Jornalsemnome 53

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NÚMERO 53

Pessoa em pessoa

JUNHO de 2019


editorial

No ano letivo 2018/2019, as turmas de Português do 12º ano, da professora Maria Alexandra Cabral, elaboraram, no contexto do estudo da obra de Fernando Pessoa e seus heterónimos, esta edição do jornal. A longo da aprendizagem em questão, os alunos realizaram trabalhos sobre as mais variadas temáticas presentes na mesma, nomeadamente o fingimento artístico, a felicidade e várias comparações de análise de textos, bem como textos relacionados com a temática pessoana como o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. Gostaríamos de agradecer particularmente às alunas Inês Mendes e Raquel Carmo a sua contribuição na elaboração do JornalSemNome. É ainda de referir que foram utilizadas imagens captadas pelas alunas Beatriz Santos e Raquel Carmo, assim como imagens tiradas de produções dos alunos de Artes e de Educação Visual, retiradas de https://www.facebook.com/pg/artesemultimedia/photos/?ref=page_internal.

Colaboradores Ana Rita Piedade Alexandra Cabral Biblioteca Escolar Beatriz Santos Catarina Coelho Danielle Iriart Inês Mendes Lucas Smolders Luís Gonçalo Guilherme Souza Madalena Licciardello Mariana Guerreiro Matilde Ferro Matilde Pinho Matilde Saraiva Miguel Boullosa Raquel Carmo Teresa Filipe Turmas de 8º ano (E.V)

Equipa responsável Alexandra Cabral Ana Paula Rosa Paula Barros

Coordenação Alexandra Cabral

Logotipos André e Joana

jornalsemnome@gmail.com

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Fingimento Artístico

A poética do fingimento

O fingimento artístico na poesia de Pessoa é evidente nas composições poéticas “Autopsicografia” e “Isto”. De facto, é de referir, em primeiro lugar, que o processo de criação de um poeta passa por imaginar através da mente (cérebro), baseando-se em experiências pessoais passadas e nos sentimentos por ele experimentados, devendo haver também, no entanto, algum distanciamento. Assim, como “fingidor”, a partir da lembrança de dores passadas finge uma dor presente que não existe efetivamente. Por outro lado, é de mencionar que a dor do leitor é uma dor lida, já que, na nossa opinião, este interpreta o que está escrito de um modo bastante pessoal, sendo que os sentimentos que experiencia através das palavras do poeta não têm de ser obrigatoriamente iguais aos que o poeta pensou. Deste modo, é de referir a citação “Sentir? Sinta quem lê!”, pois é muito ilustrativa do que foi afirmado anteriormente. Em conclusão, no que toca ao fingimento artístico, a dor divide-se em dor sentida, fingida e lida, sendo que todas são importantes para a interpretação do processo de criação de um poeta, estando ligadas à intelectualização dos sentimentos.

Raquel Carmo e Madalena Licciardello

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Heterónimos

A fragmentação do eu e a heteronímia

No que diz respeito à origem dos heterónimos, Fernando Pessoa revela, na carta a Adolfo Casais Monteiro, que provêm da sua histero-neurastenia, ou seja, da sua tendência para a "despersonalização". Esta sua condição fazia com que Pessoa encarnasse diversas personalidades, tendo assim dificuldade em desassociar-se delas ("Atento ao que sou e vejo/ Torno-me neles e não eu"). No que concerne aos efeitos da sua condição, o poeta era incapaz de viver despreocupadamente, tal como afirma no poema "Não sei quantas almas tenho": "De tanto ser, só tenho alma./ Quem tem alma não tem calma.". Este infortúnio foi também foi destacado na carta: "fazem explosão para dentro". Finalmente, Fernando Pessoa revela que não é capaz de controlar os pensamentos correspondentes a cada heterónimo, tal como afirma quer na composição poética: "Por isso, alheio, vou lendo/ Como páginas, meu ser./ O que segue não prevendo", quer na carta: “instintiva e inconscientemente". Assim, é possível concluir que a principal razão para a existência de heterónimos era a condição mental de Pessoas, que o levava a ter uma tendência para a simulação. Inês Mendes

Tanto a composição poética “Não sei quantas almas tenho”, como a carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro referem-se à mesma temática, a fragmentação do eu. Primeiramente, é de mencionar que, quanto ao poema, o poeta afirma que, por vezes, não se sente ele próprio, nem se reconhece verdadeiramente, não sabendo, portanto, qual é a sua essência ou alma : “De tanto ser, só tenho alma/ Quem tem alma não tem calma”, percorrendo várias personalidades : “Torno-me eles e não eu”. Deste modo, Fernando Pessoa salienta ainda que enquanto lê aquilo que pensa não ter escrito, não se revê nas palavras dos seus heterónimos, refletindo incessantemente se terá sido ele, de facto, a redigir tais textos: “ […] vou lendo/ Como páginas, meu ser./ […]/ Noto à margem do que li/ O que julguei que senti/ Releio e digo, “Fui eu?”” Por outo lado, quanto à carta, é de sublinhar que nesta é explicada a forma como surgiram os heterónimos. De modo a aliviar o histerismo que existia no interior do seu ser, Fernando Pessoa cria identidades que o auxiliam a libertar ideias que de outra forma não conseguiria exprimir: “sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspetos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…”. É ainda de mencionar que esta tendência para a criação de personalidades fictícias já o acompanhava desde muito cedo: “Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram”. Paralelamente, é de salientar que Fernando Pessoa para além de identificar as suas múltiplas personalidades com nomes, como Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, também criava toda uma história de vida para cada uma das pessoas fictícias. Em conclusão, os dois textos analisados retratam de forma extremamente interessante a despersonalização e fragmentação de Fernando Pessoa. Raquel Carmo e Madalena Licciardello

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A Felicidade

A felicidade

A felicidade é vista por Fernando Pessoa e por Manuel António Pina como algo que só é vivido na sua plenitude apenas quando os indivíduos não refletem verdadeiramente sobre o assunto. A nossa opinião coincide, de algum modo, com as perspetivas anteriormente mencionadas. Deste modo, acreditamos que o ser humano é capaz de ser feliz em determinados momentos. No entanto, consideramos que este sentimento não se encontra sempre presente no nosso quotidiano. Isto, porque, por exemplo, por vezes estamos inconscientemente alegres e quando começamos a pensar sobre o nosso estado emocional, acabamos por nos aperceber da existência de aspetos menos positivos à nossa volta, fazendo com que a felicidade se desvaneça. Paralelamente, na nossa perspetiva, o ser humano tende a dar demasiada importância aos aspetos negativos da vida, deixando que estes se sobreponham aos positivos nas mais variadas situações, impedindo-nos de sermos genuinamente felizes. Em conclusão, a existência de felicidade é possível, na nossa opinião, tal como na dos autores, mas não podemos perguntar a nós mesmos constantemente se somos, de facto, felizes. Raquel Carmo e Madalena Licciardello

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Visita de Pessoa

Sessão “Pessoa em Pessoa” No dia 16 do mês de novembro de 2018, sexta-feira, dirigimo-nos ao Auditório José Saramago para presenciar uma representação teatral de José Nobre sobre a vida e obra de Fernando Pessoa, “Pessoa em Pessoa”. Em primeiro lugar, é de referir que a caracterização da personagem estava bastante realista e representativa daquilo que conhecemos como tendo sido a figura emblemática do artista português, como é o caso do fato negro, o seu típico chapéu e óculos, o bigode, bem como os hábitos de boémio. Paralelamente, do meu ponto de vista, o ator conseguiu captar a atenção do público, não só com recurso à sua voz potente, que foi projetada de uma forma muito acertada, como também através do uso do cómico em várias situações. É de salientar que foi extremamente interessante a sua interação com a audiência, nomeadamente na situação em que chamou uma aluna a ler um dos poemas com ele, assim como o facto de ter proposto ao auditório várias questões sobre a figura que estava a representar, de modo a suscitar reações e respostas. Ainda é de acrescentar que considero que as leituras, sob a forma de declamação de poesia, de variadas composições poéticas permitiram que adquiríssemos uma nova perspetiva sobre as mesmas. De facto, a representação foi muito enriquecedora, pois permitiu-nos conhecer de forma mais profunda a vida de Fernando Pessoa, relacionada não só com a parte profissional, com os seus estudos, como também com a história da sua família e o seu crescimento, enquanto indivíduo, que permitiu que se tornasse o poeta e escritor que estudamos e respeitamos. Assim, para concluir, é de sublinhar que o balanço da ida a esta representação foi excelente, porque proporcionou aos alunos uma interação com o ator, fora do contexto de sala de aula, levando a que vivenciassem o espírito da vida de Fernando Pessoa, interiorizando e consolidando eficazmente os conteúdos da matéria. Raquel Carmo

