EDIÇÃO ESPECIAL Abril 2010
Socialista
Publicação pela construção da Liga Internacional da Luta Árabe
Trinta anos depois, as massas voltam às ruas
A mobilização democrática no Irã e a revolução de 1979 E
ste número do Al Baian é uma edição especial dedicada ao Irã. As mobilizações produzidas ao conhecer-se o resultado eleitoral,voltaram a por as massas no centro da vida política iraniana. Estas mobilizações nos lembram as que deram lugar a revolução que provocou a queda do Xá da Pérsia Reza Palehvi. Hoje em dia para as gerações mais jovens,aquela revolução é uma grande desconhecida e quando nos noticiários a recordam, aparece distorcida como uma revolução dos radicais islâmicos: a revolução dos aiatolás.Entretanto aquela revolução foi muito mais do que isso.A profundidade da mesma e o papel fundamental que jogou a classe operária tem que ser resgatado. Nosso objetivo com esta edição é em primeiro lugar recordar uma das maiores revoluções do século passado e analisar como foi controlada e derrotada pelos aiatolás.Esta revolução conseguiu tornar o país independente do imperialismo,mas ao não chegar a classe operária ao poder para avançar até o socialismo, foi retrocedendo. O regime teocrático que acabou impondo-se destrui os organismos operários e levou as massas revolucionárias a continuar por dez anos a guerra contra o Iraque.Esta iniciou-
se para repelir uma agressão montada pelo imperialismo,mas uma vez rechaçada esta invasão,a guerra foi utilizada para manter o controle sobre a população.Com isso conseguiu impor um regime ditatorial ,que é contra o qual estão lutando atualmente as massas iranianas. Esta ditadura mantém suas rusgas com o imperialismo como vemos na questão da energia nuclear,ainda que na verdade após os primeiros anos da revolução o capital internacional voltou a recuperar o terreno perdido.Assim vimos como o imperialismo negociou com o governo iraniano sua ajuda para estabilizar o Iraque. Entretanto para alguns setores da esquerda,a existência de tais rusgas com o imperialismo faz com que defendam o regime , mesmo sendo uma brutal ditadura para a população. Nossa posição é ao lado do povo iraniano frente ao imperialismo e se for produzida uma agressão direta deste chamamos uma unidade de ação com o governo,mas somente quando esta agressão se produz e durante a ação do imperialismo.Entrementes estamos por derrubar o regime,uma ditadura burguesa que impediu o avanço da revolução. No Irã a saúde e a prevenção não estão garantidas para todos,a discri-
minação da mulher e a perseguição à homossexualidade, que é negada como uma realidade social,são exemplos da vida cotidiana.Apoiamos as massas que carecem de liberdade de expressão e que apesar disso conseguem dar lugar a um dos cinemas de maior qualidade do mundo. Por isso hoje estamos com as massas iranianas que saíram às ruas contra Ahmadinejad exigindo liberdades democráticas e objetivamente ,ao enfrentar o regime que sustenta a riqueza capitalista de uma minoria privilegiada,vão contra o sistema burguês. Evidentemente nem Moussavi e nem seu mentor Rafsanjani são garantias para a população,porém os iranianos encontraram na denuncia da fraude eleitoral uma forma de sair às ruas e denunciar a opressão em que vivem. O regime tem respondido com violência e repressão às mobilizações, prendendo mais de 100 opositores.Temos conhecimento que vários deles foram condenados à morte para aterrorizar as massas e conseguir que terminem os protestos.Entretanto a cada nova oportunidade os iranianos voltam às ruas de forma massiva. O processo revolucionário para conseguir o fim da ditadura foi ini-
ciado e não parece que o regime conseguiu detê-lo. O conhecimento de como está a situação no Irã hoje e quais foram os motivos do retrocesso que viveu a revolução passada,deve nos servir para tirar algumas conclusões. Os trabalhadores e o povo iraniano precisam ser novamente os protagonistas,mas para que não voltem a trair suas aspirações é necessário que consigam organizar-se independentemente dos setores burgueses que que-
rem levá-los novamente a um beco sem saída. Para isso será necessário que os trabalhadores construam um partido revolucionário proletário e socialista que possa levar adiante esta luta.Além disso, temos que rodear de solidariedade a luta do povo iraniano contra a ditadura.Devem saber que no mundo estamos dentre aqueles que vamos apoiá-los incondicionalmente contra a opressão. Desde o jornal Al Baian nos colocamos a serviço desta tarefa.•
Nesta Edição Mobilizações de massa colocam ditadura dos aiatolás em xeque • p. 2 O desespero do regime do Irã: prisóes e penas de morte • p. 3 A revolução iraniana de 1979 • p. 4 Os grupos econômicos e as facções da Burguesia • p. 5 A prontidão atômica iraniana e o projeto pró-imperialistade Ahmadinejad • p. 6 A luta contra a Aids no Irã sofre dos males políticos e sociais • p. 7 Cinema iraniano: projeção internacional, apesar da censura • p. 8
Entre em contato: albaian.socialista@gmail.com www.litci-arabe.org
Contribuição R$ 2
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Façamos como o povo de Gaza que se solidariza com Haiti
Edição especial
Mobilizações de massa colocam ditadura dos aiatolás em xeque Por Jeferson Choma (PSTU Brasil) e Jose Weil
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o longo de 22 dias as forças armadas sionistas, com sua força aérea, mísseis de artilharia, utilizando sem escrúpulos armas proibidas pelas convenções de Genebra – como as bombas com fósforo branco –, arrasaram com a Faixa de Gaza. Assassinaram 1285 habitantes. Destes, 111 eram mulheres e 280 crianças. Bombardearam
Nosso Jornal Al Baian Al Baian é o jornal pela construção da Liga Internacional da Luta Árabe. Ele está aberto a todos realmente comprometidos com a causa árabe e o socialismo. Nosso objetivo é acompanhar e analisar os acontecimentos da luta de classes em nossos países árabes e no mundo dentro de uma perspectiva socialista de combate ao imperialismo e seu aliado, o estado sionista de Israel. Estamos no mesmo campo de batalha de todos os movimentos árabes de resistência ao imperialismo e ao sionismo. Nenhum governo árabe, colaboracionista ou nacionalista, defende até o fim esta luta. Apoiamos a resistência iraquiana, libanesa, afegã e palestina mas ao mesmo tempo não depositamos a menor confiança nas suas direções, que pelo seu caráter pequeno-burguês, estão sempre dispostas a negociar um acordo de acomodação com o imperialismo. Defendemos o direito dos povos árabes às liberdades democráticas, a autodeterminação dos povos, salário e empregos dignos para os trabalhadores, e a emancipação da mulher. Defendemos o fim do estado racista de Israel e lutamos pela Palestina Laica, Democrática e Não Racista rumo a uma Palestina socialista numa federação das repúblicas árabes socialistas.
