Al Thawra 3

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os caminhos da mudança: protestos em ramallah..

e revolução síria!

Al Thawra

no 3 outubro 2012


A questão palestina e a guerra civil libanesa Fábio Bosco

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este aniversário de 30 anos dos massacres de Sabra e Chatila, é importante entender a política das elites libanesas desde a Nakba até os dias de hoje, passando pela guerra civil (1975-1990). Esta foi um marco na história daquele país e se cruzou com a questão palestina. A burguesia local sempre utilizou a presença dos refugiados

palestinos em território nacional para confundir e dividir a população trabalhadora em luta por melhores condições de vida, e também para evitar qualquer reforma progressista. Essa mesma política discriminatória foi utilizada pela Síria de Hafez El Assad e Israel para justificarem sua intervenção criminosa na guerra civil libanesa.

Palestinos: alvo permanente da burguesia libanesa Desde a independência, um consórcio de 29 famílias tradicionais monopolizou os principais setores econômicos do país. Apesar de ser um país relativamente pequeno, o Líbano se afirmou na divisão internacional do trabalho como uma ponte entre o Ocidente e o mundo árabe, em particular os países produtores de petróleo. Bancos, comércio, turismo, portos, empresas aéreas – muitos destes em sociedade com capitais internacionais – se transformaram nos setores chaves da economia, em detrimento da indústria e agricultura que, entretanto, mantiveram um peso econômico. Segundo escreve o historiador marxista libanês Fawwaz Traboulsi em seu livro A History of Modern Lebanon, essas famílias burguesas eram principalmente cristãs (nove maronitas, sete católicas gregas, uma latina, uma protes-

tante, quatro ortodoxas gregas e uma armênia), mas havia também quatro sunitas, uma xiita e uma drusa. Tal poder econômico se traduzia em poder político: havia uma hegemonia da burguesia cristã. O poder era concentrado no presidente, sempre um cristão. No Parlamento havia uma proporção fixa de seis cristãos para cinco muçulmanos. Esse regime político formalizado no “pacto nacional” de 1943 só foi modificado após a guerra civil, nos acordos de Taif, em 1990. A maioria da burguesia libanesa sempre fez dos palestinos alvos permanentes para desviar as atenções dos problemas estruturais do país e impedir qualquer reforma no “pacto nacional”. Já a população trabalhadora nas cidades e no campo, em sua maioria, sempre apoiou a causa palestina.

Discriminação começa na Nakba Em 1948, 120 mil palestinos se refugiaram no Líbano. De imediato, o governo tentou expulsá-los para a Síria. Frente à recusa síria, organizou-os como mão de obra barata para a colheita de cítricos em vários pontos do país. Em 1965, grupos cristãos maronitas iniciaram uma campanha pública para denunciar a ocupação de Karantina (bairro de Beirute Oriental) por moradores estrangeiros (palestinos e sírios). Esse tipo de discriminação contra os palestinos será um traço permanente da agitação reacionária burguesa.

Soraya Misleh

sorayamisleh@yahoo.com.br

Em 1o de março de 1968, sob pressão de Israel e da Síria, o exército libanês inicia uma série de ataques contra forças da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), os chamados fedayins. Em 23 de abril de 1969, o exército abre fogo contra manifestações maciças em prol da resistência palestina em Beirute e Saida (Sidon), deixando mortos e feridos. Essa ofensiva tem um intervalo com a assinatura dos acordos do Cairo em 8 de novembro de 1969, que estabeleciam o direito de a OLP “governar” os campos

Mohamed El-Kadri

assisp2000@hotmail.com

Fábio Bosco

fabinhobosco@yahoo.com.br

Números anteriores: http://issuu.com/althawra


de refugiados palestinos e organizar a resistência armada contra Israel. Em meio a um crescente movimento de massas com greves e manifestações de rua de milhares de trabalhadores e estudantes, que viam a OLP como sua aliada, a força aérea libanesa bombardeia o campo de refugiados de Burj al Barajineh em 3 de maio de 1973. Em julho, o exército e a Falange (partido direitista cristão) atacam os palestinos em Dikwaneh (bairro de Beirute Oriental onde fica o campo de refugiados de Tel al-Zaatar). Em 26 de fevereiro de 1975, uma manifestação pacífica de pescadores em Saida contra a empresa Protein é atacada

pela polícia. A população se levanta e, com o apoio da OLP e de grupos nasseristas e de esquerda, toma o controle da cidade e expulsa o exército e a polícia. Diante desse perigoso exemplo, a burguesia libanesa decide recorrer à guerra civil – caminho escolhido por ela para derrotar um longo processo de lutas do povo trabalhador libanês e palestino e impedir qualquer reforma no regime político estabelecido no pacto nacional de 1943. Para iniciá-la, nada melhor que atacar os palestinos. Em 13 de março, alegando reagir a um ataque de palestinos em Ayn al-Rumaneh, falangistas atiram contra um ônibus com palestinos que ia para Tel al-Zaatar, matando 21 pessoas.

Guerra civil: os palestinos continuam sendo o alvo A OLP era a única força militar que poderia fazer frente às milícias falangistas e às forças libanesas (grupos de direita armados pelos Estados Unidos, França e Israel). Por isso, sua expulsão do país unia a maioria da burguesia libanesa, os governos sírios e israelense, além do imperialismo estadunidense e europeu. Num primeiro momento, as forças progressistas organizadas no MNL (Movimento Nacional Libanês), liderado pelo druso Kamal Jumblatt com o apoio da OLP, de grupos nasseristas e de esquerda, tomaram o controle de 80% do território libanês. Jumblatt queria utilizar a força social e militar dos palestinos para barganhar mais fatias de poder, uma reforma no regime político que lhe garantisse mais espaço. Já a OLP, expulsa da Jordânia no setembro negro em 1970, necessitava de espaço e apoio no Líbano para seguir sua luta contra Israel. Por isso aliou-se a Jumblatt no MNL e apoiou várias lutas populares. Para impedir a derrota falangista, Hafez al-Assad, atendendo a um pedido do então secretário de Estado americano, Henry Kissinger, e do governo libanês, com o aval de Israel, invade o Líbano e ataca as forças da OLP e do MNL. Às vésperas da invasão, em 12 de abril de 1976, Assad criticou violentamente o Movimento Nacional Libanês e a OLP, descrevendo seus líderes como “criminosos que compram e vendem política e revolução” e declarou sua intenção de intervir no país vizinho para “defender cada oprimido contra cada opressor”, como se os palestinos fos-

sem opressores e os falangistas, oprimidos. A intervenção síria conseguiu segurar o avanço do MNL e inverteu o balanço de forças em favor dos falangistas. Esses, liderados por Bashir Gemayel, trabalham para impor um governo ditatorial, favorável a Israel e ao chamado Ocidente. Bashir dizia que os palestinos eram um povo excedente e preconizava sua expulsão do Líbano. Por isso, negociava com Israel o fornecimento de armas e o envio de tropas, o que ocorreu em 1982. Neste momento até mesmo o Iraque de Saddam Hussein envia armas para Bashir. Em 23 de agosto daquele ano, a OLP é expulsa do Líbano, enquanto o governo local dá boas-vindas às tropas israelenses. Sem a OLP, era mais fácil expulsar os palestinos. Entre 16 e 18 de setembro, apoiadas pelo exército de Israel, forças direitistas libanesas mataram cerca de 3 mil palestinos e libaneses nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, em Beirute Ocidental. Esse massacre provocou uma comoção na opinião pública nacional e internacional e um levante contra a ocupação israelense no Líbano, o que inverteu a correlação de forças, desta vez contra Israel e seus aliados falangistas. Após a expulsão da OLP, também a Amal, grupo que representava a burguesia xiita, atacou os palestinos, a pedido de Damasco e atendendo aos interesses da burguesia libanesa. Ela promoveu a “guerra dos campos”, na qual suas milícias atacavam as forças palestinas nos campos de refugiados para tomar o seu controle, desrespeitando os Acordos do Cairo.

