Al Thawra 2

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lembrar e resistir: 64 anos da nakba palestina

Al Thawra no 2 - junho 2012


Editorial

Por uma nova OLP Eleições livres para o Conselho Nacional Palestino Uma onda de revoluções está mudando o cenário no mundo árabe.

A

ordem imperialista sustentada por governos árabes, seja diretamente colaboracionistas ou “nacionalistas”, está sendo questionada pela ação revolucionária de milhões de jovens, trabalhadores e trabalhadoras que se lançam à luta contra as ditaduras e por justiça social – emprego, salário, educação, saúde pública e moradia. Essa onda revolucionária combina com um desgaste crescente de Israel perante a opinião pública mundial. A invasão do Líbano em 2006, a agressão à Gaza em 2008-2009, os ataques à flotilha da paz em 2010 e o apartheid imposto diariamente aos palestinos nos territórios ocupados abrem os olhos dos povos de todo o mundo para a questão palestina. O movimento palestino renasce em meio a esse processo. A campanha de BDS (boicotes, desinvestimento e sanções) prospera nos países centrais, a semana contra o apartheid israelense é realizada em dezenas de cidades, milhares de jovens e veteranos viajam para a Palestina ocupada para se integrar aos protestos diários contra a ocupação, lado a lado com a juventude palestina, as manifestações por ocasião da formação de Israel ensinaram para os povos de todo o mundo o significado da palavra nakba. No entanto, há um descompasso en-

tre a resistência do povo palestino e a sua liderança histórica, a OLP (Organização para a Libertação da Palestina). Os acordos de Oslo firmados entre os líderes da OLP e o Estado de Israel significaram o “tratado de Versalhes” da causa palestina, como dizia o intelectual Edward Said. Nesses acordos não havia nenhuma palavra sobre o direito de retorno dos refugiados palestinos; nada sobre a discriminação contra os palestinos que vivem nos territórios ocupados em 1948; sequer havia algum prazo para o fim da ocupação da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém. Pior ainda,

concedia a Israel o papel de autoridade militar sobre a maior parte da Cisjordânia, as chamadas áreas B e C, além do controle do trânsito de pessoas, mercadorias e capitais. Desde então, a liderança da OLP privilegiou o papel de gerenciamento da ocupação em detrimento da luta contra ela. Essa rendição perante a força ocupante foi acompanhada do esvaziamento das instâncias da OLP e da prioridade dada à Autoridade Palestina, eleita somente por uma parcela minoritária do povo palestino que vive sob ocupação. Nunca mais houve eleições para a direção da OLP.

Por uma nova liderança para a resistência As revoluções do mundo árabe nunca estarão completas enquanto perdurar a ocupação da Palestina. Neste momento de retomada da resistência palestina, são necessárias novas lideranças que possam reunificar o povo palestino, seja os que vivem nos territórios ocupados em 1948 e 1967, seja os que estão exilados, para conduzir uma luta eficiente para libertar toda a Palestina. Ter eleições livres para o Conselho Nacional Palestino, efetuadas por todas as comunidades palestinas que estão espalhadas pela Palestina ocupada e por todo o mundo, é con-

dição essencial para que o povo palestino possa, democraticamente, decidir os rumos de sua luta. Dedicamos esta edição do Al Thawra ao povo palestino e à sua luta por uma Palestina livre, onde todos os palestinos tenham direito de retornar e de viver com todos aqueles que aceitem conviver em paz, sem privilégios nem discriminação.

Soraya Misleh

sorayamisleh@yahoo.com.br

Mohamed El-Kadri

assisp2000@hotmail.com

Fábio Bosco

fabinhobosco@yahoo.com.br


A partilha da Palestina e o papel nefasto das superpotências e do Brasil Fábio Bosco

E

m 29 de novembro de1947 é votada a partilha da Palestina pela ONU (Organização das Nações Unidas). Alguns meses depois é formado o Estado de Israel. Apesar de contar com apenas 30% da população local, o estado israelense toma 78% do território palestino, expulsa cerca de 800 mil palestinos e destrói 531 vilas.

Essa votação atendeu a objetivos de longo prazo das potências colonialistas de criar um estado aliado e totalmente dependente do apoio dos países imperialistas. Foi realizada em meio a manobras regimentais levadas a cabo pelo representante do Brasil, o diplomata Oswaldo Aranha, e à pressão econômica e ao suborno efetuados

pelos Estados Unidos e pela Agência Judaica. Competindo com os Estados Unidos, a União Soviética não só apoiou a partilha e a formação do Estado de Israel, como foi a principal provedora de armamentos que possibilitaram ao recém-formado exército de Israel a vitória militar contra os palestinos e os árabes.

O imperialismo e a dominação do mundo árabe Ao final da I Guerra Mundial, a derrota do império otomano criou as condições para o Reino Unido e a França, principais potências europeias que venceram a guerra, imporem seu domínio sobre uma região estratégica. O Oriente Médio sempre foi uma área de trânsito entre a Europa e a Ásia, por onde passavam mercadorias e exércitos. A isso se uniu a existência abundante de petróleo de ótima qualidade e de fácil prospecção. Para impor seu domínio na região, os colonialistas definiram várias estratégias, entre as quais a formação de "estados" aliados e dependentes do apoio ocidental. Os franceses derrotaram os sírios e formaram um estado cristão no Líbano. No entanto, o fato de que a população cristã libanesa se identifi-

cava como árabe levou ao fracasso a estratégia francesa. Já os ingleses utilizam o sionismo, um movimento europeu apoiado por alguns magnatas, como os Rothschilds, para promover a colonização da Palestina, visando a formação de um estado judeu em contraposição à população árabe, amplamente majoritária. A partir de então, o Reino Unido será o principal apoiador da imigração de judeus europeus e da colonização da Palestina. Às vésperas da II Grande Guerra, os ingleses mudam de política. Para fazer frente à Alemanha, era necessário atrair o apoio dos árabes. Por isso, lançam o Livro Branco em 1939, que desencorajava a partilha da Palestina e limitava a imigração de judeus de forma a impedir que a população judia

excedesse 1/3 da população total. Sem a partilha da Palestina e em minoria, seria impossível para o movimento sionista formar seu estado. Nos anos seguintes, os sionistas vão se enfrentar com os ingleses e vão encontrar um novo apoio entre as potências vencedoras da II Guerra: os Estados Unidos e a União Soviética.

para discutir a questão palestina, presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, então forte aliado dos Estados Unidos. Os países árabes defenderam a declaração de independência da Palestina e não aceitavam a definição da Palestina como única solução para a dramática situação dos refugiados judeus que estavam na Europa. O representante da Síria declarou: "A organização criada para ocupar-se dos refugiados já está estabelecida e desempenha seu trabalho. Esta é a organização que deve ocupar-se do restabelecimento ou repatriação dos refugiados da Europa (...). Os árabes da Palestina não são responsáveis de forma alguma pela perseguição dos judeus na Europa. Essa perseguição

é condenada por todo o mundo e os árabes figuram entre os que simpatizam com os judeus perseguidos. Não obstante, não se pode dizer que a solução desse problema incumbe à Palestina, país pequeno que já recebeu um número suficiente desses refugiados e outros desde 1920. Qualquer delegação que deseje demonstrar simpatia possui em seu país mais espaço do que o que existe na Palestina e dispõe de maiores facilidades para receber esses refugiados e prestar ajuda." No entanto, a Assembleia Geral decidiu formar a Unscop (Comissão Especial da Nações Unidas para a Palestina), excluindo de seus debates a proposta de independência da Palestina. A Unscop foi formada por 11