ambulâncias, escolas, hospitais, mesquitas, prédios da ONU. Nas últimas semanas, o Irã foi sacudido por mobilizações de massas devido a denúncias de fraudes eleitorais. O levante começou quando uma agência iraniana de notícias proclamou o atual presidente Ahmadinejad vencedor com 63% dos votos, contra apenas 33% de seu opositor Moussavi. As mobilizações colocaram em xeque a reacionária república teocrática do país, controlada pelo clero xiita. O levante popular exigiu liberdades democráticas e foi reprimido com grande brutalidade pelo governo. Estima-se que ao menos 20 pessoas morreram, como a jovem Neda, morta com um tiro no peito. UM REGIME REACIONÁRIO Consolidado na base de uma sangrenta repressão, o regime islâmico incorporou a maior parte das frações burguesas existentes no país. Sob a ditadura dos aiatolás, a renda petroleira iraniana foi a base para um amplo processo de enriquecimento e corrupção de distintas alas da hierarquia religiosa, seus familiares e burgueses associados ao regime. Processo semelhante ocorreu em outros países petroleiros, como Arábia Saudita e Venezuela. Um dos homens mais ricos e poderosos do Irã é justamente o aiatolá “oposicionista” Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, ex-braço direito do líder da revolução, o aiatolá Khomeini. Atualmente, ele é líder da Assembleia dos Especialistas,
Conselho editorial editorial Conselho
Sadek Amin, Ahmad Naim, Aziz Nasser, Nadia Khalil, Hassan Al Barazili, Tarik Khader, Muhssen Daoud, Khalid Al-Mair, Indra K. Habash e Mhamed Abdel Karim
Polícia reprime manifestantes
grupo de clérigos responsável por eleger e até substituir o líder do país. A disputa pela renda petroleira é o que explica as diferentes alas do regime iraniano e as transformações políticas de muitos de seus líderes. No entanto, com o passar dos anos, a batalha interna entre as frações burguesas do Irã foi aumentando. A crise econômica acirrou ainda mais a disputa entre elas. O descontentamento de massas, apesar da proibição de se expressar livremente (em partidos políticos, sindicatos e imprensa livres), seguiu se manifestando de forma distorcida por dentro do regime. Como todo o processo político era concentrado dentro das instituições da república islâmica, apareceram alas que buscavam dar alguma margem de expressão que desafogasse a pressão interna. Parte disso foi o período das “reformas” de Khatami entre 1999 e 2005, em que uma parcela da juventude estudantil se mobilizou para pressionar por uma “abertura”. Khatami era mais propenso a reformas no regime, mas para salvá-lo, dando algumas aberturas democráticas. No entanto, nenhuma das reformas foi implementada efetivamente. Foram vetadas pelos aiatolás e Khatami acabou por aceitar o veto. A evolução política de Rafsanjani também é um exemplo dessa disputa entre as frações. Depois da revolução de 1979, ele foi o primeiro presidente do Parlamento, de 1980 a 1989. Foi justamente em seu
mandato que a totalidade de partidos e organizações políticas, sindicatos e organizações feministas foi perseguida, com seus membros presos, torturados e executados. Posteriormente, presidiu o Irã por dois mandatos, até 1997. Hoje, apoia uma reaproximação com os imperialismos europeu e norte-americano. E foi o articulador da candidatura do oposicionista Mir Hussein Moussavi. Em 2005, Ahmadinejad, exprefeito de Teerã, com uma retórica populista, derrota Rafsanjani, que era apoiado por Khatami. Ahmadinejad representa o setor mais ligado ao aiatolá Ali Khamenei, autoridade suprema no Irã, e aos cléricos considerados conservadores, que querem negociar com o imperialismo em melhores condições. Os protestos atuais só escancararam ainda mais essa divisão entre políticos tradicionais da república islâmica. JOGO DE CARTAS MARCADAS Todo o processo eleitoral é controlado pelas instituições islâmicas. As eleições são um jogo de cartas marcadas, cujas regras e candidaturas são ditadas pelo conselho dos aiatolás. O resultado é que apenas se enfrentam os representantes das mais influentes frações burguesas e integrantes da hierarquia religiosa. O candidato “opositor” Moussavi também é um homem do regime apoiado pelos dois expresidentes Rafsanjani e Khatami. Moussavi foi primeiroministro entre 1981 e 1989 e
também perseguiu milhares de oposicionistas. Nem nas eleições, tampouco nas manifestações, Moussavi fez algum tipo de oposição ou crítica à ditadura dos aiatolás. E não poderia fazer diferente, pois ele é parte orgânica do regime teocrático e jura fidelidade à república islâmica. Sua diferença é somente com o governo e porque teme o desmoronamento do regime. Moussavi também era o candidato preferido do imperialismo europeu, em particular dos governos da França, da Inglaterra e da Itália. Apesar de Moussavi fazer apenas algumas tímidas promessas democráticas, a juventude e os trabalhadores urbanos que buscam maiores liberdades democráticas utilizaram a sua candidatura para expressar seu descontentamento diante do regime e dos efeitos da crise econômica. CRISE ECONÔMICA E ELEIÇÕES A crise e a consequente queda abrupta do preço do petróleo só aumentaram uma já crescente insatisfação. Os tempos de crescimento e de alta dos preços do petróleo apenas adiaram os problemas na economia e no regime. Nesse período, Ahmadinejad seguiu governando com mão de ferro e relativa calmaria. O presidente até privatizou 80% das estatais (como bancos, estaleiros e linhas aéreas) e acabou gerando uma inflação de 34%. Atualmente, o desemprego atinge 12 milhões de pessoas. E 25% da população vive abaixo da linha da pobreza, segundo o ministério do Bem-Estar Social. MOBILIZAÇÕES O descontentamento gerado pela falta de liberdade e pela crise na economia foi catalisado pelas denúncias de fraude na eleição. Elas fizeram com que explodissem mobilizações por liberdades democráticas nas ruas de Teerã e o próprio Conselho dos Guardiões (defensor de Ahmadinejad) foi obrigado a reconhecer algum tipo de fraude. As mobilizações são um movimento espontâneo de cidadãos iranianos que Moussavi trata de dirigir. Muitos discutem se a fraude poderia de fato alterar o resultado em favor de Ahmadinejad. O problema é que no Irã não existem liberdades democráticas, nem de organização livre de partidos. Todo o processo é decidido pelas instituições dos aiatolás, ou seja, a manipulação é uma regra do jogo. Mas, apesar da dura repressão, os manifestantes colocam
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o regime em xeque e ameaçam a ditadura dos aiatolás, independente dos objetivos do grupo representado hoje por Moussavi. PAPEL DO IMPERIALISMO Diante das mobilizações de massa contra a fraude, os governos do imperialismo europeu se apressaram em sair numa hipócrita defesa da “democracia”, denunciando a repressão. O tom mais cauteloso de Obama tem a ver com sua política de buscar uma colaboração do Irã (mesmo sob a presidência de Ahmadinejad) para resolver os conflitos no Iraque e Afeganistão. Já os governos da Europa, mais próximos de Moussavi, se apressaram em denunciar a fraude eleitoral. Posteriormente, Obama passou a dizer que “era preciso respeitar as liberdades”. Enquanto falam em “liberdade” do povo iraniano, sustentam ditaduras que reprimem a ferro e fogo a população, como o governo do Egito e a monarquia saudita. Sem falar do apoio dos EUA ao Estado nazisionista de Israel, que assassina palestinos impunemente. Na verdade, o imperialismo busca aproveitar-se da insatisfação para surgir como referência política para as massas, estimulando lideranças “mais confiáveis”. DEFESA DAS LIBERDADES NÃO PODE FICAR NAS MÃOS DO IMPERIALISMO Defendemos os direitos dos trabalhadores de se manifestarem pelas liberdades democráticas no Irã. O regime teocrático dos aiatolás é uma
ditadura que reprime trabalhadores, mulheres e opositores. Por isso, estamos ao lado das massas, que exigem seus direitos democráticos, ao mesmo tempo em que denunciamos sua direção política pró-imperialista representada por Moussavi. Uma parte significativa da esquerda, particularmente a ligada aos partidos stalinistas, defende o governo de Ahmadinejad, classificando os pro-
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testos como uma “conspiração da CIA”. Dessa forma, acaba defendendo a sangrenta repressão do governo iraniano sobre as massas, alegando que ele reprime o povo para se defender do imperialismo. Por outro lado, esses setores da esquerda terminam prestando uma valiosa ajuda ao imperialismo, pois jogam em suas mãos a bandeira da defesa das liberdades demo-
