Jornalsemnome43

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NÚMERO 43

dezembro de 2017

PERCURSOS LITERÁRIOS


editorial

No primeiro período do ano letivo 2017/2018, a turma de Literatura Portuguesa do 11º ano, da professora Maria Alexandra Cabral, elaborou, no contexto das obras estudadas, múltiplas produções escritas. Principiámos com o estudo d’Um Auto de Gil Vicente, da autoria de Almeida Garrett, no qual, de entre as personagens principais, se destacam D. Beatriz, princesa de Portugal, e Paula Vicente, sua aia. De modo a consolidarmos os conhecimentos adquiridos, realizámos uma analogia entre ambas, salientando as suas semelhanças e disparidades. Posteriormente, após a análise d’A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco, efetuámos a redação de um pequeno diário, tendo por base a escrita, os comportamentos e, também, os sentimentos de Calisto ao apaixonar-se por Adelaide. Por fim, cada aluno selecionou uma obra com o objetivo de redigir um texto crítico sobre a mesma, após a sua leitura. Gostaríamos ainda de agradecer particularmente aos alunos Beatriz Santos, Inês Mendes, Inês Ferreira, Margarida Carvalho, Raquel Carmo e Robim Mestre, pela sua contribuição na elaboração do JornalSemNome. É ainda de referir que foram utilizadas imagens de produções dos alunos de Artes e de Educação Visual, retiradas de https://www.facebook.com/pg/artesemultimedia/photos/?ref=page_internal

Colaboradores Ana Lourenço Ana Rita Lança Alexandra Cabral Beatriz Santos Bruno Apresentação Clara Passarinho Inês Mendes Inês Ferreira Marco Palhano Margarida Caldeirinha Maria Filipa Costa Maria Margarida Carvalho Mariana Ferreira Marialba Medeiros Matilde Távora Miguel Boullosa Raquel Carmo Robim Mestre Turmas de 8º ano (E.V)

Equipa responsável Alexandra Cabral Miguel Teixeira Paula Barros

Coordenação Alexandra Cabral

Logotipos André e Joana

jornalsemnome@gmail.com

Associação de Pais e Encarregados de Educação dos Alunos da Escola Secundária du Bocage http://apesbocage.blogspot.pt/ https://sites.google.com/site/apesbocage/ Novo email da associação 2


Um Auto de Gil Viecnte

As figuras femininas em

Um auto de Gil Vicente

Em Um auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett, existem

duas fortes personagens femininas que se destacam: Paula Vicente e a princesa D. Beatriz, que apresentam características próprias e, de algum modo, também diferentes. Por um lado, Paula, filha do comediante Gil Vicente, era uma personagem que apesar de ser de origem popular, por possuir um forte e complexo carácter, leva a que o público se interesse mais pela história da peça. Primeiramente, é de salientar que esta é modelada, na medida em que apresentou uma evolução ao longo da peça. Paula, por ter crescido na corte rodeada por pessoas de um meio que não era o seu de nascença, tornou-se uma fiel amiga de D. Beatriz, bem como conseguiu desenvolver o seu intelecto. Assim, tornou-se apta a ver o que a rodeava numa outra perspetiva, criticando a sociedade em que estava inserida com uma postura bastante revolucionária: criticava desde o seu próprio pai, até à hierarquia social existente na época. De facto, este aspeto, por ela censurado, mostrava também o seu desejo de ascender socialmente, pois considerava que seria capaz de altos feitos; no entanto, também não se conformava com a discriminação que sofria por ser mulher. Além disso, mostrou-se descontente com o facto de ser uma atriz de comédia, posição que em nada a satisfazia. É ainda de sublinhar que a filha do comediante era consciente e tinha perfeita noção das consequências das suas ações, por isso não agia de forma impulsiva, refletindo sobre as mesmas, sendo que quando errava era a primeira a admiti-lo. Paralelamente, os seus padrões morais eram elevados, aliando-se a uma grande sensatez, apesar de se encontrar perdida de amores por Bernardim, tal como Beatriz. Deste modo, Paula mostrou-se leal para com a princesa, nunca tentando separá-la do poeta, nem prejudicá-los, ajudando-os em tudo o que conseguisse, mantendo o seu dever como conselheira e confidente. Por outro lado, a infanta D. Beatriz, filha de D. Manuel de Portugal e futura duquesa de Sabóia, pertencente à nobreza, era, de algum modo, frágil. Pode ainda considerar-se uma personagem bastante inconstante, visto que vivia atormentada pelos seus verdadeiros sentimentos, que tinha que ocultar. Deste modo, mostrava-se consciente, seguindo os preceitos da época, e pondo em primeiro lugar as suas obrigações para com o reino e o seu pai, casando-se, por isso, com o duque de Saboia e abdicando da sua paixão e felicidade ao lado de Bernardim. No entanto, é de referir que D. Beatriz nem sempre tomou as melhores decisões, pois mostrou-se um pouco desobediente e instável na tomada das mesmas. Isto, porque, por exemplo, se voltou a encontrar com Bernardim, mesmo sem o consentimento do rei, seu pai; ou mesmo quando manipulou o Bispo de Toga, para que este fizesse o que ela queria, mostrando, ainda assim, determinação, coragem e inteligência. De facto, apesar de Paula Vicente e D. Beatriz terem características díspares, como pertencerem a ordens socias diferentes, estas também tinham alguns pontos que as uniam, como, por exemplo, o facto de serem astutas, pois quando era necessário viravam as aparências a seu favor, para conseguirem o que queriam. Em simultâneo, ambas amavam o poeta, mas nenhuma podia ficar com ele, pelo que se mostravam profundamente infelizes: a primeira, porque não se poria no meio dos apaixonados, pelo que ocultava os seus mais profundos sentimentos para o bem de todos; enquanto que a segunda não podia ficar com o seu amor, que apesar de ser recíproco, tinha de ser ocultado da sociedade, pelo bem do seu casamento e de todo o reino. Em conclusão, estas duas personagens femininas tanto apresentam características que as tornam semelhantes, como também outras que as afastam, quanto ao seu íntimo, conferindo-lhes tal intensidade, que transformaram o enredo da história em algo mais emocionante e interessante. Raquel Carmo e Inês Ferreira

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Calisto Elói

Diário de Calisto Elói Quinta-feira, 9 de Novembro, 1860

Hoje sucedeu-me algo inédito.

Encontrava-me eu preparado para jogar, o que eu pensava que viria a ser uma mera partida de sueca, quando, por sorte ou por destino, quem sabe, me deparo com a belíssima Adelaide: a minha futura parceira de jogo. Estava, sem dúvida, preparado para alcançar a vitória, porém, de forma inevitável, perdi-me tanto no jogo, como nos seus olhos… Olhos estes dos quais, sem hesitação, me tornei prisioneiro. Adelaide, senhora de extrema bondade e de doçura cativante… Como poderia eu permanecer indiferente? Como poderia eu ficar imune a esta senhora? Como poderia eu… Enfim… Não me apaixonar?! Foi então que, no momento em que me abordou de modo tão peculiarmente amável e encantador, todo o meu corpo, alma e Ser foram vitimas de um arrebatador e turbulento conjunto de irreconhecíveis sensações. Não me reconhecia a mim próprio! O meu peito foi prontamente dominado por um calor intenso e insofrível e todo o meu corpo foi possuído por avassaladoras e incompreensíveis vibrações… É irrefutável: ficara apaixonado. Pela primeira vez na minha existência… Estou apaixonado. Sexta-feira, 10 de Novembro, 1860

O dia de hoje foi atribulado… Turbulento.

Ao acordar, refugiei-me com prontidão no meu gabinete de estudo e, muito estranhamente, fui dominado por uma vontade súbita de ler poesia, algo que nunca suscitara o mínimo dos mínimos de vontade literária na minha pessoa. No seguimento deste meu estranho capricho momentâneo, dirigi-me à livraria, e, como se a minha vida disso dependesse, procedi à declamação de poemas de António Ferreira, captando admiravelmente todos os sentimentos que a sua poesia pretendia exprimir, como se do meu caso se tratasse… E talvez, no meu subconsciente, se tratasse mesmo. Porém, para meu profundo desagrado, recordei-me da existência da minha mulher, através de uma lastimável carta que me escrevera e que me sentira moralmente obrigado a ler. Entre inúmeros bocejos, Teodora informou-me das vacas e, infelizmente, de toda a vida campónia e interior que leva. Que carta encantadora… Todavia, esta carta não viria a tomar-me mais tempo do que o estritamente necessário , pelo que imediatamente após esquecer a sua existência, não tardei a ser invadido por uma efémera inspiração, que me levou a livremente rabiscar um madrigal acerca da minha derradeira paixão. De manhã, ao arranjar-me para mais um exaustivo, mas necessário, dia de trabalho, deparei-me com um dilema… Havia algo que não batia certo… E este algo era, infelizmente, a minha estimada fatiota… O auge estético das minhas vestimentas habituais e, até agora irrepreensíveis, há muito que havia chegado ao seu fim, e já era tempo de aceitar tal facto e, ainda mais importante, tomar as devidas medidas! Como tal, dirigi-me prontamente ao alfaiate e confiei cegamente na experiência do Sr. Nunes, que, não só me renovou o guarda roupa, como também renovou a minha auto confiança e o meu modo até então de encarar a vida… Para melhor, creio eu! O meu traje não deixaria ninguém indiferente, e foi na companhia de Libório e outros deputados que o concluí sem qualquer margem para dúvidas ou adulterações da verdade. Diz-se que fui humilhado, considerado digno de riso e porém… Estou certo de que o único sentimento que causei foi a cruel e maldosa cobiça alheia. Matilde Távora, Ana Rita Lança, Margarida Caldeirinha, Mariana Ferreira, Marialba Medeiros _____________________________________________________________________________________________________ Dia 9 de Novembro de 1869

No dia de hoje, sentimentos de natureza diversa abalaram o meu ser. Permita-me que me expresse. Encontrava-me em pelo jogo de sueca, na residência dos prezados Sarmento, deleitando-me com a parceria no jogo da Ex.ª D. Adelaide, quando esta me dirigiu determinadas palavras, fazendo com que novos sentimentos invadissem o meu peito. Estas transformações físicas transtornaram-me de tal modo, que a minha atenção se dispersou e a minha sorte se desvaneceu. De súbito, senti um desejo inexplicável de ler obras poéticas, enquanto o meu pensamento se encontrava perdido na imagem de D. Adelaide. Porém, a figura da minha esposa D. Teodora veio-me à memória. Que infortúnio! Foi nesse momento de fraqueza que decidi ler a última carta que dela recebera, que dizeres tão inoportunos e enfadonhos! Retomei, por isso, à leitura dos meus sonetos. Cumprimentos e veremos o que a fortuna me reserva para o dia de amanhã. 4


Calisto Elói

Diário de Calisto Elói Dia 10 de Novembro de 1869

A noite passada decorreu de forma sobressaltada. Que sentimento é este que ilumina a minha alma? Tudo em meu redor aparenta ser alegre e harmonioso, pelo que a vontade de ler poesia se apoderou novamente de mim. Posteriormente, um intenso desejo de exprimir os meus sentimentos através de palavras poéticas fez com que elabora-se os meus primeiros versos, como passo a citar: "Senhora de grão primor, Meu amor, Formosíssima deidade, Arde meu peito em saudade, Quem fui ontem, não sou hoje; Minha alegria me foge, Se vos olho. Já cativo em vós me acolho, Havei de mim piedade; Sede minha divindade; Não leveis a mal que eu chore Contanto que vos adore, Gentil e nobre menina, Como Camões a Cat'rina E como Ovídio a Corina." Após isto, apercebi-me que perdera o apetite e, ao contemplar a minha imagem, cheguei à conclusão de que as minhas vestes estavam desatualizadas. Resolvi não perder mais tempo e desloquei-me ao alfaiate, que me vestiu com um farto de paletó de pano, umas calças de xadrez e um colete azul de rebuço, com botões de coralinas falsas. Ainda passei pelo Chiado, onde comprei um chapéu de castor, à inglesa, e calcei as minhas primeiras luvas. Agradado com a minha nova aparência, dirigi-me para a Câmara. Conclui que os restantes deputados não se demonstraram indiferentes aos meus novos trajes. Fui zombado! Logo pelo Dr. Libório, que em vez de melhorar o seu palavreado, limita-se a discutir a minha nova imagem. Maldita hora em que nasci nesta sociedade! Saudações e até breve.

