindível a garantia à sua voz e sua palavra. Os obstáculos são inúmeros quando é feita essa opção metodológica e política. Na empresa, existe toda uma sistemática de hierarquização operando ao nível do imaginário dos trabalhadores. Há, portanto, fortes expressões da manutenção dessas sistemáticas. Na tentativa de superação dos entraves internos de secções da produção, estimula-se a palavra de todos. Incentiva-se mais racionalidade na melhoria das atividades laborais e com isso o aumento de produtividade, mesmo com certos riscos até de demissão. Os trabalhadores sentem isso, também, sendo as discussões o caminho prudente para as tomadas de decisão. Enfrentar as questões das diferenciadas gratificações financeiras se torna algo bastante embaraçoso aos dirigentes. A hierarquização historicamente estabelecida na fábrica dificulta um avanço no sentido do coletivo. Em uma mudança, alguém passa a perder algo e toda medida nessa direção atrai reações no interior da empresa. Gorz (1996: 104) restabelece também o coletivo como orientação. “Para evitar que a concorrência individual, no nível das sugestões, impeça o desenvolvimento de iniciativas coletivas, não há gratificações individuais. Os prêmios são atribuídos ao conjunto da equipe de trabalho”. Mas há um permanente confronto entre a opção autogestionária de gerenciamento com a forma heterogestionária das empresas, que ainda se mantém no imaginário dos trabalhadores, estabelecida pelo mercado dominante. Mesmo quando se faz necessário o investimento em atualização tecnológica, considerando a concorrência externa, às vezes, se decide por aumentos nos valores das retiradas dos trabalhadores, parametrados em salários da categoria, vinculados a empresas assemelhadas. Há situações de conflito com a própria política de Estado que conduz investimento, às vezes, para criação de novas empresas naquele ramo ocupado por empresas de economia solidária, dificultando empréstimos para a melhoria da qualidade técnica destas. Há, portanto, um conjunto de situações endógenas e exógenas provocadoras de conflito interno com o modelo dominante. É comum que empreendimentos com essas características sejam entravados por questões metodológicas. O exercício democrático exige tempo de assimilação em contraponto ao exercício de gestão tradicional, centrada no gerente geral ou mesmo no dono da empresa. As tomadas de decisão são mais velozes nesta gerência, voltadas ao benefício urgente do lucro. O exercício democrático tem
Pensador grego pré-socrático. Ver: Melo Neto, José Francisco de. Heráclito, um diálogo com o movimento. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 1997. 188
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outra finalidade que não exclusivamente o econômico, tendo dificuldades adicionais nas relações com o mercado. Algo bastante atual diz respeito ao foco do modelo autogestionário, voltado ao local, contrastando com a economia geral que se diz mundializada. Parece, inclusive, se perder a dimensão da solidariedade, da colaboração como referência a vínculos recíprocos entre pessoas. Neste modelo, essas pessoas visam ao trabalho e ao consumo compartilhados, com um sentido de coresponsabilidade, confluindo para o bem-estar de todos, prevalecendo sobre o bem-estar individual (Mance, 1999). Sobressaem-se questões as mais variadas e desafiantes para a realização do projeto social da economia solidária, sendo mais agravantes quando do exercício da autogestão. Estão voltadas às finanças solidárias; ao marco legal para projetos dessa natureza; às redes de produção, comercialização e consumo; às questões de organização social da economia solidária; ao conhecimento e tecnologia presentes em universidades, merecendo a visão de que “as universidades produzem ciência e formam profissionais em geral de modo fragmentado. As políticas públicas também atuam dessa forma. A economia solidária precisa de ciência interdisciplinar e políticas intersetoriais” (Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária/FSM, 2003: 49). Destaca as dificuldades expressas como gargalos e, sobretudo, as potencialidades e acúmulos já existentes. Salienta, inclusive, os aspectos educativos detentores de um conjunto de técnicas e metodologias que contribuem na direção da economia solidária, sendo a educação popular um movimento cheio de potencialidades nessa direção. Sobressai a construção de redes de solidariedade em seus mais diferenciados modos e a efetivação de ações com grupos ou agências em parcerias. É importante a criação de redes nacionais e estaduais dentro da idéia de complexo cooperativo. “É fundamental e indispensável um sistema que possibilite sustentabilidade e autonomia dos empreendimentos, via construção de redes locais com base em estratégias econômicas, produtivas, políticas conjuntas e adequadas a uma estratégia de desenvolvimento local” (Fórum Popular do Rio de Janeiro, 2002). Aglutinar os parceiros não tem sido tarefa fácil, apesar de todos saberem que “agências governamentais, autarquias, ONGs, agentes financeiros, órgãos de assessoria, universidades, sindicatos e, principalmente, as associações e cooperativas envolvidas, têm papel relevante a desempenhar nesse processo” (ADS/CUT/SEBRAE/, 2002: 161). Mesmo que o movimento da autogestão venha sendo bastante disseminado em todo o mundo, a sua caracterização não tem sido tarefa fácil. Vários impasses ocorrem, até em conseqüência das mudanças de rumo político das expectativas ou seu definhamento com o encerramento de suas atividades. São problemas conflitivos de sistemas diferenciados de postura de vida, no campo teórico do econômico, da ética, da moral, enfim, da cultura das relações gerais humanas entre os próprios humanos e a natureza. À medida que esse movimento de autogestão vem crescendo, questionam-se os seus limites como um entrave ao sistema capitalista. Para alguns, este modelo não passa de expressão aliviada da exploração capitalista, contribuindo mesmo para a manutenção do sistema vigente. Do ponto de vista político mais geral, abrem-se os debates sobre se a autogestão é para um país socializante, centrado no Estado, ou se busca um caminho que sirva para a construção de um socialismo libertário, efetivamente promotor da democracia, da liberdade, da igualdade e da autonomia. Em que o trabalho transcenda o sentido do castigo ou do sacrifício, superando a dimensão do dever ou da obrigação. Ser livre e feliz passa a ser, nesta visão, a essência da vida de cada um, na luta pela construção de um sistema de vida solidário e possível para toda a sociedade humana. Todos são sabedores de que a busca por novas formas de gerência está surgindo, no caso de empresas, dentro do modelo antigo, arrastando consigo as suas marcas. O paternalismo, o autoritarismo, a aprendizagem autoritária, enfim toda as heranças anteriores não serão substituídas completamente, em curto tempo. No capitalismo, a competição universal está ainda mais exacerbada. Nos ambientes de economia solidária com práticas de autogestão, como nas empresas, cooperativas e outras formas de expressão, os trabalhadores ainda podem lutar pela superação dessa “guerra de todos contra todos”. É nesse ambiente que se torna possível uma educação para a produção que conteste a apropriação da mais-valia, a atual divisão do trabalho promotora da alienação e que proporcione a apropriação de um poder como indivíduo e, de forma determinada, de um poder de classe. É nesses ambientes onde acontece o exercício de um poder de classe autônomo. É, contudo, um poder muito concreto, podendo o trabalhador habilitar-se para a sua capacidade de decisão e a sua força de iniciativa para o trabalho.
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Assim, estará se apoderando de instrumentos, de conhecimentos e de poder político, capazes de tecer, por meio de uma grande rede, a sua força de superação do sistema estabelecido. É importante serem denunciadas, permanentemente, as formas dominantes da economia cujo modelo dá primazia ao deus mercado. Essa luta constrói os novos sonhos de superação da desigualdade presente de variadas formas na vida cotidiana das pessoas. Aposta-se na existência de outras possibilidades de se viver. As várias experimentações em todo o mundo vêm apontando nessa direção com ações coletivas voltadas a um outro paradigma social que assegure condições de vida para todos, garantindo para os que ainda virão um desenvolvimento humano e sustentável. Dessa forma, “mais que dar uma resposta à crise do emprego no capitalismo, as práticas de economia solidária resgatam estratégias comunitárias e da cultura popular (grifo nosso) que podem recriar relacionamentos sociais mais sustentáveis em todas as dimensões do convívio humano” (Schwengber, 2002: 142). Ou, ainda, como constata Geiger (2001), as respostas emergenciais que têm sido tomadas, também, são formas de inclusão social que promovem a reconstituição da vida individual e coletiva, a cidadania popular, gerando alternativas de vida econômica e social. Esses esforços poderão construir uma análise sólida sobre a crise da produção mercantil, possibilitando a construção de outro programa de crítica social radical. A realização dessa crítica estará assegurada na medida em que todo esse movimento organizativo passe a ser visto como, essencialmente, educativo. Em todos os momentos de análises e encontros no campo da economia solidária, a educação vem adquirindo maior dimensão. Nas várias experiências em andamento, deve-se analisar como as Cooperativas de Leite no Rio Grande do Sul buscam uma educação para contribuir “na formação de políticas de formação, assistência técnica, crédito e mudanças nos sistemas de produção, para evitar a exclusão, possibilitando condições de viabilidade” (Contag/Cut, 2000: 21). É preciso também analisar qual é a educação adotada pela Escola Nordeste da CUT (Contag/Cut, 2000a) e demais escolas da central que possa colaborar para o desenvolvimento sustentável, a partir de uma proposta inovadora capaz de combinar plantação da cana, diversificação agrícola, animal e industrial, além do reflorestamento e preservação das matas, consolidando uma empresa economicamente auto-sustentável e lucrativa. Nessa direção, os projetos em andamento na Usina Catende vêm apresentando um vetor educativo: a educação popular. Nesse contexto, instala-se a questão: que educação popular pode se prestar para a contribuição do exercício da democracia, em todos os níveis de vida nas experiências pautadas pelos princípios estabelecidos, no seio de uma economia solidária promotora da autogestão?
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EDUCAÇÃO POPULAR Educação Educação tem sido, para muitos, uma palavra com significado meramente simbólico. Resiste, contudo, a qualquer tentativa de compreensão que a transforme em fórmula abstrata ou mesmo vazia. Sua etimologia remete ao grego paidagogein ou ao latim educare, como algo intrínseco às relações humanas e sociais ou, mais precisamente, como um fenômeno de apropriação da cultura. É tema de uma ampla interpretação, assim como cultura. Esta é entendida como expressão da criação humana, fruto das complexas operações que o animal humano vem apresentando, historicamente, no trato com a natureza material e suas lutas para a sobrevivência. Nessas operações, o humano descobriu a sua capacidade de aprender, estabelecendo nesse momento o fato pedagógico, isto é, a condição de aprendizagem que traz consigo e que continua em desenvolvimento, com maior velocidade que qualquer outra espécie animal. A educação realiza-se de forma espontânea, em qualquer lugar. Acontece de forma reflexiva ou sistemática quando se definem técnicas apropriadas na busca de se obter melhor rendimento educativo (a teoria pedagógica). Entretanto, a operacionalidade (preceitos e leis) e as opções de técnicas ou metodologias desse processo educativo sistematizado são demarcadas por uma política de educação. É neste sentido que cabe questionar quanto ao direcionamento desejado para os processos educativos: Aonde se deseja chegar com essa teoria pedagógica, gerada dos fatos pedagógicos e permeada de uma política de educação, voltada às maiorias sociais? Qual é a educação que interessa às classes trabalhadoras, em exercício de autogestão? Ora, o significado de educação também não pode prestar-se para absorver qualquer experiência como se fosse educativa e, muito menos, do interesse dos oprimidos. Há, inclusive, um tipo de experiência que se diz popular, mas que busca, através de outras técnicas, promover a inculcação do silêncio nas mentes das classes despossuídas da sociedade, roubando-lhes a sua inerente capacidade de indignação. A condição de aprender - o fato pedagógico - terá maior adequação ao expressar a relação do humano com o mundo, baseada nas dimensões do trabalho. Este é o ponto de partida que parece necessário para uma educação que se paute pelos interesses das maiorias, considerando que o trabalho é a fonte de sua existência. O significado da anterioridade do mundo em processos educativos fundamenta-se no aspecto de que o conhecimento, a partir das coisas concretas, pode incitar as forças humanas à promoção de mudanças. Uma teoria pedagógica será convidativa ao expressar a arte pedagógica de determinar as técnicas mais apropriadas para um melhor aproveitamento educativo. Essas técnicas ajudarão a pensar, agir e descrever o mundo, com base nas relações humanas e o próprio mundo, como expressão dialética de um movimento de análises e novas sínteses que externarão, possivelmente, através da história e da crítica, os anseios gerais ou locais das transformações necessárias. É uma relação de síntese do sujeito com o mundo; uma leitura assentada na história e instigada pelo exercício da crítica ao outro e a si mesmo. Políticas de educação, por outro lado, traduzidas em leis ou preceitos, reclamam as muitas possibilidades de organização dos trabalhadores e a promoção da cidadania (crítica e ativa), dando ênfase aos processos de participação em toda a dimensão da vida. É o desvelamento dos espaços sociais, como a casa, a escola, a comunidade e a cidade, tornando-os efervescentes ambientes de solidariedade. As ações em políticas de educação podem conduzir para um novo agir político, indo além da razão instrumental apegada aos fazeres do dia-a-dia, simplesmente. Vão ao encontro de outra razão que promova a comunicação através do diálogo, definida em contraponto aos modelos autoritários e opressores da tradição secular, acompanhada de princípios éticos valorizadores do humano e não das coisas, educando para uma nova estética política e, assim, estabelecendo outros patamares de
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civilização. Patamares educativos, lembrando Paulo Freire, que espantem o medo da liberdade e da felicidade.
Educação para a autogestão Em processos educativos capazes de conduzir à autogestão, esses princípios tornam-se uma necessidade, considerando o longo caminho a ser percorrido pelos trabalhadores, no sentido da aprendizagem de outras formas de gerenciamento de seu trabalho e de seus empreendimentos. A educação se constitui como componente necessário nessa busca de superação dos padrões estabelecidos pelo capitalismo. Ao assumir uma orientação para a autogestão, passa a cobrar conteúdos e metodologias adequados ao incentivo de suas características. Uma educação voltada aos desejos e interesses dessa maioria da população; uma educação voltada ao popular. Em várias experiências em andamento, a educação popular tem se apresentado como em condições de promover uma adequada aprendizagem. Contudo, não há uma homogeneidade em se falar sobre educação popular. Beisiegel (1992), ao discutir as políticas da educação popular no país, aponta suas diferenciadas possibilidades, destacando a experiência de Paulo Freire e a educação popular veiculada pelo Estado. Mesmo esta pode se prestar para a contribuição à qualidade de vida das pessoas, podendo também ser exercida por meio de um discurso em economia solidária. Normalmente, está dirigida para o atendimento dos interesses do Estado. Busca-se, entretanto, uma educação que se preste a realizar a autogestão. Iniciada a partir da realidade que se vive e, sobretudo, marcada pela dimensão teórica do trabalho, a experiência pela busca da autogestão na Usina Catende189, decorrente de sua dimensão190, tem propiciado questões que desafiam as práticas educativas implementadas. Tais práticas, talvez, sejam incitadoras às demais tentativas de educação em experimentos de economia solidária e de autogestão, vivenciadas no país. Este movimento na usina prescreve uma rigorosa organização das atividades de educação que precisam trazer consigo o processo produtivo da empresa como ponto de origem. Vários são os projetos educativos e entidades que estão atuando na sede da usina e nas áreas de engenhos, promovendo permanentes ciclos de debates e sucessivos seminários. São desafiadores tanto o número trabalhadores envolvidos como um conteúdo voltado aos princípios191 abrigados no projeto Catende/Harmonia.