cráticas. Isso é ainda mais nefasto quando o imperialismo apresenta um novo rosto para a dominação, o de Obama, visto com mais simpatia por setores oprimidos. A bandeira das liberdades democráticas deve estar nas mãos de organizações dos trabalhadores. Contra a ditadura dos aiatolás, defendemos liberdade de imprensa, eleições livres, Assembleia Constituinte e laica, direito a sindicatos
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livres e fim de todas as instituições estatais teocráticas. Se os trabalhadores e a esquerda mundial não abraçarem a bandeira das liberdades democráticas, setores da burguesia e do imperialismo acabam ganhando respaldo das massas. Para avançar, é preciso construir um partido operário que ofereça uma alternativa dos trabalhadores, independente do regime, de Moussavi e do imperialismo.•
Mulheres se destacam na mobilização
O desespero do regime no Irã: prisões e penas de morte Por Indra K. Habash
A
s manifestações contra o resultado das últimas eleições no Irã foram apenas o estopim para uma crise de amplas proporções e duração. Os protestos não foram eventos pontuais contra os resultados eleitorais, mas sim parte de uma tomada de consciência contra todo o regime – e uma libertação do discurso religioso que o regime usa para legitimar seu autoritarismo. A repressão tenta criar um medo generalizado para evitar a massificação dos protestos, e o regime opera para condenar à pena de morte os participantes das marchas, mas as mobilizações continuam e declaram sua resistência. No Dia de Jerusalém, 18 de setembro, por exemplo, os iranianos
aproveitaram as passeatas oficiais contra Israel para se manifestar também contra o regime, o que demonstra a falsidade do discurso do governo de que os opositores são pró-imperialistas e a favor de Israel. O dia 7 de dezembro, Dia do Estudante, também desmoralizou o governo: na data em que se relembram os estudantes mortos em 1953 na luta contra o Xá e o imperialismo, as principais universidades iranianas se levantaram contra as novas opressões. Apesar da ampla condenação internacional aos julgamentos promovidos pelo regime, na primeira semana de outubro mais três pessoas foram condenadas à morte. Essas últimas sentenças foram anunciadas pelo portavoz do ministério da justiça, Zahed Bashiri Rad, em sua declaração à imprensa: “Três pessoas que foram acusadas
(por seu papel) nos incidentes pós-eleição foram sentenciadas à morte”. No final de setembro, os quatro prisioneiros que foram sentenciados à pena de morte estão entre os 4.000 iranianos que foram presos por suas participações nos “incidentes”. Grande parte desses presos já foi solta, mas cerca de 200 ainda estão atrás das grades e cerca de 110 foram julgados, a maioria acusada de tentar acabar com o regime islâmico. No começo de outubro, a Anistia Internacional convocou o Irã a levantar a pena de morte de Zamani, 37, e chamou sua sentença de “sentença show” e uma “zombaria à justiça”. Bashiri Rad disse que as sentenças “não são finais e elas ainda são passíveis de apelação na suprema corte”, como quem tenta ganhar tempo para uma postura insustentável. Isso é um sinal de que, ao
tentar um endurecimento, o regime põe à prova sua própria coesão interna, que dá sinais de abalo. Mesmo entre os teólogos tem havido rupturas, como a do aiatolá Hossein Ali Montazeri, que receava pelo afundamento do islamismo junto com o regime e exige uma flexibilidade do regime. Não foi por outro motivo que o funeral de Montazeri virou mais uma jornada de protestos. Portanto, a atitude de endurecimento do governo iraniano só denuncia seu desespero em controlar o processo revolucionário instaurado no pós-eleição. Encurralado, tenta uma fuga para a frente, acirrando a mesma repressão que alimenta a revolta popular. No entanto, cabe aqui apontar que o processo revolucionário se iniciou com a luta pelo poder entre duas alas da burguesia iraniana, uma
vez que os líderes oposicionistas, como Mousavi, compactuam direta ou indiretamente com o setor privado das grandes empresas do Irã. Essa ligação faz com que a ameaça de repressão e corte de privilégios econômicos pelo governo seja muito temida por essa direção, que assim tentará frear o processo revolucionário, negociar um acordo de cúpula e trair a democratização. Portanto, para manter o processo revolucionário, os trabalhadores iranianos, nutrindo-se do ímpeto rebelde dos estudantes e aproveitando-se do desespero da classe dirigente, deverão tomar as rédeas da revolução, dirigi-la com suas próprias organizações e não deixar, mais uma vez, que ela seja traída pelos setores burgueses. •
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A REVOLUÇÃO IRANIANA DE 1979 Nacional Iraniana de Petróleo teve que dividir seu patrimônio com outras cinco americanas, uma holandesa e uma francesa. Para assegurar esse domínio é restituído ao poder o Xá Mohammed Reza Pahlevi, filho de Reza Kan, que começa um dos regimes mais brutais e submissos do Oriente Médio.
Mulheres saem às ruas em Teerã em 1979
Por Ali Hussein
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evido à sua localização estratégica, rota entre a Ásia e a Europa ,a região que hoje é o Irã foi palco de várias invasões de grupos étnicos e tribos. Depois dos arianos, de onde se originou o nome atual do país, a segunda onda étnica-cultural foi a árabe, que difundiu o islamismo e ali estabeleceu a corrente do xiismo. O domínio turco que lhe seguiu foi desarticulado pela invasão mongol, que durou até 1335. Depois de vários nômades, estabelece-se em 1794 a dinastia dos qajars, uma tribo do mar Cáspio, que governa o Irã até 1925. Nesse ano, a partir de um golpe militar, inicia-se a dinastia Pahlevi. A nação iraniana era, desde o séc. XVIII, uma semicolônia do imperialismo inglês e da Rússia czarista, que exploravam sistematicamente seus recursos naturais, em especial o petróleo. Esse domínio era garantido a ferro e fogo pelos regimes corruptos e autoritários que governaram o Irã antes da revolução de 1979 e reprimiram qualquer atividade política, sindical e religiosa. A INSERÇÃO DO IRÃ NO MERCADO CAPITALISTA MUNDIAL Entre 1905 e 1906, na dinastia qajar, ocorreram rebeliões contra a monarquia exigindo uma reforma constitucional. Tiveram sustentação na burguesia nacional, nos comerciantes (o bazaar) e na classe média urbana, isto é, os setores que tentavam negociar em melhores condições as riquezas da espoliação imperialista. A monarquia concede liberdades limitadas de expressão e associação e também a representação do bazaar no majilis (parlamento). Esse breve período constitucional se estende até o golpe militar de 1921 de Reza Khan. A partir de 1900 e continuando na ditadura de Reza Khan, aceleram-se os investimentos de capitais estrangeiros no país. A Inglaterra investe nas indús-
trias petrolífera, de construção civil e de estradas de ferro. A Anglo Persian Company, uma das sete principais petroleiras do mundo, ilustra o lucro fácil: consegue entre 1912 e 1933 a maiúscula cifra de 200 milhões de libras, retornando ao Estado iraniano apenas 10% deste valor. Há investimentos no setor têxtil, produto importante na pauta de exportações, com o aparecimento de uma centena de pequenas indústrias. Os campos petrolíferos do Norte do país são saqueados pela Rússia do czar Nicolau. Com essa industrialização rápida, ocorre a constituição de uma numerosa classe operária. Em 1920, eram 20 mil operários; em 1940, 31.500; em 1947, 100 mil. O número chegaria a mais de 4 milhões de trabalhadores industriais, às vésperas da revolução. A classe operária concentrou-se nas principais cidades: Teerã, Tabriz, Isfahan, Kerman e Ahvaz. No intervalo de 30 anos, o Irã integra-se inteiramente à ordem econômica mundial, como uma semicolônia exportadora de matérias-primas e importadora de máquinas e tecnologia para sua industrialização, concretizando um vínculo de extrema dependência com o imperialismo. Em um país ainda essencialmente agrário configura-se então, um quadro social que já contava com a plena dominação do setor burguês ligado ao imperialismo e ao regime por um lado e por outro de um proletariado cada vez mais poderoso e concentrado, principalmente na indústria do petróleo. Espremida entre essas duas classes, uma burguesia nativa ou bazaar, e setores da classe média, que não encontraram no Estado um apoio para sua capitalização, pois a renda petroleira era revertida para o refinanciamento do saque imperialista O islamismo e os movimentos nacionalistas representaram a expressão política dos descontentamentos destes segmentos sociais.