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Visita de Pessoa

O ator José Nobre encarnou Fernando Pessoa e veio à Escola Secundária du Bocage declamar poemas aos alunos do 12ºano. A sessão decorreu no auditório José Saramago, pelas 11h 35m. Após a sua entrada, o ator começou por falar um pouco sobre a vida do poeta, abordando temas como o seu percurso académico e acontecimentos marcantes na sua infância. Com um ligeiro traço humorístico, José Nobre conseguiu estabelecer uma ligação entre as vivências de Pessoa e a atualidade, cativando a audiência. Vestido a rigor, as parecenças entre os dois eram evidentes, desde o chapéu, passando pelos óculos, até ao fato. A sua postura foi igualmente adequada, pelo facto de nunca ter saído da personagem. Relativamente à escolha dos poemas, julgamos ter sido bastante completa, na medida em que nos fez refletir um pouco sobre cada heterónimo. Na generalidade, consideramos ter sido uma experiência enriquecedora, na qual foi visível o excelente trabalho e mérito do ator. Matilde Ferro e Matilde Pinho

Gostámos desta sessão de declamação dos poemas de Fernando Pessoa. Ficámos surpreendidos ao ver um fantasma, mas mais ainda pela beleza dos seus poemas. Foi uma ideia muito interessante, para mais aprendermos sobre a poesia de Pessoa. O ator encarnou muito bem a personagem e fez um bom trabalho. Assim que entrou na sala, pensamos que era Pessoa em “pessoa”, pois tinha uma roupa muito semelhante, uma voz deslumbrante e bem projetada. Conseguiu captar de imediato a atenção do público e interagiu de uma maneira muito interessante. Falou sobre a sua vida de poeta e dos diferentes poetas dentro de si. Falou-nos da sua vida amorosa e até chamou uma pessoa do público para representar a “Margarida” de um poema. Para além deste poema, apresentou-nos outras das suas obras, e dos seus heterónimos. Guilherme Souza e Lucas Smolders

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Poema Aniversário

“Aniversário” e a nostalgia da infância.

Na composição poética “Aniversário”, Álvaro de Campos apresenta-nos a temática da nostalgia da infância. O poema encontra-se dividido em duas partes distintas. A primeira, constituída pelas três estrofes iniciais, diz respeito às memórias de infância do sujeito poético (“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos”). Na segunda e última parte, destaca-se a melancolia do “eu” lírico no contexto da vida adulta (“O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa”). Podemos caracterizar a sua infância como tendo sido feliz, recheada de momentos agradáveis (“E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer”). Paralelamente, já na idade adulta, o seu panorama alterou-se, tendo-se tornado um homem deprimido e sem esperanças no seu futuro (“É terem morrido todos, / É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio”). Revela, também, um forte desejo de voltar a reviver os bons momentos passados (“Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez”). Devido ao profundo transtorno experienciado pelo sujeito poético, este recorda com dor os momentos passados na companhia dos seus familiares, sentindo a falta da inconsciência da efemeridade dos mesmos (“Eu tinha grande saúde de não perceber coisa nenhuma, / De ser inteligente para entre a família”). Paralelamente, é possível associar a “raiva” sentida pelo sujeito de enunciação à impossibilidade de voltar atrás no tempo e reviver os tempos em que se sentir feliz e realizado (“Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira”). Finalmente, no que concerne ao ritmo do poema, podemos sublinhar que este é marcado pelas anáforas “O que fui” e “O que sou hoje”, bem como pelas exclamações e reticências, juntamente com o contraste entre os versos mais longos e os mais curtos. Adicionalmente, é ainda de salientar o discurso parentético “Nem o acho...” e “e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas”. Inês Mendes e Matilde Saraiva

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Poema Aniversário

No poema “Aniversário”, de Álvaro de Campos, podemos observar a referência a dois tempos distintos da vida do sujeito poético e à sua influência no modo de sentir do mesmo. Por um lado, existe um reviver do passado, com uma certa nostalgia, na medida em que é o dia do seu aniversário e este recorda-se pormenorizadamente de como era anos antes (“ No tempo em que festejavam o dia dos meus anos/ Eu era feliz”). Por outro lado, este, já na idade adulta, vive de uma maneira completamente diferente, pois, com o passar dos anos, muito mudou. De facto, o eu lírico sente-se extremamente nostálgico, sendo de referir que se vê muito triste relativamente ao presente, dado que, no momento em que o poema fora escrito, ele sentia-se só. Os seus amigos e família tinham morrido (“Eu era feliz e ninguém estava morto”). A nostalgia reflete-se, por exemplo, no verso “Desejo físico da alma de se encontrar ali”, uma vez que foi tão feliz no período da sua infância, que só queria voltar a esses tempos. Paralelamente, também é mencionada na composição poética uma relação de oposição entre os dois tempos, na medida em que, enquanto criança, o “eu” era espontâneo e inocente, não pensando, nem tendo consciência real do que lhe acontecia, vivendo apenas o momento com intensidade (“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos/ Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma”). Por outro lado, no presente este pensa demasiado, tornando-se verdadeiramente sentimental quando revive o passado (“Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças/ Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida”). Deste modo, o sujeito poético pretende parar de refletir, para que consiga deixar de sofrer com as emoções (“Para, meu coração!/ Não penses!/ Deixa o pensar na cabeça!”). É ainda de referir que o eu lírico, face à incapacidade de volver ao passado ou trazê-lo para o presente, sente-se com raiva, angústia e frustração (“raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira…”). No que concerne às marcas linguísticas que dão determinado ritmo ao poema, é de sublinhar a existência de reticências, frases curtas ou longas, pontos de exclamação variados (“Para, meu coração!”), texto parentético, bem como de aliterações (“fósforo frio”) e anáforas (“O que fui” ou “O que eu sou hoje”). É de salientar que, por exemplo, o ritmo acelerado está presente nos momentos mais intensos e que transmitem mais emoções. Em conclusão, a relação entre passado – presente, refletem-se na desilusão e tédio de viver sentidos pelo eu lírico. Madalena e Raquel 9


AMRR: Capítulo VI

O ano da morte de Ricardo Reis — capítulo VI O presente trabalho foi realizado no âmbito da disciplina de Português e incide no estudo da obra O ano da morte de Ricardo Reis. O estado de espírito de Reis é um misto de ansiedade, inquietação, apreensão e perplexidade enquanto caminha pelas ruas tortuosas, difíceis de Lisboa, piores agora de percorrer devido ao seu mau tempo que se faz sentir, exemplo: “[…] outra vez o vento, agora soprando de frente, será ele que não deixa andar, serão os pés que se recusam ao caminho […] ”. Existe ainda um paralelismo entre o estado meteorológico e o estado de espírito de Ricardo Reis, de inquietação, que se pode observar através do vento, sem saber o que o aguarda: “[…] é Ricardo Reis que vai à polícia, de alma inquieta, a segurar o chapéu para que o tufão lho não leve, se vier a chover na proporção do que sopra, Deus nos acuda.” Por um lado, Reis encontra-se receoso, visto que não sabe o que o espera num lugar como o da Polícia (PVDE), por outro aliviado por ter chegado ao seu destino e por ir descobrir o que o espera. É ainda de salientar que este também se apresenta desamparado, na medida em que está sem qualquer tipo de apoio, tendo simplesmente o contrafé que é comparado a uma candeia visto que é a contrafé que o guia até àquele local: “leva a contrafé como uma candeia que vai adiante […] sem ela não saberia aonde encaminhar-se […] ” Relativamente às metáforas de risco podemos destacar: “[…] o céu abre-se em cataratas, […] ” - indiretamente significa que a chuva excessiva, o mau tempo que se faz sentir por Lisboa de forma contínua é símbolo da opressão, da perseguição, da falta de liberdade exercida na época salazarista. “[…] que uma andorinha, passando transviada, não fez a primavera […] ” pode significar o facto de que qualquer tentativa de rebelião, de mudança é, de certa forma abafado e sufocado pelo regime opressor, travando assim uma eventual luta pela liberdade. Ricardo Reis verificou que o ambiente na PVDE, enquanto esperava pelo interrogatório, se mostrava ser de grande movimentação: “[…] abriam-se e fechavam-se portas, ouviam-se campainhas de telefones […] ”. Por outro lado, o ambiente caracterizava-se por ser intimidador na perspetiva de Ricardo Reis: “[…] Isto é feito assim para me intimidarem, pensou.” Ricardo Reis ao longo do tempo em que se encontra nos estabelecimentos da polícia política (PVDE), encontrava-se bastante nervoso “[…] sentia um aperto no estômago […] ”, devido ao facto de não saber a razão pela qual teria

