NOVA em Folha | Dezembro-Janeiro 2022-2023

Page 1

((DES)INQUIETAÇÃO DES)INQUIETAÇÃO o j o r n a l d a a e f c s h . N O V A e m F o l h a GRATUITO 0 00€ FESTIVAL DE CINEMA UNIVERSITÁRIO: FESTIVAL DE CINEMA UNIVERSITÁRIO: 6 DIAS DE OCUPA NA FCSH 6 DIAS DE OCUPA NA FCSH A INQUIETAÇÃO DA SOCIEDADE LÍQUIDA A INQUIETAÇÃO DA SOCIEDADE LÍQUIDA APONTAMENTOS A PARTIR DO CINENOVA. APONTAMENTOS A PARTIR DO CINENOVA. E AINDA CRÓNICAS, POEMAS, CRÍTICAS, RECEITAS, JOGOS... E AINDA CRÓNICAS, POEMAS, CRÍTICAS, RECEITAS, JOGOS... UM JORNAL D@S ESTUDANTES PARA @S ESTUDANTES UM JORNAL D@S ESTUDANTES PARA @S ESTUDANTES d e z e m b r o 2 0 2 2 / j a n e i r o 2 0 2 3

N O V A e m F o l h a

o j o r n a l d a a e f

c s h .

Podessempreenviarparao NOVAemFolhaastuas fotografias/ilustraçõespara serempublicadasnanossanewsletterouatéserviremde capa!Contacta-nosatravésde novaemfolha@fcsh.unl.pt

ENVIA AS TUAS PROPOSTAS

até ao dia 16 de cada mês para novaemfolha@fcsh.unl.pt

Todos os meses, aceitamos propostas de textos, poemas, críticas, receitas, crónicas, bitaites, artigos desportivos, notícias e destaques, reportagens, peças humorísticas, de qualquer alun@ ou docente da FCSH, as quais são posteriormente revistas pela nossa equipa editorial Dentro das mesmas datas, aceitamos ainda propostas de fotografias, ilustrações, montagens, ... não só para serem incluídas na nossa edição, mas também para se habilitarem a serem incluídas na capa desse mês! Qualquer dúvida ou sugestão não hesites em contactar-nos! Ficamos à tua espera! :)

NOTAS

A ado(p)ção do acordo ortográfico em vigor é uma decisão individual d@s membr@s da equipa de reda(c)ção e colaborador@s Após a revisão completa do material recolhido pela equipa editorial, o seu conteúdo e versão final são da responsabilidade e exprimem somente o ponto de vista d@s respectiv@s autor@s

ESTE JORNAL É IMPRESSO
RECICLADO
EM PAPEL 100%

ficha técnica

direção redação e revisão edição gráfica

colaboradores

Ana Catarina Tiago Madalena Craveiro Margarida Mendes Craveiro

Ana Catarina Tiago Beatriz Gomes Martins Beatriz Mateus Catarina Aires Clara Figueiredo Diogo Nunes Diogo Ribeiro Francisca Leal Francisco M Barata Tânia Pereira Yelyzaveta Basysta

C. L. Carolina Mendonça Catarina Delgado Diogo Botelho Emmanuel Walcher Guilherme Vaz Inês Silva João Strecht Maria Exposto Miguel Villa de Freitas NECCOM

Guilherme Machado Jéssica Marques Jorge Tabuada Madalena Craveiro Manuel Gorjão Margarida Mendes Ribeiro Rita Mota Tânia Pereira Yelyzaveta Basysta

NOVA Debate FCSH Núcleo Feminista da FCSH Raquel Francisco Ricardo Lobarinhas Rita Serpa Rosa Garcia Santiago Viana Sol e Sal. Carvalho Tatiana Lamela Tomás Girão

02

índice

Pág 5

100ANOSDEIÁNNISXÉNAKIS

AnaCatarinaTiago

Pág 7

Pág 10 Pág 13 Pág 19 Pág 21 Pág 23 Pág 24 Pág 26 Pág 28 Pág 30 Pág 33 Pág 37 Pág 40 Pág. 44 Pág 47 Pág. 50 Pág 53 Pág 56

128ANOSDEFLORBELA

JorgeTabuada

100ANOSDEJOSÉSARAMAGO BeatrizMartins

artigos noticiosos

O “C” DE FCSH VEM DE CINEMA - RECORDA O CINENOVA NECCOM

FESTIVAL DE CINEMA UNIVERSITÁRIO: APONTAMENTOS A PARTIR DO CINENOVA Manuel Gorjão

6DIASDEOCUPANAFCSH

JorgeTabuada COLHEITADEÓRGÃOS JéssicaMarques

LISBOA, 13 DE JANEIRO DE 1975 NFFCSH

MARIPOSA INALCANÇÁVEL, APANHA-A SE PUDERES! Ricardo Lobarinhas

TWITTER: WHAT HAPPENED Beatriz Mateus

“QUANDO O ÓDIO VESTE FARDA” Clara Figueiredo

A INQUIETAÇÃO DA SOCIEDADE LÍQUIDA João Strecht

DEVOLVE O QUE DEVES NovaDebate FCSH

ENTRE A FACA E A PAREDE Guilherme Machado

OS COMENTADORES E A VIDA REAL Guilherme Vaz

SOBRE A FACULDADE… Tatiana Lamela

SOBRE AS OCUPAS Guilherme Machado

THIS IS NOT SCIENCE, IT'S VIOLENCE Jéssica Marques

DESERTO, E UM POUCO DE MAR Sol e Sal. Carvalho

artigos de opinião escrita criativa

nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em

Pág. 59

Pág. 60 Pág 61 Pág 65 Pág. 67 Pág 69 Pág 70 Pág 71 Pág. 72 Pág 73 Pág 75 Pág 76 Pág 79 Pág. 80 Pág 81

Pág 64 Pág 78 Pág 88

Pág 77 Pág 83 Pág 92

FILA DO PASSE NO MARQUÊS DE POMBAL

Carolina Mendonça

À NOITE, NA BANHEIRA, SEM ENDEREÇO Carolina Mendonça

A MENSAGEM

Tomás Girão DESASSOSSEGO RaquelFrancisco

EIS O QUE SEI SOBRE O LUTO ATÉ AGORA

Rita Serpa

INOCENTE Catarina Aires INQUIETAÇÕES

C L LI Maria Exposto

CÉU DA NOITE & A MINHA MÃO CONSEGUE SEMPRE ALCANÇAR Catarina Delgado

POEMAS Diogo Botelho POEMAS I. O FADO Rosa Garcia

O AMOR Rosa Garcia

UM SONETO Manuel Gorjão

SAL DA TERRA

Emmanuel Walcher

SÓ TE QUERO A TI Santiago Viana WRITER’S BLOCK Maria Camões

BABY, IT’S COLD OUTSIDE - COMO TIRAR PROVEITO DAS CAMADAS? Francisca Leal

DIA DA DEFESA NACIONAL Diogo Ribeiro

CHOCOLATE HAZELNUT COOKIES Jéssica Marques

poesia

moda e lifestyle humor

O RAPAZ QUE LIA LIVROS À LUZ DUM FAROL Miguel Villa de Freitas receita

nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em folha nova em

artigos noticiosos

100 ANOS DE IÁNNIS

XÉNAKIS

Celebra-se, este ano, o centésimo aniversário do nascimento de Iánnis Xénakis, o engenheiro e arquitecto que revolucionou a música do séc. XX com as suas composições e teoria musical

Cientista, ateu, teórico da música do seu tempo, entusiasta da fisicalidade do som e das suas potencialidades, Iánnis Xénakis dedicou a vida à criação de pontes entre as artes e as ciências, promovendo a pluridisciplinaridade no mundo moderno. Radical, visionário, pioneiro da música electrónica, deixou um incomensurável legado ao pensamento e à forma de criar na contemporaneidade

Filho de pais gregos, Iánnis Xénakis nasceu na Roménia em 1922, tendo sido desde cedo incentivado pela mãe, que perdeu aos 5 anos, a cultivar o seu interesse pela música Até se mudar para a Grécia, em 1932, a sua educação foi entregue a vários perceptores, sendo, depois, enviado para um colégio privado de valores britânicos. Lá, juntouse ao coro e descobriu a música de Beethoven e de Brahms, além de tornar frequentes as suas visitas a museus e de alimentar a sua admiração pela cultura clássica grega, nomeadamente com as obras de Homero

5

Seguiu para Atenas, para onde foi estudar engenharia civil Concluiu o curso em 1946, mas não sem antes assistir à ocupação nazi da Grécia, se juntar à resistência e ser perseguido e condenado à morte. Uma explosão inglesa vitimou-o, deixando-o desfigurado e sem um olho, e o seu activismo político obrigou-o a que se exilasse em França em 1947, o que marcaria o resto do seu futuro

Arranjou trabalho no estúdio de arquitectura de Le Corbusier, um dos pioneiros da arquitectura modernista, onde rapidamente mostrou o seu valor e colaborou em vários projectos importantes. Simultaneamente, estudava música e composição, procurando ajuda de vários professores, que ao fim de algum tempo acabavam por desistir da sua missão Houve um nome, porém, que viu em Xénakis o futuro da criação artística. O engenheiro feito arquitecto começou, em 1951, a frequentar as aulas de música de Messiaen, um dos mais importantes músicos do séc XX, responsável pela composição de peças vanguardistas e pela inspiração de vários compositores serialistas, seus discípulos. Nestas aulas, Xénakis pôde experimentar com vários estilos e géneros de composição e aprofundar o seu interesse por música contemporânea, acabando por criar obras altamente influenciadas pelo serialismo de Messiaen

Xénakis afastou-se, eventualmente, do que considerava as regras estritas do serialismo e explorou música concretauma variação da música electrónica que começava a ser desenvolvida nesta altura, até chegar à sua composição cientificamente pensada, feita de fórmulas matemáticas, que só ele poderia inventar A sua concepção da música expandiu-se para a exploração da espacialização sonora e Xénakis começou a desenhar espaços específicos onde se pudessem reproduzir as suas peças Consequentemente, em 1958 foi convidado por Le Corbusier a concluir o Pavilhão Philips na Expo58 em Bruxelas, um espaço imersivo onde o público seria confrontado com uma experiência audiovisual de navegação do som.

Daí para a frente, Xénakis estabeleceuse como um dos mais importantes compositores do seu tempo, reconhecido pela sua experimentação dentro da música electrónica, passando ainda pela Sorbonne, onde deu aulas nos anos 80 Passou os últimos da sua vida doente, vindo a falecer em Paris, em fevereiro de 2001, na sua casa Xénakis admitiu levar uma vida marcada pela culpa de ter deixado a sua pátria, o que o terá feito sentir que deveria cumprir uma missão, maior que a música e maior que ele próprio Viveu com o dever de devolver com os seus dias algo de grande ao mundo - e o mundo ficou um sítio melhor para se estar, existir, criar.

6

128 ANOS DE FLORBELA

E foi a 8 de dezembro que se celebraram 128 anos do nascimento de Florbela Espanca Nesse mesmo dia fez também 92 anos que esta brilhante poetisa partiu. Mas, durante a sua curta passagem por cá, fez história!

Dezembro é também o mês de outros grandes artistas nacionais como António Variações, que celebraria agora 78 anos Tal como Florbela, Variações também foi revolucionário para a sua época e causou INQUIETAÇÃO

Vítima de uma vida conturbada, Florbela era filha ilegítima, sofreu vários abortos involuntários, contínuos divórcios, morte de familiares, problemas de saúde, tudo isso lhe conferiu a melancolia necessária para a inspiração e composição da sua arte.

Florbela soube ser pioneira, pois foram poucas as mulheres na literatura que se destacaram antes de Florbela. Numa época em que a mulher se queria em casa a cozinhar e a tomar conta dos filhos, Florbela rejeitou o estereótipo e foi uma das primeiras mulheres a tirar um curso no liceu, num país onde ainda hoje a diferença salarial de género é de cerca de 16%, e poucas são as escritoras presentes nos textos recomendados no ensino de língua portuguesa

Florbela era marginal e tinha consciência disso, embora o detestasse. Em “Noite de Saudade” Florbela exprime a forma como se identifica com a noite: “Porque és assim tão escura, assim tão triste?! / É que, talvez, ó Noite, em ti existe / Uma Saudade igual à que eu contenho!”. Sendo a sua poesia tão difícil de integrar no ensino, a verdade é que Florbela chegou a ser considerada uma “artista maldita”.

Sendo que os sonetos sempre foram o seu género predileto, a verdade é que Florbela escreveu também diários e contos, como “As Máscaras do Destino”, dedicado ao seu irmão Para além disso, Florbela não foi somente escritora, foi também tradutora e jornalista de “O Século” e de jornais regionais de Évora.

7

Há uma habilidade na forma como Florbela usa e abusa das palavras que é incomparável Tristeza, Solidão, Saudade, Angústia, Amargura, Mágoa, Lamento… Todas estas palavras já existiam antes de Florbela, porém, é quase como se estas ficassem com o seu cunho e se tornassem propriedade dela. Florbela era dona destas palavras, usava-as como se fossem dela, e só dela As suas magníficas frases exclamativas transmitiam impecavelmente os seus desesperos

Mas a verdade é que o seu talento não se resumia só em poemas depressivos e angustiantes. Florbela, tal como muitos outros poetas, soube escrever vários poemas sobre o Alentejo, a terra que a viu nascer, como “Alentejano” e “Árvores do Alentejo”.

Dado os seus poucos anos de vida, Florbela lançou apenas 2 livros em vida, “Livro de Mágoas”, com sonetos dedicados ao pai e ao irmão, e “Livro de Soror Saudade”, onde se dá maior ênfase à temática erótica e romântica do amor

“Ser Poeta” é o clímax dos poemas de Espanca presente na coletânea “Charneca em Flor”, publicada postumamente. Estes magníficos versos foram adaptados à música na voz de Luís Represas nos anos 80 e, mais tarde, às vozes de Sara Tavares e Nuno Guerreiro: “Ser poeta é ser mais alto / é ser maior do que os homens / ( ) E é amar-te assim perdidamente / é seres alma e sangue e vida em mim / e dizê-lo cantando a toda a gente”

Do belíssimo poema “Nunca fui como todos”, chega-nos o melancólico desabafo: “Nunca tive alguém que amasse” / Mas tive somente a mim” ( ) Não vivo sozinha porque gosto / mas sim porque aprendi a ser só” Assim como em “Eu”, Espanca declama: “Sou aquela que passa e ninguém vê / (…) Sou a que chora sem saber porquê” Mais de 100 anos depois, estas histórias de depressão mantêm-se mais do que atuais, e as pessoas que já sofreram de problemas de saúde mental sabem-no melhor do que ninguém.

A imagem simbólica de Florbela é muito semelhante a outras autoras da sua geração como Virginia Woolf. Ambas nascidas no séc XIX, estas duas autoras foram marcos na história dos seus países ao saírem à rua elevando o feminismo, tal como também Jane Austen subtilmente o fez com “Orgulho e Preconceito” muitos anos antes

8

Tal como Virginia Woolf, Florbela tentou o suicido por três vezes até finalmente o conseguir. Já em algumas nuances da sua escrita tinha subentendido que a morte seria a única solução para encontrar paz: “Dizem baixinho a rir «Que linda a vida!» / Responde a minha Dor «Que linda a cova!»”. O “Diário do último ano”, publicado postumamente, conta o último ano de vida da poetisa, com a última entrada a 2 de dezembro, menos de uma semana antes da sua morte

Até ao maldito dia 8 de dezembro em que, depois de saber o diagnóstico de uma neurose, Florbela executa com sucesso a sua última tentativa de suicídio através de uma toma de barbitúricos

Ainda hoje o nome de Florbela continua a ser ecoado por vários pontos do país Já deu nome à biblioteca de Matosinhos, e a sua história já valeu uma série da RTP protagonizada por Dalila Carmo

Tudo isto fez a história de uma das melhores, se não a melhor, POETISA portuguesa

9

100 ANOS DE JOSÉ SARAMAGO

No dia 16 de novembro de 2022 assinalou-se o centenário de José Saramago. Esta efeméride apresenta-se como uma oportunidade de relembrar um escritor relevante na história cultural e literária, em Portugal e no estrangeiro, assim como as obras que formam o seu extenso e variado corpo literário.

José Saramago publica o seu primeiro livro em 1947, que intitulou A Viúva, mas que, por razões editoriais, viria a sair com o título de Terra do Pecado. Ao seu primeiro romance seguiram-se livros de poesia, coletâneas de crónicas jornalísticas, dramaturgia, e mais romances. Escreveu também ensaios políticos, contos e literatura de viagens, publicou vários diários e um livro de memórias.

O livro de memórias, de título As Pequenas Memórias, foi publicado em 2006, oito anos depois de receber o Prémio Nobel da Literatura Nas suas páginas, o escritor recorda o período entre os seus quatro e quinze anos. “Queria que os leitores soubessem de onde saiu o homem que sou”*.

10

Filho de José de Sousa e Maria da Piedade, José de Sousa Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga no ano de 1922 Em 1924, o pai de Saramago decide deixar a aldeia e mudar-se com a família para Lisboa. Nas palavras do escritor, com a mudança, “embora as condições em que vivíamos tivessem melhorado um pouco ( ), nunca viríamos a conhecer verdadeiro desafogo económico”**

Na escola primária, Saramago foi um bom aluno Na sua autobiografia afirma que “na segunda classe já escrevia sem erros de ortografia, e a terceira e quarta classes foram feitas em um só ano”***. Depois de fazer dois anos num só, Saramago continua para o liceu Todavia, por falta de recursos económicos da família, em 1935, com 13 anos, é obrigado a deixar o liceu e seguir os estudos no ensino profissional, onde aprendeu o ofício de serralheiro mecânico Mas uma disciplina, curiosamente incluída no plano de estudos de uma escola orientada para formações técnicas, torna-se elementar para o jovem Saramago: a disciplina de Literatura Nos manuais encontrou uma coleção de textos portugueses de vários autores e de várias épocas, e com eles uma janela de possibilidades de fruição literária

Concluídos os estudos na Escola Industrial de Afonso Domingues em 1940, vai trabalhar como serralheiro mecânico numa oficina de reparação de automóveis Neste período, Saramago passa as suas noites na Biblioteca do Palácio Galveias, lendo “sem orientação, sem ninguém que me aconselhasse, com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre”**** Apenas “guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender”*****, Saramago desenvolve e apura o gosto pela leitura

Progressivamente, a proximidade de José Saramago ao mundo literário vai se intensificando No final dos anos 50, tornou-se responsável pela produção na editora de livros Estúdios Cor, trabalho que, na década de 60, passa a conjugar com o de tradutor e o de crítico literário Em 1972 passa a trabalhar como editorialista no Diário de Lisboa Três anos mais tarde, em 1975, é nomeado diretor-adjunto do Diário de Notícias.