O MOVIMENTO NACIONALISTA DE MOSSADEG Fruto da mobilização popular contra os ingleses, instaurase em 1951, pelo voto popular, um governo de cunho nacionalista, o governo de Mohammed Mossadeg. O movimento tinha como principais demandas melhores condições de trabalho e salários nas refinarias, uma divisão mais justa do lucro com a exportação do petróleo e a abertura pelos ingleses dos livros contábeis, que constituíam ainda um grande segredo para o Estado iraniano. O movimento e o governo já tinham uma direção e uma presença da hierarquia xiita. Com esse movimento, a burguesia nacional tentava alguma forma de defesa do capital nacional e uma partilha mais equitativa da exploração do petróleo. No entanto, o fato de ter nascido já dependente do imperialismo, e subordinada à dinâmica de exploração do petróleo para o mercado externo, fez com que essa burguesia não quisesse assumir um projeto político de independência plena e ruptura definitiva com a dominação estrangeira. Apesar da criação da estatal iraniana do petróleo e de uma divisão melhor do lucro através de novos contratos de concessão, o governo de Mossadeg não realizou suas principais promessas: redistribuição de renda, reforma agrária e do Estado e liberdades políticas. Ao contrário, preservou medidas restritivas aos movimentos grevistas e manteve na semiclandestinidade o Tudeh,o partido comunista iraniano, que lhe havia hipotecado apoio político. Desgastado e perdendo popularidade, o governo acabou vítima de um golpe militar organizado em 1953 pela CIA, conhecido como Operação Ajax. O imperialismo americano, fortalecido depois da II Guerra Mundial, buscou aproveitar o desgaste político inglês e substituí-lo nas relações do Irã com o imperialismo. Assim, a recém-nacionalizada Companhia
OS TRABALHADORES ENTRAM EM CENA CONTRA O XÁ Da queda de Mossadeg até 1963, ocorrem várias mobilizações contra o Xá, apesar da violenta repressão. A Savak é criada como polícia política, para matar e torturar dezenas de milhares de opositores. Nesta época aparece como liderança o imã Khomeini, que viria a ser o fundador da republica islâmica. Da cidade sagrada de Qom, dirige seus sermões contra o Xá, pedindo o levante do Islã contra o opressor e denunciando a associação do regime com Israel.Também faz críticas contudentes à ocidentalização dos costumes e à descaracterização da cultura nacional. Na verdade, muito cedo o islamismo no Irã buscou ocupar o papel político dos movimentos nacionalistas árabes da região, como o nasserista no Egito. Apesar das correntes islâmicas em geral se submeterem aos interesses da burguesia nacional e dos setores médios, que buscavam apenas uma acomodação melhor com o imperialismo, o apelo ao sentimento antiimperialista fez com que, para amplas massas, o Corão se tornasse um verdadeiro manifesto de luta pelo fim dos sucessivos ciclos de opressão nacional. A resposta do Xá foi uma “cruzada” modernizadora à força, que proíbe o uso do véu e propõe uma laicização do parlamento. A Savak invade mesquitas em Qom e mata vários religiosos, o que acaba engrossando a popularidade das lideranças islâmicas. O mais importante no período, porém, foi a entrada em cena, veemente e definitiva, da
Uma revolução de milhões derruba o Xá
classe trabalhadora e seus métodos de luta. Ocorre em 1963 uma greve geral em cidades e vilarejos. A greve teve que ser sufocada em sangue pelas forças armadas, com 15.000 mortos em Teerã e 400 em Qom. AS PREMISSAS PARA A REVOLUÇÃO No período seguinte, de 1963 a 1973, o processo é interrompido com uma certa estabilidade política no Irã, obtida graças ao aumento de preços do petróleo. Parte dos petrodólares é reinvestida em infra-estrutura e na rede de serviços públicos. Um novo ciclo de expansão da economia se inicia, com modernização nas refinarias e a instalação da indústria do aço – mas ainda com controle americano, que respondia por metade das noventa empresas que mais investiram neste momento. O Produto Interno Bruto cresce 33,9% de 1973 a 1974, e 41,6% entre 197475 um aumento colossal. No entanto, esse enriquecimento não mudou significativamente a situação de extrema pobreza e desigualdade social. Apenas 45 famílias detinham 85% da renda nacional. Durante a crise do petróleo, 1 milhão de empregos são extintos. O êxodo rural aumenta, junto com a concentração fundiária e a inflação dos alimentos, obrigando o país a importar alimentos. Formam-se 40 novas favelas na periferia de Teerã. A classe média e os estudantes sofrem com o desemprego e a especulação imobiliária. Falta crédito ao bazaar, e a corrupção avança a passos largos. O regime gasta, entre 1972 e 1978, o total de 12 bilhões de dólares em armas, obtidas junto aos Estados Unidos, para aparelhar as forças armadas e a Savak. Conforme a luta avança e radicaliza, a repressão aumenta, o que realimenta e generaliza o ódio ao regime. Foram esses, resumidamente, os ingredientes para a explosão revolucionária de 1979.
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UMA REVOLUÇÃO COM DESINTEGRAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS E AUTO-ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES A partir de 1978, a oposição ao regime recrudesce. Tornamse eventos frequentes as greves de trabalhadores e estudantes, as manifestações e os enfrentamentos com as forças armadas e a Savak na rua. Em 8 de setembro, o exército reprime uma passeata em Teerã e mata dezenas de manifestantes. Uma greve é deflagrada em reação, unindo petroleiros e funcionários públicos , que duraria 33 dias. As bandeiras mais ouvidas são as políticas: “Abaixo o Xá!”, “Abaixo a Savak!”. No final de novembro, a greve recomeça nas refinarias e desemboca em uma greve geral em Dezembro. No dia 12, ocorre em Teerã uma manifestação gigantesca de 2 milhões contra o Xá e os americanos. Apesar da popularidade do clero xiita, que usufrui da estrutura de 80 mil mesquitas e de uma poderosa rede de comunicação, neste instante é a classe
trabalhadora, com os setores operários à frente, que dirige, com seus métodos, a luta contra o regime. Nos dias 10 e 11 de Fevereiro ocorre a insurreição que põe abaixo o regime. As forças armadas, a Savak e o parlamento são logo em seguida dissolvidos. No bojo do processo revolucionário, desenvolvem-se duas de suas principais características ; a desintegração da espinha dorsal do Estado : as forças armadas e o aparecimento, mesmo que localizado, de um duplo poder na sociedade. Os soldados não respeitavam mais as ordens do regime, desertavam ou mesmo se organizavam contra o Xá. Agentes da Savak eram caçados e julgados pelos insurretos. Paralelamente, organizavamse comitês democráticos de trabalhadores (shuras) armados, semelhantes aos sovietes russos, que dirigiram a revolução socialista naquele país em 1917. Com a fuga da burocracia estatal e a desintegração de seu corpo repressivo, esses conselhos co-
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meçaram a dirigir as refinarias e fábricas nas grandes cidades. Cria-se uma situação localizada de duplo poder, pela qual os trabalhadores auto-organizados e armados começam a legislar por contra própria, disputando o poder palmo a palmo não só com as instituições do regime, mas com as do Estado. De uma revolta com o regime repressor e o imperialismo, a revolução abria caminho para uma luta socialista contra o Estado e a grande propriedade privada. A ESCALADA REVOLUCIONÁRIA É INTERROMPIDA Apesar da longa trajetória de luta, o proletariado iraniano não conseguiu forjar uma organização com uma política independente do islamismo. O Tudeh, o principal partido operário, força majoritária nas refinarias, teve sempre a mando da burocracia stalinista da União Soviética uma política de subordinação ao islamismo e ao nacionalismo burguês. Na revolução, seus militantes defendiam a instalação de uma “República Islâmi-
ca Democrática”. A instalação do Conselho Revolucionário Islâmico dirigido por Khomeini logo após a revolução foi imediatamente apoiada por este partido. A guerrilha marxista Fedayn Khalq e a islâmica Mujahidiin, muito influentes entre os jovens estudantes, e bem armadas, não se diferenciavam muito, conclamando por uma “República Socialista” baseada no Islã. Com este quadro político, os trabalhadores iranianos perdem em fevereiro uma excepcional chance de tomarem o poder de Estado e assim começar a resolver definitivamente as principais tarefas democráticas da nação oprimida. Uma grave crise social e econômica, o regime e o estado completamente enfraquecidos, as forças de repressão totalmente despedaçadas e o aparecimento do poder dual configuravam uma situação extremamente favorável para a revolução social. Porém, isso não ocorreu; ao contrário, houve uma reação política que desembocou no atual regime repressor da
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República Islâmica, sob um Estado ainda burguês. Acreditamos que faltou ao proletariado iraniano uma direção política, um partido que lhes apontasse o caminho, como tiveram, em condições muito semelhantes, seus irmãos russos na revolução vitoriosa de 1917. Um partido com um programa socialista que apontasse uma saída da classe trabalhadora para a libertação nacional do jugo imperialista. Um partido que impulsionasse e aprofundasse a auto-organização das massas e o poder dual, e que, diferente do Tudeh e das guerrilhas, garantisse total independência da classe, sem subordinação política alguma ao nacionalismo burguês e ao clero muçulmano. Com esta ferramenta política teria sido possível à classe trabalhadora angariar a simpatia dos setores médios e populares e disputar a hegemonia da direção islâmica, estando assim em melhores condições de resolver a crise revolucionária a seu favor. •
Os grupos econômicos e as facções da burguesia Publicamos este texto que recebemos de um correspondente do Irã. O autor explica o funcionamento do regime e o uso da renda petroleira.
