NÚMERO
67
junho de 2021
BIBLIOTECA 2021 ILUSTRAÇÃO POESIA
CONTOS
Agatha Diaz
editorial
E aqui seguem, à maneira de editorial, as indicações da nossa querida bibliotecária, Rosa Duarte, de quem nos despedimos, já com muita saudade, desejando-lhe as maiores felicidades na etapa que vai encetar.
concurso de poesia/prosa poética e concurso de contos e ilustração "Janela (in)discreta" Apesar das dificuldades decorrentes da pandemia, conseguimos concretizar os projetos, embora com uma participação não tão alargada como aquela a que estamos habituados.. O CONCURSO DE POESIA decorre da realização do Concurso de Fotografia "Foco na felicidade". As fotos dos alunos constituíram-se como desafio à criatividade. Cada candidato escolheu uma foto inspiradora e, a partir da mesma, criou o seu texto. Este é um concurso de iniciativa da Equipa da Biblioteca e em articulação com o Clube Foto, podendo os alunos apresentar os seus textos de forma livre e facultativa ou com orientação do docente de Português da respetiva turma. De referir que todas as fotos eram elegíveis e como o concurso foi aberto à comunidade educativa, havia a possibilidade de escolha de uma foto de autoria de encarregados de educação. O júri de seleção dos trabalhos integrou uma docente de Português , Manuela Siebereger, a Professora Bibliotecária e a Coordenadora Interconcelhia das Bibliotecas Escolares, Dr.ª Elisabete Carvalho. O projeto do concurso de CONTOS E ILUSTRAÇÃO “JANELA (IN)DISCRETA” surgiu na sequência da candidatura da Biblioteca ao projeto "IMPREVISTOS DE LEITURA", da Rede de Bibliotecas Escolares. Numa primeira fase, foram selecionadas "janelas" inspiradoras, a partir de informação disponível na internet. Cada candidato escolheu a sua janela inspiradora e criou um conto, cumprindo o estipulado no regulamento que, entretanto, concebemos e divulgámos na comunidade. O júri de seleção dos trabalhos integrou a Professora Bibliotecária e a Coordenadora Interconcelhia das Bibliotecas Escolares, Dr.ª Elisabete Carvalho. São estes textos produzidos pelos alunos que agora divulgamos. Numa segunda fase, procedeu-se à divulgação dos contos, de modo a permitir que estes se constituíssem como inspiração para ilustração. Embora com participação muito reduzida, enviaremos também os desenhos dos alunos, concebidos em Educação Visual, e com o acompanhamento da docente na turma do 8.º H. Concluímos, afirmando que em ambos os concursos o percurso da imagem à criação escrita e, neste último concurso, de novo, do texto à ilustração se revestiram de potencial de desenvolvimento de múltiplas literacias, inerentes ao trabalho da Biblioteca Escolar e de cruzamento de competências do Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória. A Professora Bibliotecária agradece o empenho de todos os colegas que tornaram possível estes projetos, com destaque para os muito estimados companheiros de jornada de muitos anos, Carla Ramalho e Miguel Boullosa.
Colaboradores
Equipa responsável
Agatha Diaz Ana Alonso Carlos Carla Ramalho Ema Matias Fernando Silva Gabriela Pires Isabel Gama Lara Almeida Lara Ramalho Laura Grosso Manuel Fernandes Manuel Gonçalves Maria Gonçalves Maria Emília Peres Matilde Lourenço Miguel Boullosa Miguel Ridrigues Rafael Salgueiro Rosa Duarte Rita Bonacho Salvador Ribeiro Sara Custódio
Alexandra Cabral Ana Paula Rosa
Coordenação Alexandra Cabral
Logotipos André e Joana
jornalsemnome@gmail.com 2
Concursos—resultados
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Concurso de poesia
“Saudade da habitual felicidade” – Salvador Ribeiro
Poema inspirado na foto de primeiro prémio do ensino básico Dedicado ao meu avô... Saudade da habitual felicidade… Saudade da mão amiga! Do corpo que amparava… Da face que sorria.
Saudades de ti, E daquilo que te tornaste, Dos momentos preciosos, Que tu sempre iluminaste.
Eras a minha alma, A flor do meu jardim. O pão quente da manhã, A história a que eu não queria chegar ao fim!
Desapareceste e não voltaste, Prometeste, e não cumpriste, Saíste, e não avisaste. Ainda não acredito que partiste…
Contigo, horas passavam a correr! Contigo, o tempo parava! Eras a fuga dos problemas, Desta alma despejada.
Ao passado já não podemos voltar, Apenas lembrá-lo. Ficarás sempre na minha memória, E nos sonhos acompanhado!
- “Por ti nunca desistirei!”, - “Por ti irei até ao fim!” Tudo mentiras… As coisas que me dizias a mim.
Ema Matias
Um acidente bastou, Para que o destino te levasse. O nosso tempo acabou… Agora só fica a saudade! 4
Concurso de poesia
Poema inspirado em “Ser feliz”, de Maria Emília Peres (Encarregada de Educação)
Mulher! É a primeira vez que te vejo assim! E te acho leda. É a primeira vez que olho para ti, E te vejo com outros olhos…
Estás destroçada e só. Uma alma destruída, mas não ausente. A que viu guerra e morte, A que perdeu a sua gente. Mas agora que olho para ti, Já só vejo perfeição, Um ambiente de paz e harmonia, Um mover de pensamentos contraditórios. Como podes tu ser feliz, Tendo perdido tudo? Como encontras motivação, Para seguir em frente? Esse teu sorriso! Esse teu olhar! Quanta dor ainda escondem? Quanta miséria ainda sentem? E quanta mais suportaram? É na tua simplicidade que se encontra a beleza, Na tua dor que se encontra a paixão. Na tua lágrima a esperança, E no teu olhar a solidão. Como pude eu estar cega por tanto tempo? Como pude eu não ver tanta beleza? Estive cega? Sim! Não voltarei a cometer o mesmo erro. Ema Matias
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Concurso de poesia
Poema inspirado em “Limbo”, de Lara Almeida
Passar ou não passar…
O que me move, é já somente a incerteza, E o medo de falhar. Após tantos fracassos, Tantos sonhos para remendar.