Beatriz Santos, Bruno Apresentação, Maria Margarida, Raquel Carmo, Robim Mestre _________________________________________________________________________________________

Saudações ilustre diário, Há pouco, enquanto jogava à sueca, cruzei-me novamente com a Adelaide. Desta vez foi diferente. Senti as maçãs do rosto a fervilhar, no peito uma erupção de sentimentos... Terá Adelaide ficado com o meu coração? Não sei o que se passou comigo! A partir desse fatal momento não voltei a ter sucesso no jogo. Mais tarde, quando cheguei a casa, entrei no gabinete e mergulhei no soneto V de António Ferreira. Pela primeira vez senti me atraído pela lírica amorosa. Um sentimento de culpa percorreu o meu corpo e agarrei na última carta que recebera de Teodora. Li os seus queixumes em relação à sua saúde, o seu entusiasmo quanto à lida da casa e, ainda, os seus insistentes pedidos. O meu interesse por ela esvaía-se cada vez. Tornei a abrir o livro de sonetos. Nunca me identifiquei tanto com uma quadra! Percebi que Teodora era como uma névoa escura nos meus olhos e que Adelaide acendera um novo lume em mim. .Saudações ilustre diário, Hoje, ao acordar com a alvorada, senti uma nova inspiração dentro de mim. Peguei na minha pena e fui levado por uma onda de amor a escrever o madrigal mais genuíno que alguma vez for escrito. Ao pequeno-almoço, apesar da indisposição que sentia, degustei uma bela linguiça assada. Enquanto me vestia, pela primeira vez, não me senti conformado com o que via ao espelho. Por isso, saí a correr de casa e dirigi-me ao estabelecimento do Sr. Nunes na rua dos Algibes. Vestiram-me com um paletó de pano cor de rato, umas calças xadrez e, para complementar, um colete azul com uma gola com botões de coralinas falsas. Daí saí diretamente para o Parlamento onde não fui recebido com os melhores modos, tendo sido insultado até. Clara Passarinho, Inês Mendes, Inês Ferreira, Maria Filipa Costa, Marco Palhano 5


contos

Léah e outras histórias , de José Rodrigues Migueis O livro Léah e outras histórias, publicado em 1958 (primeira edição), é o trabalho mais importante de José Rodrigues Migueis. Este livro contém dez contos completamente diferentes. “Léah”, o primeiro conto do livro, é narrado na primeira pessoa. O narrador conta a história de um português que vai em trabalho para Bruxelas. Este português ficou hospedado numa pensão. Monsieur Carlos, a nossa personagem, apaixona-se pela criada, Léah (“Léah, foi a partir desse instante, juro, que eu te amei. Foi nesse instante que o gelo se rompeu em mim, e desejei apertar-te e beijar-te, e adormecer"). No final do conto, Léah desaparece sem deixar rasto. O narrador desconhecia Léah, apenas tinha ouvido a sua voz, que foi o que bastou para se sentir atraído (“virei-me para ti, Léah, e vi-te: pela primeira vez. A luz da janelas dava-te em cheio na cara, e reparei que eras bonita, nova e séria.”). Mais para o meio do conto, Léah revela-se fisicamente e, como seria de esperar, o narrador acha-a encantadora (“Tinhas uma cintura estreita, e as tuas ancas alargavam-se numa curva criadora e firme.”). Entre conversas e conversas começam a conhecer-se e Monsieur Carlos descobre que Léah está noiva ("Sentia-me outra vez roubado do que não era meu. Como era possível tu teres um noivo.”) Carlos decide afastar-se de Léah e ela acaba por se casar, algum tempo depois, com Ferdinand. No final deste conto o narrador diz sentir-se culpado em relação a Léah (“E a lembrança do meu erro") , mas então também não adiantava fazer nada, pois ela tinha construído uma vida sem ele, já era casada e tinha um filho (“É o meu menino!” disse Léah). “Léah” é um excelente conto, curto e cativante, contém também uma lição de vida. Ana Rita Lança

o dia cinzento e outros contos, de Mário Dionísio "As crianças tinham ido brincar para a rua". É assim que começa este conto. Considero-o um conto triste, talvez. Fala de um pai, um filho e uma cunhada que estão no hospital a visitar a mãe do filho e mulher do pai. A Albertina era a mulher internada, que se lamentava pela sua casa: "[...] dizia numa voz sumida: - A minha casa...[...]. O marido, o filho e a cunhada diziam que a casa era o menos, que o importante agora ela devia pensar em curar-se:"[...] Não te rales com isso. Cures-te tu, a casa é o menos[...]". Ao ouvir as crianças lá fora, todos pensavam "[...]boas idades[...]", lamentavamse e diziam que são idades em que ainda não se entende o que "boas idades querem dizer. [...] Idades em que não se sabe o que quer dizer «boas idades».” Entretanto, o filho diz que há umas casas bonitas e baratas que estão a ser feitas. "[...]Agora estão-se a fazer umas bem jeitosas e baratas [...]". Albertina pergunta-lhe se é num sítio bonito. "[...]são assim num sítio bonito?[...]". Estão ali os três de volta dela a pensar se a voltarão a ver: "[...]Tornaria a vêla? Seria aquilo possível!? Seria mesmo um caso perdido?[...]".Pensavam assim devido às palavras do médico, que não saíam da cabeça de Miguel "[…] «Isto está feio mas deve-se tentar,. o nosso dever é tentar»[...]". Albertina perguntara se no sítio (a casa onde ia ficar) a tratariam bem."[...] E lá?[...]Eles tratam bem a gente?[...]" Por momentos ninguém res-

pondeu, até a Juliana, a cunhada responder e explicar que as coisas agora eram diferentes: "[...] Agora é muito diferente de antigamente. Tenho ouvido dizer que sim, tratam muito bem. [...]". Por fim o conto termina com a Albertina a ver as crianças a correr de um lado para o outro e com uma das crianças a dizer que estava frio: "[...] E via as crianças a correr para um lado e para o outro sem parar [...] A Adriana, radiante, batia palmas, pulava, gritava: - Frio, frio, frio[...]". Gostei muito deste conto. Fiquei, no fim, a tentar descobrir o que aconteceu à Albertina. É um conto que conta cada coisa a seu tempo e nos vai dando sinais do acontecimento seguinte e agarra-nos a ele para descobrirmos mais sobre o que vai acontecer. Penso que Albertina pensa que quando sair do hospital vai para uma casa onde vão tratá-la bem, mas o marido, o filho e a cunhada sabem que o mais provável é ela não sair mais daquele hospital e tentam dizer-lhe que vai para uma casa, para o seu conforto, para o céu, do meu ponto e vista. Tentam fazer-lhe entender que vai ficar bem e confortável mas sem lhe dizerem diretamente que não há volta a dar e que vai acabar por morrer. Na minha opinião, tentam acalmá-la, descontraí-la, não preocupá-la. Ana Cristina Lourenço

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Aparição

Aparição, de Vergílio Ferreira Proponho-me apreciar a obra Aparição, de Vergílio Ferreira. Ao longo da mesma, os temas que se vão destacando são a morte, claramente, e o existencialismo. Por um lado, a morte é relevante, pois vemos que com ela se relaciona a vida de Alberto Soares, e como o influenciou. A morte nesta obra representa o fim de um ciclo, de uma etapa da vida. Aquando da morte do pai de Alberto, vemos que esta representa o desapego das forças paternais e o aparecimento de uma nova autonomia. A morte é considerada destruidora da existência, a desmaterialização. Paralelamente, o existencialismo é uma doutrina defendida por Alberto ao longo da obra. Esta doutrina é centrada na análise da existência. Alguns existencialistas, como sucede neste caso, acreditam que Deus não existe, o que leva ao surgimento da consciência da fragilidade humana e à necessidade de responsabilizar o homem pelas suas ações e de orientar o livre-arbítrio de cada um. Para homens como Alberto, a vida é um longo caminho que temos que percorrer com a aquisição gradual de conhecimento. Defendem, assim, que a criação do homem e o destino do mesmo não estão previamente definidos, mas que é este que vai construindo o seu futuro ao longo da vida. A obra inicia-se com a morte do pai de Alberto Soares quando se encontrava à mesa de jantar com os filhos e a mulher , "Mas subitamente meu pai teve um arranco, esboçou o gesto de apertar o coração e caiu […] quem foi que gritou? Está morto […] Júlia dava gritos esbaforidos, as crianças choravam com alarido, minha mãe abraçava-se a meu pai […] ordenando-me que fosse chamar o médico." Mais à frente, com algumas passagens sobre a infância de Alberto, ficamos a saber que já desde pequeno este questionava alguns aspetos do "ser" e do "existir", " Era uma tarde de Verão, meu pai lia o jornal ao pé do tanque, eu olhava a água […] Mas eu, eu o que é que sou?" De seguida conhecemos a ocupação e profissão do narrador "- Professor […] ensinava português e latim". Depois de alguns desencontros, Alberto conseguiu encontrar-se com o doutor Moura. Neste encontro, o doutor convidou-o para ir jantar a sua casa. Foi lá que Alberto viu Sofia pela primeira vez "- Até que […] apareceu Sofia. Tinha um vestido branco […] e com um corpo intenso e maleável". Mais tarde vagueou pelas ruas abandonadas com Chico, o qual falou sobre si e sobre Évora. Nesse dia à noite Alberto faz uma reflexão sobre a banalização, "Há na homem o dom perverso da banalização". O narrador explica que temos o hábito de por tudo o que pensamos, queremos e sentimos em palavras para que os outros sintam connosco. E é verdade,

posso afirmar que quase sempre tentamos verbalizar o que estamos a sentir e o que se passa dentro de nós, pois acaba por ser a forma mais "fácil" de o explicar. Mas há sentimentos, como a perda de alguém, que não se conseguem explicar e foi isso que Alberto concluiu nessa noite, " […] lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência". De madrugada, recordou-se da noite de Setembro em que o seu pai partira. Uma grande dor e raiva percorreu o seu corpo, "Mas o que me estrangula de pânico, me sufoca de vertigem é teres sido vivo, é tu estares ainda todo uno para mim, na memória de teu riso, no tom da tua voz […] na realidade fulgurante de seres uma pessoa". Faz confusão, tanto ao narrador como a mim, aceitar que um dia o pai estava vivo e tudo era normal e no outro o seu mundo caíra com a morte do pai. O narrador sente que tudo o que vivera com o pai fora uma ilusão, no sentido em que já era passado. Por outro lado, considera não haver consolação, pois afirma que Deus, bem como a vida após a morte não existem, "Sei que ele é absurdo porque o é". Alberto percebe que ainda muitas mais coisas na sua vida vão morrer, pois partimos do princípio de que tudo o que está vivo passa a estar sujeito à morte, "Há muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa a morrer.” Mas, por enquanto, está vivo, e esta é uma realidade com que temos que aprender a viver. Paralelamente, Alberto é defensor do existencialismo, isto é, acredita que cada indivíduo deve fazer a sua leitura do mundo. Sabe, ainda, que é um ser mortal, "Ora este "eu" é para morrer", e que quando morrer para si o mundo acaba tanto como a sua existência, "[…] eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua evidência". Após a morte de seu pai, Alberto tinha agora que “justificar a vida em face da inverosimilhança da morte”. A personagem principal tinha que tentar perceber e aceitar a vida com o facto quer um dia tudo ia morrer, mesmo sendo a morte inverosímil, difícil de acreditar que é verdade. Alberto pensa agora nas possibilidades de o seu pai não ter existido ou não ter conhecido a sua mãe e no meio de tantos acasos apareceu ele no mundo, “Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da terra […] e esse homem sou eu”. Eu acredito na posição de Alberto quando este defende que a vida é um conjunto de sucessões aleatórias e as vezes deparo-me com pensamentos se pequenos aspetos na minha vida fossem diferentes, como ter nascido noutra família ou noutra cidade, se seria mais feliz. O que quero acreditar que não, pois não me imagino num local diferente e com outras pessoas que não os meus conhecidos. Clara Passarinho 7


Uma esplanada …

Contos , de Vergílio Ferreira O conto Uma Esplanada sobre o Mar, da autoria de Vergílio Ferreira, é simultaneamente um ensaio sobre a condição humana e sobre a forma como o Homem encara a morte. Primeiramente, é de salientar que a ação do conto se desenrola numa esplanada à beira-mar, tal como nos refere o seu título, um local aberto e agradável, que proporciona aos que nela se encontram uma visão mais abrangente e reflexiva sobre a vida. Neste local, a vida decorre com uma certa tranquilidade e sossego, o que se relaciona com uma nova postura adotada pelo rapaz, personagem principal do conto, pois ao saber que a morte se aproxima de si, começa a valorizar as coisas mais simples e belas que temos na nossa vida, e que por sua vez são as mais simples: “Não há nada mais igual do que o mar ou uma flor. Ou um pássaro. E a gente não se cansa de os ver ou ouvir.” Assim, é neste contexto que a ação principal do conto, a conversa entre esta personagem e uma rapariga, se desenrolará, e na qual este lhe irá revelar a proximidade da sua morte. De facto, foi precisamente com a intenção de fazer esta revelação que o rapaz combinou com a rapariga, com quem estabelecera em tempos uma ligação amorosa, da qual a rapariga ainda guardara alguns rancores[2], encontrar-se na esplanada: “Falta dizeres, por exemplo, que tudo está acabado entre nós. Falta dizer que essa tal tua amiga sempre conseguiu o que queria. Falta dizer que nunca me achaste tão bela como hoje, mas que já me não podes amar. Falta dizer isso, mas tens de preparar o terreno, porque a coragem nunca foi o teu forte e julgas que não é o meu” No entanto, não é com frontalidade que o rapaz pretende anunciar-lhe esta notícia, antes pelo contrário, introduz o seu diálogo enunciando uma série de reflexões e conclusões a que chegou na sua vida. Deste modo, a rapariga mostra-se confusa devido à dificuldade em compreender ao certo onde é que as reflexões existencialistas do rapaz pretendem chegar, pois, ao contrário dele, possui uma visão superficial e restrita da vida. Com efeito, podemos verificar que existe uma lacuna na comunicação entre os dois, dado que estes não se situam no mesmo nível de comunicação e interpretação face à vida. Enquanto que a rapariga se encontra no domínio do “olhar”, apercebendo-se somente do que é visível e imediato, o rapaz já se encontra no domínio do “ver”, pois possui um olhar profundo e reflexivo sobre tudo o que o rodeia, o que lhe possibilita abrir novos horizontes: “Não sei para que são tantos mistérios – disse a rapariga. – O melhor é dizeres logo tudo de uma vez.” Todavia, apesar de o rapaz saber que se encontra próximo da morte, este não se revolta contra ela, pelo contrário, decide apenas viver intensamente o que resta da vida: “Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia a dia. E é extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia a dia. E três meses no máximo.” De facto, à medida que o conto se desenrola, é possível verificar que, após ter sido informado da proximidade da sua morte, o rapaz sofreu uma grande mudança na sua forma de ver o mundo, pois conseguiu transpor-se do domínio do simples “olhar”, para o domínio do “ver”, uma maneira de ver tudo o que o rodeia de forma profunda e intensa. Desta forma, o rapaz começa a “ver” verdadeiramente as coisas, a dar valor à vida, ao mesmo tempo que se consciencializa que esta é uma mentira, um erro, pois, agora que se aproxima da morte, sente que ela é a “única verdade perfeita”, embora os seres humanos prefiram contrariar a sua existência: “Tudo pode estar certo talvez a qualquer hora. Menos esta banalidade ridícula da morte. De tudo se pode falar, menos dela. Nem falar, nem filosofar, nem fazer seja o que for que a tenha a ela em conta. Há uma aliança contra ela como contra uma infâmia. Ou como se o não falara excluísse. E é a única verdade perfeita.” Porém, é de extrema importância a compreensão da simbologia dos elementos presentes neste conto, nomeadamente, o barco, o sol e o mar, na medida em que estes funcionam como uma espécie de representação do estado de espírito do rapaz e do fim que se lhe aproxima. Deste modo, o barco[1] representa a travessia espiritual do rapaz da vida para a morte, e o Sol[2], que se começa a pôr, o declínio do horizonte para um mundo novo e infinito, isto é, para a morte.[3] . Relativamente à simbologia do mar[4] neste conto, este representa, em simultâneo, a vida e a morte, o que se associa facilmente ao pensamento do rapaz, pois este pretende viver a sua vida com mais intensidade que nunca e, por outro lado, aceita a morte. Com efeito, podemos afirmar que o ambiente que envolve o rapaz encontra-se em perfeita harmonia com a situação por que está a passar, convidando-nos, assim, a entender melhor a sua situação. 8


Uma esplanada… E...

