NĂšMERO 37
Maio de 2017
Artes e Letras
editorial
Nesta edição de Jornalsemnome damos a público apreciações feitas pelos alunos do 10º ano de Literatura Portuguesa sobre obras com que foram tomando contacto, por opção própria, no âmbito do Projeto Individual de Leitura. Trata-se de textos produzidos a partir das notas de leitura efetuadas, na tentativa de dar conta das impressões, interrogações e perplexidades com que os alunos se foram deparando. Como ilustrações, publicamos vários trabalhos de alunos das turmas de Artes e de Educação Visual, a expressão artística a juntar-se ao estudo das letras. Proximamente, editaremos um número do Jornalsemnome totalmente dedicado à Semana das Artes. Lembramos que, no próximo dia 26, 6ª feira, será apresentado na escola o livro As minhas memórias da “Quadrilha”, da autoria de António José Alçada, antigo aluno desta casa. Dia 1 de junho, pelas 17 horas, será apresentada a obra O Chevrolet cor de coral, da nossa colega Ana Maria Vilhena. Aguardamos a vossa presença.
Colaboradores António José Alçada Alunos de Artes Alunos de 7º ano Beatriz Costa Beatriz Santos Bruno Apresentação Clara Passarinho Cristiana Água Inês Ferreira Inês Mendes Margarida Caldeirinha Matilde Távora Miguel Boullosa Professores de Artes Visuais Raquel Carmo Robim Mestre
Equipa responsável Alexandra Cabral Miguel Teixeira
Coordenação Alexandra Cabral
Logotipos André e Joana
jornalsemnome@gmail.com
Associação de Pais e Encarregados de Educação dos Alunos da Escola Secundária du Bocage http://apesbocage.blogspot.pt/ https://sites.google.com/site/apesbocage/ Novo email da associação 2
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Manhã Submersa O livro Manhã Submersa, da autoria de Vergílio Ferreira, narra a história de António Borralho, um rapaz pobre proveniente da Covilhã, que tem a oportunidade de ir estudar para um seminário, pois uma senhora rica, D. Estefânia, proporciona-lhe essa oportunidade. Na época retratada, inícios do século XX, quando um rapaz ia estudar para um seminário, regra geral com a intenção de se vir a tornar padre, a sua entrada era vista pela sua família como uma fonte de segurança e conforto económico, o que consistia na mais forte razão pela qual, neste caso, a mãe de António apoiava esta decisão, pois era uma forma de fugir à pobreza: " toda a minha vida tenho sido uma cadela de fome e de trabalho. Se fosses padre, podia passar uma velhice boa. E os teus irmãos tinham um encosto." Para além disso, deve referir-se que a decisão de António frequentar um seminário foi bastante influenciada e até mesmo pressionada por D. Estefânia, que não só assim o fazia por considerar que era a sua função, como encarava este projeto como uma demonstração de lealdade para com Deus, pois estava a ajudar um rapaz pobre a alcançar uma vida mais confortável e segura. Contudo, António sentia que não tinha vocação para exercer o sacerdócio, pelo que se confronta com a questão estruturante deste romance: dizer a verdade a D. Estefânia e à sua mãe, ou esconder os seus verdadeiros sentimentos, não causando, assim, sofrimento e desilusão a ambas? Para além da grande questão com que António se confronta, vão surgindo, ao longo da narrativa, várias outras situações, como a sua relação com Gaudêncio. Sendo ambos forçados a frequentar o seminário, nos seus diálogos íntimos estão presentes várias
questões relacionadas com a existência de Deus e planos de fuga do seminário. Ao longo da narrativa são-nos, também, narrados vários episódios do quotidiano do seminário, desde as rigorosas aulas até à hora da recolha, quando assistimos a vários momentos de reflexão de António, olhando pensativamente para o luar. RELAÇÃO ENTRE ANTÓNIO E GAUDÊNCIO A relação de António com Gaudêncio, seu melhor amigo, foi-se tornando, ao longo da narrativa, cada vez mais forte e íntima, dado que ambos partilhavam a pobreza e uma vida miserável, assim como foram forçados a frequentar o seminário. Deste modo, assiste-se a vários diálogos entre as personagens sobre as grandes questões da vida, nomeadamente sobre a existência de Deus, um tema de debate quase proibido no seminário, pois a sua existência era considerada como um dado absoluto. Para além disso, António e Gaudêncio chegaram a combinar diversos planos de fuga, embora nunca tivessem tido a coragem suficiente para os concretizar. Entre os vários diálogos dos amigos, o que mais me marcou foi, sem dúvida, o que se relaciona com a existência de Deus, uma vez que esta temática era uma espécie de tabu, pelo que falar nela ou questioná-la era proibido: “– Tu nunca, nunca, nunca pensaste assim: «E se Deus não existisse?» Fiquei sem fala, olhei Gaudêncio com terror. Porque tudo poderia entender: as faltas ao regulamento, a familiaridade com o pecado e até mesmo o falar-se mal dos padres. Mas pôr em questão a existência de Deus pareciam-me naturalmente um prodígio maior que o próprio Deus. Na realidade, o maior terror não vinha de ele ter dito o que disse, mas de me lembrar de súbito que o podia ter dito eu.” 3
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Com efeito, os dois amigos eram muito atormentados pela ideia de que a expulsão ou fuga do seminário os iria perseguir para o resto da sua vida social: “Porque a expulsão - garantia o homem à face dos Céus- é nódoa que nunca mais se apaga. Que dor! Que afronta sem nome quando um dia lá fora vos deitassem na cara este labéu sangrento. «Foi expulso! Foi expulso do seminário.»”. RELAÇÃO DE ANTÓNIO COM A FAMÍLIA DE D. ESTEFÂNIA: Outra temática abordada neste romance corresponde à relação de António com a família de D. Estefânia. Embora esta se tivesse comprometido a ajudar na educação de António, estabelecia com ele uma relação de extrema frieza, sem grandes afetos nem sensibilidade face aos problemas que o perturbavam. De facto, podemos dizer que o propósito de D. Estefânia ao levar António para o seminário não foi realmente ajudá-lo a ter uma vida melhor, mas realizar uma boa ação perante Deus, foi quase uma prova da sua lealdade para com Ele. Com efeito, D. Estefânia tratava António com pouca compaixão, comparativamente a todos os membros da sua família, o que revela que nunca o chegou a aceitar como um membro integrante desta:” - Já disse que te podes queimar! O António que deite tudo! Sim. Portanto a minha carne podia arder. Cada raiz da minha vida se iluminou em desespero. Quis provar àquela bruxa que a desprezava, que desprezava a morte, o suplício da minha carne. Estalou-me então abruptamente, de alto a baixo, um raio de loucura.” Para além disso, D. Estefânia sempre se demonstrou muito firme relativamente à decisão de António frequentar um seminário, pelo que, quando este andava muito revoltado e triste com a sua experiência, D. Estefânia nunca o tentou compreender, pelo contrário, levava-o a convencer-se de que o prosseguir os estudos no seminário era o caminho correto: “Quando te recolhi nesta casa foi para maior glória do Senhor e maior honra e proveito espiritual meu e
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teu. Mas os desígnios de Deus são insondáveis e não podemos imaginar sequer tentar fazer-lhes violência. «Muitos são os chamados e poucos os escolhidos», disse Jesus. Destinei-te a seres um sacerdote de Cristo. Mas só o serás se Deus te tiver escolhido.” Porém devemos, ainda, sublinhar que se deixa na atmosfera do romance um clima de suspeição relativamente a questões de pedofilia, embora nunca se chegue realmente a abordar esta temática.: “Porque a primeira distinção que eu fazia (e depois verifiquei que também faziam os prefeitos) era essa, precisamente, de alunos feios e bonitos.”. No entanto, este tema é muito lateralmente abordado no livro e, muito rapidamente referido e sem pormenores muito específicos, uma vez que se trata de um assunto muito sensível para a Igreja. RETRATO SOCIAL Através deste romance podemos perceber, também, o ambiente social da época, sendo este muito marcado pela desigualdade entre ricos e pobres. De facto, podemos aperceber-nos deste nível de desigualdade através do ambiente requintado e elegante da casa de D. Estefânia, principalmente através dos seus jantares e dos seus criados, em contraste com a casa pobre e faminta da família de António. Para além disso, também podemos inferir que o nível de escolaridade era muito desigual, pois apenas as famílias com mais posses podiam ter acesso à educação. Na verdade, podemos percebê-lo neste romance através do filho mais velho de D. Estefânia, Alberto, estudante de Medicina em Coimbra, um privilégio a que poucos tinham acesso nesta altura. Refira-se, também, que a linguagem utilizada por cada personagem reflete, claramente, o seu estatuto social, como é o caso da mãe de António, uma pobre e desgraçada mulher. “– Que é que tu queres dizer com isso? Não me fales em latim que eu não entendo”. Paralelamente ao caso da mãe de António, proveniente de uma classe desfavorecida, podemos verificar, através de Alberto, uma elite privilegiada e com muito mais acesso à educação e à cultu-
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ra: “- Ouve lá. Tu, que tiraste um treze a latim, deves saber muito disso. Então diz-me lá uma coisa: o que é que pede o verbo utor? “ Por outro lado, podemos inferir, ainda, que existia um grande desprezo pelos pobres por parte dos ricos, sendo que D. Estefânia nem tinha sequer a intenção de ajudar realmente António a sair da pobreza, mas pretendia demonstrar a Deus que lhe era realmente fiel, fazendo caridade, pelo que se dispôs a ajudar um rapaz pobre como forma de demonstrar a sua bondade enquanto católica. Deste modo, quando António lhe revela o seu verdadeiro sentimento, não ter vocação para exercer o sacerdócio, D. Estefânia revela-se muito fria e arrogante, o que nos leva claramente a crer que o ajudou apenas por interesse, e não por pura bondade: “– Desgraçado! Que destino será o teu, miserável! Roto, cheio de fome, morderás pedras, se quiseres comer. E depois, já mais afoita, já escarninha: - Não tem vocação! Tem mais vocação para se encher de côdeas e de piolhos. O lorde. Não tem vocação para padre. Prefere ser doutor. A mãe vai pô-lo em Coimbra estudar. Eh! E logo, sem uma transição, toda frisada de gritos como se a tivessem fundo: - Pois se não tem vocação, rua! Vá lá para a fome dos Borralhos! Vá comer palha! Aqui nem mais uma hora! Rua! “. Com efeito, podemos inferir que D. Estefânia não estava habituada a ser contrariada, pelo que ficou repugnada com a atitude de António em lhe recusar esta ajuda, que para D. Estefânia lhe parecia extremamente preciosa, não se importando com os verdadeiros sentimentos do rapaz. De facto, não lhe passaria pela cabeça que um rapaz pobre e miserável como António pudesse contrariar a sua vontade e recusar ajuda. Contudo, D. Estefânia era muito bondosa para com o seu filho Alberto, muitas vezes retratado como” Dr. Alberto”, embora este a tratasse com pouco respeito: “D. Estefânia, incrivelmente humilde diante do filho mais velho, fitava-o constantemente, à espera de novas ordens.”. Desta forma, podemos compreender que a personagem, embora se tivesse disposto a ajudar António, nunca o conseguiu tratar com amor nem recebê-lo na sua família.