Algo que para trás ficou! Uma porta que se abre, Outra que já se fechou! Um passado que fica esquecido Um futuro que parece distante Acentua-se a dúvida, Desta existência inconstante.
Mas o pôr do sol é assim, Cheio de projetos inacabados. De lágrimas e gemidos, Destes, que na vida falharam.
Insegurança, imprecisão, O tempo que já não avança. O prazo que já não estica, E os objetivos que já não alcança.
Laura Grosso
Dois caminhos uma escolha Mas qual a mais acertada? Perante todos estes pensamentos, Já não consigo solucionar nada!
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Concurso de poesia
Poema inspirado em “Às portas do cemitério”, de Lara Almeida
Às portas do Cemitério E lá estava ela às portas do cemitério, o seu olhar refletia a chuva das nuvens, a alma morta se lamentava com gritos tão silenciosos quanto a própria saudade. Ela não falava, mas a sua mensagem chegava ao coração de quem estivesse presente, de que tudo perdera o seu sentido e que o seu futuro, embora ausente, seria selado naquelas mesmas portas.
e o clarão repentino de um Sol esperançoso e sonhador. Rapidamente aquele abismo, cruel e impiedoso, revelara uma saída para um mundo belo e vivo, tudo aquilo com o qual ela sempre sonhara.
E lá estava ela às portas do cemitério, saía de lá com um olhar tão verde e vivo quanto a natureza que a rodeava, as suas raízes tão profundas e grossas A natureza revoltara-se ouvindo tais mentiras, quanto as das árvores que lá estavam, mas ela não ouvia, estava perdida naquele abismo, e com um sorriso que se rompia tão fortemente negro e espesso como os pensamentos que lhe surgiQuanto as flores que brotavam da terra. am Para onde estaria ela a olhar, e tão doloroso quanto as mágoas da saudade. se não para aquele céu tão limpo e puro Aquele véu, moldado à imagem do seu desespero, a que se assemelhava aos seus sonhos, cobria-lhe o rosto como o pano que cobria o do amado. tão rejuvenescidos e cheios de esperança. Fernando Silva
Mas a natureza, tão astuta e resiliente como os sábios de uma era já esquecida, invocara os ventos de um ar orgulhoso e calmo
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Concurso de poesia
Poema inspirado em “Aventura”, de Miguel Rodrigues
Viver uma aventura Nasci pronta para o dia
Em que o meu momento chegaria. Eu sabia que tinha de estar à altura Para viver uma aventura. Começo por explorar o mapa E passo para a próxima etapa. Com um objetivo, sigo caminho E como companhia levo um livrinho. Escrevo sobre esta aventura E tudo o que ela tem para me dar. E nunca perco a postura Mesmo quando só quero voltar. Enfrento vários medos Que encontro nesta viagem. São revelados segredos Que me fazem perder a coragem. Chego assim a uma ilha E parece ser o fim da trilha. Começam tambores a rufar E eu começo… a acordar? Estava apenas a sonhar Foi uma verdade dura. Mas chegou a hora de acordar E viver outra aventura.
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Laura Grosso
Concurso de poesia
Poema inspirado em “Lisboa”, de Lara Ramalho
Os bichos da selva de betão
Nessas selvas de betão a que chamam cidades vive uma certa criatura: o ser humano Criatura tão extraordinária que é Capaz de deixar para trás os seus interesses próprios para um bem maior Criatura dotada de tamanha razão e emoção Mas que por vezes não passa de um primata cujo tempo dotou com menos pelo e um órgão pensante maior Bicho que não usa a razão que lhe foi concedida E pelo contrário adota os seus instintos mais selvagens Para competir por coisas insignificantes Para negar o conhecimento e o racionalismo e abraçar o selvagem e a desordem Para se tornarem verdadeiros predadores, e parasitas por vezes Consomem e destroem tudo o que os rodeia Numa obsessão cega por um poder inexistente Porque afinal de contas nada mais do que bichos da selva de betão são.
Manuel Fernandes
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Janela indiscreta
Fonte da imagem: internet
As Vicissitudes da Vida No decurso da nossa existência, ao depararmo-nos com o mais ininteligível obstáculo, parece-nos ser inalcançável a sua transposição, como se este fosse a mais atroz barreira. Hoje, sentado à frente desta grandiosa janela, que irradia toda a luminosidade plausível, disseminando-se, em mim, a mais forte serenidade e liberdade que poderia sentir, refleti sobre a instabilidade da vida. Um dia tão deslumbrante como o atual, ou mesmo o dia mais encantador que poderia ser mentalmente alcançável, tem potencial para se modificar instantaneamente. Foi desta forma que se evocou em mim uma das histórias mais traumáticas que me relataram, relativamente a um dos meus ancestrais, Tomás, e que é, até hoje, enunciada de geração em geração, no seio da minha família… Era sexta-feira, mês de outubro, em pleno século XIX. Tomás de Castro, originário da Foz do Douro – e com aquele sotaque do Porto que dá inveja a qualquer um - ou pelo menos a mim dá, decerto -, teria acabado de se tornar um de entre as centenas de caloiros da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Desde cedo que era louco pelo espírito académico e pela tradição da mais antiga universidade do país, ansiando por integrar uma das mais variadas tertúlias. Ah, se ele soubesse, precedentemente, o que lhe viria a acontecer com a sua ida a Coimbra, nunca, mas nunca teria tomado tal decisão. De facto, com ele teria vindo o seu grande amigo Francisco. Apesar de este ingressar no curso de Português, estariam na mesma universidade. Ambos arrendaram a mesma casa, conjuntamente com Madalena, também do Porto. Ela acabaria por vir a ser muito apreciada por Tomás, culminando no seu amor por ela. Supostamente, quando este expôs a sua emoção a Francisco, ela não foi aceite, pois, embora as aulas tivessem acabado de começar, a sua fama de adúltera já teria percorrido toda a universidade. Pelo que me foi descrito, isto ocorreria porque a sua mãe, também estudante em Coimbra, teria tido um relacionamento com