Vencedores continuam a discriminação Os acordos de Taif selaram o fim da guerra civil. Os números são dramáticos: cerca de 70 mil morreram, 90 mil ficaram feridos, mais de 800 mil foram expulsos de suas terras (670 mil cristãos e 157 mil muçulmanos, principalmente xiitas) e 900 mil emigraram para o exterior. A derrota dos falangistas e de Israel foi materializada em uma mudança no regime político. O poder central passa ao

primeiro-ministro, que é sunita, e no Parlamento há uma proporção fixa de cinco cristãos para cinco muçulmanos. Além disso, a Síria passa a ser a “tutora” do país até ser expulsa em 2005. Já para os palestinos nada mudou: há leis que os impedem de exercer várias profissões, não há direitos de cidadania, o que os empurra para uma marginalização econômica, social e política.

A questão palestina: chave para a libertação dos povos árabes A formação do Estado de Israel, a partir do encontro histórico do sionismo com o imperialismo, para colonizar todo o mundo árabe, se transformou num símbolo concreto e muito bem armado da dominação da região. A política dos governos árabes é de acomodação com a ordem colonialista mundial, com os Estados Unidos e com Israel. Só levantam-se em defesa dos palestinos para barganhar e enganar seus povos.

Por outro lado, há apoio para os palestinos entre a população trabalhadora em todo o mundo árabe. Essas forças sociais, os trabalhadores, os camponeses, a juventude marginalizada são as que têm as condições históricas para libertar todo o mundo árabe da opressão colonial e social. Com a solidariedade de seus irmãos e irmãs trabalhadores em todo o mundo, será possível conquistar um mundo árabe livre e socialista.


Manifestantes queimam foto de Mubarak em ato de solidariedade ao povo egípcio - fevereiro 2011

A classe trabalhadora no Egito pós-Mubarak: uma consciência em construção Aldo Cordeiro Sauda e Márcia Camargos

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uando, no dia 15 de junho último, a Junta Militar egípcia dissolveu o Congresso Nacional, Kamal Abu Aita, o único dirigente sindicalista que integrava o Parlamento deposto, preparava-se para o pior. Passados 18 meses de revolução, quando as eleições para o Legislativo simbolizavam o mais concreto avanço da luta por democracia no país, os sinais de um novo golpe de estado liderado pela linha dura do governo estavam visíveis em todas as esferas da vida nacional. “Esse Parlamento podia ser tudo, menos revolucionário”, afirmava o líder operário, para completar que, apesar disso, sua abolição pela Junta Militar indicava o quanto a contrarrevolução sentia-se à vontade para dar as cartas e ditar as regras do jogo. O golpe branco, que na previsão de Kamal se materializaria na nomeação do ex-primeiro-ministro de Hosni Mubarak, Ahmad Shafiq, como novo presidente, acabou não se confirmando. Depois de dissolver o Parlamento, impor lei marcial e adiar seguidamente a divulgação do nome do candidato vitorioso das eleições, os militares cederam. Mesmo com a totalidade dos observadores independentes anunciando o líder da Irmandade, Muhamad Mursi, como vencedor do pleito, a Junta apenas o declarou vencedor após inúmeras rodadas de negociação com a direção de seu partido. Ainda que o novo acordo entre os “irmãos” e os militares tenha possivelmente evitado uma crise de proporções imprevisíveis, para o líder sindicalista, a disputa entre a Irmandade e a Junta é de interesse secundário para os trabalhadores. “Shafiq e Mursi são, ambos, candidatos da burguesia e inimigos da classe", disse Kamal. "Agora precisamos formar um campo próprio de esquerda.” Presidente da CSIE (Central Sindical Independente Egípcia), cuja fundação ocorreu na Praça Tahrir em meio às manifestações que derrubaram o então ditador Hosni Mubarak, Kamal reivindica a liderança de quase 2 milhões

de trabalhadores em sua base. Para uma organização com pouco mais de um ano e meio de existência, a central cresceu em uma velocidade impressionante. Visto assim, fora de contexto, tal número de filiados pode surpreender, mas a verdade é que ele não representa uma suposta força do operariado. Em um país sufocado há mais de 30 anos por uma ditadura truculenta e alienante, a classe trabalhadora encontra-se sub-representada no mundo da política egípcia. De fato, eleito apenas nove meses após a queda de Mubarak, o Parlamento deposto retrata com extrema crueza não só o conturbado cenário ideológico do país, mas, sobretudo, o profundo isolamento da sua classe operária. Dos 508 parlamentares, apenas 25 deputados de raros partidos de esquerda são computados como simpáticos à causa dos trabalhadores. E nem mesmo a Comissão de Assuntos Trabalhistas do Congresso está em mãos dos aliados da classe. A presidência da Comissão, que pertence à Irmandade Muçulmana, é dirigida por um gerente do setor petroleiro, Saber Abu Fattuh. Embora tenha, em determinados momentos, se posicionado de forma favorável às mobilizações operárias nos anos Mubarak, Fattuh e a Irmandade estão longe de configurarem um aliado confiável dos trabalhadores. Os principais dirigentes do grupo, como o multibilionário Kairat el Shater, têm anunciado a cada oportunidade que sua organização mantém concordância ideológica com o programa de privatizações implementado pelo ditador deposto, descartando apenas a participação de “empresários corruptos” em seus meios.

Ignorados e apolíticos Por mais que as narrativas clichês da revolução egípcia apontem a “juventude” como ator solo do processo responsável pela deposição do antigo regime, é consenso


entre boa parte dos analistas que a greve geral convocada às vésperas da renúncia do então presidente foi um dos mais importantes, senão o principal impulso para a sua derrubada. Ao longo dos anos 2000, um ascenso das mobilizações dos trabalhadores não só abriu caminho para o fim da era Mubarak, como também reinventou a cultura das manifestações de rua. O caráter estritamente economicista das reivindicações, porém, acabou por impedir que o movimento, sobretudo durante o governo Mubarak, desenvolvesse uma agenda minimamente política para lidar com a realidade social do país. Quando o povo egípcio, formado em sua maior parte por jovens excluídos e subempregados, tomou as ruas no dia 25 de janeiro de 2011, entoando as palavras de ordem "pão, liberdade e justiça social", a classe trabalhadora, de maneira desorganizada e individual, aderiu ao chamado. Sua mobilização, contudo, deu-se num crescendo. Foi a partir dessa data simbólica, e logo após a organização da direção dos trabalhadores na central livre, que o operariado, pela primeira vez, atuou politicamente como classe. Depois da declaração da greve geral na Tahrir, realizada em conjunto com a fundação da central sindical, a economia do Egito parou. Diante do caos, e assustados com a possibilidade de que as mobilizações atingissem e prejudicassem ainda mais as finanças do exército, os generais até então fiéis a Mubarak abraçaram o slogan, pedindo a derrubada do presidente. Verdade seja dita, em momento algum a classe trabalhadora dirigiu o processo nem atuou como vanguarda. Seus líderes não ocuparam palanques na Tahrir. Suas demandas “específicas”, como a questão da liberdade sindical, sequer foram ouvidas. No campo simbólico, ela praticamente não marcou presença. Mas sua intervenção concreta na marcha dos acontecimentos alterou de modo definitivo a correlação de forças da fase inicial do processo revolucionário, colocando, de fato, a ordem vigente em xeque. Interessante notar que mesmo em meio a uma revolução, com as ruas tomadas por protestos, com a alta política ocupando os debates diários da população, a maioria do movimento sindical egípcio ainda se reivindica, contraditoriamente, apolítica. Com exceção de Kamal Abu Aita e