RELAÇÃO ENTRE PREFEITOS E SEMINARISTAS
Outro aspeto importante diz respeito aos castigos dos prefeitos no seminário. De facto, o ambiente era extremamente rígido, pelo que infringir regras era uma opção com consequências muito violentas. Deste modo, todos os alunos tinham noção das consequências dos seus atos e conheciam o castigo que os aguardava: “- Estenda a mão. E eu pensei: «Nome de Deus! Ele vai arriar-me com toda a força». Eu tinha um corpo forte, não dava pena malhar. Estendi a mão”. Para além disso, aquando da morte de Gaudêncio, melhor amigo de António, os prefeitos demonstraram uma grande frieza e distância para com António, que muito sofreu com perda de Gaudêncio, que era o único colega em quem confiava para desabafar: “– Senhor padre Pita! Como está o Gaudêncio? Padre Pita olhou-me com um olhar tão longo e tão negro do mundo que toda a noite entrou dentro de mim. Depois, recolhendo-se a si, benzeu-se sem uma palavra. - Morreu! - clamei, doido. - Silêncio, por causa dos doentes- disse-me ele. - Morreu?!- perguntei ainda ardentemente. - Já está diante do senhor- confirmou o padre Pita. Morreu! Fiquei assim longo tempo, aturdido, olhando o padre, olhando as sombras da noite, até reconhecer enfim que havia da morte no mundo. E repetia baixo: «Morreu, morreu». Então desatei aos soluços e dei tudo o que podia de sofrimento à memória do meu bom camarada, à memória da sua esperança vencida, enquanto o padre Pita me dia silêncio e se benzia outra vez. “. Com efeito, podemos inferir que existia uma significativa distância entre os prefeitos e os seminaristas. No entanto, também devemos referir que nem todos os prefeitos eram tão frios e cruéis, havia exceções, como é o caso do padre Alves, que tentou ajudar António na sua longa tristeza: “– Porque andas tu tão triste? Falei baixo, como ele, submetido ao recolhimento geral: - Não ando triste, senhor padre Alves. Eu não ando nada triste. - Porque mentes, meu filho? Quantos anos tens? - Faço catorze em julho. Ficou repentinamente apreensivo: 5
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- Catorze! Portanto, um homem. O tempo corre e a gente esquece-se e fica para trás. Um homem. Aí vêm os perigos, os únicos perigos. O mundo e o seu sonho”: “Tu já falaste com o teu diretor espiritual?” Sublinhe-se, ainda, que no seminário reinava um ambiente muito austero e a liberdade dos seminaristas era quase nula, até mesmo as cartas que estes enviavam para a família eram abertas, pelo que enviar uma carta afirmando que já não queria frequentar o seminário, tal como António fez, podia originar consequências funestas: “– Toda a correspondência é entregue aberta. Não conhece o regulamento? Aberta? Atiro a mão aflita à minha carta criminosa. Mas o que fazer agora? Entregá-la aberta seria condenar-me.” Em suma, podemos inferir que o seminário era um espaço de extrema frieza e austeridade, o que ainda dificultava mais a tentativa de António de dizer o que realmente sentia, assim como aumentava a sua raiva e ânsia de sair dali. Para concluir o estudo da obra Manhã Submersa, considero que esta consiste num retrato perfeito de elementos da classe baixa do início do século XX, que obrigava os seus filhos a frequentarem os seminários, de modo a fugirem à pobreza. Devemos, também, sublinhar que esta obra, para além de ser um retrato social fiel da época, foca em específico os sentimentos e pensamentos da sua personagem principal, António, o que nos permite ter uma melhor perceção do que é ser forçado a frequentar um seminário, uma vez que a história é narrada pelo mesmo, mas já depois de ter saído da instituição: “Impossível seguir, na minha narrativa, uma cronologia contínua. Desse meu primeiro ano, por exemplo, que mais dizer? Irei, pois, saltando pelo tempo, apanhando aqui e ali a linha da minha história.”. Para além disso, devemos salientar a evolução psicológica de António ao longo da obra, pois este, embora lhe tivesse custado muito e tivesse pensado bastante, acabou por revelar à sua mãe e a D. Estefânia o que verdadeiramente sentia: não ter vocação para exercer o sacerdócio. De facto, considero este ato de António muito nobre e notável, dado que teve de ter muita coragem e valentia para enfrentar tanto a sua mãe com D. Estefânia, que queriam que ele frequentasse o seminário a todo o custo. Com efeito, esta obra transmite-nos uma visão clara e pormenorizada de uma prática tão frequente nesta época. Beatriz Santos
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"Uma carreira cortada" O conto que decidi analisar intitula-se "Uma carreira cortada” e faz parte da obra Léah e Outras Histórias, de José Rodrigues Miguéis. O narrador assume-se, logo de início, como alguém de gostos macabros, com uma especial apetência para a observação minuciosa de corpos já despidos de vida - "(...) um dos meus gostos (...) era frequentar o teatro anatómico (...) ficava uma hora ou duas a vê-los dissecar os cadáveres". É, sem dúvida, uma personagem diferente do habitual, pois apresenta esta atração pelo "belo-horrível". Desde sempre quisera ser médico, mas, por motivos alheios, não pôde seguir esse propósito. Enquanto o narrador se encontrava num café com o seu amigo Silvestre, a contar as suas aventuras anatómicas, um jovem rapaz saiu abruptamente do estabelecimento. Voltando a encontrá-lo dias depois, o narrador decidiu, então, desfazer o possível equívoco provocado pela conversa mantida na mesa do café. Contudo, foi o jovem que acabou por explicar a razão de ser da sua brusca saída. Começou a narrar uma singela história de amor. Todos os dias, quando vinha da universidade, passava por uma garota que vendia flores para sustentar os irmãos e comprava-lhe sempre uma. Foi, então, que começou a reparar que a menina tossia muito e estava a adoecer. Um dia, ganhou coragem e levou-a a passear, pagando-lhe um copo de cacau e um bolo de arroz, o que se tornou rotina. Contudo, a certa altura, a jovem deixou simplesmente de aparecer. O sujeito sofria ao ver-se privado da sua presença, da sua companhia ("Não sei como aguentei"), sofria de ciúmes e raiva : "Vivi em alternativas angustiosas de saudade e ciúme enraivecido. Mas o ciúme era o pior, e cheguei a desejar que ela tivesse morrido, para que ninguém ma pudesse roubar". Chegou, por fim, a época dos exames. No dia das provas, entrou no teatro anatómico e aproximou-se da mesa de mármore onde jazia uma jovem. Apesar da necessidade de se manter emocionalmente distante do corpo que estava prestes a ser dissecado, a beleza daquela figura feminina desconcertou-o: “Era um corpo de rapariga, magro e exangue, pouco mais que púbere, com uns seios tímidos e pequenos, mas todo ele duma graça e duma beleza que nem a morte parecia ter arrefecido.” Só depois descobriu o rosto da jovem: “Só então lhe pude ver a cara: era a minha florista.”. O recurso ao determinante possessivo “minha” reflete a intensidade do sentimento que o jovem estudante nutria pela rapariga. O corpo que jamais tinha ousado tocar estava agora ali, friamente descoberto, enjeitado, exposto. Não gritou, não chorou, não tremeu. Despiu a bata, cobriu o corpo da sua amada e saiu. "Era isto que eu lhe queria contar..." são as últimas palavras que dirige ao narrador antes de mergulhar uma vez mais no álcool. Em suma, no conto “Carreira Cortada”, os grandes temas presentes são, sem dúvida, o macabro, o grotesco e o ciúme.
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O MACABRO Por um lado, avultam o macabro e o grotesco, pois a personagem principal tem gostos pouco usais, como observar teatros anatómicos e faltar a aulas para ver dissecar defuntos – “(…) depois das minhas aulas, dava uma saltada até lá e ficava um hora ou duas a vê-los dissecar os cadáveres”. O necrotério apresenta-se como uma espécie de habitat natural para o narrador, onde este se move com tranquilidade. A escolha de vocábulos duros e agressivos permite a construção de quadros horríficos – “(…) deitada na prancha de mármore, com as perda dobradas e pendentes, o corpo escanzelado já em manchas roxas de decomposição (…) metida entre o coiro e a carne, uma mosca verde, imóvel, nutria-se tranquilamente” ou ainda “(…) aquele ventre que ali se desfazia agora, visgoso e repulsivo, entregue à voracidade silenciosa, implacável, dos moscardos”. O CIÚME Outro sentimento perpassa pelo conto, especialmente na parte final - o ciúme. O narrador apresenta uma grande obsessão pela florista, o que o leva a sofrer de raiva e ciúme. Este desejo de posse atinge o seu auge quando o narrador se apercebe de que preferia que ela tivesse morrido a que o preterisse por outro – “(…) e cheguei a desejar que ela tivesse morrido, para que ninguém ma pudesse roubar”. Ciúme é o sentimento associado ao receio de que certos afetos não nos sejam dedicados exclusivamente. Como qualquer outra pessoa, o narrador, ao sentir ciúmes, tem pensamentos e sentimentos negativos em relação à florista. Juntamente com esta emoção, surgem outras, como o medo, a raiva e a vingança. A meu ver, o nível de ciúmes do narrador é tão elevado que pode ser uma condição patológica, pois há o medo inconsciente da ameaça de que a vai perder, assim como o desejo obsessivo de controlo da amada. O narrador exagera, sem motivo aparente, sentindo-se absolutamente inseguro, fragilizado e debilitado – “(…) O amor era aquela tortura. Emagreci de desespero e cansaço”. COMPARAÇÃO METAFÓRICA - MENINA versus FLOR Na literatura, a flor surge muitas vezes associada à figura feminina. Como esquecer, por exemplo, no Canto III da obra camoniana Os Lusíadas, a comparação entre a bela Inês de Castro e a bonina, flor campestre, singela e frágil? É impossível dissociar a protagonista desta trágica história de amor do elemento da natureza – a flor. Aliás, a sua apresentação ao narrador não passa pela identificação de um nome próprio, mas da profissão que exerce – florista. Tal como as flores que vendia se encontravam murchas, sem vida, também a rapariga vai murchando com a doença, culminando na sua trágica morte. De certa forma, o jovem estudante também viu murchar o sentido da sua vida, viu murchar a sua carreira profissional, acabando por procurar consolo na embriaguez.