um homem casado. Na verdade, quando manifestou ao seu pai os seus sentimentos, este agiu de forma bastante inusitada. Inicialmente, desaprovou firmemente. Posteriormente, não só apoiava como estimulava – até demais – o seu filho a avançar com o relacionamento. Além disso, algo mágico ocorreu. Francisco, à medida que o relacionamento de Tomás e de Madalena se solidificava, ficava mais próximo dela. Havia até rumores de que estariam a ter um caso romântico. Seriam mesmo apenas boatos? Efetivamente, poucos meses depois, sabe-se que Madalena está grávida. Conhece -se, ainda, que Tomás não era o pai – esse grande passo da relação não teria, até ao momento, sido dado, o que, tendo em conta a época, era o comum e o acertado. Tomás, nobre de caráter, continuou a ajudá-la com os cuidados de maternidade. Contudo, ficou furibundo com o que aconteceu. Assim, e desconfiando do seu melhor amigo, Francisco, fez um teste. Crente em ideais religiosos, perguntou a Deus a resposta à questão, o qual naquela noite lhe teria dito que Francisco não 10
Janela indiscreta
era, efetivamente, o progenitor do filho de Madalena. Tomás acreditou. Com efeito, todos estavam desorientados. Afinal, o que teria acontecido? Ninguém sabia, à exceção de Madalena, que dizia nada ter feito. Deveria ser, então, uma réplica da Virgem Maria, pensei eu. De regresso a casa, estava Tomás sentado à secretária a estudar para o seu primeiro exame, que seria de Direito Constitucional, quando reparou no seu pai a preparar-se para sair, logo após a sua mãe ter adormecido. Estranhando, rapidamente saiu, às escondidas, e foi chamar o seu vizinho Lourenço de Sequeira. Depois de algum tempo de espera, o seu pai, efetivamente, saiu de casa no seu break. Pelo que percebi, este termo constitui a representação verbal do conceito segundo o qual denominamos as carruagens utilizadas no século XIX, pelo que deverá ter sido por esta data que este caso ocorreu. De facto, este comportamento era incomum em Afonso, pai de Tomás, uma vez que nunca tinha sido homem de grandes festas noturnas, desde o seu casamento. Por isso, o seu comportamento era, realmente, muito suspeito. Tomás e Lourenço lá entraram no break da família Sequeira, tentando não dar muito nas vistas. Uns quarteirões à frente, encontrava-se uma senhora de cabelos longos e com um manto que lhe cobria a nuca. Ela teria, então, dado um envelope a Afonso e estavam, até ao momento, a dialogar. Com vista a não serem apanhados, Lourenço recomendou que regressassem às suas residências e que futuramente Tomás procurasse o envelope em sua casa. Assim foi. Voltaram para as suas habitações, Tomás agradeceu a disponibilidade do amigo, o qual aguardava novidades. Já em casa, sentia-se cada vez mais impaciente, até que o seu pai chegou. Mal entrou em casa, Afonso dirigiu-se ao seu quarto e deitou-se. Tomás, logo que ouviu um ressonar imenso, foi em busca do envelope. Já de madrugada, e após uma interminável busca sem desenlace, Tomás questionou-se acerca do local mais improvável para se esconder uma missiva. Celeremente, veio-lhe à memória que o melhor esconderijo seria, sem dúvida, o óbvio. Lembrou-se, por isso, de que a caixa de correio seria o local menos suspeito para omitir a existência deste bocado de papel, tão ansiado por Tomás. Além disso, há anos que era o seu pai que ia, sem exceção, buscar o correio. Por isso, dirigiu-se à caixa de correio. Lá estava o envelope. Abre-o e lê o seguinte: “Afonso, Nunca foi este o caminho que tracei. Decerto, apaixonei-me pelo teu filho, não sei o que foi isto. Hoje, carrego o teu filho, fruto do pecado. Viver com esta tremenda angústia não é para mim. Não aguento mais. Seja lá o que isto for, tem que acabar. Cuida-te, Madalena” Tomás entrou em choque. Leu e releu o pequeno texto, que era exclusivamente para o seu pai. Interiorizou a veracidade do que leu. O que deveria fazer
agora? Sem entender o porquê de tudo isto, e despertando o seu génio sanguinário, acordou o seu pai, pronto para cometer o crime mais impiedoso que alguma vez despontara na sua mente. Ao questioná-lo, a mãe de Tomás ficou, também, completamente perturbada e perplexa, pois desconhecia, até ao momento, o ocorrido. Pelo menos Tomás obteve uma resposta do seu pai que nada justificou. Sucintamente, o pai de Madalena teria tido uma desavença com Afonso, o que teria resultado, posteriormente, na expulsão deste último. Efetivamente, as influências da literatura estrangeira que promoveram ideais socialistas e republicanos não foram bem aceites por todos. A crença de Afonso nestas novas convicções, embora não sendo promotor da revolução, tê-lo-iam levado à ruína da sua vida académica. Imediatamente me questionei, então, sobre qual seria a relação entre os factos e, minutos depois, era detentor da resposta. O final desta história é ainda mais assustador do que seria qualquer outro facto precedentemente expresso. Inicialmente, Afonso não apoiou a relação entre o seu filho e Madalena. Posteriormente, lembrou-se do que poderia concretizar como vingança do seu passado arruinado. O seu sonho era estudar direito, objetivo esse que foi arruinado por culpa do pai de Madalena. Assim, ao saber mais detalhes pessoais da vida de Madalena pelo seu filho, promoveu a comunicação com ela. A gravidez não fazia parte do plano, foi um mero acidente. O seu desejo, o qual concretizou após receber a carta, era assassinar o pai de Madalena. Naquele preciso momento, a porta de entrada caiu. Era a polícia. Afonso estava agora algemado e preso pelo ato insano cometido… E é, decerto, esta a história mais arrepiante que alguma vez me foi narrada. A instabilidade da vida está, aqui, totalmente expressa. Tomás, alcançando tudo o que pretendera ter na época- o curso de direito, a faculdade, uma belíssima mulher sensual, dotada de uma intelectualidade superior …- teria a sua vida totalmente alterada por um ato que nem foi seu. Enquanto isso, Madalena era, naquele momento, órfã de pai, ferozmente traumatizada por ter visto o ato bárbaro do assassinato. Mesmo Afonso, embora responsável pelos seus atos, não teria, de todo, a vida imaginada. No entanto, a nossa vivência pode ser ainda mais abrupta, fazendo-nos partir para o voo eterno, como é o caso do pai de Madalena. Por isso, debato-me com os dilemas da vida. Já Camões afirmava “Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades”. Poderá o dia mais belo, mais luminoso, como o de hoje, que observo por esta janela, mudar? E foi neste preciso momento que obtive resposta. A serenidade transmitida pela enorme janela desapareceu. A nossa vivência é instável. A vida é composta por vicissitudes. Rafael Salgueiro