esparsos integrantes da diretoria da central, são raros os sindicalistas, até entre os dirigentes nacionais, que se enxergam como sujeitos ativos das mudanças em curso. No centro do debate revolucionário que tem contado com a participação incisiva da classe trabalhadora, o temor expresso pela maioria das lideranças sindicais de se envolver em “disputas políticas” não deixa de ser desconexo e, no limite, contraditório. A explicação é simples e, ao mesmo tempo, perturbadora. “Existe um enorme abismo entre as lutas sociais e as lutas políticas neste país”, afirma Fatma Ramadan, uma das principais figuras públicas do movimento e única marxista de destaque da central. “Enquanto os trabalhadores fazem greves, tensionando o governo e parando a economia, quase nenhum se vê como ator político”. Ao abordar o histórico das mobilizações operárias, a dirigente destacava a insistência absurda dos trabalhadores em reafirmar que a greve ocorria não pelo bem da classe, mas da empresa na qual trabalhavam. Enquanto o baixo grau de consciência do proletariado dificulta a organização radical dos trabalhadores, as polarizações sociais, para além do movimento sindical, pouco ajudam. No Egito pós-Mubarak, os assuntos ligados às identidades culturais e religiosas conseguiram monopolizar o cenário nacional, em detrimento das discussões sobre direitos sociais. A divisão islamitas, de um lado, e seculares, de outro, tem ditado quase todo o debate político. Revolucionários, que ombro a ombro acamparam na Praça Tahrir durante os 18 dias de confrontos que derrotaram um ditador no poder há quase três décadas, abandonaram as reflexões em torno de “pão, liberdade e justiça social” para um debate confuso sobre o papel de Deus na nova República. Se em uma primeira fase, de forma unida, conversavam sobre como "limpar" a pátria dos remanescentes do ancien régime, agora seculares e religiosos abandonam o tema. O grau de radicalismo injetado em certos círculos pelo sentimento anti-islamita acabou por empurrar fervorosos militantes de esquerda a suspeitas e temíveis alianças políticas com remanescentes de proa da era Mubarak.

A busca pelo “terceiro campo” Se é inegável o predomínio da questão "secular versus islamita", que sufoca as reflexões em torno de direitos sociais, e continua inquestionável a hegemonia desse último bloco sobre as massas, o grau de inserção da Irmandade entre os trabalhadores é discutível. Após o retumbante desempenho nas eleições parlamentares, nas quais abocanhou 10 milhões de votos, esse número caiu pela metade no pleito presidencial, apenas quatro meses depois. Nas urnas, os "Irmãos" sentiram o efeito de sua atuação desastrosa no Parlamento, onde dedicavam-se mais a examinar a proibição dos biquínis nas praias do que em buscar soluções para as demandas sociais. Nesse vácuo, personagens que, com um discurso nacionalista, centravam-se nas preocupações diárias da população foram ganhando fôlego. Hamdeen Sabbahi, o candidato nasserista de esquerda, que no decorrer de toda a campanha presidencial foi praticamente ignorado pela mídia, terminou em terceiro lugar, com 4,7 milhões de votos. Ou seja, menos de 700 mil votos atrás do candidato do regime, Ahmad Shafiq, e 900 mil de Muhamad Mursi, da Irmanda-

de Muçulmana. Dado seu baixíssimo financiamento de campanha, Hamdeen, cuja candidatura foi ativamente apoiada por Kamal Abu Aita, voou mais alto do que alguns suporiam. Mesmo fora do páreo, Hamdeen parece reunir forças, junto com o nascente sindicalismo independente, para enfrentar os desafios que se apresentam. Os problemas acumulam-se na mais nova democracia do Oriente Médio. Superpopulação, miséria, déficit de habitação, saúde e educação em frangalhos, drástica redução de terras férteis, desemprego galopante. Mursi, que já sela acordos com Washington, dificilmente conseguirá responder aos anseios mínimos dos eleitores no panorama de crise global do capitalismo. Resta às esquerdas superarem falsas polarizações e roubar o espaço de insatisfação popular advinda da ineficiência anunciada do próximo governo. Muitos acreditam que é a deixa para o socialismo entrar em cena e ocupar o centro do palco.


Ato Av. Paulista - Masp - São Paulo

Para palestinos, partido de massas é urgente Soraya Misleh

Uma revolução radical só pode nascer de necessidades radicais.” Encontrada no Manifesto do Partido Comunista, a frase de Karl Marx foi publicada em meados do século XIX, mas se mantém absolutamente atual. Na publicação em pauta, o proletariado é colocado como única classe capaz de conduzir esse movimento. No caso palestino, as ideias de Marx expressam-se com clareza. A situação é extrema, perante limpeza étnica e ocupação de terras contínuas por Israel. Soma-se a esse quadro a falta de uma direção voltada à resistência e transformação da realidade. Há muito a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) deixou de exercer esse papel. Liderada pela ANP (Autoridade Nacional Palestina) e integrada por todos os demais partidos, exceto os islâmicos

Hamas e Jihad, abandonou a opção pela revolução que esteve em sua origem e a fez ter peso fundamental em vários momentos históricos, inclusive antes de sua expulsão do Líbano em 1982. Atualmente, limita-se a negociar. Criada em maio de 1964 como única e legítima representante dos palestinos em todo o mundo, sua reconstrução é prioritária, nas palavras da ativista Leila Khaled, símbolo da resistência. Desde 2011 é negociada a realização de eleições do CNP (Conselho Nacional Palestino) para sua renovação, sem avanços significativos até o momento. Nessas, teriam direito a voto todos os palestinos (incluindo os milhares na diáspora, nos campos de refugiados, nos territórios da Cisjordânia e Gaza e na área anterior a 1948, sob o guarda-chuva da potência ocupante).

Oslo e eleições Após a OLP abandonar a defesa de uma Palestina laica e democrática em todo o território histórico em 1988, o golpe fatal veio com os acordos de Oslo em 1993. Firmados por essa organização com Israel, dividiram os territórios ocupados em zonas sob controle militar do estado teocrático judeu, outras sob administração da ANP (criada a partir de então) e outras mistas. Na prática, permitiram que membros da Fatah, que são a base da Autoridade Nacional Palestina, retornassem ao território para gerenciar a ocupação. Os acordos fracassados culminaram na ampliação desmedida de assentamentos israelenses ilegais na Palestina desde então e na desmobilização e enfraquecimento da resistência em todo o mundo, para ficar em apenas duas de suas trágicas consequências. Ainda como parte de Oslo, foi criado o Conselho Legislativo Palestino, o qual, contudo, diferentemente do CNP, representa somente os palestinos que vivem na Cisjordânia e em Gaza (territórios ocupados em 1967). Ou seja, apenas 1/3 do total dessa população. Nas eleições havidas em 1996, segundo escreveu o analista Haidar Eid para a agência Maan News, grande parte da esquerda e dos islâmicos recusou-se a ir às urnas. Dez anos depois, parte estava cooptada em ONGs (organizações não governamentais) e não boicotou o pleito. Não obstante, o resultado foi inusitado: o Hamas venceu, numa resposta clara dos votantes contra Oslo. O partido islâmico, entretanto, apesar da retórica de não reconhecimento

de Israel, ao participar das eleições para o Conselho Legislativo Palestino, já demonstrava a aceitação tácita dos acordos firmados em 1993 – que não tratam do direito de retorno e autodeterminação do povo palestino e não o consideram em sua totalidade.


Mesmo assim, como não fazia parte dos planos imperialistas e sionistas sua vitória em 2006, a punição coletiva não tardou. Deu-se sob a forma de um cerco criminoso a Gaza, que, conforme Haidar Eid, culminou na morte de mais de 700 habitantes, impedidos de tratamento médico. Em fins de 2008 e início de 2009, uma violenta ofensiva vitimou fatalmente cerca de 1.400 palestinos na estreita faixa, entre os quais aproximadamente 400 crianças. De lá para cá, o Hamas vem dado sinais claros de que aceitaria a solução de um miniestado palestino em menos

de 22% do seu território histórico. E tem sido tão totalitário na sua gestão em Gaza quanto a ANP na Cisjordânia. Mais do mesmo. Segundo Haidar Eid, tem ainda se consolidado na estreita faixa uma classe rentista improdutiva que não só tem abdicado da resistência, mas vem lucrando com o bloqueio.“Seu capital é baseado nos comércios dos túneis (essencialmente a única salvação para a população de Gaza), de terras, em um monopólio sobre a venda de materiais de construção.”