Clara Passarinho
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Nem todas as baleias voam Autor: Afonso Cruz Título da obra: Nem todas as baleias voam Editora: Companhia das letras 1ª edição: Novembro, 2016 Afonso Cruz é escritor, ilustrador, cineasta e músico da banda “The Soaked Lamb”. Nasceu em julho de 1971, na Figueira da Foz. Mais tarde, frequentou a Escola António Arroio, as Belas Artes de Lisboa e o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira. Recebeu prémios e distinções nas várias áreas em que trabalha, gosta de cerveja e vive no campo. Nem todas as baleias voam é uma das suas obras mais recentes, editada pela Companhia das Letras e cuja 1ª edição foi lançada em novembro de 2016 A razão que me levou a escolher este livro foi a curiosidade que tive em saber o porquê das baleias no título e o que é que isto tem a ver com o amor. Até agora, ainda não percebi o que uma coisa tem a ver com outra, porém quero muito descobrir. Este romance passa-se durante a Guerra Fria e fala-nos acerca de um plano da CIA para, através do jazz, vencer a guerra. A principal missão seria cativar os jovens do leste para a causa americana. É neste contexto que Erik Gould, pianista de Blues, apaixonado pela música e pela única mulher da sua vida, que desapareceu sem deixar rasto, fará de tudo para a encontrar, não lhe restando mais esperança que o acaso. É aí que Tristan, filho de ambos, faz a diferença graças a uma caixa de sapatos. Erik Gould era um pianista de blues. Este género musical teve muita influência na sua vida, pois ensinou-o a tocar na "alma" da música, a agarrá-la e a manobrá-la como se esta fosse uma marioneta. Gould tocava no coração do piano, vivia por ele : «Ao decidir contar a história de Erik Gould, não poderia deixar passar a influência que os blues tiveram na sua vida e como isso alterou a sua maneira de ver o mundo. Son House terá sido um dos músicos que mais impressionaram Gould. A música, como Gold terá dito, exige pulsação, exige um coração a bater. Billie Holiday fazia às músicas o mesmo que Gould. Acariciava-as com a voz, deitava-as e fazia amor com elas. E talvez tenha sido nessa altura que Gould aprendeu a beijar o que tocava no piano, a usar os dedos como objetos sensuais e, ao pousá-los nas teclas, acariciar a melodia juntamente com o ébano e o marfim.» O bluesman vivia com Natasha, a mulher da sua vida, a única que amara tanto ou mais que a música. Um dia ela foi-se embora, deixando Erik Gould num autêntico vazio. O homem que outrora tocara piano como quem toca no céu, tocava agora como quem toca no Inferno : « As unhas dos pés de Erik Gould apodreceram, a sua imaginação caiu como maçãs demasiado maduras, as notas do piano soavam-lhe a bolor, batia nas teclas em vez de tocar.»
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Era uma pessoa totalmente diferente, sabia o que era a dor e não só a sentia física, mas psicologicamente. Erik fazia questão de passar a tristeza, o sofrimento psicológico, toda a dor que sentia na alma para o exterior, estando constantemente a auto mutilar-se, apagando cigarros nos braços e cometendo ações ainda muito piores, como esfregar rosas em, literalmente, todo o corpo até ser tudo uma junção de sofrimento, sangue e cheiro de rosas. Sentia-se bem ao fazer estas coisas. Acreditava que era a única forma de sentir a sua mulher : «Ficou nu no meio das flores. Debruçou-se e rasgou a mão no canteiro das rosas. Abraçou-as, acariciou-as, até sangrar das mãos, dos braços, do peito, dos lábios, do sexo, da cara, até não poder mais com a dor espetada na carne. O perfume das flores misturava-se com o sangue e preenchia o ar de céu e terra, de sonho e pesadelo, de nuvens e raízes, de circunferências e retas. Voltou para casa e regou o corpo com álcool enquanto gritava. Erik Gould não pensava em mais nada que não fosse a sua mulher, e assim continuou, sempre, como se as feridas das rosas afinal não desaparecessem. As feridas daquelas rosas duravam para sempre, eram cicatrizes de aguentar no corpo, de preservar, de se manterem por lá, mesmo depois de, à superfície, já não haver vestígios da sua atividade. Gould apagava cigarros no braço e sentia que essa dor era uma espécie de alegria.» Ela vivia no seu pensamento e quando ele adormecia ela era o seu sonho constante («(...)os sonhos de Gould eram uma forma de Natasha se deitar dentro da sua cabeça. Não pensava em mais nada senão em Natasha.») e quando saía acreditava que ela voltasse para casa e deste modo recebê-la, beijando-a «dos pés ao coração» («Parava em todo o lado onde houvesse um telefone e marcava o número da sua própria casa. Acreditava que Natasha pudesse voltar quando ele não estivesse em casa (...)»). Até agora consegui concluir que o homem que antes vivia da música e era alguém, não passa de um fantasma que anda sem rumo na terra. O amor obsessivo que tinha por Natasha fez com que ele se destruísse por dentro. Tornou- lhe apenas uma alma perdida que não acredita em mais nada senão no regresso da sua mulher a casa. O facto de ela se ter ido embora sem deixar qualquer explicação deixou Erik numa situação caótica, pois ele apenas vive para a reencontrar e apenas pensa no amor que tem por ela, na paixão e nos momentos que os dois tiveram.
Cristiana Água
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Amor de perdição Fiz a leitura da obra Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Na análise que apresentarei debruçar-me-ei sobre algumas injustiças que foram cometidas ao longo da história, desde acusações injustas cometidas sobre a personagem Simão, à forma como os pais influenciavam as decisões e impunham a sua vontade aos filhos. O desfecho da história poderia ter sido outro se não tivesse ocorrido estes factos. Esta narrativa trata principalmente a história de Simão e Teresa, que sentiam um amor quase incondicional um pelo outro. No entanto, a sua relação tinha poucas probabilidades de alguma vez vir a ser aceite, visto que as suas famílias, Botelho e Albuquerque, eram rivais e de forma alguma permitiriam que houvesse algum tipo de ligação entre ambas: "O pai de Teresa não embicaria na impureza do sangue do corregedor, se o ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o ódio de um e o desprezo do outro. O magistrado mofava do rancor do seu vizinho, e o vizinho malsinava de venalidade a reputação do magistrado. Deste modo, desencadeiam-se vários acontecimentos, tudo à volta da paixão arrebatadora que existe entre as duas personagens. Após o julgamento de Simão pela morte de Baltasar Coutinho, tendo este sido sentenciado a pena de morte, foi julgado nas ruas e sofreu múltiplas acusações, não exatamente pelo seu comportamento com Baltasar, mas porque a população não gostava do seu pai e o seu estatuto social também não que lhe agradava. Para melhor explicar a minha ideia, vou enunciar algumas pequenas citações: " Quando vai ele a padecer?" " - É bem feito! Vai pagar pelos inocentes que o pai mandou enforcar." (...) " - Não que estes fidalgos cuidam que não é mais
senão matar!...". Simultaneamente, nota-se uma crítica à justiça, à forma como esta é aplicada, pois alude-se a um desleixo em relação às classes sociais mais pobres, já que muito facilmente a justiça os desconsidera: " Matasse ele um pobre, e tu verias como ele estava em casa!". É óbvio que existem aqui alguns problemas, visto que o que realmente moveu a raiva popular talvez não fosse tanto o assassinato de Baltasar Coutinho, mas o nome de Simão. Como estamos cientes, no século XIX e durante muito tempo, as pessoas não eram julgadas individualmente, mas quase coletivamente, pois toda a família era afetada por um ato cometido por um dos seus elementos. Paralelamente, considerarei as decisões e atos de Simão e Teresa, que forçosamente foram consequência do posicionamento dos seus pais , como ocorre com o desfecho mencionado a cima. Observemos o episódio em que Baltasar Coutinho, primo de Teresa, confessou os seus sentimentos e revelou os seus pensamentos sobre um futuro juntos: " É tempo de lhe abrir o coração, prima. Está bemdisposta a ouvir-me?" (...) " - Os nossos corações penso eu que estão unidos, agora é preciso que as nossas casas se unam”. Em resposta Teresa disselhe que os sentimentos não eram correspondidos: "Disse-me o que é impossível fazer-se (...) O primo engana-se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensasse em tal.". A resposta negativa de Teresa não estava nos planos do seu pai, Tadeu de Albuquerque, que já estava a contar com o matrimonio e quase cegamente decidiu ameaçar enviá-la para um convento. Como sabemos, isto não ficou apenas por uma ameaça, visto que mais tarde ela chegou mesmo a
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ser enviada para um convento em Viseu. Este ato veio a ser o início de muitos outros problemas, tendo em conta que de maneira nenhuma os dois amados abdicariam de uma vida um sem o outro. Deste modo, a decisão de Tadeu de Albuquerque apenas foi mais um gesto que fez com que estes desejassem estar juntos, pois "O fruto proibido é o mais apetecido.". Simão abandonou a sua família e, sem qualquer apoio da mesma, refugiou-se em casa do ferreiro João da Cruz, com o objetivo de conseguir estar mais próximo da sua amada. Durante esta estadia, envolveu-se em vários conflitos, desde o assassinato de um dos criados de Baltasar Coutinho à morte do mesmo. Fazendo uma analogia do desfecho ocorrido no século XIX com o que poderia ter acontecido se houvesse mais liberdade, cheguei à conclusão de que seria difícil a história acabar numa tragédia tão grande. Se o pai de Teresa nunca a tivesse pressionado para casar com o seu primo, ela nunca teria sido enviada para um convento e simultaneamente Simão nunca a teria tentado resgatar. Eles estavam no seu direito de escolherem se queriam ficar juntos; no entanto, até há relativamente pouco tempo, pouco importava a vontade dos filhos ou de qualquer outro membro da família, principalmente se isso desrespeitasse a ordem do pai, visto que era ele quem chefiava e sustentava a família. O final da narrativa dá-se com a morte de Simão, que não conseguiu suportar viver sem Teresa, que já tinha anteriormente falecido, e de Mariana, que decidiu acabar com a sua vida atirando-se ao mar. Assim, concluirei que, independentemente de se tratar de um século diferente, onde as mentalidades eram igualmente diferentes, não podemos absternos de pensar quantas histórias acabaram da mesma forma porque não havia qualquer tipo de liberdade, e o sentido de felicidade era visto de outra forma, pois raramente se vivia apenas para o próprio contentamento. As consequências de tais atitudes revelaram-se devastadoras. Em suma, gostei da história em si porque é um romance e, sendo assim, é um tema que me agrada, para não falar de que me permitiu consolidar conhecimentos sobre a época, desde como funcionava a justiça às mentalidades.do século XIX. Quero apenas referir também que a mudança de mentalidades ocorridas em Simão e Teresa foi surpreendente, pois nem todos conseguem superar a pressão da sociedade e da família para desenvolverem um espírito crítico.