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proximadamente a metade do PIB iraniano é movida pelas fundações religiosas (Boniads, por exemplo, a Fundação dos Desabrigados, fundações de mártires... cujos ativos provém em grande parte de confiscos à família real e outros exilados depois da Revolução) que têm forma privada, mas dependem diretamente do Líder Supremo, isto é, atualmente de Khameneí e seu grupo, que decide quem as controla, quem entra, quem sai..., só prestam contas a ele, não pagam impostos, etc., etc., daí o desconhecimento que há sobre elas. Movem-se segundo critérios ideológicos e constituem conglomerados de todo tipo de empresas. Seus lucros têm em parte fins sociais, de maneira que têm tido um importante papel na redistribuição da riqueza nas zonas rurais, e, portanto gozam da simpatia de muita gente. Entretanto, pode-se imaginar que esse dinheiro tem outros fins e destinos... Os fiéis ao regime, à margem de sua capacidade de gerenciamento ou qualquer outra capacidade instalaram-se dentro, e provem muitos do “bazar”, isto é do compacto grupo de distribuidores de mercadorias aos varejistas... e que se caracterizam por seu conservadorismo (frequentemente parentes de grandes famílias de clérigos) e sua consciência de
vulnerabilidade. A este grupo com afinidade ao Líder é que chega a maior parte dos lucros do petróleo, que financiam uma astronômica percentagem (70-80%) do orçamento do governo. Por outro lado, o setor privado de grandes empresas está principalmente nas mãos do círculo do Ayatolá Rafsanyaní, além de ser o chefe da Assembléia de Autoridades, é uma “raposa velha” da Revolução. Sua família controla grande parte das empresas iranianas que representam estrangeiros no país e estão envolvidos em todos os setores incluindo o petróleo. Sempre esteve na primeira linha da política iraniana e sua imagem é a de um ambicioso corrupto. Com a primeira eleição de [Muhammad] Khatamí propôsse uma abertura econômica muito desejada por este círculo, mas os setores conservadores não estavam de acordo (há setores que opinavam que “a sociedade iraniana não estava preparada ainda”), inclusive por ele ser um clérigo não deveria despertar os receios dos religiosos. Agora acreditam que este é momento. De fato após as manifestações, grande parte dos grandes maryas (clérigos de altíssimo nível, seis ou sete em todo o país, que são fonte de emulação para os xiitas) e ayatolás de Qom tem se alinhado com este grupo. Este último grupo de pragmáticos dentro do sistema tem se chocado com [Mahmoud] Ahmadinejad, que é uma efi-
Regime vive do petróleo caz marionete de Khameneí. Comenta-se de que a primeira eleição de Ahmadinejad frente à Rafsanjaní também esteve arranjada, e naquela ocasião ninguém pareceu se dar conta. Evidentemente, se na situação atual Rafsanjaní ou alguém de seu grupo (Musaví, Khatamí...) fosse presidente, seu poder seria imenso e ameaçaria não só a Khameneí e a seu sucessor (fala-se de seu filho, um ayatolá muito impopular), como ao próprio sistema de Velayae Faqi’ (Liderança do Jurisconsulto, que é a teoria político-religiosa de Khomeiní que consagra uma autoridade religiosa xiita, Líder da Revolução, como guia espiritual, e, o que é mais importante, como único chefe do exército religioso dos pasdarán e basij,
com milhões de filiados que se beneficiam de privilégios econômicos, e como chefe dos conglomerados empresariais das bonyads, que controlam investimentos astronômicos. Rafsanjaní, como chefe da Assembleia de Autoridades (que elege o Líder, e tem a capacidade de depô-lo, coisa que nunca ocorreu) já anunciou sua intenção de eliminar a figura do Líder e substituí-lo por um grupo de religiosos. Nem o filho de Khameneí, nem os milhões de filiados aos pasdarán e basij, nem o sistema clientelista das bonyads estão a salvo com Rafsanyaní abrindo o país (leia-se suas empresas) a investidores europeus ou chineses e normalizando a situação. Também nenhum vizinho se sentiria cômodo se
o Irã saísse do eixo do mau, deixaria de ser o foco das críticas do ocidente e se converteria em uma potência regional. Para o grupo de Khameneí é muito útil uma sensação de ameaça (daí o programa nuclear que excita o Ocidente) para que as milhares de pessoas (pobres, violentos e radicais) que se beneficiam dessa construção mafiosa que ele controla sigam apoiando-lhe. De qualquer forma, a balança numérica está na contramão dele, e está detendo gente de dentro do sistema. Todos no Irã acham que em alguns meses essa situação pode evoluir um pouco para melhor, ou para muito pior. •
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Façamos como o povo de Gaza que se solidariza com Haiti
Edição especial
A prontidão atômica iraniana e o projeto pró-imperialista de Ahmadinejad Enquanto emprega o programa atômico para parecer independente do imperialismo, o regime dos aiatolás o oferece na mesa de negociação com Obama Por Khalid Almair
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a sexta-feira 25 de setembro, a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) recebeu comunicação do governo iraniano a respeito da segunda usina de beneficiamento de urânio, localizada em Qom e com capacidade para 3 mil centrífugas quantidade irrisória para produção de energia em massa, mas suficiente para fins militares. Era uma oficialização inevitável de um fato já conhecido secretamente pelas inteligências militares imperialistas, e um visível incômodo formal do governo iraniano (a BBC falou até de uma retórica na defensiva), mas foi o suficiente para fazer os líderes imperialistas reunidos em Pittsburgh, EUA, falarem grosso, e Israel reapresentar sua proposta de invasão. As declarações de Ahmadinejad buscam explicar o caráter civil e pacífico do programa nuclear iraniano e oferecer garantias às potências imperialistas, como as visitas de inspeção da AIEA, mas mesmo os analistas mais ponderados concordam em que o Irã está em uma firme evolução para o nuclear threshold status, o estado em que um país acumula técnica, matérias-primas e logística, mas as deixa em espera – uma prontidão atômica. Um constrangimento
para Obama O maior constrangido no episódio, no entanto, foi Obama. No mesmo dia, correu para declarar sua postura enérgica e exigir do Irã “um novo curso, ou enfrentará as consequências”, mas não tardou mais que um dia a emendar-se: “minha oferta para um diálogo sério, significativo, para resolver esse assunto, continua em aberto”. O presidente americano tem a tarefa de levar a bom termo a tática salvacionista que as empresas imperialistas delegaram a ele, isto é, conseguir arrancar via negociação e uma diplomacia que empregue mais outros organismos e ferramentas, como a ONU o que Bush não conseguiu pela postura beligerante. Isso não implica desmontar por completo a ameaça bélica, que permanece como uma carta na manga ou um facilitador de todo o resto – como no Afeganistão, onde a retórica “amigável” de Obama foi logo desmascarada pelo Talibã. No entanto, a tática de Obama, que a esquerda revolucionária nomeou “reação democrática”, passa por criar interlocutores confiáveis nos países em que é empregada. São eles quem, em última instância, podem iludir as massas, levá-las a crer que os dirigentes do imperialismo não são mais uma ameaça e que as concessões podem desem-
