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minha crença!

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Arte: Banco de Imagem

Legislativo combate racismo religioso com a criação de leis e instala CPI para investigar ataques a templos religiosos

TEXTO MARCO ANTÔNIO STIVANELLI E TIAGO ATZEVEDO

Com centenas de curtidas, uma postagem divulgada nas redes sociais mostrava a mãe de santo Conceição d’Lissá destruindo as imagens de seu próprio terreiro de candomblé. Sob ameaça e xingamentos, a ialorixá sofreu agressões físicas e morais de bandidos em Nova Iguaçu, na Baixada

Fluminense, em 2017. Dois anos antes, Kailane Campos, de apenas 11 anos, foi apedrejada no rosto por um homem quando saía com a avó de um culto em um terreiro de candomblé na Vila da Penha. Os casos tiveram ampla repercussão, mas a realidade de intolerância e racismo religioso não mudou com o passar dos anos.

Entre 2018 e 2020, 25% dos 500 procedimentos (125) registrados na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) foram motivados por preconceito religioso. A maioria dos ataques (75%) teve como

CERIMÔNIA de transferência do acervo "Nosso sagrado" para o Museu da República

alvo adeptos de religiões de matriz africana como o candomblé e a umbanda, embora também haja registros de agressões a praticantes do cristianismo, judaísmo e islamismo.

A violência tem silenciado os atabaques nos terreiros, principalmente nas comunidades pobres do estado dominadas pelo tráfico e a milícia. O pedido de socorro dessas lideranças tem sido ouvido na Alerj, onde um grupo de deputados decidiu jogar luz sobre estes casos. Uma série de leis vêm sendo aprovadas para assegurar o direito à liberdade de culto e penalizar quem pratica ataques discriminatórios e, em maio, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que pretende responsabilizar quem dissemina discurso e ações de intolerância. Os registros dessas ocorrências foram solicitados à Polícia Civil e serão analisados pelos deputados.

“Existe a intolerância religiosa e isso vai exigir de nós apresentar proposições para evitar essas ações que se traduzem em crime de ódio. O trabalho da Comissão é identificar e diminuir os crimes de intolerância”, destaca a presidente da CPI, deputada Martha Rocha (PDT).

Embora a Constituição, em seu Artigo 5º, já assegure o livre exercício de todos os cultos, leis estaduais têm sido editadas para especificar as violações e permitir a responsabilização. Ainda hoje é difícil separar casos de intolerância e racismo religioso nos registros policiais, que acabam sendo tipificados como injúria por preconceito de forma geral. Somente no ano passado, 1.188 pessoas foram vítimas deste crime, que envolve questões de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP).

Para facilitar essa identificação, foi aprovada a Lei 8.343/19, dos deputados Martha Rocha e Luiz Paulo (Cidadania), que obriga a inscrição do subtítulo “intolerância religiosa” nas ocorrências registradas pela Polícia Civil, para melhoria dos dados estatísticos. Ainda com o objetivo de sistematizar e levar ao conhecimento da sociedade esta rotina de desrespeito, a Alerj aprovou a Lei 9.276/21, que determina a elaboração de um relatório com estatísticas relacionadas à discriminação contra indivíduos ou grupos em razão da sua etnia, raça, cor, ou por intolerância religiosa, ocorrida no estado. O documento deve se basear nos registros de ocorrência das delegacias. A norma é de autoria dos deputados Martha Rocha, Carlos Minc (PSB), Mônica Francisco (PSol), Renata Souza (PSol) e Dani Monteiro (PSol).

A diretora-presidente do ISP, Marcela Ortiz, explica que os dados divulgados pelo instituto também têm caráter educativo e de alerta à sociedade. “Entendemos que há muita subnotificação e a melhor forma de evitar que novos casos ocorram é garantir que os agressores sejam punidos na forma da lei”, diz.

RACISMO HISTÓRICO E EDUCAÇÃO O combate à intolerância é também uma luta contra o racismo, que precisa ter a educação como aliada. Líder de um terreiro da Baixada Fluminense, Mãe Torody disse aos membros da CPI da Alerj que os casos de agressão na região vêm aumentando e que é preciso falar do assunto. “Queremos respeito em primeiro lugar, não tolerância. Precisamos de ferramentas para encarar o desrespeito e orientar sobre como vivemos e como somos agredidos”, diz.