Inês Ferreira
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Flores
A obra que escolhi para trabalhar no PIL (Projeto Individual de Leitura) no segundo período denomina-se Flores. É da autoria de Afonso Cruz e foi publicada pela editora "Companhia das Letras" em 2015. O autor nasceu em julho de 1971, na Figueira da Foz. Frequentou a escola de Belas-Artes António Arroio, em Lisboa. Em fevereiro de 2013 iniciou a sua vida como escritor com a participação no "Jornal de Letras" através de uma crónica mensal. Já ganhou diversos prémios e os seus livros estão publicados em vários países. Flores trata questões relacionadas com o amor e o quotidiano, sendo referidas duas visões distintas de ambos os temas. A personagem principal, cujo nome não é referido, é um homem de meia idade, casado e pai de uma filha pequena, de nome Beatriz. O mesmo dá por si a pensar que o que sente pela sua mulher, Clarisse, já não é o mesmo que sentia quando casaram. Apercebe-se de que, devido à rotina, os gestos de carinho que têm um para com o outro não passam de ações já automatizadas: "Beijamo-nos como quem faz a cama". Do outro lado da história está o seu vizinho, o senhor Ulme, cuja perceção da vida é totalmente diferente da sua: "seu vizinho, passa bem com as desgraças do mundo". No entanto este perde a cabeça com pequenos pormenores, tidos pela maioria das pessoas como irrelevantes: "perde a cabeça quando vê um chapéu pousado no lugar errado". Escolhi este livro pois, ao ler a sinopse na contracapa, o tema suscitou-me muita curiosidade. A HISTÓRIA: O senhor Ulme e a nossa personagem foram-se tornando cada vez mais próximos. Um dia, chegou a notícia de que o senhor Ulme tinha sofrido um aneurisma e que, consequentemente, tinha perdido a memória: "Teve um aneurisma"; "Sim, meu querido, o senhor Ulme foi operado."; "Não se lembra de uma parte da sua vida." Ao saber disto, o narrador tratou logo de o ir visitar e de lhe propor ajuda para recuperar as suas recordações passadas. Inicialmente, Ulme pediulhe que o levasse a uma sessão espírita, isto é, a um médium, para que pudesse entrar em contacto com os seus falecidos progenitores.
De seguida e sem o seu conhecido, a nossa personagem partiu para a aldeia onde o seu vizinho crescera: "A aldeia ficava na raia, junto a Espanha". Ao chegar lá, procurou alguém que lhe pudesse dar informações sobre o passado de Ulme. Encontrou a dona Azul, que lhe disse "que estava a reunir alguma informação sobre a família Ulme". A senhora contou-lhe vários detalhes sobre a sua infância, amizades e sobre o seu primeiro amor, Margarida Flores: "Ele andava com o nome dela na boca o tempo todo". Mais tarde, entrou no "Café Mário", onde conversou com o padre, que lhe falou sobre o seu lado mais bondoso e solidário: "ele tomava atitudes que raiavam a santidade" - "Um dia, a mãe de Manuel chegou a casa e encontrou a sala cheia de mendigos, todos descalços, porque o Manuel os tinha levado para casa para lhes lavar os pés"; mas também o seu lado menos puro: “ele insistia que também queira lavar os pés das meretrizes". Por fim, procurou dona Eugénia, que lhe contou as brincadeiras cruéis que ele e os seus amigos tinham para com o Almeida, um menino que estava numa cadeira de rodas: “o Manuel obrigava os outros jogadores da sua equipa a chutarem a bola contra a cabeça do aleijado, tentando um ricochete que fizesse golo". Falou-lhe, por fim, das irmãs Flores, Dália, Margarida e Violeta, e sobre o quanto eram admiradas e desejadas por todos. O resto da história desenvolve-se à volta do objetivo que a personagem principal tem: encontrar Margarida Flores e juntá-la novamente com Manel Ulme, que se encontra doente e, por causa disso, na fase final da sua vida. O SENHOR ULME Ao longo da história é notória a evolução de personalidade, a nível de atitudes, do senhor Ulme. No início, Manuel mostra ser uma pessoa frágil e um quanto à parte do mundo. Tal é percetível pela confusão que faz com alguma palavras (confunde "altitude" com "atitude"), e também pelo seu espanto ao ver a imagem de uma mulher nua, afirmando que nunca teria visto uma: "Nunca tinha visto", "O quê?", "Uma mulher nua". Além disso, aparenta ser alguém com muita sensibilidade e cativante, devido ao seu vasto conhecimento e à maneira como o transmite, principalmente aos mais novos, como é o caso de Beatriz, 13
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Podemos então concluir que a doença fez com que Manuel Ulme voltasse a acreditar no amor e deixasse de ser uma pessoa tão solitária. PERSONAGEM PRINCIPAL Assim como Manuel Ulme, também a personagem principal sofreu uma grande evolução ao longo da obra. Inicialmente, aparentava ser uma pessoa fria e distante da sua mulher, já que afirmava ter perdido o amor que sentia por ela (“Creio que, numa relação, o beijo terá sempre de manter a densidade do primeiro, a história de uma vida, todos os pores-dosol, todas as palavras murmuradas no escuro, toda a certeza do amor. Mas já não é assim"), tendo mesmo chegado a traí-la com Samadhi, uma antiga colega de trabalho ("Quando saí da conferência, bebi uma cerveja num café de esquina com uma jornalista com quem tinha trabalhado antes de me tornar freelancer. (...) Chama-lhe Samadhi."). Contudo, a sua postura, a partir do momento em que se tornou mais próximo do seu vizinho e ficou a saber que todas as suas memórias tinham desaparecido, alterou-se, pois passou a olhar o mundo e os que os rodeavam de uma maneira diferente, mais humana. A nossa personagem decidiu ajudar o seu amigo a recuperar as memórias dos momentos mais importantes da sua infância e juventude: “Um dia depara -se com o facto de não se lembrar do seu primeiro beijo, dos jogos da aldeia ou de ver uma mulher nua". Tempos mais tarde, ao saber que Manuel é diagnosticado com uma doença degenerativa, o seu vizinho fica destroçado e empenha-se ainda mais em fazê-lo recordar-se do seu passado e cumprir o seu último desejo: voltar a ver e reconquistar o seu primeiro amor. Em suma, avaliando as ações desta personagem ao longo da obra, podemos perceber que ouve uma evolução de uma pessoa fria, que não dava grande importância aos sentimentos dos outros, para alguém mais sensível e preocupada. Podemos constatar este último aspeto quando, apesar de todas as vezes que é afastado, ele insiste em convencer Margarida Flores a dar uma nova oportunidade ao seu amigo, tendo em conta o que se passa com ele.
a filha da personagem central: "O senhor Ulme apontou para a camisola da Beatriz e perguntou: De que cor é? - Amarela - Não - É, sim - As coisas não têm cores, isso não é uma propriedade dos objetos." Com a continuação da história, o leitor vai-se apercebendo de que Manuel nem sempre teve esta postura, o que se verifica através da narração do passado, antes de sofrer o aneurisma, ao qual foi operado e que o fez perder todas as suas recordações. Todas menos a do seu primeiro amor, Margarida Flores. Tempos mais tarde, foi-lhe diagnosticada uma doença degenerativa que lhe tiraria a vida em breve e que fará que com que vá perdendo a capacidade de andar e de falar, a pouco e pouco: "Parece que não vou viver muito tempo"; "Degeneração de uma parte do cérebro, vai afetar toda a área motora, (...), preso num corpo que vai parar. Primeiro vou deixar de andar, depois deixarei de falar, (...), mas a cabeça continuará lúcida." Ao saber desta triste notícia, que o seu fim estava próximo, e da conversa que o seu vizinho tivera com Margarida, o senhor Ulme ganhou novamente esperança em voltar a ver o seu grande e único amor, o que acabou por acontecer, visto que ela o perdoou e passaram os último tempos da sua vida juntos: "De repente, a Margarida levantou-se, os olhos marejados, e empurrou a cadeira e rodas pelo corredor até ao quarto. Vi-a desabotoar a camisa com a mão direita enquanto com a esquerda fechava a porta".
Concluindo, esta obra fala da história de amizade entre dois vizinhos, que nasce a partir do momento em que estes partilham experiências de vida e se apercebem de que têm mais em comum do que pensavam. Apreciei muito a leitura deste livro, visto que a sua mensagem me tocou. Percebi que alguns acontecimentos podem mudar totalmente a nossa maneira de ver a vida e que todas as pessoas têm segredos que explicam certas atitudes menos percetíveis para quem não as conhece e as julgam sem sequer as tentarem compreender.