População se levanta Na Cisjordânia, Israel vive o melhor dos mundos, já que transferiu à ANP o papel de garantir o desarmamento da resistência e a prisão daqueles que se levantam contra a opressão e humilhação. No dia 19 de setembro, uma mostra disso: a Autoridade Palestina deteve centenas de ativistas do Hamas em suas casas, muitos deles egressos dos cárceres israelenses, soltos recentemente. Além disso, cancelou as eleições municipais que ocorreriam naquele território palestino ocupado em 1967, consolidando seu caráter absolutista. Antes, em 30 de junho, centenas de manifestantes se reuniram em Ramallah, em frente à Muqata (onde ficava o quartel-general do líder da Fatah, Yasser Arafat, e hoje encontra-se seu túmulo), para protestar contra a visita do vice-premiê israelense Shaul Mofaz. Esse, que chegou a chefiar as forças de ocupação e participou dos massacres na aldeia de Jenin em 2002, durante a segunda Intifada (levante palestino) – além de em ofensivas a Gaza e ao Líbano –, seria recebido pela ANP para conversações. O encontro foi desmarcado diante da pressão popular. Mas as mobilizações foram dispersadas e reprimidas violentamente pela Autoridade Palestina. Várias pessoas ficaram feridas, algumas gravemente, e outras foram presas, sendo soltas a seguir. Diante da arbitrariedade, novos protestos aconteceram nos dias subsequentes. Somando-se a essas vozes, a Frente em Defesa do Povo Palestino de São Paulo – juntamente com comitês de solidariedade em outros estados, sociedades árabes-palestinas, organizações e partidos brasileiros –, enviou carta à Embaixada Palestina neste País pleiteando um posicionamento e exigindo respeito à liberdade de expressão e manifestação. Não teve resposta até agora. Em plena campanha de boicotes ao apartheid de Israel, o convite da ANP a Mofaz foi considerado uma provocação.

Em agosto último, houve grandes greves em Nablus. Em 10 de setembro, irromperam manifestações também em Al Khalil (Hebron) e em Belém. Não obstante os últimos levantes venham se dando por motivos econômicos (anúncio de aumento de impostos e nos preços de combustíveis), o pano de fundo é a insatisfação política. Frente à incapacidade da Autoridade Palestina de pôr fim à ocupação, à expansão desenfreada de assentamentos israelenses, a crise de legitimidade a assola. Atualmente, sua liderança é vista por muitos palestinos como uma marionete nas mãos de Israel, como apontou o professor de Estudos Árabes Contemporâneos da Universidade de Birzeit, Ghasan Khatib, em artigo de sua autoria. Um sentimento de vergonha e humilhação tem levado muitos analistas a enxergarem uma próxima Intifada como iminente.

Nem Hamas, nem Fatah Novamente, é Haidar Eid quem aponta: “Hoje, como parte do binário falsamente construído entre essas duas autoridades (Hamas e Fatah), vem a chamada para novas eleições ao Conselho Legislativo Palestino, como parte de um acordo de reconciliação novo (de novo!)... A escolha de novo é entre a direita religiosa e a secular, com uma terceira alternativa, necessária, ausente.” Para além disso, na sua ótica, sem a participação da totalidade do povo palestino (já que só vota quem está na Cisjordânia e em Gaza, vale reiterar), tais eleições, previstas para outubro, não podem ser consideradas livres. Face a essa crise de representação, o pleito para o CNP (não o Conselho Legislativo, que deve ser boicotado) requer como alternativa um partido revolucionário, que te-

nha como princípio uma solução para a questão palestina que contemple a totalidade dos seus cidadãos. Em outras palavras, a defesa de um estado único em toda a Palestina histórica, laico e democrático, com cumprimento do direito de retorno e autodeterminação. Em tempos de revoluções no mundo árabe, esse partido a ser construído pelos trabalhadores e trabalhadoras deve restaurar o direito legítimo de resistência do povo palestino sob todas as formas. E apoiar incondicionalmente as lutas estratégicas, como por boicotes ao apartheid promovido por Israel. Com uma visão internacionalista e socialista, precisa se somar às revoluções em curso e às demais lutas justas no mundo, caminhos para uma Palestina livre.


Impulsionar a solidariedade à Palestina é desafio do fórum Soraya Misleh

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arcado para ocorrer em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, entre 28 de novembro e 1o de dezembro próximos, o FSMPL (Fórum Social Mundial Palestina Livre) abordará temas fundamentais à solidariedade internacional. Entre eles, o relativo a chamado da sociedade civil palestina feito em 2005 por BDS (boicotes, desinvestimento e sanções) ao apartheid promovido por Israel. Ganhando força em várias partes do mundo, no Brasil a campanha foi lançada pela Frente em Defesa do Povo Palestino de São Paulo, com ampla adesão dos movimentos que a compõem, além de comitês e sociedades árabes-palestinas de diversos estados, em 20 de setembro do ano passado. Fundada nas reivindicações gerais, traz como proposta que governos e sociedade civil promovam embargos e sanções

a Israel até que se reconheçam os direitos fundamentais do povo palestino. Assim, tem como metas: o fim imediato da ocupação militar e colonização de terras árabes e a derrubada do muro de segregação, que vem sendo construído na Cisjordânia desde 2002 e divide terras, famílias e impede a livre circulação; a garantia de igualdade de direitos civis a todos os habitantes do território histórico da Palestina, independentemente de religião ou etnia; e o respeito ao direito de retorno dos refugiados palestinos às suas terras e propriedades (estimados em cerca de 8 milhões em todo o mundo).

O governo brasileiro e Israel Nessa linha, no País, tem como principal bandeira de luta a exigência de que o governo federal rompa acordos e contratos com a potência ocupante. Entre eles, no setor militar. O País se converteu no segundo maior importador da indústria armamentista de Israel ao ascender nessas negociações a partir de 2010. O intercâmbio de delegações é comum entre os dois estados, sobretudo com vistas aos grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo e as Olímpiadas, a se realizarem no Brasil respectivamente em 2014 e 2016. Israel visa assegurar a comercialização de tecnologia de defesa e segurança, principais mantenedores de sua economia – e, portanto, financiadores da ocupação militar de territórios palestinos e opressão a essa população.

A expectativa, com o fórum, é consolidar essa iniciativa fundamental e sair com ações efetivas que fortaleçam a solidariedade internacional. Além da campanha de BDS – estratégica e transversal a todas as demais –, o FSMPL pautará a urgente libertação imediata de todos os presos políticos palestinos (cerca de 5 mil), derrubada do muro do apartheid, bem como o desmantelamento dos assentamentos ilegais e de todo o aparato de ocupação, incluindo os checkpoints. E ainda, a questão da autodeterminação do povo palestino e direito de retorno dos milhares de refugiados, entre outros. Da Assembleia dos Movimentos Sociais, ao encerramento, é mister que saia um documento em que estejam elencadas ações por uma Palestina livre. Somente assim o


fórum poderá realmente impulsionar a solidariedade global e ser considerado um avanço nessa luta. Os palestinos já manifestaram em várias ocasiões ser essa a sua expectativa. Eventos sobre essa causa, segundo suas palavras, ocorrem com frequência. O FSMPL não pode ser simplesmente mais um. Na sua organização, os movimentos sociais têm trabalhado com esse horizonte. Essa perspectiva coloca em questão a concepção do próprio Fórum Social Mundial enquanto instância de debates e articulação plural, a qual não encaminha propostas concretas de ações. O FSMPL não apenas retoma essa discussão antiga, mas pode se converter num divisor de águas em seu processo, caso a decisão coletiva seja por alterar essa dinâmica. Seria muito rico que essa construção ampla em prol da Palestina livre, com toda a sua diversidade, desaguasse em um documento oficial por iniciativas efetivas. Eis uma direção ainda em disputa. As dificuldades, contudo, não são poucas. Além de encontrar resistência junto a algumas ONGs (organizações não governamentais) rumo a essa transformação, um fó-

rum como o que se realizará em novembro pode esbarrar em interesses que não os dos palestinos. Por exemplo, ao pautar a campanha estratégica por boicotes ao apartheid promovido por Israel, tende a incomodar governos que conduzem suas nações em um regime capitalista e seus aliados. Caso brasileiro, que mantém fortes relações comerciais com a potência ocupante, como já citado. Nesse caso, vale o princípio do fórum de manter-se independente de partidos e governos e pressionar por um outro mundo possível e necessário. Lutar por essa transformação implica colocar-se a favor das revoluções e contra as ditaduras árabes, que têm se convertido em asseclas do imperialismo e impedido uma mudança geopolítica na região. A libertação da Palestina passa por isso, por isolar Israel e denunciar seus crimes contra a humanidade.