O projeto Catende surgiu no interior das lutas trabalhistas do início da década de 90. Inicialmente, concentrou suas atenções nos direitos às indenizações dos tempos de trabalho de 2.300 trabalhadores rurais, demitidos em 1993. Essas lutas, coordenadas pelos sindicatos de trabalhadores rurais e pela FETAPE, passaram por reivindicações de direito ao emprego (1994), reforma agrária (1995/6), manutenção do patrimônio como reserva de valor para pagamento dos direitos trabalhistas (1996) e construção da Empresa dos Trabalhadores, a Companhia Agrícola Harmonia (1998) (Projeto Catende, 2002). 189
A Usina Catende emprega, aproximadamente, 2.500 trabalhadores (rurais e operários) vinculados diretamente às suas atividades, com um total de 48 engenhos, povoados onde reside boa parte deles. Em época de moagem, o momento da colheita da cana, aproximadamente 70 mil pessoas ficam envolvidas com a usina, de forma direta ou indireta, uma grande parte da população de cinco municípios na região da Mata Sul de Pernambuco. 191 Princípios básicos do Projeto da Empresa dos Trabalhadores (Cia. Harmonia): exploração em escala empresarial, combinada com o regime de agricultura familiar; fortalecimento do processo de organização dos trabalhadores, integrando a Catende/Harmonia com as lideranças acumuladas em seis sindicatos de trabalhadores e em cerca de vinte associações de moradores dos engenhos da usina; conselho de administração eleito dentre os trabalhadores acionistas, mas a gestão em caráter executivo, com transparência assegurada pelos mecanismos de representatividade previstos no estatuto; capacitação e garantia da melhoria da produtividade no trabalho; diversificação agrícola e industrial; propósito de que “nenhum trabalhador/acionista permaneça analfabeto ou volte a passar fome”; trabalho em regime de autonomia (autonomia de custos de produção), com a empresa assumindo o recolhimento do INSS de todos os acionistas. O encerramento da falência, a consolidação do processo produtivo e a articulação da diversificação da agricultura de escala e familiar, com o aumento da variedade de produtos industrializados constituem seu quadro de metas. 190
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É sabido que o processo de falência192 em usinas de açúcar na região nordestina tem sido um malogro estrutural, pois vem acompanhado de um total destroçamento dos parques industrial e rural existentes, por parte de seus antigos proprietários. A dependência da usina do canavial de terceiros chegou a 80%, desaparecendo praticamente a produção própria, importante para a sua manutenção, bem como dos contratos de venda de açúcar existentes. Há uma destruição quase total dos recursos da produção. A educação insere-se nessas situações como componente na ajuda à reconstrução do plantio da cana, à atuação junto a credores para evitar o fechamento da unidade fabril, ao incentivo para outras relações sociais, preparando novo cenário para a efetivação do projeto dos trabalhadores193. Precisa desenvolver-se uma educação que faça ver aos trabalhadores que eles não estão sozinhos e se constituem como uma classe, onde o valor da solidariedade é uma marca. Contudo, mesmo que o apoio ao projeto Catende/Harmonia seja marcante194, abre a desafiante tarefa de manter em suas mãos a coordenação geral desses apoios, direcionando-os às metas do projeto. Estando a usina inserida na própria cidade de Catende, os problemas da cidade são também os seus problemas e vice-versa. Um projeto educativo, nesse ambiente, não pode deixar de considerar a realidade da cidade. O que conta mesmo para um efetivo e abrangente projeto no campo da educação são as relações intrínsecas entre a cidade e a indústria. Estão presentes questões da educação básica no município que atingem diretamente os filhos dos trabalhadores. Dessa forma, abre-se uma perspectiva de como promover a atuação da usina nesse campo específico, envolvendo a Prefeitura e o Estado que estão firmemente burocratizados em seu sistema educacional, dificultando uma abertura aos problemas maiores da região. A presença de projetos encetados por entidades não-governamentais reabre novas atividades também no campo da saúde, apresentando um espaço de ampla atuação educativa devida à interrelação da saúde com os demais problemas locais. Todavia, a definição dos conteúdos de capacitação, nessa área, precisa ser guiada pela realidade - a origem das políticas de educação, suas metodologias e conteúdo para todo projeto autogestionário. Nesse sentido, é que a discussão195 sobre cooperativismo e gestão empresarial com destaque para a autogestão envolve temáticas presentes em todos os encontros promovidos em engenhos ou mesmo no ambiente da fábrica e inseridos nos conteúdos educacionais. O avanço de um empreendimento falido para uma economia solidária é um momento de transição da tradição de empresariamento capitalista para uma outra forma de gestão da economia. É a tentativa de implementação de outra cultura, quebrando a hierarquização exacerbada nesse processo produtivo e a compreensão estabelecida de que a exploração é algo natural e assim deve ser. Há a criação de novos direitos, orientada por práticas participativas. Investe-se na superação de uma racionalidade prisioneira da técnica, adquirindo dimensões emancipatórias, sem promover a separação do mundo das necessidades e do mundo da liberdade. Seja em cooperativas ou em outros modos de promover a administração da economia solidária, enfrentam-se problemas ligados à falta de compromisso político da maioria das pessoas, ao desgaste de assessores, aos desvios do projeto original gerado em incubadoras ou dos princípios de cooperativas e da autogestão, à ausência de lideranças, ao trabalho assistencial, à falta de visão
Em 1995, o quadro dos credores trabalhistas dos usineiros falidos atingiu um total de 1.986 processos, sendo 4.937 o número de reclamantes. 192
Passados três anos da falência (1998), já se faz uma moagem com 51% de cana própria, aproximando-se do nível de auto-sustentação econômica. 194 Entidades que acompanham e apoiam a luta na Usina Catende e que procuram soluções novas no cenário envelhecido da Zona da Mata: CONTAG, FETAPE, CUT, CPT, FASE, CEAS RURAL, CENTRU, STR`s da região de Catende e de toda a zona canavieira; associações de trabalhadores; fornecedores de cana da região; expressiva maioria da sociedade da cidade de Catende e algumas prefeituras, além da presença de grupos de profissionais da Universidade Federal de Alagoas e da Universidade Federal Rural de Pernambuco. 193
Problemas sempre presentes em atividades de incubadoras tecnológicas de cooperativas populares (ITCPs) e marcantes também no desenrolar das ações de um projeto em economia solidária: a definição da atividade econômica, viabilidade econômica, articulação de redes, o mercado, a inovação tecnológica, as questões jurídicas, tributárias e contábeis e os aspectos educativos e de relações humanas. 195
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empreendedora, à falta de criatividade para novos produtos e, sobretudo, de forma determinante, à sustentabilidade financeira do empreendimento196. As dificuldades para a organização no local de trabalho aparecem juntas. Estão presentes nas mais simples agremiações (Associações de Moradores de Engenho) até nos mais complexos sistemas associativos. No caso dessas associações, são desenvolvidos muitos esforços para que se firmem como entidades estimuladoras do desenvolvimento das pessoas e de sua defesa econômica, social e cultural. Carece de tempo para se tornarem instrumentos dos próprios trabalhadores, propiciando a organização dos pequenos produtores, prestando serviços sem fins lucrativos ou assumindo-se como ferramentas educativas. Nos espaços dessas associações, surgem dificuldades elementares como a listagem de nomes para a composição de chapas para a direção da entidade, a definição de suas metas orientadoras aos associados em processos eleitorais, a manutenção da burocracia financeira da entidade, além dos encaminhamentos no trato de sua própria representação. Os mecanismos de comunicação são desafiantes para serem absorvidos por aqueles que dirigem os empreendimentos e, também, por grande parte dos trabalhadores associados. Surgem obstáculos na lida com a comunicação, comprometendo questões originárias desde a elaboração de ofícios ou mesmo panfletos, os contatos com rádios e a articulação com os grupos que apóiam a empresa. A comunicação é quase anulada quando do envio de notícias para jornais. Mais desafiadora ainda é a tarefa da construção dos próprios meios de divulgação. Em contatos com a imprensa, os comunicados precisam ser exatos para informarem as atividades da empresa, alimentando de forma otimista a sua imagem pública. Em carta aos jornais, a direção da Catende/Harmonia informa as ações voltadas “para erradicar a fome e o analfabetismo e estruturar a empresa em bases produtivas, eficientes e competitivas, fortalecendo mecanismos de transparência administrativa, produtividade no trabalho e socialização dos benefícios” (Para o Jornal Cana, 2002). Essa prática pode virar rotina no âmbito da administração geral dos projetos de autogestão. É importante lembrar o exercício das relações com as organizações não-governamentais e mesmo com o Estado ou prefeituras. Um longo aprendizado se desenvolve quando se faz aumentar o relacionamento com instituições várias que assumem esse tipo de luta como sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais e alguns setores de igrejas. Esses contatos geram elementos para melhor elaboração de projetos a serem desenvolvidos conjuntamente197. Podem conduzir também para o aprendizado dos diretores, quando dos contatos com conselhos municipais existentes ou em implantação, frutos da democratização e participação do povo nas questões da cidade, em todo o país. Pela educação, estão sendo reclamados cursos com a maior abrangência possível, pois refletem as questões vindas da complexidade da realidade. Cursos para plantador de cana, plantador de banana, criador de gado, para formação técnica de operários da fábrica, para formação técnica de trabalhadores do campo para além do simples plantio, curso para autogestão no campo e na fábrica, para bordadeiras ou mesmo para prevenção de doenças. Adicionam-se as questões do meio ambiente que estão imbricados, de tal maneira que não é educativa a sua realização de forma separada. Uma educação será cada vez mais interessante quando definidora de processos educativos para toda a região e não apenas à usina, contribuindo com a sistematização de uma política educativa e pedagógica, voltada ao preparo de quadros políticos e técnicos, para auxiliar todo o processo organizativo que estiver em curso, no projeto. A organização curricular de cursos em empreendimentos solidários passa por princípios norteadores da vida das pessoas, seja como indivíduo ou como ações em coletividade. A história da região, os aspectos da produção da cana e de culturas alternativas198 e o gerenciamento pela autogestão199 são elementos também imprescindíveis. A discussão de novos valores de vida das Ver o texto: Unisol Cooperativas – Os sindicatos de trabalhadores e a Unisol, no sítio eletrônico do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – São Paulo. 197 As incubadoras tecnológicas de cooperativas populares ou outros organismos assemelhados podem ter projetos de tecnologias com o governo estadual ou municipal, sendo imprescindível a qualificação de seus projetos. 198 O projeto de Criação de Cabra de Leite, Plantando Milho e Criação de Gado Leiteiro são alguns desses projetos alternativos. 196
A Anteag tem marcado presença no Projeto Catende/Harmonia com os cursos de Autogestão – O caminho dos trabalhadores da Usina Catende (Anteag, 2000). A FASE e o IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) 199
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pessoas exigirá a definição desses princípios de forma coletiva, pois prescinde a definição desse novo homem e dessa nova mulher, para o exercício de seus direitos e deveres, a efetivação da cidadania. É o momento de se poder dar ênfase aos princípios de autogestão também preconizados nos cursos de autogestão (Anteag, 2002) como o direito de votar e ser votado para qualquer cargo, o controle da gestão pela participação direta ou indireta (deliberações de conselhos), as tomadas de decisão coletivas, transparência administrativa, solidariedade, preservação do meio ambiente e valorização das pessoas. Aos educadores cabem os desafios de ter em mãos as informações sobre que tipo de participante está acompanhando o programa educativo e a evidência que as aulas, em geral para jovens e adultos, são para eles e com eles. Pretende-se um tipo de educação que pede o ordenamento permanente de conteúdos e demais entes constituintes do currículo. Educando-se jovens e adultos em conformação com essas exigências de aprendizagem, contemplam-se ações da vida da comunidade com a elaboração de outros mecanismos contributivos para a organização popular, com novas atividades para esses tempos de capitalismo. Um conjunto de conteúdos que colabore para a formação da identidade daqueles indivíduos, externando com clareza que esta é produto da síntese das relações das diferenças existentes entre esses trabalhadores. Identidade que não se constrói fora dessas relações, não sendo tarefa exclusiva do um, dando-se, portanto, em intrínseca relação com o outro. Na Usina Catende, foram postos em evidência os círculos de cultura200, acompanhando a orientação freireana de práticas de alfabetização capaz de habilitar para a leitura da realidade. “Alfabetizar-se é uma aquisição ampla. Não é somente ler e escrever palavras, frases, textos soltos e descontextualizados. Ler a realidade é ler o espaço e a atuação dos homens” (Adozinda, 1996). Exigese um currículo que vai, pouco a pouco, compondo elementos para que aqueles partícipes da educação possam estar também concorrendo para um novo modelo de desenvolvimento rural e social, estando presente a superação da instabilidade familiar, as enfermidades crônicas201, a falta de alimentos e a oscilação permanente da produção e do trabalho, além da pauta do movimento das mulheres de Catende, em conjunto com os Centros de Mulheres das cidades de Palmares e do Cabo. Para além da alfabetização202, nos círculos de cultura, valores éticos são componentes que não não podem faltar, compondo um quadro de aprendizagem que possibilitem o conhecimento das coisas com maior profundidade, vivendo e aplicando princípios, aprendendo a viver com os demais, contribuindo para a formação de suas capacidades, de forma autônoma. Mas há desafios muito expressivos que são trazidos em momentos da entressafra, quando acontece o fim da colheita da cana. São problemas que, de forma constante, voltam, agravando a situação de miséria. Nessa época do ano, devem ser implementados programas de ação educativa que precisam mostrar, em seus conteúdos, a situação daquele momento e como tudo está se repetindo. Retornam também com maior freqüência os movimentos de pressão sobre o governo estadual, no sentido de apresentar soluções, minorando os problemas locais. Nos encontros de educação, enfocamse a importância do papel dos dirigentes, a força dos operários e a importância da organização para todos os trabalhadores, sobretudo aqueles do campo, reforçando suas lutas. Nesse momento, é possível um maior aproveitamento dos meios de comunicação local para a divulgação das atividades da usina, propiciando contatos de seus técnicos com os moradores dos engenhos, em tarefas mais comuns nesse tempo. Nesses contatos, podem aprofundar os seus relacionamentos com os trabalhadores, contribuindo para melhor planejamento das atividades vindouras. Projetos vários se tornam plausíveis também no campo da saúde, em virtude da maior disponibilidade de todos para realização de tarefas. se fazem presentes com projetos de pesquisa, sendo que este instituto desenvolve, atualmente, o projeto Empresa de Autogestão: por uma cultura do trabalho cidadã. 200 “O conteúdo dos círculos de cultura deverá tematizar conhecimentos sistematizados e questões referentes à prática social, fundamentais para o exercício da cidadania, para o enfrentamento de problemas da vida cotidiana e do mundo do trabalho” (do texto mimeografado pela equipe de educação da usina: O que é círculo de cultura?(2000). Ver: Vasconcelos, Eymard Mourão. Educação popular e a terapêutica médica. In: Educação popular – outros caminhos. Org. José Francisco de Melo Neto e Afonso Scocuglia. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 1999a. 201
O Programa Harmonia Meu Futuro (Alfabetização para jovens e adultos) contemplou como temas geradores: a família, a comunidade, a moradia, o trabalho, a saúde, o lazer e a cultura da terra. 202
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A entressafra é o momento de maior apreensão por parte de todas as instituições da região. É um convite para todos que atuam na empresa, inclusive a equipe dirigente, envolverem-se com maior afinco no exercício de solidariedade, com maior possibilidade de definição de estratégias e de execução de plataformas para a economia solidária. Nesse aspecto, todo projeto voltado à autogestão pode se tornar, efetivamente, um projeto cultural amplo. A Usina Catende, além da produção do açúcar e do álcool, poderá se constituir em um projeto industrial de cultura, abrangendo a organização de todos os setores da vida das pessoas. O caminho para a autogestão abre desafios ao planejamento das atividades, na definição dos problemas mais urgentes a serem enfrentados, desde a composição da equipe de educação, sabendo-se que não caberá apenas a essa equipe o trabalho educativo das massas no entorno do projeto. São desafios a formação de novos educadores, sua recomposição e o aumento da equipe. São comuns as dúvidas metodológicas e outras intrínsecas aos membros da própria equipe como partes do conjunto a sua transitoriedade como equipe e a necessária perspectiva de pesquisa e sistematização. Surgem alternativas pedagógicas, políticas ou econômicas, sendo indispensável a análise a respeito de seus encaminhamentos. Deve-se verificar se a sua direção aponta para o fortalecimento de uma empresa popular e do poder da comunidade. Mas não só desafios práticos estão surgindo nas experiências autogestionárias. O trabalho com empresas com caráter essencialmente capitalista e os possíveis direcionamentos para ações de economia solidária são problemas que merecem ser discutidos. O papel que exerce o Estado nessas experiências pode ser redimensionado, considerando a importância do mesmo, sobretudo quando os seus executivos são pessoas voltadas à melhoria da vida das classes trabalhadoras. Nessa relação, muitos dirigentes partidários que estão em governos estaduais ou municipais insistem em contribuir com esses projetos com desejos, simplesmente, de manter a tradição manipuladora da política local. Neste cenário, o incentivo à perspectiva de autonomia num ambiente pouco favorável ao sustento das pessoas fica comprometido, além de pôr em risco a realização de todo o ideário do planejamento sustentável. Em projetos de extensão universitária, em atividades de pesquisa e para outros organismos de apoio aos trabalhadores se coloca a dificuldade de promover a educação no embate entre o simples repasse de um conhecimento estabelecido para um outro conhecimento produzido com os que atuam nesses movimentos. Na pesquisa, somam-se as técnicas de sistematização das experiências, adicionando-se mais obstáculos com a inserção de questões de gênero, de raça e da ética. Aspectos teóricos são desafiadores a essa construção educativa, inserida em contextos de economia solidária. “Deveremos pensar em algum tipo de ação educativa que articule as diversas dimensões: a organização, a empresa e o negócio, a competência técnica, o olhar político e o poder. Não nos enganemos! Na medida em que vamos dando o conhecimento para esse povo, os mesmos passarão a ter um importante instrumento de poder. Para onde vamos?” (Silva, 2001a: 3). Aos educadores para exercícios autogestionários é desafiante o tratamento com os diversos tipos de saberes envolvidos e com os seus próprios saberes que precisam expressar uma certa competência como colaboradores, contribuindo, efetivamente, para uma economia popular. Será importante a valorização desses saberes nos processos cotidianos da vida, como uma instância privilegiada, para se poder compreender a elaboração e a reelaboração de um conhecimento para a sobrevivência humana, para a produção de si mesmo como humano e da sociedade. As questões de gênero se colocam como um desafio em um local de aprendizagem na área rural onde predomina, de forma mais forte, o machismo, mesmo que os agentes da equipe da usina sejam mulheres. Há um desafio explícito e conceitual de que o conhecimento escolar é útil enquanto se manifeste como elemento de aprendizagem de outros tipos de conhecimentos, para além da aquisição de técnicas da escrita e da leitura. À escola cabe a tarefa de contribuir na organização desse conhecimento e da cultura. O educador, por sua vez, precisa tornar-se um coordenador da educação, expressão de um processo em que a ciência e a vida caminham passo a passo, em uma relação constante, transformando-o em agente de mudanças (Gramsci, 1968). São provocadores os mecanismos intrínsecos da linguagem em mutação de um ambiente, essencialmente rural - os engenhos - para a linguagem que se mescla com a da cidade, pois a usina é
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uma empresa da cidade. Freire (1983a,1986 e 1993) já alertara que a aprendizagem das letras e da escrita é antes de tudo a aprendizagem e leitura do mundo. Isto pode ser traduzido em compreender o seu contexto, localizar-se no espaço social mais amplo, a partir da linguagem de sua própria realidade. Por outro lado, há educadores, mesmo no campo popular, que ainda vêem a escola como uma agência transmissora de padrões civilizatórios, não entendendo que a escola só acontece por meio de um debate permanente com os distintos universos de linguagem, simbólicos e culturais. Enfim, são os desafios da construção da subjetividade não no sentido da dimensão subjetiva particular, interna ao indivíduo, mas na visão de que seja a produção da sensibilidade das pessoas, de seus pensamentos e desejos e de suas ações. Uma produção, sim, de modelos próprios, mas em interação permanente com o mundo, não se constituindo como dado de uma pessoa ou um ponto fixo na pessoa (Kastrup, 1999). Em um ambiente que interage a realidade da cidade com a do campo, é instigadora a compreensão da própria escola em contraponto à visão de que a escola formal detém o desenvolvimento e a civilização e que o ambiente rural representa o atraso e a ignorância. Com essa visão, continua sendo convidativa a questão da temporalidade de programas em educação para jovens e adultos nos espaços para a autogestão. Esses programas precisam tornar-se projetos nada temporários e muito menos compensatórios, mas que, enquanto permanentes, garantam a participação e o exercício do controle democrático das entidades civis, criadas pelos próprios trabalhadores rurais ou da empresa. No aspecto da didática geral dessas experiências, vem à tona a combinação entre o local, o geral e o singular. Aos que desenvolvem projetos de educação para jovens e adultos, esse desafio está presente em cada momento. Ora, o humano fixa, de forma contínua, vínculos com a natureza. Com a sociedade, relaciona-se de forma singular. Com a espécie trata de sua dimensão geral como um elemento e com todos os demais seres vivos na natureza. O indivíduo é singular, porque único, contendo uma generalidade quando se assemelha a outros seres humanos. Enquanto semelhante (geral), relaciona-se consigo mesmo, possibilitando a sua inserção na sua humanidade e na natureza. Dessas relações impõe-se a compreensão de possíveis pistas para desafios maiores como o discernimento, por parte dos educadores, dos tantos saberes gerados nas práticas de vida e que estão em movimento. Para Lima (2002)203, as práticas em Catende trazem possibilidades conceituais não só quanto à autogestão, mas também no que concerne à participação, à cooperação e ao cooperativismo. Estas vão ocorrendo dentro das condições do ambiente e trazem o desafio da compreensão desses conceitos, em economia solidária, onde esteja acontecendo a “apropriação coletiva dos meios produtivos”. Para ele, a mudança na base material, ou seja, infra-estrutura não cria as condições para uma superestrutura verdadeiramente democrática. Entende, ainda, que não existe democracia sem apropriação coletiva dos meios de produção. Dos pesquisadores, por meios de projetos em extensão universitária, exige-se a manutenção da necessária desconfiança de se estar ou não, pensando o novo. Exercícios educativos que estejam pautados como ponto de partida na realidade, sabedores de que existem alternativas de vida, mas que os trabalhadores não estão obrigados a assumirem-na, mesmo se construídas por eles. O processo de organização se concebe como uma permanente busca de alternativas para ampliação do espectro de possibilidades de formas justas de vida. Isso ocorre, sobretudo, se a ação educativa apresenta o significado de que o ato de educar não é um mero repasse de conhecimento e, sim, um exercício para tornar os outros, também, entes reflexivos – uma educação, necessariamente, popular.