A partilha da Palestina O Reino Unido saiu da II Guerra fragilizado e não tinha condições de manter suas tropas na Palestina, onde era alvo de milícias sionistas. Então, em fevereiro de 1947, os ingleses entregam para a ONU a definição sobre o futuro da Palestina. "Desde a sua fundação, a ONU encontrava-se paralisada pela política da guerra fria. No esquema básico para a Palestina, contudo, a Rússia e os Estados Unidos, as duas superpotências, estavam de acordo: a Palestina deveria ser dividida entre o movimento sionista e os palestinos." (Ilan Pappe em História da Palestina moderna, capítulo 4) Em abril de 1947 ocorre a primeira sessão da Assembleia Geral da ONU


países: Canadá, Tchecoslováquia, Guatemala, Países Baixos, Suécia, Peru, Uruguai, Índia, Irã, Iugoslávia e Austrália. Ela (Unscop) visitou a Palestina em junho e, em seguida, os campos de refugiados judeus na Europa. Escreveu que a maioria dos refugiados judeus queria ir para a Palestina por temor do antissemitismo, ainda que fosse notória a preferência pelos Estados Unidos, que limitava então o ingresso dos imi-

grantes. Em agosto, a Unscop informou suas recomendações: a maioria de sete países (Canadá, Tchecoslováquia, Guatemala, Países Baixos, Peru, Suécia e Uruguai) propôs a partilha da Palestina, com a formação de dois estados independentes em associação econômica, a internacionalização de Jerusalém, bem como a imigração sem restrições da população judia. A minoria (Índia, Irã e Iugoslávia)

defendeu a independência imediata da Palestina, reivindicando o direito natural da maioria árabe de 70% da população de permanecer com a posse de seu país, onde vivia há séculos. Defendia ainda a formação de um estado federal entre árabes e judeus, mas uma única cidadania palestina concedida a árabes, judeus e outros. Jerusalém seria a capital. A Austrália não aprovou nenhuma das propostas.

EUA e União Soviética apoiaram a partilha da Palestina Em 11 de outubro, o representante estadunidense H. Johnson informou que apoiaria a proposta da maioria da Unscop: partilha e imigração. Dois dias depois, a União Soviética informou ter a mesma posição. Com o apoio das duas superpotências, o plano de partilha estava pronto para a votação. Nos dias 24 e 25 de novembro foi feita a primeira votação. As propostas da minoria de enviar a questão para a Corte Internacional de Justiça, de que os estados membros recebessem em seus territórios os refugiados judeus, e do estabelecimento de uma Palestina unificada e independente, foram derrotadas uma a uma, mas contaram com o apoio da Argentina, Grécia, Haiti e Libéria. Já a proposta da maioria (partilha, imigração e internacionalização de Jerusalém) contou com 25 votos a favor, 13 contrários, 17 abstenções e duas ausências (vide quadro). No entanto, para ser aceita como deliberação da Assembleia Geral da ONU, era necessária a maioria de 2/3. Se fosse à votação e nenhuma proposta tivesse 2/3, não haveria uma resolução da ONU sobre o tema, di-

ficultando enormemente os planos de constituir um estado judeu na Palestina. No dia 26 de novembro, a proposta de partilha não contava com os 2/3 de votos necessários. Por isso, o brasileiro Oswaldo Aranha, que presidia a sessão, suspende os trabalhos sob protestos dos países árabes. Nos dias seguintes, 27 e 28 de novembro, as sessões foram adiadas pelo presidente Oswaldo Aranha. No período, vários países foram submetidos a negociatas e chantagem pelos Estados Unidos. Em 29 de novembro, um sábado, com a maioria de 2/3 assegurada, Oswaldo Aranha convoca a sessão para votação. Os países árabes apresentam nova proposta: uma Palestina unitária com autonomia local para a minoria judia. Os representantes dos Estados Unidos, Johnson, e da União Soviética, Gromyko, se opuseram a discutir a proposta dos árabes e exigiram que a votação fosse iniciada. Foram 33 votos a favor da partilha, 13 contra, dez abstenções e o impedimento de voto do Sião (vide quadro). Além do abuso do poder econômico contra países como Haiti, Libéria e

Oswaldo Aranha, embaixador brasileiro, manobra para votar partilha.

Filipinas, o representante do Sião, que se opusera na primeira votação, teve suas credenciais retiradas sob a alegação de um golpe de estado em seu país, que já ocorrera antes mesmo da primeira votação.

Após a partilha, às armas

Truman & Stálin

Os dirigentes sionistas entendiam que a partilha da Palestina teria que ser materializada com a expulsão da população local. Para isso, elabora-

ram o plano Dalet, o qual preconizava a utilização de milícias armadas para aterrorizar e expulsar os palestinos. Esse processo foi acelerado devido ao risco de intervenção internacional. A própria delegação estadunidense sugeriu à ONU em março de 1948 que a administração da Palestina fosse assumida pela ONU por um prazo de cinco anos. Apesar do embargo de armas determinado pela ONU, a União Soviética e seus países aliados se transformam nos principais provedores de armamentos para Israel. Escreve Ilan Pappe: "Até maio de 1948 os dois lados estavam mal equi-

pados. Então o recém-formado exército de Israel, com a ajuda do partido comunista local, recebeu um grande carregamento de armas pesadas da Tchecoslováquia e da União Soviética. Isso incluía um acordo de armamentos no valor de US$ 12.280.000 fechado entre a Haganá e a Tchecoslováquia referente à aquisição de 24.500 rifles, 5.200 metralhadoras automáticas e 54 milhões de cartuchos de munição." (Ilan Pappe, The Ethnic Cleansing of Palestine, capítulo 4). Ele continua: "Durante a trégua nos combates, os exércitos árabes não se reabasteceram de armamentos porque


a Grã-Bretanha estava decidida formar áreas de influência e Stálin forneceu as armas a observar o embargo de armas apoiaram a nakba (catástrofe para Israel derrotar os imposto pela ONU às facções palestina). "Em 14 de maio de palestinos. em guerra. As forças judaicas, 1948 foi declarado o Estado por seu lado, continuaram a de Israel. À 1h da madrugada eludir a proibição, importando do dia seguinte, o presidente quantidades consideráveis de estadunidense Harry Truman armamento pesado dos países anunciou o reconhecimento de do bloco do leste, que desobefato do novo estado pelo seu deceram à medida da ONU. A país. Uma hora antes, sir Alan paridade da primeira semana Cunningham, o último alto cofoi substituída por uma supemissário britânico, abandonara rioridade dos judeus quando o país. Dois dias mais tarde, a Harry Truman: os EUA os combates foram retomados União Soviética acrescentou substituíram a Grã-Bretaem meados de junho de 1948." nha como principais patroseu reconhecimento, mas foi cinadores de Israel. (Ilan Pappe, História da Palesmais longe que a superpotência tina moderna, capítulo 4). rival e concedeu o reconheciSem o apoio das superpotências Israel. A União Soviética e os Esta- mento de jure." (Ilan Pappe, História não haveria a formação do Estado de dos Unidos competiam entre si para da Palestina moderna, capítulo 4).

Conclusão A nakba palestina foi fruto da vontade dos países imperialistas de dominarem o mundo árabe. Também foi fruto da determinação de Stálin, o ditador soviético, de ter o Estado de

Israel como seu aliado na região. Lamentável foi o papel do embaixador brasileiro que, subserviente aos interesses estadunidenses, fez manobras regimentais de toda ordem, rejeitando

todas as solicitações dos países árabes e dirigindo os trabalhos com o único objetivo de aprovar a partilha. Essa dívida do Brasil para com o povo palestino tem que ser saldada.