Em novembro do mesmo ano é demitido do seu trabalho no jornal, na sequência de acusações de radicalismo marxista e de conturbações paralelas à evolução política da Revolução Foi nesse momento que decidiu dedicar-se por inteiro à literatura, a par da tradução – “já era hora de saber o que poderia realmente valer como escritor”******

11

A obra de José Saramago foi distinguida com vários prémios, em diversos países. O primeiro prémio da sua carreira foi atribuído a Memorial do Convento, com o Prémio Pen Club e o Prémio Literário Município de Lisboa, no ano de 1983. Em 1995 é-lhe atribuído o conceituado Prémio Camões Três anos depois, em 1998, Saramago viaja até à Suécia para receber o Prémio Nobel da Literatura, “ pela sua capacidade de tornar compreensível uma realidade fugidia, com parábolas sustentadas pela imaginação, pela compaixão e pela ironia”*******. .

Saramago morreu a 18 de junho de 2010, na ilha de Lanzarote, no arquipélago de Canárias. Saramago mudou-se de Lisboa para a ilha espanhola em 1992, no seguimento do veto do Governo português à candidatura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) ao Prémio Literário Europeu, por considerar o livro ofensivo para os católicos. Saramago recorda este momento, na sua autobiografia, como “censura exercida pelo Governo português”********.

Além de escritor, Saramago era um cidadão com consciência do presente, do passado e do futuro, especialmente do seu país Essa consciência é o que caracteriza a voz distinta de Saramago, que está sulcada em toda a sua escrita – desde os artigos de teor político que publicou no Diário de Notícias na década de 70, até aos seus romances

Notas: 1, 2, 3, 4, 6 e 8 - Palavras retiradas da autobiografia de Saramago 5 - A última entrevista de José Saramago, José Rodrigues dos Santos (1991 ) 7 - Segundo a Academia Sueca do Prémio Nobel da Literatura

Referências bibliográficas: Fundação José Saramago (josesaramago org)

12

O “C” DE FCSH VEM DE CINEMA

RECORDA O CINENOVA

A semana de 22 a 26 de novembro ficou marcada pelo CINENOVA, festival internacional de cinema universitário organizado por alunos da nossa faculdade. Entre sessões de filmes e atividades paralelas, foram muitos os que não ficaram indiferentes ao evento. O campus de Berna foi adornado com cartazes verdes e apaixonados pela sétima arte. O festival contou com a presença de figuras importantes do cinema universitário nacional como João Mário Grilo, homenageado na entrega de prémios.

SESSÃO DE ABERTURA

No passado dia 22 de novembro, o CINENOVA, 1 º Festival Internacional de Cinema Universitário em Portugal, teve a oportunidade de concretizar a sua abertura na Cinemateca

"Rua dos Anjos", de Maria Roxo e Renata Braz, foi a longa-metragem escolhida para exibição na sessão de abertura da 4 ª edição do festival Numa sala praticamente lotada, destacou-se a presença de Tânia Roxo (filha de Maria Roxo)

O filme relata a difícil história de vida de Maria Gonçalves Roxo, uma trabalhadora sexual nascida em Moçambique, e a sua colaboração com Renata nesta longa-metragem As duas mulheres tornam-se amigas e vivem emoções muito fortes, acabando por contagiar o público, que reage com risos, ou, já no final, com lágrimas e aplausos, movidos pela bruta honestidade de Maria.

13
UMA REPORTAGEM NECCOM

Em conversa com Beatriz Menino e José Alberto Catalão, produtores executivos do CINENOVA, afirmou-se que o maior desafio no decorrer do projeto foi manter a comunicação e a organização entre as equipas. O trabalho foi compensado com uma excelente afluência na Cinemateca espelhando a mensagem do festival - “Uma câmara e uma pessoa podem mudar o mundo”, apontam os produtores. José realçou ainda o impacto pretendido pelo CINENOVA que se prende na capacidade de ação da sociedade, de transformação e de incentivo do cinema como uma arte performativa

Já Renata Ferraz admitiu as dificuldades que teve de enfrentar Desde se sentir “triplamente estrangeira” no mundo do cinema portuguêspor ser mulher, por ter iniciado a sua carreira como atriz de teatro e por ter nascido noutro país, até aos problemas de financiamento do filme Relativamente a futuros projetos, não revela, mas afirma que serão como “Rua dos Anjos”, “um filme com criação partilhada entre as pessoas que estão na frente e as que estão atrás da câmara”

A realizadora deu ainda um conselho para quem quiser seguir a carreira do cinema: "Estar atento a outras formas de se fazer/pensar cinema, problematizar os cânones do cinema, não para destruí-los, mas para ser capaz de expandir o olhar A diversidade de olhares torna o mundo, dentro e fora do ecrã, politicamente mais interessante e afetivamente mais divertido”

No segundo dia de festival, o entusiasmo da estreia manteve-se A audiência já se havia mostrado expectante para o que os cinco dias de festival prometiam A curiosidade foi, em alguns casos, o que levou à grande adesão em todas as sessões, como admite uma estudante do Mestrado de Ciências de Comunicação - “Gostei de todos os filmes, mas a promoção do cinema no seio da comunidade estudantil foi o que me fez vir ao Cinenova”

14
2 - 23 DE
DIA
NOVEMBRO Margarida Moreira

DIA 3 - 24

Uma conversa moderada por Teresa Beirão deu início a este dia de festival, convidando Miguel Rico e Jorge Leitão Ramos a explorarem as suas experiências na cobertura de festivais de cinema Numa conversa espontânea e surpreendente, Jorge Ramos mencionou já ter coberto vários festivais de cinema internacionais, tais como o Festival de Cinema de Veneza, de Cannes e o de Roterdão

Os convidados apresentaram experiências pessoais e confessaram algumas dificuldades no seu trabalho, por exemplo, o esforço por fazer uma cobertura o mais vasta possível, não se focando somente nos seus interesses pessoais “Conversa 1Cobertura de um festival de cinema” fez crescer no público um entusiasmo que se veio a verificar nas sessões de filmes que se seguiram Ao longo de todo o segundo dia de festival, várias curtas-metragens revelaram a preocupação dos realizadores em abordar assuntos que convidam à reflexão do público. A título de exemplo, “Mesa Posta”, de Beatriz de Sousa, tenta contar uma história pesada de uma forma leve e simples. “É sempre bom termos o nosso filme, que foi feito em âmbito universitário, a passar neste tipo de festivais. Em âmbito académico, não é fácil fazer produção, porque nós não temos muito orçamento para fazer os filmes, mas tentamos sempre produzir as nossas ideias com o que temos”, confessou a realizadora da curta-metragem.

Testemunhos como “Gostei bastante do primeiro filme, o Blood Gravel, a crueza da realidade fascinou-me”, de uma estudante da Licenciatura de Ciências da Comunicação, coincidem com a inquietação, o choque e a surpresa sentidos pelo público. A curiosidade, o espanto, a melancolia, a compenetração e o fascínio foram emoções que permaneceram em todas as sessões de filmes e que marcaram este dia de festival.

O quarto dia do festival universitário trouxe uma variedade de atividades ao campus de Berna Desde discussões a sessões de networking (ou deverei dizer festas?), houve espaço para todos se envolverem naquilo que foi o evento cultural da semana na NOVA FCSH

15
DE NOVEMBRO Francisca Leal

Para os fãs de animação, este foi o dia de destaque No auditório B1, mostraram-se sete curtas-metragens internacionais e nacionais, deixando os espectadores envolvidos na particularidade do cinema de animação Manuel Gorjão, estudante do 2º ano de Ciências da Comunicação, destacou a singularidade desta sessão - "Projetando exclusivamente filmes de animação, esta era a priori uma sessão diferente das outras e, portanto, para ela parti sem expectativas” A quarta sessão de filmes impulsionou uma discussão frutífera acerca da animação no cinema universitário em Portugal. Mário Gajo de Carvalho, produtor e especialista de animação, e Fernando Galrito, diretor artístico da MONSTRA - Festival de Animação de Lisboa e professor no Politécnico de Leiria, juntaramse via Zoom numa conversa moderada por Eva Costa, membro da equipa do CINENOVA. Terminada a discussão, deu-se início a mais uma mostra de filmes selecionados a concurso no festival.

O filme francês “Ready-Made” de Corentin Courage abriu a quinta sessão Seguido de “Mergen”, ficção do realizador Cazaquistanês Raiymbek Alzhanov A sinopse descreve este como um “thriller histórico entusiasmante enriquecido com magia antiga” Alexandra Kurt, em “ELLE”, focou-se numa mulher de 50 anos chamada Elisabeth e as suas colegas de casa Finalmente, Portugal fez-se representar com um filme experimental, ou seja, que abrange vários estilos cinematográficos Helena Estrela apresentou-nos “Transportation Procedures for Lovers”, descrito como “uma investigação sobre novas formas de transportar os nossos corpos”. Esta quinta-feira cultural terminou com uma sessão de networking e convívio. No espaço da AEFCSH, o DJ Gosto Dti e o DJ BerGumuma associação entre Bergalgo e VertGumlevaram-nos numa experiência nostálgica pelo cinema e televisão através da música. Entre Floribella e 4Taste, Carros e Hannah Montana, o público reviveu aquilo que o cinema nos pode fazer sentir.

Beatriz Menino, produtora executiva do CINENOVA, revelou que apesar das dificuldades impostas pela limitação dos espaços na faculdade, conseguiram proporcionar um pequeno convívio para divulgar o festival e incentivar a visita às sessões, tal como a participação nas edições seguintes - “Criou-se um ambiente de partilha que me atrevo a descrever como mágico, reunindo equipa, voluntários, designers, realizadores, músicos, CINEamigos e outros alunos que tiveram a oportunidade de tomar contacto com o festival de cinema”

DIA 4 - 25 DE NOVEMBRO Tiago Viveiros

O dia 4 abriu com uma sessão especial Pedro Florêncio, professor na faculdade, foi um dos convidados do festival e trouxe-nos dois filmes da sua autoria, “Banana Motherfucker” e “Onde o meu amigo pintou um quadro” Seguiu-se uma conversa com o realizador, onde este nos deu a conhecer o seu estilo de cinema

16

PSe em “Banana Motherfucker” temos muitos gritos e imagens fortes, como o sangue a jorrar do corpo das pessoas, em resultado dos ataques letais das bananas; “Onde o meu amigo pintou um quadro” é um filme onde se observa um quadro que, delicadamente, é pintado, transmitindo uma ideia de calmaria Assim, enquanto um valoriza a conjugação dos efeitos especiais com a mudança dos cenários, o outro é mais cativante em termos de imagem e simbolismo Apesar de tudo, têm ambos o mesmo propósito: criar uma relação de cumplicidade com o espectador Houve, ainda, lugar para a apresentação de 14 curtas-metragens ao longo de três sessões, todas elas carregadas do ponto de vista simbólico, algo que pode ser encarado como um dos pontos fortes do festival: a diversidade temática aliada a um inteligente encadeamento das narrativas.

Assuntos fraturantes da nossa sociedade, como o consumo de drogas por parte dos jovens, o luto de casais pela perda de um filho ou até o medo da morte, bem como momentos marcantes da história da Humanidade estão bem patentes nas curtasmetragens que o festival trouxe até à nossa faculdade

A aderência do público fez-se notar em todas as sessões do dia, havendo, no entanto, uma clara enchente na sessão especial com Pedro Florêncio Destaque, ainda, para muitas pessoas exteriores à faculdade, que vieram cá de propósito para assistir ao festival

DIA 5 - 26 DE NOVEMBRO Pietra Blasi

E no quinto dia, o Deus do Cinema criou as premiações de filmes. Só seria justo, então, que o quinto e último dia de CINENOVA fosse repleto de homenagens emocionantes e prémios muito esperados. No meio de um público diversificado, foi realizada uma homenagem ao Professor João Mário Grilo. Na primeira intervenção, três palavras foram usadas por um amigo de profissão para tentar sintetizar a grandiosidade de João Mário Grilo: intensidade, densidade e profundidade as três são fundamentais para entender como, ao longo de sua carreira, o realizador tratou (e ainda trata) a sétima arte Então, foi a vez de Margarida Medeiros diretora do Cinenova dedicar algumas palavras a João Mário Grilo A Professora demonstrou a sua admiração, elogiou o senso de humor do colega, e ainda refletiu sobre os paralelos entre a atividade de docente e a vertente de realizador Por fim, Paulo Portugal, antigo aluno do professor, falou sobre recordações, como quando o docente o ajudou a escolher o tema da tese de mestrado num momento de indecisão, tal qual aproveitou o momento para demonstrar toda sua gratidão pelo Professor João Mário através de um pequeno projeto audiovisual

17

Logo, chegou a hora do discurso de agradecimento de João Mário Grilo, e “obrigada” foi a palavra que mais marcou O professor estava emocionado, e fez observações importantes, como a menção do facto que a arte é uma marca da Universidade Nova de Lisboa, inclusive esta o permitiu construir a ponte entre a criação artística e o ensino, e que a sobrevivência deste tipo de projeto não é fácil Finalmente, a tão esperada entrega dos prémios Levando o prémio principal de 1500 euros, temos “Boys” de Raghuvir Khare Para o prémio nacional de 1000 euros, o escolhido foi “Tempos Conturbados” de Carlos Alberto Tavares Pedro. E por fim, quem recebeu o prémio simbólico do público foi o “Transportation procedures for lovers” de Helena Estrela.

Esteve também presente na cerimónia João Manuel Costa, diretor da Cinemateca, que veio dar um abraço a João Mário Grilo e reforçou a sua importância na história da academia com o cinema. Margarida Medeiros, diretora do festival, agradeceu a toda a equipa e deixou claro todo seu orgulho e admiração. A sessão contou ainda com a presença do vogal da Junta de Freguesia de Avenidas Novas que prometeu dar apoio a estas e outras atividades artísticas.

Em entrevista, João Mário Grilo reafirma a importância do CINENOVA e de os alunos tomarem conta da faculdade com muitos projetos artísticos que envolvam toda a comunidade. Inclusive, o professor defende o engrandecimento do festival e demonstra a sua vontade de ver mais coisas produzidas pela FCSH Também foi entrevistada a professora Madalena Miranda, que para a próxima edição quer “continuar a ver bons filmes, continuar a ter sessões paralelas em que o envolvimento dos alunos dos vários ciclos de ensino estejam presentes a debater e a produzir”

Reportagem NECCOM

18
Repórteres: Carolina Arnedo, Paulo Resendes, Beatriz Pinto, Margarida Moreira, Pietra Blasi, Tiago Viveiros, Francisca Leal

FESTIVAL DE CINEMA UNIVERSITÁRIO

APONTAMENTOS A PARTIR DO CINENOVA

A universidade é entendida como um local de aprendizagem Importa, no entanto, pensá-la para além do seu espaço físico (local), relevando-a como um espaço de discussão e transmissão de conhecimentos (aprendizagem). Esse espaço deverá querer-se universal no conteúdo e participantes, não discriminando assuntos ou membros No entanto, para que se chegue à discussão é necessário que haja matéria para discutir, o que pressupõe a partilha de conhecimento de alguém para com outro É necessário que existam passadores de informação, pessoas com vontade de transmitir conhecimento, seja através das formas instituídas de ensino, como as aulas teóricas, seja através de uma outra circunstância que fuja ao cânone académico, refirase particularmente o contacto com a arte. Do mesmo modo e para o efeito, é necessário que se criem espaços que o possibilitem

MANUEL GORJÃO

COMUNICAÇÃO

Um festival de cinema universitário é um bom exemplo disso: um espaço cultural que se apropria do espaço físico da universidade para partilha de objectos artísticos. Fora do registo de aulas, mas igualmente fora dos círculos cinéfilos, o transporte do cinema de fora para dentro da universidade vem possibilitar o contacto de determinadas pessoas, hipotéticos públicos, com a arte cinematográfica, algo que de outro modo poderia não acontecer De qualquer modo, independentemente da experiência individual de cada um com o cinema, significa já um aspecto positivo o facto de esse (re)encontro se dar

19

Um festival de cinema é um estímulo que provoca o encontro das pessoas com o cinema – mais acertado seria talvez dizer o encontro do cinema com as pessoas. O seu papel é de inquietador, é ser um agente activo na criação e promoção de cinema, este um outro inquietador por excelência, fazendo a mediação de filmes entre quem os cria e quem os vê, idealmente quem deles fruirá O que aconteça para lá dele não será da sua responsabilidade, mas é da sua responsabilidade caso aconteça algo. Dá-se, desde logo, um avanço para a democratização do cinema: os criadores ganham uma tela onde exibir o seu filme, os espectadores ganham um lugar na plateia de onde o podem assistir

A um festival de cinema universitário acresce a responsabilidade do contexto, isto é, o facto de actuar num espaço inicial de confronto social, político e cultural Os pretensos fazedores de cinema têm neste espaço uma montra incentivadora ao começo ou continuação da sua actividade num registo profissional não condescendente para com aqueles cuja experiência não seja já o elemento predominante do currículo A correr bem, este será o tempo e lugar nos quais essas pessoas vão, através da arte, dizer de si. Do mesmo modo, também a correr bem, espera-se que haja resposta por parte do público dada na forma que individualmente mais lhe aprouver, mas que se revelará logo no final de cada sessão, vendo as pessoas a pensar, a não saber o que pensar, a falar, a não saber o que falar, a discutir. Isto é a demonstração de que o cinema não se esgota no tempo de duração dos filmes. Não creio, aliás, que se esgote em momento algum Mas é precisamente esse choque intelectual que tanto a academia como os festivais de cinema universitário deverão procurar proporcionar

20

6 DIAS DE OCUPA NA FCSH

SED SEM EX, LOBORTIS ID

JUSTO

Eram 9 da manhã de 7 de novembro quando cerca de uma dezena de estudantes se apresentou na fachada da FCSH com faixas e megafones protestando pelo Fim ao Fóssil até 2030 e pela demissão do Ministro da Economia, António Costa e Silva

“As ocupas surgiram de um chamamento internacional pelo movimento Ocupa: Fim ao Fóssil. Aqui em Portugal começou a ser organizada pela Greve Climática Estudantil” referiu Carolina Loureiro, estudante de CPRI e uma das porta-vozes da OCUPA na FCSH.