De facto, a simbologia dos elementos presentes é extremamente interessante, especialmente a simbologia do barco, que representa a travessia da vida para a morte, dado que nos deixa a refletir sobre o percurso que o Homem faz ao longo da sua vida, lutando pelo sucesso e procurando a felicidade, algo tão difícil de encontrar, já que, por vezes, sem nos darmos conta, ela já passou por nós e não a soubemos valorizar. Na verdade, esta simbologia do barco intriga-me completamente, pois várias vezes penso sobre o que pode vir depois da morte e, através desta simbologia, consigo encontrar algum conforto. A ideia de que a vida é como uma viagem, repleta de aventuras, mas também de obstáculos, e sem um destino concreto, faz-me sentir que somos uma espécie de peregrinos neste mundo tão complexo, e que podemos ditar, através da nossa imaginação, o rumo pelo qual queremos partir. Deste modo, é possível estabelecer uma analogia entre este conto e o poema “Viagem”, de Miguel Torga, uma vez que este representa a viagem da vida do Homem, onde o que importa não é chegar, mas sim partir em busca do sentido da vida, encontrar o “velho paraíso”. Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar... (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos). Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura, O que importa é partir, não é chegar. No entanto, esta viagem está longe de ser tranquila, pois várias vezes o Homem tem de enfrentar as “ondas”, representação dos obstáculos que surgem como barreiras na sua vida, e que tem de se esforçar por ultrapassar com êxito, porque o importante é não perder o ânimo e a coragem: “A revolta imensidão/ Transforma dia a dia a embarcação /Numa errante e alada sepultura…/ Mas corto as ondas sem desanimar”. Com efeito, é possível estabelecer uma comparação entre o conto em análise e este poema, dado que ambos relatam o percurso da vida do Homem, com todos os seus obstáculos, e a sua partida para uma nova etapa, sendo que no conto a etapa seguinte é representada pela morte do rapaz, ao passo que no poema, esta permanece em aberto, pois: “Em qualquer aventura, / O que importa é partir, não é chegar”. Porém, à semelhança do conto, a “viagem” é encarada sem receio e com força, para se partir em busca de algo novo:” Só nos é concedida/ Esta vida/ Que temos;/ E é nela que é preciso/ Procurar/ O velho paraíso/ Que perdemos. / Prestes, larguei a vela/ E disse adeus ao cais, à paz tolhida.” [1] “A barca é o símbolo da viagem, de uma travessia efetuada seja pelos vivos, seja pelos mortos” in Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. [2] “O simbolismo do Sol é tão multivalente como rica em contradições é a realidade solar” in Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. [3] “O Sol baixara um pouco e estendia agora uma estrada de lume pelas águas. Um barco à vela atravessou--a e um momento foi como se as chamas o envolvessem.” in Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant [4] “Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele regressa: lugar de nascimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência. que é da incerteza, da dúvida, da indecisão, e que pode terminar bem ou mal. Daí que o mar seja ao mesmo tempo a imagem da vida e da morte.” in Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant

Beatriz Santos

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Carta

“Carta” O conto “Carta”, da autoria de Vergílio Ferreira, discorre sobre o regresso de um homem à sua terra natal e o vazio que experimenta na alma devido à perda dos seus pais e de uma ente querida. De facto, quando a personagem principal do conto, que se assume como narrador autodiegético, regressa a casa, lembra-se das memórias felizes, mas já distantes, da sua infância: “Meu pai amava a terra a terra. Lembro-me de o ajuda a podar o pequeno corrimão de videiras, de lhe encher o regador para o cebolo novo. Minha mãe olhava-nos da varanda e os três sabíamos uns dos outros no silêncio dos corações.” Eram memórias já passadas e que o tempo já apagara. Na verdade, após ter partido e estado muito tempo ausente, este dirige-se inúmeras vezes a um “tu”, refletindo e evocando lembranças várias: “Estendo as minhas mãos ao calor, e olho, e escuto. O lume enche-as de sangue, acende-as por dentro como brasas. Tu dizias: - Ninguém conhece as suas mãos. Só talvez as dos outros. É bom ter as tuas aqui, com os dedos todos submissos.” Este “tu”, à semelhança dos pais do narrador, também já partiu e suscita muitas saudades neste. No entanto, é de salientar que, enquanto os seus pais lhe disseram, na sua partida “Volta”, este “tu”, que lhe era muito próximo, provavelmente uma pessoa com quem estabelecera uma ligação muito próxima, dizia “se voltares”, o que nos permite perceber que este “tu” pretendia ainda partilhar várias experiências de vida com o narrador, embora não tivesse a certeza do seu regresso. Porém, é muito importante referir que quando o narrador regressa às suas origens, e vê que as pessoas que mais amava já não estavam ali presentes, muda o seu interior por completo, pois apercebese de que o passado já não regressa, e não aproveitou o que tinha na altura. Desta forma, o narrador revela-se em parte derrotado e cansado pela força do destino, sentindo um grande vazio no seu interior: “E tudo o que pensei e quis que brotasse da terra, de tudo o que foi de novo e me moveu, da agitação do meu sangue, do clamor com que fiquei rouco, da fúria, do choro, da alegria, de tudo o que me deu a conhecer os meus dentes, os meus ossos, as minhas pobres vísceras – a forma que se desenha e que me envolve agora tem o volume quente do seio da piedade.” Na verdade, podemos estabelecer uma analogia entre o regresso à casa da infância do narrador com a simbologia de elementos presentes no conto como as portas[1, janelas e varandas, na medida em que estes representam a sua entrada na revisitação do passado. [1] “A porta simboliza o lugar da passagem entre dois estados, entre dois mundos” in Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant

Beatriz Santos

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Nome de guerra

Nome de guerra, de Almada Negreiros Há obras e obras. Há aquelas que assim que são publicadas se tornam clássicos. Depois há aquelas que não mostram grande valor e que acabam por ser esquecidas. Infelizmente, neste grupo também se encontram obras que, por muito que mostrem o seu valor, acabam por também ser vítimas do esquecimento. E é com pena que Nome de Guerra, de Almada Negreiros não se encontra no vasto leque de clássicos de literatura. Sinceramente, não tenho a menor ideia do «porquê» de esta obra não ser relembrada. No entanto, justifica-se que estivesse no Panteão de Obras Ilustres. Primeiramente, temos a sua história. Em Lisboa, durante os anos 20, quando os clubes eram o templo de muitos e a loucura efervescia ao som do jazz e do álcool : "Os músicos pareciam cada um para o seu lado. O da rabeca e o saxofone andavam metidos por entre os pares que dançavam na mesma cadência com trajetos estrangeiros. (...) Nunca ouvira tanto barulho nem no Carnaval. Mas gostava. Achava graça. Dizia ele. Com efeito, antes de mais nada, ele apenas, fazia por gostar, mas o seus olhos rebolavam por todas as bandas e não paravam em nenhuma." Era um época em que as regras de etiqueta, que tinham sido implementadas no séc. XIX, eram completamente abafadas por aquela atmosfera : “O experimentado companheiro tamborilava com o talher nos pratos e copos a dar com a música. O exemplo estava dado e pegou como uma epidemia nas outras mesas. O estreante aprendia aquela maneira de usar o talher, porém, incapaz de orientar-se na chinfrineira copiava de preferência a mecânica do gesto do mestre". Pode não ser uma atmosfera igual ou superior à das festas de O Grande Gatsby, mas mesmo assim, colocanos num ponto histórico com uma atmosfera um pouco mais íntima. O nosso personagem principal, Antunes, é apanhado no meio disto tudo. Ele é um jovem acabado de chegar à casa dos trinta, vindo da província para Lisboa. Na província deixou tudo o que lhe era familiar, os pais e uma jovem de nome Maria. No entanto, Antunes e Maria não sabem se o que têm nas suas mãos é amor : "Quero dizer: namoro e não namoro. Namoro para os outros. Para os outros somos namorados". O seu tio mandara-o para a capital a fim de perceber se o seu sobrinho tinha aquilo que o fazia ser masculino, "O tio policiava de longe o crescimento masculino do sobrinho e a sua imaginação caía toda num resultado viril, à sua maneira regional. Mas a verdade diga-se: o Antunes não era nem podia vir a ser como o seu tio o queira." Em Lisboa, Antunes conhece uma jovem prostituta, Judite. Os dois envolvem-se e esta estadia na metrópole leva a nossa personagem a descobrir-se a si própria e aos seus desejos. De certo modo, esta obra relembra A Queda dum Anjo, de Camilo C. Branco. Se Fernando Pessoa foi um génio nos solilóquios, Almada Negreiros não fica atrás do seu contemporâneo. O autor pode não ser complexo na sua escrita (e ainda bem) como outro seu contemporâneo, James Joyce, em Ulisses, mas mesmo assim não fica aquém daquilo que é esperado, principalmente no primeiro capítulo, que começa com um monólogo: "Das duas uma: ou as pessoas se fazem ao nome que lhes puseram no batismo, ou ele tem de seu o bastante para marear cada um. Será imprudente deduzir o nome próprio através das fisionomias ou dos caracteres; no entanto, uma vez conhecido o nome próprio de um pessoa, ficamos logo convencidos de que este lhe assenta muito bem (...)." O autor também se mostra mestre na narração, alternando entre narrador heterodiegético (para contar a história) e homodiegético (para nos mostrar uma visão interior da personagem), mas nada me chamou mais a atenção do que uma sequência de um sonho que Antunes tem enquanto caminha pelas ruas de Lisboa: "E o Antu11


Nome de guerra

nes assistiu a uma espécie de visão fantástica, a qual se passou da seguinte maneira: num vasto campo, cheio de relva estava adormecida uma rapariga. Parecia morta. A sua cara era pálida e os seus vestidos humildes. Tinha os cabelos soltos e os pés e as mãos atados com cordas que davam muitas volta aos braços e às pernas […] . Nesse campo ia a andar um rapaz que seguiu para o trabalho. A certa altura viu a rapariga. Ao ver como ela estava, correu para ela. Quis acordá-la. Por mais que fizesse, a rapariga não falava e, mal abria os olhos, fechava os logo sem ver nada. O rapaz queria desatar-lhe aqueles nós, mas eram tantos que procurou uma faca para cortar as cordas. Mas não trazia uma faca consigo. começou depressa a querer desatar os nós, que eram dificílimos de desfazer. Ainda desatou uma dezena deles, mas depois achou que ia pouco depressa e começou a roer as cordas com os dentes. depois de longos lá conseguiu desatar completamente as pernas e os braços. Nisto a rapariga acordou. olhou serena para ele e teve um sorriso suave. Estendeu a mão ao rapaz, para que ele a ajudasse a levantar-se. Ele assim o fez. E ela, uma vez de pé, agradecida, começou a tirar os vestidos e ficou nua diante o rapaz. Ele não tinha visto nunca nada de mais maravilhoso do que aquele corpo de mulher […] . Mas o Antunes, ao passar-lhe por diante dos olhos aquela visão fantástica, viu que quem estava deitada na relva, a dormir, atada de pés e mãos era aquela rapariga que lhe namorava na terra. Quando ficava completamente nua passava a ser aquela outra passava a ser aquela outra que ele despira uma noite em Lisboa quando ele e ela estavam, sós os dois, no mesmo quarto!". Num só excerto podemos perceber o que vai na cabeça de Antunes: ele pensa na sua terra ("num vasto campo de relva verde estava adormecida uma rapariga.") mas também pensa na paz que esta lhe trás , o que é representado pela erva verde; Ao mesmo tempo imagina Maria que "parecia morta. A sua cara era pálida e os seus vestido humildes. Tinha os cabelos soltos […] e os pés e as mãos atados com cordas que davam muitas voltas aos braços e às pernas, e cheios de

nós dificilíssimos de desfazer" - podemos perceber aqui que Maria, ao estar atada com uma corda cujos nós são difíceis de tirar, é algo figurativo do estado em que Maria se encontra na sua terra; quando lemos que a jovem parece morta, isto dá nos um presságio do que lhe acontecerá. De seguida, quando Antunes solta a jovem das cordas esta «metamorfoseia-se» de diversas maneiras, primeiro as roupas evaporam-se e as suas feições também, o homem passa a ver Judite;. Aqui temos o contraste de Maria, um jovem da província e de vestes humildes - um anjo - e no outro lado, a jovem que ele viu nua, Judite, uma mulher livre de fazer aquilo que deseja e que não teme por aquilo que faz - um diabo; e assim começa; e assim começa uma lota no consciente de Antunes: Quem é que ele ama? A provinciana? ou a citadina? E, por último, o mais importante: a sua mensagem. Desde o início até ao fim, o autor faz uma análise do amor, "o que é o amor? será o amor absoluto?" Almada Negreiros apresenta-nos várias opiniões, mas nenhuma traz maior significado à minha cabeça do que a seguinte: é verdade que, Antunes ama Judite, mas assim que o pensamento de Maria o invade, ele esquece Judite e passa para a sua amada da província; Mas mesmo assim o amor por Judite volta sempre. E quando tudo acaba com a metropolitana e a provinciana morre, apesar de já não estarem juntos, Antunes ainda ama Judite, até descobrir que ela está feliz com outra pessoa. Nessa altura, apercebe-se de que sempre amou Maria, apesar de agora ser tarde demais, pois esta já tinha morrido, como se só vivesse para ele, pois assim que ele foi para Lisboa ela adoeceu - e de certa forma, podemos dizer - ela morreu por ele. Apesar de Antunes pensar que aquele amor entre ele e Maria era apenas uma brincadeira para ela. Além do amor, o autor acaba a sua obra da seguinte maneira, e sinto que é meu dever despedir-me da mesma maneira: "Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar."