QUADRO DE VOTAÇÕES NA ONU - 1947 25 de novembro

29 de novembro

Votos a favor da partilha: Austrália, Bolívia, BRASIL, Canadá, Costa Rica, Tchecoslováquia, Chile, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Islândia, Nicaragua, Noruega, Panamá, Perú, Polônia, República Dominicana, BieloRússia, Ucrânia, Suécia, URSS, União Sul-Africana, Uruguai e Venezuela.

Votos a favor da partilha: Austrália, Bélgica, Bolívia, BRASIL, Canadá, Costa Rica, Tchecoslováquia, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Filipinas, França, Haiti, Guatemala, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nicaragua, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos, Panamá, Paraguai, Perú, Polônia, República Dominicana, Bielo Rússia, Ucrânia, Suécia, URSS, União Sul-Africana, Uruguai e Venezuela.

Votos contra: Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egito, India, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Sião, Síria, Turquia e Iêmen. Abstenções: Argentina, Bélgica, Colômbia, China, El Salvador, Etiópia, França, Grécia, Haiti, Honduras, Libéria, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Países Baixos, Reino Unido e Iugoslávia. Ausências: Filipinas e Paraguai.

Votos contra: Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egito, Grécia, India, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Síria, Turquia e Iêmen. Abstenções: Argentina, Colômbia, Chile, China, El Salvador, Etiópia, Honduras, México, Reino Unido e Iugoslávia. Impedido de votar: Sião


Intelectuais a serviço da nakba palestina Soraya Misleh

“N

inguém é bastante poderoso ou bastante rico para deslocar um povo de um lugar de habitação e transferi-lo para outro. Só uma ideia pode realizar esta grande tarefa.” A frase é expressa na obra O estado judeu, de Theodor Herzl, publicada em 1896. Pai do sionismo político moderno – movimento colonialista que surgiu na Europa no final do século XIX – e idealizador do Estado de Israel, o autor argumentava que a única saída para os judeus seria partir da Europa, dado o antissemitismo. A Palestina foi o destino escolhido no I Congresso Sionista realizado na Basileia, Suíça, em 1897. Como estratégia para convencê-los a imigrarem – pois não havia esse ímpeto num primeiro momento –, o sionismo procurava reinventar a noção de regresso para um local ocupado por “forasteiros”. Como afirma Ilan Pappe, em seu livro La limpieza étnica de Palestina, a designação era dada a não judeus – os quais, para muitos sionistas, ou eram invisíveis ou um obstáculo a ser eliminado.

Assim, criava-se o mito da “terra sem povo para um povo sem terra”. O palestino, conforme a tradição orientalista, era transformado num não povo. Somente tamanha desumanização poderia conceber a limpeza étnica planejada e levada a cabo em 15 de maio de 1948, quando da criação unilateral do Estado de Israel. A partir de 29 de novembro de 1947 – quando foi aprovada na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, a Resolução nº 181, relativa à partilha da Palestina em dois estados, um judeu e um árabe, sem consulta aos seus habitantes –, foram expulsos cerca de 800 mil nativos árabes de suas terras, que se tornaram refugiados, e destruídas 531 aldeias, como aponta Ilan Pappe, em seu livro História da Palestina moderna. Esse processo teve continuidade ainda em 1949, portanto mesmo após a instalação do Estado teocrático judeu. O papel da intelectualidade europeia num primeiro momento – e depois es-

tadunidense – é indicado pelo escritor palestino Edward Said, que em sua obra Orientalismo não deixa dúvidas de que a colonização é justificada de antemão por um discurso cultural que divide o mundo entre “ocidentais” e “orientais”. Os primeiros, como explicitado em seu livro, seriam basicamente os civilizados, com raciocínio lógico, pacíficos, capazes de valores reais; já os últimos equivaleriam a uma massa uniforme de povos atrasados, bárbaros, afeitos à violência por natureza, que não podem se autogovernar, precisam ser temidos e, portanto, controlados. O Orientalismo não é um conceito novo. Data tradicionalmente, para o “Ocidente cristão”, do século XII, quando houve o surgimento de várias cátedras de estudos sobre o “Oriente”. Não obstante, o século XVIII é entendido pelo autor como um marco de sua fase moderna, em que teria tido uma espécie de “renascimento”, com a ampliação das representações sobre os povos “orientais”. A pretensão era


fortalecer a ideia de uma civilização europeia superior. Na Palestina, o mandato britânico nas primeiras décadas do século XX – após a queda do Império Otomano que detinha o domínio daquelas terras até sua derrota na Primeira Guerra Mundial – sustentou um projeto que manteria essa esfera de poder e influência sobre a população nativa. Essa perspectiva consideraria que os habitantes do local seriam inferiores e por isso não deveriam ter os mesmos

direitos que os demais. Traria ainda a crença de que há bons e maus árabes – estes últimos os que se recusariam à passividade e seriam, portanto, considerados terroristas. Para Said, nesse sentido, “o Orientalismo rege completamente a política de Israel para com os árabes”. O que explicaria um conjunto de leis discriminatórias em Israel em relação a estes, e mais. Na ótica de Said, um mito acaba por sustentar e produzir outros. As representações são muitas e

servem para manter o status quo. Entre elas, a de que Israel sempre reage e se defende e mantém sua política militarista por uma questão de segurança ante vizinhos hostis, sempre prontos a atacar, que desejam sua destruição sistemática. O discurso orientalista tem sido hábil em desumanizar esses “vizinhos” e manter acesa a chama do medo e do desconhecimento do “Outro” na sociedade israelense.

Modernizar a população indígena Esse estilo de pensamento refletia a atitude comum dos europeus em relação à Palestina ainda antes, no século XIX. A população indígena deveria ser modernizada para seu próprio bem ou dar lugar aos recém-chegados e às suas ideias – entre os mais ambiciosos e enérgicos estariam os sionistas. Um número bastante reduzido de estrangeiros não se enquadraria nesse grupo, mas não teria sido impeditivo à colonização na localidade. Conforme Ilan Pappé, viajantes,

missionários e escritores europeus publicaram mais de 3 mil livros e relatos de viagem sobre a Palestina durante aquele século, todos eles pintando-a como um local primitivo, à espera de redenção por parte desses estrangeiros. Uma organização arqueológica britânica, intitulada Palestine Exploration Fund [Fundo de Exploração da Palestina], considerava esse movimento uma espécie de operação de salvamento. Como escreve o historiador israelense, a visão corrente era de que

“a Palestina tinha urgente necessidade de modernização, visto que as pessoas que os exploradores europeus encontravam eram obviamente infelizes no seu mundo pré-moderno”. O que não se sustenta minimamente, quando se levam em conta as memórias e relatos dos palestinos. Mas, para os orientalistas, estes não tinham voz – portanto, não eram ouvidos, tampouco lhes era dado o direito de expressão.

projeto colonial. Na ótica de Said, “reconstruir uma língua oriental morta ou perdida significava, em última análise, reconstruir um Oriente morto ou esquecido”. E preparar o terreno para o que viria a ser feito no local posteriormente. Muitos dos vilarejos destruídos deram, assim, lugar a parques e bosques israelenses, numa negação sistemática da nakba e uma busca por fazer com que aquelas paisagens tivessem aparência europeia. A escolha por espécies não nativas a serem plantadas nesses locais encontraria essa justificativa, de acordo com Pappé. O historiador israelense lembra que o Fundo Nacional Judeu apresenta em seu site oficial esses lugares como atração turística. A organização é apresentada como responsável pelo florescimento do deserto e a aparência europeia da paisagem. Esse processo continua em curso, e as representações sobre os árabes – no caso específico, palestino – são fundamentais para tanto. Contudo, esse discurso tende a perder força. A consciência crítica ao longo desse percurso seria o caminho

para se desafiar a visão orientalista, o que implica necessariamente um reconhecimento histórico das injustiças cometidas ao longo desse percurso. Pode acelerar esse processo o fato de se intensificar, perante um mundo cada vez mais conectado globalmente, a repercussão negativa das últimas ações de Israel – desde a invasão do Líbano em julho de 2006, passando pela ofensiva à Gaza entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009 até o ataque à chamada “flotilha da liberdade”, que transportava cerca de 750 pacifistas e ajuda humanitária aos palestinos daquela faixa, em 31 de maio de 2010. E mais recentemente, a repressão violenta às manifestações nos territórios ocupados, em solidariedade aos 2 mil presos políticos palestinos em greve de fome até 14 de maio. A resistência heroica desse povo, somada ao crescimento de ações em todo o mundo, como o boicote acadêmico e cultural a instituições que sustentam esse sistema de opressão – e são a espinha dorsal do orientalismo –, mostra que o caminho para uma Palestina livre passa por não silenciar, mas continuar a luta.