sido convocado: “[…] eu gostava que me dissessem porque razão fui aqui chamado, que razões há para me chamarem à polícia […] .” Para além disso, este mostrava-se deveras impaciente: “Levou a mão ao colete para tirar o relógio e ver as horas, quanto tempo já esperava, mas deixou o gesto em meio, não queria que o vissem impaciente” Ricardo Reis é convocado por um membro da PVDE: “ […] é Ricardo Reis que vai à polícia […] ”. Reis mostra inquietação, interrogação e desconfiança, sendo que acabara se de ser chamado para comparecer à polícia: “[…] de alma inquieta […] ”. É ainda de mencionar que, o ambiente no espaço da PVDE se mostrava constrangedor, sufocante, opressor, intimidativo e inseguro. Reis sente ainda pressão pela obrigatoriedade em responder, incomodado pelo ambiente opressor circundante e perplexo à devassa da sua vida pessoal. Contudo, ao reparar que não era o único que tivera sido intimado sentiu um breve alívio: “Está Ricardo Reis sentado num banco corrido, disseram-lhe que esperasse, agora desamparado porque lhe levaram a contrafé, há outras pessoas por ali, fosse isto um consultório médico […] ”. As eventuais causas da convocação de Reis encontram-se entre o facto de se ter tornado suspeito aos olhos da PVDE, por voltar do Brasil dezasseis anos depois da sua partida; o estar hospedado há já dois meses num hotel e não trabalhar; viver sozinho sem amigos, família ou contactos que se lhe conheçam; deambular pelas ruas de Lisboa sempre solitário; o ter regressado a Portugal logo a seguir à intentona revolucionária do Brasil ( dando a ideia de que foge a algo); ter talvez amigos “inimigos do regime” e sobretudo, poder. Reis terá sido requisitado por uma suspeita de oposição ao regime, assim foi questionado relativamente às suas amizades no Brasil: “[…] conheceu muita gente no Rio de Janeiro […] Que amigos […] ”. Deste modo, Reis afirma não ter obrigação de responder a tais perguntas de cariz tão pessoal, reivindicando a assistência de um advogado: “[…] As suas perguntas dirigem-se à minha vida particular, não tenho obrigação de responder-lhes, ou então exijo a presença do meu advogado […] ”. É neste enquadramento que o polícia contesta a exigência de Ricardo Reis, precisando a proibição da presença de qualquer tipo de defesa neste contexto (característica da PVDE): “ […] Os advogados não entram nesta casa […] ”. 10


AMRR: Capítulo VI

No regresso ao hotel, Salvador tenta perceber como decorreu o interrogatório: “Foi à receção buscar a chave, Ih, como o senhor doutor vem, disse o gerente, mas o tom era dubitante, por baixo do que dissera apontava o que pensava.” Sabê-lo-á por um conhecido que trabalha para a PVDE, o Victor, já que Ricardo Reis nada dirá, subindo para o quarto depois do almoço, para escrever a Marcenda: “Salvador […] sorriu ao hóspede de longe, sorriso diplomático, o que ele quer é saber o que se passou na polícia.” (pg. 225) Há uma mudança de comportamento relativamente a Reis pois é visto como suspeito: “Para Salvador ainda tenho mau cheiro” (224); “Na sala de jantar, o maître Afonso […] acompanhou-o à mesa arredando-se meio passo mais que o costume […] ” (pg. 224) “[…] e logo se apartava para atender outros hóspedes menos tinhosos […] ”. Relativamente a Lídia, esta fica preocupada quando Ricardo Reis recebe a contrafé, e de certa forma demonstra alguma curiosidade relativamente ao motivo de o terem chamado: “Mas por que foi que o obrigaram lá ir, […] ” (pg. 224) e como decorreu o interrogatório: “Então, como foi que se passou, fizeram-lhe mal” (pg. 224). Assim, podemos constatar que, a partir do momento em que Reis recebe a contrafé, nota-se por parte da criadagem um certo retraimento, desconfiança e cortesia forçada para com o hóspede. Espanha - eleições de 1936: “[…] eleições que em Espanha houve […] ”. Estas deram o triunfo à coligação de esquerda, ou seja, a Frente Popular espanhola, que era constituída por partidos republicanos de esquerda, socialistas e comunistas: “ […] propaganda comunista, anarquia e sindicalista, que por toda a parte se vem fazendo junto das classes operárias […] ”. Este acontecimento desencadeou um golpe de estado, na medida em que a população espanhola sentia-se insatisfeita relativamente à opção política do país. Mais tarde, deu-se a Guerra Civil espanhola consequente das eleições e do golpe de estado referidos anteriormente. Esta guerra (1936-39) desencadeou-se entre os republicanos (leais à II República espanhola), aliados aos anarquistas e comunistas e entre os nacionalistas, conservadores, liderados pelo general Francisco Franco, sendo que estes últimos venceram e o regime implantado em Espanha, tal como em Portugal, passou a ser ditatorial. Neste contexto, Portugal acompanhava parte dos acontecimentos do país vizinho através dos relatos de emigrantes espanhóis e, também, dos próprios jornais da época (submetidos à censura salazarista, não mostravam a realidade concreta): “[…] o que vai sabendo da situação de Espanha é o que ali se ouve, de mesa para mesa, ou o que dizem os jornais […] ”. Primeiramente, é de referir que os meandros da polícia e as suas relações de cumplicidade são como tentáculos que se expandem em todas as direções do país para apurar de forma secreta quem está contra o regime. Assim, o alcance da polícia política era amplo, na medida em que existia uma troca de informação entre os hóspedes do hotel e os constituintes da PVDE, nomeadamente o caso de Salvador e Vítor, sendo que ambos passavam informação entre si: “[…] Salvador retira-se, confortado, numa grande paz de espírito, logo ou amanhã lhe dirá o doutor Ricardo Reis que sucessos foram os da Rua António Maria Cardoso, e, se não disser, ou lhe parecer que não disse tudo, não faltarão outras vias para chegar à boa fonte, um seu conhecido trabalha lá, o Victor. Então, se forem tranquilizadoras as notícias, se tiver isento de culpas ou limpo de suspeitas Ricardo Reis, voltarão os dias felizes, […]”. Ricardo Reis manifesta inquietação ao escrever a carta a Marcenda; no entanto, procura esconder essa agitação: “ […] um homem rodeado de escuros e altos móveis escreve uma carta, compondo e adequando o seu relato para que o absurdo consiga parecer lógico, a incoerência retidão perfeita, a fraqueza força, a humilhação dignidade, o temor desassombro, que tanto vale o que fomos como o que desejaríamos ter sido […] .” É ainda de mencionar o estado hesitante de Reis, relativamente a como se deveria dirigir a Marcenda, visto à sua relação platónica com a mesma: “ Hesitou muito Ricardo Reis sobre o vocativo que devia empregar, uma carta, afinal, é um ato melindrosíssimo, a fórmula escrita não admite médios termos, distância ou proximidade afetivas tendem para uma determinação radical […] . ” 11


AMRR: Capítulo VI

O ambiente do hotel, a partir do momento em que Reis recebe o contrafé, passa a ser constrangedor e pesado devido ao facto deste ser automaticamente considerado suspeito. Ricardos Reis pretende “[…] oferecer a Salvador a oportunidade porque ele ansiava”, na medida em que, este preferia contar o sucedido no “interrogatório” do que ser difamado pelos membros do hotel: “[…] cedo ou tarde teria de falarse neste assunto, então mais vele que seja eu a decidir quando e como […] ”. Segundo este, o encontro foi pacífico e tranquilo: “[…] correu tudo muito bem, foram muito amáveis”, o que na prática, embora não tenha sucedido nada de extraordinário, não correspondia à realidade, visto que tinham colocado perguntas muito específicas e pessoais. Salvador acreditou nas palavras de Reis, no entanto o gerente iria inquirir Victor para se certificar do mesmo: “[…] amanhã irá tirar-se de cuidados e perguntará ao seu amigo Victor, ou conhecido, Compreende, ó Victor, eu preciso de saber quem tenho no hotel”.

não possua qualquer tipo de futuro: “[…] bastame o que tenho agora, estar aqui deitada, sem nenhum futuro.” É importante salientar que, as notícias que Ricardo Reis lê diariamente colocam-nos ocorrentes do que se passa a nível nacional e mundial. Assim, em relação a Portugal pretende-se divulgar a imagem de um país em paz, em que a população contente. Contrariamente à Europa e ao mundo no geral que se encontra devastado e caótico, visto estar a decorrer a Guerra civil espanhola e a “intentona revolucionária”. Surgem ainda informações sobre a supremacia alemã: “[…] por estes dias […] a Alemanha […] ocupou a zona renana, tanto ameaçou que o fez, (...)” e “(...) por estes dias discursou Churchill para proclamar que a Alemanha é já hoje a única nação europeia que não receia a guerra, […] ” e também sobre a declaração ilegal do partido fascista espanhol: “[…] por estes dias foi declarado ilegal o partido fascista Falange Espanha […] ”. Ricardo Reis decide arranjar casa devido ao facto de a sua imagem no Hotel já não ser a melhor, na medida em que as pessoas consideravam suspeito o facto deste que este estar a viver no mesmo local durante uma grande quantidade de meses. Desta forma, RR considerava que o ambiente do Hotel já não se mostrava agradável: “[…] tornou-se-lhe irrespirável a atmosfera do Hotel Bragança […] ”. A decisão da escolha da casa encontrada por Reis no anúncio do jornal situa-se no Alto de Santa Catarina: “ […] passo adiante às páginas dos anúncios […] alugam-se casas […] de repente paro, casa mobilada, Rua de Santa Catarina […] ”. Desta forma, podemos deduzir que Ricardo Reis tenha escolhido a casa devido à sua localização em Lisboa, na medida em que este não queria sair da cidade: “ Ricardo Reis aproximou-se duma janela […] viu as palmeiras do largo, o Adamastor […] ”. No entanto, a principal razão da escolha da casa prende-se com a lembrança de Marcenda, visto que Reis se encontrava com ela perto da casa que agora pretendia: “[…] o segundo andar com escritos, naquela tarde em que me encontrei com Marcenda, como foi que se me varreu da memória […] ”. Assim, o local e a casa ganham um significado especial para Ricardo Reis.