Bruno Apresentação

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As tardes…

A Mulher que prendeu a chuva e outros contosTeolinda Gersão O

livro que escolhi para analisar denomina-se A mulher que prendeu a chuva e outros contos e é da autoria de Teolinda Gersão. O contos que mais me cativaram foram "As tardes de um viúvo aposentado" e "História Antiga". Em primeiro lugar, procedi à leitura do conto "As tardes de um viúvo aposentado". O narrador conta-nos a história de um idoso reformado e viúvo: "Os últimos anos tinham sido, portanto, de perdas sucessivas. Aposentação e viuvez". Os seus dias eram todos passados da mesma forma: de manhã dirigia-se ao cemitério: "Ganhara o hábito, desde a morte de Izilda, de ir todas as manhãs ao cemitério". Após colocar flores na campa da sua esposa, fazia o caminho de regresso onde aproveitava para comprar "o jornal e (...) lê-lo no café" e para trocar algumas impressões sobre a atualidade com o empregado: " Na altura de pagar trocava sempre algumas impressões sobre as notícias". De seguida, dirigia-se a casa onde tinha Leontina, a sua empregada doméstica, à espera para lhe servir o almoço. A rapariga, por estar tão habituada ao feitio do seu patrão, já nem dava importância ao seu mau temperamento: “Mas ela não o deixava implicar. Ria-se, e desarmava-o logo. Ou resolvia drasticamente as coisas. Quanto à relação do viúvo com Leontina, é possível perceber que esta não era de igualdade. O idoso mostrava-se machista e pouco respeitador do sexo feminino, tendo pensamentos para lá dos que eram aceitáveis: "Seguiu-a com os olhos (...) Chegaria para ele não cama?". No entanto, nenhuma das suas fantasias se chegou a concretizar, pela tomada de consciência da parte dele: “Mas caiu em si. Fanfarronices de macho, não havia nada mais burro. Ela tinha um jovem marido, com trinta anos como ela, onde é que ele tinha a cabeça?" No que diz respeito à caracterização psicológica da personagem, podemos afirmar que a mesma era solitária e com carência de atenção: "mas entrava em vez disso no banco, desculpava-se com a vista fraca, (...) Na verdade preferia ser atendido ao balcão e dar dois dedos de conversa com o empregado". Por outro lado, é sublinhado que o senhor Matos se sentia sozinho e com necessidade de se sentir acompanhado e "parte de alguma coisa" : "Mas na ADSE esperou uma tarde inteira. Começou por se irritar, mas à medida que o tempo passava deu consigo a sentir-se parte de qualquer coisa. Uma sala cheia de gente era diferente de uma sala vazia. Era diferente estar à espera sozinho ou estar no meio de outras pessoas". Paralelamente, o idoso em questão era alguém que vivia do efeito que causava nos outros: "Fechava-se no escritório, contente com a impressão que causava a Leontina. Não era a mesma coisa, um velho sentado no jardim à espera da morte, ou um patrão ocupado, viajando em negócios de um lugar para outro." Podemos ainda considerar que o senhos Matos possuía uma mente muito fechada, o que é compreensível devido à idade que tinha e à maneira como fora educado. Do seu ponto de vista, o lugar das mulheres era unicamente na cozinha e mão deveriam criar confianças com os patrões : “Às mulheres, especialmente à criadas, convinha impor-se, para não se desleixarem. Dar-se ao respeito, marcar distância, ter exigência". Adicionalmente, era uma pessoa com a morte sempre muito presente na sua mente : "Ser velho era esperar a morte". No que diz respeito à relação com a sua falecida esposa, Izilda, os dois não tinham o mesmo tipo de interesse, o que fazia com que discutissem, apesar de o senhor Matos lhe fazer todas as vontades e o possível para lhe agradar: "Podia também ir a teatros e cinemas, se gostasse de espetáculos. Só que não gostava, mas isso já não era um problema. Só tinha sido quando a Izilda era viva, porque ela gostava de espetáculos, sobretudo de ir a uma revista, mas ele não. Aí tinha sido um problema. Agora não". Mais tarde, e na minha opinião, como maneira arranjada pela sua mente com o intuito de lhe ocupar o pensamento, o senhor Matos começou a questionar-se acerca da fidelidade da sua esposa : "Lembrava-se como lhe doíam as gargalhadas dela. Que pareciam ir direitas ao Miguel João. Que só a presença dela despoletava. Em casa, sozinha com ele, ela nunca se ria assim. Ter-lhe-ia sido, alguma vez, infiel?". Todas estas conclusões fo13


As tardes… e …

ram baseadas nos seus ciúmes. Para que pudesse clarificar as suas ideias, resolveu ir em busca de respostas, começando por tentar contactá-lo. Com raiva baseada na desconfiança de que houvesse algum fundo de verdade, pensa em mil e uma maneiras de castigar o suposto amante, caso fosse necessário : "Ainda tinha na gaveta a faca de mato que usara em Angola. E o revólver do seu avô […] . Nesse dia saiu com ele no cinto. Fazia boa companhia". "Durante semanas procurou por todo o lado" alguma pista que provasse a sua teoria, mas sempre sem sucesso. "Ao fim de três semanas parou todas as buscas" e deu o assunto por encerrado. Todas estas semanas fizeram com que se apercebesse de que todas estas desconfianças não passavam de frutos da sua imaginação e da vontade de manter a memória da sua esposa viva. Em suma, considero este conto muito interessante pela maneira como chama os leitores à razão em questões sobre a solidão, neste caso no idosos, e os malefícios que isso pode trazer à sua mente como, a título de exemplo, a perda da perceção do que é real e do que é fruta da sua imaginação. Este segundo conto, "História Antiga", trata uma temática diferente de outros contos da autora: a justiça, mais especificamente, a justiça portuguesa, e a sua falta de eficácia. O narrador conta-nos a história de um casal do século XXI. Contudo, neste caso, com algumas diferenças. Depreende-se que, nos dias de hoje, homens e mulheres consigam ser independentes sem ser necessário que um cuide do outro. Aqui não. O esposo "sempre se recusou a crescer" continuando a agir tal e qual como quando se casaram, de forma imatura e inconsciente: "Se na altura em que casaram ele fosse um recém-nascido, a verdade é que, entretanto, teria tido tempo de crescer: porque haviam passado vinte e cinco anos.". Ele estava sempre à espera que a sua mulher cuidasse dele como se fosse sua mãe, tendo de ser ela a "cozinhar, lavar, esfregar, arrumar, passarlhe a roupa a ferro". Caso isso não acontecesse , ou alguma dessas tarefas lhe fosse exigida, "armava uma birra do tamanho do mundo".

Já a sua esposa tinha uma vida completamente diferente da sua. Ela via-se quase como "escravizada" dentro da sua própria casa. E, como se não bastasse, ainda era apontada como culpada das atitudes infantis do marido: "Havia, é claro, quem achasse que a culpa era dela, porque o deixava instalar-se nessa situação". Um dia, já cansada da vida que levava e da maneira como era maltratada, acabou por cair "nos braços de outro homem, diferente do primeiro". Este sim, tratavaa como ela merecia e sempre desejou, sendo que por isso descobriu que "não vivera até ali, e a sua vida apenas começava". As vizinhas, ao descobrirem o adultério, e para que a honra do homem se mantivesse intacta, decidiram contar-lhe. O mesmo acabou por apanhá-los em flagrante e, consumido pela raiva, "matou-a, com um tiro de caçadeira". Após o crime, "esteve preso alguns meses e foi julgado", tendo saído "em paz" por ordem do juiz, pois, para ele, "não era crime matar a mulher própria, quando apanhada em flagrante". É-nos, por fim, dito que esta história se passou "num pequeno país à beira-mar, no sul da Europa". Para concluir e a meu ver, este conto é uma dura crítica ao sistema judicial português, pois refere a falta de eficácia e de consciência dos juízes, que deixam um assassino, um homem que tirou a vida à própria esposa, à solta, apenas porque, na opinião deles, o arguido estava apenas a tentar proteger a sua honra. É ainda de sublinhar que este conto condena o caráter machista da sociedade portuguesa e o facto de que, na cabeça de alguns maridos, as suas esposas não passam de meros objetos que servem para os satisfazer e de fadas do lar. Adicionalmente, penso que a mulher, apesar de se sentir desesperada e cansada de ser maltratada dentro do seu próprio lar, não deveria ter cometido adultério. Considero, por fim, que, este conto é deveras interessante pela forma como reprova os dois principais assuntos nele tratados, de uma forma tão direta e frontal "pelo que vejo e ouço, as leis, quando convém, não são cumpridas, e a justiça é uma prática bizarra". Inês Mendes

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Resposta a Matilde

Resposta a Matilde, de Fernando Namora pois de vários contactos que se deram entre os dois, nada físico, Manucha iniciou uma conversa que surpreendeu o explicador, pois esta queria que ele fosse apresentado formalmente ao seu marido. Naturalmente, isto desencadeou uma onda de desconforto na personagem principal, que não via lógica nenhuma em ser apresentado ao marido da sua amante, no entanto, o encontro deu-se. O ponto alto do conto coincide com este diálogo entre Zeferina, Arnaldo e Daniel Trigueiros. Estes apresentaram uma proposta que o matemático considerpu chocante. Afinal, o seu relacionamento com Manuela não tinha começado espontaneamente, na verdade, tudo tinha sido combinado entre ela e o seu marido, Daniel. Relativamente à minha opinião, gostaria de começar por falar sobre as intervenções do narrador. Ao contrário da maioria das obras, o narrador, mesmo não estando presente enquanto personagem da história, expunha-se ao longo do conto, oferecendo várias vezes a sua opinião, revelando mesmo o que pensava ser a opinião do público e dialogando com a própria personagem como se fosse o seu pensamento. "(O nosso companheiro de café está, por conseguinte, apresentado." […];" Acompanhemos então Arnaldo na sua busca, demos-lhe um palpite se ele precisar" […];" Que palavras te hei de por na boca, Arnaldo?)". Com isto, penso que o autor conseguiu criar uma maior ligação entre o leitor e a personagem, para além de que algumas manifestações cómicas por parte do narrador conseguiram tornaram a história mais interessante. Por outro lado, devo dizer que encontrei alguns pontos fracos relativamente ao excesso de tempo perdido na mesma cena, que acabava por cansar um pouco o leitor; no entanto, também entendo a necessidade de querer esgotar cada situação e a emissão das opiniões do narrador para que o público sinta uma maior empatia com o universo narrado. Por fim, acho de extrema importância dizer que o conto não podia ter acabado de melhor forma, pois o fim levou a que a história nunca mais saísse da cabeça de quem o leu. No conto O guarda chuva que não viajou, o terceiro da obra, a narração gira à volta de uma viagem que a personagem principal, de nome desconhecido, decide fazer, mas que já ponderava há alguns anos, com destino a São Paulo. No entanto, deparou-se com um incómodo, pois foi-lhe dito por um amigo, Francisco Vidal, que aquela cidade era "O penico do céu". Para o protagonista, aquilo era o cúmulo do descontentamento, pois ele sempre fora um homem que preferira andar à chuva a ter que carregar um chapéu. Então, para resolver o seu problema, dirigiu-se a uma loja no Rossio onde esperava conseguir adquirir o chapéu mais discreto que houvesse. No entanto, uma série de acontecimentos vergonhosos, para não dizer desastrosos, deram-se quando a empregada lhe tentou vender um dos modelos. Sem dúvida que este conto foi feito para conseguir retirar uns sorrisos acompanhados de umas pequenas

. A obra Resposta a Matilde, de Fernando Namora, encontra-se dividida em seis contos, sendo que alguns deles estão subdivididos em capítulos. Dos mesmos, selecionei os contos "Era um desconhecido" e "O guarda-chuva que não viajou." Esta escolha realizou-se com base nos títulos dos contos, tendo sido estes os que se destacaram mais, na minha opinião. Primeiramente abordarei o conto "Era um desconhecido", o primeiro da obra, dividido em dez capítulos. A história começa com a apresentação da personagem principal, um matemático, mais concretamente um "explicador de meninos cábulas", amante de uma boa cerveja e com a rotina semanal de todas os fins de semana lavar o carro à mão, mesmo não apresentando qualquer jeito para a condução. Não esquecendo, claro, a sua pausa diária no Café Estrela. O desenvolvimento da narração ocorreu exatamente numa dessas horas em que o senhor Arnaldo bebericava o seu café e se deparou com uma nova figura no estabelecimento. ("...cabelos. castanhos , da cor de certas árvores quando as esfolam vivas..." […];" Saliências e reentrâncias muito nítidas, traçado por mão incisiva, mas sem excessos desafiadores” […]; “ancas e seios bem lançados.“ […];”A boca... mereceria uma referência especial..."). A nova personagem pareceu ter conseguido captar a atenção do explicador e ele a dela, dando-se assim inicio à verdadeira ação da história. Arnaldo, preso nos encantos da mulher, conhecida como "Manuela", "Manucha", "Zeferina", ou como quer que a chamassem, tentou a sua sorte com ela, que igualmente mostrava um interesse para além da amizade no matemático. No entanto, é de referir que Manuela não costumava frequentar o Café Estrela sozinha, levava consigo sempre o seu marido, mas tal não os impediu de combinar um encontro no Rossio. De15