O deputado e umbandista Átila Nunes (MDB) - autor da Lei 5.931/11, que criou a Decradi, e da Lei 8.113/18, que originou o Estatuto da Liberdade Religiosa – entende que a mudança tem que vir de um movimento de conscientização da sociedade. “No Legislativo estamos sempre atentos, fazendo denúncia ao Ministério Público, criando CPI, promovendo o diálogo e chamando atenção para o movimento. Mas a mudança, ela é dentro de casa ou talvez através da escola”, afirma.

A deputada Mônica Francisco (PSol), que é pastora evangélica, concorda ser preciso estabelecer um pacto social de respeito mútuo. A parlamentar defende que a questão já extrapolou a intolerância e tem raízes no racismo religioso em relação às religiões de matriz africana. “As pessoas precisam se relacionar com respeito umas às outras e isso independe de profissão de fé. Os homens não nascem se odiando. Isso é ensinado. E a escola tem um papel fundamental. Temos já um arcabouço legal, mas é preciso que haja um esforço coletivo, das instituições e da sociedade como um todo”, esclarece.

Esse entendimento motivou o deputado Waldeck Carneiro (PT) a elaborar

MARTHA Rocha comanda a CPI que investiga ataques a cultos religiosos. Para o deputado Serafiini, preconceito tem origem no racismo

Julia Passos

a Lei 9.210/21, que obriga escolas das redes pública e privada do estado a promoverem ações extracurriculares que abordem o respeito à liberdade individual de crença e de culto, além de discutir a diversidade cultural e religiosa. A norma pretende fortalecer a aplicação do Estatuto Estadual da Liberdade Religiosa (Lei 8.113/18).

O parlamentar acredita na importância de ampliar o conhecimento sobre as contribuições das ancestralidades africana, indígena e da tradição judaico-cristã para a formação da nossa sociedade. “O engajamento das comunidades escolares é fundamental para o combate à intolerância religiosa. É nesse ambiente que, muitas vezes, se tem o primeiro contato com a ideia de sociedade, sendo ainda o lugar em que se aprende a dividir o espaço com outras pessoas, o que proporciona contato com a diversidade de costumes, valores e culturas”, afirma Waldeck.

O presidente da Comissão de Educação da Alerj, deputado Flávio Serafini (PSol), concorda que as agressões a adeptos dos cultos de matrizes africanas têm origem no racismo. “Não é à toa que mais de 70% dos episódios classificados como intolerância religiosa se dão nas religiões afro-brasileiras. O Brasil é um país com uma lógica racista muito presente, onde historicamente a população preta vem sofrendo com a discriminação e violência, isso desde os tempos da escravidão. Então, o cenário que temos hoje é de tentativa de apagar toda a contribuição cultural e religiosa da cultura negra em nossa cultura como brasileiros”, lembra.

O babalaô (sacerdote do Candomblé) e historiador Ivanir dos Santos lembra que o próprio Estado brasileiro tem participação histórica nos casos de perseguição às religiões de matrizes africanas. Ele conta que é sintomático que a transferência de mais de 200 peças de religiões de matriz afro-brasileira apreendidas entre os anos de 1889 e 1945 somente tenha ocorrido em agosto do ano passado. “Logo após a abolição, a legislação brasileira criminalizou a prática religiosa dos negros. Foi uma perseguição garantida pela lei. Era política de estado”, explica Ivanir.

Depois de longa articulação, o acervo saiu do Museu da Polícia Civil para o Museu da República, no Catete. A Alerj promoveu audiências públicas para discutir o destino das peças e aprovou a inclusão do dia 11 de março, data da devolução, no Calendário Oficial do Estado como “Dia estadual da Libertação do Acervo Sagrado Afro-Brasileiro”. A lei é do deputado Flávio Serafini, que também atuou na causa. MEMÓRIA DE JOÃOZINHO DA GOMÉIA PRESERVADA O respeito ao culto de diferentes religiões passa também por ações que valorizem seu legado para a construção da sociedade. Iniciativas como o tombamento do Terreiro da Goméia, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, fazem parte dessa estratégia. A Lei 9.251/21, de autoria dos deputados Mônica Francisco (PSol), Waldeck Carneiro (PT) e André Ceciliano (PT), transformou o local em Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Rio.