As reivindicações dos ativistas na FCSH consistiam no fim à propina, maior apoio na habitação e alojamento, não subida de preço da refeição social, aulas num único campus, unidade curricular comum obrigatória a todos os cursos sobre ciência climática, o fim dos laços da Nova FCSH com o banco Santander, demissão de todos os docentes que praticam assédio e discriminação, casas de banho neutras em género e mais espaços de estudo

Antes do início da OCUPA, já estes estudantes tinham realizado formações sobre o funcionamento destas ocupações, desobediência civil e sessões de materiais “Ninguém está aqui dentro do núcleo sem ter esses conceitos sabidos, porque ocupar sem ter esses conceitos não vai funcionar ” referiu Carolina.

A manhã do dia 7 foi preenchida pela montagem de tendas e sacos-cama no átrio da Torre B, assim como pela afixação das suas reivindicações nos placares A maioria dos ocupantes traziam comida embalada, alguns produtos de higiene, livros para passar o tempo, colunas para se ouvir música e alguns computadores para a realização de palestras e exibição de filmes

21

Na primeira palestra do dia, os ocupantes apresentaram relatórios da ONU e do IPCC sobre o futuro climático, onde frisaram o facto de a espécie humana estar em perigo nos próximos anos tendo em conta as políticas climáticas atuais.

O atual ministro da economia e as grandes empresas petrolíferas foram alvo de duras críticas por parte dos estudantes. “Nós estamos com dificuldades em pagar as contas e a GALP aumenta em 86% os lucros. É por isto que temos que acabar com os combustíveis fósseis”

A aula dada pelo professor Daniel Cardoso ao início da tarde foi uma das iniciativas mais elogiadas, sendo que todos os estudantes presentes testemunharam o esclarecimento que o professor deu sobre o termo “Antropoceno”

A manhã de sexta-feira viu as entradas da Torre B bloqueadas pelos corpos dos ocupantes segurando cartazes “Quando a normalidade está a ser impedida de prosseguir porque tem pessoas a bloqueála, o impacto é totalmente diferente” defendeu Noa, uma das ativistas.

A manhã de sexta-feira viu as entradas da Torre B bloqueadas pelos corpos dos ocupantes segurando cartazes “Quando a normalidade está a ser impedida de prosseguir porque tem pessoas a bloqueála, o impacto é totalmente diferente” defendeu Noa, uma das ativistas

Durante a semana, os ocupantes tiveram duas reuniões com o diretor em que apresentaram três propostas, a suspensão imediata das aulas até que o governo atendesse ao fim ao fóssil ou à escrita de uma carta aberta ao primeiro-ministro, pedindo que aceitasse as reivindicações do seu movimento ou fizesse um comunicado de imprensa onde dissesse que concordava com as reivindicações dos ocupantes e que iria comparecer na marcha climática de dia 12

Nenhuma das propostas foi aceite “Depois das reuniões, fomos convidadas a sair pelo diretor na sexta-feira à noite Ele deu-nos até sábado às 11h. Ao início íamos ficar, mas, ao conversarmos todas, percebemos que a marcha de sábado ia ter um impacto muito grande e que nós queríamos fazer parte Decidimos sair por uma causa maior”, explicou a porta-voz Carolina.

No entanto, Carolina fez um balanço positivo da OCUPA, “Duas secundárias foram fechadas, tivemos uma reunião com o Ministro da Economia, ocupámos quatro faculdades, algo que nunca antes tinha acontecido”. Até no Parlamento, Mariana Mortágua, deputada do BE, durante essa semana, questionou o Ministro da Economia sobre a sua vontade de explorar gás offshore no Algarve, citando as centenas de estudantes que ocuparam as suas escolas

Apesar de a estadia não ter sido longa, Carolina promete que as OCUPAS vão voltar “Nós decidimos fazer uma pausa nas ações porque precisamos de descansar e de nos reorganizarmos. Vamos voltar na Primavera, a Primavera das OCUPAS. Queremos ocupar pelo menos o dobro das escolas e faculdades e mobilizar mais estudantes.”

22

COLHEITA DE ÓRGÃOS

JÉSSICA MARQUES

Na China a extração de órgãos a prisioneiros é vista como um comércio lucrativo. Em 2006 David Matas, um advogado de direitos humanos, e David Kilgour, ex-secretário de Estado no Canadá, conduziram uma investigação independente que visava desmantelar o esquema do governo chinês. Desde então iniciativas internacionais têm sido conduzidas para derrubar a colheita e o tráfico de órgãos

Também em 2006 os principais hospitais australianos, reconhecidos pelo seu trabalho com transplantes, tornaram ilícito os estágios concedidos a cirurgiões chineses. Mais tarde, em 2008 e 2010 respectivamente, tanto Israel como a Espanha formularam novas leis e modificaram o código penal para terminar com a exportação de órgãos

Em 2012 esta causa alastrou-se aos EUA onde, em congresso, se realizou uma audiência condenando a prática do PCC (Partido Comunista Chinês) O mesmo congresso, já em Junho do ano seguinte, apresentou a H RES 281 onde condenou qualquer extração forçada a prisioneiros, independentemente da sua étnia e religião.

Em Novembro de 2013 uma petição da DAFOH do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos recolheu mais de 1,5 milhões de assinaturas, estas eram provenientes de cerca de 50 países No mesmo ano o Parlamento Europeu aprovou uma lei contra a obtenção antiética de órgãos na China O mesmo Parlamento, em junção com o Comité Económico e Social Europeu, uniram forças para definir as táticas de obtenção destes órgãos como um crime desumano que deveria ter fim imediatamente

Em 2015 Pequim culminou o fim da legalização de órgãos. Contudo, Francis Delmonico, um cirurgião e professor, afirmou, perante o congresso dos EUA, que era impossível determinar se a prática teria sido abolida completamente

É crucial notar que a mencionada extração forçada de órgãos atinge, principalmente, as minorias étnicas, linguísticas e religiosas. Depois de serem colocados no corredor da morte, e sem o consentimento das suas famílias, estes prisioneiros têm os seus órgãos postos à venda no mercado

Um coração é estimado valer 130 000€, enquanto o rim e a córnea lucram 55 000€ e 30 000€, respectivamente Vale, ainda, realçar que todo este negócio é conduzido para proporcionar lucro aos sistemas militares e de saúde chineses

Atualmente, os praticantes de Falun Gong, uma prática espiritual proibida na China, lutam diariamente para que movimentos como este sejam descontinuados

23

LISBOA, 13 DE JANEIRO DE 1975

13 de janeiro de 1975 Poderia ter sido uma segunda-feira normal, mas, nesse dia, centenas de mulheres, numa ação organizada pelo Movimento de Libertação das Mulheres (MLM), iriam para o Parque Eduardo VII, em Lisboa, queimar símbolos que perpetuavam o patriarcado e a violência de género, como revistas pornográficas, produtos domésticos, grinaldas de noiva, brinquedos sexuais e, até, o Código Civil, espelho legal do patriarcado.

No entanto, tudo começou a descambar quando, chegadas ao local combinado, um grupo de homens perseguiu-as, exigindo-lhes que se despissem, assediando-as, insultandoas e, até, tentando abusá-las sexualmente, sendo muitas delas obrigadas a refugiar-se na casa de Madalena Barbosa, uma das fundadoras do MLM Essa “reivindicação” surgia na sequência de uma notícia não-assinada do Expresso de dia 11, que dizia que o propósito da ação seria um espetáculo de strip-tease Ora, essa foi a receita para a destruição deste momento importante na história do feminismo em Portugal, manchado pela mentalidade sexista do homem de então (se fosse só de então ) e acabando com o movimento pouco depois. No entanto, este não seria o fim do feminismo em Portugal e a ação conseguiu chamar a atenção para a situação da mulher no nosso país

Mas porquê falar do 13 de janeiro se não aconteceu como previsto? Vamos por partes.

O Movimento de Libertação das Mulheres foi criado a 7 de maio de 1974, dia da leitura da sentença de absolvição do caso das Três Marias –Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa –, provocado pela publicação do polémico livro Novas Cartas Portuguesas (1972) – que denunciava a situação da mulher no Portugal marcelista e o colonialismo –, e inspirado nos movimentos de libertação franceses saídos do Maio de 68. seguindo, de acordo com Manuela Tavares, uma lógica feminista radical.

24 N F F C S H

Reivindicavam a plena igualdade jurídica e legal entre homens e mulheres, o direito ao aborto, igualdade salarial, o reconhecimento pelo Estado do trabalho doméstico e o fim da violência contra as mulheres, conjugado com um papel de pedagogia sobre os direitos da mulher.

Na ação em questão, para além de terem como objetivo queimarem símbolos do patriarcado, também contou com a presença de três mulheres disfarçadas, representando, cada uma, um estereótipo: a mulher vamp, como objeto sexual, a mulher dona de casa, “de lenço na cabeça e esfregão na mão” (Diário de Notícias, 2006), e a mulher noiva, “de véu e grinalda” (Diário de Notícias, 2006). Das três, só a noiva, de acordo com Maria Teresa Horta, é que saiu “ilesa” do ataque

Várias foram as mulheres que levaram os seus filhos à ação, para que fossem testemunhas vivas de um movimento importante pela igualdade de género. Mas nem a presença de crianças demoveu os homens sedentos de destruição que por lá esperavam pelas mulheres, obrigando a esconder os filhos nos carros, ou refugiando-os em casa de Madalena Barbosa Pequeno pormenor: relatos de várias manifestantes e de jornais da época davam conta de que muitos homens tinham na lapela símbolos de todos os partidos, desde a esquerda até à direita, mostrando o quão ecuménico pode ser o machismo

Os jornais do dia seguinte revelavam que tinham estado entre dois mil, de acordo com a República, e cinco mil homens, de acordo com A Capital, a boicotarem a ação e a perseguir as mulheres No entanto, é de louvar que jornais como A Capital e o Diário de Lisboa tenham condenado a atitude dos homens sedentos de destruição, revelando um mínimo de solidariedade para com as mulheres que participaram nesta ação.

A notícia chegou a França, com a publicação do relato feito pelo MLM no jornal Libération Assim, a luta não acabara nesse dia, nem acabou, mas será que algum dia atingiremos a verdadeira igualdade económica e social?

25

MARIPOSA INALCANÇÁVEL, APANHA-A SE PUDERES!

No chuvoso domingo de 27 de novembro, o expresso mundial “MOTOMAMI TOUR” fez uma paragem em Lisboa, numa noite mágica cheia de energia, capaz de transformar a tempestade de domingo num verdadeiro furacão destrutivo e cintilante.

Branco, assim se inicia o concerto. Numa tela branca pronta para ser pintada, Rosalía sobe ao palco ao som de rugidos de motas em fúria, e, numa primeira pincelada perfeita, inaugura o espetáculo com a incatalogável canção Saoko

Imprudente, até desrespeitosamente, passa da agressividade de ‘Saoko’ para a doçura de ‘Candy’, como se nada tivesse acontecido Todavia, Rosalía é isto: uma estrela pop que pega em todas as regras usadas e abusadas do jogo e subverte-as.

Por vezes, até, as deita borda fora. Aliás, o disco “MOTOMAMI” é precisamente uma manifestação dessa mesma premissa: destruir com gosto todas as suas obras anteriores para que possa rejuvenescer e dar passo a algo novo Testemunho que se reflete na tour. A voz carrega grande parte do espetáculo, mas os bailarinos, as luzes e as câmaras desempenham igualmente um papel principal-

26

O pacto e a unidade que se cria com elementos, que, num concerto “normal”, são vistos como meros adereços, tornam esta tour incomparável. Não é por acaso que a cantora catalã, de há cinco anos a esta parte, tem vindo a conquistar o mundo com a sua identidade singular e uma vontade assumida de se afirmar à sua maneira

Desta forma, logo a abrir, ficámos cientes de que nos esperaria um desfile de canções a várias e contraditórias velocidades e com uma conjugação de temas e luzes interessante no decorrer do concerto O palco branco pinta a bravura, a coragem e aquece o nosso sangue vermelho com a efervescência de temas como ‘Motomami’’ e 'Bizcochito’'. No preto, revela o seu verdadeiro eu, numa canção cheia de transparência e emoção flamenca, na canção ‘De Plata’ do seu primeiro álbum A sua vulnerabilidade e impurezas são-nos consagradas sob o luar vermelho com ‘Diablo’, um dos momentos mais íntimos de “MOTOMAMI”

Joga a frieza do roxo para animar o público com êxitos como ‘Linda’ e ‘TKN’. Já na reta final do concerto, Rosalía leva-nos aos céus ‘Con Altura’, para acabar com o primeiro corpo do concerto Mas ninguém pretendia pôr o pés no chão tão cedo, portanto, o regresso fez-se com a pura diversão de ‘Chicken Teriyaki’, a emoção à flor da pele de ‘Sakura’ e o samba frenético de ‘CUUUUuuuuuute’

Por vezes, até, as deita borda fora Aliás, o disco “MOTOMAMI” é precisamente uma manifestação dessa mesma premissa: destruir com gosto todas as suas obras anteriores para que possa rejuvenescer e dar passo a algo novo. Testemunho que se reflete na tour A voz carrega grande parte do espetáculo, mas os bailarinos, as luzes e as câmaras desempenham igualmente um papel principal

Quanto a Lisboa, a cantora revela que já ansiava há bastante tempo voltar à cidade - “um sítio precioso” - pelo qual diz ter-se apaixonado à primeira Não será exagero dizer que Lisboa também se apaixonou por Rosalía à primeira vista, pelo poderio de uma voz que não esquece as raízes, mesmo quando, em verdadeiras jogadas de mestre, se atira para outros territórios Destinos mentais incontáveis. Rosalía despertou a mariposa dentro do espectador numa transgressão espiritual do início ao fim Nunca se viu uma jóia tão pura.

27

TWITTER: WHAT HAPPENED

U

O Twitter foi uma rede social que surgiu em 2006 com a grande função de partilhar com o mundo microestados, algo que o Facebook fazia na altura, mas infimamente mais simples e mais rápido. Hoje em dia o Twitter é uma das maiores redes sociais, no entanto, o seu futuro pode estar em risco.

Elon Musk fez a primeira oferta pelo twitter já em abril, uma oferta considerada hostil e da qual Musk tentou desistir ainda no verão deste ano No entanto, ele teve de honrar esta compra após ameaças de processos por parte da anterior direção do website. A compra foi finalizada pelo valor original e sem fruição de mais qualquer ação legal por 44 mil milhões de dólares, esta compra retirou efetivamente o Twitter da bolsa de valores tornando-se numa empresa privada

Os problemas começam com a gestão problemática de Musk Quando ele comprou a rede social, ele falava no seu desejo por uma rede social que se pauta pela liberdade de expressão sem limites Algo que rapidamente deu problemas, com milhares de contas a mudarem de nome para o novo dono do Twitter criando conteúdo de comédia e paródia sobre ele, algo que não foi muito bem aceite pelo mesmo

28

Rapidamente qualquer pessoa que tivesse mudado o nome da conta para Musk ou de algum modo gozasse com ele, acabavam banidos pela app, mais tarde, foi revelado por um dos engenheiros que trabalhavam para a Twitter que foi exigido por Musk que este conteúdo fosse removido da app. Este engenheiro foi um dos milhares de despedimentos que aconteceram desde que Musk tomou poder, muitos despedidos depois de comentários feitos na app sobre o atual estado do ambiente de trabalho na empresa

Outra das ideias controversas de Musk foi a substituição do símbolo azul que confirmava a autenticidade de uma conta por um sistema pago para adquirir o mesmo símbolo azul por 8 dólares/mês

Esta foi a gota de água para muitas empresas, algo que inicialmente foi visto como piada, rapidamente criou perdas milionárias para algumas empresas quando anónimos criaram contas com esta marca azul a falar pela marca, um dos maior exemplos aconteceu com a Eli Lilly and Company, uma farmacêutica americana que após terem a sua entidade online tomada por alguém que twittou que a insulina seria agora gratuita, este pequeno tweet criou uma perda milionária em bolsa para a empresa que mais tarde lançou um comunicado não só a partilhar as suas redes sociais oficiais, mas também um programa para o acesso acessível a insulina

Neste momento a rede social tem um novo escândalo quase todos os dias, mas principalmente por causa dos despedimentos em massa, voluntários ou não. Quando os meios de imprensa tentam contactar a divisão de comunicação do Twitter a resposta é que este departamento já não existe Muitos utilizadores sentem-se inseguros não só em relação ao futuro da aplicação por se estar a tornar num ambiente mais hostil com figuras anteriormente banidas pelo seu comportamento violento agora voltam a juntar-se à aplicação Mas também porque os engenheiros responsáveis pela segurança dos dados dos utilizadores e que preveniam outros tipos de ataque foram despedidos.

O mais recente escândalo na altura da elaboração desta peça é a possível remoção da aplicação do Twitter da loja de aplicações da Apple por motivos ainda por apurar por parte da gigante tecnológica.

Neste momento resta apenas aguardar por respostas e enquanto esta incerteza se mantém a aplicação continua a perder utilizadores todos os dias

29

QUANDO O ÓDIO VESTE A FARDA

Em novembro de 2022, o Consórcio de Jornalistas de Investigação portugueses lançou, juntamente com a SIC Notícias, dois episódios sobre uma investigação que fizeram, da qual se concluiu que mais de 500 operacionais da GNR e da PSP em Portugal praticam crimes de ódio nas redes sociais.