Ricardo Reis descobre que a sua relação com Lídia está a causar tumulto no hotel, e, consequentemente, decide sair do mesmo: “Deixa lá, saindo eu do hotel acabam-se logo os mexericos […] ”. Porém, Lídia acaba por ouvir a conversa e fica surpreendida por Reis não a informar da sua decisão: “Vai-se embora, não me tinha dito […] ”, ficando triste perante a possibilidade de nunca mais tornar a ver Ricardo Reis (“ Nunca mais o tornarei a ver (…) descansava a cabeça no ombro de Ricardo Reis, deixou cair uma lágrima […] ”). Para além disso, Reis decide que irá arranjar uma casa ( “[…] Arranjo casa, hei de encontrar alguma que me sirva (…)”). Ao longo da conversa, Lídia demonstra a sua falta de esperanças relativamente ao futuro da sua relação com Ricardo Reis: “[…] Não respondeu ao que perguntei, Que foi, Se quer que eu vá ter consigo quando tiver a sua casa, nos meus dias de saída, Tu queres, Quero, Então irás, até que, Até que arranje alguém da sua educação […] . Quando tal tiver de ser, diga-me assim Lídia não volte mais a minha casa, e eu não volto […] ”. No entanto, Lídia continua a demonstrar-se interessada em perdurar a relação que mantém com Ricardo Reis, mesmo que esta 12


AMRR: Capítulo VI

No que concerne aos recursos estilísticos, é de referir que estes apresentam um papel extremamente importante na construção do romance, dado que incidem numa sociedade de ditadura, realçando o ambiente miserável e pobre. Adicione-se, ainda a atmosfera de opressão, representadas através da chuva e do “céu descoberto”. Assim, pode verificar-se a existência da metáfora: “[…] chove lá, no vasto mundo” (página 226). Esta está relacionada com as ditaduras que emergiram na Europa, desta forma, a chuva representa uma cidade cinzenta e triste. Ainda, a condizer com o ambiente de suspeição e desconfiança do Estado Novo, a cidade é mesquinha, coscuvilheira, intrometendo-se na vida dos outros. Para além disso, encontrase: " apanhou-o de boa maré", justificando o bom humor do agente que interrogara Reis. Paralelamente, acrescenta-se a presença da ironia, consistindo em declarar o oposto do que na realidade se pensa ou escreve. Num discurso irónico, o leitor abandona o plano referencial, concreto para entrar num, outro plano de sentido.:" querem saber se estamos bem, se nos falta alguma coisa", no qual, Ricardo Reis, justifica a sua ida à PVDE a Lídia. Deste modo, a polícia pretende saber se a pessoa a ser interrogada é a favor ou contra o Estado Novo. Em suma, a realização deste trabalho proporcionou-nos uma melhor perceção da obra e também do próprio estilo de escrita saramaguiana assim como da época retratada. No entanto, sentimos dificuldades, nomeadamente na análise de alguns tópicos. Ana Rita Piedade Catarina Coelho Madalena Licciardello

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AMRR: Capítulo VII

O ano da morte de Ricardo Reis — capítulo VII O sétimo capítulo de O ano da morte de Ricardo Reis aborda múltiplas temáticas: o contexto nacional e internacional da época, a relação entre Lídia e Reis, a relação com Fernando Pessoa e o carnaval português. Logo no início do capítulo, é feita uma referência ao livro A Conspiração, cuja leitura fora aconselhada pelo Doutor Sampaio a Ricardo Reis. A presente composição literária articula-se com o Estado Novo, uma vez que mostra como qualquer ato que colocasse em causa o Governo era automaticamente reprimido, levando mesmo ao encarceramento. No livro faz-se inclusivamente referência à prisão do Aljube (“foi preso, trancado no Aljube” – página 161). A abordagem da obra é acompanhada por uma forte ironia e hiperbolização, como se verifica nos seguintes excertos: “vai ser a supradita filha de senador quem, por puras razões patrióticas, por missionação abnegada, moverá céus e terra para de lá o tirar” (pág. 161); “três vezes papá numa frase tão curta, a que extremos chegam na vida os afetuosos laços” (pág. 161) e “Generosa, benevolente polícia esta de Portugal que não se importa, pudera não, está a par de tudo” (pág. 162). A primeira citação utiliza um tom irónico, dado que as razões da ação da filha do senador não seriam puramente patrióticas, bem como de uma hipérbole em “moverá céus e terra”, que corresponde a um exagero da realidade. Já a terceira citação apresenta igualmente a ironia e a hiperbolização, uma vez que a polícia do regime ditatorial português é precisamente o oposto de “benevolente”. Ambas as figuras de estilo encontram-se estreitamente interligadas, na medida em que o narrador, que relata os acontecimentos pelos olhos de Ricardo Reis, exagera na sua forma com vista à sua ridicularização. Após acabar de ler o livro, Reis demonstra um profundo desagrado pelo que acabara de ler, uma vez que a obra mostra a possibilidade de um homem, que conspirara e fora preso, se converter e subjugar à tirania do regime (“Que estupidez, com tal exclamação se paga do doutor Sampaio, ausente, por um momento aborrece o mundo inteiro […], o livro atirado para o chão” – pág. 164). No que concerne ao contexto internacional, submerso num clima pesado (“Europa caótica e colérica” – pág. 164), vários países europeus são alvo de análise. No caso de França, verificava-se a constituição de um governo republicano, ha14

vendo uma forte oposição de direita (“agora constituiu Sarraut em França um governo de concentração republicana e logo lhe caíram as direitas em cima com a sua razão delas” – pág. 164), enquanto na Alemanha, com recurso à ironia, Reis mostra um quadro político subjugado às ideias de Hitler: “O que vale é haver ainda vozes neste continente, e poderosas elas são, que se erguem para pronunciar palavras de pacificação e concórdia, falamos de Hitler […]” (pág. 165). De facto, apesar deste ditador apregoar, nos seus discursos, a paz, na realidade acaba por fazer o oposto, mandando tropas alemãs invadirem países independentes, pondo, assim, em perigo a paz mundial (“Saiba o mundo que a Alemanha será pacífica e amará a paz, como jamais povo algum soube amá-la. É certo que duzentos e cinquenta mil soldados alemães estão prontos a ocupar a Renânia e que uma força militar alemã penetrou há poucos dias em território Checoslovaco”). Sublinha-se também a referência ao regime fascista italiano, criticado através da utilização da ironia por parte do narrador, nomeadamente no que toca à situação de o Papa ter considerado Mussolini o “maior restaurador cultural do império romano” (pág. 180). Ricardo Reis menciona ainda a tentativa de colonização da Etiópia, através do uso do sarcasmo, referindo-se à religião de forma crítica, e relacionando, igualmente, o império romano com a situação italiana desta época: “ainda agora andam as tropas italianas a fuzilar e a bombardear a Etiópia, e já o servo de Deus profetiza império e imperador, ave-césar, avemaria” (pág.181). A temática do Quinto Império é também abordada no capítulo, na sequência da questão colonial. Reis considera que, se perguntasse a Pessoa a sua opinião em relação à conquista de um Império imaterial por parte de Portugal, isto é, se conseguiria alcançar o Quinto Império, provavelmente não teria a mesma perspetiva que manifestara em Mensagem. De facto, Reis acredita que Pessoa não possui uma opinião estável e duradoura, pois varia muito consoante o seu estado de espírito (“que Quinto Império será então esse, embrulhados, enganados, quem nos irá reconhecer como imperadores, se estamos feitos […] hoje defendo uma coisa, amanhã outra, não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei” – pág. 166).