Tribunal popular

Nesse sentido, uma das iniciativas pensadas para esse fórum é lançar o Tribunal Popular “O Estado de Israel no banco dos réus”. Discutida na Frente em Defesa do Povo Palestino de São Paulo, a iniciativa foi estimulada após o julgamento em 28 de agosto no Tribunal de Haifa, nos territórios palestinos de 1948 (hoje Israel), do assassinato da ativista Rachel Corrie. A jovem estadunidense foi atropelada propositalmente por um buldozer israelense ao se colocar como escudo humano para tentar impedir a demolição de uma casa palestina, em Rafat, na faixa de Gaza. Tinha apenas 23 anos. Seus pais, Cindy e Craig, lutam desde 2005 nos tribunais para responsabilizar o Estado de Israel pela morte dela e condenar o então Ministro da Defesa. O processo conta 2 mil páginas. Suas esperanças de um veredicto justo em agosto, após 15 audiências, contudo, esbarraram na impunidade que impera em Israel. No julgamento, a vítima foi praticamente transformada em culpada. Ao isentarem os responsáveis pelo assassinato, justificaram que Rachel estava em local considerado “zona de combate em tempos de guerra” e que o motorista do buldozer não enxergou a ativista. Uma falácia, já que

ela usava um colete vistoso e portava um megafone. O veículo passou por cima dela três vezes. Indignados com a impunidade – demonstrada nesse caso e em muitos outros, em especial em relação aos palestinos –, militantes da Frente em Defesa do Povo Palestino propuseram a constituição do Tribunal Popular, que deve ser fruto de articulação com os diversos movimentos sociais e populares solidários a essa justa causa. Já existe instância do gênero em âmbito global: o Tribunal Bertrand Russell sobre Palestina, que em novembro último concluiu que Israel se converte em um regime de apartheid. Aos moldes do que prevaleceu até os anos 90 na África do Sul, país que abrigou a sessão que deliberou por esse resultado. A decisão tem peso político e sedimenta o caminho por boicotes. A iniciativa brasileira soma-se e inspira-se nesse exemplo exitoso. Há muito o que julgar. Os casos proliferam. Desde assassinatos, prisões políticas, inclusive de crianças, demolição de casas, roubo de terras e propriedades, construção do muro do apartheid, as ilegalidades são muitas. Sem contar o desrespeito ao direito de retorno, inegociável e inalienável, e a contínua limpeza étnica, desde antes da criação unilateral do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948. Colocar Israel no banco dos réus e denunciar seus crimes contra a humanidade pode dar visibilidade a esse quadro e apontar a urgência de que a justiça seja feita.


Sabra e Chatila, um massacre a ser sempre lembrado Sâmia Gabriela Teixeira

A

limpeza étnica sistemática de 1948 por Israel na Palestina, segundo escreveu o historiador Ilan Pappé, foi o principal acontecimento “constitutivo de sua história moderna”. Mediante essa prática, milhares de palestinos, expulsos ou aterrorizados, se refugiaram no Líbano em busca de abrigo e segurança. Segundo Pappé, tal limpeza foi praticamente eliminada da consciência coletiva global, tornando, portanto, o direito à memória uma das ferramentas mais importantes para a resistência e luta do povo palestino. Quando em 1982 Israel invadiu o Líbano com o objetivo de desmantelar a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), na época presidida por Yasser Arafat, o estado sionista encontrou então a situação perfeita para ocupar o país e aliar-se a um grupo fascista rumo ao poder. Bashir Gemayel, então presidente eleito do Líbano, líder do partido cristão de extrema direita “Falange”, defendia uma política alinhada à dos Estados Unidos.

Em entrevista concedida nos anos 1980, ao ser questionado se era ou não aliado de Israel, Bashir explicou que sua relação com o estado sionista não era permanente, e que, politicamente, aliava-se a quem lhe fosse conveniente, “tomando o máximo de vantagens e benefícios para o balanço e o equilíbrio de poder no Líbano”. Seu assassinato foi o estopim para que um massacre de inocentes, sobretudo de palestinos refugiados, acontecesse com a ajuda prática de Israel. Os planos de tal crime de guerra foram arquitetados durante encontros realizados no dia 15 de setembro, com o então ministro da Defesa de Israel, Ariel Sharon, e líderes da mílicia libanesa ligada ao governo de Bashir, Elie Hobeika, Fadie Frem e Zahi Bustani. Nesses, Sharon autorizava as tropas israelenses, responsáveis pelo cerco aos campos libaneses, a permitirem a entrada dos falangistas. O historiador árabe Fawwaz Traboulsi descreve em seu livro A History of Modern Lebanon os interesses firmados antes da


morte de Bashir, que planejava uma “solução radical” para equilibrar demograficamente o Líbano, “provocando um êxodo geral da população palestina” que, segundo ele, constituía “um povo excedente” na região. Além de Sharon e do governo cristão libanês, os Estados Unidos também tiveram participação ao retirar todas as suas forças de paz, responsáveis pela supervisão da saída da OLP e ao evadir os destacamentos militares da região, pressionando, indiretamente, pela retirada de forças francesas e italianas do local. Na prática, os ataques aos campos de Sabra e Chatila podem ser definidos como um massacre de Deir Yasin revisitado, com as mesmas características cruéis e de limpeza étnica verificadas a partir da Nakba (catástrofe) palestina de 1948. O massacre vitimou fatalmente cerca de três mil pessoas, entre mulheres, crianças e idosos. Muitas delas, decapitadas, mutiladas ou desfiguradas. O jornalista Odd Karsten Tveit, um dos primeiros a entrar nos campos de refugiados após o genocídio, descreveu em relato para a TV Al Jazeera cenas de horror. Em um primeiro momento, visitou um hospital e encontrou um jovem garoto ferido nas pernas e no quadril. Ele gritava:

“Mataram minha mãe e meu pai.” Depois, um grupo de palestinos, “usando kuffyas”, mostrou o que até então se tratava apenas de rumores, a cena real de uma matança: corpos e corpos empilhados em estreitas vielas e multidões aos prantos, buscando por sobreviventes entre os escombros. Tantos mortos, inocentes, esquecidos pela Síria e Jordânia, abandonados, no meio do jogo político sujo de Israel com os Estados Unidos. Apoiados por Washington, os soldados israelenses cometeram as mais diversas atrocidades. O massacre acabou com diversos vilarejos libaneses e muitos acampamentos de refugiados palestinos. Um soldado israelense que atuou no massacre, Ari Folman, em documentário, relembra o genocídio no Líbano, as execuções sumárias e a noite em Beirute com o céu iluminado por bombas de fósforo branco e outras de fragmentação. Quando amanheceu, viu pelas ruas mães e esposas de palestinos mortos, que choravam sobre os escombros e ruas encharcadas de sangue. O então primeiro-ministro de Israel, Menachem Begin, já possuía um extenso currículo de matanças executadas contra palestinos. Ele foi o líder sionista da Stern Gang, grupo terrorista responsável pela chacina em Deir Yasin.