Educação popular – constitutivos:
A experiência histórica O campo da educação tem vivenciado várias experiências que se colocam como educação popular. Em projetos de extensão universitária, as suas metodologias podem se inserir em 203
Assessor do Projeto Catende/Harmonia.
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educação popular. Metodologias de aplicação de projetos extensionistas têm tido destaque desde o início do século passado, chegando às Américas, através de abordagens em extensão. No Brasil, vão destacar-se com a criação das universidades livres, no Amazonas e em vários Estados. Nesse modelo de universidade, a mais importante foi a de São Paulo que funcionou de 1891 a 1917. Em todas essas experiências, é marcante a sua veiculação ao conjunto educativo que se chamou de educação de adultos (Ireland, 2002). A educação nas universidades livres caracterizou-se por conferências semanais, abertas ao público, a respeito de variadas temáticas, desvinculadas do movimento social, além de desprovidas de conotação mudancista. Apesar de estarem direcionadas aos trabalhadores, mantinham-se ignoradas pelas próprias classes populares. Essas experiências, a rigor, estavam mais prisioneiras do idealismo político de grupos da comunidade acadêmica do que da busca de respostas às necessidades e interesses da população. Em contrapartida, são dessa mesma época as escolas sindicais ou escolas partidárias, criadas por anarquistas e socialistas, mas que não detinham o apoio de segmentos universitários. Fávero (1980: 192) faz ver que a Universidade Livre de São Paulo, em estudos sobre a extensão universitária, tinha por objetivo “realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e das artes, por meio de cursos sintéticos, conferências, palestras, difusão pelo rádio, filmes científicos e congêneres”. Consistia de um conjunto de atividades voltadas para a população, porém distantes da mesma. Tudo isso era entendido como um processo de educação para as massas - uma educação popular. Durante todo o século passado, várias foram as campanhas que levantaram a perspectiva de uma educação voltada ao povo204. É importante realçar a presença dos estudantes em movimentos sociais pela educação com esta perspectiva, lembrando as campanhas de alfabetização de adultos e de cultura popular por meio dos Centros Populares de Cultura e do Movimento de Educação de Base (MEB), este nascido no início da década de 60, dirigido pela Igreja Católica, e os Movimentos de Cultura Popular (MCPs). O MEB continua até hoje com suas atividades em todo o país. Fleury (1988: 34) chega a caracterizar as práticas que vêm desenvolvendo como de um movimento engajado nas lutas das classes menos favorecidas. “Realiza programa de educação através do rádio e desenvolve uma metodologia de animação popular”. Na mesma época, inicia-se aquilo que foi se transformar em uma das mais importantes experiências nesse campo - a campanha De pé no chão também se aprende a ler. Experiência iniciada na cidade de Natal, espalhou pelo país inteiro os germes do que veio a se chamar o método Paulo Freire para alfabetização. Esse método teve como marca as campanhas na cidade de Recife, no início da década de 60, com o apoio do governo de Miguel Arraes, no Rio de Janeiro, em Brasília, em São Paulo, e a Campanha de Educação Popular (CEPLAR), na Paraíba. O método Paulo Freire passou a estar presente nos processos populares dos movimentos de alfabetização de adultos, no país e no mundo, firmando uma perspectiva revolucionária para a educação. Todavia, o Estado também vem desenvolvendo atividades no campo da educação de adultos, promovendo a alfabetização das classes subalternas da sociedade. Foram marcantes as campanhas do MEC, no período da ditadura militar, como a do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Nessas campanhas, incentivava-se a participação dos universitários em seus projetos de extensão universitária, destacando-se o Centro Rural Universitário de Treinamento de Ação Comunitária (CRUTAC), o Projeto Rondon e a Operação Mauá. Na década passada, foram relevantes práticas em outras perspectivas, por todo o país. Várias ações em extensão merecem relevo, como as da extensão universitária da Universidade de Brasília (1989), da Universidade de Ijuí, no Rio Grande do Sul, e da Universidade Federal da Paraíba (1996), a exemplo do Setor de Estudos e Assessorias aos Movimentos Populares (SEAMPO), do Projeto Escola Zé Peão, do Centro de Referência e Pesquisa da Saúde do Trabalhador (CERESAT), na área da saúde, e outros. Mais recentemente, em um movimento coordenado pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão Universitária, praticamente todas as universidades brasileiras assumiriam atividades de extensão, até por força da lei, contemplando metodologias de educação popular. Em todas essas experiências, vêm se configurando exigências e acumulando discussões prático-teóricas em torno desta temática. As reflexões em educação de jovens e adultos afirmam-se por meio de um movimento nacional que promove encontros nacionais com regularidade. Em relação à discussão do letramento, a 204
Beisiegel, Celso de Rui. Estado e Educação Popular: um estudo sobre educação de adultos. São Paulo: Pioneira, 1974.
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dimensão do que seja popular é vista pelos Van Der Poel (1997)205 à medida que pessoas jovens e adultas no meio rural precisem estar conscientes da questão agrária, da relação do trabalho com o patrão, da questão da mulher ou da pouca rentabilidade de sua atividade. Para eles, contudo, é importante e necessária a aprendizagem da solução desses seus problemas. Configuram uma metodologia de educação popular nos seguintes termos: “Os participantes do processo educativo não devem, apenas, saber que o problema existe, mas têm que saber os porquês da questão e como solucioná-la” (ibid.: 118). As análises de Brandão (1983), na década de 80, apontavam para a existência de diferenciados modelos em educação popular. O autor via, inclusive, como dinâmica das relações entre esses modelos, a não superação de algum por outros. Para ele, “a regra é a coexistência de modelos tradicionais, hegemônicos e emergentes” (p, 79). Diante da variedade de possibilidades em educação popular206, no momento político que se vive, este debate parece cobrar reflexões sobre os vários elementos que podem estar conjugados, traduzindo uma formulação conceitual sobre a educação popular para as condições atuais. Se a premissa pode ser aceita, é razoável a delimitação de vários constituintes para a sua compreensão, podendo ser fundado a partir de um conjunto de categorias que tem estado sempre presente nesses exercícios educativos, isto é: cultura, popular, realidade concreta, trabalho, igualdade, autonomia/liberdade e diálogo. São referencias que vêm alimentando a história e as práticas em educação popular, constituindo-se como elementos essenciais para o seu exercício, fecundando enormemente a sua compreensão e o seu distanciamento de outros sistemas de educação. Além do mais, sendo a educação uma ação política, na perspectiva freireana, as mudanças que estão ocorrendo cobram a atualização desse debate. Assim, se justifica essa busca, expressão de uma síntese conceitual que colabore para a manutenção dos questionamentos e de práticas em projetos sociais, onde a dimensão educativa transformadora esteja presente, a exemplo de projetos de extensão universitária como as incubadoras populares para uma economia solidária, voltados à autogestão.
A cultura Análises e práticas em educação popular originam-se, normalmente, da compreensão de cultura. O método Paulo Freire de alfabetização, por exemplo, tem início com a definição de um universo vocabular, definido a partir da cultura naquele ambiente. Contudo, a perspectiva de cultura apresenta expressiva dificuldade em sua conceituação. Mesmo entre os profissionais vinculados ao Casal de professores universitários que atuam na zona rural e assessoram a educação fundamental, no município de Campina Grande, PB. Ver o livro: Van Der Poel, Cornelius Joannes e Van Der Poel, Maria Salete. Letramento de pessoas jovens e adultos na perspectiva sócio-histórica. João Pessoa: Editora União, 1997. 206 Vários e importantes pesquisadores no campo da educação popular, como Vanilda Paiva, Osmar Fávero, Celso de Rui Biesiegel, Luiz Eduardo Wanderley, Carlos Rodrigues Brandão (sobretudo em suas obras da década de setenta e oitenta) vêem dificuldades na conceituação da educação popular, considerando a diversidade de movimentos onde pode ser exercitada. 205
Outros pesquisadores vêm contribuindo para o avanço do debate sobre as mais diferenciadas questões nesse campo. É possível citar alguns como Timothy Ireland, em educação de jovens e adultos; Eymard Vasconcelos, no campo da educação popular e saúde; Wojciech Kulesza, na metodologia e história das ciências e educação popular; Alder Júlio Calado, em movimentos sociais e educação popular; Luiz Rodrigues, nos aspectos psicológicos da educação popular e outros, no Programa de Pós-Graduação em Educação Popular, da Universidade Federal da Paraíba. Acompanham pensadores como Etore Gelpi, na busca de novos paradigmas para a educação popular; Michel Seguier com suas análises sobre a criatividade coletiva; Osmar Fávero, na história da educação popular; Francisco Vio Grossi, na educação de adultos na América Latina; Alfonso Lizarburu, Oscar Jara, João Francisco de Sousa e Sérgio Haddad, além de outros. Há importantes arquivos de organismos que mantêm a sua atuação em educação popular, como o do Centro de Documentação e Informação (CEDI), o Centro Pastoral Vergueiro e o Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (CEPIS), o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU) e mais recentemente O Centro Paulo Freire – Estudos e Pesquisas, em Pernambuco e o Instituto Paulo Freire em São Paulo. Além destes, há um conjunto de organismos que atuam no campo de economia solidária, podendo contribuir ainda mais para a discussão em educação popular, como a ANTEAG, a FASE e ADS/CUT e outros.
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campo que se diz cultural, não há uma compreensão, sequer, aproximada de seu significado com aceitação generalizada. O que existe mesmo é um cipoal de concepções que mais expressam um “ninho de casaca-de-couro”, na acepção viva de Jackson do Pandeiro207. Apesar desse elemento complicador, é tido por outros como um alimento para diferenciadas perspectivas culturais. Pode-se observar que a multiplicidade conceitual de cultura também traduz e expressa, do ponto de vista político, a visão alicerçada nas bases explicativas e dominantes da sociedade, em seus variados modos de produção. Entre os gregos, cultura e religião estiveram interligadas, expressando as explicações da natureza, porém cheias de atributos religiosos. Essa visão de cultura já era idealizada em Homero, tornando a beleza o ideal educativo e dominante daquela cultura, presente até os dias de hoje. Contudo, é Hesíodo, outro poeta grego, que, sem negar o ideal homérico, apresenta outra base para a educação. Elege o trabalho como referência para a educação grega do homem e da mulher. Entretanto, verifica-se entre os sofistas a separação entre a religião e a cultura. Apesar dessa separação, só tem significado de totalidade ao assumir como cultura e como conteúdo da cultura, também, o mundo da cultura espiritual: “o mundo em que nasce o homem individual, pelo simples fato de pertencer ao seu povo ou a um círculo social determinado” (Jaeger, 1995: 354). Tudo isso, entretanto, expressa visões idealizadas sobre cultura de diferenciados setores dominantes da sociedade, em suas épocas. Mas o que se deseja resgatar é a perspectiva conceitual de cultura, embalada pela categoria teórica movimento e fruto inerente de cada modo de produção. Isto é, a perspectiva do conceito de cultura nos marcos da produção, expressa na visão de Álvaro Vieira Pinto208. A produção é expressivo parâmetro de universalidade, considerando a sua presença em todos os tipos de grupos sociais, presentes nos mais diferenciados rincões e em qualquer tempo da história humana. E aí, como produto do processo produtivo, cultura é uma criação do próprio homem. É resultante das diferenciadas formas de tentativas do humano no trato com a natureza material, na medida em que está sempre em luta pela própria sobrevivência. A sua capacidade intelectiva e manual possibilitou um maior crescimento e intensidade desses fazeres de sobrevivência. Esses produtos, daí gerados, constituem-se todos como produtos culturais. Dessa capacidade, foram sendo criados os instrumentos de sobrevivência e todos os tipos de expressão espiritual, inclusive, e, posteriormente, as religiões. Cada uma foi inventada em determinado tempo e lugar, prisioneira das condições da cultura estabelecida e veiculada nos anseios de dominação de cada povo (construção de impérios) ou sendo impingida a cada povo perdedor. Tudo isso foi sendo transmitido e conservado de geração para geração. O início da cultura não é, portanto, datado, mas coincide com o processo de hominização. “A criação da cultura e a criação do homem são na verdade duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a principalmente social na segunda, sem, contudo, em qualquer momento deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente” (Pinto, 1979: 122). Como se vê, as dimensões culturais presentes nos gregos estão mais ampliadas com essa perspectiva. Os produtos culturais são aqueles gerados dos mecanismos nos mais variados processos produtivos e os gerados da dimensão social presente nas relações humanas. Nesse sentido, torna-se ente cultural o museu, o quadro de famoso pintor, as esculturas de famosos escultores, etc. São expressões culturais os óculos ou lentes usados no cotidiano, a caneta, a ferramenta de trabalho, o computador, a peça teatral, o trator, o software, o processo de produção de conhecimento e a tecnologia. Todos estes entes são frutos do processo produtivo e resultantes da dimensão manual e intelectiva da espécie humana.
Cantor e compositor paraibano, tido como um dos nomes da trilogia da música popular nordestina, juntamente com Luiz Gonzaga e Luiz Vieira. O pássaro casaca-de-couro faz seu ninho de gravetos de espinheiros entrelaçados, de difícil acesso a outros bichos, chegando, às vezes, a um metro de cumprimento. 207
Filósofo brasileiro. Ver: Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 208
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A cultura, na perspectiva apresentada, isto é, como produto do processo produtivo, adquire dupla natureza. Cultura, expressa pelo bem produzido, torna-se bem de consumo, enquanto resultado expresso em coisas e artefatos e subjetivado em idéias gerais do mecanismo produtivo. Cultura se converte, ainda, em bem de produção, subjugando a realidade e submetendo-a às suas reflexões, gerando novos produtos e novas técnicas de exploração do mundo, dando-lhes, pelas idéias, significados e finalidades para as suas ações. Dessa perspectiva conceitual de cultura resultam dois fenômenos, sendo mais explicitados no atual modo de produção – o capitalismo. O primeiro diz respeito ao acervo cultural, que é cheio de máquinas e entes tecnologizados, além das tantas idéias geradoras dos processos produtivos. Não se produz sem idéias. Os setores dominantes, por sua vez, valorizam mais a segunda dimensão, as idéias, considerando que já controlam os bens materializados. Há, então, a exaltação às posses das idéias e desvalorização do trabalho próprio da produção daqueles entes materiais. O segundo resultado é o apoderamento dos bens materiais produzidos, frutos das idéias geradoras dos bens culturais. Assim, o trabalhador - o produtor cultural - além de ter perdido os bens materiais produzidos por ele mesmo, também está excluído dos bens ideais geradores dos produtos culturais. A partir dessa visão, pautada no marco da produção, torna-se possível dessacralizar as marcas ideológicas das outras perspectivas de cultura, quaisquer que sejam, imputando aos mais aquinhoados o ter cultura e convencendo os demais de que têm cultura aqueles que, tão-somente, estiveram na escola. Pode-se afirmar que estes, apenas, também têm cultura. Numa sociedade de pouco acesso aos tantos meios de socialização do conhecimento, certas visões só aprofundam a “apartação social”, fortalecendo a dominação por parte dessas elites. Portanto, cabe aos que produzem os entes culturais bens materiais e bens ideais - o resgate da posse de seu próprio processo de se tornarem humanos, edificando os vetores de sua libertação, sendo esta ação fortalecedora de sua sabedoria 209 e necessariamente popular.
O popular Os conteúdos da educação entre os povos têm sido quase os mesmos, isto é, de ordem ética e prática. Nessa primeira dimensão, inserem-se as orientações principistas para o bem viver como, por exemplo: honrar deuses, pais, mães e outras regras de conduta como as da prudência ou, até mesmo, definidas através de mandamentos. A segunda dimensão volta-se a aspectos comunicativos do conhecimento de profissões acumuladas por um povo, denominada pelos gregos de techne. Paralelamente ao processo educativo dentro dessas perspectivas, desenvolve-se uma sabedoria, expressa por essas regras, preceitos de prudência e mesmo superstições, baseadas na tradição oral que, no caso dos gregos, tornou-se pujante na poesia rural gnômica de Hesíodo210. A formação pela educação, como se vê, toma dois rumos distintos. Assume, em primeiro lugar, um rumo dominante que passa a criar um tipo humano pautado por um conjunto de idéias préfixadas, cabendo-lhe o seu alcance. Esse tipo elevará como fundamental a idéia de beleza, constituindo-se como o componente central do processo educativo. A educação torna-se a busca pelo belo. Nesta perspectiva, está o pensamento de Homero, sendo indiferente tomar-se como essencial a utilidade das coisas. Assim, constrói-se o ideário dominante na Paidéia grega em que a “formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação” (Jaeger, 1995: 25). Contudo, é do campo que vem uma outra percepção do significado da educação e da formação, muito próximo, cronologicamente, dos tempos homéricos. Forma-se uma tradição que, mesmo entre os gregos, daria outra função à poesia, ao objeto dos poemas, relacionando-se com outro público e distanciando-se da perspectiva homérica. O poeta Hesíodo traz para o processo de educação A sabedoria popular antecede a tecne e o saber científico. Na filosofia de Platão e Aristóteles, a tecne adquire o significado atual da palavra teoria, contrapondo-se à mera experiência. Teoria em função de uma prática (Aristóteles), diferente da perspectiva de Platão como teoria da “ciência pura”. 209
Homero e Hesíodo, poetas gregos, que viveram entre os séculos VIII e VII a.C. e marcaram a educação e a formação humana, grega e ocidental. 210
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humana a experiência de seu trabalho, a experiência do agricultor, dirigindo-se a seus conterrâneos, agricultores gregos e pequenos proprietários. Está na poesia hesiódica não mais a medida do homem pela sua árvore genealógica, mas pelo seu trabalho, que o torna independente e feliz. Como se vê, essas duas fontes permeiam os processos educativos dos gregos. Em Homero, há uma esfera social dominante voltada ao mundo e à cultura dos nobres. Uma fonte que daria maior ênfase a uma educação para a qualidade tanto dos nobres como dos heróis, valorizando o heroísmo expresso pelas lutas, em campo aberto, entre cavaleiros nobres e seus adversários. Em Hesíodo, especialmente no seu poema os Erga211, há uma poesia arraigada à terra como representação da vida campestre, rústica, simples, suscitando outra fonte da cultura grega: o valor do trabalho. Nesta perspectiva, o poeta vê o mundo através de duas lutas sobre a terra e que são distintas, sobressaindose, todavia, a luta abaixo narrada: “Desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico apressado em plantar, semear e casa beneficiar; o vizinho inveja ao vizinho apressado atrás da riqueza; boa Luta para os homens esta é; o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao carpinteiro, o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo. Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a Luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos” (Hesíodo, 1996: 23-24).