Ahmadnejad negocia em segredo com Obama
bocar na soberania nacional. É aí que Obama encontra as maiores dificuldades. Para parecer confiável e transmitir segurança para seus interlocutores, Obama tem de dourar a pílula que Bush deixara como é – amarga e intragável. Apesar de uma concatenação de esforços mundiais, que incluiu um imerecido Nobel da Paz, Obama não logrou apagar da memória dos oprimidos de todos os países a realidade brutal do imperialismo, suas armas e sua exploração econômica. Se, por um lado, o imperialismo, para conseguir usar uma fachada de benemerência, deve trilhar um longo caminho, também o regime iraniano, por outro, precisa renegar um passado recente para poder ser visto de braços dados com o imperialismo. Uma mão estendida... num braço preso O Irã, por outro lado, é dotado de um regime que necessita destruir as próprias e profundas fundações, as da revolução de 1979. Desde aquele ano, o imperialismo foi escorraçado pela população, e toda a classe de capitalistas teve que se regenerar a partir de um lento processo de infiltração no regime e cooptação das estruturas que o clero xiita criou para congelar a revolução. A nova burguesia iraniana tenta agora iniciar um ritmo acelerado de con-
centração de seus capitais em monopólios dirigidos pelos aiatolás, e aumentar a reinserção no mercado mundial. Mas a lógica da exploração do trabalho nessas empresas e a dependência do preço da commodity do petróleo, sujeito a grandes oscilações nos últimos tempos, ampliaram enormemente a desigualdade social e a vulnerabilidade dos trabalhadores perante a inflação. Somados à profunda insatisfação com o regime ditatorial, esses elementos levaram o sentimento latente de revolta à tona, às ruas. Os protestos de junho, recebidos com uma fúria aparentemente inesgotável do governo, respondem com igual persistência, e reaparecem novamente, em passeatas como a dos estudantes de Teerã no dia contra Israel e na última semana de setembro. É o sentimento de desforra das massas que barra o regime iraniano em sua tática de se reaproximar do imperialismo silenciosamente enquanto apresenta em público uma demonstração cuidadosamente montada de soberania nacional. O programa nuclear era a grande peça de propaganda dos aiatolás, por provocar o imperialismo num ponto muito sensível e assim desviar a atenção de todo o resto; mas as massas já estão num caminho sem retorno, o da desconfiança para toda e qualquer iniciativa de um governo que desrespeitou a vontade popular nas eleições e depois a reprimiu com sangue. Por outro lado, no campo das negociações, Ahmadinejad, com a finalização da nova usina, involuntariamente dificulta a aproximação pública de Obama. O presidente americano fica espremido entre o eterno aliado, Israel o único estado não apenas pronto, mas efetivamente nuclear na região , que volta a exigir a agressão final, e os aiatolás, de quem ele não pode exigir o desmascaramento completo, com um desmonte do programa nuclear. A solução provisória que começou a tomar forma em outubro é trocar o material da nova usina por urânio de uso médico, enquanto as inspeções da AIEA começam e o espetáculo público do armamento iraniano fica congelado no primeiro ato. A aposta, no fundo, é segurar o desenvolvimento soberano
iraniano até que a reacomodação dos aiatolás com o imperialismo esteja já em sua fase definitiva. Os revolucionários devem explicar às massas a pusilanimidade de Ahmadinejad, que aceita ultimatos imperialistas e relativiza a necessidade de soberania nuclear iraniana. Desde 1979, os oprimidos iranianos juraram sua filiação à luta contra o imperialismo e o sionismo. O programa militar atômico deve ser levado como um direito essencial de defesa mundial e especialmente regional contra a potência atômica agressiva e intolerante que Israel demonstrou ser. No entanto, por seu interesse comercial em se readequar ao imperialismo e seu atual chefe, Obama, a burguesia iraniana busca usar o programa nuclear como um instrumento de barganha – e, por sinal, um instrumento bem incômodo, do qual ela pretende se livrar assim que cumprir seus objetivos comerciais. A única possibilidade de o Irã levar o programa nuclear até o fim, e garantir um uso correto e em defesa das soberanias nacionais da região, reside em um novo regime e um novo Estado, governado democraticamente pela maioria, os trabalhadores e oprimidos, que não vacilará em voltar suas ferramentas à luta consequente contra Israel e o imperialismo norte-americano e europeu. •
O novo chefe do imperialismo
Façamos como o povo de Gaza que se solidariza com Haiti
Edição especial
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A luta contra a Aids no Irã sofre dos males políticos e sociais
Cartaz de campanha de prevenção à AIDS
Da Redação
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compreensão da expansão da epidemia do HIV no Irã passa por uma análise rápida do sistema de saúde que está consolidado nesse país, com uma forte divisão de classe, e as limitações específicas que um regime autoritário – e que tenta se embasar em fundamentos religiosos impõe à prevenção e ao tratamento da doença. A manutenção da ignorância sobre a pandemia, a corrupção política e a conivência com poderes regionais de clãs são todos elementos que afetam a medicina no país. Com o HIV, que virou a agenda médica mundial principal nos anos 1980 e 1990, os ativistas sociais ligados aos temas de saúde aprenderam a relacionar os maiores surtos da pandemia com a miséria, a fome, a falta de informação e a ausência do poder público, ou sua irresponsabilidade. A culpa da pandemia não está nos hábitos sexuais e de uso de drogas, que existem de variadas formas em todas as sociedades humanas sem exceção, mas sim na falta de direito à informação e acesso às medidas preventivas. Assim, nos lugares de grande crise social, a miséria e a exploração fazem criar um ambiente em que ser vítima da pandemia é associado aos hábitos “proibidos” e por isso se torna motivo de vergonha, de submissão e de estigmatização, o que gera um círculo vicioso. Não raro, os próprios regimes políticos tentam usar isso para seus próprios fins autoritários, elevando as vítimas à categoria de inimigos públicos.