A medida tem um forte simbolismo na região, que registra casos de ataques a terreiros. O templo do babalorixá baiano Joãozinho da Goméia foi erguido no final da década de 40. O líder religioso já era conhecido como o Rei do Candomblé, por realizar um importante trabalho de divulgação da religião de matriz africana, apesar da visibilidade ter gerado críticas na época. Sua história foi contada pela Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, de Duque Caxias, no enredo: “Tata Londirá: o Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias”, da dupla de carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora.

“Recentemente foi publicado um dossiê voltado para a memória de Joãozinho da Goméia, que deve ser publicado também pela USP ainda este ano. A gente fica muito feliz em ver que seu nome ganhou a cena de outras discussões, como símbolo de luta em defesa da liberdade contra a intolerância religiosa”, afirma Leonardo Bora.

BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS

EU TENHO FÉ

Fé não se discute! Carrego comigo esta pequena e simbólica frase, desde do início dos meus processos de conversão e iniciação religiosa. Acredito que as lutas que travamos contra todas as formas de opressões e tentativas de silenciamentos podem ser fortalecidas quando compreendemos que as nossas diversidades religiosas precisam ser a base da construção do respeito e da tolerância.

A experiência de viver e comungar em prol de ideias voltadas para a comunhã é hoje expressada, no meu entendimento e vivência, através da organização e realização da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. Desde seu início, em 2008, a manifestação - organizada pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) em parceria com Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) - é realizada, anualmente, no terceiro domingo do mês de setembro. Perguntas sempre aparecem: "Quais as motivações para os ataques de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana?" e “Por que não fortalecemos os diálogos interreligiosos em vez de alimentar o ódio e subir os muros das diferenças?"

Obviamente, não temos respostas prontas sobre questões históricas que ainda são fortalecidas pelo racismo estrutural. Mas podemos pontuar que existe um silenciamento por boa parte da sociedade brasileira e, principalmente, dos órgão de segurança públicas municipais e estadual sobre os casos de intolerância religiosa no Brasil. Como bem sabemos, do ponto de vista histórico, "conflitos e disputas" religiosos nunca deixaram de fazer parte das transformações sociais. Sim, nunca deixaram porque não existe uma unicidade sobre religiões e religiosidades, seja aqui no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo. Contudo, aqui no país, os conflitos religiosos, ou melhor a intolerância religiosa, estão de mãos dadas com o racismo e todas as formas de preconceitos. E essa simbiose está cada vez mais camuflada como opinião pessoal dentro da nossa sociedade. Opiniões essas que não permite enxergarmos o quão danoso é para sociedade brasileira as violências patrimoniais, físicas, psicológicas e simbólicas contras as religiões de matriz africana.

Os conflitos religiosos, ou melhor a intolerância religiosa, estão de mãos dadas com o racismo e todas as formas de preconceitos

Sim, vivemos num país laico e democrático, mas, de fato, não sabemos ao certo o que significam as palavras “laico” e "democrático" em um país onde a liberdade religiosa é garantida constitucionalmente, mas não é permitida à toda a sociedade

Cá do meu canto, uma pergunta fica ecoando sem pousar em lugar algum: “É o Brasil o país laico e democrático?” Sim, vivemos num país laico e democrático, mas, de fato, não sabemos ao certo o que significam as palavras “laico” e "democrático" em um país onde a liberdade religiosa é garantida constitucionalmente, mas não é permitida à toda a sociedade.

Essa intolerância está intimamente ligada à gênese da formação e transformações da sociedade brasileira. Já na década de 1980, os ataques, principalmente no estado do Rio de Janeiro, passaram a ser praticados pelo poder paralelo - que se identifica como "traficantes evangélicos" - proibindo o funcionamento dos templos de umbanda e candomblé dentro das comunidades de favela. Esta triste realidade vem se intensificando cotidianamente. Tivemos avanços significativos, como a criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), na cidade do Rio de Janeiro, pela Lei 5.931/11. Entretanto, acredito que ainda precisamos investir e instrumentalizar uma proposta pedagógica descolonizadora, voltada para as diversidades, pluralidade e, sobretudo, para o diálogo inter-religioso. Acredito que essa, possivelmente, seria a chave para que possamos construir uma sociedade onde as nossas diferenças possam ser os laços que nos unem e não os as pontas que os separam.

Ivanir dos Santos é babalaô e doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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