Inês Mendes
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ENQUANTO SALAZAR DORMIA O motivo de eu ter optado por escolher o livro Enquanto Salazar dormia, de Domingos Amaral, deveu-se exclusivamente ao seu titulo. Após a escolha do livro procurei informação, recorrendo à sinopse, bem como às primeiras páginas. A narrativa deste livro encontra-se na primeira pessoa, sendo o narrador a personagem principal. Uma das personagens principais é Jack Gil, um espião luso-britânico, que tem por missão desmantelar as redes de espionagem nazis e que reside em Lisboa. Outra é Mary, a mulher do Coronel James Bowles, chefe do SOE (Special Operations Executive). Ambas estas personagens mostram pontos de vista diferentes, em relação ao regime Nazi. Mary demonstra desdém face a este regime, argumentando com Jack pelo facto de este se mostrar compreensivo com o regime: "Um Inglês com compreensão pelos Nazis-comentou cinicamente Mary..." Alice, uma mulher liberal e complicada, também se envolve com Jack, e acaba por ter um papel essência, que acrescenta sentido ao livro. Em relação ao enredo, podemos verificar que ocorre em Lisboa. O narrador descreve Lisboa, na década de 1940, como uma cidade onde o povo era abundantemente constituído por pobres e refugiados que procuravam fugir à segunda guerra mundial, que ocorria entre vários países, entre os quais se destacavam o Reino Unido e a Alemanha como potências opostas. Desde cedo Jack Gil é alertado por Mary para os rumores que existem sobre a possibilidade da invasão de Portugal pelos nazis. Como tal, Salazar prepara o país para a potencial invasão dos Nazis: "Diz-se que anda a preparar o país para a invasão dos Nazis..." A trama do livro desenrola-se através de um pedido de Mary a Jack, que muda drasticamente o rumo da vida desta personagem, como pode ser confirmado pela seguinte citação: "Se essa frase nunca tivesse sido proferida, talvez nunca tivesse existido o Jack Gil..." Este pedido consistia em fazer entrar em Portugal um magnata, filho de um milionário Arménio, de nome Nubar Gulbenkian, que traria informações importantíssimas sobre dois pilotos Ingleses da R.A.F, que estavam a atravessar clandestinamente Espanha. Jack Gil mantém relacionamentos com várias mulheres, entre as quais sobressaem Mary e Alice. Algum tempo apos terminar o relacionamento problemático com Alice, Jack conclui que esta era uma espia nazi. Em suma, podemos afirmar que este livro retrata com exatidão a década de 1940, representando o clima de guerra e tensão que se vivia nessa época. Também aponta para a crise dos refugiados e para a pobreza (estratégias de habitação). É também um livro de fácil compreensão, já que, embora desenvolva um tema teoricamente complicado, consegue desenvolver bem a trama sem recorrer a expressões herméticas. Marco Palhano
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Minha querida Inês A obra Minha Querida Inês, da autoria de Margarida Rebelo Pinto, retrata os últimos sete dias de vida daquela a quem a autora chama «a maior heroína romântica de Portugal», Inês de Castro. Inspirado numa história verídica, o livro está dividido em sete partes, ou seja, ao contrário do que se verifica habitualmente, não está dividido em capítulos temáticos, mas segue uma ordem cronológica e divide-se em sete capítulos que correspondem aos sete dias fatídicos que antecederam a morte da heroína. É narrado, numa primeira instância, pela personagem principal, D. Inês de Castro; porém, após a narrativa desta personagem sobre cada um dos dias, temos a visão de algumas das outras personagens da obra. Deste modo, oferecem-se perspetivas das diferentes personagens relativamente à tragédia de Inês. A protagonista é retratada como uma mulher apaixonada, disposta a fazer todos os possíveis para lutar pelo seu amor impossível com D. Pedro, filho de D. Afonso IV. Mostra-se também uma mãe dedicada dos seus três filhos, João, Dinis e Beatriz, fruto da sua relação com o infante. A ligação de D. Pedro e D. Inês não era aceite pelo Rei, maioritariamente por razões de estado. Paralelamente, o casamento não seria bem aceite por parte do povo, que via esta união como um risco para a independência de Portugal, pois Inês de Castro era castelhana. Como referi anteriormente, ao longo da obra, divulgam-se diferentes visões relativamente a Inês, sendo que algumas personagens partilham opiniões positivas, enquanto outras têm um ponto de vista negativo. Quanto às personagens que se opunham a Inês, podemos destacar: D. ÁLVARO, um padre que a considera uma mulher interesseira com sede de poder: «A desgraça espreita quase sempre escondida nos braços de uma mulher. Ainda mais se for bela, inteligente, culta e ambiciosa, como é Inês, desde cedo educada para servir os interesses dos seus irmãos sem escrúpulos, prontos a sacrificar tudo para alcançar o que desejam.» AFONSO, que trabalhava para D. Pedro, e apaixonado por este, sente ciúmes da proximidade existente entre os dois: «Cabra vil e insensível, filha de uma bruxa, hás de morrer em breve. Pensas que mandas no Reino só porque tens o infante de Portugal nas tuas mãos, mas enganas-te. Pedro não é só teu, nunca o será, pois antes de ti já me amou, e depois da tua morte, voltará a amar-me.» TERESA, aia de D. Inês, que, apesar de a admirar, tinha inveja da sua relação com o futuro Rei de Portugal, estando também apaixonada por ele: «D. Inês tem-me como sua aia há mais de dez anos e, no entanto, nem sequer suspeita do meu amor pelo infante. […] É certo que a amo e respeito como minha senhora, mas tal devoção e fidelidade não me impede de desejar o mesmo homem que ela.» GONÇALO VASQUEZ, que vê a jovem como um perigo para o trono português: «Se D. Inês morrer, os Castro levarão uma lição. É preciso que esses canalhas entendam de uma vez por todas que sois vós o rei de Portugal, [D. Afonso IV] e não vosso filho, a quem manobram co-
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mo um boneco de trapos. Por isso, entre salvar a vida de uma mulher ou salvar o nosso reino, que se salve Portugal.»
Porém, não eram todas as personagens que estavam contra Inês. São suas admiradoras REMÉDIOS, uma jovem moura, criada de D. Inês: «D. Inês não é só uma das mulheres mais belas que este reino viu. É também uma alma pura e generosa, por isso temo pela sua vida e pela vida de seus filhos.» GUIOMAR, uma doente acolhida por D. Inês no hospital da rainha Santa Isabel: «Pobre senhora minha, tão nobre e boa, que a morte espera com suas garras afiadas. […] D. Inês vai morrer, vejo o seu triste fim desenhado nas nuvens do céu, em vão tento avisála, mas as grilhetas que me prendem à minha enxerga não me deixam sair daqui.» No que se refere ao contexto histórico-social da época, a história passa-se no séc. XIV, quando uma forte crise afeta o reino. Para além disso, Portugal encontrava-se em guerra com Castela. A obra termina ao sétimo dia, quando Inês é executada por Álvaro Gonçalves, Pêro Coelho e Diogo Lopes Pacheco. Foram vários os fatores que me impressionaram na obra Minha Querida Inês. Primeiramente, a imensidão de detalhes que permitem que o leitor “viaje” para a época descrita. Em segundo lugar, o facto de existirem maioritariamente personagens contra Inês de Castro foi algo que me aguçou uma certa curiosidade. Desse modo, consultei a obra Castro, do autor António Ferreira, um clássico renascentista no qual certamente a autora desta obra se baseou. Aí, estavam descritos pormenorizadamente os fatores que levaram a que D. Afonso IV condenasse à morte a amada do seu filho. Gostaria de realçar que o facto de a obra estar organizada por dias foi algo que me cativou, já que o leitor tem sempre a ânsia de chegar ao último dia, o da morte da personagem principal. Para concluir, mesmo já tendo conhecimento de que Margarida Rebelo Pinto é uma autora bastante prestigiada, não deixei de ficar surpreendida pela sua capacidade de compor uma obra tão bem estruturada como é o caso de Minha Querida Inês. Beatriz Costa
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Cartas de guerra As pessoas costumam dizer: "Não julgues um livro pela sua capa". Gostaria de afirmar que tal deveria ser alterado para: "Não julgues um livro pelo seu título", pois Cartas da Guerra, de António Lobo Antunes, acabou por não mostrar aquilo que o seu título dava a entender e acabou por ser, como diz a expressão, "dinheiro mal gasto". Apesar disso, continuei a ler esta obra (se é que pode ser chamada assim), não pelo seu autor (apesar de ser um grande apreciador de Lobo Antunes), nem pelo seu enredo (pois o que faltava era precisamente isso), mas sim para continuar a embrenhar-me na intimidade do autor com a sua esposa, Maria José. A falta de história não nos leva a lado nenhum, porém a responsabilidade não recai sobre o autor, visto que este não esperava que as suas cartas de amor fossem publicadas, mas, como disse há poucos dias (quando recebia um prémio de vida e obra): "Não sei quando é que a minha vida acaba e a minha obra começa". Poderei também afirmar que este livro é uma autêntica enciclopédia literária, pois não só fiquei a saber de novos livros e autores como também me deparei com autores de cujo trabalho sou apreciador (J.D. Salinger, James Joyce, Mário de Sá-Carneiro, Truman Capote) ou com algumas referências, como Metamorfose, de Franz Kafka ("Arrasto-me ao longo dos dias, metamorfoseado, como o bicho de Kafka"), ou referências a Camões ("E aqui estou, como Camões, na canção; junto de um estéril monte"), ou quando o autor se queixa de quão infernal é ler os (intermináveis) sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Mas a melhor de todas encontra-se numa carta datada de algures em 1972, cujo fecho é assim: "Minha doce querida, meu amor, minha Anna Karénina, minha lampa de Aladino, minha Ofélia, gosto tudo de ti". Voltando ao seu título, que (mais uma vez) foi mal escolhido, pensava que entre as confissões de amor estariam vários episódios de guerra bem detalhados, que, na verdade, eram poucos, visto que durante a guerra o autor servia como enfermeiro e passava os seus dias (para além de cuidar dos soldados abatidos) a ler ou a escrever à sua mulher a pedir retratos, novos livros, ou a queixar-se dos colegas, das condições ou do seu dia, ou a insultar o seu génio e depois a vangloriar-se: "poderia ser filho dos versos de (Fernando) Pessoa". Gostaria de concluir afirmando que este livro não deixa nada a desejar. Não sendo uma verdadeira experiência de guerra como Os Cus de Judas, do mesmo autor, gostaria de deixar um excerto que retirei do livro e passará a ser uma lição de vida: "Não basta ter-se nascido, é preciso fazer-se. E sacudir as árvores para só ficarem as melhores folhas". Bruno Apresentação
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No âmbito da disciplina de Literatura Portuguesa e do Projeto Individual de Leitura, analisei duas obras de dois livros de contos distintos, sendo esses livros Obras Completas de Eça de Queiroz e Novos Contos do Gin. Os contos escolhidos foram “Memórias de uma forca” e “Amor escreve-se com água”.