Reinvenção dos lugares Os orientalistas tiveram papel fundamental também na reinvenção das aldeias destruídas durante a chamada nakba palestina – termo utilizado pelos árabes, que designaria a catástrofe que se abateu sobre eles há 65 anos. O processo de “limpeza” incluiu apagar quaisquer vestígios de sua existência anterior e reinventá-las sob outra forma, segundo Pappe, como lugares hebreus puros. O historiador israelense revela no livro La limpieza étnica de Palestina que o espólio resultante da limpeza étnica promovida naquele território foi acompanhado da mudança de nomes dos vilarejos. O autor chega a utilizar o termo “memoricídio” para descrever esse trabalho, que teria sido realizado com o auxílio de arqueólogos e especialistas em estudos bíblicos, “que se ofereceram voluntariamente a colaborar com um comitê de nomes oficial cuja tarefa era hebraizar a geografia da Palestina”. Como parte desse movimento, a língua hebraica também foi recriada. O objetivo, puramente ideológico, era desarabizar a região, mudar sua história e, assim, garantir o sucesso do


Que ajuda é essa? ONGs e projetos internacionais na Palestina promovem dependência estrutural, pagam o custo da ocupação e não desafiam as políticas israelenses Pedro Ferraracio Charbel *

Q

uando colonos religiosos extremistas jogavam lixo e pedras contra palestinos do alto de suas colônias no meio da cidade velha em Hebron, a comunidade internacional instalou uma rede de proteção sobre a rua (foto abaixo). Hoje é possível passar pelas ruas de Hebron desviando apenas das gotas de chorume, já que os pedaços de lixo e tijolos se mantêm suspensos... No entanto, no fim das contas,

não se questionou o fato de que mais de 90% das investigações da polícia israelense contra violência de colonos são encerradas sem nenhuma acusação (1); ou que os ataques de colonos aumentaram em 317% entre 2007 e 2011 (2). Muito da ação da comunidade internacional nos territórios palestinos ocupados tem apenas ajudado a “normalizar” a ocupação israelense e o re-

Aline Baker

gime de segregação entre judeus e palestinos. Os postos de controle agora possuem bebedouros e áreas cobertas; há rotas alternativas pavimentadas aos palestinos quando a eles é proibida uma determinada estrada, rua ou calçada. “É querer fazer um apartheid limpo, bonitinho”, diz o palestino Waseem, apontando para uma placa “Mantenha o terminal limpo” na fila do posto de controle 300, que separa Belém de Jerusalém. Ações de caráter humanitário seriam muito bem-vindas, não fosse a ausência de outras formas de ação e a conivência internacional e dos projetos ditos humanitários com os crimes e violações do Estado de Israel. Isso fica evidente quando se observa que os Estados Unidos já doaram 115 bilhões de dólares a Israel em assistência bilateral (3), ao passo que os projetos bilaterais de desenvolvimento na Cisjordânia e Gaza (USAid) não passam de 3.5 bilhões de dólares (4). Para completar, depois do pedido de reconhecimento do Estado palestino na ONU (Organização das Nações Unidas), as doações estadunidenses foram drasticamente reduzidas, senão interrompidas, em diversos projetos humanitários.


Além disso, é fundamental ressaltar que as necessidades humanitárias palestinas não advêm de desastres ou condições naturais, tampouco de um problema socioeconômico histórico, fome estrutural, guerra civil... Trata-se de um povo que teria condições materiais e técnicas para se desenvolver plenamente não fosse a ocupação militar sob a qual está submetido. “Se nós tivermos a permissão para construir uma roda d’água, faremos isso, não precisamos da ajuda internacional”, diz Abu Sakr, líder de uma pequena comunidade no Vale do Jordão. Ele se refere ao fato de que depois dos acordos de Oslo, os palestinos, quando autorizados, só podem usufruir da água de nascentes ou de pouca profundidade, ao passo que colonos não possuem restrições. “A questão palestina é mais importante do que doar farinha”, diz ele. E acrescenta: “Conquistar nossa liberdade é mais importante do que a ajuda internacional.” No caso palestino, essa ajuda até poderia se configurar como forma de resistência e questionamento à ocupação, se assim o desejasse a comunidade internacional. Centros poliesportivos em Ramallah, no entanto, em nada mudam a realidade das pequenas vilas ameaçadas diariamente pelo exército, colonos e políticas restritivas de mobilidade, construção e acesso à água e outros recursos básicos. Nas áreas C da Cisjordânia (5), estruturas palestinas são demolidas diariamente,

num contínuo ímpeto das autoridades israelenses de deslocar e expulsar os palestinos da região. Nesse contexto, mesmo a ajuda humanitária se configura como contestadora, na medida em que conseguir sobreviver e manter-se em suas terras é uma forma de resistência. Na área C, existir é resistir – mas é nas áreas A e B que a ajuda internacional se concentra. Vale ressaltar, todavia, algumas experiências bem-sucedidas e direções que mais países deveriam seguir. Os painéis solares financiados pela Alemanha ao sul de Hebron são talvez o maior exemplo. Os painéis estão sob ordem de demolição por estarem construídos em área C, o que resultou em algo talvez mais importante do que a energia que eles produziriam: grande debate e alarde público sobre a possibilidade de o governo israelense demolir um projeto alemão. Também a União Europeia começa a falar em construir e investir em área C. O Itamaraty, por sua vez, argumenta que não pode colocar em risco um orçamento limitado em obras que possam ser demolidas – por isso limita-se a projetos em áreas A e B. O fato é que garantir estruturas e ações humanitárias nessas áreas não desafia a ocupação israelense e acaba por financiar serviços que seriam de responsabilidade da Autoridade Palestina e, no limite, de Israel. Isso porque Israel, enquanto potência ocupante, contraria a IV Convenção de Genebra quando não presta os serviços básicos aos palestinos e em todos os territórios ocupados. Muitos desses serviços, especialmente depois de Oslo, acabam sendo oferecidos por ONGs ou pela Autoridade Palestina em cooperação com organismos internacionais, nos mais variados campos: educação, saúde, lazer, transporte etc. O dilema aparente se