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Janela indiscreta
Fonte da imagem: https://pin.it/74fJcki
O filósofo Um filósofo envolto em dor e na mais profunda das tristezas, após a morte da sua mulher, o seu amor e alma gémea, comprometeu-se a descobrir as origens das relações e emoções humanas, nomeadamente os sentimentos que lhe enchiam naquele momento o coração: o amor e a tristeza. Isolou-se numa casa envolvida por extensos campos de um penetrante verde, que se precipitavam num profundo abismo onde o mar embatia infinitamente na encosta e conferia à atmosfera uma constante humidade e névoa. A casa era simples, evidenciando alguns sinais de degradação e abandono. Havia uma cozinha com uma mesa de madeira rústica e um fogão sob uma enorme chaminé de pedra e um pequeno quarto com uma única janela com vista para o campo e para o mar. O filósofo colocou a sua secretária em frente da janela. Tinha sido esta a razão pela qual o filósofo escolhera aquela miserável casa: a paisagem que observava por aquela janela relembrava-o da sua falecida amada e trazia-lhe paz de espírito reviver os momentos que partilharam juntos. Assim, o filósofo iniciou a sua pesquisa sobre a origem das relações e sentimentos humanos. Começou por ler as mais diversas histórias de paixão desde o início da humanidade, desde amores impossíveis a paixões ardentes que o cruel destino não deixou durar. Soube dos amores e tragédias de Orfeu e Eurídice, Romeu e Julieta e Medeia e Jasão e conseguiu percecionar os seus sentimentos, agora que também ele havia perdido a sua grande paixão, que o deixara sozinho no mundo a lamentar a sua condição. Enquanto lia sobre as tristezas e felicidades dos outros, olhava, por vezes, para a janela do seu quarto e observava a paisagem constante, alternando apenas entre o dia e a noite. Durante os seus estudos constatou que cada caso que lia e estudava era diferente, as relações entre os protagonistas inseriam-se em contextos e épocas diferentes, mas o motivo era sempre igual: o amor. Esse sentimento tão contraditório, cuja origem e significado não conseguia encontrar, havia-se provado um desafio para muitos outros filósofos antes dele. O tempo passou, mas o filósofo não estava mais perto de cumprir o seu objetivo. Cada vez que pensava na sua tarefa afastava-se mais de a resolver. Os seus dias e noites eram passados a pensar no amor e na tristeza que lhe está associada. A paisagem, que outrora o acalmava e o recordava da sua mulher, adquiria agora contornos cada vez mais escuros, e o som distante do mar a bater na encosta ecoava nas paredes do seu quarto. As memórias da sua mulher pareciam-lhe cada vez mais distantes e turvas e, por muito que tentasse dissecar as suas emoções, era incapaz de as compreender. As paredes bolorentas e húmidas do quarto onde passava os dias a estudar pareciam-lhe cada vez mais altas e afastadas e a divisão consumida por uma profunda escuridão, com a janela como única fonte de luz. O chão do quarto afundava vertiginosamente no vazio. O filósofo só via a janela envolta em escuridão e uma voz familiar chamava-o e gritou em desespero: -Meu amor, és tu? Só se ouvia o bater das ondas na encosta.
Manuel Gonçalves
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Janela indiscreta
A janela do amor Não sabem bem o que se passou, Discutiram sem motivo. Palavras que magoaram, Verdades que saíram E depois a discussão acabou Com ela a dizer: - «Eu achava que te conhecia Mas estava enganada em relação a ti. Eu queria estar contigo, Mas não me pertences a mim. Eu amo-te, mas não confio em ti.»
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Tudo começou com uma janela.
Ela foi-se embora Chovia muito lá fora. Ele foi atrás dela, Mas não conseguiu alcançá-la. Foi então que ele se lembrou da janela.
Uma história de amor Pintada numa tela Por um grande pintor. A história de um cientista, Que no fundo era artista, Apaixonou-se por outra cientista Que tinha medo de amar.
Encontrou-a lá a tremer de frio. Deu-lhe o seu casaco Que tinha um buraco No sítio do coração. Ele olhou para ela e disse:
A primeira vez que se encontraram Foi em frente a uma janela. Parecia o destino. Algumas palavras trocaram E seguiram o seu caminho.
- «Eu estou como o meu casaco Tenho um buraco no meu coração. Assim que te foste embora Corri porta fora Para vir atrás de ti. As coisas que disse saíram sem pensar, Mas eu nunca te menti E não é agora que vou começar. Eu amo-te e sempre te vou amar Mesmo que isso seja Só quando estiver a sonhar.»
Na segunda vez em que se encontraram, Foi em frente da mesma janela. Desta vez ficaram A conversar, parecia uma hora, Ele conseguiu o número dela E depois foi-se embora. A verdade é que ele lhe ligou A pedir para se encontrarem Em frente à mesma janela Para seguirem para o planetário. Quando ele chegou, Lá estava ela Naquele belo cenário. Era uma questão de tempo Até se apaixonarem.
Ela jogou-se nos seus braços E começou a chorar. Ele logo a abraçou E mesmo quando ela parou… Ele nunca a largou. Foi ali em frente àquela janela Que fizeram a promessa De enfrentar seja o que for E que pintarão uma tela Com a sua grande história de amor.
E assim aconteceu. Começaram a namorar Até ao momento Em que tudo começou a desabar.