Reflexos do massacre no Brasil A representação da OLP instalou-se em território brasileiro no ano de 1979 e, em 1982, com o massacre dos palestinos no Líbano, realizou em São Paulo, em conjunto com diversas organizações estudantis, sindicatos e partidos políticos, grandes passeatas em protesto ao genocídio dos palestinos. O ativista Mohamed El Kadri descreve que as manifestações contaram com 10 mil pessoas pedindo o fim dos massacres e a Palestina livre. Elie Hobeika, um dos responsáveis pelos massacres, assumiu em 1985 o posto de chefe da milícia cristã, e pouco tempo depois alinhou o grupo aos interesses da Síria. Em janeiro de 2002, faleceu em um atentado a bomba. O assassinato se deu porque ele pretendia depor em Bruxelas em um processo movido por vítimas do massacre. Hobeika seria uma importante testemunha, com relatos que comprometeriam o governo israelense. No mesmo ano, meses depois, o empresário libanês

Mikhael Youssef Nassar e sua esposa foram assassinados em um posto de gasolina da Avenida Juscelino Kubtischek, no Itaim Bibi, em São Paulo. Foram mortos com tiros de uma pistola com silenciador e munição brasileira. O libanês era conselheiro de Hobeika e, depois dele, seria a segunda testemunha mais perigosa a depor contra os organizadores e executores dos massacres em Sabra e Chatila. Era filho do comandante do famigerado Exército do Sul do Líbano, força aliada de Israel durante a guerra civil. Sobre ele recai ainda a suspeita de tráfico de armas e negócios ilícitos com áreas em vias de desapropriação para o rodoanel. O motivo de seu assassinato nunca foi esclarecido pelas autoridades brasileiras, mas há grandes possibilidades que seus executores sejam os mesmos de Elie Hobeika. Tal fato reforçou e, de certa maneira, confirmou a culpa de Israel pela morte de milhares de civis palestinos e libaneses.

O massacre 30 anos depois Apesar de tal evento ser configurado como uma violação grave diante do Tribunal Penal Internacional, nenhuma investigação ou condenação foram diretamente feitas contra o governo do Líbano. E mesmo com a acusação formal por meio de inquérito contra Ariel Sharon, o ministro da Defesa não foi preso nem deixou o governo, somando esse fato trágico da história da Palestina ocupada a tantos outros ignorados por quaisquer organizações ou nações da comunidade internacional. O genocídio contra o povo palestino e as violações dos direitos humanos e das leis internacionais continuam fazendo parte da política assassina de Israel. Segundo a Anurp (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos), mais de 500 mil palestinos buscaram refúgio no Líbano e não são considerados pelo governo

daquele país como moradores permanentes. Vivem isolados em guetos, como cidadãos de segunda classe. Somente em 2010, por exemplo, tiveram direito ao emprego formal e, ainda assim, sem poder ocupar muitos cargos. Um analista sênior da ONG humanitária Human Rights Watch, Nadim Houry, declarou que “os palestinos que vivem no Líbano têm as piores condições de todo o Oriente Médio”, sem direitos civis e acesso a serviços públicos como saúde e educação. Fica claro que, além de genocídios planejados e executados por Israel, Estados Unidos e aliados, os palestinos sofrem todos os dias com o apartheid promovido dentro dos territórios ocupados e nos campos de refugiados espalhados pelo mundo árabe. Sabra e Chatila são perpetuadas e veladas sob limpeza étnica, omissão e abandono dos palestinos.


Ato na Av. Paulista, em frente ao consulado sírio em São Paulo

Síria: revolução até a vitória

O

início e continuidade do movimento no país árabe, bem como seus motivos, são explicados nesta entrevista por Ehab, do Comitê de Solidariedade à Revolução

Síria de São Paulo. Ele desmistifica ainda as falácias sobre o governo de Bashar El Assad e é categórico: “Só a revolução síria apoia de coração os palestinos.”

Como começou a revolução? A revolução começou há 18 meses de forma espontânea. Os revolucionários reivindicavam melhores condições de vida e reformas democráticas no regime. A corrupção do regime impedia que o povo tivesse uma vida digna. Os camponeses tinham que pagar propina para comprar fertilizantes. Muitas vezes, um morador tinha que contratar a empresa do prefeito para fazer um poço artesiano. As famílias ligadas ao regime tomavam os melhores bairros

de Damasco. Além disso, os jovens não conseguiam empregos. Rami Makhlouf, o empresário símbolo do enriquecimento ilícito, dominava cerca de 60% da economia síria. Na verdade, ele era testa de ferro da família Assad. Ministros milionários controlavam tudo, até o tráfico de drogas na fronteira. Devido à repressão brutal contra as manifestações pacíficas, os revolucionários passaram a reivindicar o fim do governo Bashar e do regime do partido Baath.

Mas o regime do Baath sempre reivindicou a unidade árabe, a liberdade e o socialismo... Na Síria há uma piada que diz que a unidade árabe, a liberdade e o socialismo só ocorrem quando você está sozinho no banheiro. Só assim você tem a “unidade árabe”,

tem liberdade para fazer o que quiser e praticar o socialismo. Na verdade, esses eram slogans vazios do regime, era tudo fachada.

E o massacre de Houla? Bashar diz que foram terroristas mercenários a mando do imperialismo... Bashar bombardeou essa vila por 24 horas seguidas. Depois enviou os shabihas (milícias ligadas ao regime majoritariamente compostas por alauítas iludidos pelo regime) que entraram casa por casa assassinando mulheres, crianças e idosos. Em seguida, Bashar voltou a bombardear para destruir tudo, evitar uma reocupação das moradias e assustar toda a população. A mesma estratégia foi feita em Bab Amr (bairro de Homs). O objetivo de Bashar é fazer uma limpeza étnica ao redor de Latakia e Tartous, no litoral, e de Homs, para ter uma área totalmente hegemonizada pela população alauíta. Quando a revolução expulsá-lo de Damasco, ele quer ir para lá.


De onde vêm as armas da oposição rebelde? Estados Unidos, França, Turquia, países do Golfo? Bashar está recebendo armas da Rússia e do Irã. Desde julho, aviões do Irã sobrevoam o espaço aéreo do Iraque para abastecer o exército de Bashar. Ele tem armas de todo tipo: leves e pesadas. Tem helicópteros e aviões que são utilizados para bombardear as vilas sírias. Já existe uma intervenção estrangeira na guerra civil. Mas ela é toda para Bashar. Os revolucionários só têm armamento leve. E pouco. Muitas vezes têm que recuar, porque não têm balas. Posso dizer que 90% do armamento vêm dos próprios sírios, que juntam recursos para comprar armas contrabandeadas pela fronteira a preços absurdos. O restante vem de muçulmanos árabes. Os Estados Unidos, a França, os países do Golfo não apoiam a revolução. Não deram nem uma bala. Os Estados Unidos e a França dizem que querem uma oposição síria unida, querem garantias de que seus interesses serão preservados, que Israel continuará com uma fronteira tranquila no Golã. Mas o povo sírio está fazendo uma revolução não para apoiar os interesses internacionais. Na prática, a revolução vai contra

esses interesses cujo regime do Baath era garantidor. O povo sírio é quem quer verdadeiramente a unidade árabe para se libertar do imperialismo e de Israel. A Árabia Saudita tem um acordo com o Irã. Os monarcas sauditas reprimem a revolução no Bahrein, e o Irã protesta, mas nada faz. Na Síria é o contrário. O Irã ajuda Bashar a esmagar a revolução, e os sauditas protestam, mas nada fazem. O Qatar trabalha junto com os sauditas, faz uma “divisão de tarefas”. A Turquia traiu a revolução. Há anos o governo desse país fez um acordo com o regime de Assad. Assad entregou Iskenderun (chamada de Alexandretta, historicamente é território sírio entregue aos turcos pelo mandato francês. Hoje é a província turca de Hatay) e reprimiu o PKK (partido dos trabalhadores do Curdistão). Em troca, os turcos ficaram amigos do regime do Baath. Mursi, do Egito, é da Irmandade Muçulmana. Mas viajou recentemente ao Irã para se aproximar do regime. Fez críticas a Bashar, mas nunca tomou nenhuma medida concreta de apoio à revolução.

Os partidários do regime sírio acusam a oposição de sectária, de fundamentalista... A força da revolução síria está na pluralidade do povo e das próprias forças do movimento. O povo sírio não quer uma ditadura religiosa para substituir a de Bashar. O povo sírio quer liberdade para poder decidir o seu futuro democraticamente.