Diferenças de classe no atendimento No Irã moderno, dos grandes centros urbanos, o sistema de saúde privado atende aos ricos
e aos “recomendados” politicamente. Esta parcela da elite pode também tratar-se em Londres e outros centros privilegiados, com acesso a tecnologia hospitalar e medicamentos de ponta, enquanto a maioria da população convive com escassez de profissionais, baixa qualidade de equipamentos e péssimas condições de trabalho, conforme denunciam as entidades não governamentais, incluídas as de orientação islâmica. Em algumas poucas cidades, como Teerã, sobrevivem clínicas ligadas a movimentos internacionais como os Médicos Sem Fronteiras, que, além do atendimento, praticam programas de prevenção. O governo não raro se apoia nessas clínicas para se escusar de suas próprias responsabilidades. No interior do país, porém, faltam médicos e postos de saúde, mas sobram relatos de vítimas duplamente prejudicadas pelo preconceito, ignorância e omissão dos poderes locais essencialmente masculinos e arcaicos. A censura à informação dos técnicos No Irã, como as infecções sexualmente transmissíveis como o HIV estão aumentando, o país está implantando um disk-informação para ajudar a combater o problema, disse um funcionário do governo. Na verdade, o Estado precisa da ajuda da UNAIDS, e de outras instituições para a obtenção de recursos, medicamentos e equipamentos para estruturar alguma resposta. Por isso, aceita a ingerência internacional neste campo e busca promover algumas medidas para garantir a vinda destes recursos. Mas essa situação ainda não reverteu um problema primordial: no Irã, os especialistas têm apenas números estimados de infectados, uma vez que a subnotificação (casos que não chegam às estatísticas) é enorme, devido à ausência de um sistema de coleta de exames e de uma estrutura que permita a análise apropriada. A notificação de outras DSTs, como sífilis e HPV, sequer existe como prática hospitalar. O levantamento de casos é fundamental para o planejamento de ações de tratamento. Quantas doses e quais medicamentos serão necessários? Qual cepa de vírus circula no país? Em lugares como Brasil, Tailândia, Uganda e França, que disponibilizam o tratamento universal, os pacientes de Aids contam com um mapeamento do tipo de subespécie do vírus para que tomem o medicamento mais eficaz, otimizando recursos e aumentando a sobrevida. Nesse aspecto, o Irã parou nos anos 1980, isto é, o soropositivo vive no isolamento e abandono e há um índice extremamente alto de mortalidade. No entanto, os ativistas e profissionais de saúde vem conseguindo romper a censura para avançar na divulgação de dados
e implantação de programas, conquistando, com seus próprios esforços, cada vez mais espaço para a contenção do avanço da Aids e seus problemas correlatos. Como essa luta exige que os ativistas se exponham e tenham que desfazer os preconceitos que atentam contra a vida humana (mesmo se eles estiverem alicerçados em algumas leituras religiosas), eles acabam se tornando alvos fáceis para a repressão. Quando o governo quis encontrar “agentes estrangeiros ou simpatizantes” nos protestos legítimos contra a fraude eleitoral, fechou algumas clínicas e prendeu médicos, gestores e outros profissionais de saúde, porque se formaram em universidades estrangeiras, ou porque tinham participado de conferências mundiais da área, como as sobre Aids. Trata-se de um crime contra o conhecimento e a formação técnica humanista. Por tornar as conquistas muito suscetíveis, portanto, a censura é certamente o primeiro dos problemas. Mas não é o último: a repressão social adiciona mais dificuldades, pois criou casos específicos do Irã que facilitam a transmissão. A explosão do uso da heroína Uma mostra da independência política de vários dos ativistas de saúde, que estão longe de ser agentes do imperialismo, é o esforço que ONGs e instituições independentes vem dando para denunciar o aumento explosivo da entrada de opiláceos vindos do Afeganistão, desde que as tropas americanas invadiram o país. Rota antiga para a Europa e o Ocidente, o Irã assistiu a produção de papoula no Afeganistão crescer consideravelmente após a queda do Talibã. “Achamos que a OTAN e as forças estrangeiras no Afeganistão são indiferentes à questão das drogas e deram prioridade a outras metas”, disse Ahmadi Moghaddam em uma conferência de funcionários do Paquistão, Afeganistão e do Escritório da ONU contra as Drogas e o Crime. “Desde a época em que entraram [no Afeganistão], presenciamos um aumento explosivo na produção de drogas”, completou. A situação reflete a única preocupação americana: dominar o país de qualquer maneira, mesmo se isso significar estimular a produção de drogas. A heroína, uma droga bastante cara em países como o Brasil, torna-se muito mais atrativa para os usuários de droga num país onde pode ser encontrada com qualidade, em abundância e a preços baixos. A forma de consumo que está se expandindo, no Irã, é via injeção, o que levanta suspeitas de que o hábito foi importado dos “amigos estrangeiros” do Afeganistão, uma vez que esse método, mais invasivo que a aspiração, não é parte da cultura iraniana. Já
para as tropas americanas, a injeção da heroína é uma prática corriqueira desde a Guerra do Vietnã. O meio militar tolera ou diretamente estimula o uso da droga porque seu efeito, de até 12 horas seguidas, é controlar a ansiedade e o medo, aspectos especialmente funcionais para tropas com o trabalho sujo de ganhar um conflito imperialista. Quanto ao crescimento do vício no Irã, é preciso lembrar que a repressão não resolve o problema, porque não trata da demanda. Ora, a desigualdade social, a falta de oportunidades, e o clima opressivo criado pela censura à arte, à produção de conhecimento e à expressão são os verdadeiros problemas a combater, e não o tráfico, que não se produz sozinho. Os problemas sociais e políticos estão longe de serem resolvidos pelo governo, que demonstra sua verdadeira prioridade política nas verbas: US$ 600 milhões são destinados à repressão do tráfico. Os gastos com a pandemia de HIV acabaram levando o governo a reconhecer pragmaticamente a necessidade de contenção da infecção do vírus na população de usuários de drogas injetáveis, endossando os programas de distribuição gratuita de seringas e as campanhas de informação. Mas pragmatismo não é convicção: por isso, o movimento de saúde deve estar sempre alerta na defesa desse programa contra ações do próprio governo de sabotagem ou descaso. A repressão aos hábitos Ainda que os usuários de drogas injetáveis formem o grupo mais elevado de infectados com HIV no Irã, os funcionários da saúde também estão preocupados com o número de pessoas infectadas com o vírus da Aids por via sexual. Nesse tópico, a omissão ou direta repressão do governo é ainda mais criminosa. O governo nega a existência da prostituição, e com isso não permite campanhas de informação sobre a camisinha e outras formas de prevenção do contágio por contato sexual. Mas a prostituição no Irã é um fato, e se dá por meio dos casamentos temporários, uma instituição criada para legitimar religiosa e juridicamente os contatos afetivos temporários, mas que acaba dificultando a prevenção das DSTs, porque na cultura iraniana não é aceitável uma mulher exigir o uso da camisinha por seu próprio marido. Muitas vezes, as mulheres são levadas a aceitar casamentos temporários porque foram abandonadas pelo marido e suas possibilidades de sobrevivência e de aceitação social ficaram seriamente comprometidas. Ao não poder se prevenir da infecção de HIV, a mulher casada temporaria-
mente pode contrair o vírus e acabar banida socialmente de vez, relegada aos serviços de saúde precários. Outra intervenção prejudicial do governo é a pressão para que homossexuais se submetam a operações de troca de sexo. Os aiatolás do governo forçaram uma interpretação do Corão para explicar a homossexualidade como um “equívoco de Deus” que os homens devem corrigir. A homossexualidade, no entanto, é um fenômeno de todas as sociedades, tanto as atuais quanto as antigas, e têm muitas formas, não apenas a vontade de ser do sexo oposto. Por causa dessa pressão do governo, os homossexuais do Irã só têm duas opções: esconder seus hábitos íntimos ou aceitar uma interferência externa no próprio corpo, e uma transformação em mulher, inclusive jurídica, o que infelizmente significa, no Irã, passar a depender do marido ou do pai. Com todos esses obstáculos, fica quase impossível a livre opção da sexualidade no Irã, e portanto a adoção consciente das formas de prevenção. O governo deve buscar soluções Uma das preocupações atuais do movimento de saúde no Irã é com um possível embargo generalizado dos países europeus e dos EUA, sob o pretexto do programa nuclear. Se os medicamentos antirretrovirais sofrerem embargo, os ativistas de todos os países especialmente aqueles que estão tentando lucrar com os iranianos, como o Brasil devem exigir de seus governos que socorram o Irã. Por outro lado, também deve ser exigido do governo iraniano que rompa as patentes dos medicamentos, organize a produção deles e a coloque sob controle dos trabalhadores da saúde. Países que detêm tecnologia e matériaprima e já quebraram patentes, como Brasil e Índia, têm o dever de ajudar nessa iniciativa. As camisinhas, peça fundamental da prevenção, mas artigo raro, caro e de acesso difícil no Irã, devem também ser produzidas e subsidiadas pelo governo, que ainda precisa prever formas de venda sigilosa e segura. Por fim, o movimento deve também exigir do governo iraniano um sistema de saúde verdadeiramente universal, gratuito e controlado pelos trabalhadores, apoiados nos técnicos da saúde e médicos. Esse sistema deve ser laico, sem ingerência religiosa, pois sua preocupação maior deve ser com a vida humana e a tolerância com os valores de cada grupo. Enquanto as liberdades democráticas, como a livre expressão e o direito à informação, não estiverem garantidas, pandemias como a do HIV continuarão a atingir com toda a força o país e exporão de forma dramática a tragédia social e política desse povo oprimido. •