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Ainda sobre este tema, Reis problematiza a questão da necessidade, ou não, da posse de colónias para a construção do Quinto Império, enquanto algo meramente espiritual. Todavia, este problema levanta uma contradição, na medida em que, apesar de não precisarmos de colónias, a sua posse é importante para nos afirmarmos perante o mundo (“a contradição, que é sua, de não precisar Portugal de colónias para aquele imperial destino, mas de sem elas se diminuir perante si mesmo e ante o mundo, material como moralmente”- pág.166). Paralelamente, no que diz respeito à relação entre Portugal e Inglaterra, é apresentada a questão do mapa cor-de-rosa, devido ao qual tivemos de perder a ambição de conquistar colónias entre Angola e Moçambique, sob ameaça inglesa (“[…] e aparece agora aquele a protestar que temos colónias a mais, quando na verdade as temos a menos, haja em vista o mapa cor-derosa, tivesse ele vingado, como era de justiça, e hoje ninguém nos poria o pé adiante, de Angola à Contracosta tudo seria caminho chão e bandeira portuguesa.” – pág. 165). Passando para o panorama espanhol, verificava-se, inicialmente, uma condição política instável, devido às eleições (“Em terra de nuestros hermanos é que a vida está fusca, a família muito dividida, se ganha Gil Robles as eleições, se ganha Largo Caballero, e a Falange já fez saber que fará frente, nas ruas, à ditadura vermelha” – pág. 164). Posteriormente, é mencionada a vitória da esquerda e a possível tentativa de um golpe militar de direita (“[…] ganhou a esquerda […]. Começaram a correr boatos de estar em preparação um golpe militar, em que estariam envolvidos os generais Goded e Franco”). Relativamente aos imigrantes espanhóis, verificava-se que estes tinham posses económicas, ostentando-as através das suas vestes e joias (“Que era gente de dinheiro viu-se ao jantar, pelo modo como vestiam, pelas joias que mostravam” – pág. 178). Estes foram inclusive criticados por Ramón, criado do hotel, que afirma que o facto de trazerem as jóias consigo para a sala de jantar se devia ao receio de serem roubados: “Escusavam bem de trazer tanta joia para a sala de jantar, ninguém lá lhas iria roubar aos quartos, este hotel é uma casa séria, ora ainda bem que Ramón declara” (pág. 179). “Los rojos” e “los gallegos” estão relacionados, na medida em que ambos os grupos eram alvos de ódio e desprezo por parte dos imigrantes de direita hospedados no Hotel Bragança. Os primeiros por serem comunistas e os segundos,

criados, por pertencerem a uma classe social inferior. De facto, consideramos que é estabelecida uma clara analogia entre os dois, dado que no capítulo ambos são destratados e muito desvalorizados, através da forma como são mencionados pelos refugiados espanhóis. Em relação aos acontecimentos nacionais, sublinhe-se as más condições meteorológicas (“mau tempo […], inundações que são as piores desde há quarenta anos” – pág. 180), e a receção de refugiados espanhóis, devido à vitória da coligação de esquerda em Espanha (“Foi já relatado que estão entrando a flux os refugiados espanhóis” – pág. 180). Nesta altura, começa-se a pensar na possível construção de uma “ponte sobre o Tejo”, tendo também sido emitido o decreto que regularia “o uso dos automóveis do Estado para representação e serviço oficial, ou o bodo a trabalhadores do Douro”, assim como a “criação duma sopa dos pobres em cada freguesia”. De facto, parece considerar-se que Salazar preocupava-se mais em deixar o seu legado na história do país, do que em tentar garantir melhores condições de vida à população portuguesa, visto que este não parecia querer mudar o clima de repressão em que se vivia, nem garantir as liberdades individuais. Neste capítulo, é ainda feita alusão à relação, predominantemente carnal, entre Ricardo Reis e Lídia, sendo que, apesar de esta nutrir verdadeiramente sentimentos amorosos por ele, tal não é correspondido. Assim, são mencionados os ciúmes de Lídia em relação a Marcenda, dado o seu claro estatuto social superior e o contacto que mantinha com o poeta (“Não podia durar muito o ciumento enfado de Lídia, se Ricardo Reis lhe não dera outras razões que estar falando, de portas abertas, com Marcenda, ainda que em voz baixa” – pág. 168). Efetivamente, Ricardo Reis tinha conversas íntimas e profundas com a jovem de Coimbra, enquanto que com Lídia não comunicava da mesma forma, tratando-a apenas como uma criada e usando-a como se de um objeto se tratasse (“primeiro lhe disseram, calmamente, que não precisavam de mais nada, depois esperaram calados que ela (Lídia) se retirasse com as chávenas do café […] nessa noite já ela desceu, mas nem um nem outro falaram das razões deste afastamento de alguns dias, não faltaria mais nada, ousar ela e condescender ele, Tive ciúmes, Ó filha que ideia a tua, nunca seria uma conversa de iguais” – pág. 169).

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Deste modo, Reis mostra ser uma personagem com uma evolução negativa, sendo o seu preconceito cada vez mais notório relativamente às diferenças entre classes sociais. De certa forma, é uma representação do homem do século XX, pois à época havia homens de classe alta que seduziam as criadas, vendo-as na maior parte dos casos como seres inferiores. Apesar de demonstrar interesse em manter uma “relação” com Lídia, Reis destrata-a, tendo, sobretudo, receio de que o caso se descobrisse, e que tal prejudicasse a sua reputação, já que esta era apenas uma criada e ele um médico e hóspede do Hotel. Tal facto é evidenciado através da seguinte citação, que demonstra os possíveis pensamentos de Reis: “tendo na consciência aquele conhecido peso, logo pensou, Descobriu-se tudo. No fundo é um romântico, julga que no dia em que se souber a sua aventura com Lídia virá abaixo o Hotel Bragança com o escândalo, é neste medo que vive” (pág. 176). Note-se, porém, que, segundo o narrador, Ricardo Reis parece, de facto, ter “um mórbido desejo” de que tal aconteça, já que ao menor sinal de tensão, considera automaticamente que o seu caso com Lídia pode ter sido descoberto. Na realidade, consideramos que o facto de achar que o desvendar do seu caso amoroso seria um autêntico drama e escândalo não deixa de ser um exagero da parte da personagem. Neste capítulo, é possível verificar também a grande importância dada ao carnaval português, que, apesar do mau tempo, era uma festividade vivida por todos com grande entusiasmo e euforia. Durante o mesmo, Reis caracteriza a forma como as pessoas se vestiam e comportavam, designadamente a situação dos rapazes que se aproveitavam das raparigas ("está esta rapariga a olhar o desfile e vem por trás dela um rapaz com uma mão cheia de papelinhos, aperta-lhos contra a boca, esfrega freneticamente e vai aproveitando a surpresa para apalpar onde pode" - pág. 182), bem como o homem mascarado de bebé que bebia vinho de um biberão ("Num carrinho, como de bebé, era levado, com as pernas de fora, um marmanjão de cara pintada, touca na cabeça, babeiro ao pescoço, fingindo chorar […] até que o monstrunço que fazia de ama lhe chegava à boca um biberão de vinho tinto" - pág. 183). A par de tudo isto, o que é mais importante salientar é o momento em que Reis avista um homem que aparentava ser Fernando Pessoa mascarado de morte ("Era uma figura vestida de preto, com um tecido que se cingia ao corpo, talvez malha, e sobre o negro da veste o tratado completo dos ossos […], o homem tinha a altura, a compleição física de Fernando Pessoa" - pág. 186), sendo que o anterior o persegue. Contudo, não chegamos a ter a certeza acerca da sua identidade ("Não senhor, de longe julguei que era um amigo meu, mas pela voz já vi que não é, E quem é que te diz que não estou a fingir […] e o mascarado respondeu com uma voz que parecia a de Fernando Pessoa, Vai bardamerda" - pág. 188). No presente capítulo pode-se também verificar uma marca de intertextualidade, algo que percorre toda a obra através de inúmeras referências literárias, mais concretamente com o poeta Álvaro de Campos. Tal pode ser verificado através da referência a um pequeno excerto da “Ode Marítima” (“Ah, todo o cais é uma saudade de pedra”- pág. 175), que ocorre durante um diálogo entre Reis e Fernando Pessoa em relação ao tema do amor. Este pequeno excerto remete-nos para o tema do “cais”, do porto de abrigo que todos nós temos, e que normalmente corresponde ao sítio ao qual pertencemos e em que nos sentimos bem, o que faz com que sintamos por ele uma profunda saudade, forte e dura como uma pedra e que resiste a todas as adversidades. É nesta sequência que Pessoa diz a Reis para ir para os braços de Lídia, e que neles se console. Trata-se de algo de que todos os seres humanos precisam, até para não se sentirem sozinhos, mas que o próprio Pessoa não teve, pois em vida não se dedicou e entregou ao amor como necessário (“console-se nos braços de Lídia, se ainda dura esse amor, olhe que eu nem isso tive”- pág.175). Quanto aos recursos estilísticos mais significativos, é de frisar a utilização da ironia presente ao longo de todo o capítulo, sendo que já referimos vários exemplos anteriormente. Tomemos ainda como outra ilustração a seguinte citação, que diz respeito a uma antítese com tom irónico: "o tal que um quarto de hora antes de morrer estava vivo, isto diriam os humoristas expeditos, que nunca pararam um minuto para pensar na tristeza que é já não estar vivo um quarto de hora depois" (pág. 160). Aqui está presente o contraste entre viver e morrer, sendo evidenciado o carácter patético da afirmação, já que é óbvio que quinze minutos antes de morrermos estamos vivos. 16