E o CNS (Conselho Nacional Sírio), o Exército Livre, os conselhos locais? Quem são os líderes da revolução? Essa revolução não é de cima para baixo. Ninguém tem mandato para falar em nome da revolução. É isso que o imperialismo e a Liga Árabe tanto criticam quando dizem que não há unidade da oposição síria. Na verdade, a revolução está nas ruas da Síria. Qualquer grupo só pode ser porta-voz dessa vontade das ruas. No começo da revolução, líderes do CNS procuraram os governos americano, francês, inglês, fingindo que representavam a revolução e podiam dar as garantias que os imperialistas queriam. Mas o imperialismo é esperto e simplesmente fingiu que os reconhecia e que apoiava a revolução. Isso foi um erro. Mas

o povo sírio não se deixa enganar. O CNS foi muito criticado. Quem manda é quem faz a revolução lá dentro da Síria. Vou dar um exemplo. Se os líderes do Exército Livre da Síria mandarem os revolucionários parar de atacar as forças de Bashar, ninguém vai obedecer. Há pessoas que dizem ser oposição, mas na verdade estão em cima do muro. São contra a revolução se armar. Isso, na prática, é apoiar Bashar.

E a questão palestina? Os Assad nunca apoiaram os palestinos. Aliás, Hafez matou muitos palestinos, talvez até mais que Israel, tanto na Síria como no Líbano. É o mesmo que fizeram a Jordânia e o Khadafi. Os palestinos foram traídos por todos esses governos. Todos eles mantêm os palestinos longe das fronteiras com Israel. Hafez entregou o Golã para gover-

nar em paz com Israel. Os shabihas de Bashar Campo de refugiados palestinos atacaram Yarmouk de Yarmouk em Damasco (bairro palestino em Damasco). Só a revolução síria apoia de coração os palestinos. Por isso tantos nos apoiam.


As mulheres na Síria revolucionária lutando para ter direitos Sara, ativista síria, de Beirute

U

ma rosa no deserto. Esse foi o título que Joan Juliet Buck, da revista Vogue América, escolheu para um artigo sobre Asma Al Assad, a primeira-dama da Síria. Tão constrangida ficou a publicação após a chuva de críticas que recebeu que o artigo sequer consta em seus arquivos. Em um país de sombras, dizia a matéria, Asma Al Assad dirige sua casa democraticamente. O artigo não foi nenhum fenômeno autônomo; a imprensa ocidental tem consistentemente apresentado as primeiras-damas árabes (a rainha Rania, da Jordânia, e Sheikha Moza, do Qatar) como importantes figuras públicas e modelos de feminilidade na região. Qualquer análise superficial dos meios de comunicação do regime, tanto os ocidentais quanto os locais, revela a institucionalização sistemática das primeiras-damas, tornando-as referência ideológica, delimitando, assim, as fronteiras de atuação das mulheres. Ao citar Asma Al Assad, Buck salienta a importância de os jovens sírios se engajarem em "cidadania ativa", ressaltando o papel que sua ONG tem exercido na construção dessa cultura. Durante o atual regime, a sociedade civil foi limitada a formas islamizadas de organizações de caridade, a idas às áreas rurais e marginalizadas, onde Asma tira uma foto sorrindo ao lado de crianças famintas. Tal discurso legitimou o brutal ditador e seu regime como uma

ordem modernizadora, ocidental, e progressiva – chique, inteligente e fluente em inglês. Após a erupção da revolução síria, tudo mudou. No estado sulino de Daraa, em março de 2011, os moradores locais foram para as ruas depois de 14 crianças serem presas e torturadas após escreverem nas paredes de suas escolas o slogan dos levantes populares na Tunísia e no Egito: "O povo exige a queda do regime.” Eles escreveram o grafite porque seu professor foi preso por expressar o desejo de que a revolução começasse na Síria. Desde então, muitos se apressaram a fazer declarações sobre o papel das mulheres na revolução. As leituras variam entre o rosado e o coxo, entre as que alegam haver uma revolução dentro da revolução, de caráter feminista e emancipatório, e outras reclamando que nas cidades libertas da Síria quadros das administrações autogeridas são de caráter predominantemente masculino. Tais declarações simplificadoras dependem da constante divisão sobre qual a sociedade arabe é compreendida, a relação entre o espaço público e privado. Estas, necessariamente promovem uma dicotomia na divisão de gênero. Enquanto é inteiramente irrealista negar o caráter espacial da segregação de gênero, compreender sua complexidade para além de tal dicotomia é necessário para fazer justiça às mulheres revolucionárias na Síria.

Um processo de massas Mulheres de todas as esferas se juntaram à revolução; a atriz, a advogada, a médica, a engenheira, a artista, a cineasta, a romancista, a psicanalista, a intelectual, a mãe e a filha. Razan Zaitouneh, uma advogada de direitos hu-

manos, organizou o que são agora chamados de Comitês de Coordenação Local, arquivando violações do regime contra os cidadãos e difundindo informações confiáveis para o mundo. Ela agora está escondida na Síria, depois de


ter sido acusada de ser uma agente estrangeira. Na busca pela militante, forças de segurança detiveram seu marido e cunhado por semanas. Algumas mulheres tornaram-se ícones para os revolucionários, como Muntaha Sultan al-Atrash, uma ativista de direitos humanos e neta do herói sírio Sultan al-Basha Atrash, comandante da revolta anticolonialista contra os franceses entre 1925 e 1927. Dá-se a ela o crédito de ter sido uma das primeiras pessoas a publicamente proclamar pela derrubada do regime. Marwa Ghamyan, uma jovem mulher, ajudou a organizar um dos primeiros protestos na cidade de Damasco, muito antes da cidade se juntar de forma maciça à revolução. Tal simbolismo se dá justamente por Damasco não estar, ainda naquela época, no campo revolucionário. Ela foi detida e presa várias vezes, e agora vive no exílio. Thwaiba Kanafani, engenheira de formação, deixou sua família no Canadá e se juntou ao ELS (Exército Livre da Síria) para ajudar

a guerrilha em seus planos táticos e estratégicos de ação. Lubna al Merhi, de origem alauíta, agrupamento religioso de Assad, militava na revolução desde o primeiro dia, até que um mandato de prisão foi emitido em seu nome. Ela teve que se refugiar na Turquia em uma fuga organizada pelo ELS. Depois de aparecer em uma entrevista na televisão, sua mãe foi presa como forma de pressioná-la a voltar para seu país. Hanadi Zahlouta, poetisa e engenheira, foi arbitrariamente detida e atacada, de forma física e verbal, por advogados do regime em um tribunal. Hanadi foi acusada de violar três artigos do Código Penal sírio: estabelecer uma organização que visa mudar o caráter social e econômico do Estado, o enfraquecimento do sentimento nacional e incitação ao sectarismo e a divisão étnica e divulgar notícias falsas que enfraquecem a alma daquela nação. Ela foi condenada por 15 anos de prisão, sem nada próximo de um julgamento justo.

A luta por um espaço Como é possível trabalhar para os direitos das mulheres, envolver-se em uma forma de ativismo que tem a política feminista e a auto-organização em seu coração enquanto se presume ser crime "estabelecer uma organização que visa mudar o caráter social e econômico do Estado"? Falar de um espaço público definido pela exclusão das mulheres na Síria é enganoso. A exclusão primária pela qual o espaço público é caracterizado é a exclusão do campo político. As mulheres na Síria revolucionária não são excluídas da pluralidade dos atos. Corpos se reúnem, transformam-se e falam juntos como se reivindicassem um espaço público, um espaço que não é entregue, mas disputado quando as multidões se reúnem. Mulheres indignadas e se erguendo estão resistindo em uma política saturada por relações de poder, em um processo que inclui e legitima, assim como apaga e exclui. Quando os órgãos políticos e organizacionais disponíveis que reivindicam lutar pelos direitos das mulheres são cooptados pelo regime, é essencial que elas tentem relocalizar sua raiva e miséria no contexto de um movimento social em curso. Mulheres na Síria estão lutando por seu direito a ter direitos, um direito que nasce quando exercido. Em manifestações que muitas vezes se desdobram a partir de posições públicas de luto, em que multidões de pessoas velando um corpo se tornam alvo de destruição militar, podemos ver como o espaço público existente é apreendido por aqueles que não têm o direito de se reunir em tal espaço coletivamente, e cujas vidas estão expostas à violência e morte no curso de suas ações. Tradicionalmente, os funerais são espaços exclusivamente masculinos. Após a revolução, tais funerais muitas vezes se transformam em manifestações antirregime, em que mulheres se fazem presentes. De tal forma, exercitam um direito a elas ativamente negado pela força, construindo uma nova aliança social. Manifestações não surgem