daria entre o fato de a ajuda internacional pagar o custo da ocupação ao cumprir as obrigações a que se nega Israel; e a impossibilidade de deixar seres humanos sofrendo sem assistência. Nesse cenário, o número de ONGs só cresce. Outros casos internacionais mostram quão falha e problemática é a ação massiva de ONGs em zonas de crise. O Haiti é o exemplo maior. Na Palestina, os tradicionais problemas de dependência, corrupção e exploração econômica da desgraça se somam a aspectos particulares da ocupação israelense. “Algumas organizações, antes de empregar palestinos, demandam que o candidato à vaga assine que não pertence a determinadas organizações ou partidos políticos”, explica Abdul Hakim Sabbah, diretor da ONG Project Hope. Diversos doadores internacionais – estados e organizações – requerem nomes e cópia dos documentos dos empregados interlocutores das ONGs que operam na Palestina, objetivando garantir que não haja ninguém com vínculo político “indesejado”. Numa dinâmica competitiva alucinada, muitas ONGs disputam comunidades, financiamentos e se negam a desenvolver projetos realmente emancipatórios. O objetivo deveria ser construir uma Palestina livre que não precisasse de internacionais, mas o que se vê é a criação de uma dependência estrutural. Muitos palestinos são incorporados na nascente burocracia desse sistema que substitui o Estado de Israel e a Autoridade Palestina em quase todas as suas obrigações. A falta de responsabilidade coletiva faz com que alguns observem que ajuda internacional não só estaria prolongando a ocupação, mas também configurando estruturalmente uma sociedade e um governo problemáticos para uma futura Palestina livre, seja na solução de um ou dois estados.

1. Yesh Din, dada sheet 12/02/2011 2. EAPPI, Fact sheet 2012, n1 3. USA, Congressional Research Service 4. USAid.gov 5. Os acordos de Oslo dividiram a Cisjordânia entre áreas A (controladas pela Autoridade Palestina), B (controle civil palestino e militar israelense) e C (total controle de Israel). * Pedro Ferraracio Charbel é estudante de Relações Internacionais e Direito. Viveu nos territórios palestinos ocupados por três meses e é membro da Frente Palestina USP.


A ativista palestina Rana Hamadeh desafiou o exército israelense

Mulheres palestinas não fogem à luta Soraya Misleh

No último dia 1

de maio, a imagem de uma mulher que subiu em um tanque israelense em frente à prisão israelense de Ofer, na cidade de Ramallah, Cisjordânia, Palestina ocupada, ganhou o mundo. A jovem palestina que desafiou o exército ocupante, de nome Rana Hamadeh, durante um protesto em solidariedade aos presos políticos palestinos então em greve de fome, chama atenção para a resistência feminina histórica naquelas terras. As mulheres palestinas nunca fugiram à luta. Pelo contrário. Já no final do século XIX, quando se instalaram os primeiros assentamentos sionistas em território palestino, elas estiveram na linha de frente dos protestos contra o

a colonização que viria a culminar na criação unilateral do Estado de Israel (em 15 de maio de 1948). Em 1903, período que marca o começo da segunda onda de imigração sionista – a primeira se deu a partir de 1882 –, criaram uma associação de mulheres. Nos anos 1920, sua atuação se fortaleceu e em 1929 aconteceu o primeiro Congresso de Mulheres Árabes naquele destino, que resultou na formação de organização do gênero. Elas também tiveram papel crucial nas revoltas de 1936 a 1939 contra o mandato britânico e a entrega de terras aos sionistas, em que os palestinos foram totalmente desarmados, numa preparação para a limpeza étnica planejada que foi levada

a cabo em 1948. Nesse ano que marca a nakba (catástrofe), uma brigada feminina, batizada de Zahrat (pequenas flores), colocou-se, como durante toda a luta, na linha de frente contra a expropriação do seu território. Já diante da consolidação do projeto sionista, em 1965, foi criada a União Geral das Mulheres Palestinas, atrelada à OLP (Organização para a Libertação da Palestina). No início seu papel ainda era, contudo, limitado, reservado à assistência social e aos cuidados com a saúde. Mas a política não foi deixada de lado.

Ações diretas Ao final dos anos 60 e início dos 70, diversas delas partiram para a ação direta, diante da omissão internacional à violação cotidiana de direitos humanos e da expansão israelense, que

em 1967 resultará na ocupação por parte dessa potência bélica de toda a Palestina histórica. A mais conhecida em todo o mundo é Leila Khaled, da Frente Popular pela Libertação da

Palestina. Expulsa de Haifa aos quatro anos, tornou-se refugiada e aos 15 começou a se envolver com a luta ar-


mada. Então com apenas 24 anos, participou do sequestro de aviões em troca de prisioneiros políticos e colocou em evidência a causa palestina. Foi detida em uma das ações e saiu após outra operação do gênero. A escritora e ativista egípcia Nawal El Saadawi, em seu livro A face oculta de Eva – As mulheres do mundo árabe, cita outros nomes, como o de Amina Dahbour, de Fatma Barnaw e de Sadis Abou Ghazala. “A extensa lista de mártires serviria para encher as páginas de todo um capítulo”, frisa. E conclui: Seus “feitos intrépidos um dia serão admirados pelas futuras gerações de jovens e mulheres”. Nesse período, conquistaram mais espaço na política, fortalecendo sua luta contra o apartheid israelense e o sexismo. Nas intifadas (levantes) de 1987 e 2002, novamente as mulheres foram às ruas. Na primeira delas, as que viviam nas áreas rurais assumiram papel central, mas as que residiam na região urbana também marcaram presença. Para se ter uma ideia, um terço das baixas era da parcela feminina. Segundo escreveu o historiador israelense Ilan Pappe em História da Palestina moderna, a luta era dupla, contra os padrões da sociedade patriarcal e a ocupação. O número de mulheres detidas passou de centenas no início da década de 70 para milhares nos anos 80. Após a última troca de prisioneiros, em 2011, restam ainda nove nos cárceres israelenses, as quais têm se somado aos protestos constantes contra as más condições a que são submetidas, assim como todos os palestinos detidos ilegalmente pelas forças de ocupação. Ao longo de toda essa trajetória, as mulheres se destacaram também em outras trincheiras de luta, como no campo das palavras. No âmbito cultural, entre as que merecem ser lembradas encontra-se Fadwa Touqan, que nasceu em 1917 na cidade de Nablus, na Cisjordânia, e faleceu em 2003. Nas palavras de Moshe Dayan, chefe do exército israelense quando da chamada Guerra dos Seis Dias, em 1967, seus versos eram mais subversivos que dez atentados. As mulheres são as que mais sofrem em situações de emergência humanitária ou conflitos armados ou, por-

tanto, frente à ocupação de territórios palestinos. É o que aponta relatório divulgado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 2010. Os dados são alarmantes: durante a última ofensiva à Gaza, ao final de 2008 e início de 2009, 114 foram assassinadas; 40% não puderam fazer o pré ou pós-natal; e quatro foram mortas em função do bloqueio naqueles anos, por terem sido proibidas de circular para obter tratamentos especializados, medicamentos ou serviços de saúde adequados. Na Cisjordânia, a situação é igualmente grave. Dados de 2007 indicam que cerca de 70 mulheres deram à luz em checkpoints, impedidas de passar para ter seus filhos com dignidade nas maternidades, sendo que seis delas sofreram violência, apesar de em trabalho de parto. Trinta e cinco bebês morreram e cinco mães. Mas não se intimidam. Representando quase metade da população total de 3,9 milhões nos territórios palestinos ocupados em 1967 (1,8 milhão), estão reunidas em diversas organizações, por educação, saúde, trabalho, contra a ocupação e o sexismo. Ali, assim como nos campos de refugiados, em que são milhares, na diáspora ou onde hoje é Israel, sempre se fizeram e fazem ouvir e notar, desafiando o projeto sionista. Em recente visita à Palestina, a constatação de que a voz feminina é decisiva: “Antes saíamos de nossa

terra, porque achávamos que voltaríamos em breve. Hoje podem destruir nossas casas, roubar nossas oliveiras, nos agredir, não vamos embora. Nem que tivermos que morar numa tenda, aqui é nossa terra.” Sentimento que expressou tão bem Fadwa Tuqan, no poema cujo título em português seria “Basta-me permanecer em seu seio”*: Basta-me morrer em meu país aí ser enterrada dissolver-me e aí reduzir-me a nada ressuscitar erva em sua terra ressuscitar flor que uma criança crescida em meu país arrancará basta-me estar no seio de minha pátria. terra ........erva .....................flor

* Em http://www.guata.com.br/poesiasempre/081126PS_poesia_palestina_de_combate.html, cujos poemas foram extraídos do livro "Poesia Palestina de Combate", publicado em 1981, pela Editora Achiamé, no Rio de Janeiro. Tradução de Jaime Cardoso e José Carlos Gondim.