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Façamos como o povo de Gaza que se solidariza com Haiti
Edição especial
Cinema iraniano: projeção internacional, apesar da censura Por Marcia Camargos
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produção de filmes no Irã surpreende em quantidade e em qualidade, ganhando espaço e admiradores ao redor do planeta. Diretores como Abbas Kiarostami, Jafar Panahi, Bahman Ghobadi, Mohsen e a filha, Samira Makhmalbaf, criaram um estilo que se consagrou no exterior, veiculando aquele típico olhar ligeiramente ingênuo, perpassado de simbolismo e poesia até no trato dos assuntos mais violentos. Esse registro tão característico não é um capricho dos diretores, mas uma forma de manter a produção viva e dinâmica driblando o regime autoritário que cerceia a liberdade dos realizadores. Para se desenvolver dentro desta verdadeira camisa-de-força, o cinema iraniano conta com uma longa tradição. A imagem em movimento chegou muito cedo no que já foi a antiga Pérsia. Na passagem do século XIX para o XX, Miza Ebrahim Khan Akkas Bashi já filmava as visitas do Xá persa à Europa. Poucos anos depois, em 1904, Mirza Ebrahim Sahhafbashi abria uma sala de projeção na capital que, até os anos 1930, teria a companhia de outras 15 salas e mais 11 espalhadas pelos vários estados. Em 1925, um iraniano de origem armênia fundou a primeira escola de cinema no país; em 1932 o primeiro filme falado iraniano retrataria a história de Ferdoussi, o autor de um celebrado épico persa. Mas a indústria cinematográfica iraniana devese a Esmail Koushan e Farrokh Ghaffari, que também estabeleceram as bases para o cinema alternativo. Ao longo da década de 1960, foram realizados 65 filmes, a maioria dos quais melodramas e thrillers, incluindo “A noiva do mar”, “Casa de Deus” e “O marido de Ahoo Khanom”, entre outros. Apesar da produção alternativa, a guinada cinematográfica iraniana para filmes de inspiração hollywoodiana fez com que o cinema fosse identificado como símbolo da dominação norte-americana e do Xá. Por isso, em 1979, muitas das 300 salas de cinema tiveram o mesmo fim dos bancos e cafés, sendo depredadas ou queimadas. Nesta fase o aiatolá Khomeini, atento às necessidades de estabelecer o novo regime usando todas as ferramentas possíveis, salvou as restantes, mas a um custo alto, com a imposição de linhas estéticas e ideológicas para a fundação de um cinema “islamicamente correto”. Assim, em poucos meses, a teocracia baixou uma série de regras não escritas. O casamento e a família deveriam ser respeitados, e o espectador não poderia jamais simpatizar com um criminoso ou alguém que tivesse pecado. Na tela, o tráfico de drogas não apareceria, o adultério não deveria ser evocado, a blasfêmia e os gestos
Filme O Gosto de Cereja, de Abbas Kiarostami sugestivos foram proscritos. Os sexos opostos não poderiam se tocar, os temas tidos como vulgares ou desagradáveis estavam fora de cogitação e os religiosos não poderiam ser mostrados como personagens cômicos ou desonestos. Enfim, criou-se um corolário de restrições que não se limitavam apenas ao roteiro, mas abrangiam a organização inteira das filmagens, determinando, inclusive, maquiadores separados para homes e mulheres, para garantir a ausência de contato físico ilícito. Quando o filme “O Corredor” (de Amir Nadent), de 1985, obteve sucesso internacional e grandes premiações, o Estado iraniano passou a fornecer suporte oficial para que o cinema se transformasse em produto de exportação e vitrine para a República Islâmica. A contradição entre o interesse comercial do governo e a rigidez da política doméstica no que tange o comportamento social chega hoje a tal ponto que certos filmes proibidos internamente são autorizados para serem exibidos no exterior. Naquele período inicial, realizavam-se quase 70 filmes por ano, num processo de ascensão que culminaria com a Palma de Ouro outorgada em 1997 em Cannes a Abbas Kiarostami por “O gosto de cereja”. A presença contínua dos iranianos nos mais prestigiados festivais, como o de Veneza e de Berlim, garantiram seu lugar no cenário internacional. O próximo passo foi o reconhecimento, pelas autoridades, do cinema étnico como o curdo, por exemplo, o que propiciou a emergência de cineastas como Bahman Ghobadi. Regulado pelo Islã Para garantir o controle sobre o produto final, em 1996 o governo baixou uma normatização oficial. Intitulada “Princípios e procedimentos do cinema iraniano”, traz, entre suas 16 cláu-
sulas, impedimentos à inclusão de músicas que evoquem alegria e prazer, bem como qualquer insulto aos princípios islâmicos ou à suprema jurisprudência da qual o aiatolá está investido – o velayat-e faqi. Assim mesmo os números impressionam. Com um investimento anual superior a U$ 1,5 bilhões, o Irã lança cerca de 100 longas de ficção e mais de 2 mil curtas-metragens, o que coloca o país entre os dez maiores produtores mundiais. As escolas de cinema estão presentes em 52 cidades, mas há deficiências a serem corrigidas: “Além de ter apenas 400 salas de projeção para uma população de 70 milhões de habitantes, há falta de equilíbrio entre a quantidade de filmes de arte e comerciais”, afirma Massoud Bakhshi, ex-diretor do Documentary and Experimental Fim Center, que organiza o Festival Cinema Verdade e encarrega-se da distribuição e promoção dos filmes experimentais e pequenos documentários. O número de escolas de cinema vem crescendo, e joga a cada ano no mercado mais de 20 diretores, dentre os quais muitas mulheres. Nas duas últimas décadas, a porcentagem de diretoras iranianas é maior do que na maioria dos países ocidentais, sendo a prolífica Rakshan Bani-Etemad uma das mais conhecidas. Antes da jovem Samira Makhmalbaf estrear com “A maçã”, recebendo em 2000 o Prêmio do Júri em Cannes com “O quadro negro”, já atuavam figuras como Pouran Derakhshandeh, Zahra Dowlatabadi, Niki Karimi, Sara Rastegar e Parisa Bakhtavar, entre muitas outras. Além, é claro, de atrizes também premiadas em festivais do mundo inteiro. Recentemente, em 2006, a escritora Mariane Satrapi, autora do aclamado livro Persépolis que conta a história recente do Irã em quadrinhos, tornou-se membro do Júri em Cannes, recebendo o Prêmio do
Júri deste mesmo Festival no ano seguinte pela adaptação do seu livro em desenho animado. Obviamente que, como em qualquer sistema coercitivo, os artistas buscam saídas dentro ou fora do país para financiar seus projetos, mesmo com poucas chances de viabilização. O cinema independente resiste em um mercado paralelo no qual filmes sobre corrupção, prostitutas, homossexualismo, repressão e outros temas explosivos são abordados sem censura. Recentemente, após as eleições que confirmaram Ahmadinejad no poder, suscitando uma inédita e gigantesca onda de protestos entre os apoiadores do oponente Moussavi, os confrontos com a polícia tornaramse inevitáveis. Neste contexto explosivo, os cineastas queixamse de perseguição e do impedimento que sofrem na tentativa
de retratar o descontentamento que se alastra pelas ruas dos centros urbanos. Portanto, às vésperas do Festival Cine Verité, realizado no final de outubro, um grupo de cineastas dissidentes pede aos eventuais convidados estrangeiros o boicote à versão 2009 do referido evento. Escrito em farsi, inglês, francês, italiano e alemão, explica o pedido dos dissidentes nos seguintes termos: “Durante o século passado os documentaristas iranianos registraram valiosos aspectos da nossa sociedade contemporânea. O cinema foi capaz de superar inúmeros obstáculos ao longo dos anos. Nos períodos da Revolução islâmica, das guerras e conflitos das últimas décadas, os cineastas persas forneceram documentários fundamentais para a compreensão da vida social e histórica iraniana. Cinema Verité é um festival importante, conseguindo nos dois anos anteriores invocar uma atmosfera de debate e reflexão – algo essencial no mundo dos documentários. Infelizmente, nas semanas recentes, restrições extremamente severas foram impostas aos que, nas ruas, tentam capturar os acontecimentos da atual fase de turbulência social. Enxergamos uma série de filmes em potencial que poderiam ter sido feitos, mas não foram autorizados. Assim, devido ao nosso compromisso e respeito à verdade dos fatos, decidimos não participar do Festival seja como cineastas, críticos ou espectadores”. O apelo, disparado por correio eletrônico, evidencia que o cinema iraniano encontra-se diante de um impasse. Ou relaxam as medidas restritivas ou muitos deles serão obrigados a abandonar o país em busca de condições mínimas de trabalho. •
Filme O Balão Branco, de Jafar Panahi
Filme Tartarugas podem voar, de Bahman Ghobadi