Além disso, a vida no campo expressa o seu heroísmo através da luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores, reclamando disciplina e contendo qualidades de valor educativo permanente para o humano: Por trabalho os homens são ricos em rebanhos e recursos E, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais. O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é! (Hesíodo, 1996: 45). Hesíodo passa a condenar o ocioso e o compara a zangões de colmeias que destroem os esforços das abelhas, salientando, ainda mais, o papel do trabalho no processo de educação humana, exigindo uma vida de trabalho: “Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho” (Jaeger, 1994: 85). Em “Os trabalhos e os dias”, o poeta exprime maiores detalhamentos da vida no campo, sobretudo, na segunda parte, as tradições e as regras sobre o trabalho do campo em suas várias estações do ano, regras de vestuário de acordo com as estações, suas máximas morais e suas proibições. “A sua forma, o seu conteúdo e a sua estrutura revelam imediatamente a sua herança popular (grifo nosso). Opõem-se totalmente à cultura da nobreza. A educação e a prudência na vida do povo não conhecem nada de semelhante à formação da personalidade total do homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza igual no uso das armas e das palavras, nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavaleiresco. Em contrapartida, impõe-se uma ética vigorosa e constante, que se conserva imutável através dos séculos, na vida material dos componentes e no trabalho diário da sua profissão. Este código é mais real e mais próximo da Terra, embora lhe falte uma grande meta ideal” (ibid.: 91). Hesíodo, pela primeira vez, preenche essa lacuna, juntando a esses elementos culturais, em forma de poesia, a idéia de direito, expressa através de sua vida de trabalho, no sentido de combate às usurpações promovidas por seu próprio irmão, transformando-se num devoto fervoroso do direito (dike). O trabalho e a justiça tornam-se componentes intrínsecos de suas bases educativas. Para ele, não há um sem a existência do outro. Em seus versos expressa: “A tribo dos imortais irão, abandonando os homens, respeito e justiça distributiva; e tristes pesares vão deixar aos homens mortais. Contra o mal força não haverá!” (Hesíodo, 1996: 37).
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Denominados, posteriormente, de Os trabalhos e os dias.
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Não há saída, portanto, para o poeta, entendendo-se que, caso não exista respeito pelo trabalho, também estará comprometida a justiça. Nesse sentido, acrescenta: “O excesso é mal ao homem fraco e nem o poderoso facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona quando em desgraça cai; a rota a seguir pelo outro lado é preferível: leva ao justo; Justiça sobrepõe-se a excesso quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo” (Hesíodo, 1996: 39). É bom lembrar a figura de Prometeu que furtou o fogo de Zeus, repassando-o aos humanos e, por isso, foi merecedor de castigo. “Oculto retém o deus o vital para os homens; senão comodamente em um só dia trabalharias para teres por um ano, podendo em ócio ficar” (Hesíodo, 1996: 25). O raio do soberano do Olimpo não mais seria orientado em proveito dos mortais, não mais garantiria o sustento através do produto da terra, de forma natural. O surgimento do trabalho é expressão do conflito entre Zeus e Prometeu e, também, da separação entre deuses e humanos que viviam juntos. “Agora, o homem deverá trabalhar sua terra para conseguir frutos. É o fim da idade do ouro, cujo mito marca claramente a oposição entre a fecundidade e o trabalho” (Hesíodo, 1979: 13). A obra “Os trabalhos e os dias” constitui um fecho da expressão educativa fundada na forma descritiva da terra, através do trabalho cotidiano, revelando a totalidade da vida, seu ritmo e beleza, justeza e honradez, que fundamentam a ordem moral do mundo, englobando, ainda, uma ética do trabalho e da profissão que não vivem separados no pensamento hesiódico. Esse rico tesouro experiencial deriva, através da vida e do trabalho, de uma tradição milenar já bastante enraizada, externando um vigor dessa sua realidade que deixa de lado o convencionalismo poético de alguns cantos homéricos. Um vigor que só estimula, com toda a plenitude, a vida de trabalho no campo. Hesíodo torna-se um arauto dessa intimidade com a terra, planeando os próprios valores nesse estilo de viver, encontrando, mesmo na aspereza e nas atividades do dia-a-dia, um significado e uma finalidade. “Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular (grifo nosso), excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a sua própria forma e o seu ethos exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida” (Jaeger, 1994: 103). O conteúdo dos poemas de Hesíodo tem compreensão limitada aos camponeses, marcados pelo seu estilo de viver e de se identificar com as características próprias da vida campesina. Já o conteúdo moral implícito é acessível a qualquer povo. Mas, a identificação maior da educação grega não está no campo. É na polis onde se realiza a formação mais marcante e acabada. Todavia, importância igual, ou mesmo maior, foi dada a Hesíodo pelo povo grego, ao torná-lo um educador orientado para os ideais do trabalho e da justiça. Desde a sua época, censurava senhores venais quando do exercício de sua função de julgamento, atropelando o direito. Direito que se transforma em luta de classe, antecipando-o como um reclamo universal. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos” (Jaeger, 1994: 134). A dimensão do ser justo passa a ter significado concreto entre os gregos, como aquele que obedece à lei e se regula por suas disposições e, mesmo na guerra, está cumprindo o seu dever. Habitualmente, as virtudes foram expressas em quatro: a fortaleza, a piedade, a justiça e a prudência; mas é na justiça que todas estão concentradas, considerando que esta, no sentido mais geral, para além do jurídico, engloba a totalidade das normas morais e políticas. Nessa organização de Estado, fundamentado na noção do direito para todos, é que foi se pautar a vida na polis grega, criando a figura do cidadão, um novo tipo para uma nova comunidade. A presença, agora, do Estado passa a dar dupla conformação política na vida humana: uma vida privada e uma vida pública, no espaço da polis. Uma rigorosa distinção estabelece-se entre aquilo que lhe é próprio e aquilo que é comum. Um modo de vida que deixa de lado a dimensão da educação hesiódica, pautado pela idéia do trabalho, impregnado de um conteúdo da vida rural. Embora reconhecendo esta importância, o processo civilizatório grego tomou um rumo completamente diverso.
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A dimensão educativa marcante, em Hesíodo, estava voltada à realidade mesma. Além disso, exigia dessa realidade o ponto de partida para o seu desenvolvimento. Era um tipo de educação que buscava a afirmação daquele que se educava. Educação fora de qualquer dimensão ideal, mas sim fruto do ambiente, possibilitando a dimensão de universalidade, exigida por qualquer processo educativo. A educação nesses moldes conduz para a afirmação do educando ao se voltar à sua realidade e, sobretudo, por ter nessa realidade o ponto de partida e o ponto de chegada do ato educativo. Enquanto se afirma, procura, incessantemente, a justiça como a medida necessária ao indivíduo, definindo a reivindicação do direito para todos. Estão se constituindo, dessa maneira, os elementos constantes do processo educativo, voltados a todos aqueles que não são reconhecidos (as maiorias da população ou os populares), sendo-lhes negada a justiça. A procura por justiça e pela afirmação de um povo, de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do processo educativo, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, durante a Idade Média. Está presente, inclusive, nos dias atuais, como uma marca dos movimentos sociais populares, o grande esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como forma de definição de seu campo de ação política e educativa. Para Calado (1999: 23), essa busca de construção da identidade “implica, de um lado, o esforço de identificar e superar adversidades interpostas a tal caminhada e, de outro, perseguir determinado alvo, objetivos ou mesmo um projeto alternativo ao que aí está ”. Este aspecto do popular já se esboçara em comunidades antigas, como a judaica, com as mesmas características construtoras de identidade. A Bíblia narra vários episódios mostrando revoltas populares presentes na história do povo judeu. Revoltas em que o povo lutava pela sobrevivência e pela afirmação de sua identidade e por justiça igual para todos. Nos primórdios da Idade Média, são marcantes os movimentos de contestação contra a cobrança obrigatória do dízimo e o acúmulo de terras, por parte da Igreja Cristã. Para o historiador Hoonaert (1986), constituíram-se como “um grande movimento popular”. Ainda na Idade Média, segundo Calado (1999), ocorreram vários movimentos sociais populares com características semelhantes àquelas presentes na Antigüidade e, marcadamente, com dimensões subversivas à situação em vigor. Expressaram sua própria afirmação e resistência aos ditames e mecanismos de controle social da época, sobretudo à poderosa Inquisição. O referido autor destaca os cátaros ou albigenses, apresentando a sua indignação diante da ordem religiosa vigente e seu combate sistemático ao estado de violência e de corrupção que se ampliava com a nobreza feudal e pela hierarquia eclesiástica. Eram movimentos compostos de gente simples, das classes populares. É marcante a presença dos valdenses e as beguínas que, juntos, apresentavam em comum (como marca do popular contida nesses movimentos) a contestação e a resistência, definindo as suas próprias alternativas. “Ao mesmo tempo em que se insurgem contra as práticas e os métodos do establishment eclesiástico, tratavam de anunciar uma ordem alternativa à de então, por seu discurso e por suas práticas, por meio das quais, mais do que propriamente inovar, buscavam recuperar os valores fundantes do Cristianismo” (ibid.: 81). Na modernidade, são freqüentes os movimentos que marcam as lutas pela superação da situação política dominante. Sobressaem-se as revoluções liberais modernas e dentre estas a revolução francesa que trouxe ao cenário das lutas políticas setores sociais simples ou populares, lutando por liberdade, fraternidade e igualdade (justiça). Uma revolução realizada por vários setores sociais e marcadamente pelos setores populares, definindo alternativas para uma vida digna. Contudo, é em Marx que se encontra um avanço fundamental na busca por alternativa, em “O manifesto comunista”. Nessa obra, ele aponta como bandeira à classe proletária (classes trabalhadoras, classes humildes, classes populares) a necessidade de luta e de alternativa, ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999: 30). Fecundou os movimentos de libertação, em todo o século XX, com a sua célebre exortação: Proletários de todos os países, uni-vos. Mas, durante o século XX, o que foi entendido como popular? O que revelaram os movimentos sociais que atuaram na organização do povo, na organização dos trabalhadores? Nos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade, várias experiências de grupos
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políticos212 e partidos políticos trazem o termo popular em suas bandeiras de lutas, seus projetos ou nas formulações políticas. A insurreição de 1935, no Brasil, orienta-se por um “programa de governo popular, nacional, revolucionário”213. Esse programa tinha no popular a expressão de interesses das “grandes massas da população”, adquirindo a dimensão de controle direto das ações políticas pelo povo, buscando a democracia e a liberdade de expressão. A Frente Popular do Chile trazia nas suas formulações internas a necessidade da ampliação da própria Frente, reconhecendo a insuficiência da unidade, envolvendo, simplesmente, a classe operária. Tratava-se de uma frente política que via no conceito de popular a possibilidade de se contar com outros e novos aliados. Com esta mesma perspectiva, surgiu o Partido Popular, no México214, que passou a veicular uma compreensão do termo com maior abrangência do que aquela da Frente, considerando que pelo popular é possível um grupo político de cooperação com o governo. A esse respeito, Löwy (1999: 168) esclarece: “A elevação do nível de vida do povo interessa tanto ao proletariado e aos camponeses, quanto às pessoas de classe média e aos membros das organizações burguesas progressistas. Defender sua soberania e a independência da nação interessa ao proletariado, aos camponeses, à pequena burguesia da cidade, à grande burguesia progressista do país”. Recentemente, também no Chile, deu-se a composição entre o MIR e a Unidade Popular215 que saíram da clandestinidade, após a vitória de Allende. Tinham no popular a perspectiva de poder autônomo, independente e alternativo ao Estado burguês, combatendo a estratégia reformista de que as massas estivessem subordinadas à democracia desse tipo de Estado. No Brasil, o Partido Comunista do Brasil (PC do B)216 lançou a “guerra popular”. Ao mostrar o caminho para essa guerra, expressou uma concepção voltada à ampliação dos agentes dessa revolução: o povo. Para o partido (ibid.: 434), “a luta armada em que se empenhará o povo brasileiro terá um profundo conteúdo popular, englobando as mais amplas massas da população”. Outro movimento marcante na história política da esquerda no Brasil deu-se com a criação do Partido dos Trabalhadores217. Este formulou uma política como “estratégica democrática e popular, devendo conduzir um programa com as mesmas características”, ou seja, o socialismo petista. Trata-se de uma perspectiva que concebe o popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da classe trabalhadora, na construção da democracia. “Na verdade, a democracia interessa, sobretudo, aos trabalhadores e às massas populares” (Resoluções, 1998: 429). O Programa democrático e popular, projeto de sociedade para o país, só se concretizará através de uma perspectiva de ampliação (aliança) e resistência desses atores sociais que vislumbram as transformações sociais.
Para uma visão mais completa desses grupos políticos, com textos que os orientaram nas ações políticas, ver: Löwy, Michael. O marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1999. 212
É um documento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente político-militar do PCB com a ala esquerda do „tenentismo‟ que lideraram a sublevação de 1935. 213
O Partido Popular foi fundado, no México, por Vicente Lombardo Toledano; depois passou a se denominar Partido Popular Socialista (PPS). Um partido de oposição fundado para cooperar com o governo. 215 Unidade Popular se constitui como uma coalizão de partidos de esquerda. O MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), nessa frente, desenvolve-se, sobretudo, a partir das frentes de massas Movimento Camponês Revolucionário, Movimento dos Favelados, Frente de Trabalhadores Revolucionários, junto com a ala esquerda da Unidade Popular, a esquerda cristã e outros. O MIR contrapõe-se estrategicamente ao PC chileno que defendia aliança das forças populares com a burguesia nacional. 214
Até o final da década de 60, o PC do B negou-se comprometer com processos de luta armada, realizando, contudo, a sua própria experiência, de orientação maoísta, na década de 70 - uma guerrilha rural na Amazônia - sendo dizimada pela ditadura militar. 216
O Partido dos Trabalhadores(PT) foi criado em fevereiro de 1980. Decide, no seu VII Encontro Nacional, adotar o socialismo petista, inspirado numa tradição marxista anticapitalista, expresso por uma visão de cultura política pluralista, propondo-se democrático e libertário. 217
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Nesse sentido, o popular tem um nítido componente classista, abrangendo as classes trabalhadoras, os camponeses, os setores médios da sociedade, além de setores da pequena burguesia. Popular ainda aparece em movimentos como o do Exército Zapatista de Libertação Nacional218, inserido no caudal teórico reivindicatório e traduzido pela aspiração de democracia e liberdade. “Nossa luta se apega ao direito constitucional e é motivada pela justiça e pela igualdade” (Primeira Declaração da Selva Lacandona, In: Lowy, 1999: 515). Nesse contexto de luta pela vida, também no Brasil, em especial decorrente da questão fundiária surge, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST)219. Defendendo a reforma agrária, preocupa-se com o consumo popular como expressão dos que estão sem qualquer tipo de assistência. “Dessa forma, tanto os pequenos produtores familiares, como os produtos destinados ao mercado interno para consumo popular, sempre estiveram à margem das prioridades da pesquisa agropecuária e da assistência técnica, mantidas pelo Estado” (ibid.: 519). Mas essa discussão conceitual passa por intelectuais, basicamente por aqueles que atuam no campo da educação popular. Paulo Freire, por exemplo, em duas de sua ampla obra, “A Educação como Prática de Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, externa seu entendimento de popular como sinônimo de oprimido. Trata-se daquele que vive sem as condições elementares para o exercício de sua cidadania, considerando que também está fora da posse e uso dos bens materiais produzidos socialmente. A educação popular, isto é, tendo como ponto de partida a realidade do oprimido, pode se tornar um agente importante nos processos de libertação do indivíduo e da sociedade. O popular adquire, a partir da ótica da cultura do povo, um significado específico no mundo em que é produzido, baseando-se no resgate cultural desse povo. Os processos simbólicos, dessa forma, têm razão no ambiente da própria comunidade, porém no sentido da ampliação do horizonte cultural das classes. O conceito é o elemento adjetivante da educação, enquanto propõe a construção das utopias libertárias, na tentativa de superação da exploração do oprimido. Para Jiménez (1988), é importante a construção dos setores populares com o papel de defender seus interesses, construindo também a sua própria identidade cultural. Manfredi (1980) associa o popular, vinculado à educação, no sentido de prática para a autonomia, enquanto seja capaz de gerar um saber-instrumento e, sobretudo, quando contribui para a construção de direção política. Wanderley (1979 e 1980) vincula o conceito de popular ao de classes populares220 como algo que é legítimo, que traduz interesses dessas classes, podendo adquirir o significado como algo “do povo”. No senso comum, povo é entendido como sendo aquele segmento de poucos recursos, posses e títulos. É um sentido dicotômico, fixado pelas expressões como elitemassa, em que o termo “massa” exprime pessoas desorganizadas e atomizadas. Outra compreensão percebe na expressão “do povo” um conjunto de indivíduos iguais e com interesses comuns com pequenos conflitos, apenas. Na visão nacional-popular, “o povo” é identificado como aquele conjunto de pessoas que lutam contra um colonizador estrangeiro, ou a visão “de povo” expressando as classes subalternas da sociedade, tendo por oposição as classes dominantes. Há ainda o conceito de “povo” como o segmento social dinâmico, aberto e também conflitivo, sendo, portanto, histórico e dialético, enquanto que se dinamiza e se atualiza de forma permanente. O termo popular tem se apresentado com diferenciados significados, como se pode ver em Bezerra (1980). Ao estudar as novas dimensões entre as práticas de educação popular, no final da década de 50 e início dos anos 60, a autora mostra um conceito atrelado a essas práticas direcionadas para o exercício da cidadania, no sentido de que as maiorias possam assumir o seu papel sóciopolítico naquela conjuntura. O conceito retoma uma política de resistência, como uma necessidade Surgiu em Chiapas, México, em 1994. Esse movimento arrasta consigo a tradição de luta do povo mexicano. Uma organização guerrilheira de tipo novo enquanto não aspira à derrubada e tomada do poder, mas a luta com a sociedade civil mexicana pela conquista de democracia e justiça. 218
É um movimento do final de século XX, no Brasil. Atento às questões agrárias, em 1995, lançou um programa de reforma agrária para o país. É um movimento que se reivindica de nenhuma doutrina política, mas nas suas análises sobre o país está explícita a influência do marxismo. 220 “Classes populares serão entendidas no plural, compreendendo o operariado industrial, a classe trabalhadora em geral, os desempregados e subempregados, o campesinato, os indígenas, os funcionários públicos, os profissionais e alguns setores da pequena burguesia”. Luiz Eduardo W. Wanderley, Educação popular e processo de democratização. In: A questão política da educação popular. Brasiliense, 2a. São Paulo, 1980. 219
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para os grupos populares (do povo) na busca de mudanças, “no estabelecimento de melhor padrão de funcionamento da sociedade” (ibid.: 26). Na compreensão de Brandão (1980: 129), o popular vinculase à classe e à liberdade, ao mostrar que “o horizonte da educação popular não é o homem educado, é o homem convertido em classe. É o homem libertado”. Para Beisiegel (1992), o popular vem atrelado às práticas educativas em educação popular. Nesse sentido, a origem desse agir educativo, historicamente, está também nas hostes do Estado e suas formulações têm sido geradas nas elites intelectuais. Todavia, esses processos expressam um entendimento como algo necessário, sendo útil à preparação da coletividade para a realização de fins determinados. Souza (1999) vincula o popular aos movimentos sociais populares. Esses movimentos expressam correntes de opiniões capazes de firmar interesses diante de posicionamentos contrários dos dominantes. Elas são externadas sobre os vários campos da existência individual e coletiva desses setores da sociedade. Nesse sentido, o autor considera os “segmentos sociais explorados, oprimidos e subordinados, cujos temas, quase sempre de maior incidência em suas vidas, em seu cotidiano, são: trabalho, habitação, alimentação, participação, dignidade, paz, direitos humanos, meio ambiente, gênero, gerações etc” (ibid.: 38).