Laura Grosso
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Janela indiscreta
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Sem imaginação Pele escurecida, semblante pensativo, cabelo curto e
cão, que automaticamente me faz recordar a minha companheira. Sinto-me triste por uns momentos. Viro o porta-chaves e vejo na parte de trás o preço. 0,50€. Por sorte, tenho dinheiro comigo e decido levá-lo. Procuro a caixa de pagamentos ou alguém; porém, apenas encontro uma mesa acanhada e meio torta com um pote de vidro em cima. Logo ao lado existem vários papéis presos com fita-cola. Um deles diz: “Pague aqui”. Os outros têm fotos de pessoas e uma legenda curta que informa que estão desaparecidas. Uma mulher loira de olhos pretos e cansados, um rapaz tão pálido quanto um fantasma e um homem de cabelo curto. É-me familiar. Largo o dinheiro no pote, arranco a foto do homem e levo-a comigo. Saio pela porta de vidro fosco e sou imediatamente surpreendida. A linha do comboio está de volta e já se ouve ao longe o chiar dos travões da grande máquina negra. Ao ver o comboio parar perto de mim reparo logo em algo: O Homem. Ele está aqui, não está desaparecido. Tento chamar-lhe a atenção, mas parece que não me está a ouvir. Não vejo ninguém na rua que me possa ajudar, por isso tento procurar as portas do comboio para poder entrar. Nada. Que raio de comboio não tem portas? Entretanto, o comboio parte e desaparece no túnel escuro do fundo da rua, similar ao que está perto do meu prédio. Sem conseguir fazer nada, sento-me, frustrada, no chão da rua, encostada à parede exterior da loja onde entrei há pouco. Fico a observar a foto com atenção durante uns minutos e a brincar com o meu porta-chaves novo. Alguém grita o meu nome. Quando dou por mim, estou de novo no banco velho do meu prédio, sentada exatamente no mesmo lugar de antes. Tudo voltou ao seu local. O idoso que havia falado comigo não parece estar por perto. O papel que tinha tirado da loja estava completamente branco e não existia um único ponto que nos pudesse dizer que estivera ali uma foto antes. É como se nunca tivesse existido. Por outro lado, o porta-chaves mantém-se completamente idêntico. Gritam por mim de novo. Posso notar, pelo tom, que não é coisa boa. Oh não. Corro tão rápido quanto posso, de volta para o apartamento recém-alugado pelo meu pai, e chego ofegante. Recordo-me imediatamente, ao notar as horas no relógio, mesmo antes do meu pai proferir uma singela palavra, de que são 14:21h, estou atrasada para as aulas.
máscara negra. Um homem, sentado à janela de um comboio tão preto quanto a máscara que leva no rosto, a olhar para as ruas tailandesas que passam em movimentos rápidos. As minhas manhãs livres dão-me liberdade para me sentar no banco velho que está à entrada do meu prédio, apenas para apreciar as ruas. Gosto de observar as pessoas que aparecem nas janelas do comboio, e mais que isso, gosto de imaginar histórias para cada uma delas, mesmo que não se adaptem à realidade. Para onde vou? Acredito que seja essa a pergunta que está a passar pela cabeça do Homem naquele momento. Desvio a minha atenção por uns segundos e fixo o meu olhar no fundo da rua, observando o túnel escuro por onde só o comboio pode passar. Talvez este túnel vá dar a uma cidade futurística que nunca visitei. Tento encontrar o homem novamente, mas perdi-o de vista. - Menina? Posso? Assusto-me levemente e levanto-me de forma rápida e desajeitada do banco envelhecido, cedendo lugar a um idoso qualquer que queria admirar a vista, tal como eu. Quando tento focar-me outra vez no comboio, noto que já havia partido, e então reparo em algo diferente. Os prédios gastos da minha rua, as árvores cuidadas pelos moradores, a estrada esburacada e a linha do comboio tinham desaparecido, como num truque de magia. Ao invés de todas estas coisas, encontro estruturas tão altas que os seus cumes se devem esconder no meio das nuvens, e tão brilhantes que fazem as minhas retinas doer devido à excessiva quantidade de luzes. Entro numa loja aleatória do rés-do-chão, sem perceber muito bem por onde ia, apenas para tentar fazer com que os meus olhos se adaptem à luz. Não ouço uma única palavra, pois o único som que consigo ouvir são os meus próprios passos. Poucos segundos se passam e já consigo ver com clareza o espaço ao meu redor. É um humilde estabelecimento com um aspeto muito limpo. Olho para trás e reparo na porta estreita por onde entrei e na janela minúscula, que mal deixava as luzes das outras lojas entrarem. Observo com mais cuidado os produtos. Ali, além de comida, vendem pequenos objetos: carteiras, isqueiros, canetas e... portachaves. Reparo num, com uma pata branca de um
Rita Bonacho
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Janela indiscreta
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O verdadeiro medo Dedicado a todos os que, assim como eu, têm medo de falhar na vida. Quando me perguntam qual é o meu maior medo, esperam que responda algo como a morte ou a violação. Mas esses medos tão comuns às pessoas não são o que mais me assusta. O que verdadeiramente me deixa em pânico é o medo de falhar na vida. O medo de ficar presa a um destino falhado, a uma sorte esgotada. O acordar e olhar por aquela janela todas as manhãs, pensando na enorme quantidade de possibilidades que o mundo oferece, e para nós tem reservado, poderia ser um véu de esperança, ou uma luz inspiradora, mas que para mim se torna cada vez mais sufocante. A passagem do tempo, o desabrochar da primavera, o alegrar da Natureza eram como sentir a chama a extinguir-se enquanto o corpo e a alma desfalecem. Mas nem sempre foi assim, eu já fui considerada normal. E como normal refiro-me ao conjunto da população em geral, que se encontra anestesiada desta realidade que só eu pareço agora ver. É como se andássemos todos cegos. Ao longo da nossa vida somos sujeitados a milhões de escolhas que, direta ou indiretamente, afetam os que nos rodeiam. Um simples sorriso ou compra de uma peça de vestuário podem alterar completamente o curso da vida de uma pessoa. Um sorriso pode