O documentário acompanha o caso do polícia Luís Maria, dirigente sindical da OSP (Organização Sindical dos Polícias), que há muito partilha mensagens de extrema-direita, rendendo-se à figura de Salazar enquanto profere o ódio através de mensagens racistas, xenófobas, e, até, comparando criminosos portugueses a políticos.

O Consórcio dos Jornalistas de Investigação revelou a existência de variados grupos secretos de Facebook restritos a agentes da PSP e da GNR, onde milhares de polícias fazem apologias frequentes à violência. A base de dados da investigação contou com 591 operacionais e mais de 40% destes publicam apelos à violência contra minorias, políticos e alegados criminosos. O racismo é o tema da maioria das ameaças Este comportamento dá-se em polícias de todos os distritos do nosso país, sendo Lisboa e o Porto os que contêm o maior número – 156 e 102 polícias, repetivamente Destes 591, mais de 75% manifesta simpatia pelo partido CHEGA Destes, 56% louva partidos e movimentos nacionalistas extremistas de direita

A IGAI – Inspeção Geral da Administração Interna – é quem assume a responsabilidade das queixas e denúncias acerca da atuação das forças policiais Em 2021, receberam apenas 20 queixas, que, comparadas com o número de 591 operacionais que a SIC nos apresenta, é um número muito reduzido

Segundo Manuel Augusto Magina da Silva, Diretor Nacional da PSP, o comportamento desta entidade em relação a estes casos passa por processos disciplinares, participações ao Ministério Público e punições Entre 2021 e 2022, foram 15 os processos abertos por suspeitas de comportamentos racistas, xenófobos e radicais no efeito, dos quais, 6 geraram penas disciplinares De todos os operacionais investigados entre 2006 e 2020, a PSP suspendeu 2,91% e expulsou apenas 0,8%

30

Os comportamentos destes operacionais violam as normas disciplinares em vigor nas forças de segurança, e a sua violência abre portas ao crime, principalmente o incitamento ao ódio – praticado por 71% dos analisados na base de dados

Os discursos radicalizados tomados pelos polícias têm como figuras mais comentadas André Ventura, em primeiro lugar, seguido do ativista político antirracista Mamadou Ba, e, em terceiro lugar, está a figura de António Salazar

Na reportagem de Pedro Coelho e Filipe Teles, são entrevistadas figuras políticas portuguesas como Joacine Katar Moreira, Francisca Van Dunem, Anabela Ferreira, e ainda dois ex-vicepresidentes do CHEGA – Nuno Afonso e José Dias. No documentário, são recordadas figuras como a de Cláudia Simões, mulher racializada agredida por agentes da PSP em 2020, caso que ficou gravado e que circulou pelas redes sociais durante muito tempo, gerando grande inquietação nos visualizadores. É também recordado Bruno Candé, ator português assassinado em 2020, vítima de um crime de ódio racial Ambas as vítimas foram alvo de críticas nos grupos de Facebook restritos aos operacionais portugueses

Ao longo da investigação, é frequente a alusão a episódios criminais que envolveram crimes contra pessoas racializadas, e minorias em geral, praticados por operacionais da PSP e da GNR, em Portugal.

O Diretor Nacional da PSP, o Comandante-Geral da GNR e o Ministro da Administração Interna recusaram comentar os dados revelados pelo Consórcio

Os dois episódios da Grande Reportagem da SIC “Quando o ódio veste farda” estão disponíveis on-line, no site da SIC Notícias

31

artigos de opinião

A INQUIETAÇÃO DA SOCIEDADE LÍQUIDA

A aplicação do adjetivo “líquido” à sociedade, costumes e hábitos humanos foi popularizada pelo sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman (1925-2017) com o seu trabalho tardio “Modernidade Líquida” (1999) e as suas respetivas sequelas: “Amor Líquido” (2003); “Vida Líquida” (2005); “Medo Líquido” (2006) e muitos outros livros, que publicou até à sua morte, relacionados com o termo que introduziu na sociologia do século XXI O autor começa, a partir deste livro, a desenvolver uma observação singular das transformações de uma sociedade altamente influenciada pelo sempre galopante progresso científicotecnológico. Graças a este trabalho, começado na viragem de século e continuado em inícios do mesmo, Bauman, merece um lugar entre os sociólogos mais influentes do século XXI.

É necessário, primeiramente, esclarecer o conceito de “líquido” para Bauman, segundo o autor “líquido” serve para caracterizar as relações humanas na sociedade contemporânea em oposição ao que antes seriam relações e interações “sólidas”. Bauman utiliza o atributo líquido ou fluído, enquanto metáfora, para descrever as condições de constante mudança e mobilidade que observa nas relações entre humanos, nas identidades e no mundo global dentro daquilo que é a sociedade contemporânea Citando o próprio: “Numa vida líquida moderna não existem laços, e quaisquer que adotemos por algum tempo devem estar atados com folga para que possam ser desfeitos outra vez, tão rapidamente e com o mínimo esforço possível, quando as circunstâncias mudarem – que com certeza vão na nossa sociedade moderna, uma e outra vez ”

33
C H T L I C E N C I A T U R A E M F I L O S O F I A , 1 º A N O
E

Bauman considera então que se deu uma mudança de paradigma naquilo que é a sociedade e as suas relações intrínsecas, uma mudança de sólido para líquido O autor atribui o termo sólido aos tempos onde era costume os humanos só terem durante a maior parte da sua vida só um local de trabalho, um parceiro, uma casa, entre muitos exemplos. Existia aquilo a que se podia chamar de uma relação sólida com o envolvente, com as pessoas e situações que formam o nosso quotidiano A modernidade na sua potência - podemos ter como referência temporal a viragem de milénio e/ou de século - trouxe consigo um novo paradigma social, a enlouquecedora velocidade da constante mudança, onde o sólido já não respondia às necessidades do ser e da sociedade e foi rapidamente substituído pelo líquido

Ora, não existe qualquer problema com esta situação, é sabido que o ser humano é um ser extremamente plástico e adaptativo e esta nova realidade não lhe impôs impossibilidades ou incapacidades. Por isso mesmo não podemos afirmar que uma sociedade sólida é objetivamente melhor que uma sociedade líquida Contudo, não podemos afirmar o contrário, com isto poderia nascer outra questão: era preferível viver numa sociedade sólida? (Acaba por ser uma questão de preferência e capacidade de responder às necessidades do humano da contemporaneidade, não uma relação de superioridade ou inferioridade)

Claro que esta mudança de paradigma, que ocorreu de maneira radical e abrupta, trouxe para a sociedade muita incerteza e inquietação. As relações sólidas, inegavelmente, proporcionamnos uma grande sensação de segurança e proteção, o ser humano viu-se, como tal, obrigado a lidar com um mundo onde as relações estão em radical e constante mudança, onde a proteção que nos era dada pelas relações duradouras foi-nos retirada e substituída por inúmeras relações que de maneira fluída estão em constante sobreposição e permutação

O problema está na maneira como nos relacionamos dentro de uma sociedade líquida Talvez aí resida a incerteza e inquietação. Quando nos deparamos a recorrer às redes sociais para obtermos aprovação dos restantes, quando os feedbacks mesmos influenciam estados de espírito. Estamos perante o que Bauman descreve como o “crime da humilhação”: “Vivemos num mundo de comunicação, toda a gente obtém informação sobre toda a gente Existe uma comparação mundial e não nos comparamos só com as pessoas que nos estão próximas, comparamo-nos com pessoas de todo o mundo e com o que nos está a ser apresentado como decente, adequada e digna existência. É o crime de humilhação ”

34

O problema real que surgiu com o nascimento das redes sociais foi o de estas fomentarem o afastamento crescente do ser humano de uma realidade de contacto, emergindo-se numa sociedade completamente utópica, abstrata, virtual, desprovida de vida (a importância do chamado “cara a cara”) Acho que nestas situações podemos afirmar que não estamos a utilizar as ferramentas que nos são fornecidas da maneira correta Quando se fala em relações de amizade, relações de trabalho, etc sem nunca se ter estado em contacto com a pessoa fisicamente Segundo Bauman isto acontece porque “Ao contrário das «relações reais», as «relações virtuais» são fáceis de entrar e de sair Aparentam ser inteligentes e limpas, de uso fácil, quando comparadas com as pesadas, vagarosas e confusas relações reais ” Bauman demonstra ainda outra das consequências da evolução cientifico-tecnológica quando afirma que “A versão atualizada do Cogito de Descartes é «Eu sou visto, logo Eu sou – e quanto mais pessoas me virem, mais Eu sou.»”, esta afirmação é altamente inquietante quando lhe dedicamos algum tempo de reflexão, e pode de facto levar-nos a encarar todo o mundo dentro das redes sociais de uma maneira completamente diferente da atual

Acho que após estes exemplos podemos cair no erro de criticar tudo o que veio e foi proporcionado pelo avanço cientifico-tecnológico, mas tal seria um enorme erro Seria idiota negar as ótimas consequências que as redes sociais e mecanismos virtuais nos trouxeram enquanto espécie, foi talvez o que salvou muita gente durante os tempos de isolamento da pandemiarefletindo sobre tempos mais recentes A capacidade de comunicar e trabalhar à distância foram excelentes resultados deste desenvolvimento, volto a frisar que o problema está quando as relações humanas passam a ser somente virtuais e, portanto, completamente abstraídas da sua natureza de contacto

Visando acabar com as inquietações e incertezas que os tempos líquidos nos trazem temos de saber como nos comportar perante e consoante estes. Temos necessariamente de aprender que “Vivemos num mundo global Isso significa que todos nós, conscientemente ou não, dependemos uns dos outros. Qualquer coisa que façamos ou nos abstenhamos de fazer afeta as pessoas que vivem em lugares que nunca visitaremos ” , mas também aprender a ter uma mentalidade, de tal forma aberta, que permita entender e compreender novas opiniões que estão, também elas, em radical e constante mudança, e ainda encarar o choque de opiniões não como um confronto, mas como uma oportunidade de aprendizagem e de demonstrar respeito pelo outro*.

35

Assim, Bauman não crítica esta modernidade líquida, não nos diz sequer que é possível voltar outra vez a um mundo sólido (Bauman chega a dizer que “O que foi cortado já não pode ser colado de volta. Abandona qualquer esperança de totalidade, futura tal como passada, tu que entras no mundo da modernidade fluída ”) Bauman fez o trabalho honorável de nos mostrar como estamos a lidar com esta nova apresentação da sociedade e das relações humanas, mostra-nos os erros que estamos a cometer enquanto indivíduos e sociedade. Promovendo uma oportunidade de melhoria na nossa maneira de lidar com os outros, connosco e com o que nos rodeia - o trabalho de Bauman permitenos uma reconciliação com o mundo e com o Eu

36

DEVOLVE O QUE DEVES

Geoffroy Saint-Hilaire Possivelmente, este nome pode-vos ser estranho, mas estamos a falar de um dos maiores naturalistas franceses do final do século XVIII e início do XIX Ah, é verdade, também veio com Junot durante a primeira invasão francesa e levou tudo o que era espécimes, animais (só do Palácio da Ajuda, estima-se que tenham sido cerca de mil animais) e vegetais, que atualmente fazem parte da coleção “Cabinet de Lisbonne” do Museu de História Natural de Paris, mas essa parte não interessa muito.

Podemos não ter esta noção, mas existe, em museus franceses, arte nossa que foi saqueada durante as invasões francesas Tapeçarias, peças de prata e ouro roubadas, que hoje estão no Museu de Belas Artes de Lyon, manuscritos e livros que hoje estão na Biblioteca Nacional de França. Apesar de não ser um tema que esteja no centro da vida política, no centro da vida política, foram feitos, ao longo dos anos, estudos, reflexões, e até petições, destacando-se a petição Nº 288/XIV/2 “Pela restituição dos bens culturais saqueados pelas tropas napoleónicas francesas em Portugal”, lançada em 2021, atualmente arquivada e com 215 assinaturas Também convém destacar a defesa em 2009 da restituição da arte roubada por parte de Natália Correia Guedes, referência incontornável da museologia português, primeira mulher Diretora-Geral do Património Cultural e fundadora do Museu Nacional do Traje

Se consideramos a arte como a materialização da cultura de um povo num momento histórico, é importante que, como respeito pela memória histórica, cultural e artística dos povos, devam ser devolvidas as obras de arte roubadas durante as invasões francesas É um imperativo moral, para restituir o mínimo de justiça histórica pelos erros do passado

Porém, infelizmente ainda há pessoas que acreditam que essa devolução não é significativa. A justificação dos mesmos é de que “o país não se encontra preparado para cuidar dos artefactos” Essa é uma premissa engraçada, pois sendo estes artefactos deles, os únicos que podem dizer se estão ou não preparados para a devolução dos mesmos são os países que foram roubados

Contudo, se vocês que estão a ler e consideram injusto existir arte nossa nas mãos de outros, perguntamos-vos uma coisa: pensaram também em todo o património que temos nos nossos museus, que foram roubados pelo Estado português durante o colonialismo?

37
NOVADEBATE FCSH Ricardo Cruz Reis e Ana Bertiz

Ao longo dos anos vemos a criação da divisão do mundo, onde países colonizadores são vistos como superiores enquanto aqueles, colonizados e roubados são vistos como os “países de terceiro mundo” A partir desta analogia, percebe-se então a divisão dos países com uma escala não só económica mas, também, social, e o mundo de hoje considera que esses países ditos “superiores” devem manter estes artefactos como um meio de manter a história Mas e os países colonizados não têm direito a manter a sua história? Pois o que sobra de um país quando tiramos a sua cultura!? Quando tiramos os artefactos que representam a sua história, o que sobra, eu pergunto-vos.

Atualmente, vemos no Museu Nacional de Arqueologia e no Museu de História Natural e da Ciência, muita arte que foi roubada do Brasil, de Angola, de entre outros territórios Aliás, muito do espólio roubado por Saint-Hilaire e pelas tropas francesas durante as invasões eram, curiosamente, espólio roubado pela Coroa portuguesa do Brasil e de outros territórios

O passo que foi dado em 2018 pelo Presidente francês Emmanuel Macron foi um importante avanço no reconhecimento da perpetuação do colonialismo, através da necessidade de restituir toda a arte roubada durante esse período negro da história Em Portugal, o assunto começou a ser falado em 2018, quando a Ministra da Cultura angolana, Carolina Cerqueira, declarou no Expresso ter a intenção de pedir à Direção-Geral do Património Cultural a restituição de máscaras, objetos quotidianos, entre outros, que se encontravam (e se encontram), em museus portugueses como o de Etnologia, mas não avançando com nenhum pedido formal. No entanto, só ganhou uma dimensão mediática maior quando, em 2020, a deputada Joacine Katar Moreira, então deputada do Livre, defendeu o mesmo caminho que Macron, através da realização de um levantamento de todas as obras de arte de país ex-colonizados em Portugal, contando com o apoio do PAN e o alargamento da proposta por parte do Chega à própria deputada

38

Em 2021, a comissão nacional do Conselho Internacional de Museus, lançou um inquérito para fazer um inventário sobre as obras provenientes de países não-europeus presentes nos nossos museus.

Muito recentemente, em novembro, o Ministro da Cultura Pedro Adão e Silva, admitiu a inventariação das obras de arte provindas das ex-colónias, mas deixando o tema para a academia, para não alimentar opiniões polarizadoras ao trazer para a política

Apesar de, de acordo com Isabel de Castro Henriques, especialista em História de África, e de Paulo Costa, diretor do Museu de Etnologia, termos de ter em conta o facto de também haver arte que foi oferecida pelos monarcas africanos, também é verdade que, como defendem Castro Henriques e Costa, para sabermos distinguir, tem de ser feito um levantamento em todos os museus portugueses e institutos universitários, para que seja reposta o mínimo de justiça histórica pelo colonialismo

Não podemos olhar para os erros crassos do passado com as lentes de hoje, mas se o colonialismo se perpetua nos museus, o mínimo que o Estado português pode fazer é essa restituição França, Alemanha, e muitos outros já deram o pontapé de saída. Como será Portugal?

39

ENTRE A FACA E A PAREDE

Um dos aspetos mais marcantes da democracia liberal contemporânea é a forma como a população e, mais especificamente, a classe trabalhadora, vê o seu sujeito político transformado num agente manipulável por eleições. Assim, é comum que dos EUA à França, da Rússia ao Brasil, a “escolha” que é dada ao povo nas eleições passa menos por um voto consciente na opção que mais reflete os seus interesses e sim por uma legitimação eleitoralista de um sistema corrupto, falido e opressor Mas o objetivo deste texto não é discutir a democracia liberal e o neoliberalismo, mas sim aplicar este conceito de dissolução da participação política ativa nas sociedades ocidentais e colonialistas ao pequeno microcosmo da Faculdade - especialmente, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.