Projeto de Casa Popular
Essa questão conceitual também passa pelo debate sobre comunicação. Nesse sentido, é necessária a apresentação da perspectiva do popular no seio da comunicação nos movimentos sociais. Assim, pode adquirir também outras conotações, como enfoca Peruzzo (1998: 118): a) o popular-folclórico, que abrange expressões do senso comum, presentes nas festas, danças, ritos, crenças costumes e outras formas; b) o popular-massivo, que se inscreve no universo da indústria cultural, adquirindo três outras dimensões: a apropriação e a incorporação de linguagens, de religiosidade ou outras características do povo; a influencia e a aceitação de certos programas massivos de rádio e TV; as programações voltadas aos problemas da comunidade, entendidos como de utilidade pública; c) o popular-alternativo, que se situa no universo dos movimentos sociais. Esta última forma caracteriza-se como algo novo, na medida em que vincula a comunicação popular a algo voltado às classes subalternas da sociedade, às “lutas do povo”, adquirindo duas possibilidades, segundo Canclini (1987): a primeira concebe o popular como sendo algo libertador, revolucionário e portador de conteúdos críticos, concretizando-se através de alternativas marcantes no início da década de 80; a segunda nasce nos anos 90, diante das mudanças que vinham ocorrendo. Nessa concepção, o popular apresenta-se numa perspectiva dialética e mais flexível, como algo que contribua para a democratização da sociedade e da cultura. Na perspectiva do popular como algo que promove a democracia, segundo Rodrigues (1999: 23), há a exigência de que os grupos que compõem o povo precisam se comportar democraticamente. Para ele, “muito mais através de ações que de palavras, a educação popular objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua”. Esclarecedora, contudo, é a perspectiva do popular no campo da saúde, como
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expressão daqueles que são trabalhadores ou seus filhos. São os infectados por várias doenças ao mesmo tempo. A esse respeito, Vasconcelos (1999: 21) aponta: “Diarréia, escabiose (sarna), verminoses intestinais, impetigo (perebas), micoses cutâneas, doenças venéreas, infeccões exantemáticas agudas (como catapora, rubéola e sarampo), resfriados, pediculose (infestação por piolho), pneumonia, tungíase (bicho-de-pé), faringites e outras doenças infecciosas e parasitárias fazem parte da rotina diária das famílias das classes populares brasileiras”. Mas que compreensões221 estão sendo veiculadas por aqueles que vivenciam, dirigem ou assessoram movimentos sociais? Nessa passagem de século, as concepções continuam muito variadas. Dirigentes de movimentos sociais, no campo do sindicalismo, estão compreendendo o popular “como toda e qualquer ação que provoque transformação, defendendo os interesses da maioria da população”222. É uma perspectiva que insere a visão classista no conceito, compreendendo como classe a maioria da população. Para outros dirigentes de movimentos fora da estrutura sindical, o popular significa “ações ligadas a uma parcela da sociedade que não tem acesso aos direitos, ao trabalho, enfim ao mínimo de condições para uma vida digna” 223. Outra percepção vincula-o ao projeto político-popular como “um projeto de transformação social que saia dos modos de produção, organização e valores capitalistas, tendo uma concepção socialista de justiça social” 224. Ser popular é um exercício de transcendência do modo de produção capitalista. Pode ainda conter uma metodologia que contenha “procedimentos de ação política que se articulem com as demandas dos excluídos”225. O popular implica, originariamente, uma vinculação aos setores excluídos (povo) dos bens culturais produzidos socialmente pela sociedade. Expressa, ainda, algo que “vem do povo, da classe subalterna da sociedade, atendendo aos interesses desta classe”226. Ou mesmo como “aquilo que seja realizado na perspectiva de transformar a realidade, de conscientizar e libertar” 227. É importante destacar, nesse percurso conceitual, as diferenciadas alternativas apresentadas por dirigentes partidários que têm em suas formulações estratégicas de sociedade a dimensão do popular, como os que defendem um “programa democrático e popular” para o país. É fácil perceberse quão variadas têm sido as compreensões do termo entre militantes partidários ou de movimentos sociais, refletindo-se em suas ações políticas nas cidades onde vivem. Tornou-se possível, dessa maneira, a „catalogação‟ das visões externadas, em quatro grandes blocos, como mostra o quadro a seguir. Há um bloco daqueles que compreendem o popular como algo que é, necessariamente, originado nas classes sociais, em particular na classe trabalhadora, também disseminadas em conceitos como: as maiorias, o povo, a população, os mais sofridos ou os excluídos. Um outro bloco vislumbra o popular como algo que se expressa por encaminhamentos dirigidos a essas maiorias, pautado em procedimentos. Nessa concepção, ser popular é tornar-se expressão de uma metodologia, mas só terá significado quando expressar uma visão de mundo em Pesquisa desenvolvida no período de fevereiro de 1999 a junho do ano 2000. Foram entrevistados dirigentes de movimentos populares (Acorda Mulher, da cidade de Bayeux, Grande João Pessoa; Projeto Beira da Linha, Bayeux; Movimento Nacional de Meninos/as de Rua, João Pessoa); de organizações não- governamentais (SAMOPS, João Pessoa; SEAMPO, João Pessoa; Núcleo de Educadores Populares da Paraíba – Rede EQUIP de Educadores, João Pessoa; AGEMTE, João Pessoa); movimento sindical (Sindicato dos Professores, Sindicato dos Servidores em Saúde, Sindicato de Servidores Federais); organizações de assessoria aos movimentos sociais (PRAC/UFPB, Mulheres de Teologia do Partido dos Trabalhadores) e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas do Estado da Paraíba. 221
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Entrevista com dirigente do Sindicato dos Professores da Rede Oficial do Estado.
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Entrevista com dirigente do Movimento Acorda Mulher, Bayeux, PB.
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Entrevista com dirigente do Projeto Beira da Linha, Bayeux, PB.
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Entrevista com dirigente do Movimento Nacional de Meninos/as de Rua/PB. Entrevistas com assessorias do SEAMPO/UFPB; Rede de Educadores/EQUIP/Pb e AGEMTE/PB.
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Entrevistas com dirigentes do Sindicato dos Servidores da Saúde e Sindicato dos Servidores Federais/PB.
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mudança, contendo em suas ações a dimensão de propor saídas para as situações de miséria vividas pelo povo. É uma visão que exige iniciativas no plano político, normalmente, originais, pois marcam a própria autonomia desses movimentos definidores de um novo tecido social embasado em outros valores e objetivos. Esta perspectiva, entretanto, é bastante minoritária entre os ativistas dos movimentos sociais. Há, ainda, outras visões, pouco expressivas quantitativamente ou prisioneiras da idealização existente nesses movimentos sociais populares.
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Concepções de popular 228 Campos teóricos das concepções
Quantitativos das concepções
1. ORIGEM Algo é popular quando tem origem no povo, nas maiorias. Alguns indicadores229: vem da base; vem da experiência do povo; vem da tradição do povo; vem das classes desprivilegiadas; vem das maiorias.
20,68% das compreensões externadas apontam para a visão de que algo é popular quando tem essas origens.
2. METODOLOGIA Algo é popular quando traz consigo um procedimento que incentive a participação, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a busca da cidadania. Alguns indicadores: algo referente ao povo humilde; ampliando canais de participação; exercitando participação ativa; possibilitando tomada de decisão; ouvindo e implementando decisões; promovendo novas formas de intervenção das massas.
51,73% das compreensões externadas apontam para a visão de que algo é popular se expressar mecanismos que contribuam para o exercício da participação. Popular como sinônimo da própria prática.
3. POSICIONAMENTO POLÍTICO-FILOSÓFICO Algo é popular se expressar um cristalino posicionamento político-filosófico diante do mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias. Alguns indicadores: assumindo as lutas do povo; atendendo interesses da população; resgatando a visão 21,84% das compreensões externadas apontam para a de um mundo em mudanças; propondo melhoria de visão de que ser popular é posicionar-se diante do vida do povo; trazendo a perspectiva do povo. mundo, tomando um posição promotora de mudanças. 4. OUTROS ASPECTOS Foram apresentadas outras concepções trazendo as possibilidades de que ser popular passa pelo institucional. Pode ter origem no institucional, como sindicatos, associações ambientalistas, etc. Outros entendem que ser popular é uma questão de consciência. Alguns indicadores: Algo que vem de associação (comunidades de base, movimentos dos sem-terra, sindicato); uma questão de consciência.
5,71 % compreendem a questão do popular como algo que deverá estar na consciência de cada indivíduo.
Entrevistas aplicadas a vinte e oito dirigentes do Partido dos Trabalhadores, distribuídos em todas as regiões geográficas da Paraíba, e a quinze dirigentes de movimentos sociais populares. 228
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Oitenta e sete indicadores foram selecionados para as concepções de popular.
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Como se vê, popular adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as atuais exigências. Nessa perspectiva, é possível mostrar um movimento conceitual que envolva os elementos que sempre estiveram presentes nos variados momentos históricos e outros que foram sendo assimilados com o tempo. A pesquisa mostra essa dialética entre os elementos constitutivos do conceito. O termo relaciona suas dimensões constitutivas, ao mesmo tempo em que se diferencia de cada uma delas, porém mantendo-as na sua unidade conceitual. Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que se tornam uma exigência social. Algo pode ser popular se tem origem nos esforços, no trabalho do povo, das maiorias (classes), dos que vivem e viverão do trabalho. Mas a origem apenas não basta. A ação popular, inclusive, pode nascer de agentes externos, evitando-se, contudo, todo tipo de populismo que porventura possa surgir. Todavia, é preciso ter-se conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. É preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias. Ao se definirem a direção e os interesses envolvidos, entra em cena uma segunda dimensão conceitual, que é a dimensão política. Ser popular é ter clareza de que há um papel político nessa definição. Essa dimensão política deve estar voltada à defesa dos interesses desses setores das maiorias ou das classes majoritárias. Em um segundo momento, essas ações políticas são, necessariamente, reativas às formulações ou às políticas que deverão estar sendo impostas a essas maiorias. Reativas no sentido de busca de alternativas ou de estratégias que conduzam às iniciativas para um plano político geral de sociedade. Reativas enquanto geradoras de ação própria e, normalmente, original, retirada da prática do dia-a-dia, ou quando se tornam capazes de compor um novo tecido social com outros valores e objetivos. Ser popular, portanto, significa estar relacionando as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação. É estar se externando através da resistência às políticas de opressão, adicionadas às políticas de afirmação social. Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. Contudo, esse fazer político pode se expressar de várias maneiras ou através de diferenciadas metodologias. A metodologia que confirma algo como popular tem o sentido de promover o diálogo entre os partícipes das ações. Sobretudo, deve ser contributiva ao processo de se exercer a cidadania crítica. Cidadania que se constitua como um exercício do pensamento, na busca das questões com as suas dimensões positivas e negativas contidas em qualquer ente de desejo de análise. Mas a cidadania não se resume à análise. É preciso também que o indivíduo se prepare para a ação, para desenvolver metodologias que exercitem o cidadão para a crítica e para a ação. Sua direção aponta no sentido de afirmação de sua própria identidade como indivíduo, como grupo ou como classe social. Busca ainda promover as mudanças que são necessárias para a construção de uma outra sociedade, mesmo que pondo em risco a ordem para que todos tenham direitos, e assim a justiça, efetivamente, seja igual para todos. Essa metodologia, entretanto, rege-se por princípios éticos oriundos também das exigências do trabalho. Ser popular é estar dirigido por princípios voltados às maiorias. Nesse contexto, reafirma-se como fundamental o princípio do diálogo, oferecendo condições para a promoção do pluralismo das idéias. Este deve ter condições de promover princípios como a solidariedade e a tolerância, sem cair no relativismo ético, na busca incessante da promoção do bem coletivo. Esse conceito arrasta para si definições envolvendo as utopias tão necessárias para os dias atuais. Ser popular é tentar alternativas. É estar realizando o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trará os elementos já efetivados e tentativas de novas realizações. Isto só ocorre, contudo, quando da sua realização mesma, caminhando para aquilo que, efetivamente, é o necessário. A utopia da democracia tem um valor permanente e deve ser vivida sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços da realização e da não-realização, estão as suas
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contradições e suas dificuldades maiores. Entretanto, não podem transformar-se em agentes impeditivos da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de liberdade e de felicidade.
O concreto Essa busca radical cobra uma metodologia que seja voltada às perspectivas de atendimento desses sonhos. A teoria do conhecimento dessa metodologia exige que os dados contribuam para gerar um conhecimento necessário e ainda se preste para atender os interesses das classes que se libertam. Os constituintes metodológicos para o campo da produção do conhecimento podem ser os da metodologia dialética e os da teoria política da hegemonia230. A dialética a ser adotada se externa como um método que se eleva do abstrato ao concreto. De forma triádica, pode-se expressar como um movimento em torno dos seguintes vetores: o concreto real, a abstração e construção teórica de um novo concreto - o concreto pensado. Mas, como se desenvolverá a análise em uma experiência de educação ou mesmo de uma sociedade? Nesse aspecto é preciso considerar o método de análise da economia política. Em Marx, esse é um método que se inicia sempre pelo real e pelo concreto, parecendo esta a forma correta. No estudo de um país, parece ser correto iniciar-se pela população que se constitui na base e no sujeito social da produção. Porém, uma observação mais atenta, segundo ele, mostra que a população, mesmo sendo tão concreta, é, na verdade, uma abstração. Por conseguinte, esse método é falso. A esse respeito, Marx (l978: 116) afirma: “A população é uma abstração, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Por seu lado, estas classes são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. Chegados a este ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas”. Assim, o pensamento pode mover-se por dentro de suas partes do universo, apreendendo as suas interconexões e o conjunto no qual elas se fundem. Contudo, é em Limoeiro Cardoso (1990: 19) que se encontra um acompanhamento mais explícito sobre o desenvolvimento desse método, que está subdividido em seis partes: “A primeira trata do método em geral e indica um movimento que é exclusivamente teórico, passando-se totalmente no abstrato. A segunda afirma a anterioridade do concreto. A terceira propõe e resolve uma relação específica entre o real e o teórico, desdobrando as relações entre as categorias mais simples e as mais concretas. A quarta precisa a condição da produção das abstrações mais gerais a partir do desenvolvimento concreto mais rico. A quinta indica que é no último modo de produção já estabelecido, porque o mais complexo, rico e variado, que se torna possível a inteligibilidade não só dele mesmo, como também de todas as sociedades anteriores. A sexta retorna ao método, estabelecendo que a ordem das categorias deve seguir uma hierarquia teórica, em função da sua importância correlativa dentro da sociedade mais complexa, base das abstrações mais gerais e categorias mais simples, e não em função do seu aparecimento histórico”. Uma das interpretações gramscianas de hegemonia é desenvolvida por Miriam Limoeiro Cardoso em seus dois livros: La Construcción de conocimientos: cuestiones de teoría y método; Ideologia do Desenvolvimento-Brasil: JK-JQ. 230
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Para a autora, esta divisão vai possibilitar uma segunda apreensão do método, que está assim exposta: 1. Do abstrato para o concreto pensado. Na crítica ao método da economia clássica, considera-se que esta inicia sua análise a partir do concreto. Este concreto só pode ser entendido à medida que se vão descobrindo as suas determinações. A realidade social é determinada e não uma obra natural. Há relações específicas que a determinam, respondendo a uma certa causalidade. Nesse sentido, a realidade social é determinada e só é possível a sua explicação, quando também se apreenderem as suas determinações. Na suposição de que não existam determinações essenciais, a realidade é concebida como se esgotando no mundo dos fenômenos. Para Marx, no entanto, a realidade é determinada, é produto de determinações que não se encontram no mundo fenomenal. Desse modo, enquanto o pensamento não alcançar as relações profundas (não-aparentes) entre os fenômenos, apenas conseguirá descrevê-los, jamais explicá-los. O concreto real, de que partem os economistas clássicos, apresenta um sentido que não é previamente dado, mas sim “adquirido pela ação do pensamento, na abstração” (ibid.:21). Este concreto real é uma abstração. “Assim, um procedimento como este não parte do concreto, como se supõe, e sim da abstração, e não pode sequer procurar condições para reencontrar o concreto, porque supõe, enganosamente, que já o incorpora à análise desde o início” (ibid.: 21). O real, nesse sentido, se apresenta com um caráter caótico. Havendo uma ordem no real, essa ordem não pode ser considerada como já-dada. Ela só pode ser atingida pelo pensamento que a investiga, aprofundando-se no mesmo. Essa investigação, contudo, não terá respostas imediatas dos dados ou contatos do real, mas será produto da reflexão que, informada pela teoria, vai em busca da realidade externa. Possibilita-se, assim, a compreensão da formulação de Marx em que “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações”. A totalidade real se constitui, portanto, do conjunto das determinações, juntamente com o que elas determinam. Nas análises de experiências em educação popular que sejam feitas com métodos que contemplem as perspectivas empíricas, não se pode atingir essa totalidade real onde essas práticas de educação se exerçam, valendo-se daquele método. A partir de uma análise que procede do real, não se consegue reproduzi-lo enquanto totalidade significativa. Este traz, em si mesmo, um impeditivo para tal conhecimento. Em Marx, segundo a autora, há uma proposta de procedimento novo: “do abstrato (determinações e relações simples e gerais) ao concreto (que então não é mais „uma representação caótica de um todo‟ e sim „uma rica totalidade de determinações e de relações diversas‟)”. O método de Marx vai do abstrato ao concreto. “E o mais importante, este concreto é um concreto novo, porque pensado. É um concreto produzido no pensamento, para reproduzir o concreto real (as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento)” (ibid.: 23). 2. Anterioridade do concreto. O movimento de produção/reprodução do concreto, no caminho de volta, e o que constitui esse concreto a que se chega precisam ser explicitados, considerando que o concreto é concreto porque se constitui em síntese de múltiplas determinações. “O caráter de concreto está estreitamente vinculado ao de determinação. O que conta de fato são as determinações. Atinge-se o concreto quando se compreende o real pelas determinações que o fazem ser como é” (ibid.: 24). O concreto é síntese de muitas determinações e, assim, é uma totalidade: “unidade determinante/determinado”. Esse processo aparece, então, no pensamento como expressão de uma síntese, porquanto é unidade do diverso, como resultado e não como ponto de partida. Ele não se constitui simplesmente de um dado, mas é o resultado de um elaborado processo de pensamento. “E se esse processo começa cientificamente no abstrato, seu verdadeiro ponto de partida é o real. Está dito, explicitamente, que o verdadeiro ponto de partida do pensamento é o real, que é o ponto de partida da percepção e da representação. O papel do real para o pensamento e para o conhecimento não é, pois, eliminado como se, por ser o abstrato o campo próprio do teórico (em que se move o pensamento para produzir conhecimento) para ele, teórico, o real não existisse senão sob a forma pensada. Uma coisa é afirmar que o concreto só faz parte do teórico como concreto pensado; outra coisa diferente é afirmar que o concreto real não se relaciona com o teórico (abstrato), sob a alegação de que o teórico só pode afirmar do concreto o que sabe dele, isto é, o que tem precisado sobre ele. A perspectiva seguida por Marx é a que
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ele explicita, de que o concreto aparece no pensamento como resultado, embora seja o verdadeiro ponto de partida. O pensamento parte do concreto (real), ainda que só se torne verdadeiramente científico quando retoma o concreto, pensando-o, a partir do abstrato (suas determinações atingidas pelo pensamento originado no concreto”(ibid.: 25). Nesse momento, tem-se em Marx, segundo Limoeiro Cardoso, um triplo movimento. O primeiro parte do real, porém se afastando cada vez mais dessa realidade, através da abstração, atingindo conceitos mais simples desse real. O segundo é o início da atividade científica propriamente dita, onde se tem como caótica a representação do real. Nesse movimento, não se parte do real ou de sua representação imediata caótica e abstrata. Parte-se dos conceitos mais simples produzidos pelo movimento anterior. Esse movimento seria a busca pela especificação das determinações gerais e simples, configurando um movimento de reconstrução teórica. Finalmente, o terceiro movimento é o da construção teórica de reprodução do concreto. De forma simplificada, os movimentos podem ser representados, através dos seguintes vetores básicos:
1o) 2o)
real (concreto) abstrato
______________ abstrato
_________________
abstrato
concreto 3o)
abstrato
_________________ concreto (pensado)
Para a autora, “com o segundo movimento se iniciaria o que Marx aponta como método cientificamente correto (ibid.: 27). Dessa forma, o conhecimento científico do real tem início com a produção crítica das suas determinações. Essa produção se dá ao nível do teórico, das categorias. Porém, constituindo-se como crítica da produção anterior, ela só se realiza quando da existência de um desenvolvimento teórico “razoável e disponível”. “É daí que o método para produzir esse conhecimento se eleva do abstrato ao concreto” (ibid.: 32). 3. Relação categorias/real. Foi abordada, até agora, a afirmativa de Marx segundo a qual os conceitos mais simples permitem chegar a uma inteligibilidade do real. Limoeiro Cardoso supõe também a exposição desses conceitos a partir de uma abordagem que parta do próprio real. Acrescente-se que esse real, como ponto de partida, também é uma abstração das determinações que se expressam naqueles conceitos simples. Além disso, afirma a existência do real fora do pensamento, que é anterior a ele. Estabelecido o conceito, na primeira parte da discussão do método, e o real, na segunda, busca-se a relação existente entre ambos, na terceira. Nesse sentido, a autora salienta que ”para produção teórica, o pressuposto básico é que ela seja comandada pelos conceitos mais simples, para ser possível a reprodução do concreto no pensamento” (ibid.: 32). Além disso, dando-se sustentação a esse pressuposto, tem-se o mais geral - o da exterioridade e independência da realidade - a tese materialista fundamental231. As categorias mais simples, para a autora, não se apresentam em Marx com existência independente, sem nenhuma característica histórica ou natural. A exigência fundamental de sua existência está na admissão do concreto vivo, isto é, expressando-se como relação unilateral e abstrata Salientam-se, então, algumas questões suscitadas, tais como: 1) o motivo por que as determinações do real são formuladas através de conceitos simples; 2) a simplicidade originária dessas categorias; 3) o fato de as categorias simples terem ou não existência independente e anterior às das mais concretas; 4) a evolução histórica do real, que são questões postas e analisadas por Limoeiro Cardoso (1990: 32-44). 231
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de um todo concreto já dado. “É sobre ele que se erigem as categorias, mesmo categorias as mais simples, que não são capazes de captá-lo no plano do teórico a não ser parcialmente, unilateralmente” (ibid.: 33). Quanto à discussão do simples originário, empreendida por Marx, Limoeiro Cardoso vê um movimento em três dimensões. A discussão passa por uma análise de que as categorias simples têm ou não existência independente e anterior às categorias mais concretas. O primeiro momento desse movimento consiste em que “as relações mais simples sempre pressupõem relações mais concretas - relações estas expressas em categorias mais concretas, no sentido de que se referem a um grau mais baixo de abstração” (ibid.: 34). As categorias simples expressam, assim, relações simples, e estas não existem antes de relações mais concretas, expressadas também em categorias mais concretas. Uma análise que, convém salientar, não se dá apenas no campo de categorias teóricas. O segundo momento se dá de forma mais complexa, a partir da exemplificação de Marx, em que a posse se torna a relação jurídica mais simples. Acontece que não há posse sem a família, superada apenas quando se inicia com a distinção que é feita entre posse e propriedade. “A posse é uma relação simples, que exige uma relação mais concreta, como a família”. Aí também se insere, para superação dos questionamentos, a questão da evolução histórica real, influenciando tanto na diferenciação como na produção das categorias. É importante, portanto, se entender que “a categoria mais simples exige um certo grau mínimo de desenvolvimento para que possa seguir a relação mais simples que ela exprime” (ibid.: 37). Apresenta-se, até agora, uma contradição. No primeiro momento, o mais concreto é anterior ao mais simples; no segundo, o mais simples se torna anterior ao mais concreto 232. Ao discutir a questão, a autora mostra que esta é uma contradição, mas que não é produzida por pura negação. O segundo momento não é pura negação do primeiro; é outro momento. No primeiro, o concreto é real, é o dado.