Obras Completas de Eça de Queiroz Eça foi um dos mais importantes escritores portugueses, sendo que ainda hoje em dia se lhe dá grande importância. Escreveu romances bastante famosos como Os Maias ou O Crime do Padre Amaro e acabou por morrer em 1900. Tomei a decisão de ler este livro, pois senti alguma curiosidade em saber mais sobre outras obras do autor, nomeadamente obras mais pequenas que as que nos são apresentadas na sala de aula. Relativamente ao livro, este é composto por um conjunto de contos que não aparentam ter qualquer conexão entre eles no que toca ao tema. É, no entanto, importante realçar que a mitologia e a religião têm uma grande influência nestas histórias do autor, pelo simples facto de serem mencionadas em parte delas. Exemplo disso são os contos "A morte de Jesus", "O suave milagre" ou "Adão e Eva no Paraíso". Do conjunto de histórias que já tive a oportunidade de ler, "Memórias de uma forca" foi a que me suscitou maior interesse em trabalhar aprofundadamente, não só pela própria história e tema, diferentes, mas pelo facto de o narrador, neste caso, não ser humano. O “eu” narrativo é na realidade um ramo ou parte de uma árvore, que considera ser seu pai: “Meu pai (…) Era uma árvore materialista.”. Este conta a sua história e fala sobre as memórias com que ficou da sua, maioritariamente, dolorosa vida. Conta-nos sobre as suas origens, família e amigos ("Sou de uma antiga família de carvalhos, raça austera e forte (...) Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota tenebrosa das Índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas para tetos simples e profundos que abrigaram Savonarola, Spinosa e Lutero."), dando-nos logo a ideia de que era "alguém" reservado. Um dia é arrancado da sua árvore e levado para um destino imprevisível. Apercebe-se de que terá, certamente, uma utilidade e por pouco sonha com agradáveis rumos que a sua vida pode tomar ("Eu sentia que ia para uma vida real, de serviço e de trabalho. (...) Tinha ouvido falar das árvores que vão ser lenha, aquecem, e criam (...) Eu tinha ouvido falar das que vão ser vigas de casa dos homens: essas, felizes e privilegiadas (...) Eu tinha ouvido falar também nas árvores de bom destino, que vão ser navio (...)"). No fim... é… uma forca! Habituado a estar relacionado com a questão alimentar e com a vida, o narrador torna-se o oposto, uma máquina de morte. Este destino deixa-o absolutamente devastado e deprimido, mas é obrigado a viver com esta realidade durante anos: "Solucei dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. (...) Ó meu Deus, liberta-me deste mal humano tão aguçado e tão grande ...". Durante anos, conheceu as histórias das suas vítimas, ao todo vinte, viu as suas almas serem levadas por sua causa e os seus corpos não serem alvo de purificação. Por fim, a Natureza, que por tantos anos o consolou, levou-o. É então, no penúltimo parágrafo do conto, descrita a fase final da vida do átomo: a sua morte. Este teria passado anos de vivências desagradáveis, que sentiu quase como tortura. Diz ele: “Vou, vou. Ó terra, adeus! Eu derramo-me já pelas raízes. (…) Ó antiga Cíbele, eu vou escorrer na circulação material do teu corpo.”. Este excerto refere uma “antiga Cíbele”. Cíbele é uma deusa antiga, considerada, também, a mãe dos deuses. Esta simboliza a fertilidade da natureza e a fecundidade da morte. Simboliza,
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então, a vida, no geral, pois todos os seres vivos nascem e morrem. É assim criado um ciclo. Este átomo falece rodeado de Natureza viva - “Ó antiga Cíbele, eu vou escorrer na circulação material do teu corpo”- completando o ciclo da vida. CURIOSIDADES SOBRE O NARRADOR E ANÁLISE DOS “DESTINOS” Ao analisar o conto com atenção e tendo em conta alguns conhecimentos sobre a vida e obras do autor, Eça de Queirós, podemos concluir que quem possivelmente estaria por detrás da narração deste conto seria, eventualmente, João da Ega, uma personagem d' Os Maias. Um exemplo que o comprova exatamente é o comentário "Talvez este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papéis que guardo avaramente e que são as Memórias de Um Átomo.” As Memórias de um Átomo são um projeto de obra a escrever por Ega, que nunca a chegou a publicar, nem teria escrito mais que um capítulo, algo que estava de acordo com o seu perfil. Toda a história é, de facto, uma grande metáfora. O "eu" narrativo não será apenas um ramo de árvore, como já referi, e não se transformará numa forca, a não ser metaforicamente. A forca simboliza a morte, mas a morte tem vários significados. Entre eles, e de acordo com o Dicionário dos Símbolos, a transformação do "ser": " (...) a morte simboliza a mudança profunda que o homem sofre") e que apesar de ser considerado o fim da vida, que não é, de facto, o fim "; “(...) a Morte recorda-nos que é preciso ir ainda mais longe e que ela é a própria condição do progresso e da vida.". Concluo, deste modo, que o destino do narrador será ser forca, simbolizando uma transformação, provavelmente espiritual. Já na história, a transformação é física, pois é literalmente transformado numa máquina de morte. Este rumo da sua vida vai contra todos os objetivos e contra a moralidade do narrador, tornando-se quase irónico que uma fonte de vida tem agora a função de acabar com ela. Estes destinos são um assunto bastante mencionado no conto, tanto o do narrador, como os dos que o rodeiam, sendo que cada um representa algo diferente. Por exemplo, os seus irmãos, quando são levados, tornam-se palco de teatro e barco: “ (...) cheio de vida, de sol, .... lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador foi arrancado de entre nós para ir ser tábua de esquife!”. Outros futuros com que sonha são o de ser lenha e ter um propósito ou utilidade, ser casa e viver entre sorrisos e famílias ou ser como o irmão e tornar-se barco para conhecer o mundo e viajar. QUE CRÍTICA SOCIAL ESTÁ PRESENTE NO CONTO? A meu ver, este conto apresenta uma crítica social a situações que ainda hoje acontecem. Com este tipo de situações quero referir a pena de morte, nomeadamente o facto de existirem, na nossa e em sociedades mais antigas, pessoas que são quase como um Deus: decidem quem morre e quem vive, que ações serão punidas e que ações não o são, etc… No texto, a forca mata um homem por pensar de modo diferente dos outros e por ter ideias opostas às da sociedade da altura. Foi enforcado, mas era “filho do bem e do verdadeiro”, como descreve o narrador. Já o segundo foi morto por amor, não por matar ou magoar de alguma forma alguém, apenas por amar a pessoa errada: “Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com ela. O seu crime era o amor (…) ”. A última vítima descrita foi um operário, que foi condenado por roubar. No entanto, também este crime não deveria ter sido punido, pois o homem era homem de bem e fê-lo “Tomado de um desespero nervoso” por não ter forma de sustentar a família. A partir destes três casos é possível concluir que o sistema de justiça nunca foi muito justo, pois “crimes” como amor ou ter mente aberta não deviam de modo algum ser punidos com morte. A ideia de quão horrendo é ter de assistir a injustiças e como tão facilmente a sociedade julga os outros pelos seus atos é a crítica que realmente retirei do conto. Retirar a vida a alguém é uma experiencia traumatizante descrita pelo narrador, mas a verdade é que quem condena alguém à morte nunca tem realmente de o fazer, nunca tem que sentir a alma da pessoa abandonar o seu corpo ou sentir o corpo sem vida balouçar neles, ao contrário da forca.
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Novos Contos do Gin Novos Contos do Gin, de Mário-Henrique Leiria, foi outro livro de contos que tive a oportunidade
de ler. Este é composto por 59 contos e 10 fábulas. O escritor português viveu entre 1932 e 1980, morrendo com 57 anos em Cascais. Publicou livros como “Contos do Gin-Tonic” ou o que estou a trabalhar. Ao ler um conjunto de contos dele fiquei particularmente interessada no conto “Amor escreve-se com água”. Este, composto por apenas duas páginas, é escrito em forma de carta e tem como narrador Estevão, que se encontra na guerra. O autor da carta escreve para a sua amada, também mãe de seus filhos (“Senti-me contente por te saber bem, assim como os pequenos,…”), deixandoa a par da sua situação e da situação da própria guerra, sendo essa a razão pela qual se encontra longe de casa (“… dada a enorme distância líquida que nos separa”). A partir do excerto “Tem cuidado com o Chuxo, ultimamente andava com as guelras inflamadas”, onde o narrador fala de um dos seus filhos, concluímos que este é na realidade comparado com um ser marinho, apesar de não ser explicitado qual. Na verdade todas as personagens mencionadas ao longo da carta são animais, como, por exemplo, os “salmões exploradores”, as “brigadas de Choque dos tubarões-martelo”, a “baleia branca” ou os “golfinhos que se tornaram colaboracionistas”. As conclusões a que cheguei são considerar que os animais são uma metáfora para pessoas “reais”. Estevão encontra-se na guerra e a única maneira que achou de contactar a família de forma segura foi utilizando estes animais e vida marinha como uma espécie de disfarce. O tema do mar tem de certo um significado. O mar simboliza a dinâmica da vida e “o estado transitório entre as possibilidades ainda informais”, logo um estado de mudança e instabilidade de situações. Tal acontece em cenários de guerra como o que o narrador se encontra, pois guerra marca sempre a mudança dos tempos. Os contos “Memórias de uma forca” e “Amor escreve-se com água” são ambos bastante cativantes. Retratam histórias diferentes com personagens diferentes e autores com escrita ainda mais distinta, mas curiosamente têm algo em comum. Os dois têm como narrador seres não racionais, um ramo e um animal marinho. Eça de Queirós e Mário-Henrique Leiria utilizam metáforas e a personificação destes seres vivos criando histórias (apesar de curtas) bem escritas, organizadas e interessantes.