Escrevo isto um dia antes das eleições sem saber que lista (a A ou a M) irá ganhar, mesmo que esteja praticamente garantido que a AE que domina o espaço político da Faculdade desde 2017 tenha a sua vitória garantida. E isto deve-se ao facto de que a realidade da política estudantil a nível nacional e da nossa Faculdade não se altera independentemente da lista vencedora Isto porque os nossos estudantes e a nossa comunidade vêm-se de momento obrigados a escolher entre a espada e a parede De um lado, a recorrente reação organizada pelos liberais amantes da tecnocracia financeira sem qualquer visão transcendente e educada da situação estudantil (vejamos a famosa roleta da propina), e do outro, um grupo endogâmico, fechado e monopolista da política na FCSH, com poucas aspirações à construção de uma frente estudantil politicamente autónoma e com maiores desejos do fortalecimento do Partido Comunista (sim, eu acabei de dizer aquilo que muitos de nós sabemos, mas que preferimos não vociferar: há uma grande promiscuidade entre os quadros do PC e os quadros da AE)

40

Atenção que o problema não reside no PCP O autor do artigo é marxista e votante do partido desde a primeira eleição em que pôde votar O problema reside nas próprias pessoas e interesses que regem a ação da Associação de Estudantes - que, devido à sua proximidade com o único partido português com uma visão de classe teoricamente válida e consistente, possui a honra de ser das poucas AEs em Portugal com um plano e propostas para a vida estudantil estruturadas. E tal como o problema do PCP foi e é, já desde o PREC, uma aversão à ação direta e ao “fazer acontecer”, assim como a todos os movimentos que não estejam sob o seu controlo, também a nossa AE parece ter mais interesse na performance da luta do que num plano de ação com níveis de escalação e com pontes entre os diferentes movimentos para a construção de uma frente que meta medo às estruturas de poder do Ensino Superior e à direção

Os estudantes têm, neste momento, de agir de uma forma que ameace a continuação normal da vida estudantil e deixar de lado a ideia de que gritar os problemas que todos conhecemos num megafone em manifestações com o aval da polícia vai eventualmente convencer os interesses instalados na Universidade portuguesa a deixarem de ser “mauzinhos”

A minha abordagem à ação da Associação de Estudantes da FCSH (assim como de todas as outras comissões de festas com poderes políticos pelo país fora) parte de um princípio de que estamos num ponto sem retorno dos direitos estudantis em Portugal

Há muito que se foram os tempos da aliança operário-estudantil típica dos movimentos da década de 60 e 70, e as RGAs, que em tempos eram espaços de reinvidicação e de organização política radical, são agora meros espetáculos institucionais. A situação estudantil não existe num vácuo: é uma consequência da gradual desmontagem do povo como instância política na paisagem do neoliberalismo e a destruição dos embriões de uma hipotética democracia popular

Assim como o movimento climático tem (e teve) de se radicalizar e deixar de lado os apertos de mão com as elites para passar a cometer o que são literalmente atos de desobediência e sabotagem, também os estudantes (especialmente os portugueses) têm de radicalizar os seus esforços e de aceitar a insurreição vindoura - ou seja, fazê-la acontecer E não há espaço mais propício em Portugal para o surgimento de um novo modus operandi do movimento do que nos corredores da Avenida de Berna.

41

Somos uma Faculdade com uma tradição de luta, como o exemplo da Faculdade encerrada pelos estudantes na década de 90 (mesmo que o Rui Tavares não tenha gostado muito na altura), e um corpo estudantil criado à sombra académica dos Annales, da Escola de Frankfurt e do póscolonialismo munido de uma vontade de pensar com grande potencial. Os estudantes da FCSH são neste momento uma massa anónima de insatisfação, por mais complacente que seja, com a necessidade de um grupo que dirija e que dinamize as ações de interrupção da vida normal e de chantagem dos poderes estabelecidos.

Complacência. É uma palavra injusta para aplicar a uma AE com tanta bagagem de luta e de reivindicação como a da Lista A, que nunca falha em demonstrar a sua educada compreensão da situação estudantil e de apresentar propostas concretas a nível da Faculdade e do sistema em geral naquilo que vai desde a habitação às taxas e emolumentos e à própria estrutura social do Ensino Superior. Mas é a complacência que os define pela sua incapacidade de renovar os métodos de luta e de criar alianças e pontes com o ecossistema de movimentos sociais na frutífera e incandescente região da Grande Lisboa

Em outubro foi convocado o “Mês de Luta” depois do grande escândalo da completa má-gestão dos estágios pela Faculdade, das chorudas taxas de mudança de cadeiras, e toda uma série de palhaçadas que a Direção parece impor aos estudantes como se estivessem a gozar com a nossa cara

A intenção e a estratégia foram muito bem pensadas - a insatisfação há muito que não era tão grande como naquele momento Lá estava a oportunidade de mobilizar de formas nunca antes vistas a comunidade para a luta Mas, por alguma razão, não foi isso que aconteceu Foram pintadas e afixadas as famosas faixas, fizeram-se conversas, debates e até uma RGA politizada Mas no final, a concentração foi um “flop” de desorganização e de mobilização, falhando em criar o movimento necessário para ao menos meter a Direção nos eixos e mostrar que não estamos para brincadeiras A razão? Não sou eu o responsável por esta autocrítica que deve ser a AE a fazer depois do fracasso do mês de luta Mas eu daria a sugestão de que talvez seja o facto de estarmos a fazer as mesmas coisas e os mesmos protestos desde 2017, que faz com que o estudante insatisfeito nem sequer sinta a vontade de trazer a sua voz à luta - falhando na transformação do sujeito furioso no sujeito político e militante

É uma crassa falta de novidade, de renovação e de rutura que não apenas define a placidez da AE como também intensifica o aborrecimento da comunidade estudantil Podemos também falar de forma mais estrutural: o próprio tecido social dos estudantes é muito diferente agora num Ensino Superior “massificado”, e muitos de nós estão mais preocupados com (sobre)viver e terminar o curso do que estar à chuva a ouvir membros da AE a gritar no megafone - algo especialmente verdadeiro se nem sequer existe um horizonte de vitória, de conquista e de fratura.

42

Depois temos também o caso das ocupas pelo clima organizadas pelo End Fossil na FCSH. Acho que nunca vi uma demonstração tão triste, mas honesta, da situação política da nossa Faculdade: a ocupação aconteceu e lá ficou por algum tempo, o que por si só é um sucesso. Mas no final, ninguém quis saber - não há mesmo outra forma de dizer isto. Nem sequer a Direção se viu forçada a mandar a polícia fechar a ocupa, pelo simples facto de que os estudantes da nossa Faculdade viam a ocupação mais como um grupo de maluquinhos pelos quais eles tinham de passar para ir à cantina pitar croquetes do que como um happening. E esta situação intensificou-se pela completa indiferença da Associação de Estudantes.

Por mais que a ocupação não tivesse a coerência teórica e política dos grandes movimentos da Arroio ou da FLUL, lá estava uma oportunidade, a pouco mais de uma semana depois do mês de luta, de radicalizar os esforços. Uma oportunidade de criar pontes, de unir a luta climática à luta estudantil (que são praticamente a mesma), e de aproveitar a insatisfação da comunidade para servirem-se da ainda grande influência social da AE para mobilizar os estudantes juntamente com a ocupação

Mas nenhum contacto foi feito - sem ser conversas a título pessoal - e, mesmo que todos acreditassem no mesmo objetivo, nenhuma declaração conjunta foi emitida, nenhum plano traçado e nenhum momentum político aproveitado.

Na grande mata que é o movimento social em Portugal, estas duas árvores recusaram-se a trabalhar em conjunto e morreram em futilidade e indiferença As taxas mantém-se, a propina está congelada e o caos climático segue a todo o gás em Portugal

E está aqui um dos focos da questão do trabalho da Associação de Estudantes. Não existe uma compreensão estrutural das formas de escalação e dos clímaxes e rupturas que constituem a luta política A escalação parece ser feita de forma sempre artificial e estática, e não há depois um estudo de que objetivos foram atingidos ou falhados (aparecemos na mídia? Educámos pessoas? Mobilizámos? Conseguimos cedências?), para depois dar lugar a uma palmadinha nas costas da AE feita pela mesma.

A ideia de fechar a Faculdade, de fazer uma greve às aulas ou até de voltar a ocupar no futuro pode deixar muitos desconfortáveis. E é suposto que assim seja Para não referir o facto de que após um encerramento da Faculdade, a Direção nunca puniria toda a comunidade com reprovações por ser um autêntico tiro no pé; a interrupção da normalidade é a nossa única opção de nos fazermos equivaler em poder de negociação com os poderes que regem o Ensino Superior. E esta falta de vontade de sair da zona de conforto da luta estudantil dá a entender que, se os estudantes estão entre a faca e a parede, a Direção e o governo estão entre a faca de manteiga e o colchão.

43

GUILHERME VAZ

OS COMENTADORES E A VIDA REAL

Entre muita palração e vozearia nas televisões e demais meios de comunicação social, ouvimos de comentadeiros e governantes os jargões do costume - daqueles que temos ouvido sempre que "as crises" batem à porta.

Já os conhecemos de cor, não mudam, como não muda o essencial culpado de muitas destas crises (que se unem em crise crónica) e dos seus efeitos devastadores - a palavra mistificada e proibida, a que ninguém quer dizer (muitas vezes nem mesmo aqueles que a ele se opõem - ou que o questionamcom voracidade), o capitalismo São as frases há muito feitas, replicadas à exaustão, que temos ouvido desde fevereiro por causa da guerra, desde 2020 por conta do COVID, mas antes disso desde 2011 pela obsessão pelas "contas certas" e pela inevitabilidade da austeridade (que ainda se vive, em parte), desde os anos 80 pelo "choque necessário à integração europeia", e por aí afora

Não há cá lunatismos - é evidente que há fenómenos que desestabilizam as cadeias de produção a nível mundial e que promovem alterações significativas na vida económica dos países, das suas interdependências, das suas necessidades e das suas vicissitudes Mas há aqui franqueza e honestidadenão se pode permitir, que sob esta pala (que tem largura e comprimento largos que bastem para qualquer que seja o sol que lhe queiram pôr por cima, julgam os que a criaram) se ataquem diretamente as condições de vida dos povos e dos trabalhadores, com toda a certeza os menos culpados no surgimento destas crises (mas sempre os mais afetados)

É por esta linha que - incorretamentetem seguido a esmagadora maioria do "comentariado nacional", instância que tem os seus interesses a preservar e sob a pala acima referida que age, entre outros, o governo portuguêsnuma lógica puramente neoliberal, que tanto nega e renega, condena à degradação das condições de vida milhares de trabalhadores, estudantes, pensionistas e reformados que não foram responsáveis por qualquer que seja a crise de que estejamos a falar Se isto é imoral, imoralidade-mor é que isto seja feito enquanto os lucros das grandes empresas e multinacionais galopam vertiginosamente, atingindo valores recorde

44
LICENCIATURA DE CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS, 1º ANO

E as justificações que ouvimos da governação e da esmagadora maioria do comentariado nacional tendem a ser as mesmas que ouvimos noutras ocasiões - "tem de ser assim"; "a guerra (substitua-se, para outros efeitos, por "pandemia", "crise", "dívida", entre outras) obriga a este esforço"; "aumentar salários levaria a uma espiral inflacionista incomportável"; "[sobre os avultados lucros das grandes empresas e multinacionais] teremos que observar com cuidado o avançar da situação" (mas mesmo com muito cuidado, para não chatear o Patrão!).

Quem se opõe a esta lógica, quem diz que a austeridade nunca resolveu crise nenhuma, quem questiona aquilo que é feito e decidido, quem se inquieta, quem exige mais e melhores condições de vida e, fazendo-o, assume que o caminho a seguir não é este, é tido e catalogado como, das duas uma - ou louco ou uma ameaça

Francamente, ser uma ameaça àquilo que corre, é título que me orgulha a mim e a muitos outros que sentem na pele, na vida de todos os dias, os problemas que a todos, sem exceção, nos afetam

Se eu, como outros, sou uma ameaça contra a degradação dos serviços públicos e pelo reforço dos mesmos, contra a flexibilização e precarização das relações laborais e a desregulação do mercado de trabalho e pela valorização dos contratos de trabalho efetivos, contra os baixos salários e as baixas pensões de reforma e pela valorização dos salários e pensões, contra o atual RJIES, a propina e o modelo fundacional e pela valorização do Ensino Superior e cumprimento do PNAES, pois que me dêem para cá esse título de ameaça, que eu - se é disto que falamos quando falamos em ameaça - o aceito de bom grado, como acredito que muitos outros, independentemente da sua posição no espectro político, aceitam.

Entre o país real e o país que a esmagadora maioria do comentariado vê há distâncias demasiado grandes para que as análises feitas em horário nobre sejam isentas, claras, mas acima de tudo certeiras, e isso prova-se desde logo pela desumanidade e pelo desligamento que é característico dos comentadores Para prova disso, e em jeito de conclusão, uma (ainda assim grande) nota final:

45

Há dias, num das dezenas de programas de comentário que hoje existem na televisão portuguesa, ouvi Cecília Meireles, ex-deputada do CDS, conhecida pelas suas atuações nas comissões de inquérito à banca (onde levantava a voz àqueles que na sua ação política sempre serviu, em números de teatro quase comoventes), afirmar que era um "tremendo disparate dizer que as empresas estavam a lucrar com a crise"! Mas que imoralidade, senhores, como vos atreveis a dizer isso das mui nobres multinacionais!? Com o maior dos descaramentos e dos desligamentos ao mundo real, disse Cecília Meireles que a culpa não é de outro se não do Estado! Ora bem! Esse sim tem em si todas as culpas que lhe queiram inculcar, e mais que isso, é nele que residem as culpas da atual inflação, porque os impostos não estão tão baixos quanto deveriam e porque é impossível, que num exercício de malvadez, as empresas se tenham lembrado de subir abruptamente os preços.

Telegraficamente, para concluir, dois pontos de resposta a Cecília Meireles:

- Concordo com Cecília Meireles quando diz que há impostos que, efetivamente, estão mais elevados do que o que deveriam - alguns aprovados há alguns anos e com um elevado nível de consenso parlamentar E também sou capaz de concordar quando diz que o Estado tem culpas, mas talvez por razões diferentes - é que o Estado também tem os seus interesses de classe

- O aumento das margens de lucro das empresas não é um exercício de malvadez, concordo com Cecília Meireles, e dizê-lo é não conhecer o sistema em que vivemos É óbvio que não é malvadez - é pura racionalidade económica das empresas, que face à oportunidade de o fazerem, não desperdiçaram nem nunca em momento algum desperdiçarão. Lembro-me de um senhor barbudo ter explicado isto há uns bons anos, assim como outros (continuadores do seu legado ou não), mas calculo que Cecília Meireles e outros abnegados ou envergonhados defensores do neoliberalismo não lhe dêem muitos ouvidos - se dessem, com toda a certeza não seriam neoliberais e não demonstrariam tamanho desligamento da vida real e dos problemas que, todos os dias, nos afetam.

46

TATIANA LAMEMA

SOBRE A FACULDADE...

Os anos de faculdade são, segundo alguns, os melhores anos da vida de um indivíduo. Eu, pessoalmente, devo dizer que não sinto isso de maneira alguma.

É verdade que todos temos experiências diferentes, mas o sofrimento e a exaustão constantes parecem ser partilhados pela maioria dos universitários Isto, porém, embora comum, não me parece muito “normal” Porque refiro tal coisa? Porque somos jovens e, assim sendo, não é suposto estarmos cansados a grande parte do tempo (a menos que tenhamos alguma condição física que provoque tal coisa, obviamente). No entanto, não devemos esquecer o cenário mental, e penso que seja aqui que entra a grande questão

O ser humano tem limites e, a meu ver, ultrapassamos esses limites com demasiada frequência no nosso dia-adia A grande problemática não é exceder o limite uma vez por outra, mas sim continuamente e isto, de facto, acontece bastante no ensino superior. Outro ponto que também gostaria de realçar neste tema é o facto de os “limites” que aqui menciono não se tratarem de limites abstratos, na medida em que o seu significado não flui num sentido de tentarmos ser melhores do que éramos ou de “elevar a barra”, mas sim num sentido humano, psicológico e até biológico Chegar ao limite e, a seguir, explodir. É óbvio que esta situação não acontece só nas universidades. Como sabem, existe um pouco por toda a sociedade Trabalhar oito horas ou mais por dia não é benéfico para nenhum nível da saúde

47
C I A S M U S I C A I S , 1 º A N O
I Ê N

Contudo, o que quero realmente destacar é o sentimento que a faculdade me tem passado, a mim, e a tantos outros. Parece que, ao levar o estudo e os “deveres” demasiado a sério, rapidamente entro numa crise existencial, à qual se soma uma revolta que nunca havia percepcionado. Por outro lado, quando há a tentativa de relaxar um pouco, ter mais tempo para mim, para me focar nos projetos aos quais pretendo dedicar a minha vida, a sensação que tenho é que já fiquei atrás, acumulei matéria, deixei um trabalho para acabar em dias apertados e, no fim, o desgaste reaparece como uma má memória que, de vez em quando, retorna para me deixar esmorecida Devo confessar, detesto a expressão: “estou a existir”, mas é do que mais tenho sentido ultimamente

Talvez a culpa não seja do ensino superior em si, talvez seja o sistema onde estamos inseridos. A realidade é que poderíamos, muito bem, licenciarmo-nos em quatro anos, em vez de três, assumindo que o curso que frequentamos tem a duração de três anos No entanto, o que encontramos são alunos exaustos que, por opção ou mera corrente, tentam “despachar” a licenciatura o mais rápido possível, partindo, posteriormente, para o mestrado e implementando a mesma “tática” Acham mesmo que a França ganharia mundiais se os jogadores se limitassem a correr de um lado para o outro? Claro que não, existe mais do que corrida ilógica num jogo, assim como na vida.

Apesar disto, devo admitir que fui apanhada na corrente: “vai para a universidade, tira um curso superior, obtém um emprego estável e seguro ” Evidentemente, nada disto tem mal algum, mas e se este plano de vida não for o que realmente nos faz querer acordar e lutar todos os dias? Tantas perguntas e tão poucas respostas… Existem pessoas que argumentam que os seus anos de estudo no ensino superior foram os melhores da sua vida Muito honestamente, considero tal expressão angustiante, até um pouco deprimente Não gostaria de pensar que estes comboios lotados e estas crises existenciais são o epítome Por favor, que não sejam Ecoa, ainda assim, o argumento de que tudo é uma questão de adaptação Isto é, em termos evolucionais, verdadeiro. Conta a história que sem adaptação o ser humano nunca conseguiria sobreviver e, desse modo, progredir Todavia, sobreviver não é viver; é, apenas, segundo o dicionário online da Porto Editora, Infopédia: “1 continuar a viver [ ]”; “2 continuar a existir [ ]” É bastante triste, eu reconheço, e entristece-me ainda mais saber que muitas pessoas estão presas a trabalhos e vidas que não gostam e não parecem conseguir sair Progredir, por sua vez, embora costume ter um significado positivo, também não é sinónimo nem de felicidade, nem de realização. É mesmo muito triste.