O Brasil e as bombas Cluster As razões pelas quais não ratificamos o acordo que proíbe o uso de um armamento que causa graves danos a civis em conflitos armados Sâmia Gabriela Teixeira

B

erihu Mesele (foto) é um soldado reformado da Etiópia. Ele é do norte do país, da cidade de Mekele, é casado e tem dois filhos. Tem uma dura lembrança de 1998, da guerra entre Eritréia e Etiópia, conflito movido por questões territoriais. Nesse ano, no dia 5 de maio, por volta das três horas da tarde, a Escola Primária Ayder foi alvo de um avião de combate que despejou munições Cluster, bombardeando o estabelecimento civil. Ao ouvir as explosões, Berihu correu para a escola com a intenção de socorrer os feridos. Com ele, uma multidão também seguia na mesma

direção, todos preocupados com as crianças, filhos, sobrinhos, netos. Já haviam se passado 30 minutos quando um novo avião sobrevoou o local e bombardeou novamente a escola. Berihu foi atingido por uma munição Cluster e perdeu a consciência. Acordou após dois dias no hospital e logo soube que os ferimentos causados pela bomba eram muito graves, sendo necessário o amputamento de suas pernas. Hoje, o etíope Berihu é cadeirante, trabalha como funcionário do governo e ajuda a divulgar a história de vítimas das bombas Cluster, reivindicando o banimento desse tipo de arma de guerra.

Esforços humanitários e indústria bélica brasileira Em 30 de maio de 2008 ocorreu em Dublin a Convenção sobre Armas de Fragmentação, que proíbe os países que ratificarem o tratado de usar munições Cluster, desenvolver, produzir, estocar, reter e transferir, direta ou indiretamente, a bomba. Além de tais condições, os países que ratificaram a convenção devem prestar suporte às vítimas e regiões de risco que ainda possuem bombas do gênero intactas. O Brasil se posicionou como observador na convenção e não ratificou o tratado. Desse grupo de países na Convenção, 13 não ratificaram a proibição do uso da Cluster. Apesar do Brasil não ser um país com histórico de guerras, o impacto de sua produção de munições do tipo se relaciona diretamente com países envolvidos em conflitos nos quais foram e são utilizadas as bombas. Essa relação pode ser notada nos negócios entre Israel e Brasil. Em setembro de 2011, a Embraer Defesa e Segurança anunciou a aquisição de 25% da AEL Sistemas, subsidiária da Elbit Systems, a maior empresa bélica privada de produtos de defesa de Israel. Além da participação com a AEL Sistemas, a Embraer formalizou com a subsidiária a criação de uma nova empresa, a Harpia Systems, que pre-

vê disputar um mercado potencial de 1 bilhão de dólares nos próximos 15 anos. Essa nova empresa terá estrutura própria em Brasília e a intenção é de que se estabeleça uma fábrica para engenharia e produção. Além dessas empresas, de acordo com a ONG Human Rights Watch, outras companhias têm destaque no mercado da indústria bélica brasileira e não somente fabricam essas armas de munição fragmentada como também exportam para outros países, principalmente do Oriente Médio. Dentre as empresas citadas estão a Avibras, Tar-

get e Ares, outra companhia comprada pela Elbit Systems no final de 2010. Uma das principais atividades da empresa israelense no Brasil é desenvolver a tecnologia de aviões de combate não tripulados, modelos utilizados no período de 2008 e 2009 na Faixa de Gaza e que tiveram a precisão de bombardeio fragilizada por uma pesquisa da Organização de Direitos Humanos Btselem, que constatou que 42 ataques por aviões desse tipo mataram 87 civis na região. Para o historiador e especialista em teoria militar Douglas Anfra, há


um jogo político e econômico que não respeita questões humanitárias, uma vez que “a indústria bélica é

um lobby extremamente poderoso, capaz de pressionar governos, financiar campanhas e, na pior das ações, saciar

a necessidade de girar capital com o ‘destruir e reconstruir’ que guerras proporcionam”.

“Desenvolvimento necessário” Ratificar a convenção para banir as bombas Cluster, na visão de alguns especialistas, significa uma perigosa desestabilização econômica no campo da indústria bélica, o que afeta o posicionamento político do país. Para Rafael Duarte, professor de Relações Internacionais do UDF (Centro Universitário do Distrito Federal), “o Brasil não ratificou por ter interesses comerciais, como contratos firmados ou em vias de confirmação, e também políticos”. Outro ponto significativo para ele é que “Rússia, China, Argentina, Estados Unidos, Arábia Saudita e Israel, entre muitos outros, nem chegaram a assinar o tratado, e apesar de a União Europeia quase que totalmente ter ratificado, por ser uma potência regional, tornou-se necessário que o Brasil fosse um pouco mais pragmático em termos de Defesa Nacional e produção bélica”. Como um contraponto, ao analisar todos os possíveis fatores para a não ratificação, Douglas defende que o banimento das bombas Cluster não teria força o suficiente para prejudicar os negócios da indústria bélica brasileira nem mesmo o desenvolvimento armamentista, “pois a tecnologia desse tipo de arma já é considerada obsoleta perto das inovações de ponta das chamadas guerras eletrônicas”. Uma fonte do Itamaraty, do gabinete do ministro de Relações Exteriores, reforça essa lógica ao dizer que “qualquer esforço para eliminar um tipo de armamento não seria capaz de enfraquecer a economia no âmbito industrial de armamento, pois nessa

posição basta redirecionar os investimentos para outros tipos de armas e tecnologias”. Para Gabriel Amaral, cientista político e consultor do IBE (Instituto Brasil Empresarial), “a ratificação por parte do Brasil só seria viável com o desenvolvimento de uma compensação para essa indústria, para que nem a soberania, nem o desenvolvimento de pesquisa e diminuição da arrecadação tributária venha a prejudicar os interesses nacionais”. Para isso, já há uma cooperação por parte do governo, que desde 2011 adotou uma medida provisória que beneficia a indústria bélica com reduções ou isenções de tributos por cinco anos, dentre eles o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e o PIS (Programa de Integração Social). Gustavo Vieira, especialista em Direito Internacional e coordenador da

Campanha Brasileira Contra Minas Terrestres e Bombas Cluster, acompanhou as negociações do Tratado de Oslo e dialogou diretamente com o Itamaraty, sem obter resultados. “A pior consequência disso é que o Brasil dessa maneira apoia uma posição da comunidade internacional em favor de uma arma que sabidamente causa danos inaceitáveis a civis.” De acordo com Gustavo, a posição do país viola os limites fixados pelo Direito Internacional Humanitário. “Por não permitir distinção dos alvos pela imprecisão – que pode ser fruto da altitude, vento, inclinação do solo, forma de armazenamento que alteram a condição do uso – e pelas falhas que geram efeitos de longo prazo – falhas de explosão que facilmente chegam a 30% das munições empregadas – essa é uma arma de efeitos desproporcionais”, explica.

insuficiente. Nós estamos atrás de todos os outros países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), ocupando a 47ª posição de 132 países no ranking mundial de inovação”, diz Gabriel. Porém, considerando que o Chile está em colocação avançada e é um país que ratificou a convenção, o banimento de tais armas parece, de fato, não intervir no desenvolvimento bélico do país.