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Temos ainda a antítese no seguinte excerto, que corresponde a um possível pensamento contraditório que Fernando Pessoa teria: "uma escuridão no lugar da penumbra, um não no lugar de um sim […] Se um morte se inquieta tanto, a morte não é sossego, Não há sossego no mundo nem para os mortos nem para os vivos” (pág.167), mostrando assim a contradição da vida humana, que não é tão diferente da morte como pensamos. Além disso, menciona-se ainda a enumeração, que serve para ilustrar a diversidade de acontecimentos e situações que Reis presencia no seu dia a dia, como é o caso da descrição das joias dos imigrantes espanhóis ("uma profusão de anéis, botões de punho, alfinetes de gravata, broches, pulseiras, escravas, argolas, brincos, colares, fios, cordões, gargantilhas […]" - pág.178), dos diferentes fatos que as crianças usavam no carnaval português ("holandeses, saloios, lavandeiras, oficiais de marinha, fadistas, damas antigas, criadas de servir, magalas, fadas, oficiais do exército, espanholas, […]" - pág.185), ou as características anatómicas que visualizava no corpo do possível Fernando Pessoa ("um esqueleto a andar, igualzinho àquele em que aprendera na faculdade de Medicina, o taco do calcâneo, a tíbia e o perónio, o fémur, os ossos ilíacos, o pilar das vértebras, a gaiola das costelas, as omoplatas […]" - pág. 187). Por último, é importante sublinhar as partes em que sentimos mais dificuldades e aquelas que mais gostámos de explorar e analisar. Por um lado, os maiores obstáculos que encontrámos relacionaram-se com a fundamentação, principalmente no contexto nacional e europeu, visto que estávamos a lidar com factos, pelo que era difícil dar uma opinião pessoal. Para além disso, sentimos alguma dificuldade em explorar de forma mais profunda a parte da intertextualidade, dado que havia pouca informação disponível sobre o assunto. Porém, a parte mais apelativa do trabalho foi, de facto, a análise da relação entre Reis e Lídia, e a evolução do mesmo, uma vez que estes temas se relacionam com a temática dos sentimentos e emoções, o que nos faz perceber a complexidade das relações e, assim, faz-nos ter mais cautela ao efetuarmos juízos de valor. Em conclusão, este trabalho revelou-se de extrema importância, na medida em que nos proporcionou uma visão mais profunda e detalhada sobre a obra, bem como nos permitiu perceber, num quadro mais abrangente, temáticas como o contexto nacional e internacional da época, a complexidade da relação entre Lídia e Reis e a evolução do protagonista da história. Beatriz Santos, Mariana Guerreiro, Raquel Carmo

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AMRR: Capítulo VIII

O ano da morte de Ricardo Reis — capítulo VIII O presente trabalho foi realizado no âmbito da disciplina de Português e, para a concretização do mesmo, no que diz respeito à metodologia utilizada, recorremos à divisão de tarefas entre os elementos do grupo, ainda que o trabalho tenha sido realizado em conjunto, bem como à leitura do capítulo e resolução dos vários tópicos orientadores. No que concerne às principais dificuldades, são de destacar a seleção de informação mais relevante, bem como a interpretação da intertextualidade, bastante presente no capítulo em questão. A convocatória recebida por Ricardo Reis para que se apresentasse à PVDE foi a principal desencadeadora de diversos comportamentos e reações nas várias personagens, incluindo no próprio Reis. Inicialmente, o doutor mostra-se incrédulo devido à relevância da carta ("Há de ser algum engano"- pág.198, l.2), assim como bastante espantado, uma vez que não se considerava autor de qualquer tipo de infração ("Uma contrafé, para mim, com razão se espanta Ricardo Reis, pois o seu único delito, não costumavelmente punido por estas polícias, é receber a horas mortas uma mulher na sua cama, se tal é crime."- pág.197, ll.19-23). No que concerne à reação de Salvador, verificamos que este se encontrava perplexo com o sucedido ("Em diferente sentido está reservado Salvador, a cara, não diríamos fechada, como uma nuvem de inverno, mas perplexa"- pág.197, ll.11-12), tal como desconcertado com a possibilidade de Reis poder ser um opositor aos ideais do regime. Tal suposição levou-o a contar o que acontecera ao pai de Marcenda, num aviso de que o amigo por quem nutria tanta admiração podia ser perigoso ("acabou por desconcertar-se o doutor Sampaio, embaraçado pela contradição que havia entre estes louvores e a contrafé de que, em confidência, lhe falara Salvador"- pág. 201, ll. 17-19). Consequentemente, Ricardo Reis perdeu toda a credibilidade que tinha aos olhos do pai de Marcenda. Tal é possível verificar quando, mais tarde, já no decorrer do serão, Reis e Sampaio conversam sobre o livro "Conspiração", que o último lhe emprestou. Durante a conversação, Reis faz-lhe louvores, exaltando o seu conteúdo nacionalista, o que deixa o pai de Marcenda bastante surpreendido, pois, após a conversa com Salvador, chegou à conclusão de que este não seria o seu género literário predileto. ("provavelmente não gostou, não apreciou"- pág. 205, l. 9). Posteriormente, quando Marcenda pergunta a seu pai se Reis jantaria com eles, este responde-lhe: "Não está nada combinado". Esta foi a desculpa utilizada para não ser visto em público com o médico em virtude das suspeitas do seu envolvimento com a oposição ("Tive pena de não o ver, diz, mas foi melhor assim, o meu pai só quer estar com os espanhóis, e porque, mal chegámos, logo lhe disseram da sua chamada à polícia, fugirá a que o vejam consigo"- pág. 207, ll. 12-15). Em contrapartida, Marcenda não apresentava qualquer tipo de receio ou vergonha em manter o seu relacionamento com o médico, tal como é observável quando esta lhe envia um bilhete com uma proposta de encontro no Alto de Santa Catarina (“por baixo da porta apareceu um papel dobrado” - pág. 206-207). Lídia, por sua vez, é também alguém que nunca teve desconfianças ou receios de ser vista com Reis (“não procede Lídia desta desconfiada maneira”), o que fez com que a relação de ambos não sofresse qualquer alteração. No que diz respeito a Lídia Martins, esta era uma das empregadas do hotel onde estava hospedado Ricardo Reis, o hotel Bragança ("Com tantas tarefas a seu cargo, ninguém se espantava que Lídia passasse todo o tempo no quarto duzentos e um"- pág. 195, ll.6-7). Pertencia a uma classe social inferior à de Reis, o que faz com que cada gesto de carinho que tinha para com ele fosse visto como um atrevimento da sua parte ("mas primeiro deu-lhe um beijo na testa, teve esse atrevimento, uma serviçal, uma criada de hotel.- pág. 194, ll. 79), o que fazia com que tomasse uma atitude mais reservada quanto à sua vida pessoal, entendendo que ninguém se interessaria ("Da tua nunca me disseste nada, Só se me perguntasse, e nunca perguntou"- pág. 199, ll. 11-12). 18