O Inspetor Varatojo

gargalhadas dos leitores, principalmente com a figura que a empregada acaba por fazer ao longo do acontecimento. A respeito dos dois contos gostaria de manifestar o meu agrado em relação a ambos, não só pela forma como me conseguiram divertir enquanto os lia, como ambos acabaram de formas bastante interessantes, ficando a pairar no ar a impressão de que haveria ainda algo por dizer. O facto de tal acontecer é o que os torna tão bons, pois, na minha opinião, o que deixa realmente marca no leitor é a forma como o livro acaba, e sem dúvida que ambos deixaram algo em que pensar. Inês Ferreira

O inspetor Varatojo investiga, De Artur Varatojo

O livro "O inspetor Varatojo investiga” é um policial em que cada capitulo relata um caso diferente ao qual o inspetor Varatojo tem que se dedicar. O narrador é não participante, sendo a personagem principal o inspetor varatojo. O inspetor Varatojo é uma personagem perspicaz, inteligente, que gostava de fazer as suas investigações com frontalidade, ou seja fazia tudo para evitar intermediários quando questionava alguém. Era desembaraçado e desconfiado: "Não permitia que contassem pormenores antes de ver tudo com os próprios olhos" No capitulo "O morto pagou a conta", da página 27, é relatado um caso de homicídio que se passa num bar. Ao atender uma das mesas, o criado repara num cliente, que pensava estar embriagado, curvado sobre ela. Ao tentar levantá-lo, rapidamente se apercebe que este cliente se encontrava morto "quando o tentou levantar, supôs que estava embriagado, quando o deixou cair de novo para a frente, sabia que ele estava morto." Com este caso em mão, o inspetor tem como função descobrir o assassino. Após uma rápida análise ao corpo da vitima, o inspetor conclui facilmente que esta havia sido apunhalada "Hum...Apunhalado! -falou para o agente mas todos o ouviram." Depois disto, Varatojo começa a interrogar o dono do bar e o empregado que encontrou o cadáver. No capitulo "A ceia de natal", da página 193, o inspetor Varatojo vagueia pelas ruas frias do Chiado em época natalícia, quando presencia um roubo co-

metido por um homem que já tinha prendido antes, ao qual tinha conseguido arranjar um emprego. Este conta-lhe sobre a triste realidade em que vive, tendo perdido a sua mulher à três meses " A minha mulher morreu à três meses, Sr. inspetor!" e vivendo apenas com a sua filha tendo que a alimentar com o seu escasso salário " tenho uma petiza com dez anos! Vivemos os dois...E nem sei se sou eu quem tomo conta dela, se é ela que toma conta de mim..." . Comovido com esta história de vida, o inspetor decide ajudar. O capitulo " O aniversariante" da página 71 é completamente diferente de todos os outros. Este capitulo não relata um dos casos do inspetor, mas sim o aniversário de um polícia. Neste conto, o narrador descreve o dia de aniversário de um polícia, que vive com a sua esposa, e a "ótima" , dentro do possível, relação que tem com a mesma " Mesmo assim era feliz tanto como podia ser a mulher de um polícia". Como prenda de aniversário, a mulher do polícia oferece-lhe umas pantufas, que vêm a revelar importantes pistas em relação a um esquema de dinheiro falso no qual o polícia estava envolvido. Este rapidamente se apercebeu que havia um rolo de notas falsas dentro da caixa de pantufas "Sabias que dentro das pantufas que me ofereceste vinha um rolo de notas falsas de cinquenta escudos?". Em suma e a meu ver, este livro proporciona uma leitura demasiado repetitiva. Esta repetibilidade devese, na minha opinião, à linguagem usada pelo autor e mesmo à "estória" que guia cada conto. Marco Palhano 16


O fogo e as cinzas

O Fogo e as Cinzas, de Manuel da Fonseca nesta mudança de tempos vivida pelo Largo. A luta das mulheres contra a desigualdade, a educação e o poder do saber (“Hoje, as notícias chegam no mesmo dia, vindas de todas as partes do mundo […] . Ninguém fica de fora, todos estão interessados.”) modificam as gentes e põem fim às conversas que “passeavam” pela Vila (“As mulheres cortaram o cabelo [ previamente descrito como como “compridos como causas de cavalos”], pintaram a boca e saem sozinhas.”). Ao introduzir personagens como João Gadunha ou Ranito, dois bêbados do Largo, o narrador traz ao conto um caráter cómico. Os dois coitados representam mudanças diferentes na Vila, mas no final o seu sofrimento é o mesmo: “[…] o Largo já morreu ”. Através de João Gadunha é exemplificado como as gentes se relacionavam com o conhecimento e a cultura geral. O bêbado demonstra-se persistente em dar vida ao Largo contando histórias que diz serem verdadeiras “[…] fala de Lisboa, onde nunca foi.”. Essas suas histórias têm um pingo de verdade, mas estão desatualizadas e a sua falsidade é rapidamente detetada pelo povo informado sobre tudo e mais alguma coisa (“Apenas por um pormenor, estragou uma tão bela história. Fosse antigamente, todos ouviriam calados. Agora, sabem tudo e riem-se.”). Já Ranito representa aqueles que acabaram por empobrecer com a dita modernização. É pobre e velho, quando um dia foi dos trabalhadores mais importantes da Vila: “ Outrora, foi mestre-artífice; era importante e respeitado. Hoje, é tão pobre e sem préstimo […] ”; agora apenas se senta no Largo, bêbado, a desencadear lutas com o ar e a tentar aceitar que os tempos mudaram (“ Aos tropeções, pende para a frente e cai, tem que cair, o Largo já morreu, ele não quer, mas tem de cair.”). Como estes dois são dos poucos que frequentam o Largo, encontram-se extremamente infelizes. Refletem, assim, o clima vivido neste espaço de infelicidade e o desejo de que tudo voltasse ao que era antes. Concluindo, todo o conto tem um enorme valor documental, ao mesmo tempo que conta uma história. O seu pequeno apontamento cómico torna-o também engraçado e informativo ao mesmo tempo. É portanto, uma leitura fácil e interessante, em que o autor, com poucas palavras, nos leva numa viagem entre séculos.

O Fogo e as Cinzas, de Manuel da Fonseca, conhecido poeta, romancista e contista português, é uma obra que apresenta, na sua totalidade, onze diferentes contos deste autor do século XX. Entre estas histórias, li e analisei um pequeno conto de dez páginas, chamado “O Largo” que retrata, de forma simples e clara, a história de vida deste espaço, e por conseguinte, a história de quem o frequentava. Utilizando um local de referência, o narrador faz uma caracterização direta da mudança dos tempos, informando o leitor sobre as consequências da modernização. Apesar de se referir apenas a um largo de uma só vila, descreve-se, na verdade, a realidade vivida em todas as zonas atingidas pela revolução industrial, tecnológica e social, de uma maneira geral. Inicialmente, o tal Largo é descrito como um local que quase tem vida por ele próprio. Era, de facto, o centro da Vida e, deste modo, o centro de tudo e do mundo, que as gentes que lá passavam conheciam (“Assim, o Largo era o centro do mundo”). A população descia ao Largo, e toda ela lá convivia, abolindo por completo as normas de divisão social impostas na época. Apresentase assim, a ideia que era um lugar de liberdade (“Era aí o lugar dos homens, sem distinção de classes.”). Foi-se assim tornando um ponto de comunicação, sendo que era lá que eram contadas novidades: “Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo.” Por outro lado, e de acordo com a primeira frase do conto, “Antigamente, o Largo era o centro do mundo”, todo o ideal criado arredor deste espaço desaparece quando surgem inovações trazidas pela modernização, como o rádio, os jornais, os cafés, etc. Existiram, então, bastantes mudanças tecnológicas que influenciaram o movimento e estilo de vida, particularmente o aparecimento das fábricas (“O comércio desenvolveu-se, construiu-se fábricas.”), que o narrador apresenta de forma um pouco negativa, fazendo parecer que estas tiveram um impacto negativo na vida das pessoas. Grandes empregadores da época foram substituídos por máquinas, tornando o trabalho das pessoas desnecessário à sociedade (“As oficinas faliram, os mestres-ferreiros desceram a operários, os alvanéis passaram a chamar-se pedreiros e também se transformaram em operários.”). Da mesma forma que menciona a revolução industrial, também a revolução social tomou um importante papel

Margarida Caldeirinha

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O retrato

“O retrato” Um segundo conto que analisei foi “O retrato”, também escrito por Manuel da Fonseca, que, tal como “O Largo”, descreve situações do quotidiano de antigamente. O conto começa com a súbita entrada do pai do narrador no seu quarto, apressando-o a arranjar-se para tirar um retrato. Tendo em conta que tal acontece apenas em ocasiões especiais, como aniversários, este interroga-se sobre qual será a origem desta decisão. Dirigem-se à loja do Sr. Rodrigo, fotógrafo da vila onde moram, e lá tiram o retrato que irá representar o narrador no Liceu onde irá estudar em breve. Tornar-se-á a sua identificação em Beja. Para a sua infelicidade e angústia, a fotografia fica estranha e o narrador encontra-se obrigado a aceitá-la como sua “representante”. Até hoje se sente envergonhado. O narrador, que é simultaneamente a personagem principal, o que o torna um narradorprotagonista, relata um episódio da sua infância na primeira pessoa. Percebemos, a partir do seu discurso, que já não é criança; logo, conta uma história que há muito se passou, mas de que ainda se lembra pormenorizadamente (“E, ainda hoje, após tantos anos, sinto vergonha”). Relembra-se então, desse tempo com carinho, mas tristeza (“E, como agora já não posso reviver os doces dias de infância, aborrece-me a desolada expressão com que a abandonei”). Através do seu discurso, repleto de nostalgia, o narrador descreve a sua infância como uma página da sua vida cheia de inocência e pureza. Nela, o seu pior pesadelo não passava de ser gozado por sair à rua com um fato vestido (“Passei vestido «à mamã», expressão que entre nós designava, não apenas o fato, mas certos rapazitos, medrosos e tímidos […]. E eu, tido e respeitado como um rapaz às direitas, lá ia de enorme colarinho de goma, ao lado de meu pai. Nem olhava para ninguém”). Sublinha, também, quão feliz era na sua terra, rodeado pelos seus amigos e como acredita que nunca se irá esquecer desse tempo (“[…] pois não podia esquecer os meus amigos de infância, livres e felizes, lá no largo!”). Como referi, os tempos de criança foram importantes para o narrador, por isso este retrato marcou-o particularmente, pois simboliza o momento em que abandonou a infância. Ao sair daquela loja e despedir-se do Sr. Rodrigo, despediu-se também destes momentos de inocência e liberdade (“De facto, as coisas modificaram-se; depois que entrei para o liceu, o mundo deixou de ser o que era. Tornou-se imenso e agreste. […] Mas basta olhar o retrato para ver quanto é triste deixar de ser criança”). É um conto curto, mas bastante interessante. Parece um drama, devido à confusão na casa do rapaz e ao exagero na vergonha dele. É, na realidade, o simples relato de um momento na vida de alguém, que a mudou para sempre. Fez-me pensar como “irrelevantes” situações do meu dia a dia podem em alguns anos ser relembradas por mim como momentos críticos e marcantes da minha vida. Margarida Caldeirinha 18


Orquídea

“Orquídea”, de Julieta Monginho

Uma simples orquídea é um elemento significativo que torna esta história muito especial, n’”Um instante cor-de-rosa antigo.”. O conto “Orquídea”, de Julieta Monginho, relata uma história que gira à volta de uma orquídea, de nome Juana, e da relação que as pessoas com ela estabelecem. Inicialmente, Juana estava sob os cuidados da narradora, ex-mulher de Frederico, dono da flor, que tinha estado uns dias ausente. No momento em que a narradora se preparava para levar Juana de volta a Frederico, quando ambas saíam de casa, subitamente, foram abordadas por uma figura inesperada que as terá transtornado, deixando a portadora da frágil flor preocupada com a segurança de Juana. A meu ver este conto, embora curto e simples, tramite-nos um sentimento especial através da orquídea, um elemento frágil que logo de início, se mostra significativo, não só para uma, mas para várias personagens, e assim permanece ao longo da história desenvolvida. De facto, neste conto a flor demonstra ter um valor simbólico ligado à expulsão de maus sentimentos, que é possível relacionar com o momento em que a narradora nos diz que, após o seu divórcio de Fernando, este não terá ficado bem e, por isso, criou uma proximidade com a orquídea de forma a compensar a falta do afeto de uma mulher na sua vida (“É certo que nos tínhamos divorciado três anos antes, mas o que lhe seguiu não foi famoso e este apego a uma Juana orquídea sugeria-me a ausência de uma Juana mulher na vida dele.”) Por outro lado, simboliza também o exorcismo de maus acontecimentos já que, embora tal não seja concretamente referido, acredito que também estará envolvido com a forma como a narradora e a flor escaparam da situação potencialmente perigosa em que se encontravam, quando apareceu um homem que as salvou (“Foi então que senti os dedos no meu cotovelo. A mão que me conduzia para o passeio oposto, a outra que transportava a orquídea resgatada.”). Ainda é de salientar que a presença da orquídea também pode ser considerada um símbolo de fertilidade que, sem sombra de dúvida, o que foi bem salientado no momento em que a narradora deu a flor a Xana, uma mulher pobre, quando esta ia ter o seu bebé (“Xana. O bebé ia nascer. […] Toma leva a orquídea […] É resistente, nem imaginas. Vai ajudar o bebé a nascer […] Dias depois […] a campainha tocou. […] Era Xana […] Vim devolver-te a orquídea, obrigada. Ajudou muito.”). Maria Margarida Carvalho