Margarda Caldeirinha
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Sonetos, de Florbela Espanca No âmbito do Projeto Individual de Leitura, da disciplina de Literatura Portuguesa, foi-nos proposta a leitura de um livro cujo autor/a fosse português/a. Perante esta sugestão, escolhi formar uma coletânea de sonetos de Florbela Espanca. Florbela Espanca, nascida no ano de 1894, em vila Viçosa, teve uma vida marcada tanto pela época em que viveu, como pela sua atribulada vida amorosa e familiar, pois não só experimentou o sofrimento, como também o transpôs para uma poesia de extraordinária qualidade. Tal vida inquieta, instável e angustiante levou a que, aos 36 anos de idade, falecesse, alegadamente de causas naturais, apesar de haver defensores da hipótese de suicídio. A escrita de Florbela Espanca caracteriza-se pela abundante presença de recursos expressivos, que dão ênfase aos sentimentos expressos, à melancolia, à reflexão e ao romantismo. Quanto aos temas abordados, apesar de distintos, estes encontram-se todos intimamente ligados: a vida e a morte, a saudade e o amor, a angústia existencial, o tempo e a sua passagem. Tratarei, neste trabalho, o conceito de amor na poesia de Florbela Espanca, o problema da morte, a vida amorosa descrita e a reflexão acerca da vida. CONCEITO DE AMOR NA POESIA DE FLORBELA ESPANCA PARA QUÊ?! Tudo é vaidade neste mundo vão ... Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada! E mal desponta em nós a madrugada, Vem logo a noite encher o coração! Até o amor nos mente, essa canção Que o nosso peito ri à gargalhada, Flor que é nascida e logo desfolhada, Pétalas que se pisam pelo chão! ... Beijos de amor! Pra quê?! ... Tristes vaidades! Sonhos que logo são realidades, Que nos deixam a alma como morta! Só neles acredita quem é louca! Beijos de amor que vão de boca em boca, Como pobres que vão de porta em porta! ..." Florbela Espanca, Livro de Mágoas 22
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Na poesia de Florbela Espanca está intrínseco o conceito de amor. A composição poética “Para Quê?!” ilustra-o de modo indubitável. Através do poema transcrito, é-nos possível alegar que as manifestações do amor, para o sujeito poético são, em primeiro lugar, conotadas com a vaidade, algo perfeitamente dispensável: “Tudo é vaidade neste mundo vão ... / Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!”, “Beijos de amor! Pra quê?! ... Tristes vaidades!”. Seguidamente, o amor é considerado enganador, fonte de mentira que atraiçoa a partir do olhar de quem se encontra apaixonado, fazendo com que este sentimento perca o seu encanto com celeridade: “Até o amor nos mente, essa canção/ Que o nosso peito ri à gargalhada, / Flor que é nascida e logo desfolhada”, “Sonhos que logo são realidades,”. Na última estrofe (chave de ouro), o amor é considerado “vão”, sendo defendida a ideia de que não merece credibilidade, pois os beijos são como pedintes em busca do amor, pedindo-o a todos os que o possam oferecer: “Só neles acredita quem é louca!/ Beijos de amor que vão de boca em boca,/ Como pobres que vão de porta em porta! ...”. VIDA AMOROSA – UMA SUGESTÃO QUE IMPORTA?... Eu era a desdenhosa, a indif'rente. Nunca sentira em mim o coração Bater em violências de paixão Como bate no peito à outra gente. Agora, olhas-me tu altivamente, Sem sombra de Desejo ou de emoção, Enquanto a asa loira da ilusão Dentro em mim se desdobra a um sol nascente. Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte; Como nascida em carinhoso monte Toda ela é riso, e é frescura, e graça! Nela refresca a boca um só instante... Que importa?... Se o cansado viandante Bebe em todas as fontes... quando passa?..." Florbela Espanca, Livro de Sóror Saudade
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DE JOELHOS “Bendita seja a Mãe que te gerou.” Bendito o leite que te fez crescer Bendito o berço aonde te embalou A tua ama, pra te adormecer! Bendita essa canção que acalentou Da tua vida o doce alvorecer ... Bendita seja a Lua, que inundou De luz, a Terra, só para te ver ... Benditos sejam todos que te amarem, As que em volta de ti ajoelharem Numa grande paixão fervente e louca! E se mais que eu, um dia, te quiser Alguém, bendita seja essa Mulher, Bendito seja o beijo dessa boca!!” Florbela Espanca, Livro de Mágoas
Ao longo da coletânea, são frequentemente descritos estados amorosos, sendo que todos têm algo em comum: o sujeito poético encontra-se perdidamente apaixonado, tal como sucede nos poemas “ Que importa ?...” e “ De Joelhos”. Na poesia de Florbela Espanca, apesar de o amor ser considerado vão e fonte de traição, nas composições poéticas referentes a compromissos amorosos, o sujeito poético entregase perdidamente à arte de amar, estabelecendo-se uma contradição, ao longo da coletânea, entre os poemas que concebem negativamente o de amor e os que ilustram a vivência deste sentimento. Na composição poética “Que Importa ?...”, o amor mudou o sujeito poético, que, apesar de este reconhecer que parte da harmonia que sente se deve à ilusão que o amor provoca, não hesita em entregar-se (“Eu era a desdenhosa, a indif’rente./ Nunca sentira em mim o coração/ Bater em violências de paixão”, “Agora, olhas-me tu altivamente,/ Sem sombra de Desejo ou de emoção,/ Enquanto a asa loira da ilusão/ Dentro em mim se desdobra a um sol nascente”), alegando ainda que não se importa se o seu amor tiver outros compromissos, o que demonstra o quão apaixonado se encontra (“Que importa?... Se o cansado viandante/ Bebe em todas as fontes... quando passa?...”). Porém, apesar de em todas as situações de vida amorosa presentes na poesia de Florbela Espanca o sujeito poético se encontrar apaixonado, nem em todas este é correspondido, tal como sucede na composição poética “De Joelhos”, na qual o sujeito poético louva tudo o que fez do seu amado o ser que é, e louva ainda, em demonstração da paixão que sente, alguém que o consiga amar ainda mais: “E se mais que eu, um dia, te quiser/ Alguém, bendita seja essa Mulher,/ Bendito seja o beijo dessa boca!!”.
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A PROBLEMÁTICA DA MORTE E A REFLEXÃO SOBRE A EXISTÊNCIA Na poesia de Florbela Espanca, é impossível o leitor não se deparar com a questão da morte, e, consequentemente, com a angústia existencial, que leva a uma reflexão acerca da vida. A problemática da morte traduz-se com frequência na enunciação do desejo de morrer, causado pela dor angustiante que domina o sujeito poético e o leva a confrontar-se consigo próprio quando deseja o final do seu sofrimento e, simultaneamente, a continuação da sua vida. Esta angústia existencial que assombra a poesia de Florbela Espanca, envolvida com a luta psicológica também nela travada, leva a que surja, com frequência, na sua poesia, o tópico da reflexão acerca vida, uma reflexão existencial que ou alegra o sujeito poético, ou o desmotiva, levando-o novamente à questão da morte. A meu ver, a questão da morte, da angustia existencial e da reflexão interligam-se, visto terem conexões óbvias. Porém, na minha opinião, não são somente estes tópicos que constituem uma teia de ligações, visto o amor ser também ele motivador de reflexão, de angústia existencial, e, consequentemente, de desejo de morte. Um poema que aborda o problema da morte, da angústia existencial e da reflexão sobre a vida é “Dizeres Íntimos”: DIZERES ÍNTIMOS É tão triste morrer na minha idade! E vou ver os meus olhos, penitentes Vestidinhos de roxo, como crentes Do soturno convento da Saudade! E logo vou olhar (com que ansiedade! ...) As minhas mãos esguias, languescentes, De brancos dedos, uns bebês doentes Que hão de morrer em plena mocidade! E ser-se novo é ter-se o Paraíso, É ter-se a estrada larga, ao sol, florida, Aonde tudo é luz e graça e riso! E os meus vinte e três anos ... (Sou tão nova!) Dizem baixinho a rir: “Que linda a vida! ...” Responde a minha Dor: “Que linda a cova!” Florbela Espanca, "Livro de Mágoas" Matilde de Távora
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Contos exemplares O livro que escolhi para o PIL (Projeto Individual de Leitura) foi Contos Exemplares, de Sophia de Mello Breyner Andresen, sendo que li a nona edição, publicada em 1970 pela editora Portugália. Escolhi este livro não só porque é de uma autora muito prestigiada e que escreveu uma vasta obra, como também porque em tempos tive a oportunidade de ler outros livros seus. Decidi analisar particularmente o conto "Retrato de Mónica", em que a personagem central, Mónica, é uma caricatura irónica da mulher de meados do século XX, desenhada como vazia e inútil ("ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis»"), já que vivia para e através das aparências, trabalhando de "sol a sol" para as tentar manter. O narrador deste conto afirma que muitas mulheres desta época, à semelhança de Mónica, para terem o suposto estatuto social que tinham, viam-se obrigadas a renunciar a três importantes coisas: à poesia, ao amor e à santidade. Renunciava à poesia, que era "oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível", já que só seguia as convenções sociais e não tinha uma visão pessoal do mundo; ao amor, que era "oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes, depois não o encontra mais", já que renegava os seus sentimentos; e por fim à santidade, que era oferecida de novo a cada dia e quem renunciava tinha de fazê-lo todos os dias - Mónica renegava-a, porque não era santa, só pensando em si e não nos outros. A crítica é apresentada através do realçar de determinados comportamentos. Por exemplo, Mónica apenas convidava para os seus eventos sociais pessoas que sabia que iriam ter opiniões coincidentes, já que, tal como a um ditador, não lhe convinha que os indivíduos à sua volta pensassem e pusessem o seu domínio em causa, por isso os discordantes eram postos de lado: "na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas"; "põe a sua inteligência ao serviço da estupidez (...) a sua inteligência é feita da estupidez dos outros". O seu suposto domínio sobre os demais é ainda sublinhado pelo narrador através da descrição de situações como as entradas triunfantes e exuberantes de Mónica: "Quando ela chega (...) fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou". E ainda quando quase ofende a própria natureza com tamanho protagonismo ("Quando ela está na praia, o próprio sol se enerva"), o que mostra a futilidade e exibicionismo da personagem. 26
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Ainda é de salientar que neste conto existem mais críticas implícitas, como o facto de as amizades de Mónica serem por interesse ("todos os seus amigos são úteis (...) como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas") ou o facto de existirem casamentos por conveniência, como o da própria Mónica ("Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma"), em que as mulheres adquiriam tanto mais prestígio, quanto mais importantes fossem os cargos que os maridos ocupassem, sendo este um importante motivo para nunca se desejar a separação, para além de que, com ela, também viria a exclusão social: "O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas". É notório ainda que este texto se refere a Salazar ("Príncipe deste Mundo"), pois foi escrito provavelmente na época do Salazarismo. Salazar era o elemento mais proeminente da sociedade portuguesa e, por isso, ao afirmar que Mónica era próxima dele, demonstra-se o seu prestígio social ("Todos sabemos que ela é o seu maior apoio, o mais firme fundamento do seu poder"), já que não só Salazar tinha um poder tecido a partir de influências, como também Mónica parecia seguir ideais semelhantes aos dele (Deus, pátria e família). Ao longo da análise deste conto, senti a necessidade de pesquisar mais sobre o Salazarismo e o Estado Novo. Consegui perceber e relembrar pormenores importantes, como o facto de o Salazarismo, que vigorou de 1933 a 1974, sendo uma ditadura, ser um regime político totalitário, que se caracterizava pelo autoritarismo (forma de governo caracterizada por obediência absoluta ou cega à autoridade, neste caso a Salazar, deixando de haver liberdade individual), pela autocracia (forma de governo na qual havia um único detentor do poder político-estatal, sendo que o poder estava centrado num único governante) e pelo corporativismo (sistema político em que o poder legislativo é atribuído a corporações representativas, ligadas a Salazar, por terem no geral vários interesses em comum (Estado Corporativo)). Havia um poder hierarquizado que culminava em Salazar. Deste modo, também consegui compreender melhor o facto de que por o Estado Novo ter sido um regime totalitário, não ser na altura permitido que tudo o que era escrito ou feito saísse a público. Isto era concretizado através da censura (também conhecida como "lápis azul" em algumas circunstâncias), que era utilizada para impedir que a imprensa e outros meios de difusão de mensagens, incluindo as criativas, como as da arte (pintura, escultura, música, teatro, cinema), partilhassem e publicassem mensagens que, do ponto de vista do regime, pode-