12:58:38] Disponível em https://www infopedia pt/dicionarios/linguaportuguesa/sobreviver

48
Porto Editora – sobreviver no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha] Porto: Porto Editora [consult 2022-11-24

Então, por que será que quando um jovem tenta fazer algo mais, inovar ou lutar pelos “sonhos” que o incentivaram a ter quando era mais novo são, no início da idade adulta, substituídos pela melancolia de viver, de simplesmente existir, pela “realidade” E se a realidade que alguém idealizou e proliferou não for a minha?

Se calhar a faculdade só não é para mim Devo dizer, provavelmente não é, até porque nunca fez parte dos meus planos, mas já que cá estou, quero aproveitar a experiência e mais, quero aprender com esta, sem desenvolver uma depressão, de preferência Observar o mundo da perspetiva de uma jovem adulta perdida num mundo enorme caracterizado por fantasmas ou almas que se apelidam de “mais sábias”, pelas quais, infelizmente, a vida parece somente passar

Talvez a realidade seja que sistematicamente fingimos que nada nos afeta, que nada nos faz pensar, questionar, duvidar, agitar, perturbar, revoltar, entristecer, sentir, meramente, ser humano.

Talvez a realidade seja que não é assim tão difícil ser-se feliz

49

SOBRE AS OCUPAS

GUILHERME MACHADO

O começo deste inverno viu uma fresta de luz nos horizontes de luta da juventude portuguesa Às ocupações de faculdades e à interrupção da reunião do barão do petróleo Costa e Silva com a Ordem dos Contabilistas chamo uma fresta de luz porque, de facto, foi pouco mais que isso. Não estivemos perante um movimento generalizado da juventude portuguesa contra o caos climático, mas sim a ação de grupos pequenos mas bem organizados, de ativistas que estão nesta luta há anos Para muitos, isto é sinal de uma falta de noção, ou incapacidade de “ler a situação”, mas nenhum movimento começa e tem sucesso de imediato. Para atingir os objetivos é necessário primeiro falhar, errar ou se calhar cumpri-los apenas em parte - de modo a aprender com o que aconteceu, fortalecer a disciplina e o consenso e construir novas ações e reivindicações

Para muitos que têm boas intenções mas que estão talvez alheios ao movimento que desde pelo menos 2016 se tem cozinhado nas caves, associações e coletivos lisboetas (sempre em concerto com um movimento internacional), as ocupações foram coisas infantis, exageradas, imaturas e sem nexo. Um bando de “mimados”, que no seu privilégio de brancos ocidentais, decidiram fazer uma “birra”. É interessante como esta perspetiva tem um fundo de verdade - nunca será um movimento revolucionário de jovens de uma capital no Norte Global algo “puro”, ou o que quer que isto signifique para alguns mais ortodoxos - mas que ao mesmo tempo é produto de uma tempestade mediática hostil ao movimento e que procura dar-lhe visibilidade não com o objetivo de o fortalecer, mas sim de lucrar com a própria controvérsia que surge da interrupção da azáfama quotidiana das instituições sociais e políticas

“Temos de lutar pelo clima, mas sempre com respeito à liberdade e à democracia, sem exageros e pacificamente”, dizem os respeitáveis cidadãos que detestam o crime e a desordem! Mas no meio desta belíssima retórica falham em compreender o âmago da questão A luta que virá e as causas por que lutamos não serão feitas com o consenso de todos nem aparecendo nos jornais bem vestidos e a receber apertos de mão de figuras de autoridade Como todas as grandes mudanças e inflexões sociais, será suja, estranha e cheia de tragédia e momentos dramáticos. Não será uma mudança apreciada por todos ou que irá surgir de um tal “contrato social” E acima de tudo, é uma mudança que não virá de Parlamentos, não virá da União Europeia nem dos grandes corredores do poder institucional Será nas ruas e terá o seu início da forma que vimos nas últimas semanas: muito aparato, pouca gente e muita disrupção

50

Para os apoiantes pode parecer um cenário pouco motivador E para detratores é o sinal de que não terá sucesso porque não tem “apoio popular” Mas para ambos refiro-me a um pedaço de História recente e a uma pequena mas poderosa ideia Desde que a “comunidade internacional” (ou seja, os países exploradores do Norte Global com o aval das empresas poluentes) começaram a reconhecer a ameaça das alterações climáticas até muito recentemente, as soluções para esta questão passavam sempre pelo mesmo: uma espécie de tecnocracia de burocratas e cientistas iluminados que iriam pegar no sistema em que vivemos e torná-lo “verde” Mas tal como as antigas promessas de salvação da humanidade pela tecnologia - o Positivismo da Segunda Revolução Industrial também prometeu muita coisa antes de proletarizar a sociedade - isto viu-se imediatamente logrado, com uma ofensiva do capital e das empresas energéticas privadas que na Dinamarca metem as turbinas a fazer energia mas que extraem mais petróleo do que nunca em África. A tecnologia não nos salvou Não nos salvou porque surgiu e foi desenvolvida na mesma lógica que levou ao capitalismo fóssil Daqui surge a simples mas revolucionária ideia de que, talvez, a solução para a crise climática esteja mesmo numa mudança fundamental do sistema económico. E foi com o trabalho e mobilização de milhões de “jovens mimados” que esta ideia saiu das Universidades e da ecologia social (M Bookchin) para se tornar num conceito vastamente reconhecido e utilizado como instância de luta e de mobilização.

51

Ainda me lembro como, depois do Occupy Wall Street e da Primavera Árabe darem lugar a um período de inatividade social, os anos que se seguiram a 2019 demonstraram uma enorme capacidade de convulsão social, esta agora aliada a um movimento climático organizado e com as ideias no sítio (tentem lembrar-se daquela semana em que nas notícias apareceu uma estranha miúda sueca sentada à porta do Parlamento em Estocolmo com um cartaz - e vejam onde estamos agora).

Isto para dizer que o movimento será sempre contrariado. Eles vão continuar a acusar-nos de tudo e mais alguma coisa, vão dizer-nos para irmos protestar para a China ou para a Rússia (porque das melhores coisas que faz o Ocidente é usar exemplos de maus sistemas políticos para relativizar a sua própria barbaridade), e nas ruas, enviarão tropas de choque, tirar-nos-ão à força dos espaços que ocupamos e colocarão muita gente contra nós E isso faz parte Nenhum movimento de mudança social faz-se sem oposição: para apaziguar os liberais, posso referir-me à existente mas pequena oposição ao fim dos regimes soviéticos na Europa, que chegou a ameaçar em 1991 a transição da Rússia, por exemplo E assim como é expectável a oposição, o mesmo pode dizer-se dos erros que serão cometidos. Não seremos revolucionários “puros” Ninguém no movimento está a procura de transformar esta luta numa hagiografia para o futuro, com santos que serão venerados pela sua capacidade de estar sempre em cima do acontecimento e de ter feito tudo bem em todos os momentos.

É normal que não esteja tudo planeado, que encontremos becos sem saída e que em alguns dias pareça que estamos a gritar aos sete ventos Esse foi um dos maiores sucessos da mídia nas últimas semanas: fazer as pessoas acreditarem que o movimento climático não tem propostas devido aos comentários inflamatórios de Costa e Silva. A verdade é que propostas não faltam, mas o movimento não deseja ser consultor do governo ou das empresas para que sejam mais verdes. O movimento quer mudar e quer fazê-lo com o resto da sociedade - para além do facto de que estas propostas são profundamente incompatíveis com o atual modelo de acumulação capitalista e de crescimento económico, sendo também logradas pela atual permanência no cargo de um famoso barão do fóssil. É muito fácil perante esta oposição toda acreditar que estamos condenados à redundância do movimento, mas o primeiro ato de sabotagem ao sistema passa pela quebra da bolha da atomização social e da entrada na associação e no coletivo - a tomada de consciência de que não estamos sozinhos, de que há toda uma constelação de instâncias de desafio à ordem, um verdadeiro ecossistema que fervilha perante nós, capaz de realmente operar uma verdadeira mudança

52

JÉSSICA MARQUES

THIS IS NOT SCIENCE, IT'S VIOLENCE

Zoos and circuses are, in fact, the most popular places to visit with our families. For years we have been entertained by watching animals trapped in cages, without even considering all the torment they must have endured. Animal rights activists have been in an ongoing battle for decades.

Elisabeth Murray studied biology at Burknell, to later complete a Ph.D in psychology She has proudly won multiple awards in the Neurobiology field Currently, she is the chief of the Neurobiology of Learning and Memory in the Laboratory of Neuropsychology at NIMH. Her resumé could be brilliant, if it wasn’t for a dark spot: Murray has spent her entire career fooling U S taxpayers into believing that animal abuse is an absolute necessity When asked about the cruel treatment of her subjectsliving animals - Murray does not hesitate in stating the several benefits for the human race

Chaplin, a monkey, died on the 18th of December 2020 after living completely isolated, for 16 years, in Murray’s lab The doctor, along with her staff, implemented a titanium polescientifically named as headpost - in Chaplin’s brain. After the surgery, Chaplin started experiencing some side effects, such as hair loss, tied with a constant state of undeniable stress; numerous bacterial infections and several dark spots all over his head and face,most likely due to the placement of the headpost. Chaplin was not the only one Lloyd suffered a noticeable and strong indisposition during his own surgery to place the headpost Murray’s staff ignore him and continue the procedure. Hightop lived, just like Chaplin, in total solitary confinement, from 2011 to 2019. He suffered the same exact surgery as the two other monkeys, and experienced hair loss in 73% of his body Hightop also had his teeth cruelly removed. Statements that Murray and her employees have deprived animals of receiving proper hydration for years have been made as well

53

Another so-called scientist, Margaret Livingstone, sewed shut the eyes of 5 monkeys, some of them infants, just so she could kill them afterwards. Like Murray, when asked about the reason for these experiments, she mentioned the benefits for the human race. But Livingstone’s cruelty and abuse does not stop here. It goes further. She has forced kittens to stay awake, on a rotation drum, so she could implement electrodes into their brains She paralyzed them so she could record how a sleep deprived brain reacted to visual inputs In monkeys, Livingstone herself was in charge of chemically paralyzing them, so she could drill their brains as an easy way to obtain data on brain activity

For years, PETA, a non profit organization whose name stands for “People for the Ethical Treatment of Animals”, has tried to expose abuse like this Everyday PETA releases articles on how people and industries mistreat animals. Ajinomoto Co.Inc is one of them The Japanese company sells frozen food but has, since the early 1950s, cut dog’s stomachs to insert tubes and inject them with all kinds of drugs In 1971, Shamyu, an orca with merely 9 years, died after being taken out of the only home he ever knew and placed in a small tank in Seaworld. A few years ago, Hugo, another small orca, died after repeatedly bashing his own head against a wall His tankmate, Lolita, still lives there and, for the time in the 50 years that she has been trapped, she is completely alone

Scientific experiments and entertainment organizations do not stand alone, it seems as though animal abuse is often perpetuated throughout most industries. By 2022, 30 plus makeup brands still test their products on animals; others, such as Loreal, import from China where the run of deadly tests has become fairly common Products such as Mac’s classic Velvet Teddy do contain ingredients that are extracted from animals Carmine, for instance, derives from an insect called Coccus cacti, and for years now has become a staple in creating a bright, strawberry-like shade

Furthermore, the clothing industry is responsible for the death of millions of animals every year. Crocodiles, sheeps and foxes are being slaughtered in order to produce shoes and coats. Recently, PETA has put out a statement, desperately promising 1 million dollars to any one who can invent a better alternative to wool

It’s unfortunate that most people only care about animals when they are domestic. We are stunned to hear experiments performed on dogs and cats, but rarely bat an eyelash if mice or insects are in danger.

Every animal should have the right to live peacefully in their natural habitat, without daily human threats.

54

escrita criativa

DESERTO, E UM POUCO DE MAR

Antigamente, a minha alma era como um Deserto, toda ela era solitária e abafada (quase sufocante) Todos os dias queimava os pés na minha areia escaldante, todas as noites me perdia na minha imensidão congelante Ora a sua luz me encadeava, ora era cegado pela vasta escuridão De uma maneira ou de outra estava sempre confrontado com uma falta de clareza característica

Ocupava os dias a caminhar vagarosamente naquele vazio tão cheio de cor. Enquanto sentia os meus pés nus queimarem devido ao contacto com o alaranjado quente das dunas, olhava para cima e encarava aquele céu de um azul infinito Continuava a caminhar, sem saber bem o que procurava: talvez uma árvore, um cato, uma miragem, algum sinal de vida. A cada passo que era dado crescia a crença de que estaria cada vez mais perto, a cada passo que dava mais esperança era perdida

Mesmo que a paisagem da minha alma areosa fosse bela, rapidamente se tornou repetitiva e enfadonha. Quanto mais tempo passava, cada vez mais me enterrava na sua areia. Areia, areia e mais areia, areia que nunca mais acabava Um novo dia nascia e novamente era sufocado pelo calor escaldante do dia, e tremia com o frio extremo da noite.

Todo este ciclo começou a me cansar, mas, antes que me conseguisse aperceber, já não conseguia parar de ser deserto. Perdi-me dentro da vastidão da minha alma e tornei-me apenas areia.

56

Mas algo mudou quando apareceste na minha vida Completamente diferente de todas as pessoas que tinha conhecido, para mim, tu eras como o Mar Toda tu eras frescura, toda a tua alma era maresia e todo o teu corpo era água salgada Tinhas a mesma beleza do mar, e, ao mesmo tempo, o mesmo mistério Tudo o que eu mais queria era mergulhar de cabeça nesse teu enigma e beber do teu sal

Porém, ao nadar no teu ser e ao conhecer a tua alma mais de perto, consegui finalmente ver nitidamente. Tal como o mar, também a tua alma conseguia ser agitada e violenta, para além de guardares em ti das mais diversas e belas maravilhas, também escondias criaturas aterrorizantes. E mesmo que fossemos totais opostos, sofríamos de dores semelhantes: também tu tinhas um sol incandescente; a minha vastidão de areia assemelhava-se à imensidão das tuas águas; mas, especialmente, da mesma forma que eu me perdia no meu deserto, também tu foste puxada pelas correntes da maresia e acabaste engolida pelo vasto mar que era a tua alma. Afinal, um deserto não é apenas um grande oceano sem água?

Com o passar do tempo descobri que dentro de ti existem mares e marés de poesia, toda a tua essência é maresia Todas as manhãs desejava poder lavar a minha face nas águas da tua alma Sempre que te tocava com os meus lábios, sempre que bebia um pouco da tua beleza salgada, ficava sedento por mais (e mais…). Mesmo a saber que nunca ficaria realmente saciado, ansiava pela frescura que me trazias, e que eu tanto necessitava na minha vida

Sem que me desse conta tudo mudou, não consigo dizer quando nem como, mas a pouco e pouco a tua água foi inundando a minha areia A tua humidade trouxe frescura ao meu calor sufocante. Mar e Deserto, dois cenários que não podiam ser mais contraditórios, mas que se complementam tão bem. O deserto tem falta de mar da mesma maneira que o mar precisa de deserto. Com o meu deserto e com o teu mar, nasceu uma equilibrada praia Um choque de planos que se julgam tão distantes um do outro Água e azeite que, não se misturando, complementam-se de uma estranha maneira. Mesmo opostos, partilhávamos o mesmo céu, olhávamos para as mesmas estrelas e éramos beijados pelo mesmo sol.

57

Com semelhança ao tom dourado do sol enfraquecido que mergulha no escuro azul do céu quando o dia está em meios de morrer, o teu azul reluzente e vivo afogou o meu cenário de um alaranjado repetitivo As tuas ondas vastas entranharam-se por entre os meus grãos de areia infinitos, criando um dos mais belos e irreais espetáculos que eu alguma vez assisti

Se magia realmente existir, é fácil acreditar que todo este cenário de poesia pura foi arquitetura da mesma. Mas não serão poesia e magia companheiras próximas, diferentes variações de coisas semelhantes? Não será a poesia (obra da) magia? Não fará sentido considerar poesia um feitiço para a alma?

A poesia não é apenas um conjunto de palavras em verso que se encontrem num papel impresso Existe poesia no deserto, existe poesia no mar, mas, essencialmente, dentro de cada um de nós. Tu trouxeste uma nova poesia para a minha vida, para dentro de mim Trouxeste uma poesia mais harmoniosa, uma magia menos monótona e enfadonha Como um intruso, invadiste a minha vida e trouxeste uma nitidez que animou os meus dias Tu eras a canção que eu mais precisava de ouvir. Graças a ti, agora os meus dias são passados a ser beijado pelo sol no meu areal e a banhar-me no teu mar de melodia

58

O RAPAZ QUE LIA LIVROS À LUZ DUM FAROL

MIGUEL VILLA DE FREITAS

Sonhei que o meu pai me dava uma tareia e acordei com vontade de escrever sobre o rapaz que lia livros à luz dum farol, mas logo se me foi o estro, capado pelo castrador mor da minha descendência não-sei-se-literária que não só da esterilização das minhas ninfas faz o seu salário, também tem um emprego paralelo: é agente funerário e vai à maternidade fazer clientela, anda pela alfredo da costa de bisturi ao ombro como uma baioneta donde pingam as gotas de grafite azul que acabam nas fotografias da Helena de Almeida, e depois de acabada a matança diz-me:

“For sale: baby shoes never worn” e afirma que a história do rapaz que lia à luz dum farol é a pior história feita duma frase, a pior de todas as frases, uma merda, eu respondo-lhe que não é assim tão má mas ele não me chega a ouvir porque já está na maternidade a rasgar as jugulares dos meus futuros descendentes O Jorge Amado dizia que das quatro mil personagens que pariu não saberia escolher uma. O Jorge Amado é um sortudo por ter deixado uma linhagem de amados, o castrador nem ma deixa criar: mata-me os filhos mal aterram nos braços da parteira que é ele, um freddy krueger feito de dedos bisturi. Mal a minha ninfa pariu o rapaz que lia à luz dum farol, lá estava ele, pronto a degolar o meu filhote, nem precisou de usar as ferramentas, bastou dizer à ninfa que o filho dela era um nada e o filho desapareceu-lhe do colo de mãe e foi diluir-se no espaço negro onde flutuam os nados mortos No fim da vida, o castrador vive que nem lorde e eu fui à falência de me ter estourado em calçado de bebés que nunca vieram ao mundo.