“Edgar Allan Poema” (um cima em versão ficcional)Rui Zink

O texto “Edgar Allan Poema” (um cima em versão ficcional), de Rui Zink, publicado no Jornal de Letras, trata-se de um conto criminal verdadeiramente intrigante e criativo. Michel, personagem principal, vê-se consumido por um sentimento de culpa e atormentado por “uma máquina de falar interminável”, a sua consciência. Conseguirá Michel dominar os seus pensamentos e ultrapassar esta situação? Ou será que vai ceder à pressão exercida pela sua própria mente e acabar dominado pela mesma? Tudo o que me resta dizer é… “Vou tomar isso como um sim.” Na minha opinião, este conto foi, de facto, um dos mais intrigantes que li e logo de início chamou-me a atenção. O pormenor que mais me cativou foi a sua forma, visto que é todo constituído por um diálogo que, à medida que ia lendo, se ia tornando cada vez mais interessante. No entanto, tenho que confessar que só entendi a sua história após duas ou três leituras, devido à informação que vai sendo introduzida e que esclarece a grande velocidade as questões que nos surgem no princípio do diálogo. A primeira dúvida que me surgiu foi se a voz, presente na mente de Michel, era real ou ficcional. Efetivamen19


Edgar allan poema

te, pude chegar à conclusão de que esta voz, em tempos, teria sido uma pessoa que Michel matara (“Você tenta convencer-se que eu nunca fui real […] Estava pedindo desculpa a quem matou […] Você não vê que o meu corpo já não respira?”). Por esta mesma razão, Michel transmite, através da conversa com a sua consciências, um sentimento de arrependimento ao pedir desculpa à vítima, que terá passado a ser meramente ficcional por estar apenas presente na sua mente (“Mas eu estou ouvindo a sua voz! /A sua, meu bem./ A m-minha? /Você. É você quem está fazendo de minha voz.”). Em segundo lugar, questionei-me sobre a identidade desta pessoa: Seria homem ou mulher? Qual seria a sua proximidade com Michel? Relativamente ao seu género, o texto não fornece referências concretas; no entanto, o conto está acompanhado por uma imagem que contém a figura de um homem, que, à partida, é possível concluir que se trata de Michel, a acompanhado de uma mulher, que posso presumir que seja a vítima e consciência de Michel, vestida de vermelho, o que reforça a ideia de morte, uma vez que é possível fazer uma rápida analogia entre a cor vermelha e a cor do sangue (“O seu sangue escorre entre minhas mãos.”). No que toca à sua proximidade com Michel, mais uma vez não estando claramente expresso, esforcei-me por tentar entender a situação em que a sua relação se encontrava. A partir daqui, cheguei a uma teoria que, embora possa não estar cem por cento correta, me ajudou a tentar compreender melhor o enquadramento do diálogo e que se baseia em pequenas coisas referidas nas entrelinhas pela própria voz. Segundo o que pude perceber, esta senhora foi esposa de Michel (“meu bem […] meu bombom”), mas este traiu-a (“Sua traição me imortalizou […] Sua traição imortalizou a você também”) e formou uma família com uma “esposa bem jovem” e teve uma filha que “podia ser sua neta”. No entanto, não há nada que explique o porquê das ações de

Michel contra ela (“Você tenta convencer-se que eu nunca fui real.[…] Que não ajudou a destruir uma pesou real.[…] Você não vê que o meu corpo já não respira?”). Após conjugar todas estes detalhes, cheguei finalmente à conclusão de que, devido à culpa e arrependimento sentidos pelo personagem, a voz simboliza toda a opressão exercida por Michel sobre si mesmo, juntamente com o peso na consciência que aos poucos o vai enlouquecendo (“Vou enlouquecer você aos bocadinhos […] Em sua imaginação doente, eu me tornei uma máquina de falar interminável.[…] E sabe qual é a parte mais divertida?[…] Só você me ouve meu bem./ Eu não quero isso. Cale-se!”) Para além da sua forma de diálogo, outro fator que me chamou a atenção foi o facto de este se basear numa reflexão existencial, na medida em que relata situações homicidas e espelha a mente do assassino, que, aos poucos, é consumida pelo sentimento de culpa (“Gostaria de se sentir inocente, não?/ Eu… /Gostava que a minha voz fosse apenas uma voz em sua cabeça, né?/ Não.”). É ainda de salientar que este conto termina de um modo muito surpreendente, com uma proposta da parte da consciência de Michel dirigida ao mesmo que, mesmo que se possa tentar interpretar, acabamos sempre com suspeitas e sem um final claramente definido (“Vamos fazer um acordo. Eu me calo por um minuto. E você decide o que faz. Se entregar na delegacia, fugir, usar a mesma arma que usou contra mim. O que diz? O que tem a temer?/ Cale-se… /Vou tomar isso como um sim./ Eu… /Tchau, querido.”) Por fim, recomendo vivamente a leitura deste conto, já que foi realmente um dos mais interessantes que li até aos dias de hoje e que realmente me fez pensar e interrogar-me sobre o seu conteúdo, já que este é todo muito misterioso e requer alguma atenção. Ao mesmo tempo, a sua leitura é muito rápida e pouco cansativa. Maria Margarida Carvalho

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A história …

A História que eu não devia contar ( Onde a terra acaba) - João Mancelos

Esta história tem início numa festa de aniversário de dois irmãos gémeos, Alberto e Catarina, onde a mãe faz referência ao facto de estes serem inseparáveis: “vocês são pão da mesma fornada”. A mãe não sabia ainda o que a esperava. Entretanto, o narrador, um dos gémeos, Alberto, conta aos seus leitores que mantém uma relação amorosa e proibida com a sua irmã Catarina, o que choca e, de alguma forma surpreende, quem lê este conto:“[…] depois brincávamos aos médicos, beijávamo-nos mais uma última vez […] ”. Ao longo da história é-nos apresentado um diverso leque de momentos entre estes dois apaixonados irmãos. No entanto, ao sentirem-se consumidos pela culpa desta relação incorreta deixam-se, intencionalmente, apanhar: “Fartos de segredos, a mana e eu estabelecíamos metas cada vez mais ousadas para o nosso amor. No último dia, a seguir à natação, sugeri à mana um plano arriscado(...)”. Por outro lado o castigo dos pais leva-os às piores atitudes “[…] com o menor do ruído, puxámos os facalhões, previamente afiados […] ”. A relação de Catarina e Alberto é considerado um incesto, isto é , uma forma de autismo, uma tendência para a união com

semelhantes, logo, uma exaltação da própria essência. Esta relação vai totalmente contra a natureza e o ideal de uma família comum e de como devem ser os sentimentos partilhados dentro do leque familiar. Esta relação ameaça também uma normal de procriação. A sociedade não aceita este tipo de relações, pois vai contra tudo o que estamos habituados e, por isso, consideramo-las uma anormalidade. No conto é-nos, ainda, mostrado também como a sociedade não se habitua a esta ideia:“ Isto não é proibido, ou coisa assim ?- perguntou Elisabete”. Todos os seres humanos possuem uma pequena parte exibicionista, querendo assim mostrar aos outros o que fizemos para ter reconhecimento. Alberto e Catarina não fugiram à regra: “Vou mostrar-vos como eu e a mana brincamos” - isto mostra que Alberto e Catarina estavam à espera de desafio e emoção na vida deles. No desenrolar do conto Catarina e Alberto são descobertos, intencionalmente como já disse, e os pais, chocados, decidem castigá-los. Os gémeos tomam a pior atitude, o que nos faz perceber que estes provavelmente teriam algum problema psicológico. Mariana Ferreira

Contos Vagabundos, de Mário de Carvalho Mário Costa Martins de Carvalho, conhecido por Mário de Carvalho, apesar de ser licenciado em Direito e das variadas adversidades que enfrentou no decorrer da sua vida, devido a ter estado, desde muito cedo, associado aos meios da resistência contra o Salazarismo, veio a tornar-se autor de diversas obras de inúmeros géneros literários. Entre estas, encontra-se a obra Contos Vagabundos, que contém o conto que selecionei para análise, no âmbito da disciplina de literatura portuguesa: “Fenómenos de aviação”. Este conto relata, como o seu titulo sugere, um fenómeno de aviação, cuja explicação permanece desconhecida, tratando-se, desta forma, de um fenómeno incompreensível, tanto para o narrador, ( “ Eu próprio dedico várias horas por dia ao estudo do assunto e ainda não encontrei explicação” ), como para “ Equipas pluridisciplinares […]”, que “ […] tentam compreender o fenómeno e gastam muito dinheiro nisso”). Foi no voo “ […] 747 da TAP com destino a Francoforte” que sucedeu o misterioso fenómeno, voo este que “ […] até ao sexto minuto” decorria de acordo 21


Contos vagabundos

conto. Tem como alvo “ Os profetas […]”, e recai sobre a sua falta de honestidade e valores. O narrador constata que “ Os profetas mais competentes são os pósteros” e, de seguida, inicia a sua critica afirmando: “ Só falham em pormenores e em sinceridade”. A critica social termina com a seguinte alegação: “ Eu, se não fora a educação que me deram, também dava um bom profeta, destes que vislumbram antes o acontecimento que já ocorreu”, através do qual enuncia, mais uma vez, a sua opinião acerca dos “ profetas ” e acrescenta que a educação que lhe foi dada não lhe permite ser “um bom profeta”, dado que para o ser teria de ser enganador, o que vai contra os seus princípios. Apesar das críticas que caracterizam uma narração subjetiva, no que diz respeito à ação do conto e ao seu desenvolvimento, o narrador não é participante, mas heterodiegético, ou seja, não é personagem na história que narra. À conjugação de realismo e fantasia dá-se o nome de realismo fantástico, corrente literária conhecida pela união do mundo mágico e fantasioso ao mundo real, tal como sucede no conto analisado. No que diz respeito à simbologia, a queda de um avião é representativa de uma atitude excessivamente espiritualista e afastada do terrestre, sendo que, simbolicamente, está associada à falta do sentido real. Desta forma, é de notar a falta de sentido real presente no conto, bem como o espiritualismo intrínseco, que não só põem em causa a realidade, como provocam dúvidas acerca de elementos primordiais. Considero, deste modo, que o conto permite aos seus leitores envolverem-se no seu carácter deliciosamente fantasioso, misterioso, e, simultaneamente, real. Não obstante, o que mais me cativou no conto foi, indubitavelmente, a existência de uma possível metáfora entre o que é relatado no conto, e o que nos sucede ou poderá suceder no decorrer da nossa vida. Tal como sucedeu ao avião, por vezes, os nossos motores falham: dá-se algo na nossa vida que nos derruba, que nos deixa sem qualquer esperança e nos consome a força. Perante estes acontecimentos, a nossa reação é a de, prontamente, tal como os passageiros do voo, esperar e temer o pior. Porém, por vezes, algo inesperado e, por sua vez, trágico, pode não terminar em “desastre ” ou tragédia, exatamente como sucedeu ao “ voo 474 da TAP”, que permaneceu intacto, apesar das adversidades que enfrentou. Matilde Távora

com o que seria expectável, contando somente com o susto de “ […] alguns passageiros mais sagazes” perante o “ plac ” que o trem de aterragem produziu. Porém, a normalidade que caracterizava o voo não tardaria a atingir o seu fim, na medida em que, após o sexto minuto “ […] o comandante Durval e o Copiloto Solano foram surpreendidos pela paragem dos motores e pela morte de todos os sistemas de navegação”. Ao contrário do que seria de esperar, não se deu a súbita, compreensível e expectável queda violenta do avião, sendo a partir de então que, na minha opinião, se deu o verdadeiro fenómeno de aviação, para o qual o titulo do conto nos remete, e não o mero desastre de aviação esperado pelo leitor e, inclusive, pelo comandante e copiloto que, após o surgimento dos percalços, afirmaram convictamente: “ Vamos marrar”. O fenómeno consistiu, deste modo, no desafiar das leis da gravidade por parte do avião, dado que o seu movimento sofreu uma suavização progressiva, estagnando a uma altitude constante, como se a flutuar se encontrasse, deslizando entre as nuvens lisboetas suave e delicadamente: “ […] o que deslizava não eram as nuvens, era o avião. Desviava-se de lado, em silêncio, ligeiramente inclinado como se fluísse sobre um plano liso, levemente obliquo e inconcusso”, sendo que “ Ninguém sabia quando o engenho se havia de reconciliar com a gravitação universal”. Assim sendo, este conto possui não só uma faceta extremamente fantasiosa, como também uma vertente realista . O realismo intrínseco ao conto é evidenciado através da crítica social, com a qual o narrador dá início ao

Madre Paula , de Patrícia Muller A presente análise parte do livro Madre Paula, de Patrícia Muller, escritora nascida em Lisboa em 1978 e licenciada em Ciências da Comunicação. É de referir ainda que este foi o primeiro romance desta autora. Decidi escolher esta obra, pois gosto particularmente de ler romances históricos e porque sou uma apaixonada pela época descrita neste livro: o barroco e o reinado joanino. Esta é a história de Paula Tereza Silva, narrada por ela própria na primeira pessoa. Esta era também conhecida por Madre Paula, por ser de uma família de poucas posses (“Nasci pobre” ). Acabou por entrar para o Mosteiro de São Dinis ou Convento de Odivelas, onde a sua irmã Luz já se encontrava, devido ao pouco dinheiro que tinham: “O pai vai fechar a oficina. Não tenho clientes, não vendo as 22