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O ano da morte de Ricardo Reis — capítulo VIII (cont.) Apesar da sua condição social e dos perigos que corria se fosse dada como cúmplice, Lídia nunca se afastou de Ricardo Reis, mesmo depois de este ter recebido uma contrafé ("não procede Lídia desconfiada desta maneira"- pág. 199- l. 3). No que concerne à relação entre ambos, é de destacar o facto de ser bem explícito na obra que não existe reciprocidade de sentimentos: Lídia nutria verdadeiros sentimentos por Reis, enquanto que o médico apenas se interessava pelo lado mais carnal da relação de ambos ("Lídia forçava brandamente Ricardo Reis a sentar-se, compunha-lhe o travesseiro, trazia a bandeja […] se pode dar contentamento a uma mulher ver o homem amado prostrado num leito de dor, olhá-lo com esta luz nos olhos"- pág. 15-20). Daniel Martins é outra das personagens introduzidas no capítulo VIII da obra. É meioirmão de Lídia, pelo lado materno. Trabalha como marinheiro no navio Afonso de Albuquerque. E considera-se, com base na sua ideologia, um opositor ao regime ("O Daniel é contra a situação"- pág. 200, l. 19).É através de uma conversa com Lídia sobre o seu irmão que temos acesso a algumas informações sobre a forma como o governo operava e a opinião da marinha sobre o mesmo (“Ficou Ricardo Reis a saber que a polícia onde terá de apresentar-se na segunda-feira é lugar de má fama e de obras piores que a fama, […], ele são as torturas, ele são os castigos, ele são os interrogatórios a qualquer hora”, página 201; “Então lá na marinha não gostam do governo, resumiu Ricardo Reis”, página 201). Portugal vivia num clima de ditadura desde que Salazar ganhara as eleições, em 1932. A população vivia num clima de medo e desconfiança, devido a toda a repressão e censura promovida pelo governo. O principal instrumento de controle social era a PVDE, que impedia os portugueses de pensar e agir livremente, sob pena de sofrer "interrogatórios, torturas e castigos" (pág. 201, ll. 6-7). Este clima de insegurança que se fazia sentir é bastante notório, nomeadamente no presente capítulo, uma vez que quando Ricardo Reis recebeu uma contrafé para se apresentar "no dia dois de março [...] às dez horas da manhã" (pág. 198, ll. 4-5), a forma como os outros hóspedes do hotel o encaravam alterouse drasticamente ("verá como o vão olhar os empregados, como subtilmente se afastarão dele"- pág. 199, ll. 2-3). As pessoas, com medo de serem associadas ao doutor, afastavam-se. Como já foi referido anteriormente, após ter recebido a contrafé, os outros hóspedes e funcionários do hotel mudaram completamente a sua atitude para com Ricardo Reis, tornando-se mais frios e apreensivos ao chegarem-se perto dele. É neste contexto que o médico escreve um verso de um dos seus vários poemas, "Como as pedras na orla dos canteiros o fado nos dispõe", querendo assim transmitir a ideia de que não é possível lutar contra o nosso destino, pois este está traçado desde o momento em que nascemos. Neste caso, e apesar de Reis não apreciar o que o "fado" lhe reservou, não tenta alterá-lo, pois sabe que tal é inútil, mostrando assim uma posição de conformismo relativamente ao seu futuro. Ao longo da obra, é notória a evolução da relação entre Marcenda e Ricardo Reis. Inicialmente, o doutor demonstrou sentir-se atraído pela jovem, apesar da diferença de idades de ambos, bem como pela peculiaridade física da jovem. O facto de o Dr. Sampaio e de Reis desenvolverem uma amizade, acabou por aproximá-los. Apesar do preconceito que Sampaio demonstrou, devido às suspeitas do envolvimento de Ricardo Reis com a PVDE, a sua filha não revelou qualquer receio de se relacionar com ele. Note-se que a jovem chegou mesmo marcar um encontro com Reis, após o seu pai ter evitado ser visto com ela. (página 87- linha 12-16). Este encontro acaba realmente por acontecer, no "Alto de Santa Catarina".

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O ano da morte de Ricardo Reis — capítulo VIII (cont.)

Ricardo Reis, apesar da atração que sentia, quer por Marcenda, quer por Lídia, ainda que por motivos distintos, não amava verdadeiramente nenhuma delas. O único sentimento que nutria pelas figuras femininas era a paixão. Relativamente a Marcenda, esta passava também por um fascínio pela condição da sua mão esquerda. No que toca a Lídia, Fernando Pessoa acusa Reis de ter trocado uma Lídia lírica e, de certa forma, intocável, por uma empregada de hotel com quem mantém uma relação estritamente carnal. (“uma Lídia de encher as mãos.”, página 209, linhas 27 e 28). Fernando Pessoa é, aliás, o principal crítico da conduta de Ricardo Reis e do seu contraste com os seus ideais expressos nas suas obras poéticas, sempre com um forte tom irónico e reprovador. (“ó Reis, você por aqui, está à espera de alguém, esta voz é de Fernando Pessoa, ácida, irónica”, página 209, linhas 15 a 17; “Bravo, […], trocou a Lídia etérea por uma Lídia de encher as mãos, […], e agora está aqui à espera doutra dama”, página 209, linhas 26 a 29; e “Adeus, caro Reis, […], você afinal desilude-me, […], estimava-o mais quando você via a vida à distância a que está”, página 211, linhas 5 a 8). Durante o período da ditadura salazarista, a religião estava muito presente na vida da população, uma vez que era algo muito característico da ideologia do regime, muito devido à ligação do chefe de Estado à Igreja Católica. Contudo, Ricardo Reis não concordava com a doutrina da Igreja Católica, já que aceitava todos os deuses, apesar de não acreditar em nenhum. Ao contrário do médico, Marcenda era aparente, mas superficialmente ligada à religião. "Sou católica, Praticante, Sim, vou à missa, confesso-me, comungo-me, faço tudo o que os católicos fazem". A jovem refere a devoção do pai a Nossa Senhora de Fátima, já que este manifesta a esperança que a fé a possa salvar, ou seja, curar a sua mão. Essa discussão de ideias surge a propósito da falta de esperança da Marcenda de se curar ("Não deve perder a esperança, Suponho que essa já está perdida, qualquer dia sou capaz de ir a Fátima para ver se a fé ainda pode salvar-me"). Fernando Pessoa, não é completamente invisível, tal como nos é explicado pelo mesmo na sua primeira aparição a Ricardo Reis, ele escolhe se quer ou não aparecer, e quem é que o consegue ver (“Só não percebi o que é que esteve ali aquele tipo de preto a fazer durante este tempo todo, Qual tipo, Aquele que está encostado às grades, Não vejo ninguém, Precisas de óculos, E tu estás bêbado”, página 214). Neste excerto, Ricardo Reis encontra-se no alto de Santa Catarina, à espera de Marcenda e, ao aproximar-se da grade, recorda-se do grande período histórico da partida das naus para os descobrimentos. Essa recordação convoca-lhe à memória, versos do poema "Calma" da obra Mensagem de Fernando Pessoa, pelo que percebemos que há uma relação intertextual entre o momento em que Reis está a viver e o estado em que se encontra o país, à data da publicação de Mensagem. A verdade é que nem Portugal nem Ricardo Reis conhecem o caminho, e muito menos o destino a que esse caminho os conduzirá. No poema "Calma", persentimos que algo acontecerá, isto é, o sujeito poético sugere que Portugal irá concretizar o Quinto Império, se bem que o caminho não seja ainda percetível. Também Reis se encontra na mesma situação, visto que não conseguiu ainda definir o que irá fazer, e não sabe o que esperar daquele encontro com Marcenda. Percebemos, então, que Reis, para além da deambulação geográfica, também deambula pelo seu interior. Uma vez que quem deambula se desloca ao acaso e sem rumo determinado, podemos convocar a imagem do labirinto: quem entra num labirinto procura uma saída ou, num sentido mais geral, tenta resolver o mistério que pode ser o da sua própria identidade.

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No que diz respeito aos recursos expressivos presentes no capítulo em questão, podemos destacar a ironia e a enumeração. Relativamente à ironia, esta é muito utilizada pelo narrador, bem como por Fernando Pessoa, aquando dos seus encontros com Ricardo Reis ("Ó Reis, então você não viu que se tratou duma brincadeira, ia-me lá eu agora fantasiar-me de morte, medievalmente"pág. 201, ll. 18-20), muitas vezes quando pretende criticar algum assunto da sociedade, nomeadamente os homens poderosos que podem cometer todo o tipo de ações sem sofrerem as suas consequências ("O papá esteve para ser preso há dois dias, ora, quando estas coisas acontecem aos papás, que fará aos que não o são"- pág. 198, ll.21-22), bem como o modo como a sociedade vê a mulher ("a herança histórica das mulheres, mudar a roupa da cama, acertar a dobra do lençol, levar o chá de limão, o comprimido à hora marcada, a colher de xarope"- pág. 194, ll. 27-30). Por outro lado, no que concerne à enumeração, este é um traço característico da escrita de José Saramago e, portanto, podemos encontrá-la com muitíssima frequência ao longo da obra. A narração é bastante circular, ou seja, muitas das frases acabam por não fazer a história avançar, voltando-se por vezes ao ponto de partida. A título de exemplo, sublinhem-se as descrições do sonho de Reis ("Adormeceu, acordou, sonhara com grandes planícies banhadas de sol, com rios que deslizavam em meandros entre as árvores, barcos que desciam solenes a corrente"- pág. 189, ll. 4-7), bem como dos cuidados que Lídia prestava ao médico enquanto este recuperava da doença ("Lídia forçava brandamente Ricardo Reis a sentar-se, compunha-lhe o travesseiro, trazia a bandeja, juntava o leite ao café, punha açúcar, partia as torradas, estendia a compota"- pág. 193, ll. 15-18). Por fim, gostaríamos ainda de destacar a extrema importância que a realização deste trabalho teve para nós, tornando fosse possível uma melhor consolidação dos nossos conhecimentos relativamente tanto a este período da história do nosso país, como da vida e escrita de José Saramago e Fernando Pessoa. Inês Mendes, Matilde Saraiva e Danielle Iriart