59

FILA DO PASSE NO MARQUÊS DE POMBAL

o colo uiva-me, sôfrego, numa dor que coça mais do que arranha os músculos contraem-se e o coração dissolve-se no ardor de um gemido que não deixo escapar é uma dor que não mata, mas mói - que me mantém à beira de um abismo do qual ninguém me vem empurrar, como se deus me desse água e tirasse a boca para beber. para que serve um punhado de grãos num deserto onde ninguém os vem germinar? ajeito-me na cadeira e forço os maxilares um no outro –talvez o sangue das gengivas me acalmasse –, tenho o choro amordaçado na garganta e os seios doridos de tão cheios e carentes arquiteto uma mão segura que me aquece a nuca ao penetrar os meus cabelos escuros, assim como as abelhas penetram o doce das flores. uma língua que, vagarosamente, me lava o perfume e beija os ombros magros, chávenas de porcelana pálidas, de onde se beberica o café pela manhã traço, eu mesma, o caminho discreto das pontas dos dedos de alguém, guiadas pelo luar do meu umbigo. o golpe, o movimento versado sobre o pano de algodão quente e molhado e a (liberdade da) libertação. o minuto que se segue - ser olhada como se olha o mar numa tarde de agosto. a melodia metálica que cresce do avanço sobre o meu rosto, o sorriso manhoso da sugestão e o edifício do tronco que cresce sobre mim afogar-me no sol de meio-dia de alguém para, depois, deixá-lo iluminar-me até ficar de noite até os restos de tinta negra se confundirem com pó de estrelas nas minhas pestanas cair do abismo - três, quatro, cinco, seis vezes, numa multiplicação esfomeada entre corpos e colisão e descargas da alma. até o colo uivar novamente.

60

À NOITE, NA BANHEIRA, SEM ENDEREÇO

Olho para ti – por vezes, é difícil amar-te.

É difícil sentir-te a pele sem me doer Tocar-te nos dedos, fechar-me nas tuas mãos apertadas e confiar o meu caminho nos teus passos Mora em mim uma cruel impressão de que o teu coração me é distante Um estranho vizinho a quem cordialmente aceno e desejo um bom dia A tua boca se não me sabe a amargo, sabe-me a nada, e faz algum tempo que não me vejo mais nos teus olhos – agora parecem-me baços e escuros como os de um peixe sem vida O teu perfume enjoa-me; o vestido laranja de que eu tanto gostava está-te largo e coçado; e, o peito esperto que provocava a vista aos mais curiosos, murchou

Pergunto-me quando foi que te perdi. Se foi na altura em que deixaste de responder, quando eu chamava pelo teu nome baixinho, ou se foi antes, numa daquelas noites soturnas em que choravas até adormecer sem me dizer o porquê Pergunto-me se deixámos o amor pela calçada ao voltar para casa, esquecido como um último beijo que não se trocou, ou, se houve alguma vez carinho que se pudesse perder entre o trânsito da idade.

Lembro-me de quando eras jovem e subias às árvores, dos dedos suados com cheiro a resina, dos sapatos mal amarrados e do cabelo loiro do sol De como o teu rosto miudinho se abria de par em par ao encontrar a praia, um livro antigo, um amigo. Ao chegar à mesa com o cabelo a pingar sal e provar aquele guisado da tua avó. Foi há muitos anos, parece, que a roupa era leve e as pernas também Que as flores da amendoeira a caminho da escola floresciam e que tu gargalhavas disparates pela rua, sem dares conta da amendoeira, da rua, de ti O doce da felicidade que, agora, é um desaparecido que não se pode enterrar

É difícil amar-te. Reconhecer-te nos braços da tua mãe, nas letras do cartão de identidade, nos lábios de alguém Acreditar que cantavas com os pássaros na primavera e que querias ser enfermeira e historiadora e atriz Que te tocava nas longas pestanas e te desmanchava os nós dos longos caracóis com cuidado para não os partir É difícil crer-te na criança que eras É difícil crer que ainda existes. Que as pessoas não te passam por dentro quando sais do metro. Que os cafés não te são deixados por acidente em cima dos balcões. Que não te dissolves no vento ou na chuva suja que morre, sem protestos, na berma da estrada Que quando te deitas na cama com alguém, os lençóis não continuam frios e engomados por debaixo de ti

61

E tu perguntas-me – nesse sopro estático, cansado, que são as tuas palavras – porquê E enquanto eu te lavo as costas e te embalo como já ninguém embala, tu cortas-me fundo, mais uma vez Cheira ao gel de banho que a tua irmã usa, a sangue e a amendoeiras As lágrimas sabem ao sal do mar de Outubro em frente à casa da tua avó. E no eco da água, quase consigo jurar, que oiço a voz da tua mãe a dizer que te ama. E tu gritas, porque ainda não és grande o suficiente para não temer o fim E estás sozinha E eu inspiro. E tu expiras Respiramos Apago o vapor com a palma da minha mão e, de olhos postos nos teus, respondo: porque o nosso dia ainda não chegou

É difícil amar-te

62

poesia

A MENSAGEM

AMOR,

Esta mensagem viajou e conheceu mil países Conheceu as cicatrizes, e novas rotas traçou

Perdeu-se em Monsanto numa tarde de encanto, escrita em tons de amor pelos dedos de uma flor Desenhou num rascunho, os detalhes do encontro, sendo este um sonho que se escrevia puro

Encostou-se nos lábios e conheceu os medos desta pequena poesia, composta com alegria

Esta mensagem viajou por vários caminhos. Percorreu os hemisférios e rendeu-se aos mistérios

Desvendou novos trilhos e clarificou os trocadilhos, inspirados nos sentidos mais simples e bonitos.

Compôs em harmonia umas quantas canções, tocadas em sintonia no mundo das sensações.

64

DESASSOSSEGO

A chuva cai e pinga Fria contra a minha pele pálida Ainda que com resquícios do verão. Eles passam por mim De guarda-chuva na mão Passo apressado no pavimento molhado Sem qualquer momento de pausa Sem qualquer olhar cruzado E eu sinto-me assoberbada Não pela pressa Mas pela solidão Como se vivesse num mundo monocromático Como se o meu automático fosse dizer que não Acordo cansada, sem saber se acordei Um círculo vicioso do qual não consigo sair. E a rotina é enfadonha Gosto, não gosto, não sei Nunca tenho resposta, Mas talvez um dia hei de a ter Talvez um dia Saio de casa E ando e olho e sinto e ouço.

65

Ando sozinha, que esteja sozinha sinto incomodada.

Gosto da calma, e sempre irrequieta que me permito ter.

Sei que há mais, ssossego em mim. ícil quebrar a rotina difícil dizer que não viciosidade da vida estou bem, não sei E se nunca souber? ar a dizer que não? quietação em mim, o gostava de estar e desassossegada pre me senti assim esse mais em mim, Mas talvez não haja lvez não haja nada vida é uma mentira ou eu, mas não sou Não sou ninguém Não sou nada quieta e entediada o, não vivo, não sei Sei que nada sei o final não sei nada Continuo desassossegada

66

EIS O QUE SEI SOBRE O LUTO ATÉ AGORA

Primeiro, que nada sei. Mas que quando sei nada, quando me debruço sobre mim, num final de tarde, me parto de tal maneira, Que não tenho tripas no dia a dia para saber seja o que for Portanto mais vale não ir sabendo, e fazer por não saber, do que tentar saber tudo, e nada fazer

Bons eram os dias em que não sabia o quanto te amava Em que nunca me coube na cabeça, que fosses primeiro que os cães, o raios partam dos cães, e de tantos outros com dias contados Em que só me cruzavas o juízo, por me irritares solenemente ou por ter um pedido, porque à noite o teu sorriso era garantido

Garantido A sorte de te ter tido garantida.

Porque o que é isso de morrer? Talvez te tenham trocado Talvez tenhas contratado uma pessoa para ocupar o teu lugar, cansada de fazer o jantar O que é isso de estar morto? De já não existir? Se ainda vejo o teu nome na rua, se ainda te cheiro nos casacos, se a tua escova de dentes ainda está no copo, se me vais sorrindo pelas paredes da casa? Sempre disseste que nunca te irias, que não conseguias viver sem nós. Mas eu vivo agora sem ti Como podes tu simplesmente não existir, E eu estar aqui? Como podes tu não existir, se até eu que não sabia o valor de tudo isso, vejo a tua razão agora? Como podes tu não existir?

67

Esquiva-se a raiva. Se até com quem foi comprar tabaco nos encontramos eventualmente na vida, querem que acredite que os mortos nunca se cruzam connosco numa esquina?

Porque é que o tempo continua a passar, as unhas dos dedos a crescer, pessoas sequer a nascer? Como se atreve o tempo, depois de nos deixar ficar tão mal, continuar a criar semanas como se tudo fosse banal?

Quero sofrer-te todos os dias, enlutar-me todos os meses Ai do primeiro que te esqueça, dos 15 que não forem para ti Quero que sejas tudo, que me assombres em todo o lado. Quão estupido seria não me lembrar, do pijama assustado no meio da rua, das raparigas a pintar, de tudo a definhar? Mal sabia eu a sorte de não ter de calcar feridas para poder calcular-te aqui. Que estejas em todo o lado, e que sejas tudo aquilo para que eu olhar, para ter força de te ver ausentar Mas de que me serve chorar-te o resto da minha vida, se não te voltar a ver? Gosto de te imaginar a beber limonada, algures no céu, bem acompanhada E que olhas para mim. Que estás incansavelmente, também tu a chorar por mim

Não conhecesse eu outras esquinas saturadas de injustiças, deixaria o meu ego pensar, que a vida se tinha sentado a planear uma injustiça particular Antes isso?! Se não houver fio à meada, macaquinho, eu, aceito o acaso da enxada Mas espero que tu, te ires de raiva por mim.

Como podes tu não existir, Se sempre me prometeste que me irias limpar as lágrimas e agora que elas caem, não estás aqui, mãe? Morte Morreste. Por muito tempo que me tenha demorado a perceber que te tenhas ido de vez, que não voltavas cá, morreste Ou foste só viajar?

Pare-se o tempo. Eu tão pouco de ti já tenho, e o sacana continua a levar-te

68

INOCENTE

Quem é, quem é aquele que diz não saber dançar, mas que sabe bem bater com o pé no chão no colchão no corpo mole que ali jaz

Quem é, quem é que destrói a mente que protege no seu punho, que consome e esmaga só com o maldito dom das suas palavras

Quem é, quem é que sorriso caloroso que toque carinhoso que mente dissimulada que tortura uma amada.

PELO DIA

INTERNACIONAL

PARA A ELIMINAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

Eu acho que sei quem é e tu que lês também deves saber mesmo que os olhos se fechem à violência que se vê

Está no supermercado e na fila para o café está no restaurante, cumpre o seu papel tal como se prevê Está na mesa de escritório com vista para a rua agarra-se ao telemóvel de vigia, à escuta.

Tão inocente como sempre até sair nos jornais.

69

INTERROGAÇÕES

Posso sequer chamar de reciprocidade, Quando não soube ver os sinais?

Talvez tenha sido apenas ingenuidade,

Algo que nunca poderia ser mais?

Onde foi essa tua vontade intensa, De falar de arte, música e astrologia?

Será que a tua mente já não pensa, Nas razões do ser, da vida e da sua magia?

Porque é que agora só me fazes ler nas entrelinhas, Espaço apertado onde cabem tantas interpretações?

E ao ter que escolher entre as tuas ou as minhas, Perco-me no meio de todas estas interrogações. Também tens estes pensamentos inquietantes, Por detrás desses teus olhos castanhos?

Que tal voltarmos ao momento de antes, Em que deixámos de ser estranhos?

70
C.
L.

MARIA EXPOSTO LICENCIATURA EM HISTÓRIA, 1º ANO

Eclipse foste

Sem avisar que não podia mais olhar o sol, Escondeste-o, Levaste-o contigo

Ao olhar para cima Continuei acreditando que estava lá Achando-o eterno (Também eu o fosse )

Egoísta!

O sol não é só de quem lhe chega Devolve-mo! Enquanto não lhe toco, Continuo a olhar

(Ponta dos pés, Alongo-me; Ponta do indicador, quase!)

Fecho os olhos E momentaneamente o seu calor beija-me, Afaga as minhas costas, Aquece as minhas roupas Seca as minhas lágrimas

Mas lembro-me que foste eclipse

E abro os olhos: Ainda está frio Ainda está escuro Ainda foste Ainda o tens E já não voltas

71
LI

CÉU DA NOITE

i se esperarem pelo último adeus da corrente de tempo de cada dia, conseguem sentir o alívio num suspiro de uma árvore.

as palavras que assombram as paredes das casas, as melodias que vivem nas cordas das guitarras…

ii. deixei o céu cair sobre mim, como sal numa ferida viva, até as horas se perderem no único silêncio do dia, é o pesadelo de todos os que percebem que o céu guarda segredos que nunca verdadeiramente entenderemos, e muitos outros que o autor desconhece

A MINHA MÃO CONSEGUE SEMPRE ALCANÇAR

o mecanismo do esquecimento, a momentânea aniquilação do vento, a urgência de querer escapar cada dia, oh, que dolorosa fuga da vida! vejo a manhã perturbada com o meu reflexo sempre que carrego o abstrato como coroa, deixo que as ilusões me mantenham de pé enquanto anseio que a tragédia se torne bela, e continuo a esperar por agosto onde o mar abraça sem reconhecer

72

DIOGO BOTELHO

Converte a minha vontade, em um sonho possível Agora que atirei todas as minhas moedas Mesmo que seja num lago de fundo invisível. Acredito que haja um fim para todas as quedas

Então, dou por mim, a criar as tuas formas, na minha mente, Desenhando cada traço daquilo que sinto, com cuidado. Enquanto as nossas sombras, apaixonadamente, Dançavam juntas naquela noite, de céu estrelado.

Pois guardo os momentos, Que não me deixam soltá-los. São ímanes como chuva do dia E diamantes quando sonhados.

Nem consigo, como deve de ser, te dar O simples abraço de despedida, Por te querer abraçar, Até que o sol nasça e se faça de dia.

Comigo as palavras nascem, Obra da tormenta aflição Realidades ásperas (se fazem), Sentimentos de corrupção.

A minha entrega a ti, Foi como o pôr do sol, no horizonte Fechei os olhos, lentamente assim. E o resto? Que o universo lhes conte Mas, Prosseguirei, Tornando-me um perfeito estranho, Para a minha vontade. De certo passaremos, A mais um desenho, daqueles de banalidade.

73

DIOGO BOTELHO

Consciente da sua imperfeição, Tão bela arte ele criou Das inseguranças, novas realidades surgiram. De todos os reflexos que ele próprio enfrentou

A sua convicção nas palavras, Confundem até o próprio viajante. Quem é ele para apitar pelas estradas, Sem nunca ter pegado num volante!

Desta ideia, confusa, de quatro letras, Impaciente pela sua conquista. A ansiedade a cada dia aumenta Com a caneta na mão e o último espaço na lista.

Inseguro e de mochila com escolhas erradas, Senta-te, acalma-te e respira… Das ondas que rebentaram, às falhadas Em vez de viajante, mais parece um surfista.

Inerente aos seus desejos. Indivíduo de delírios depreciativos Inusitado em terra de anjos Imprudente ao seu próprio sentido.

De tantos tons de preto que nos quadros usava. Que da sua pessoa a lembrança largou “Quem irá pintar os meus dias?”, Perguntava

E lá foi ele, viajou, viajou, viajou

74

I

LICENCIATURA EM LÍNGUAS, LITERATUTAS E CULTURAS

I know.

I don’t stand a chance I don’t have the words The right timing or the charm And I can’t even dance.

You’ve stripped my heart of any ornaments Now it’s raw It’s ugly It’s red and bloody And I don’t know what to do with it

Words won’t make it pretty My failed endeavours to make it pleasing are in vain and sickening.

Sinto-me fora do sítio. Talvez seja hereditário… Não sei se é do coração partido, Ou do mundo ao contrário, Mas nada me vai bem.

Queria saber se o teu coração me tem Tanto quanto eu te tenho Queria saber se pensas em mim, Tanto quanto penso em ti Estou farta. Nem há nada a dizer... Não sei a tua cor favorita, Não te vejo há dias, E fiz tudo o que querias Esperava que voltasses como prometeste Envolta no momento, essa tua falsa devoção, Esfaqueia-me sem compaixão E sou deixada ao relento

75

O FADO

O que m’é lesto cedo, morte certa! Lograd’a fado de sonnata antiga, A Docemente musa, maddona, D’onde u dia p’rene some perdida

A minha liberdade sumirá, O corpo defunto lento perd’rá a alma, E descansa longe o bela da sua vida. Toda a virtude que n’u foi ao que quis, de palma Calma, respeito, sapiência, não destro feliz! Porque n’u foi? Tã’ certo o tempo mostrou, ser esperado a retidão. Eu não fui feliz porque o coração não perdoou, O que a mente fez de hábito e tradição.

O que m’é lesto certo, é que a virtude n’u fui o que quis

76

O AMOR

Quem diria que dever, poderia-me mostrar ser doloso, a ponte lustrada d’estro penoso e deixar-me ainda mais a perder Tão gentilmente doloroso.

Quem diria que dever,

A alguém poderia tê-lo blasfemar, Não divo; mas por quem deu divo, Quem deu logro gentil, de amar, Cada texto levado é de mim, mais do que de mim vivo!.

Como pode dizer qu’amar?

É dever; é ordem do sublime, de quem quer perder tanto demais Mas ter-se por ademais, Tão grande, ‘vesto incide, Não é amor, mas algo mais!