Madre paula

narração tem variados momentos de descrição, que não são demasiado longos, o que ajuda a que o leitor perceba a contextualização do espaço, onde a ação decorre, não a achando enfadonha. Por outro lado, e como em quase todas as obras, considero que também a Madre Paula tem pontos menos fortes, como é o caso de, a meu ver, existirem, ao longo da narração da ação, descrições em demasia de momentos das relações íntimas, principalmente entre o monarca e a monja, o que considero ser um pouco exagerado e até desnecessário. Em paralelo, assisti à representação de uma série baseada nesta obra, que passou na televisão, com a mesma designação: “Madre Paula”. Primeiramente é de referir que na série existem mais momentos de contextualização histórica e definidores do clima que se vivia na época em Portugal (século XVIII), do que propriamente no livro, que, tal como já referi anteriormente, é narrado na primeira pessoa por Paula. Assim a ação centra-se grandemente nesta personagem sem serem explicitados os acontecimentos que abalavam o país nessa data. De facto, a série faz bastantes referências ao contexto específico, nomeadamente, por exemplo, o facto de a posse de colónias ser muito importante para o país. É referida também a guerra de sucessão espanhola, em que Portugal participou. Faz-se alusão à existência da Inquisição, tribunal religioso muitíssimo opressor. Exemplifica-se ainda a vida de corte, juntamente com a magnificência do rei português D. João V. Em paralelo, há referências aos adultérios que frequentemente se verificavam, bem como aos casamentos arranjados e à bastardia. Simultaneamente, devido ao facto de a série ter apenas 13 episódios de menos de uma hora cada um, seria impossível exibir tudo o que o livro retratara. Por isso, existem alguns momentos e cenas que não foram mostradas na série ou que foram modificadas relativamente ao livro, o que honestamente não me satisfez, já que eu li a obra antes de a série ser transmitida. Exemplos disto são o modo e a forma de chegada de Paula ao Convento, pois parece-me que esta mostrou mais resistências na obra escrita; ou, ainda, o momento e o local onde Paula e D. João se conheceram. Apesar de ter apreciado a série, no geral, visto que tem uma imagem bastante apelativa, dado o figurino e o espaço serem muito realistas, característicos e representativos do século XVIII, acho que existiram demasiadas cenas de cunho erótico, pois, a meu ver, dar-lhes tanto ênfase e destaque, faz com que pareça que a história apenas se desenrola à volta disso, o que é um erro. Depois de tudo o que referi anteriormente, é de sublinhar que houve partes de que gostei mais no livro e outras na série, pelo que considero que se complementam. Em conclusão, considero a leitura e o visionamento de Madre Paula uma experiência muito interessante, principalmente para pessoas que gostem de romances históricos, já que se trata de um amor intenso e proibido numa época de Antigo Regime e monarquia absoluta em Portugal. Raquel Carmo

minhas joias […] Tu vais para o Convento receber educação e acompanhar a tua irmã” . Porém, é de salientar que Paula inicialmente não concordara de todo com esta ideia (“A ida para Odivelas era o fim do mundo” ), estando completamente contrariada no dia em que lá chegou, mostrando-se revoltada e indignada com a situação em que se encontrava (“Continuei a abanar a grade cada vez com mais força e violência […] fiquei pendurada no portão como um pequeno animal enredado na liana das terras do rei que eu nunca iria conhecer […] Colei-me ao metal da entrada de Odivelas”). Habituar-se à vida no Convento não foi fácil para Paula, pois, logo de início, enquanto noviça, foi humilhada por certas monjas que já lá habitavam e eram de linhagens nobres, como é o caso de Madalena Máxima, uma amante do rei. Porém, Paula começou a ser ajudada, também financeiramente por um conde, o Conde de Vimioso, com quem acabou por ter um relacionamento amoroso, até conhecer, se apaixonar e manter uma longa e difícil relação com o monarca português, o rei-sol, D. João V, com quem acabaria por ter um filho: “Naturalmente, teríamos um filho”. Por outro lado, é de referir ainda que o facto de Paula ter sido a principal amante do rei lhe deu um certo prestígio e poder (“Tive tudo o que uma mulher pode desejar: dinheiro, conforto, proteção e amor. Uma plebeia tratada como uma princesa […] Eu seria sua amante “). No entanto, isto enfureceu não só a rainha Maria Ana de Áustria, como também outras pessoas, tendo a monja, portanto, sofrido bastante, pois o seu amor era proibido, apesar de correspondido (“E a minha história com João Francisco António José Bento Bernardo de Bragança, o Magnânimo, o Rei-Sol, o meu sol, é uma história incompleta. Interrompida pelo destino divino e pela história de um país”). Pessoalmente, gostei bastante de ler esta obra, na medida em que a escrita da autora é bastante sugestiva. De facto, apesar de ao longo de todo o livro e em cada capítulo existirem avanços e recuos temporais, que fazem com que o leitor tenha de estar extremamente atento para entender qual o momento que está a ser descrito, este torna-se de uma leitura relativamente fácil, visto que, nesta edição, em particular, as letras são de tamanho razoável e existem espaçamentos entre o texto. Paralelamente, ainda é de sublinhar que, na minha opinião, a forma como a história é narrada torna-a deveras interessante, pois existem vários diálogos e a 23


As intermitências da morte

As intermitências da morte, de José Saramago comparada com a realidade ("Desde o princípio que nós não temos feito outra coisa que contradizer a realidade, e aqui estamos" ). Mais à frente, a Igreja volta a ser vituperada, desta vez por meio de uma reunião entre filósofos e eclesiásticos. Além do reforço da importância que a morte constitui para a igreja ("os delegados das religiões apresentaram-se formando uma frente unida comum com a qual aspiravam a estabelecer [...] a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus" ) e do destaque do lado controlador presente no catolicismo ("é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço" ), é introduzida uma nova crítica, com vista a denunciar a hipocrisia do clero, bem como a falsidade dos princípios católicos ("o que se passe depois da morte importa-nos muito menos que o que geralmente se crê, a religião [...] é um assunto da terra, não tem nada que ver com o céu"). Tal como a religião, a política também não se encontra isenta de repreensões. Estas surgem com a aparição da "máphia", uma rede criminosa que, a troco de dinheiro, leva pessoas em estado terminal até à fronteira, onde a morte continua em vigor. Uma vez que a ausência da morte provocou graves problemas políticos ("que vai fazer o estado se nunca mais ninguém morrer, O estado tentará sobreviver, ainda que eu muito duvide de que o venha a conseguir" […]; "O país encontra-se agitado como nunca, o poder confuso, a autoridade diluída" ), o Estado vê-se obrigado a compactuar com a máphia, estabelecendo-se assim uma crítica à corrupção por parte do governo ("O estado não faz acordos com máfias, Em papéis com assinaturas reconhecidas por notário, certamente que não, Nem esses nem outros, Que cargo é o seu, Sou diretor de serviço, Quer dizer, alguém que não conhece nada da vida real" […]; "Poder-se-ia pensar que. após tantas e tão vergonhosas cedências como haviam sido as do governo durante o sobe-e-desce das transações com a máphia [...] que já não seriam possíveis maiores baixezas morais. Infelizmente [...] o mais certo é que a lógica imperativa do aviltamento venha a demonstrar, afinal, que ainda havia uns quantos degraus para descer." […]; "E que organização é essa [...] a máphia, às vezes o estado não tem outro remédio que arranjar fora quem lhe faça os trabalhos sujos"). Além disto, encontram-se presentes, de forma implícita, críticas ao facto de o Estado se preocupar mais com as aparências do que com a governação do país ("Apertado pelos governos dos três países limítrofes e pela oposição política interna, o chefe do governo condenou a desumana ação [...] não ousou falar o primeiro-ministro, o governo não via com tão maus olhos um êxodo" […];"E está claro que a explicação aceitável não poderia ser que a máphia passou a tomar conta do negócio [...] é a única maneira que temos de não parecer que cedemos à chantagem desse bando de

"No dia seguinte ninguém morreu": é esta a frase com que Saramago principia a narrativa de As intermitências da morte. Num país fictício, ao dar-se a passagem de ano, a população deixa de morrer sem qualquer explicação. Este acontecimento passa despercebido por um curto período de tempo, sendo prontamente acompanhado por uma onda de ceticismo. Posteriormente, ao confirmar-se a ausência da morte, instala-se um clima de euforia e patriotismo por todo o país, contudo, este é também breve. Após a descoberta dos problemas que a morte, neste caso a sua falta, causa aos vivos (“complexos problemas sociais, económicos, políticos e morais que a extinção da morte inevitavelmente suscitará." […]; "quádrupla crise, demográfica, social, política e económica" ) , a dádiva da imortalidade passa a pesadelo( "o que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver sonhado [...] antes a morte que tal sorte" “não se compreende que ninguém se tenha logo apercebido de que o desaparecimento da morte, parecendo o auge, o acme, a suprema felicidade, não era, afinal, uma boa cousa" […]; "se não voltarmos a morrer não temos futuro" ) e dá azo a inúmeras adversidades. Cientes de que a morte continua a operar nos países fronteiriços, começam a recorrer a instituições criminosas para acabar com a vida daqueles que a têm por um fio. Ao longo da primeira parte da obra, na qual nos é apresentado e aprofundado o tema da ação, assistimos a uma censura dos comportamentos políticos, religiosos e sociais que a situação produz, mediante comentários do narrador e de múltiplos acontecimentos reprováveis. Logo após o começo da obra, ainda no primeiro capítulo, assistimos a um diálogo entre o primeiro-ministro e o cardeal, no qual o segundo faz as primeiras reflexões acerca da inesperada ocorrência. Esta conversa entre ambos serve de pretexto a críticas à Igreja Católica, tais como a dependência desta face à morte ("sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja" ), o seu carácter controlador ("só a observância fiel e sem desfalecimento das provadas doutrinas da nossa santa madre igreja poderá salvar o país do pavoroso caos que nos vai cair em cima" ), a sua vertente opressora e avessa a progressos ("À igreja nunca se lhe pediu que explicasse fosse o que fosse, a nossa outra especialidade [...] tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso" ) e, por fim, as contradições que a doutrina católica apresenta quando

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As intermitências da morte

patifes, Ainda que em realidade tenhamos cedido, O importante é que não pareça, que mantenhamos a fachada, o que acontecer por trás dela já não será da nossa responsabilidade") e de se mostrar imperativo ("Não necessita que lhe diga que a operadora telefónica conserva os registos, Providenciaremos para que esses desapareçam também" ). Encontram-se também patentes, no decorrer da primeira parte da obra, críticas aos meios de comunicação, nomeadamente a sua parcialidade a nível político ("Os jornais da oposição fizeram-se eco do mau ambiente que estaria a respirar-se nos quartéis, os jornais afetos ao governo negaram veementemente que tais miasmas estivessem a envenenar o espírito de corpo das forças armadas" ), a sua ambiguidade ("Não querem que lhes explique a outra frase, Qual, A do cravo e da ferradura, Não, essa conhecemo-la nós, praticamo-la todos os dias" ) e o excesso de juízos morais que efetuam ("Como um rastilho, a notícia correu veloz por todo o país, os meios de comunicação vituperaram os infames, [...] pela milésima vez jornais bem pensantes que atuavam como barómetros da moralidade pública apontaram o dedo à imparável degradação dos valores tradicionais da família"). Mediante a situação que dá origem ao enredo da obra, Saramago aproveita também para realizar reprimendas ao individualismo ("Algumas não quiseram ver no expediente de ir despejar o pai ou o avô [...] senão uma maneira [...] de se verem livres dos autênticos pesos mortos que os seus moribundos eram lá em casa." […]; "Como seria de esperar, conhecendose os lados escuros da natureza humana, a partir do dia em que saiu a público o alarmante artigo do economista, a atitude da população saudável para com os padecentes terminais começou a modificar-se para pior") , à hipocrisia ("crueldade e falta de patriotismo de pessoas aparentemente decentes que nesta circunstância de gravíssima crise nacional tinham deixado cair a máscara hipócrita por trás da qual escondiam o seu verdadeiro carácter." ) e, de modo geral, à falta de moralidade da sociedade "choraram-se lágrimas sobre o ancião e o inocentinho como se eles fossem o avô e o neto que toda a gente desejaria ter tido [...] e eis senão quando quarenta e oito horas depois começaram a chegar informações sobre práticas idên25

ticas que estavam a ocorrer em todas as regiões fronteiriças" […]; "Convencendo as famílias, em nome dos mais sagrados princípios de humanidade, de amor ao próximo e de solidariedade, a ficar com os seus enfermos terminais em casa, E como crê que poderá produzir esse milagre" […]; "os valores em acelerado processo de inversão, a perda do sentido de respeito cívico alastra a todos os setores da sociedade" […]; "É certo que também existem, como demasiado bem sabemos, aquelas desalmadas famílias que, deixando-se levar pela sua incurável desumanidade, chegaram ao extremo de contratar os serviços da máphia para se desfazerem dos míseros despojos humanos que agonizavam interminavelmente entre dois lençóis empapados de suor e manchados pelas excreções naturais, mas essas merecem a nossa repreensão". É então que, sete meses ( "Durante sete meses, que tantos foram os que a trégua unilateral da morte havia durado") após a peripécia inicial, se dá um lance que altera o rumo do enredo: a morte torna a intervir no curso da vida, esclarecendo que havia abandonado as suas práticas somente para mostrar ao Homem a sua essencialidade ("devo explicar que a intenção que me levou a interromper a minha atividade, a parar de matar [...] foi oferecer a esses seres humanos que tanto me detestam uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre, isto é, eternamente" ). Todavia, anuncia que toda a gente passará a ser informada, via correio, acerca do seu falecimento uma semana antes deste ocorrer ("a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá o prazo de uma semana para pôr em ordem o que ainda lhe resta de vida" ). Nesta parte da obra , Saramago realiza múltiplas considerações, devendo-se salientar algumas destas. Por meio da carta enviada pela morte ao diretorgeral da televisão, reforça-se a ideia da imprescindibilidade da morte para a humanidade (."tendo em conta os lamentáveis resultados da experiência, tanto de um ponto de vista moral, isto é, filosófico, como de um ponto de vista pragmático, isto é, social, considerei que o melhor para as famílias e para a sociedade no seu conjunto [...] seria vir a público reconhecer o equívoco de que sou responsável e anunciar o imediato regresso à normalidade" ..