salvar o dia de alguém, impedir um suicídio; já a compra de uma camisa pode ajudar a loja de uma mãe solteira a manter-se aberta mais um dia, ou incentivar à exploração de mais uma criança num país em desenvolvimento. Deste modo, a pessoa em que nos tornamos pode impedir mortes e corrupção, pode tanto salvar a vida de alguém como tirá-la. Ao aperceber-me de tudo isto, não conseguia ver o mundo com os mesmos olhos, era como se tivesse estado todo aquele tempo numa viagem, ausente e despreocupada. Contudo, agora tudo havia mudado para mim, era necessário escolher bem, pondo não só em jogo o melhor para mim, como o melhor para os outros. Teria de provar a mim mesma, e a Deus, que era digna da bênção da vida, e que não deixaria o mundo indiferente. Por isso, li e estudei o mais que pude. Viajei todos os anos com os meus pais, não como turista, mas como irmã viajante. Participei em todo o tipo de projetos de caridade e ajuda ao próximo, amando estranhos como se fossem família. Tirei cursos em paralelo com a escola, e ainda trabalhei em part-time. Encontrava-me inspirada pelos inúmeros heróis na nossa história, e pelas mortes que nunca haviam sido esquecidas. Pois como podia eu acordar todos os dias, sem sentir o dever de ter de me igualar a eles? Como podia eu não sentir que tinha de encontrar um propósito para a minha existência? O pior foi que nunca o consegui encontrar, chegando até a sentir vergonha de mim mesma, da minha indecisão, da minha incapacidade de optar por algo. Acreditava que tanto os meus pais, como os meus antepassados deviam estar a observar-me com desdém e o orgulho ferido, pois afinal de que lhes valeu terem lutado por um futuro e trabalhado arduamente, se eu não conseguia continuar o seu legado? Ao longo do meu percurso académico, nunca soube por que optar, logo desde o 9.ºano. Todos me diziam que eu poderia seguir o que quisesse, o importante era que fosse algo de que gostasse. Mas eu não sabia do que gostava, apenas queria ser alguém, mostrar aos meus pais que valera o esforço que apostaram em mim, mostrar à minha avó que tudo o que ela sofrera na infância tinha agora dado frutos em mim, e fazer com que o meu 15
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avozinho olhasse cá para baixo com um sorriso nos lábios, dizendo aos anjos que aquela menininha que ali ia era a netinha do seu sangue, que tanto o honrava. Mas parece que tudo o que haviam investido em mim tinha sido em vão. Todas as viagens a locais longínquos e exóticos, aos berços da civilização; as línguas aprendidas, as experiências vivenciadas; parece que o próprio esforço pessoal foi em vão, uma vez que de nada valem as notas altas e conquistas pessoais quando não se sabe o que se quer. Tantos foram aqueles que deram a vida a uma causa maior, que se sacrificaram, que apesar de perderem tudo, lutavam por algo em que acreditavam. Pois afinal do contas, de que vale morrer, senão enquanto se luta por aquilo em que se acredita? Eu a morte em si não a temo, pois acredito na grandeza de Deus, o que receio é morrer em vão, sem deixar a minha marca no mundo, e sem tentar torná-lo um local melhor. Gostava de sentir o chamamento, a sensação de pertencer a algo superior...O ser como um professor, que leva a paixão da disciplina e do mundo aos alunos, o médico que não desiste de nenhuma vida até ao fim, ou o simples pastor, que guia as suas ovelhas para o caminho certo. Mas eu de pastora não tenho nada, antes talvez de uma ovelha perdida e tresmalhada, que não consegue encontrar o seu rumo. Talvez o meu problema seja querer ser a melhor versão de mim mesma, mas a busca incessante da perfeição nunca cessa, nem há de cessar. É característica inerente ao ser humano, à qual eu não consigo escapar, mesmo regando incansavelmente a “árvore das ideias”. É verdade que nós somos os verdadeiros arquitetos da vida, pois somos nós quem a molda e aperfeiçoa, mas não consigo por fim a este ciclo vicioso, e inquietame que nunca venha a conseguir a fazê-lo, que seja velhinha e continue a acordar todas as manhãs com esta dor, até ao final dos meus dias, olhando para a janela como quem vê um destino falhado. Muitas são as noites que fico sem dormir e as tardes que passo em lágrimas, sem saber o que fazer. Todos parecem tão certos quanto ao que fazem, e ao que está por vir, que eu não compreendo se sou eu, ou o mundo que na realidade se encontra desajustado. Um dia acordei, e olhei por aquela janela, a mesma de todas as manhãs, nesta já não tão nova residência, que continuava a ser parte essencial no dia a dia. Era o agora o meu desabrochar da primavera, e alegrar da Natureza, naquela sombria e descuidada casa conjunta. Naquele local o tempo passava de forma vagarosa. A televisão encontrava-se sempre ligada, mostrando programas enfadonhos ou desastrosos acontecimentos. Os idosos, na sua maioria já bastante debilitados e inconscientes do que os rodeava, encontravam-se amontoados e
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sujos, gemendo. Alguém mais atento até notaria a lágrima triste a escorrer na face de um deles. As madames, essas eram cinco e mal pagas. Cinco, para duzentos idosos e um lar sem condições, que havia sido edificado a dez minutos da última rotunda da cidade, com vista para o cemitério e antiga capela da Piedade. Apenas mais um daqueles projetos que as autarquias tanto prometem e acabam sempre por aparecer feitos pela metade. “O sonho”, assim se chamava, mas as paredes com bolor e o soalho que rangia não faziam parte daquele suposto pacote. O pacote que, segundo eles, os grandes que estão acima de nós, traria nova esperança e propósito àqueles que em vida tanto sofreram. Rosa era uma das residentes, uma das poucas que ainda possuía mobilidade física e psicológica .Tinha cerca de sessenta anos, mas aparentava já setenta e muitos. A vida e o destino não andaram de mãos dadas para ela. E a mudança para aquele local deteriorara o já desgastado corpo. A única coisa que trazia propósito àquela sua mera existência era deslocar-se à janela do fundo do corredor dos quartos, para observar o pequeno