77

UM SONETO

MANUEL GORJÃO

Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto

Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto

Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto

Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto Um soneto

72
78

SAL DA TERRA

EMMANUEL DE OLIVEIRA WALCHER LICENCIATURA EM CIÊNCIAS POLÍTICAS E RELAÇÕES INTERNACIONAIS 2° ANO

Agreste e árido, ácido e anómico, agónico e abissal Absurdo e alheio, abstrato e alheio, absoluto e alheio Abissal, alheio, abissal, alheio, alheio, ALHEIO! Distante, doloroso, devastador, mas alheio de nós Desassociado de nós, dessensibilizado de nós

Agudo e acutilante, aliciante e abrasivo, áspero e amoral Tragicamente confortável, cotidiano, contínuo e comum Que nos rouba, que nos mata, que nos destrói Por convite de nossa própria dormência, conveniência, Mesquinha, desprezível, banal, espectável e vil

Violentamente lento Explorar esventrar extrair esfolar exsanguinar Do Sal da Terra em Engasgar esfomear escravizar explorar exterminar Luciferamente vago

Freneticamente febril ímpeto de egoísta ambição (Bastardia em gananciosa ignominia, falaz separação) Natureza separada, distanciada, esquecida de nós Seus ingratos, corrompidos e mesquinhos filhos, Em conspurcado, colonial, canibal extrativismo!

Ó Opressão sanguessuga, insossa e parasitária! Teus hospedeiros desumanizados…coisificados Teus excluídos martirizados supliciados E nós o meio, a pele, o sangue, a chibata Seremos, no pensado agir, o teu amargo fim

79

SÓ TE QUERO A TI

Não posso mentir e dizer-me só, se a minha cama nunca arrefece Se o perfume doce feminino de meu corpo nunca desvanece

Mas o teu lugar na mesa está intacto e as tuas gavetas continuam vazias O teu livro arrumado na prateleira cheio de fracos sonhos e utopias

Na casa de banho o teu champô A minha escova de dentes sozinha Porque apesar de tantas mulheres só te quero a ti como minha!

80

MARIA CAMÕES, 2022 LICENCIATURA EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

ANO

Seconds, minutes, I look at the clock Hours, days, and weeks… I think I have a writer’s block

So much to be written, to be said, to express But how?

If only it was as easy to write, as it is to feel, Perhaps I wouldn’t be so stressed

It gets me depressed, it truly does! I was given the gift of expression, A gift I cannot use… Tears are falling

I am blocked

81

moda e lifestyle

BABY, IT’S COLD OUTSIDE: COMO TIRAR PROVEITO DAS CAMADAS?

Chegou aquela altura do ano em que todos nos sentimos chouriços ambulantes quando tentamos combater o frio. À primeira vista, temos apenas duas opções: vestir um outfit slay, mas passar frio; ou estar quentinha, porém relembrando a lagarta drogada da Alice no País das Maravilhas Mas, e se eu te disser que podemos ter o melhor de dois mundos? (Sim, uma referência a Hannah Montana é extremamente apropriada )

FRANCISCA LEAL LICENCIATURA CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

A resposta está nas camadas ou, em inglês, layering É possível utilizar várias camadas de roupa de forma equilibrada, mantendo uma silhueta estética Vamos, então, construir um outfit. Se, no final deste texto, só conseguirem visualizar a coleção de Inverno das Bratz, fiz bem o meu trabalho

CAMADA 1- Basic Bitch Core

Vamos falar de básicos Calma, fcshers, não tenham medo de algo que não vos torne seres únicos e originais Ninguém vai saber que por debaixo dos vossos tesouros da Humana está uma camisola de algodão branca Estas peças são a base de qualquer look de inverno.

Para parte de cima, camisolas de algodão serão as nossas melhores amigas Estas deverão ser utilizadas de acordo com o grau de briol que sentirem Poderá ser uma simples manga caveada para aconchegar o torso ou uma manga comprida para os braços não ficarem com ciúmes. A primeira camada é aquela que está em contacto direto com a nossa pele, daí a importância de um bom tecido como o algodão, uma vez que, apesar de aquecer bem, permite ao nosso corpo respirar, impedindo a sensação de sufoco. Descendo de nível para a parte inferior do nosso corpo, vou introduzir um tema sensível e controverso por variadas razões Não quero ferir suscetibilidades com regionalismos, mas irei falar de meias-calças Não são calças por metade nem meias que servem de calça

83

Falo de collants (no tea no shade, mas pelo menos a minha palavra é portuguesa) Mais do que meias-calças, introduzo as meias-calças debaixo das calças *GASP* O ultraje! Como te atreves a falar de tal coisa? Estou mentalmente preparada para os haters desta combinação. Contudo, principalmente com a quantidade de calças largas por metro quadrado na FCSH, hão de reparar que uma camadinha extra não faria mal nenhum Como as calças são largas, o ar entra muito facilmente, pelo que a meia-calça nos dá uma proteção extra. Não posso ser a única que sente o ar gélido pernas acima quando visto umas wide leg jeans. Antes de rejeitarem por completo esta proposta, por favor, try it before you deny it.

Se pretendem usar saia no inverno (sim, é possível), podem experimentar leggings forradas a lã, ou ser ainda mais ousados e sobrepor meias-calças Vivam no limite com estas escolhas.

CAMADA 2- Era só jajão…

A beleza da segunda camada é que nunca ninguém precisará de saber a festa que ocorre por debaixo da mesma Toda a gente à vossa volta irá pensar que esse é o outfit. Camisola interior? I don’t know her Chegou a hora de escolher uma camisola confortável e mais quente, possivelmente mais grossa, para colocar em cima da camisola básica

Desde camisolas de lã a golas altas, as opções para esta camada são infindáveis Usa a tua criatividade e as peças que mais gostares. Recomendo materiais suaves e quentes A grossura da camisola dependerá do teu gosto

pessoal e estado de espírito, bem como do tipo de tecido Aparentemente, pode ser uma camisola fina, mas na verdade é térmica e vai-te dar a temperatura que necessitas Ao criar um outfit, quando não tenho nada em mente, gosto sempre de começar por uma peça e expandir a partir daí. A escolha da parte de cima é um bom ponto de partida Quanto à segunda camada para as pernas, é aqui que vestimos as nossas calças ou saia, quiçá calção A utilização de meia-calça dependerá também das calças que escolhermos Existem calças que, isoladas, são extremamente quentes e não necessitam de uma primeira camada Aqui o importante será o equilíbrio entre a escolha da parte de cima e de baixo para evitar qualquer semelhança à secção dos fumados do Continente. Claro que se o teu estilo é Adam Sandler Chic, arrasa o oversized com tudo o que tens Gosto sempre de pensar no espetro largo-justo. Se visto uma camisola justa, as calças poderão ser mais largas e com uma camisola larga, as calças deverão ajustar-se. Uma calça mais ajustada não é necessariamente skinny Pensemos numa boca-de-sino e numa straight leg Enquanto que a última mantém a largueza de início ao fim da perna, a boca-de-sino começa justa e expande-se a partir do joelho

CAMADA 3- Get in loser, we’re accessorizing It’s timeeeee (imaginem a Mariah Carey a cantar)! Acessórios podem transformar o look mais simples em

84

algo extraordinário, além de que podem ser muito úteis no Inverno E, vamos ser honestos, é tão divertido escolher cachecóis e chapéus. Parece que estamos numa makeover montage de um filme dos anos 2000 ao som de “Just a Girl” dos No Doubt Cachecóis são essenciais para combater o frio Especialmente se a tua camisola não é de gola alta, é necessário proteger o pescoço e a garganta de alguma forma Basta ter um, de uma cor que vá com quase tudo, como branco ou preto, e irás elevar o teu outfit. A partir daí, podes colocá-lo como entenderes que irá dar mais destaque à roupa- nó simples, duas pontas ou até estilo balaclava. A balaclava resolve dois problemas- frio no pescoço e na cabeça. Caso não sejas fã de chapéus ou gorros, é o ideal.

Além disso, os chapéus e acessórios para a cabeça elevam ainda mais um outfit. Queres um look mais casual? Um gorro é para ti Hoje, estou a sentir-me mais ousada? Chapéu com pêlo. Mas, o meu cabelo está tão giro, vou tapá-lo? Girl, claro que não. A solução são protetores de orelhas com pêlo Eu disse que íamos acabar como as Bratz na coleção de inverno. Não posso ainda deixar de mencionar os chapéus que lembram os dos taxistas nova iorquinos. Por último, temos uma extremidade por tapar - as mãos - e, como tal, sugiro luvas Há luvas para todos os gostos Para continuares a poder utilizar o telemóvel, existem luvas sem dedos e luvas com pontas especiais para ecrãs táteis. Pico da tecnologia, claramente. Apesar de, em lojas de segunda mão, a maioria das luvas não ser tão technology-friendly, são certamente

únicas e poderás fazer o sacrifício de não conseguir ir ao Instagram até chegares a um sítio quentinho. Como disse há umas linhas atrás, usar saia no Inverno não é impossível e as perneiras são as nossas melhores amigas para tal Aquecem e ainda permitem manter a silhueta boca-desino nas pernas.

85

CAMADA 4- Pièce de Résistance

O casaco de Inverno é toda uma dinâmica Quer queiramos, quer não, o casaco rouba a atenção do resto do look Não tenhamos medo de abusar do tamanho, do material e das cores. Tal como o ícone da moda Audrey Hepburn disse, “Life is a party. Dress like it”. Antes da loucura do casaco final, é totalmente válido utilizar um casaco um pouco mais fino ou um colete para ter ainda mais uma camada de calor Posto isto, vamos a sobretudos. Se está a chover, um quispo ou gabardine serão fulcrais. Este tipo de casaco, caso não tenha uma cor ou padrão singular, consegue ser o menos ousado. Aqui, os acessórios brilharão. Sem chuva, o céu é o limite O comprimento do casaco é, igualmente, um proporcionador ou não de calor Estando mais quentinho, um cropped é suficiente, enquanto que em dias de temperatura inferior, casacos até aos joelhos (ou mesmo até aos pés) são uma grande ajuda O roupeiro dos nossos pais, naquela parte que eles não olham há anos, costuma ter uma ou outra peça deste género Caso não, e sendo estes casacos um grande investimento, pensem racionalmente sobre o vosso próprio estilo a longo prazo e aquilo que está disponível para compra. Entre thrift stores e lojas de fast fashion, de certeza que encontrarão a peça ideal. A hoe does get cold, mas não deixem que isso vos impeça de se divertirem com a moda e com a roupa. Expressem-se através dela com estas dicas para nunca mais sentirem frio em detrimento de estar fashionable

86
humor

DIOGO RIBEIRO

DIA DA DEFESA NACIONAL

Há três momentos que marcam a maioridade de qualquer jovem em Portugal. A primeira aula de condução, a primeira compra de álcool no supermercado – em que o cartão de cidadão é exibido de forma magistral, como se da chave do Euromilhões se tratasse – e o Dia da Defesa Nacional.

A pandemia trocou as voltas e muitos jovens não tiveram nenhum destes momentos. As escolas de condução fecharam, o Dia da Defesa Nacional foi suspenso e o álcool deixou de ser comprado nos supermercados, para o ser feito nas gasolineiras Um dia, historiadores analisarão as fotos da BP ou da Galp e pensarão estar a ver o Urban numa sexta-feira à noite.

Regressando ao Dia da Defesa Nacional, infelizmente não fui um dos contemplados que teve dispensa Assim sendo, lá tive de acordar mais cedo do que gostaria para me deslocar até Queluz, não para apreciar o rococó dos contornos das paredes do Palácio, mas para me sentar num auditório do Regimento de Artilharia Antiaérea

O dia é em todo propício para colocar uma carreira militar na lista de profissões a seguir Particularmente, no último lugar. Não me parece ser necessário um grande grau de especialidade no assunto para perceber que obrigar não sei quantos adolescentes a estar fechados numa sala a assistir a palestras não vai surtir efeito prático Para isso começavam a convidar a população sénior e colocavam o Manuel Luís Goucha a falar dos benefícios da Marinha a reformadas de Celorico da Beira Teria mais sucesso.

88
C I Ê N C I A S D A

Depois de várias palestras, dá-se o momento mais aguardado do Dia da Defesa Nacional: ver as armas. Momento mais aguardado, presumo eu, que não estava propriamente entusiasmado com tal perspetiva. Era olhar para o lado e ver os sorrisos no rosto dos jovens Dos que passam a vida no computador a jogar LOL e que viram numa metralhadora o contacto mais próximo com o universo feminino, apressando-se a acariciar o cano da arma tratada de forma intimista como “a minha menina”; dos vários mitras que, embora habituados a canhões, nunca haviam pegado numa arma de pólvora; e à rapariga que, de forma ousada, posou para a foto enquanto dizia com um sorriso nos lábios “se o meu ex estivesse aqui ”

O militar que apresentava as armas tinha apenas duas características de personalidade: gostar de armas e do Sporting As duas eram tão evidentes que se confundiam de forma constante “Aqui temos esta arma para apontar aos benfiquistas”. “Esta granada serve para rebentar com o Estádio da Luz” “Seguras na arma desta maneira e primes o gatilho quando aparecer alguém que não é do Sporting” Pessoalmente achei foleiro. Não pela preferência clubística, mas pela ausência de imaginação nos trocadilhos Na esperança de que o texto chegue ao militar, deixo algumas sugestões que possam ser do seu agrado:

“Bem-vindos ao Dia da Melhor Defesa Nacional, ao meu lado tenho o Gonçalo Inácio, o Coates e o Pedro Porro”

“Pegam na granada e lançam tal e qual o Kiko Costa”

“Se o Paulinho mostra os dentes eles até caem porque fazem uso da mira e atiram em cheio na cabeça deles”

“A bala desloca-se a mais de 100 quilómetros por hora, quase à velocidade da bola depois de um livre do Bruno Fernandes”

São apenas quatro frases simples que certamente tornariam a experiência muito mais dinâmica e menos parecida a um convite para uma visita – amigável, sem qualquer tipo de perturbação para uma conversa civilizada – a Alcochete.

89

Depois do almoço – que merece uma reflexão alargada e é por isso deixado para o fim – houve ainda tempo para mais palestras Duas foram canceladas por falta de palestritas Bom saber que a assiduidade e vontade de presença nulas são comuns a quem organiza o Dia da Defesa Nacional. Mas regressando ao almoço, e porque a comida é sempre – ou devia ser – o ponto alto de cada dia, almoçar no Dia de Defesa Nacional é como ver Lisboa num dia de chuva. Por muito preparados que estejamos para o pior, consegue sempre desiludir.

Cresci, como crescemos todos, a ouvir histórias de comida demasiado insossa ou horrivelmente salgada, de comida esturricada ou completamente crua. Mesmo assim fui surpreendido Quando vi a ementa – bifes de frango com arroz branco – pensei para mim mesmo que seria impossível desiludir. Estava enganado O arroz foi feito por um fiel ultra da brigada contra refogados (eles existem e andam aí). A carne tinha dois problemas Estava crua ao ponto de poder potenciar um novo surto de salmonela por toda a zona de Lisboa E era francamente desinteressante, sem sabor ou textura Se é para investir tanto dinheiro na defesa – desprezando áreas como a cultura – então que se invista em boa carne

E a sobremesa era nada mais nada menos do que um pastel de nata O momento mais patriótico do dia não foi cantar o hino, não foi ver o hastear da bandeira, mas sim comer tal doce, não enaltecido por Amália Rodrigues, mas por Harry Styles, o maior ícone da música em Portugal de acordo com as histórias do Instagram Não há nada mais português do que um bom pastel de nata Mas qualquer português já comeu vários pastéis de nata na vida e a fasquia que avalia a qualidade está elevada. E aquele era um pastel de nata que só satisfazia reformados britânicos de férias em Lisboa ou estudantes Erasmus em défice calórico.

90

receita

Chocolate Hazelnut Cookies

Preheat the oven to around 160ºC Add water to the ground flax seeds, put them in a bowl and live it for 5 minutes - place one cup of whole hazelnuts in a bowl and grind them into a coarse powder Set aside some ground hazelnuts in a separate bowl In the bowl cointaning the coarse powder, add the medjool dates and blitz into a paste, for this to be possible had 1 tablespoon of water and a flax egg - chop the remaining ⅓ of the hazelnuts and spread them onto a plate - combine every single ingredient with the ground hazelnuts

By this step you should have a soft,somewhat sticky, ball Now it is time to shape them: make 10 cookie dough balls around the same size each Once the shape is made press each one of the cookies, only lightly, into the chopped hazelnuts Place all the cookies you have made in a tray, and with the preheated oven let them rest there for 8 to 10 minutes

Take them out of the oven and let them cool down before eating

92 Chopped hazelnuts Cocoa powder Medjool dates Ground flax seeds Water Sea salt Ingredients
Instructions 1. 2 3 4 5 6 7. 8. 9.
vegan&nosugar JéssicaMarques

N O V A e m F o l h a

o j o r n a l d a a e f c s h .

ENVIA AS TUAS PROPOSTAS

até ao dia 16 de cada mês para novaemfolha@fcsh.unl.pt

Todos os meses, aceitamos propostas de textos, poemas, críticas, receitas, crónicas, bitaites, artigos desportivos, notícias e destaques, reportagens, peças humorísticas, ... de qualquer alun@ ou docente da FCSH, as quais são posteriormente revistas pela nossa equipa editorial.

Dentro das mesmas datas, aceitamos ainda propostas de fotografias, ilustrações, montagens, ... não só para serem incluídas na nossa edição, mas também para se habilitarem a serem incluídas na capa desse mês! Qualquer dúvida ou sugestão não hesites em contactar-nos! Ficamos à tua espera! :)

UM JORNAL D@S ESTUDANTES PARA @S ESTUDANTES

Para passares o tempo...

Vertical

1 'Quando o veste farda' é o nome da reportagem

3 Espanca nasceu a 8 de dezembro de 1894 4 Festival de cinema universitário realizado na Faculdade em novembro

5 Cantora espanhola que atuou em Portugal em novembro

9 Movimento de ativistas que ocupou a faculdade numa semana em novembro

Horizontal

2 Saint-Hilaire dá o mote ao artigo da NOVA Debate desta edição

6 Em novembro celebrou-se o aniversário de José

7 Rede social que Elon Musk, entre muitas controvérsias, adquiriu ...

8 Ingrediente principal da sobremesa destacada nesta edição

10 No mês de dezembro celebrou-se a festividade do

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.