Segundo o consultor jurídico do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), Gabriel Valladares, a soberania é respaldada pelo fato de os países não signatários ou os que não

A soberania do Estado Outro ponto analisado é o fato de que o desenvolvimento bélico de qualquer país é de suma importância para afirmar a sua soberania, e que esse crescimento favorece a situação econômica consideravelmente. “O Brasil é um dos países com menor taxa de pesquisa e desenvolvimento do mundo e qualquer medida que possibilite restrição a essa indústria pode reduzir ainda mais esse índice que já é


ratificaram a convenção “não serem obrigados a apresentar justificativas para negar o tratado, por conservar, dessa maneira, a soberania de Estado”. Essa condição conflita com o perfil político do Brasil que, comentado por Douglas, “ainda carrega características da ditadura militar, por ser um dos países em que, no momento de transição política para a democracia, não prendeu militares responsáveis por mortes injustificáveis e não reformou o exército como um todo”, deixando assim os interesses políticos, valida-

dos pela necessidade dessa soberania, um tanto duvidosos. No caso da guerra entre Eritréia e Etiópia, especificamente, do bombardeio à Escola Primária Ayder, Berihu foi apenas uma das centenas de vítimas sobreviventes. Conforme as informações da instituição Land Mine and Cluster Munition Monitor (Monitor de Minas Terrestres e Munições Cluster), em outubro de 2010, a Eritréia negou fabricar munições Cluster e justificou a existência dos artefatos utilizados como material de herança

da luta pela independência: bombas Cluster CB-500. A arma é de origem chilena, país com histórico e perfil militar semelhante ao do Brasil, que nas décadas de 80 e 90 teve elevado lucro com a produção e exportação de Cluster, enviadas principalmente para a Etiópia e Iraque. Com a ratificação feita em agosto de 2011, o país deve seguir as normas da convenção e evitar os danos e perigos que ainda existem nos destinos para os quais exportou a arma, e que matam e ferem até hoje civis comuns, como Berihu.

*A história do etíope Berihu faz parte dos relatos divulgados pela Organização Internacional Não Governamental Ban Advocates, que apoia vítimas de bombas Cluster e minas terrestres e defende o banimento de tais armas seja em produção, exportação ou armazenamento. Para conhecer o trabalho da organização, acesse o site:www.handicapinternational.be/em

A luta pelo banimento No ataque ocorrido na Etiópia, além de Berihu, 53 pessoas foram mortas e 185 feridas. E esse caso não é isolado. As bombas Cluster agrupam munições explosivas capazes de atingir uma superfície extensa de até 30 mil metros quadrados e espalhar mais de 600 munições a cada míssil. A maioria das bombas cai sem uma direção precisa, mas, apesar disso, muitos militares defendem a importância do uso por permitir atacar múltiplos objetivos de uma superfície, como tanques, veículos blindados e tropas. A experiência diz que a Cluster

Soldados e armas israelenses derramam sangue do povo palestino. O Brasil não deveria legitimar esse massacre.

cumpre bem seu papel militar, mas também pode-se incluir na conta dos “múltiplos objetivos” a vida de civis inocentes e até crianças e seus familiares localizados em uma escola. O perigo ainda ultrapassa os períodos de conflitos ou guerras, pois uma bomba Cluster, quando disparada, pode se manter intacta no solo até que sofra manejo brusco ou queda. Uma criança de 20 quilos é capaz de explodir essa munição, o que a torna tão perigosa quanto as minas terrestres. Há 23 países que têm registro de vítimas por explosões de bombas Cluster. São eles: Afeganistão, Al-

bânia, Azerbaijão, Bósnia-Herzegovina, Camboja, Chad, Croácia, Eritréia, Etiópia, Iraque, Israel, Kosovo, Kuwait, Laos, Líbano, Montenegro, Marrocos, Rússia, Serra Leoa, Sudão, Síria, Tadjiquistão e Vietnã.


Saudades da terra natal Arturo Hartmann e Soraya Misleh*

P

alestino de Qaqun, uma pequena aldeia de 2 mil habitantes que ficava a 8km do mar, Abder Raouf Ibrahim Yusuf Misleh ainda tem memórias da sua curta vida na Palestina e do dia 15 de maio de 1948, o dia da nakba (catástrofe). Desde 1956 não vê mais sua terra. Aos 77 anos, sofre os sentimentos de nostalgia e impotência de um refugiado na diáspora. Hoje, Qaqun não existe mais e integra o

rol das cidades inteiramente destruídas pelos sionistas em 1948, ano da criação do Estado de Israel. Em seu lugar, um parque em meio a paisagem tipicamente europeia. Aqui, um relato de olhos que testemunharam a expulsão e pés que percorreram o caminho dessa tragédia. De sua vida em São Paulo, parece ainda enxergar e andar sobre as ruínas de sua Qaqun.

Como era a vida na sua terra? Abder Raouf: Em 1945 eu tinha Era lua cheia, meu pai falou para mim: um prazer que não tem limite. Não dez anos, meu pai era agricultor e arrendava terra, tinha 200 hectares em que era cultivado o trigo. Meu pai andava a cavalo no meio daquele trigo e ficava cantando, de tão bonita que era a plantação, o trigo era mais alto do que ele, chegava a 1,90m. Uma noite eu dormi no meio daquela plantação.

“Filho, você é pequeno, vai dormir.” Era meia-noite, porque durante o dia era muito calor, então trabalhava-se a noite inteira. Eu peguei o sapato, pus no chão, pus um lenço embaixo da minha cabeça, um maço de trigo sob meu corpo e dormi. Aquela noite eu não trocava por nada nesse mundo, senti

existiam nas aldeias convites para casamento, todo mundo participava. Era assim, vivendo em paz, com carinho. A gente tinha ligações com colonos judeus que viviam pertinho da aldeia, a gente vivia muito bem com eles, o problema foi o sionismo. Mas esses judeus apoiaram de maneira violenta.

O senhor lembra o dia exato em que as tropas de Israel chegaram a sua aldeia? Abder Raouf: Foi em 14 de maio ses, que mandaram eles recuarem. nia, e ficamos mais ou menos quatro de 1948. A Palestina tem 28 mil km2, um terço é deserto, outro é montanha e outro é terra plana, eu nasci na terra plana. Até que fizeram uma divisão da Palestina em 1947 e o cemitério da aldeia faria parte do futuro Estado de Israel. Meu pai falava: “Não é possível, a gente tem parente enterrado, não pode nem visitar mais?” Em 1948, os líderes árabes venderam a Palestina. Tanques do exército iraquiano estavam na minha aldeia e o coronel, que estava com 35 soldados, telefonou para os comandantes ingle-

Esse coronel era um patriota, estavam também 300 a 400 soldados palestinos da minha aldeia, eles não tinham treinamento, os iraquianos tinham. Ele falou: “Nós não vamos obedecer à ordem e vamos defender a aldeia até a morte.” O comando-geral ficava a menos de 3km de distância e deixou todos os iraquianos e os soldados da minha aldeia morrerem. A nossa casa foi invadida e perdemos tudo, a gente não tinha nem o que comer. Fomos para a casa dos meus tios, que era bem simples, nas montanhas, na Cisjordâ-

meses. Para sobreviver, porque até os animais que meu pai tinha foram mortos, perto da fronteira, tinha uma área lá em que estava plantado milho branco, de noite parávamos o caminhão em uma vala e conseguimos tirar cinco caminhões, os vizinhos fizeram o mesmo. Daí, as metralhadoras começaram a cantar. Meu pai, que tinha 12 filhos, falou: “Vamos dividir entre todos.” Cada irmão ficou com dez sacos de 50kg, com aquilo, que hoje não corresponde a mais do que 100 reais, nós recomeçamos a vida.