ajuntamento de Natureza que ainda não havia sido devastado pelo homem e pela sua constante vontade de tudo dominar e moldar à sua volta. Era uma pequena clareira com um grande castanheiro e alguns ciprestes. No meio, uma pequena fonte quase seca. Mais uma triste, mas bela madrugada, mais uma chuva de pensamentos num banho de sonhos despedaçados, num corpo já marcado pela desilusão. Desilusão de uma vida vivida, mas falhada, que tanto enfrentou e tentou ultrapassar. Este era o meu maior medo, nunca chegar a encontrar propósito e ficar esquecida para sempre por todos, até pela morte. Foi o pesadelo que tive um dia, e que não me deixou indiferente, uma vez que a realidade é que não posso deixar de lutar e continuar a procurar, pelo menos enquanto continuar com esta luzinha de esperança que me alumia. Se ela é o meu avozinho, ou alguma entidade que não compreendo, isso não vos consigo dizer. Talvez até uma mistura das duas. O que eu sei, é que algo cá dentro ainda me diz que continue, pois estarei destinada a grandes coisas. De uma forma ou de outra, o meu futuro há de resolver-se, dado que ninguém consegue escapar ao seu destino. E se eu estou destinada a algo, hei de encontrá-lo e fazê-lo com a maior paixão e vontade que encontrar em mim. Não serei cadáver desenterrado das areias do passado, que arrasta o nome da sua família para a miséria, mas sim a menininha que continua a sonhar, para manter o seu próprio mundo a rodar. Aquela que um dia será velhinha e já não olhará para a janela com tristeza. Ema Matias
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O homem invisível Fonte da imagem: internet
cê e eu somos a mesma pessoa? - Somos a mesma pessoa—disse o senhor, calmamente -, só que de épocas diferentes, eu sou o seu eu de 30 anos no futuro. - Eu não acredito! Você disse que não tenho, quero dizer, que não temos família. O que aconteceu com os nossos pais? Nossos irmãos? - Não lhes aconteceu nada a eles, mas sim a você! Nesse momento, eu entrei em pânico e perguntei em uma voz bem baixinha: - Eu morri? - Não. Você não morreu fisicamente, mas não posso dizer o mesmo espiritualmente. - O que aconteceu? Porque fiquei assim? - Quando você se fechou para o mundo, pois estava com raiva, com medo ou triste, as pessoas foram-se distanciando. Os seus irmãos tentaram ajudar, mas você criou uma barreira, já não respondia às mensagens, ignorava-os se os via na rua. Essa exclusão foi particularmente difícil para a Mãe e o Pai. Eles tentaram ajudar, mas você não aceitava, era orgulhoso demais para isso! - Mas, então, porque está você aqui? -Vim ajudá-lo a não se tornar a pessoa que sou hoje, invisível e transparente a tudo. -Mas como é que você me irá ajudar? E a partir daquele momento, o meu eu mais velho não disse mais nenhuma palavra, até que finalmente chegámos à estação em que deveríamos descer e o senhor simplesmente saiu, correndo em direção à porta. Eu segui-o. Quando saí do metro, vi apenas uma luz branca que quase me cegou. Quando finalmente acordei, estava em casa, havia dormido em cima da mesa, enquanto trabalhava. Momentos depois, ouvi pessoas a bater à minha porta, fui ver quem eram e vi a minha mãe com uma expressão triste, mas que não queria demonstrar. No primeiro instante, pensei em ignorá-la, mas lembrei-me do sonho maluco que havia tido e do homem em que me tornaria, sozinho, sem identidade e sem alma; então, abri a porta e, depois de meses, vi a minha mãe pela primeira vez. Quando a deixei entrar, vi um reflexo do meu eu mais velho no vidro da sala, extremamente agradecido, como se eu tivesse libertado a sua alma, e percebi que, na verdade, o que eu pensava ter sido um sonho, realmente acontecera como se fosse um alerta. Eu não me senti assustado, mas sim muito grato por me ter mostrado o caminho.
Olá, meu nome é Theo, tenho 30 anos e estou prestes a contar o dia em que vi uma assombração. Era 23 de março de 2020. Após um longo e monótono dia de trabalho, voltava para casa no metro, que, estranhamente, se encontrava vazio. No início achei estranho, mas como a solidão não me incomodava, decidi colocar uma música e relaxar. Enquanto olhava atentamente as luzes a passarem, comecei a sentir um sono extremo, que fazia com que a minha cabeça pesasse muito, a ponto de parecer que tinha sido substituída por uma bola de boliche. Além disso, sentia o meu corpo adormecido como o de um urso em hibernação. De repente, vi uma pessoa no vidro, como se estivesse em pé, ao meu lado, olhando-me fixamente e, quando me virei para ver quem era, não havia ninguém. Porém, para meu espanto, quando voltei a olhar para a frente vi -o novamente, e lá estava um homem, que deveria ter uns 60 anos, com expressão cansada de quem já trabalhou muito. Então resolvi perguntar: -Quem é você? -Não sou ninguém, e você? -Chamo-me Theo. Mas como assim? Você não é ninguém, o senhor esqueceu-se do seu nome? -Não sou ninguém! Sentindo-me preocupado e assustado, pois não havia visto o senhor aproximar-se, pensei comigo– Nossa! Devo estar muito cansado, pois nem vi o homem entrar. Preciso ajudá-lo a descobrir a sua identidade, ou então tentar achar um número na sua carteira para que poder ligar para a família dele. Então voltei a conversar com ele e disse-lhe: - O senhor não possui nenhum documento consigo? Ou então algum número para o qual possa ligar? - Não. Eu não tenho família, acabei por me acostumar com a solidão - disse o senhor, desviando o olhar para a janela. Naquele momento, tive uma sensação estranha. Era como se eu o conhecesse de algum lugar, mas não soubesse de onde. Então perguntei: - Desculpe senhor, mas, eu o conheço de algum lugar? -Não sei. Você acha que me conhece? - Respondeu o senhor, friamente. Foi a partir daquele momento que eu percebi que aquele não era um homem desconhecido e sim eu mesmo. Então espantado perguntei: -Senhor, o seu nome é Theo? -Sim! Naquele momento, eu pulei da cadeira, pois um raio de luz bateu no homem e eu pude ver que aquilo não era uma pessoa, e sim uma visão, e que eu havia ficado louco. Então repliquei, indignado: - Não é possível, eu estou bem aqui! Como é que vo-