As intermitências da morte

O narrador, através de uma comparação com a morte, condena a existência de conflitos bélicos ("A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem" ). No que concerne aos meios de comunicação, nomeadamente aos jornais, encontra-se presente uma crítica à desinformação e insensatez por parte destes (“Mal informados sobre a natureza profunda da morte [...] os jornais têm-se excedido em furiosos ataques contra ela [...] Felizmente, o bom senso ainda perdura em algumas redações" ). Já no que respeita ao tema religioso, o escritor aproveita o regresso da morte para voltar a repudiar o catolicismo. Quanto à Igreja Católica, é novamente evidenciada a sua sujeição face à morte ("a igreja católica, apostólica e romana tinha muitos motivos para estar satisfeita consigo mesma" ). É, mais uma vez, condenada a insinceridade por parte dos eclesiásticos ("Alguns padres [...] tinham sobra de razões para duvidarem das virtudes lenitivas do que naquele momento estavam a dizer"). Também se encontra presente uma crítica aos discursos efetuados pelos pregadores, visto estes serem manipuladores ("os pregadores, no seu afã consolador, não duvidavam em recorrer a todos os métodos da mais alta retórica e a todos os truques da mais baixa catequese para convencerem os aterrados fregueses"). O narrador troça, de forma irónica, da realização de preces, dada a inutilidade destas ( "As preces haviam demorado quase oito meses a chegar ao céu, mas há que pensar que só para atingir o planeta marte precisamos de seis, e o céu, como é fácil de imaginar, deverá estar muito mais para lá, treze mil milhões de anos-luz de distância da terra, números redondos" ). Por fim, é realizada uma dura crítica aos seguidores do catolicismo, sendo estes acusados de demonstrarem interesse para com a sua religião somente em caso de desolação, demonstrando assim a hipocrisia religiosa por parte dos crentes ( "Também é certo que seria preciso estar cega de todo para não ver como, quase de um momento para outro, se lhe tinham enchido os templos de gente aflita que ia à procura de uma palavra de esperança, de um consolo, de um bálsamo, de um analgésico, de um tranquilizante espiritual"). Passando à vertente social, o narrador condena o comportamento daqueles que descobrem que estão para morrer em breve, visto descurarem os seus deveres e terem comportamentos repreensíveis dado que

estão conscientes de que findarão antes de sofrer as consequências dos seus atos ( "as pessoas condenadas a desaparecer não resolvem os seus assuntos, não fazem testamento, não pagam os impostos em dívida" [...] ;"decidiram faltar ao cumprimento dos seus deveres cívicos e familiares, não fazendo testamento nem pagando os impostos em dívida [...] maltrataram o pouco tempo de vida que ainda lhes ficava entregando-se a repreensíveis orgias de sexo, droga e álcool" ). Por fim, relativamente aos aspetos políticos, é de referir que o Estado procurou atenuar os efeitos do retorno da morte mediante o patriotismo ("Dando prova de um admirável espírito previsor, o governo, entre outras medidas de urgência destinadas a suaviza Eis que, certo dia, uma das fatais cartas é inexplicavelmente devolvida à remetente ("misteriosos canais agora lhe chegou às mãos a carta devolvida" ). Após três tentativas fracassadas de fazer chegar o escrito ao seu destinatário (“Fez o gesto de despedida com a mão direita e a carta duas vezes devolvida tornou a desaparecer. Nem dois minutos andou por fora. Ali estava, no mesmo lugar que antes" ), a morte decide visitá-lo ("Temos portanto que a morte decidiu ir à cidade"). Contudo, fálo sem que se dê conta da sua presença (“e de repente a morte deixou de estar, estava e não está, ou está, mas não a vemos"). Logo após uma última tentativa, também esta inútil, de transmitir o recado ao recetor ("Vou dar-te uma última oportunidade, disse [...] Ainda dez segundos não tinham passado quando a carta do músico, silenciosamente, reapareceu em cima da mesa") , um violoncelista que vive com o seu cão e que acabara de celebrar meia centena de anos de existência, a morte decide levar a cabo um plano para pôr termo à vida deste. Ao focar-se na morte e no violoncelista, o narrador afrouxa a quantidade de críticas que viera a realizar ao longo da primeira parte da obra. Não obstante, ainda se encontram presentes alguns comentários de vertente religiosa. Além de continuar a provocar os crentes ("por exclusiva culpa de deus, Caim matou a Abel"), o narrador afirma que, supondo que Deus existe, seria risível acreditar que se preocupa com a humanidade (Há também quem diga que, para nós, é uma grande sorte que deus não queira aparecer-nos por aí, porque o pavor que temos da morte seria como uma brincadeira de crianças ao lado do susto que apanharíamos se tal acontecesse"), pondo assim em causa toda a doutrina cristã.. Adicionalmente, refuta a ideia da omnipre26


As intermitências da morte

sença de Deus ( Uma das cousas que sempre mais fatigam a morte é o esforço que tem de fazer sobre si mesma quando não quer ver tudo aquilo que em todos os lugares, simultaneamente, se lhe apresenta diante dos olhos. Também neste particular se parece muito a deus" […];"De deus [...] seria uma ridícula pretensão esperar que mostrasse um interesse especial pelo que acontece no pequeno planeta terra"), propriedade basilar deste. Por fim, é inevitável discorrer a respeito da escrita “saramaguiana”. Em As intermitências da morte, Saramago, mediante a escrita da morte, similar à sua, realiza múltiplos comentários relativamente ao seu peculiar estilo. Podemos, por meio destes, inferir que o autor está ciente de que a sua escrita pode suscitar algumas dificuldades ("para tornar mais fácil a leitura" ), de que esta não está de acordo com a ortografia e sintaxe vulgarmente consideradas corretas ("corrigiulhe a pontuação e a sintaxe, acertou-lhe as conjugações verbais, pôs as maiúsculas onde faltavam, sem esquecer a assinatura final" […]; "sintaxe caótica, da ausência de pontos finais, do não uso de parêntesis absolutamente necessários, da eliminação obsessiva dos parágrafos, da virgulação aos saltinhos e, pecado sem perdão, da intencional e quase diabólica abolição da letra maiúscula" ), e de que é alvo de numerosas críticas e polémicas (Segundo a opinião autorizada de um gramático consultado pelo jornal, a morte, simplesmente, não dominava nem sequer os primeiros rudimentos da arte de escrever" […]. "Uma vergonha, uma provocação, continuava o gramático, [...]monstruosidade filológica" ). No que concerne ao estilo do autor, este destaca-se pela supressão do travessão como indicador do discurso direto em prol da utilização da vírgula seguida de maiúscula de maneira a proporcionar uma maior fluência ao discurso. É também de sublinhar a escassez de parágrafos, tendo em conta a imensa virgulação, que dá origem a frases astronómicas. r os danos colaterais do inopinado regresso da morte, tinha recuperado a bandeira da pátria"). De maneira a pôr em prática o seu plano, a morte

transforma-se numa mulher( "A gadanha tinha ouvido dizer que isto podia acontecer, transformar-se a morte em um ser humano" […]; "a morte estava muito bonita e era jovem, teria trinta e seis ou trinta e sete" ). Em seguida, vai a um concerto do violoncelista, com vista a entregar-lhe a carta ( "levas a carta [...] Levo" [...] ;"a morte assiste ao concerto”); todavia, não o faz ("Tenho uma carta para lhe entregar e não lha entreguei, podia tê-lo feito à saída do teatro" ), embora dialogue com o músico, assegurando-lhe que o tornará a ver no seu próximo concerto ("Virei ao concerto de sábado, estarei no mesmo camarote" ). No entanto, isto não se verifica, pelo que o violoncelista, que se apaixonara pela morte, fica destroçado. Já sem esperanças de voltar a vê-la, encontra-a no dia seguinte, sendo que a morte mostra estar apaixonada por ele ("Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca"), pelo que decide queimar a sua carta ( "era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir" ). No dia seguinte ninguém morreu . Na segunda parte da obra, o enredo passa a focarse na representação da morte, neste caso a dos humanos ("nem sequer a este animal te seria permitido tocar porque tu não és a sua morte"). No que toca ao seu aspeto, assemelha-se à habitual representação ocidental da morte: um esqueleto envolto numa túnica negra com capuz que se faz acompanhar de uma gadanha ("somos testemunhas fidedignas de que a morte é um esqueleto embrulhado num lençol, mora numa sala fria em companhia de uma velha e ferrugenta gadanha"; "Envolvida no seu lençol, com o capuz atirado para trás"). No entanto, parece apresentar-se como menos malévola, ideia que é destacada pela sua baixa estatura ( "a morte [...] terá, quando muito, em medidas humanas, um metro e sessenta e seis ou sessenta e sete, e, estando nua, sem um fio de roupa em cima, ainda mais pequena nos parece, quase um esqueletozinho de adolescente" ), pelas suas falas um tanto cómicas ("Que estupidez a minha, murmurou" [...]; "há que atualizar os meios e os sistemas, pôr-se a par das novas tecnologias, por exemplo, utili27


As intermitências da morte

zar o correio eletrónico, tenho ouvido dizer que é o que há de mais higiénico, que não deixa cair borrões nem mancha os dedos, além disso é rápido, no mesmo instante em que a pessoa abre o outlook express da microsoft já está filada" e, por fim, pelas emoções e sentimentos que manifesta (.expressão sonhadora" […}; "surpreende-se um pouco a desejar que a carta outra vez enviada lhe venha novamente devolvida"). No que respeita às atitudes e ao comportamento da morte, estes sofrem diversas alterações ao longo do enredo. A princípio, ao descobrir que uma das suas cartas havia sido devolvida, fica incrédula, visto pensar que o seu poder era incontestável ( "É impossível, disse a morte à gadanha silenciosa, ninguém no mundo ou fora dele teve alguma vez mais poder do que eu, eu sou a morte, o resto é nada"). Após reflexão, fica perturbada com a hipótese de que tal não seja verdade ("Via-se que a pobre morte estava perplexa, desconcertada, que pouco lhe faltava para começar a dar com a cabeça nas paredes de pura aflição"). Posteriormente, fica desolada ("O que temos diante dos olhos mais se assemelha à estátua da desolação do que à figura sinistra que [...] se apresenta aos pés das nossa camas na hora derradeira" ), simultaneamente, zangada ( "A morte está zangada") quando a carta lhe é devolvida novamente. Ao visitar a casa do violoncelista, a morte começa a sentir-se impotente ("esses dois seres vivos que rendidos ao sono te ignoravam só serviram para aumentar na tua consciência o peso do malogro" […]; "vias-te ali impotente, de mãos

e pés atados [...] nunca, desde que és morte, reconhece-o, havias sido a esse ponto humilhada", o que contrasta com a sua ideia inicial de supremacia. Assim sendo, começa também a humanizar-se, demonstrando afeto e sensibilidade ( "Pela primeira vez na vida a morte soube o que era ter um cão no regaço" […]; "e então tiveste um pensamento dos mais bonitos, pensaste que não era justo que a morte, não tu, a outra, viesse um dia apagar o brasido suave daquele macio calor animal […];"quer se queira, quer não, criam laços"). Mais tarde, ao assistir a um concerto do músico, começa a sentir pena dele ("A morte teve pena dele, coitado" (p.196); "No olhar desta outra águia que sempre apanhou as suas vítimas há algo como um ténue véu de piedade [...], talvez preferisse, perante o cordeiro indefeso, abrir num repente as poderosas asas e voar de novo para as alturas" [...], "o véu de piedade que nublava o olhar agudo da águia é agora uma lágrima" pelo que não consegue entregar-lhe a carta. Por fim, apaixona-se por ele, o que a leva a parar de exercer as suas funções e a humanizar-se completamente ("a morte, despida, está sentada diante do espelho. Não sabe quem é." […];"A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras" ). Acredito que, juntamente com o enredo, As intermitências da morte destaca-se graças ao narrador. Este apresenta-se heterodiegético, omnisciente e subjetivo ( "censurável ato" […]; "mas essas merecem a nossa repreensão" ,efetuando comentários que recorrem frequentemente à ironia, de modo a transmitir a ideologia do autor. No entanto, o narrador salienta-se, sobretudo, devido à proximidade que estabelece com o leitor. Esta é conseguida visto o narrador ter consciência de que se encontra a narrar uma história, o que o leva a mencionar o leitor ("relato que até agora havia preferido oferecer ao leitor curioso" […];"o erro, resultante de uma impressão precipitada do narrador" […];"Reconhecemos humildemente que têm faltado explicações [...] confessamos que não estamos em condições de as dar [...] salvo se, abusando da credulidade do leitor" […];"se essa continua a ser a preocupação do leitor" ). Além disso, esta intimidade é também alcançada devido ao facto de se referir- a si mesmo como uma entidade coletiva, usando a primeira pessoa do plural. ("Mudemos de assunto" […]; "apressamo-nos a esclarecer" ) Robim Mestre

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