do vácuo, elas reproduzem muitas vezes as mesmas relações anteriores de poder. Ao quebrar esses padrões, as mulheres revelam seu poder verdadeiramente revolucionário em sua luta. Não é raro ouvir que muitas mulheres na Síria têm rompido com seus próprios bairros e famílias após a revolução. Yara Nseir, uma jovem da parte cristã da cidade velha de Damasco, foi presa enquanto entregava panfletos contra o regime em seu bairro. Seus vizinhos a pegaram, detiveram-na em sua casa e pediram às forças de segurança para prendê-la. Ela ficou detida por um mês e meio e, depois de solta, fugiu para o Cairo para participar do escritório de mídia do Conselho Nacional Sírio. A importância desse exemplo é que as mulheres revolucionárias estão “desertando” por razões ideológicas e políticas, entrando em redes em que a sua afiliação principal é um sentimento de camaradagem e não o conforto dos parentes. Mulheres que estavam fora da política e do poder agora estão vivendo uma forma específica de destituição política, em um processo revolucionário de luta por um espaço democrático que lhes permite enfrentar o outro como um adversário político. Elas fazem parte da pluralidade de ações, lutando pelo direito a ter direitos, os direitos que precedem qualquer instituição política que possa codificar ou buscar garanti-los. Claramente, o paradigma do ativismo politicamente castrado que Asma al Assad, com muita ajuda da indústria francesa e estadunidense de relações públicas, tentou disseminar fracassou em servir de modelo para as mulheres sírias. No entanto, seria de certa forma romântico afirmar que as mulheres sírias agora estão experimentando uma revolução feminista dentro da revolução. Em um processo revolucionário, elas estão discursivamente mudando cada paradigma em questão, lutando em várias frentes, com o marido, o irmão e o ditador, reivindicando um espaço público próprio, em conjunto com uma revolução social que afirma a vontade popular contra o regime.


O massacre de Sabra e Chatila Waldo Mermelstein

O massacre de Sabra e Chatilla marcou profundamente a causa palestina. Não porque tenha sido algo excepcional na trajetória do sionismo, absolutamente! Antes dele, três quartos da população palestina foram expulsos pelas milícias sionistas, que depois seriam o atual exército de Israel, em 1948, originando os milhões de refugiados palestinos, nunca mais autorizados a voltar a suas casas, terras e propriedades, todas roubadas pelos sionistas. O caráter extraordinário do massacre dos dois campos de refugiados no Líbano foi que pela primeira vez os sionistas começaram a perder a batalha pelos corações e mentes no mundo. Longe estavam os mitos do pequeno estado socialista que lutava contra os atrasados árabes, continuadores do nazismo... A invasão do Líbano, o bombardeio selvagem de Beirute e o massacre executado pelas milícias fascistas cristãs libanesas, sob a proteção dos tanques israelenses, foram um momento de inflexão. Não que os sionistas tivessem recuado, muito pelo contrário, continuaram com sua política até hoje! Mas em alguns anos mais o coração da Palestina, nos territórios ocupados por Israel na guerra de 1967, conheceria a primeira Intifada, levando ao início da luta contra os usurpadores sionistas. Em minha vida pessoal também foi um marco. Eu já era marxista e antissionista há mais de dez anos, mas minha mãe, apesar de apoiadora das causas progressistas no mundo, tinha conflitos de consciência porque acompanhou o assassinato de seus familiares e demais judeus na Polônia onde havia nascido. Mesmo que eu lhe demonstrasse o que Israel fazia, sempre dizia, “mas eles não tinham outra alternativa após a guerra, meu filho”. Aquele foi um momento decisivo para ela. Dona Fany, como sempre, me surpreendia e, um dia, ao telefonar para ela, me falou, “hoje vieram as senhoras da Organização Sionista Mundial e me pediram a contribuição que entregava a elas e disse que para gente que fazia o que fizeram em Sabra e Chatila nenhum centavo mais daria nunca mais!” E sei que, para ela, a ruptura foi muito mais difícil do que para mim, que vivia em outras condições, na luta contra a ditadura, sem ligações sentimentais com os sionistas. Muitos anos se passaram, o movimento palestino já teve momentos ainda mais difíceis, a esperança dos acordos de Oslo mostrou-se um pesadelo, o sonho dos dois estados cada vez mais anulado pela colonização sionista implacável (eu, por convicções políticas, nunca acreditei nessa fórmula, mas sempre respeitei a opção dos palestinos naquele tempo), cada dia significa uma nova tentativa sionista de roubar terras e expulsar palestinos. Neste exato momento, estão fazendo uma ofensiva contra os beduínos do deserto do Naqab, para construir mais casas para os judeus de Israel. Um acontecimento muito importante naquela época do massacre de 1982 foi o surgimento de um poderoso movimento pacifista entre os judeus de Israel (chamado Paz Agora), exigindo a retirada das tropas, levando 150 mil pessoas às ruas de Tel Aviv, o que levou à crise do governo e ajudou a forçar a retirada parcial das tropas, coisa que só se concretizou anos depois, pelas mãos do movimento

de resistência libanês, comandado pelo Hezbollah. Infelizmente, o movimento pacifista em Israel decresceu, desintegrou-se e deixou de ser uma oposição à crescente ofensiva do estado sionista, o que se pode ver dramaticamente em seu silêncio quando dos ataques ao Líbano (2006) e Gaza (2008) e no fato que a onda de protesto social entre os judeus israelenses em 2011 não se pronunciou sobre o maior problema social de Israel: a opressão contínua contra a minoria palestina, para não falar da opressão ao conjunto do povo palestino. Muito terá que avançar o movimento entre os judeus israelenses para que compreendam que um povo que oprime outro não pode ser livre, o que se vê na crescente restrição aos que se atrevem a se solidarizar com os palestinos. Uma palavra sobre as comunidades judaicas do mundo. Durante muitos anos foram uma fiel retaguarda dos sionistas, pois consideravam que essa era uma atitude correta como compensação aos horrores do Holocausto da Segunda Guerra Mundial, ajudados pela manipulação da mídia de que Israel era um pequeno estado cercado por agressivos e poderosos países árabes. A partir da agressão ao Líbano em 2006, isso começa a mudar e setores importantes, ainda que minoritários, das comunidades dos que se reconhecem como judeus no mundo, particularmente nos EUA, começam a se pronunciar contra as barbaridades cometidas supostamente em seu nome. Após muitos anos, o ano de 2011 marcou uma nova esperança para o povo palestino. O processo revolucionário nos países árabes da região estremeceu e estremece os regimes que colaboraram sempre com Israel, em particular o do Egito, e como diz o ditado, “o caminho para Jerusalém passa pelo Cairo”. Já vimos isso parcialmente com o relaxamento do controle absoluto sobre a fronteira egípcia com Gaza, afrouxando um pouco o cerco estabelecido por Israel. Certamente, o caminho das revoluções árabes não é linear, houve e haverá muitas oscilações, mas abriu-se um momento distinto, em que os palestinos não estão mais sozinhos a enfrentar os sionistas e os governos árabes reacionários. Claro que a cena interna da Palestina é pouco animadora nos últimos anos, com relação à suas direções, com o enfrentamento entre os dois principais movimentos, acomodação de setores com a invasão, mas a resistência aos avanços da colonização continua e uma primavera palestina é algo que não deverá tardar, rompendo os novos muros de concreto, arame farpado e políticos erguidos após os acordos de Oslo. Ao homenagearmos os massacrados em Sabra e Chatila, cumprimos nosso dever de honrar a memória daqueles que morreram nas mãos diretas e/ou indiretas dos sionistas, mas fundamentalmente para preparar a luta do próximo período pela libertação da Palestina! Glória aos mártires de Sabra e Chatila! Abaixo o sionismo opressor! Por uma Palestina laica, democrática e não racista em toda a Palestina histórica, com direito de retorno dos refugiados às suas terras usurpadas, com Jerusalém unificada como sua capital, libertação de todos os presos políticos e com direitos iguais para todas as crenças religiosas e ateus!


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