“As categorias mais simples são as mais abstratas(abstrações simples). A relação proposta é uma relação real, com sua contrapartida pensada: família - posse; comunidade de famílias propriedade. No segundo momento, o concreto pertence ao plano do pensamento. A relação dinheiro e capital é uma relação entre categorias pensadas. O real aparece relacionado com cada uma destas categorias através dos diferentes graus do seu desenvolvimento e da sua complexidade” (ibid.: 39). Assim, pode-se entender que é numa sociedade mais complexa, em experiências também mais complexas, onde a categoria mais simples se apresenta mais desenvolvida teoricamente. Em sociedades com grau de desenvolvimento menor, a categoria mais simples também existe, porém é parcial no sentido de não impregnar “todas as relações do setor a que se refere”. Este se constitui no terceiro momento, onde se analisa a categoria simples, como o dinheiro, por exemplo. De forma sintética, a autora sistematiza esses três momentos da seguinte forma:
“1o) concreto
simples
- relações mais concretas são anteriores a categorias mais simples; - fundamento: relação concreto/abstrato (abstração simples).
2o) simples
concreto ( complexo)
- categorias mais simples são anteriores a relações mais complexas (expressas em categorias mais concretas); - fundamento: relação simples/complexo (concreto).
3o) complexo (concreto)
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simples
Esta aparente aporia é resolvida em Miriam Limoeiro Cardoso (op. cit.: 38-41).
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- Fundamento: a categoria mais simples só tem seu desenvolvimento completo numa sociedade complexa, enquanto que as categorias mais concretas podem ter seu desenvolvimento completo anteriormente” (ibid.: 42).
Contudo, as categorias teóricas e o real se relacionam. Fazem surgir a constatação de que o simples não é a origem. As categorias mais simples exigem um substrato mais concreto, isto é, uma certa organização social, um todo vivo. Também se observa que o processo histórico real vai do mais simples ao mais complexo. Aqui, e nesse sentido, o mais simples pode preceder o mais complexo. Contudo, é no mais complexo - completo - que o simples pode estar mais desenvolvido. Agora, ele pode ser pensado de forma teórica e mais completa. 4. Produção das abstrações mais gerais. Identifica-se uma quarta parte, no texto da autora, ao se descobrir que é na sociedade mais complexa que a categoria mais simples se completa. É aí também onde se alcança o elo específico entre o real e o conceito. Ela conclui: “O abstrato de que se deve partir para começar a produção do conhecimento, que se fará no concreto pensado, já não depende só da produção teórica anterior, que se utilizará, criticando. Estas produções teóricas e o movimento que as produz despontam numa íntima conexão com o real e o seu movimento próprio” (ibid.: 44). Pode-se entender de que forma a categoria trabalho é uma categoria simples. Ora, a idéia de trabalho é bastante antiga, contudo, como categoria econômica, é recente. O trabalho é a relação daquele que produz com o produto. A categoria, entendida como trabalho em geral, já estava presente em A. Smith. O trabalho em geral, gerador de riqueza, retira deste qualquer determinação possível que possa conter. Tem-se, desde aí, o trabalho em geral, indo além da formulação anterior, econômica, de trabalho manufatureiro, comercial e agrícola. Como trabalho em geral, não se pensa em particularidades da relação entre produtor e produto, mas nas formas de trabalho no seu caráter comum. Para a autora (ibid.: 45), “aparece aqui a primeira especificação precisa da categoria simples: a sua generalidade. O trabalho é uma categoria simples, quando ele é pensado como trabalho em geral, como trabalho sem determinações, como trabalho, simplesmente”. É no atual estágio de sociedade que se vive com a diversidade de formas de trabalho, uma sociedade mais complexa, onde a categoria simples completa o seu desenvolvimento. A categoria trabalho, em sendo mais simples, se torna, pela diversidade de formas de realização, mais geral. E isso só é possível na sociedade mais complexa. A sociedade que possibilita a existência da categoria mais simples, no caso, o trabalho em geral, é aquela em que concretamente existe o trabalho em geral. A sociedade mais complexa possibilita o deslocamento do trabalhador, mesmo especializado, para outro ofício. As experiências autogestionárias mais complexas é que também possibilitarão maior contribuição teórica, inclusive, para a educação popular. Dos movimentos em educação popular de maiores complexidades sairão, assim, as bases de novos elementos para uma formulação teórica desse tipo de educação, possibilitando a sua compreensão em momentos passados. Nesse tipo de sociedade, tem-se o trabalho em geral, como a categoria mais simples, mais abstrata, criada na sociedade mais complexa. Esse desenvolvimento teórico “não depende exclusivamente da capacidade e da disponibilidade teórica. Em última instância, a produção teórica deriva de condições reais” (ibid.: 46). As categorias mais simples detêm as abstrações mais gerais. São definidas pela simplicidade, pelo alto grau de abstração, pois são úteis a todas as „épocas`, exatamente, pela sua generalidade. 5. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. A análise feita até agora apresenta o método como um caminho, o papel do abstrato (conceito simples, determinação) na reprodução do concreto no pensamento, a relação da abstração com a realidade e a importância da fase do desenvolvimento da realidade social para a produção das abstrações mais gerais. Esta última incorpora, em si mesma, a própria história. A teoria desenvolvida aponta para a educação ou para a economia numa perspectiva histórica, residindo nela também a determinação, em última instância, da totalidade social, que é uma totalidade histórica. A análise dessa totalidade remete, por sua vez e necessariamente, para o conhecimento da educação ou da economia (no caso), considerando a história um estudo do determinante da totalidade social. Convém destacar que a sociedade em estudo é a sociedade burguesa. O presente significa não o contemporâneo ou o que está ocorrendo, mas “o último modo de produção completo, o
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modo de produção capitalista” (ibid.: 53). Portanto, é nesse tipo de sociedade, mais complexa, onde é possível a criação de categorias as mais simples e, conseqüentemente, mais complexas e mais abrangentes, possíveis de serem utilizadas em análises de sociedades menos desenvolvidas. 6. A ordem das categorias. Esta é a última parte do texto do método. É o momento em que se trata do plano de análise e da ordem das categorias nesse mesmo plano. Nessa fase, a questão é como fazer essa análise e por onde começá-la. Convém destacar que a realidade concreta existe independentemente de estar sendo pensada ou mesmo depois de ser pensada. Sua independência a localiza fora do espírito, caracterizado por atividades apenas teóricas. As categorias criadas têm todas, como base, o pressuposto da anterioridade da realidade, mas destas “não são mais que parciais em relação a ela”. As categorias não conseguem, senão de forma unilateral, dar conta do real em toda sua completude. Isso exige organização dessas categorias para que se possa chegar ao conhecimento mais abrangente e mais profundo da realidade. E aí de novo surge a questão: qual é o princípio organizador dessas categorias? Limoeiro Cardoso busca resposta para a questão apresentando os diferentes modos de produção, tentando mostrar como a agricultura, num determinado modo de produção, se constituiu numa atividade principal. Conseqüentemente, a renda fundiária e a propriedade vão se constituir em categorias que expressam essas dominâncias. Na sociedade burguesa, por sua vez, o capital é ponto de partida e de chegada de tudo, e se estabelece, no capitalismo, como categoria principal diante da renda fundiária. Finalmente, afirma a autora: “A ordem das categorias, portanto, responde à ordem de importância relativa das relações que expressam, importância que é relativa à capacidade das relações em determinar a organização da produção. Tem precedência teórica a categoria que expressa as relações mais determinantes” (ibid.: 54). Com esse método, Marx analisou a sociedade burguesa. Desenvolveu uma visão metodológica que ajuda a definição por um exercício de produção de conhecimento, em condições de oferecer dados para as mudanças que estão sendo construídas. Como método geral, tem início no campo das abstrações (as determinações mais simples), reproduzindo essa sociedade no pensamento. Chega às determinações, teoricamente, ao realizar a análise crítica de conceitos gerados na empiria da economia clássica. Torna também possível a análise na educação, na marcha para uma educação comprometida com mudanças. Esta é uma crítica que apresenta o confronto dos conceitos com a realidade. Há uma suposição primeira, presa à exterioridade e à anterioridade do real, e uma outra, que é a mutabilidade histórica. Na busca das mudanças das condições históricas, são produzidos determinados conceitos. Conceitos simples - os mais abstratos - só são possíveis em sociedades mais complexas – as experiências mais abrangentes. E ainda, a ordem dos conceitos trabalhados não é a do seu aparecimento histórico, mas sim uma ordem significativa para a sociedade em estudo, tendo na hierarquia teórica o princípio que rege essa ordem. Um trabalho que procura realizar um esforço teórico na busca de atuais e sustentáveis categorias para a compreensão de mudanças também em educação, estando politicamente definidos para dar impulso às transformações mais profundas – uma educação popular, necessariamente.
O trabalho O trabalho possibilita o caminho das abstrações que conduz à definição de categorias do real, buscando aquelas categorias mais simples, porém com possibilidade de maiores explicações para a situação em que se encontram a realidade e as situações de determinação, onde estão acontecendo atividades de educação. O trabalho se constitui como elemento constante na dimensão do popular, sendo o fazer educativo, efetivamente, o trabalho em si mesmo. Na educação voltada aos interesses dos trabalhadores, o trabalho intelectivo dos atores dessa educação percorre o caminho da produção de abstrações mais gerais com condições explicativas da situação de vida daquela comunidade ou grupo social.
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Com essas abstrações mais gerais, torna-se possível a compreensão da situação do momento em que se vive, possibilitando além disso maiores e melhores explicações históricas das determinações de cada momento histórico dos objetos de estudo. Assim, torna-se possível a definição daqueles instrumentos teóricos, das categorias teóricas que possibilitam, finalmente, definir-se de que forma montar a análise e por onde começá-la, buscando resposta às questões levantadas. É um processo de trabalho que vislumbra a produção do conhecimento social e útil, capaz de tentar superar a realização do trabalho alienado. Este trabalho social gera um produto que também apresenta suas contradições, mas que se constituirá, sobretudo, como uma mercadoria social, na medida em que é produzida por aqueles que realizam a educação de cunho popular. É um produto, seja conhecimento teórico ou tecnológico, que precisa ser gerenciado pelos produtores principais, tornando possível a socialização desse produto, caracterizando esse momento como o da devolução das análises ou outros produtos culturais aos seus produtores. Vive-se, nesse momento, a apropriação dos bens culturais, por meio desse trabalho intelectivo ou técnico. Isto possibilita um novo agir sobre a realidade, gerando conhecimento nas ações pedagógicas, aprimorando, ainda mais, a capacidade de aprender desses atores, buscando dimensões outras de facilitação dessa aprendizagem, elaborando outras teorias em educação, e ainda desenvolvendo as suas habilidades políticas para intervirem na elaboração da própria política da educação com novas normas e orientações pedagógicas. Um trabalho que, do ponto de vista ontológico, orienta-se para a realização das necessárias transformações, buscando-se a superação de processos de exclusão e promotores de injustiças. O trabalho, enquanto categoria que embase a educação popular, se concretiza nas ações do coordenador de grupo de educação, dos educandos e por todos, como construção teórica de categorias que os instrumentalizem para análises sobre a realidade e as questões comunitárias. Um trabalho que irá se expressar, também, como um direito e um dever das pessoas. As necessidades de transformação contidas na ação pelo trabalho são expressão das necessidades da comunidade ou da população para gerar riquezas para todos. O trabalho como condição básica do existir humano – a produção de sua sobrevivência. Com essa dimensão, o trabalho provoca, de forma intrínseca, a necessidade de participação na criação e na transformação do meio ambiente, da vida, da história. Do ponto de vista econômico, possibilitando gerar ocupação para todos, promove a subsistência também de todos. Trabalho como expressão de apoderamento dos bens culturais produzidos pela humanidade. A posse de bens culturais, de forma geral, vai favorecendo a caminhada pela igualdade, liberdade e autonomia das pessoas.
A autonomia/liberdade/igualdade Autonomia pode ser entendida como a condição de cada um de poder governar-se por si mesmo e de forma independente233. Interliga-se com a liberdade, tendo em Kant o significado da capacidade que o indivíduo tem de agir por si mesmo. Como liberdade, autonomia pode traduzir um sentido político. É de Spencer a conhecida formulação de que “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”. Há, de forma explícita, uma delimitação para o exercício da autonomia, traduzida pela limitação direta do exercício da liberdade. Liberdade de poder exercer os direitos elementares da pessoa, como o de expressar o seu pensamento de forma oral ou escrita. Isto, contudo, traz em si mesmo a responsabilidade pela ação ou as conseqüências dos atos. Particularmente a forma oral, em que a educação popular se realiza, já lembra Freire, tem o papel de quebrar o silêncio incrustado nas pessoas. Autonomia e liberdade em educação popular adquirem uma dimensão particularmente filosófica, trazendo a discussão de sua realização em sentido absoluto, total. É possível a sua efetivação in totum ? E os condicionantes sociais, políticos, econômicos, biológicos, psicológicos que a limitam? Ora, Sartre encontra no ser humano a possibilidade de realização da liberdade. Para ele, “o homem é livre - porque somos aquilo que fazemos do que fazem de nós”. O ser do homem e o seu ser livre não apresentam diferenças. São, ao mesmo tempo, seus constituintes e seus constituídos. 233
Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia. 6a. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
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Pode-se vislumbrar na autonomia um sentido de pensamento. O direito inalienável que a pessoa traz consigo de externar o seu pensamento, em sua forma estrita. Isso mostra a luta da pessoa pela liberdade de expressar o seu pensamento. Sempre se pode lembrar Voltaire: “Não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizê-lo”. É a expressão, possivelmente, mais elevada da clareza e da necessidade da liberdade de pensamento do outro. Assegurar essa liberdade ao outro é a garantia do desejo de liberdade para o eu, um desejo intrínseco promovido nas metodologias de educação popular. Autonomia, como liberdade de, traz consigo um sentido também ético. Ética aqui entendida como expressão do direito que tem a pessoa de agir sem constrangimento de qualquer força externa. Liberdade esta tão reivindicada e defendida por René Descartes, que na educação popular se concretiza pela promoção do diálogo.