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riam pôr em causa a ideologia vigente e fomentar a consciencialização para qualquer revolta contra o regime. É relevante e importante mencionar que, no que toca à escrita, também havia sempre muitos cortes e talvez seja esta a principal razão para que Sophia de Mello Breyner Andresen tenha abordado este tema neste conto com bastante subtileza, já que este livro foi publicado neste período, mais precisamente no ano de 1962. Em suma, depois da pesquisa que fiz relacionada com o Estado Novo, cheguei a novas conclusões sobre o conto "Retrato de Mónica". Consegui perceber, por exemplo, que as críticas feitas à sociedade do século XX não se resumem ao papel que as mulheres tinham nos contextos sociais em que estavam inseridas, mas também foi feita uma crítica implícita, já que não podia ser explícita, devido à censura existente na época. Esta crítica é dirigida, de algum modo, à aliança que existia entre o regime de Salazar e a alta sociedade. Por fim, gostava ainda de realçar que achei que a linguagem utilizada na escrita do livro é de difícil interpretação, já que existe uma grande utilização de recursos expressivos, como o pleonasmo e a ironia, o que, se juntando com o facto de o final das histórias ser deixado um pouco em aberto, dificulta a compreensão do conteúdo específico da obra. No entanto, é um livro com bastante interesse, já que, através de vários dos contos aqui existentes, podemos compreender e conhecer melhor a época em que ele foi escrito. Ainda em relação ao livro Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen, li o conto “Homero”. Neste conto, o narrador é participante e a história parece-me ser narrada no passado, supostamente passada na infância da narradora. Este conto retrata um homem “a quem chamavam Búzio”, que é caracterizado como “um monumento manuelino”, devido às suas aparentes semelhanças a “coisas marítimas”. Este tinha ainda “barba branca e ondulada” que “era igual a uma onde de espuma”, “grossas veias nas suas pernas” que “eram iguais a cabos de navio”, “não tinha nenhuma ferida”. O seu corpo parecia um mastro, “o seu andar era baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco” e os seus olhos mudavam de cor, tal como o mar: “Os seus olhos, como o próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi roxos”. Búzio era um homem que se via sempre acompanhado de duas conchas “brancas e grossas com círculos acastanhados”, que formavam castanholas, na sua mão direita. Já na outra mão levava um pau, que lhe servia de bengala ou ”bordão” e também ajudava na defe-
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sa contra os cães. Ele próprio tinha um cão velho (“o seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pelo grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto”). Ao pau estava atado um saco de pano, dentro do qual Búzio guardava os bocados secos do pão que lhe davam e os tostões, quando este homem, que nada possuía, bateia de porta em porta, enquanto com as castanholas marcava o ritmo dos seus longos discursos ou cantigas: “Parou em frente da porta de serviço e ao som das castanholas de conchas pôs-se a cantar”. Relativamente à minha apreciação crítica, após uma pequena pesquisa, cheguei à conclusão de que um búzio, sendo um elemento marítimo, representa algo ligado ao mar, a fonte de tudo. O nome da própria personagem principal está, de algum modo, também ligado a isto. Assim, o nome do Búzio tem a ver com o facto de este fazer lembrar a natureza, o mar, mais propriamente (“Tudo nele lembrava coisas marítimas”); e também tem que ver com o facto de ele integrar o cosmos, a natureza, abdicando da ambição do homem. Remete para a “aurea mediocritas”, isto é, um modo de vida segundo o qual o homem vive feliz, contentando-se com pouco e sem aspirar a mais do que isso. Em suma, Búzio confundia-se com a própria natureza (“Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza”) e personificava-a, por exemplo, pelo facto de as suas palavras serem percebidas apenas do ponto de vista do som e não do significado (“E algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas arrancava da boca (…) ocupavam os espaços do ar com a sua forma (…) Palavras brilhantes como as escamas dum peixe, palavras grandes e desertas como praias”). Este vivia ainda à custa dos outros, através das esmolas e comida que lhe davam; só interagia o mínimo possível com os restantes seres humanos, pois o seu modo de vida não se articulava com o dos outros. Raquel Carmo
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Jesus Cristo bebia cerveja Da autoria de Afonso Cruz, cineasta, ilustrador, músico e escritor nascido em 1971 na Figueira da Foz, Jesus Cristo bebia cerveja é um romance publicado no ano de 2012 e vencedor de prémios a nível nacional, como o "Prémio Time Out Lisboa 2012". A ação tem lugar numa pequena aldeia alentejana. Nesta vivem diversas personagens caricatas, sendo as principais Rosa, uma simples rapariga do campo, e a sua avó, Antónia, uma mulher surda e de avançada idade cujo último desejo é visitar Jerusalém. Certo dia, Rosa decide cumprir a vontade da sua avó, começando assim a transformar a aldeia na cidade sagrada com a ajuda dos seus habitantes, sobretudo do professor Borja. Ao longo da história, o leitor encontra uma grande variedade de personagens, cada qual com traços distintos, mas sempre ridículos. A que mais me despertou o interesse foi o professor Borja. Este é um homem na casa dos setenta, ateu, totalmente virado para o lado da ciência e autor do livro Jesus Cristo bebia cerveja. Desde cedo revela um enorme desprezo pela religião, fazendo troça desta (" Isso do budismo não passa de uma superstição transmitida por um sujeito obeso de pernas cruzadas") e recorrendo exaustivamente ao uso da palavra "ridículo" como contra-argumento face a teses religiosas. Demonstra também uma certa revolta pelo facto de as suas teorias científicas nunca terem alcançado a fama, o que considera uma injustiça (" Mas o que é que vale hoje uma descoberta? Nada."). Porém, algum tempo após esta declaração, confessa que essa revolta não se deve ao facto de não ser famoso, mas sim à ignorância que a sociedade demonstra para com as suas teorias. Enquanto conversa com o padre da aldeia, o professor Borja diz " Eu não jogo aos dados. Deus é que joga.". Considero esta afirmação particularmente importante, uma vez que com ela o professor explica a razão que o leva a distanciar-se da religião. Neste caso, os "dados" a que Borja se refere podem representar a incerteza e o desconhecido, acentuando-se assim a ideia de que se guia somente pela ciência, que apresenta factos e respostas concretas, contrariamente à religião. Mais tarde, ficamos a saber que o professor teve uma filha, de nome Margarida, que morreu com apenas cinco anos. Pouco depois, a sua mulher suicidou-se devido à morte de Margarida.
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Estas duas mortes deram lugar a um vazio no coração do professor Borja, vazio este que tentou, com algum sucesso, tapar com as ciências exatas (" O buraco cheio de nada vivia dentro dele, mas a entrada fora tapada com a razão, que é uma espécie de betume para estas situações."). O professor Borja destaca-se das outros personagens, a meu ver, devido às suas falas de carácter filosófico, que oferecem ao leitor profundas reflexões que englobam maioritariamente aspetos religiosos e existenciais. Saliento também a consistente construção da personagem de Borja. O que aparenta ser somente mais uma personagem passa a ser um elemento basilar da história, sendo que ao longo desta nos é dado a conhecer mais sobre ele. O professor Borja é um homem com as suas qualidades e defeitos, um passado, um modo de pensar único, por vezes politicamente incorreto. À medida que o enredo avança, passamos a compreendê-lo e até mesmo a identificarmo-nos com ele, quase como se de uma pessoa real se tratasse. Por fim, acrescento apenas que Borja é, certamente, uma personagem memorável. No que diz respeito à obra, realço o uso do cómico, tanto de linguagem como de carácter e de situação. Este é alcançado através de uma linguagem informal, por vezes obscena ("A puta da lei é sagrada. Serve-me mais um tinto."), de personagens caricatas (" Miss Whittemore dorme dentro de um cachalote que um antepassado seu caçou nos mares do Sul."), e de situações peculiares ("Atropelei um javali e morreram os dois: a besta e o carro."). A contrastar com isto temos um aspeto mais sério e profundo, conseguido com algumas personagens que abordam tema filosóficos como a religião, a morte, o amor e a felicidade, recorrendo frequentemente a comparações, metáforas e analogias. Durante a leitura da obra, deparei-me com uma mudança relativamente à forma como é efetuada a abordagem dos temas nela presentes. Inicialmente, o leitor encontra um uso abundante, quase excessivo, do cómico. No entanto, à medida que a história prossegue, este vai diminuindo em quantidade, dando lugar a um tom mais filosófico. Acredito que esta mudança de direção na maneira como a história é contada foi bem conseguida, visto que esta foi efetuada de forma subtil. Penso também que o autor foi capaz de conciliar de modo eficaz os aspetos cómicos com os filosóficos. Em suma, Jesus Cristo bebia cerveja é uma obra repleta de personagens com personalidades envolventes, ao passo que abrange diversos temas profundos em simultâneo com o uso do cómico, combinação que irá, com certeza, agradar ao leitor. Robim Mestre
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Apresentação do livro As memórias da quadrilha, de António José Alçada, 6ª feira, dia 26 de maio, pelas 18.30h, na Escola Secundária du Bocage
O livro é assumidamente de memórias na primeira pessoa, embora as personagens, reais, estejam codificadas. Aliás esse é um dos desafios do leitor, como exercício de memória: identificar os colegas envolvidos. Os textos versam alguns dos episódios mais marcantes da minha juventude, como o “Funeral da Professora de Português”, “O casaco do Lucas”, “O auto-stop”, “A discussão” ou “O banho do Dâmaso”. Acima de tudo, o livro recorda a vida em Setúbal no final dos anos 70. Como nota complementar o prefácio é do João Cabeçadas, um dos maiores velejadores portugueses da atualidade, já condecorado diversas vezes e que reside, presentemente na Suíça.
António José Alçada
1959. Um Chevrolet cor de coral percorre picadas e estradas de terra batida, atravessando as províncias de Lunda Norte, Cuanza Norte e Luanda. Ao volante, um empresário português que regressa a Portugal com a mulher e os filhos pequenos, depois de vários anos de emigração, enfrenta uma longa e desafiante viagem, cheia de peripécias e marcada por alguns perigos. O título da segunda parte, Gente do mato, pode ser visto como um atributo comum às diferentes personagens. Em curtas narrativas inspiradas em histórias verdadeiras e centradas no quotidiano, retratase a vivência africana da família, entre gentes e bichos, num espaço de partilha, de amizades, de convívio de culturas, de descoberta e de confronto entre diferentes visões do mundo e dos outros.
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