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Portugal

REFLEXÃO O PAPEL DE PORTUGAL NO MUNDO Na minha opinião, o papel de Portugal no mundo é bastante importante, ainda que hoje em dia haja quem não considere tal afirmação como verdadeira. Portugal localiza-se num ponto estratégico da Europa, o que lhe permite receber, com grande facilidade, vastas importações e desenvolver potencialidades económicas, uma vez que está tão centralizado no mundo. Neste sentido, as relações económicas do nosso país com os outros continentes, nomeadamente a Ásia, a África e América, são bastante beneficiadas. Por exemplo, a duração do transporte de um produto de origem africana ou americana será maior para a Polónia, quando comparada com Portugal. Paralelamente, o nosso país apresenta-se também como um espaço de lazer, cultura e turismo extremamente apreciado pelos estrangeiros, nomeadamente dos países do norte da Europa e da Ásia. Os diferentes desportos náuticos que se podem praticar nas nossas boas praias, a cultura e a arte que se podem encontrar de norte a sul do país, o bom clima e, nomeadamente, a propaganda que se faz ao turismo de Portugal, são fatores que nos levam a considerar que temos um papel bastante importante no mundo. Em conclusão, na minha perspetiva, Portugal apresenta-se como um ponto fulcral nas relações económicas do mundo, assim como desempenha uma função muito importante no que toca ao turismo, lazer e cultura. Teresa Filipe Portugal é, inegavelmente, um país rico em cultura, muito por culpa dos seus antepassados gloriosos, que descobriram terras nunca vistas antes daquela época. Para além disso, é, nos dias de hoje, uma nação repleta de autores, artistas e pessoas de renome, quer conhecidas pelas suas obras a nível internacional, como foi o caso de José Saramago, com a vitória do Nobel da Literatura, quer pela arte de rua do famoso artista Vhils. É certo que Portugal teve no seu passado uma influência abismal no paradigma mundial, mas creio que, nos dias que correm, o nosso país continua, apesar das dificuldades que atravessa, a revelar-se uma nação vencedora e conquistadora, mas obviamente a outro nível. Seria estranho continuar a navegar em naus à procura de novas Índias. Tomemos o exemplo da conquista do campeonato europeu de futebol em 2016, que à partida seria um troféu entregue à seleção alemã ou à seleção francesa, que, por sua vez, jogava em casa. A ironia persegue Portugal, pois, se em 2004 perdemos o europeu para a Grécia em Portugal, em 2016 seríamos o exemplo das Quinas (cinco chagas de Cristo) que primeiro sofreram e depois alcançaram a glória que ficará para sempre marcada na história do continente europeu e do mundo. É ainda importante referir que, na área do desporto, para além da já mencionada conquista, Portugal tem os melhores atletas do mundo em quase todas as categorias, seja no futebol, futsal, futebol-praia: não há desporto que escape às capacidades atléticas dos portugueses, Não obstante o mérito das outras áreas, é fulcral sublinhar a influência da música portuguesa por todo o mundo. O fado move fronteiras e é apreciado por cidadãos de todo o globo, por isso os nossos artistas atingem o teto em Portugal e têm que mudar de andar, para outros países, outros desafios. De modo a não me afastar da palavra “conquista”, aponto o facto de, em 2017, o nosso país ter vencido a Eurovisão com o magnífico intérprete Salvador Sobral, feito nunca antes alcançado pelo nosso país, que se tinha retirado até da participação de algumas edições da competição. Serão Salvador Sobral e Cristiano Ronaldo os novos Vasco da Gama e Bartolomeu Dias? Luís Gonçalo

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Portugal

O Portugal de antigamente foi um Portugal próspero e importante a nível mundial. Primeiramente, é de salientar que, devido à época dos descobrimentos, a nação assumiu um papel de destaque e alcançou uma consideração que, infelizmente, não perdurou até aos dias de hoje. Atualmente, somos considerados por muitos um país minúsculo, sem importância e sem influência a nível mundial, o que, na minha opinião, não é totalmente verdade. Portugal, embora seja um país pequeno a nível territorial, (pelo menos atualmente, visto que, por exemplo, no tempo de Salazar era considerado o “Império onde o sol nunca de põe” devido à sua imensa área geográfica) é um país importante no que toca à cultura. É importante salientar que, como já foi referido anteriormente, somos um país conceituado ao nível da cultura, do turismo e do lazer, na medida em que aproveitamos o que temos de bom e exploramos esse aspeto com a finalidade de lucrarmos e partilharmos as nossas mais-valias com os restantes países e continentes. Por outro lado, a nível político, somos um país com pouca importância, embora tenhamos relações económicas e de amizade com muitos outros países, entre os quais as nossas antigas colónias, espalhadas pelo globo (Ásia, África e América). A nossa posição é algo redutora na medida em que, apesar das mais-valias e dos aspetos positivos, muitas vezes não sabemos como as aproveitar a nosso favor. Em conclusão, Portugal é um país com bastante potencial, no entanto nem sempre sabe como e quando o aproveitar. Madalena Licciardello Portugal, ao longo do tempo, foi vendo diminuir a sua importância e o seu papel no Mundo, apesar do seu passado histórico, ganhando apenas alguma relevância nos tempos que decorrem. Na minha opinião, atualmente, Portugal, relativamente ao resto do globo, tem vindo a sofrer um crescimento significativo no “espaço de cultura, turismo e lazer”. Desta forma, são cada vez mais os estrangeiros que visitam, por exemplo, a cidade de Lisboa, e levam uma boa opinião sobre o país, transmitindo-a ao resto do Mundo. É ainda de mencionar que, sendo Portugal um “país de tradição marítima” e, no seu passado, ter sido, segundo Fernando Pessoa, o “rosto da Europa”, hoje em dia, dá-nos algumas vantagens económicas (« O mar português é não só um ativo crítico com vastas potencialidades económicas […]»). Exemplo disso é a grande relevância do Porto de Sines na nossa ligação ao resto do Mundo, que permite grandes investimentos em produtos estrangeiros, e também permite que os produtos com origem nacional possam ter visibilidade fora do país. Assim, também, mais uma vez, como referido anteriormente, Portugal ganha alguma relevância no Mundo atual. Concluindo, o nosso país, na atualidade, continua a ser conhecido pela sua grandiosidade marítima, mas agora associada à economia e já não tanto aos descobrimentos. Ana Rita Piedade

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Portugal e...

Portugal, em tempos, foi um país extremamente importante e sem o qual os descobrimentos não teriam sido os mesmos. No entanto, ainda nos dias de hoje esta nação pode ser considerada significativa no panorama internacional. A posição geográfica do nosso país é um exemplo claro desta vantagem portuguesa, que favorece grandemente o turismo, pois temos um clima ameno e também paisagens absolutamente maravilhosas, de cortar a respiração. Tanto quanto à costa, como ao campo, considero que o nosso país é muito belo, o que é comprovado pela quantidade de turistas que o visitam todos os anos. Paralelamente, na minha opinião, Portugal tem toda uma história e cultura para mostrar ao mundo. Isto, na medida em que temos museus e monumentos emblemáticos, que representam o nosso povo, bem como características e hábitos muito particulares. Exemplos claros desta situação são o fado, que já é reconhecido internacional, como também a presença de artistas portugueses, quer pintores, escultores, escritores ou cantores em variados pontos do globo. Apesar de todas as características que mencionei anteriormente, a realidade é que sinto que nem todo o potencial é devidamente reconhecido. É verdade, sim, que temos recebido prémios a vários níveis, mas acho que temos muito ainda por alcançar. Em conclusão, o nosso país é muitíssimo rico em variados aspetos, tanto culturais, de turismo e mesmo de lazer, o que faz com que tenha um papel relativamente relevante no mundo atual. Raquel Carmo

E chegaram ao fim três anos para relembrar. Foi há três anos que iniciei este percurso com a turma de Literatura Portuguesa em que se integravam alguns alunos do agora 12º H, conjuntamente com alguns colegas seus do 12º G. Enquanto professora de Português, fui acompanhando a turma do 12º H e agora a do 12º A, antigo 11º A. No âmbito das leituras efetuadas em Literatura, cedo algumas alunas se ofereceram para elaborar alguns números do Jornalsemnome. Tal foi acontecendo e tornando públicos alguns dos nossos estudos e reflexões. Este número, dedicado a Fernando Pessoa, culmina o nosso deambular conjunto, que tanto prazer nos deu, se tal posso afirmar. Quero aqui agradecer a colaboração de todos e desejar o maior sucesso na vossa vida futura. Que os que cá ficam e as gerações vindouras demonstrem a vossa vontade, tenacidade e criatividade! Alexandra Lemos Cabral

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