O diálogo O diálogo como componente educativo faz parte da tradição grega, presente nos exercícios filosóficos de Platão, por meio de seus conhecidos diálogos234. Compõe igualmente, nos dias de hoje, o cerne do pensamento harbemasiano, constituindo-se no elemento ético básico de toda a formulação e exercícios educativos freireanos. Como um exercício teórico, torna-se prático na educação, tendo sua relevância como um projeto político-filosófico por meio da ação educativa, marcantemente, em processos de educação popular. É mais que conhecido o limite da natureza e da inteligência de cada pessoa, impossibilitando a visão global de tudo, sozinha. Mas cada um pode se comunicar e tomar conhecimento das idéias e sentimentos – sofrimentos, divergências e perspectivas - dos demais, tornando possível a discussão ou momentos educativos de ensinamentos e de aprendizagens. O diálogo, como uma capacidade humana de perguntar e responder ao outro, assegura essa possibilidade. Historicamente, o diálogo é apresentado com Sócrates ao introduzi-lo como técnica de perguntar e responder, à procura da verdade. Como arte de dialogar, adquire a metodologia do confronto de perspectivas entre aqueles que dialogam, definida a partir de critérios de coerência lógica. Originariamente, a arte do diálogo (diá-lógos) é a própria dialética. Vê-se que o advérbio diá que, entre outros, assume valores espaço-temporais (através, entre, durante), causais, modais (com), bem como de estado ou condição. Como prefixo verbal, diá também adquire uma variedade de significados, entre os quais divisão e separação. Como base para a dialética, podem ser encontradas expressões várias como dialégein para significar, entre outras coisas, escolher, selecionar ou mesmo sua forma derivada dialésgesthai com a significação de conversar com, raciocinar com. Constitui-se ainda do verbo légein, que é rico de sentidos, vários deles convergindo para o significado de escolher cuidadosamente, contar, ou mesmo ainda a expressão dialégein com a significação de desenvolver (de forma completa) um discurso. De légein a lógos, de dialégein a dialégesthai (um agir que originará diálogo), há um processo de superação e manutenção de conceitos anteriores que irão fundamentar a análise da unidade entre pensamento e palavra, da unidade entre um ato comunicativo e um ato reflexivo, da intersubjetividade e subjetividade ou mesmo a busca de um horizonte que fundamenta a relação entre aquilo que se “diz” e aquilo que se “é”. Com essa origem, dialética se confunde com a descoberta grega do lógos e o seu exercício, em Platão, é o próprio ato de filosofar. O diálogo, em Platão, se mostrará como elemento constituinte da própria estrutura do pensamento e distanciada da formulação sofística que o tem, apenas, como o principal instrumento de poder político, demarcando, inclusive, pela diferença entre a escrita e a palavra, o campo da linguagem. É, ainda, em Platão, um pensamento que se afirma com a ética na política. Diálogo, portanto, como fundamento desse espaço privilegiado à aprendizagem e ao exercício ético. As experiências em educação popular, tão externadas nas obras de Paulo Freire, conduzem à legitimação dessa ética, sendo marcante também no pensamento de Habermas. Diálogo como espaço à educação expresso pela relação intersubjetiva e estrutura do pensamento. Uma atitude que tem 234
A obra de Platão chegou, até nós, por meio de seus Diálogos.
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desafiado as relações humanas e o seu exercício educativo, considerando que o percurso do assumir e do experimentá-lo abre sempre o risco de o sujeito perder o seu mundo, mas que, na verdade, está ganhando-o na abertura, pelo mesmo diálogo, para o outro, educando-se no outro e educando-o, também. Nas práticas em educação popular, renascem dimensões filosóficas que compuseram a formação do homem grego, o marco ocidental para a educação, tendo em Sócrates o seu maior fenômeno pedagógico que constitui o diálogo como a marca educativa ocidental, estando na essência dos exercícios educativo-políticos e populares. O diálogo, em educação popular, provoca processos de reconstrução crítico-hermenêuticos constantes quando dos dizeres e fazeres que vão se externando nas obras de seus próprios partícipes. É hermenêutico, pois se trata de um exame interpretativo daquilo que vai sendo gerado no ato educativo e adquirindo dimensão didática à medida que se promove a escrita. No aspecto filosófico, essa prática se torna crítica enquanto dialética, ao se ter no diálogo o percurso ético, fundamentado na idéia da autonomia do sujeito ou uma ética do discurso, presente no pensamento habermasiano e que permeia o pensamento freireano. Habermas elege como tema central de suas análises a racionalidade da sociedade atual, definindo-a como razão instrumental235, expressão de meios para se alcançar algum fim determinado. Sua análise mostra que tanto o desenvolvimento técnico como a ciência, voltada à aplicação prática e como produto dessa razão instrumental, são responsáveis pela perda da autonomia do sujeito, visto que está submetido às regras dessa dominação técnica. A crítica, para Habermas, portanto, terá um papel de superação dessa situação estabelecida pela razão instrumental, no sentido da recuperação da dimensão de interatividade humana e de uma outra racionalidade não instrumental, baseada no agir comunicativo entre sujeitos iguais, livres e em condição de sua emancipação em relação à dominação técnica. Sua crítica à objetividade da ciência e à verdade do conhecimento científico passa pela redução do conceito de razão no positivismo, meramente, como procedimento metódico e lógicoformal, considerando que a razão instrumental não se aplica à moral e à prática humana. Estas serão, necessariamente, as dimensões que deverão estar presentes na razão dialógica e comunicativa, estabelecendo uma teoria da intersubjetividade comunicativa. A impossibilidade da ação emancipatória entre os sujeitos, produzindo relações assimétricas na sociedade, é realizada pela ideologia. O desmascaramento dessa distorção será promovido pela crítica, ao retomar, assim, a razão emancipatória. Habermas estabelece uma teoria da ação comunicativa que tem no diálogo um esteio para sua realização. A razão comunicativa, portanto, só existe pelo processo dialógico estabelecido entre os atores em uma mesma situação. Uma razão pautada por interações espontâneas, dando, contudo, maior rigor ao discurso. Razão como procedimento argumentativo, quando dois sujeitos se põem em acordo com a verdade, justiça e autenticidade. A verdade, assim, vai se erigindo, de forma dialógica, seguindo a lógica do melhor argumento. Uma razão que promove o surgimento da significação das coisas, pessoas e relações consensualmente elaboradas e respeitadas, resultantes do diálogo entre o ego e o alter. Diálogo que está presente na obra de Paulo Freire, tomando forma na sua visão de liberdade e de educação. A sua pedagogia não enaltece aquele que ensina (o professor), mas aquele que coordena as atividades de docência, promovendo a prática do diálogo. O diálogo é a condição essencial de sua tarefa de coordenador que se afirma sem imposição e cuja condição de aprendizagem associa-se à tomada de consciência da situação vivida pelo educando. Esta situação se concretiza à medida que se desenvolve o diálogo do homem com o homem. Assim, ele constrói a liberdade como um modo de ser e define o seu próprio destino, só podendo ser sentido na história dele mesmo. A educação popular, pelo diálogo, caminha para a superação das formas existentes de opressão, uma pedagogia emancipatória, presa a um juízo existencial onde se faz necessária a liberdade da prisão da ignorância e da inconsciência. Sua tarefa educativa tem como ponto de partida o assumir a liberdade e a crítica como o modo de ser do homem. Uma pedagogia orientada pela interpretação do mundo, considerando que todos se educam pelo diálogo, intersubjetivamente. A dialética e hermenêutica, tão presentes e necessárias no exercício educativo popular, historicamente, têm se apresentado como opostas, sendo isto, porém, apenas de forma aparente. Nas práticas educativas populares, é fácil de se ver que a dialética, enquanto crítica, exige o dado, o espaço 235
Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
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histórico e o sentido. Este irá constituir-se como elemento que conduz à interpretação do mundo vivido, na visão habermasiana. Ora, a crítica, ao exigir a interpretação, direciona a dialética para a hermenêutica. Pela hermenêutica será apresentada a identidade do algo em debate e pela dialética será acentuada a sua diferença e o seu contraste. Nesta discussão do diálogo como elemento de origem, a interpretação possibilitada pelo instrumento hermenêutico, diante dos vários sentidos e pelo instrumento da crítica, provoca possíveis rupturas ético-filosóficas que são, necessariamente, educativas e, fortemente, da educação popular. Em Platão, o diálogo vai se apresentando como um caminho (método – meta + hodós) sempre aberto para uma seqüência de argumentação ou novas definições. E qual o método? Um procedimento sempre dicotômico (dialético) ou de divisão em duas partes; em seguida, uma das partes será tomada para nova definição, que novamente será dividida, dando continuidade a este procedimento. Este método duplo conduz, de início, a uma técnica de argumentação que procura desmontar os conhecimentos prévios, tidos como verdadeiros e definitivos daquele que está sendo questionado pelo mestre, através da ironia. O segundo momento – a maiêutica - decorrente do primeiro, prepara o discípulo, por meio de perguntas, para que o mesmo traga à luz a verdade que há dentro de si mesmo. Contudo, é pela anámnesis (reminiscência) que se constitui a condição (subjetiva) desse trânsito, exigindo o diálogo para a sua concretização. Maiêutica, portanto, como um movimento dialógico para se chegar à verdade, um caminho do „eu‟ para a própria interioridade. Este procedimento dialogal, portanto, conduz a educação para as bases, necessariamente, de uma episteme (ciência), distanciando-se do plano instável da doxa (opinião). Assim, Platão, com a herança socrática, marca a direção da luta crítica (dialética) com as formulações educativas de seu tempo e com a tradição histórica de seu povo – com a sofística, a retórica, a matemática, legislação e Estado, astronomia, medicina, poesia e música. Procura encontrar o caminho para essa meta ao apresentar o problema da essência do saber e do conhecimento, além de outras temáticas presentes, até hoje, no processo educativo humano, tais como: a virtude, a política236, um novo saber237, o amor, a justiça e a escatologia. Em Platão, é razoável a compreensão de que a estrutura interna do pensamento é dialógica. O pensamento, o discurso ou a razão se tornam a mesma coisa, expressos por um diálogo silencioso da alma, exigindo a possibilidade de transição da esfera da subjetividade para a da intersubjetividade. Esta possibilidade se concretiza a partir deste mesmo diálogo da alma com ela própria. É o diálogo se expressando como um agir (dialégesthai) que acontece internamente no pensar. Assim, passa a oferecer as condições de realização de si com o outro, estando incluído na ação concreta do falar. Do ponto de vista hermenêutico, a partir dessa forma literária do diálogo, há uma necessidade de conexão do escrito com o oral. No oral, está presente o contexto e este contém o outro em condição de ouvir, passando a existir uma relação intersubjetiva, estabelecendo uma ética do ouvir. Expressa-se, dessa maneira, uma unidade na obra platônica ao tematizar o diálogo, que é concreto e um processo intersubjetivo. Este processo, de forma dialética, significa que o eu remete-se ao outro e, ao se remeter ao outro, volta-se a si mesmo. Há, em Platão, um diálogo interior, aquele que a alma realiza em si mesma, e um diálogo exterior, em relação ao outro, que são dimensões de um mesmo processo, isto é, o caminho da ascensão da alma em direção ao mundo das idéias. A ação pelo diálogo exterior abre a perspectiva de surpreender-se de forma dupla, em relação a si e ao outro, enquanto se pergunta ou se responde. Este processo dialógico abre a condição de tornar possível a aprendizagem consigo mesmo através do outro (a maiêutica). Isto também põe em exame a formulação de que “sei que nada sei”, abrindo a condição de se estabelecer como um princípio ético, implicando uma postura de ouvir. Mas, este pode se apresentar como um princípio epistêmico, enquanto uma ascensão dialógica ao mundo das idéias. Esta é uma forma de ver essa ascensão com o outro. Abre-se um caminho dialético que se realiza pelo diálogo em A política será depois “virtude” cuja possibilidade de ser ensinada é o tema central de que trata Ménon (um diálogo de Platão). 236
O „diálogo‟ Mênon ou Da virtude insere-se na obra: Platão – diálogos: Mênon – Banquete – Fedro. Com tradução de Jorge Paleikat, com notas de João Cruz Costa e estudo bibliográfico e filosófico de Paul Tannery. Ediouro/81271. 237
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direção à verdade. Promove, dessa forma, uma visão do outro não mais como uma sombra do não conhecimento. Considerando a estrutura interna do pensamento como sendo dialógica, em Platão, a relação dialógica é uma relação intersubjetiva do pensamento e tem como base a dialética. Assim é que se estabelece o diálogo como a base dos alicerces da razão política. A perspectiva platônica pode ser interpretada como denunciadora, ao considerar uma autoconsciência marcada pelo conflito da idéia de autonomia do sujeito e uma ética do discurso, apoiada no diálogo pela dialética. E esta é uma ética que tem seus fundamentos em princípios da ação comunicativa - da intersubjetividade. Este reino da intersubjetividade está, hodiernamente marcado em Harbermas, em sua teoria do agir comunicativo238. Em Habermas, a razão comunicativa expressa a interseção do mundo objetivo das coisas, do mundo social das normas e do mundo subjetivo dos afetos. Assim, resgata o diálogo exigido na esfera social da cultura. Questiona valores e normas. Torna possível a reconquista do terreno da razão instrumental dominante, ao restabelecer a capacidade da ação comunicativa para todos. É a partir dos conceitos de razão comunicativa e de mundo da vida que Habermas aposta num processo educativo pela comunicação, tendo no diálogo a base que pode conduzir a um mundo melhor, em que as relações humanas e sociais sejam mais transparentes e menos violentadoras. Propugna por uma práxis de um novo tipo que procura “elevar a humanidade à razão científica universal, de conformidade com normas de verdade, transformando-a numa humanidade renovada a partir de seus fundamentos” (Habermas, 1975: 294). Uma teoria social que se reafirma por uma reinterpretação das necessidades históricas e práticas, dos fins, dos valores e das normas, orientando-se para uma práxis emancipadora. Contudo, este exercício praxeológico intersubjetivo, presente o diálogo, no campo da educação, é realizado na vasta experiência de Paulo Freire. Para Freire (1983a), o homem existe no tempo. Está dentro, mas também está fora, enquanto herda, incorpora e modifica esse mundo. O homem e o mundo estão impregnados de um sentido conseqüente. Sua presença no mundo não se dá de forma passiva. Não se reduz apenas a uma das dimensões da vida, seja a natural ou a cultural. A sua ingerência não é de expectador. Acontece em ambas as dimensões. Volta-se à realidade na busca de realizar-se pela transformação, tanto de si mesmo como da natureza. Este nível de consciência se destaca, segundo Freire (ibid.: 61), por substituir explicações mágicas por princípios causais e: “Por procurar testar os „achados‟ e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência de responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a argüições”. Há, ainda, uma perfeita relação entre o diálogo e a intersubjetividade. O diálogo só acontece entre sujeitos. “O diálogo é um bom ponto de partida e um bom ponto de chegada para recuperar a igualdade. Nas relações face a face – e as relações entre educador e educando o são – a recuperação da democratização reside em poder estabelecer uma ação comunicacional que vise construir a identidade do oprimido e posicioná-lo na luta pela libertação” (Russo et al. 2001: 120). Ora, sem identidade, não há condição de libertação por parte do oprimido. Sua identidade é componente do mundo da vida, sua exterioridade, a razão do outro, tendo aí o início do caminho para a liberdade. Liberdade que se constituirá como elemento utópico, pois se afirma num pensamento que virá sem um receituário definido e sem a inexorabilidade histórica. Habermas, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estúdios prévios. Madrid: Ediciones Cátedra, S.A, 1997. 238
__________. Teoria de la acción comunicativa II – Crítica de la razón funcionalista. Madrid: Taurus ediciones, 1987.
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Com o estabelecimento da dialogicidade como fundamento em sua pedagogia popular, Freire (1983) cobra um diálogo verdadeiro para que haja a promoção de valores éticos no processo educativo. Com isto, admite que a sua existência se dará quando firmada a condição de, também, pensar de forma verdadeira. “Finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade” (ibid.: 97).