Gabriela Pires
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Fonte da imagem: internet
A pequena Bárbara N
a altura, ainda era a pequena Bárbara, uma menina doce cheia de sonhos e que desconhecia o que ser do sexo feminino significaria para ela. A pequena Bárbara adorava pôr-se à janela e imaginar que maravilhas estariam para lá do que a sua vista curiosa alcançava. No entanto, acabou por crescer e foi-se esquecendo da sua janela, já não parava para admirar a vista, era quase como se a janela tivesse desaparecido. Bárbara tinha agora 18 anos e sabia claramente o que queria fazer. Queria estudar, queria sair de Angola e ir para Portugal, e estava disposta a fazer de tudo para alcançar o que queria. Nessa noite, a 4 de julho, uma noite quente e de céu limpo, tão limpo que o céu se iluminava e não parecia ser noite, Bárbara iria contar aos seus pais o seu sonho. Estava nervosa, mas confiante, sabia que os pais a amavam muito e tinha esperança de que o amor deles cegasse as suas convicções de que uma mulher como Bárbara não deveria ir para a universidade, mas casar-se e formar família. Fosse qual fosse a reação de seus pais, Bárbara estava decidida, sabia o queria e sabia que era capaz, tão capaz como qualquer homem. E assim foi, os pais de Bárbara não reagiram bem à notícia. Bárbara nessa noite chorou, gritou, questionou ao mundo por que se regia por tais leis, e chorou mais. Mas na manhã seguinte, Bárbara declarou a seus pais: - Mãe ... Pai, eu sei que os senhores não querem que eu vá para a universidade..., mas – no segundo a seguir a Bárbara dizer, “mas” seu pai gritou: - Chega Bárbara, não há “mas”, tu não vais para a universidade! Eu não te vou pagar nada! Nada, ouviste!? - O pai não precisa de pagar nada, eu mesma pagarei o meu curso e pagarei a minha viagem para Portugal. Lamento muito que o pai não me apoie, espero que um dia perceba que eu não sou como as outras mulheres, e que perceba que isso não é uma coisa má. Bárbara sabia que, lá no fundo, o pai a percebia e a apoiava, mas não o podia demonstrar, devido aos preconceitos da sociedade. Sabia que o pai só adotava aquela atitude conservadora para preservar o nome da família. Por o saber, compactuara com ele durante 18 anos, mas já não podia mais. Ela necessitava de ser livre. Nessa noite sentou-se à janela, e voltou a sentir o que sentira quando ainda era a pequena Bárbara: tinha no olhar saudade, sabia que não iria partir já, mas já sentia saudade. No dia seguinte, Bárbara comprou um bilhete de avião para Portugal e ligou à tia Maria. A tia Maria era uma mulher solteira, uma apaixonada pelas artes, um ser livre, despido de preconceitos, por isso Bárbara sabia que ela a compreenderia. Passara-se uma semana e o pai de Bárbara não voltara a trocar uma palavra com a filha. Bárbara sofria, não queria partir sem resolver as coisas com seu pai, sentia-se culpada, mas 18
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culpada do quê, não fizera nada de errado; mesmo assim, o sentimento de culpa consumia-a. - Se calhar o melhor é desistir... – sussurrou Bárbara. - Desistir nunca! Eu não te eduquei assim. Posso não concordar com a tua decisão, filha, mas enquanto tua mãe não te posso proibir de seguires o teu sonho... – Bárbara desatou a chorar e a sua mãe limpavalhe as lágrimas e sorria-lhe com um sorriso de mãe, que nos diz que tudo vai ficar bem. - Obrigada. – A mãe de Bárbara mostrava-lhe, agora, uma fotografia. - Lembras-te? - Lembro-me. -Tu ficavas horas a olhar pela tua janela, dizias-me que um dia irias descobrir o que está para lá desta janela. Depois, não sei porquê, deixaste de te sentar à janela, deixaste de sonhar. Deixaste de ter paixão no olhar. Tive medo de que nunca mais a recuperasses. - Que recuperasse o quê mãe? - A paixão no teu olhar, a paixão. Mas no outro dia, quando nos disseste, a mim e ao teu pai, que querias estudar, a paixão voltou... voltou. – Bárbara abraçou sua mãe e sorriu-lhe sussurrando-lhe: - Obrigada, mãe. - Toma, quero que fiques com isto para que, nos momentos em que tenhas receio, em que sintas que tudo está perdido, te lembres desta menina sonhadora e esperançosa... que através duma janela via tudo o que há de bom no mundo. Bárbara sentia-se agora mais calma, continuava cheia de medo, mas cheia de coragem também. Faltavam dois dias para a partida. Nesses dois dias, Bárbara despediu-se dos amigos, dos vizinhos despediuse da sua vida em Angola. Faltava agora despedir-se de seus pais e da sua janela. - Lembra-se pai? - interrogava Bárbara, sentada à janela, mas sentindo a presença do seu pai. - Foi o pai que me mostrou a beleza desta janela, disse que esta janela seria a nossa janela, um lugar feliz, um lugar onde seríamos sempre nós próprios. Lembra-se disso? - Bárbara, filha por favor não vás... fica. - Não posso pai, eu tenho que ir, tenho que ver novas janelas. - Eu lembro-me. Adeus filha... Na manhã seguinte, Bárbara viajou até Portugal. Não tinha certeza alguma sobre o que iria fazer, só tinha a certeza de que para trás não voltava. Em Angola, deixara uma carta a seu pai no parapeito da janela: “Querido pai, peço-te que cuides da minha janela. Sabes, essa não é uma janela qualquer, é uma janela de sonhos, de esperanças e, por isso, necessita de alguém que olhe por ela, que veja a paisagem que ela recorta. Por isso, pai, por favor, cuida da minha janela, que ela vai cuidar de ti. E quem sabe, talvez um dia, enquanto estiveres sentado à janela, decidas que tal como eu, queres ver novas janelas.” – todos os dias o pai de Bárbara sentava-se à janela e lia a carta. Passado um ano, Bárbara já estava na Universidade a estudar e a poupar para tirar a carta de carro. No Natal desse ano, os seus pais voaram até Portugal. Bárbara acha que o pai, finalmente, tenha querido ver novas janelas, mas o pai discorda e diz que a única janela que ele quer ver é uma que possa partilhar com a sua filha. Matilde Lourenço
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Agatha Diaz
Isabel Gama
Maria Gonçalves
Sara Custódio
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