O senhor veio para o Brasil quando? Abder Raouf: Dia 8 de junho de não tinha como mandar estudar 1956. Foram 14 dias de viagem de navio, desembarcamos em Santos, era bem cedo, 8h, 8h30. Encontrei com meus irmãos no mesmo dia, Hasan e Muhamad, que ficou três anos no Brasil, ele tinha sete filhos lá na Palestina, juntou 5, 6 mil dólares e voltou para criá-los. Na situação que eles viviam

e não tem um deles que não tem diploma universitário. Estudaram através de bolsa de estudos. Hoje, o povo mais culto do Oriente Médio é o palestino, não existe analfabeto desde 1956, e não tem onde cair morto, mais de 4,5 milhões vivem em campos de refugiados.

Qual a sua expectativa em relação à Palestina? Abder Raouf: A gente tem que es- a nossa terra. O império americano perar, 100 anos, 200 anos, até aparecer uma força superior a Israel e recuperar

não vai durar a vida inteira, todo império um dia tem fim.

* Entrevista publicada originalmente no site www.icarabe.org – ICArabe (Instituto da Cultura Árabe)


Pequeno tributo a Edward Said Fábio Bosco

E

dward W. Said (foto) nasceu em Jerusalém, em 1935, de uma família abastada. Tal qual a maioria do povo palestino, ele e sua família vivenciaram a expulsão de sua terra natal por ocasião da formação do Estado de Israel em 1948. Em 1951, foi estudar nos Estados Unidos. O êxito obtido lhe valeu a admissão nas prestigiosas universidades de Princeton e Harvard, nas quais cursou graduação e pós-graduação em estudos literários. Dois eventos o levaram a trilhar o caminho de ativista da causa palestina, da qual ele se tornaria o mais conhecido e eloquente defensor no mundo ocidental. O primeiro foi o assassinato brutal de Farid Haddad, um amigo de sua família, executado pelas forças de segurança de Gamal Abdel Nasser por sua militância no Partido Comunista Egípcio. Em sua autobiografia Out of Place, escrita em 1993, ele afirma: “A vida e a morte de Farid foram uma inspiração por quatro décadas, nem todas períodos de consciência ou de ativismo político.” Posteriormente, Said dedicou sua obra A questão palestina a Farid Haddad e ao poeta palestino Rashid Hussein. O segundo acontecimento foi a derrota na guerra árabe-israelense de 1967, que colocou uma sombra na esperança de retorno à Palestina. A guerra de 1967 “parecia materializar o deslocamento que permeava todas as outras perdas... Eu não era mais a mesma pessoa após 1967”, escreveu em Out of Place. Nesse momento, em 1968, Said concebe o tema central de sua mais influente obra: Orientalismo, redigindo The Arab Portrayed, na qual critica o tratamento discriminatório dado aos árabes pela mídia e pela produção cultural e intelectual ocidental. A partir daí, escreveu inúmeros artigos para diversas publicações, como o The New York Times e o Le Monde

Diplomatique, sempre na condição de intelectual engajado na causa palestina. Em 1975, ele testemunhou ante uma comissão do Congresso estadunidense sobre relações internacionais: “Imaginem que, por uma maliciosa ironia, vocês fossem declarados estrangeiros em seu próprio país. Essa é a essência da sina palestina durante o século XX.” Entre 1975 e 1976, Said concluiu sua obra mais conhecida e um dos estudos contemporâneos mais influentes na área de humanidades: Orientalismo. Nessa obra, disseca a forma como o Oriente é representado e inventado, em contraposição a um Ocidente “civilizado”, com o objetivo de controlar e manipular o que se considera explicitamente diferente. Em 1977, Said é eleito para o Conselho Nacional Palestino sem aliar-se a quaisquer facções palestinas. Ele entendia sua participação como “um ato de solidariedade” que lhe permitiria atuar em prol da causa palestina. Em 1979, publicou A questão palestina, uma denúncia contundente contra o colonialismo brutal imposto à Palestina e seu povo. As dificuldades para sua publicação ilustram a controvérsia sobre a Palestina. Editoras estadunidenses rejeitavam a obra por achá-la demasiado provocativa. Uma editora libanesa se propôs a publicá-la em árabe, desde que Said retirasse as críticas à Síria e à Arábia Saudita, condições que ele não aceitou. Já entre os palestinos, havia outra controvérsia: a defesa da solução de dois estados em oposição à então política da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) de uma Palestina laica e democrática em todo o seu território histórico. Said não se omitiu de debates difíceis. Denunciou a manipulação “orientalista” da mídia estadunidense quando da tomada da embaixada daquele país em Teerã por estudantes revolucionários e criticou o apoio incondicional a Israel durante a invasão do Líbano em 1982. Em 1984-1986, organizou uma exposição de fotos sobre o dia a dia dos palestinos através da ONU (Organização das Nações Unidas), a qual, contudo, recusou-se a realizá-la se os letreiros redigidos por Said fossem mantidos, por entender que despertavam polêmica. Durante a Guerra do Golfo, em 1991, o autor de Orientalismo criticou

a omissão da maioria da intelectualidade estadunidense quanto aos abusos de seu governo. Em setembro do mesmo ano, Said renunciou ao Conselho Nacional Palestino alegando leucemia. Mas outro motivo para seu desligamento era seu descontentamento com o apoio dado pela OLP a Saddam Hussein. Em 1993, ele denunciou os acordos de Oslo, firmados entre a OLP e o Estado de Israel. Afirmou que “longe de garantir os direitos palestinos, os acordos asseguram o prolongamento do controle israelense sobre os territórios ocupados”. “Clinton, como um imperador romano, traz dois reis vassalos para sua corte imperial e os faz dar as mãos na sua frente.” Said defendeu a renúncia de Arafat, ao que Arafat respondeu com a proibição de circulação de seus livros e escritos. Em 1999, Said mudou de posição sobre a política de dois estados e publicou no New York Times Magazine um artigo defendendo um estado democrático binacional na Palestina, baseado na igualdade entre todos. Ele faleceu em 2003, em decorrência de leucemia. Publicou 20 obras, algumas delas em 31 línguas, e deu palestras em mais de 200 universidades em todo o mundo. Foi membro da Academia Americana de Arte e Ciências e da Sociedade Real de Literatura. Afora sua atuação na defesa da causa palestina, foi um dos principais intelectuais do pós-guerra, sendo referência obrigatória em estudos pós-coloniais. Não poderíamos deixar de escrever esse pequeno tributo ao maior porta-voz da causa palestina no chamado Ocidente. Sua defesa incondicional dos direitos do povo palestino, sua denúncia implacável do imperialismo e do sionismo, sua posição de independência perante os governos árabes corruptos e mesmo com relação a Arafat são qualidades de um grande intelectual que, ao contrário de muitos, pautou-se pelo ativismo engajado por uma causa difícil, porém justa. Sua atuação é um exemplo prático do que preconizava Karl Marx: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras. A questão, no entanto, é transformá-lo.” Fica aqui essa modesta homenagem a um grande lutador.


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