CONSIDERAÇÕES Como expressão de síntese, é possível vislumbrar-se desta discussão, a partir das várias experiências históricas e outras mais recentes como os exemplos citados - em particular o da Usina Catende - que a educação popular pode ser abalizada na perspectiva de um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios e experiências que, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Mesmo expressando uma unidade, é um sistema aberto que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, a educação e o popular e vice-versa. Um sistema aberto de trabalho educacional detentor de uma filosofia que, por sua vez, pressupõe as seguintes dimensões: uma teoria do conhecimento, metodologias dessa produção de conhecimento, conteúdos e técnicas de avaliação, sendo sustentada por uma base política. Essa teoria do conhecimento tem como pressuposto inicial a realidade e um fazer história compreendido à medida que surgem novos temas ou que se aprendam e realizem valores inéditos. História quando o homem faz novas formulações, mudando as suas maneiras de agir, pensar e relacionar-se com os demais humanos. Vai se constituindo como um trabalho humano, em que se dá em e pela prática do indivíduo, enquanto humaniza a natureza e naturaliza a dimensão de ser humano. A sua verdade exige o debruçar-se sobre a própria realidade, sob a forma de atividade prática. Detém, por sua vez, uma metodologia capaz de possibilitar que cada um se transforme em protagonista de sua própria história, à medida que seja útil à organização de seus pares, sistematizando e reelaborando os conhecimentos de sua classe. Presta-se para o desenvolvimento das habilidades e de atitudes como: orientar, dirigir e organizar debates e reuniões, sistematizar e expressar idéias e opiniões, reunir, criticar e sintetizar informações. Além disso, requer a percepção da importância e necessidade de organização e troca de informações entre os próprios trabalhadores. Contém conteúdos e avaliação originados da própria realidade, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico, pois ele está sendo dirigido aos e pelos moradores de periferias de cidades, camponeses, trabalhadores e demais categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto. Exige pensar que tudo está em movimento, inclusive, o ato pedagógico. Recorre-se à análise do processo que também está em movimento. A avaliação dos conteúdos da educação popular, por sua vez, só terá sentido quando for conduzida para a análise organizativa de todo processo educativo em desenvolvimento. A educação popular é alimentada por uma base política enquanto promotora da superação do silêncio imposto a cada um, pela preparação intelectual dos trabalhadores, pela construção moral dessa classe e pela capacitação para o exercício da direção política. Como se vê, há forte presença desses valores e fundamentos em todas as dimensões, mesmo gerais, da autogestão. Esta é apresentada por Schmidt e Perius (2003: 63), ao caracterizarem as cooperativas e o cooperativismo como um campo onde se luta para se viver melhor, “pagar a dinheiro, poupar sem sofrimento, suprimir os parasitas, combater o alcoolismo, integrar as mulheres nas questões sociais, educar economicamente o povo, facilitar a todos o acesso à propriedade, reconstruir uma propriedade coletiva, estabelecer o justo preço, eliminar o lucro capitalista, abolir os conflitos”. As perspectivas que estão presentes nas práticas autogestionárias se efetivam a partir de sólidas ações educativas nas bases explicitadas da educação popular, estando também presentes nos fundamentos da extensão universitária pautada pelo trabalho não alienante, permeada de uma
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intencionalidade que conduz para ações políticas voltadas à cidadania e às mudanças. Ao assumir a dimensão do popular, a extensão transpõe os muros institucionais superando o seu exercício oriundo apenas dos participantes de determinadas organizações sociais, sobretudo estatais. Adquire, como trabalho social, a dimensão de exterioridade abrangendo a educação nos movimentos sociais, na autogestão por meio de instrumentos vários da organização da sociedade civil. A extensão universitária, por outro lado, precisa ir além da compreensão de que a relação universidade-trabalho é algo externo à universidade e vice-versa. Como trabalho, a extensão detém uma base que torna imperiosa a unidade entre teoria e ação, sem a qual inexiste hegemonia na ótica dos trabalhadores. Essa hegemonia acontece com a necessária consciência teórica e cultural da ação, com a superação analítica da imediaticidade do empírico que conduz a meras reduções de idéias e anotações simplistas do real. A hegemonia que se persegue na construção de um conceito de extensão passa a ter dimensões não apenas de ordem política. Hegemonia só pode ser entendida quando possibilita direção política, moral, cultural e ideológica. Como trabalho social útil, direcionado aos setores populares, a extensão universitária configura-se com dimensões populares ao se realizar no conjunto das tensões de seus participantes em ação e da realidade objetiva. Tem o concreto real como ponto de partida da busca por objetos de pesquisa, para a realização da construção do conhecimento novo ou novas reformulações das verdades existentes. Destaque-se a necessidade da produção do conhecimento e não simplesmente a promoção de uma relação entre saberes acadêmicos e saberes populares. Essa produção de um conhecimento transpõe a dimensão meramente de troca de saberes. Isto ocorre nas ações extensionistas, nos exercícios de autogestão, mas não se constitui, simplesmente, de processos relacionais. Vislumbra-se a produção do conhecimento acadêmico com a participação da comunidade na atuação da universidade. Convém destacar que uma expressiva aproximação da universidade com os princípios da educação popular e da autogestão passa pela luta que tem enfrentado, historicamente, na busca de autonomia própria. Autonomia, aliás, é um conceito bastante reivindicado pela universidade como uma instituição que também luta para poder exercer, de forma livre, o papel de produtora de conhecimento – seu produto principal. Beltrão (1997) resgata essa luta pela autonomia da universidade desde a Idade Média, com a edição da bula papal Parens Scientiarum, após professores e alunos abandonarem Paris, a Atenas da Idade Média, em virtude da morte de estudantes, resultante de conflitos com a polícia parisiense. Para retornarem à cidade-luz, apresentaram as seguintes exigências: a licentia ou a graduação do estudante, que deveria ser outorgada sem interferência externa do poder espiritual ou temporal; o funcionamento interno da Alma Mater (universidade) seria regido por estatutos e os seus curricula organizados pelos magistri; “a confirmação do direito de greve e retirada, em caso de abrogação, de qualquer uma dessas cláusulas por parte do poder temporal ou espiritual”. Na modernidade, ainda se mantém esse anseio, tanto em relação ao poder espiritual - a Igreja Católica como ao poder temporal - as formas diferenciadas do Estado - e, mais acentuadamente, nos tempos atuais, em relação direta ao Estado. Fávero (l997), ao abordar a autonomia universitária, no Brasil, no que concerne aos seus desafios tanto históricos como políticos, mostra que esta remonta à legislação de l911, na Reforma Rivadávia Corrêa. Nesta reforma, a temática foi levantada em resposta a um movimento de contenção do crescimento das inscrições nas faculdades (oficiais e privadas), decorrente do ingresso irrestrito dos egressos das escolas secundárias. Segundo Macedo (l996), a autonomia da universidade em relação ao Estado deve ser plena. Esta deve ocorrer, para que a universidade a exerça, “na plenitude jurídica, pedagógica, patrimonial e de gestão financeira”. No que tange à autonomia patrimonial e de gestão financeira, é necessária a clareza do destino das verbas, voltadas às obrigações assumidas com a sociedade, no tocante à qualidade de ensino e das pesquisas básica e aplicada. Autonomia é uma temática que tem estado presente no palco das discussões nos movimentos sociais, nas reivindicações individuais e coletivas, nas práticas desses movimentos, nas tomadas de decisão de organizações frente às demais organizações e nas relações interpoderes:
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Legislativo, Judiciário e Executivo239. É, sobretudo, bastante reivindicada, questionada e até nomeada como ponto central no processo organizativo da universidade, particularmente, a universidade no Brasil. O exercício da autonomia universitária estará sendo efetivado com as ações extensionistas tensionadoras da relação entre ensino e pesquisa, promovendo a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Nessa direção, já estão sendo sugeridos indicadores para a sua avaliação (UFPB, 1995), tais como: análise dos conteúdos das disciplinas relativas aos procedimentos metodológicos; clareza metodológica; sistematização e divulgação dos trabalhos realizados em extensão e ainda atualização da problemática do projeto em extensão universitária. A autonomia estará presente quando esses projetos universitários passarem a ser analisados em suas dimensões de relevância social. Este se constitui em um critério que está sendo utilizado pelo MEC, possibilitando a construção de indicadores, tais como as articulações com as demandas da sociedade, atendimento às necessidades da população e, ainda, “a possibilidade de criação, desenvolvimento e difusão de tecnologias apropriadas” (ibid.: 3). Uma característica avaliativa é que as atividades da universidade promovam a democratização da sociedade. A avaliação de projetos de extensão aponta para a necessidade de informações sobre verbas e bolsas para projetos de extensão em relação aos demais projetos desenvolvidos pela universidade. Além do mais, esses projetos podem promover um exercício de autonomia em relação aos diversos processos organizativos da comunidade. Poderá ser cobrada a promoção de um trabalho da universidade que promova a cidadania, no sentido de formar um cidadão com as características de criticidade e de atividade, um cidadão crítico e ativo. A universidade poderá exercer a sua autonomia ao fomentar tanto a liberdade como a autonomia das pessoas, bem como ao se fazer presente nas questões da sociedade, em exercícios de educação popular de empreendimentos autogestionários. As temáticas envolvendo a cidadania das mulheres, a cidadania dos negros, a igualdade de direitos, a discriminação por orientação sexual, os povos indígenas, saúde, educação, crianças, jovens e a terceira idade não podem estar ausentes dos conteúdos desse trabalho, marcantemente autônomo. A concretização da autonomia da universidade poderá ser expressa quando o trabalho social estiver pautado por princípios éticos. Debruçando-se sobre projetos de extensão, com propósitos de avaliação, observa-se que esse processo comporta o questionamento da produção do conhecimento, não apenas do ponto de vista epistemológico, mas também sob a ótica do tipo de conhecimento que é produzido, num determinado momento histórico, na sociedade em que se insere e na instituição onde está sendo produzido. Ora, a ciência é um saber entre tantos outros, além do que a universidade não é o seu único lócus de produção. O conhecimento buscado nos projetos de extensão e sua efetivação podem estar na composição de um quadro de indicadores para a avaliação da extensão. A resposta a estas questões diz respeito à ética. Com o exercício da autonomia, tornam-se possíveis respostas quanto à utilidade do produto gerado pela instituição. Autonomia para veicular o exercício da democracia na sociedade, nas práticas administrativas internas à universidade (coordenações, departamentos, conselhos superiores). Autonomia para promover a democracia e a socialização do conhecimento que se produz, sobretudo, entre aqueles que menos o detêm. Afinal, o conhecimento que está sendo produzido na universidade através da pesquisa, da extensão e do ensino, e que, muitas vezes, só promove a exclusão e a desigualdade, não pode ser ético. A universidade, ao encontro de sua autonomia, se insere na luta geral dos trabalhadores que buscam, também, sua autonomia nas tentativas de geração de ocupação e de renda. As ações de extensão universitária podem exercitar a cooperação que vem se mostrando necessária para os trabalhadores. Esta se define, sobretudo, pela autogestão, um procedimento administrativo que arrasta consigo, de forma intrínseca, a cooperação, o trabalho emancipador, liberdade e a autonomia. Pelo exercício desses princípios, caminha-se para a apresentação de um modelo de organização que seja aberto e democrático, adequado aos interesses dos trabalhadores – a autogestão. Autonomia expressa 239O
cenário político tem apresentado com regularidade atores dos poderes Judiciário, Legislativo e até do Executivo, requerendo autonomia para poderem tomar suas decisões, sem o constrangimento do outro.
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pela qualidade das relações que estejam mais adequadas aos interesses dos trabalhadores, podendo contribuir na construção de cooperativas através de incubadoras tecnológicas populares. Pode, ainda, promover outros tipos de organização social, sejam empresas estatais ou não, exercitando-se o controle pelos trabalhadores – a autogestão. Indagados sobre a importância e a necessidade da cooperação/colaboração no seu dia-a-dia na Usina Catende, 92,17% dos trabalhadores responderam positivamente, mesmo que 63% não tivessem qualquer idéia sobre o significado de uma empresa de autogestão. Para 80,09% dos pesquisados, a forma de produzir naquela experiência foi alterada em relação às práticas anteriores e tradicionais. Sobre o resultado dessa mudança, os trabalhadores responderam que está expresso na existência de maior liberdade de trabalho (36,67%), por haver maior empenho e compromisso com o trabalho (16,34%), maior colaboração (10,75%) e, também, porque estão trabalhando para si mesmos (10,66%). A autogestão, portanto, pode ser entendida como “um termo que caracteriza as relações de trabalho do tipo democráticas e igualitárias” (ADS/CUT, 2002: 7). Tudo isto, deliberadamente, vem construindo uma economia que esteja subordinando o mercado à sociedade, colocando-o em função das pessoas ou uma economia que seja gerida de forma solidária. Todos estes princípios são fundamentais para a autogestão e estão presentes no fazer universitário, no ensino, na pesquisa e, com maior ênfase, na extensão universitária, reforçada pelas metodologias da educação popular. Em experiências de autogestão, espaços pedagógicos são abertos, no sentido da resistência manifesta pelo confronto com a situação vigente. Revela-se de variadas formas, como a resistência às manipulações psicológicas que, em nome da diversidade, desenvolvem o gosto extremado pela individualidade e às formulações que se apresentam como forma única e acabada. Assim, pode-se estar avançando na conquista da cidadania, entendida, agora, como a explicitação das possibilidades de acesso do indivíduo à produção, à gestão e ao usufruto dos bens e serviços da sociedade, rompendo com o fenômeno, tão atual, de exclusão social. Essa resistência possibilita, inclusive, a participação nesse modelo de Estado, não no sentido de reprodução da exclusão, mas, segundo Yeno Neto (1993: 153), para “gerar projetos de trabalho no interior do Estado que objetivem reforçar e apoiar as organizações populares no que elas têm de autonomia frente ao próprio Estado”. Os processos em educação popular, na busca da autogestão produtiva, devem expressar resistência às formulações de uma ética e de uma moral utilitária que fomentam e enfatizam a individualidade em nome, prioritariamente, de um benefício pessoal. A ela contrapõe-se a ética da comunicação, do diálogo, da responsabilidade social, da democratização, da justiça social, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças, das escolhas individuais e grupais, elementos que potenciam a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas, na construção de outras formas de racionalidade. A resistência à massificação e ao nivelamento passa a dar sentido às diferenciadas metodologias de educação popular. Esta, ao utilizar uma perspectiva dialética, contribui, decisivamente, para o encontro de estratégias e de condições de lutas para as transformações da realidade. Enfim, uma resistência construtiva na busca de sua utopia, que é a busca pela liberdade. Uma liberdade no sentido político, ético e filosófico, que mostra as limitações dessa própria liberdade, considerando a existência do outro, com a clareza de que o humano não é um ser acabado, posto que histórico. Todavia, mesmo na Usina Catende, onde se desenvolvem vários projetos de alfabetização de adultos, elevação de escolaridade e outros, tanto na cidade sede do município como nas vilas dos engenhos, continuam as dúvidas quanto à criação de espaços no sentido de intercambiar conhecimentos e experiências pelas metodologias de educação popular e de educação de jovens e adultos, em desenvolvimento. Permanece desafiadora a discussão sobre as mudanças necessárias naquele ambiente rural, além daquelas que devem ocorrer nas formas de aprender e se preparar para o mundo do trabalho. Trata-se de ampliação das relações dos trabalhadores, como agentes da autogestão na Usina, bem como na relação com os seus dirigentes sindicais. Reativa-se, assim, o papel desafiador das organizações de trabalhadores, sobretudo o sindicato, além das associações de moradores dos povoados existentes nos engenhos da Usina. Entretanto, sabe-se da necessidade da formação e educação popular que se apresentam como um dos vetores principais na condução do processo, reforçando não só a técnica ou meramente a
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produtividade mesmo que esta seja necessária. Busca-se uma formação baseada em outros valores, como o da solidariedade entre empregados, desempregados ou trabalhadores precários. Constroem-se os procedimentos metodológicos que auxiliem na integração dos trabalhadores, além de fortalecer a compreensão de seu papel social. Assim, várias questões continuam desafiando as práticas educativas em experiências autogestionárias, podendo estar presentes no debate da extensão universitária. Metodologias de educação de jovens e adultos ou mesmo técnicas em educação popular, de forma mais ampla, presentes em ações extensionistas e nas experiências autogestionárias estão em aberto para definições. A organização da formação contínua, social e cultural desses trabalhadores merece discussões. A educação sindical e o seu papel, as ações concretas da vida dos trabalhadores mantêm-se desafiantes. A esse respeito, pode-se perguntar: como poderá firmar-se, a partir dessas experiências de autogestão em cooperativas, uma educação que, mesmo vislumbrando a competência, assuma um significado para a produção, para o social, para a tecnologia e, sobretudo, para a cultura, na busca incessante de uma educação de jovens e adultos voltada à orientação do jovem e do adulto trabalhador? As realidades são muito distantes uma das outras, contudo, será interessante a pesquisa para detectar similitudes de relações presentes nos variados processos, na perspectiva de se contribuir com maior clareza para o trabalho educativo com os próprios coordenadores (professores/as) e com diferenciados grupos sociais, seja em associação de moradores, sindicatos, microempresas ou outros. A universidade pode, assim, contribuir de várias formas e a extensão é um caminho. Mesmo assim, continua o desafio sobre que tipo de orientação que os projetos em extensão estão veiculando. Os desafios estão nas ações que carreguem consigo a necessária visão histórica das coisas, combinando com a dimensão do trabalho, da cultura nos marcos da produção, tendo o concreto como ponto de partida, o estabelecimento da ética do diálogo e a luta por autonomia, conectados entre si de forma intrínseca à educação popular, à autogestão e à extensão universitária. Portanto, atuar em projetos de extensão universitária, definidos para a construção de outro modelo de sociedade que caminhe para autogestão, é realizar processos educativos pela educação popular que alimentem uma teoria pedagógica, cujos vetores político-humanistas estejam voltados à conquista coletiva da liberdade, da igualdade, da justiça e da felicidade.
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ANEXO:
CARTA DE JOAO PESSOA240 Os participantes do I Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, abrangendo todos os segmentos de ensino superior do Brasil, reunidos na cidade de João Pessoa – PB, nos dias 9 a 12 de novembro de 2002, manifestam ao Governo Federal recém-eleito os seguintes pontos: 1 – Reconhecem a existência, na sociedade brasileira, de expectativas muito fortes de mudança, bem como, em todas as camadas sociais, de uma enorme disposição para participar da construção de um novo projeto de país. 2 – As universidades se dispõem, enfaticamente, a integrar esse movimento de mudança, reafirmando o seu compromisso social, no sentido da construção de um país igualitário e justo. 3 – Reafirmam o conceito de extensão como o processo educativo, cultural e científico, que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável, viabiliza a relação transformadora entre a universidade e os demais segmentos da sociedade, trazendo para a universidade a questão sobre a relevância da produção e socialização do conhecimento. 4 – Em face disto, propõem ao futuro Governo: a) criação, na estrutura do MEC, de um órgão de caráter representativo, responsável pela extensão, que articule os diferentes segmentos do ensino superior na formulação de uma política nacional de extensão universitária; b) criação e implementação de mecanismos institucionais de financiamento da política nacional de extensão universitária nas agências de fomento e em outras instâncias; c) adoção do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, como base para a elaboração de políticas para o ensino superior; d) integração das universidades brasileiras como parceiras nesse processo de mudança social. Finalmente, reafirmam o seu compromisso em participar ativamente do processo de construção de um país livre de desigualdades, de misérias e de exclusões sociais. Para tanto, adotam posição intransigente, no sentido de defender a educação superior como um bem social indispensável ao desenvolvimento do país e ao bem-estar do seu povo.
O I Congresso Brasileiro de Extensão Universitária (João Pessoa, PB, 9 a 12 de novembro) aprovou este documento a ser encaminhado ao governo eleito da República, em que reafirma o compromisso social da universidade pública brasileira. 240
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Existe alguma literatura sobre o assunto, destacando-se os comentários sobre as conhecidas universidades populares européias apresentados por Antonio Gramsci, no livro: Concepção dialética da história. Civilização Brasileira, 4a. ed. Rio de Janeiro, 1981.
ii
Esta concepção vem sendo construída pelo Fórum de Pró-Reitores das Universidades Brasileiras, desde o ano de 1987, quando da reunião realizada naquele ano, em Brasília. Nessa reunião definiu-se a concepção de extensão universitária como uma via de mão dupla. A partir da concepção de que extensão é via de mão única, também desenvolveram-se críticas a essas concepções, sobretudo através do movimento estudantil, principalmente no Congresso da Salvador, em l961, concluindo-se que a universidade deveria voltar-se à sociedade, às reivindicações populares. Ver ainda, POERNER, José Artur. O poder jovem. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1979. Ver também UNE, Declaração da Bahia. Salvador, 1961 (mimeo).
iii
Ver: MAGALHÃES, Andréa Tavares A. Extensão universitária na perspectiva de trabalho social. (Relatório parcial de pesquisa PIBIC/CNPq/UFPB). João Pessoa, jul/1999.
iv
Extensão universitária como trabalho social (uma análise da extensão da década de 1980, na Universidade Federal da Paraíba) é uma pesquisa que foi desenvolvida a partir do ano de 1997, com financiamento do CNPq/PIBIC/UFPB, apresentando os seguintes resultados parciais: atividades extensionistas na perspectiva da via da mão única com 68,92% do total das atividades naquela década; na perspectiva da via de mão dupla, com 11,33% e na perspectiva de trabalho social, com 19,75%.
Ver, também, Melo Neto. José Francisco de. Extensão universitária – uma análise crítica. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001.
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